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Relações

pessoa-ambiente na
América Latina:
perspectivas críticas, territorialidades e
resistências

Organização
Tadeu Mattos Farias
Nikolas Olekszechen
Monique Araújo de Medeiros Brito

Porto Alegre
2021
A Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO) é uma enti-
dade civil, autônoma e sem fins econômicos que reúne e organiza pessoas
dedicadas ao estudo, ensino, investigação e aplicação da Psicologia a partir
de um ponto de vista social no Brasil. Desde a sua criação, no ano de
1980, a ABRAPSO busca ensejar a integração da Psicologia Social com
outros campos, incentivar e apoiar o desenvolvimento de ações no campo
sociocomunitário, bem como garantir o compromisso ético-político de
profissionais, investigadores, especialistas e estudantes da área com as po-
pulações submetidas a desigualdades e explorações sociais e econômicas, em
condição de opressão ou violência de qualquer ordem, contribuindo para a
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dedicados a mobilizar e estimular a dialogia acerca da Psicologia Social. O
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(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Relações pessoa-ambiente na América Latina


[livro eletrônico] : perspectivas críticas,
territorialidades e resistências / organização
Tadeu Mattos Farias, Nikolas Olekszechen,
Monique Araújo de Medeiros Brito. --
Florianópolis, SC : ABRAPSO Editora, 2021.
PDF

Vários autores.
ISBN 978-65-88473-11-5

1. Psicologia ambiental 2. Territorialidade humana


3. Território nacional - América Latina I. Farias,
Tadeu Mattos. II. Olekszechen, Nikolas. III. Brito,
Monique Araújo de Medeiros

21-84370 CDD-155.9
Índices para catálogo sistemático:

1. Territorialidade humana : Psicologia ambiental


155.9

Maria Alice Ferreira - Bibliotecária - CRB-8/7964

Capa: Vestígios. Acrílica sobre tela. (Andrea Zanella)


Design: Arnoldo Bublitz
Sumário

Apresentação.......................................................................... 9
Tadeu Mattos Farias | Monique Araújo de Medeiros Brito | Nikolas Olekszechen

Prefácio.................................................................................. 15

Eixo 1 - Descolonizando saberes: perspectivas críticas para as


relações pessoa-ambiente a partir do Sul Global

I. Ecos da acumulação primitiva:


Contribuições marxistas para a análise crítica das
relações pessoa-ambiente na América Latina.......................................... 33
Tadeu Mattos Farias

II. Contribuições subversivas para uma


Psicologia Ambiental insurgente e genuinamente latino-americana..... 55
Raquel Farias Diniz

III. Caminhos para uma inserção territorializada da Psicologia............. 75


Ana Paula Soares da Silva | Bianca Oliveira de Macedo | Fernanda Graña Kraft | Juliana Bezzon da Silva
Karine Regina Jurado

IV. Das raízes do indivíduo burguês:


Odisseu, nostalgia e a dominação da natureza......................................... 97
Gustavo Martineli Massola | Pedro Fernando da Silva

V. A construção da classe trabalhadora nos processos de territorialização.......115


Guilherme Paim Mascarenhas

VI. Retirâncias: O que nos move pelo mundo?......................................... 131


Monique Araújo de Medeiros Brito | Alexandra Cleopatre Tsallis

VII. Deixar mover e fazer parar:


Uma leitura do urbano pelas mobilidades...............................................145
Nikolas Olekszechen

5
VIII. El “hogar” en movimiento:
La expulsión en el espacio público de personas en situación de calle......165
Catalina Ramírez Vega | Tomeu Vidal Moranta

IX. Contribuições de um estudo etnográfico no circuito-rua


do Centro de São Paulo para a discussão sobre a rualização
nas relações pessoa-ambiente.................................................................185
Gabriela Milaré | Gustavo Martineli Massola

X. Energías Renovables en América del Sur:


Injusticias energéticas y colonización tecnológica................................ 205
Rafaella Lenoir-Improta

XI. Comunidades tradicionais pesqueiras do Delta do Parnaíba........... 225


Antônio Vladimir Félix-Silva | Camila Batista Silva Gomes | Maylla Maria Souza de Oliveira | Alessan-
dra Sávia da Costa Masullo | Francinalda Maria Rodrigues da Rocha

Eixo 2 - Territorialidades e práxis de resistência


no campo e na cidade

I. Participación y Protagonismos para un desarrollo sostenible en Cuba:


Apuntes desde la Psicología Ambiental.................................................. 247
María Milagros Febles Elejalde | Silvia Miriam Pell del Río

II. Participación comunitaria en la defensa del territorio:


Mapeo Colectivo como herramienta de trabajo de Movimientos Sociales.......273
René Squella Soto

III. O uso coletivo de espaços citadinos:


lugares de eloquência popular em Porto Velho-RO................................ 289
Lílian Caroline Urnau | Matheus Mendonça de Vasconcelos

IV. El lugar como escenario y objeto de la lucha social:


La zona cero de la revuelta social en Chile............................................... 311
Héctor Berroeta | Marcelo Rodríguez | Andrés Di Masso Tarditti

V. Coletivo Sarau do Binho:


poesia, articulação territorial e direito à cidade......................................327
Tatiana Minchoni | Katia Maheirie | Robinson de Oliveira Padial | Suzi de Aguiar Soares

VI. Os significados da violência urbana para jovens periféricos:


constituindo teias de sociabilidade em territórios apartados.................347
Thaís Fabiana Faria Machado | Eunice Nakamura
VII. (In)visíveis e loucos pela cidade:
encontros entre saúde mental e população em situação de rua...............367
Ana Karenina de Melo Arraes Amorim | Maria Teresa Nobre | Lais Barreto Barbosa | Breno Lincoln
Pereira de Souza Diniz

VIII. “Além das cercas, o meu lugar”:


resistência, agroecologia e transformações
socioespaciais no contexto rural............................................................ 389
Leonardo Victor de Sá Pinheiro | Fernanda Fernandes Gurgel | José Queiroz Pinheiro

IX. Terra para morar, água para plantar:


mulheres agricultoras e a luta por direito à cidade e à moradia............. 407
Maria da Graça Costa | Magda Dimenstein | Jáder leite

X. Estratégias psicossociais de enfrentamento à pobreza rural


no nordeste e no sul do Brasil................................................................. 429
Elívia Camurça Cidade | Verônica Morais Ximenes

XI. Dignidade e apego ao lugar:


disputa pelo direito à moradia na recuperação pós-desastre..................451
Laís Pinto de Carvalho

XI. No es solo escapar. Resistencias cotidianas del comercio ambulante


hortalicero en Temuco, Chile.................................................................. 469
Jorge B. Ulloa-Martínez

XII. Etnoeducación y resistencias en la diáspora de mujeres mapuches en Chile:


El Nütram y Kimün.................................................................................. 489
Alicia Rain

XIII. “Un violador en tu camiño”


Corpo e cidade, resistência e luta feminista............................................505
Adriana Barbosa Ribeiro | Andrea Vieira Zanella

XIV. El trabajo sexual como un intersticio.


Discursos estatales y agencia desde la cotidianeidad de las
profesionales del sexo en el Norte de Chile..............................................525
Jacqueline Espinoza-Ibacache | Lupicinio Íñiguez-Rueda

Sobre as autoras e autores...................................................547


Apresentação
Tadeu Mattos Farias
Monique Araújo de Medeiros Brito
Nikolas Olekszechen

T erritório e resistência são temas indissociáveis da história da América


Latina. Desde a invasão colonial, o embate entre as forças de incor-
poração e submissão do continente ao capitalismo - seja em seu estágio
nascente mercantilista, seja em suas posteriores etapas e reconfigurações - e
aquelas que resistiram e ainda resistem seus modos de vida, e/ou buscaram
transformar as sociedades locais em direção à emancipação, ditaram a forma
de produzir os mais diversos espaços, do campo à cidade. Junto às forças
político-econômicas do capital, a racialização da sociedade para subjugação
dos povos não brancos, o modelo patriarcal, hetero e cisnormativo, vin-
culado à centralidade do modelo de família burguesa, foram produtos de
exportação colonialista que também passaram a dinamizar a configuração
de territórios, modos de vida, subjetividades, e, por consequência, torna-
ram-se também objeto de denúncia e resistência ao longo dessa história.
A busca pelo saqueio de bens naturais, por mão de obra a ser escra-
vizada e/ou superexplorada, conjugada a uma divisão sexual, de gênero e
racial da sociedade, marcam o desenho social e ambiental dos mais diversos
territórios do continente, produzindo espaços desiguais e opressivos, em
termos de classe, raça, etnia e gênero. Ao mesmo tempo, essa história é
também dos povos e grupos que buscam até hoje resistir, reinventar terri-
tórios, lutar contra a subjugação socio-territorial e garantir outros modos
de viver e outros modelos de sociabilidade.
A produção sociopolítica dos territórios e lugares de vida é um tema que
vem recebendo atenção de pesquisadores(as) de distintos campos da psicologia.
As lutas por moradia, pelo direito à cidade, pela reforma agrária, pelo direito
à segurança alimentar dos povos, pelo direito à vida e ao livre exercício da
cultura pelos povos originários e povos das periferias, por uma relação com o

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Relações pessoa-ambiente na América Latina

espaço e com a natureza não submetida aos imperativos do lucro, contra as


intervenções territoriais imperialistas, possuem em comum o constante ten-
sionamento entre as formas hegemônicas de produzir territórios e modos de
vida e os grupos que lutam para não serem submetidos ou por outros modos
de produzir os lugares.
A configuração social, espacial e histórica da América Latina tem sido
pautada no âmbito da Associação Brasileira de Psicologia Social e em seus
Encontros Nacionais. Nos XIX e XX Encontros Nacionais da Associação
Brasileira de Psicologia Social, que aconteceram respectivamente em 2017
e 2019, realizamos encontros do Grupo de Trabalho intitulado “Relações
pessoa-ambiente: territorialidades e criação de espaços de resistência”. Em
2017, o foco esteve nas estratégias de resistência derivadas da tensão entre
processos psicossociais (como identificação, subjetivação, apropriação do
espaço) com contextos sociofísicos específicos (cidade, campo, comunida-
des, bairros etc.). A pluralidade de referenciais teórico-metodológicos que
davam contornos aos estudos pessoa-ambiente na perspectiva da psicologia
social crítica foi nosso foco. 
Naquele momento, as discussões giraram em torno de três aspectos:
relações urbanas, cujo foco foi a relação de pessoas em situação de rua com
os locais onde vivem, modos de socialização de jovens em contexto de
violência urbana e a ressignificação da relação entre pessoas em sofrimento
psíquico grave e os espaços públicos; ruralidades, congregando trabalhos
a respeito da intersecção entre urbanidades e ruralidades, assim como
processos participativos de comunidades em licenciamento ambiental e;
comunidades tradicionais, com destaque para os trabalhos realizados a
respeito do vínculo entre moradores de quilombos, bairros e residências e
o local onde habitam. A pluralidade teórica e metodológica na condução
dos estudos ficou como uma marca do encontro, contemplando métodos
participativos, como a etnografia e a observação participante, e analisados
à luz de referenciais que possuíam o cerne na crítica social, como aqueles
de natureza materialista histórica e dialética e pós-estruturalista.
Frente ao resultado bastante instigante dos debates de 2017, em 2019
buscamos aprofundar as discussões. Nesse caso, identificando estratégias de

10
Prefácio. Perspectivas críticas en el estudio de las relaciones persona-ambiente:...

ocupação/produção dos territórios de identidade e pertencimento cultural


e social, bem como as formas de resistência aos processos de expropriação
de territórios e criminalização dos movimentos sociais envolvidos nessa luta
pelos direitos sociais e ambientais, com foco nas experiências de pesquisa,
atuação, e/ou artístico-culturais em tais contextos. 
Foi a partir desses debates, de sua pertinência e potência crítica, que
fizemos a proposta de organização deste livro. Trata-se, para nós, de uma
ferramenta para a consolidação dos referenciais críticos da psicologia social
no campo dos estudos pessoa-ambiente, buscando expor a multiplicidade
de referenciais teóricos, epistemológicos e metodológicos que configuram
nosso terreno comum.
A proposta deste livro está situada no compromisso conjunto com
a articulação de ações e agendas de pesquisa/intervenção sobre a ideia de
territorialidades e espaços de resistência no âmbito da psicologia social. Se
as críticas à psicologia social hegemônica de décadas atrás nos renderam
uma psicologia social (ou psicologias sociais) que buscou se distanciar
criticamente dos referenciais incorporados da Europa e Estados Unidos
e voltar-se para a realidade latinoamericana, produzindo teoria e prática
implicadas com essa realidade, processo do qual a própria ABRAPSO é
parte, é possível dizer que o aspecto territorial/espacial dessa realidade não
foi o foco das reflexões, sendo em geral negligenciado. Por seu turno, a
psicologia ambiental, área que explicitamente advoga tal aspecto espacial
para o centro de suas reflexões psicossociais, não fez parte desse processo
de virada crítica dos anos 1970/1980, e tem sua história no continente
ainda hegemonizada pelos referenciais trazidos da realidade euro-estadu-
nidense, inclusive abraçando referenciais teórico-metodológicos, teorias e
modelos explicativos da psicologia social já criticados largamente ao longo
das transformações desse campo na América Latina.
 Nosso propósito aqui, dessa maneira, foi o de agregar pesquisadores(as)
que vêm tentando fazer frente a esses limites, amalgamando território e crítica.
O propósito é trazer análises sobre fenômenos de natureza socioespacial
articulados com contextos específicos, a fim de compreender suas reverberações
para os coletivos envolvidos, as estratégias metodológicas utilizadas nas

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Relações pessoa-ambiente na América Latina

investigações e intervenções sobre esses fenômenos, os desafios colocados para


a psicologia social crítica a partir da análise das territorialidades, e proporcionar
compartilhamento e publicização de formas de resistência nesses territórios
atravessados por forças de dominação referentes à dinâmica do capital e às
estruturas de opressão de classe, raça, etnia e gênero.
Ademais, nosso intuito foi conjugar experiências de pesquisadores(as)
da América Latina e Caribe, a fim de reforçar a singularidade das estratégias
de resistência coletivas produzidas na perspectiva do sul global e que fazem
frente aos processos globais de dominação. Nesse sentido, é importante
considerar que aqui entendemos como perspectivas críticas aquelas que
assumem a não neutralidade do fazer científico, e que colocam o horizonte
da transformação social e da emancipação humana como dimensão da
práxis científica.
Os capítulos que se seguem foram escritos por participantes dos
encontros do GT e outros(as) convidados(as), e conta com um caráter
regionalmente múltiplo, em termos de Brasil e de América Latina. O livro
está dividido em duas partes, que correspondem a dois eixos temáticos. A
primeira, Descolonizando saberes: perspectivas críticas para as relações pessoa-
-ambiente a partir do Sul Global, articula trabalhos que possuem como foco
apresentar e discutir perspectivas epistemológicas e teórico-metodológicas
críticas no campo da psicologia social/ambiental sobre o território e as
relações pessoa-ambiente, visando à compreensão das relações socioespa-
ciais no contexto de capitalismo periférico. Os capítulos nesta seção são
contribuições que apresentam perspectivas teóricas descolonizadoras/an-
ticapitalistas para o estudo das relações pessoa-ambiente, e partem de uma
compreensão política e social dos fenômenos socioespaciais. Na segunda
parte, Territorialidades e práxis de resistência no campo e na cidade, estão
trabalhos que possuem como foco a apresentação, discussão e análise de
práxis de resistência de coletivos, comunidades, movimentos sociais, que
mobilizam os sentidos e significados dos territórios no enfrentamento às
diversas formas de dominação nos âmbitos macro e micropolíticos, sina-
lizando para potencialidades locais e protagonismos insurgentes. Esses
trabalhos destacam as diferentes maneiras de habitar/ocupar os lugares

12
Prefácio. Perspectivas críticas en el estudio de las relaciones persona-ambiente:...

e evidenciam a tensão entre vulnerabilidades e potencialidades locais na


criação da vida cotidiana, e nas lutas sociais que possuem o território como
atravessamento.
Se é impossível dizer que em algum momento da história latinoamer-
ciana, as lutas acima referidas cessaram, também podemos afirmar que há
momentos em que a história parece abrir horizontes disruptivos em que a
ação desses povos em luta pode nos levar para novos caminhos. América
Latina e Caribe fervilham nos últimos anos entre ascensão reacionária
conjugada com projetos neoliberais antissociais, golpes de Estado e levantes
populares das massas oprimidas e exploradas, do Haiti ao Chile, passan-
do por Equador, Bolívia e Colômbia. É só a luta dessas massas que pode
efetivamente transformar a realidade. Mas a produção teórico-científica
que tenha a crítica por exercício deve proceder no sentido de se conectar
a essa realidade, nesse caso, a realidade dos povos latinoamericanos, e se
aliar a suas necessidades emancipatórias. O presente livro é uma humilde
contribuição para quem deseja estudar e refletir sobre nossos territórios
e suas resistências, em diálogo com a psicologia, ao mesmo tempo crítica
e territorializada.

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Prefácio

Perspectivas críticas en el
estudio de las relaciones
persona-ambiente:
Territorialidades y creación de espacios de
resistencia en américa latina

C uando recibí la invitación para escribir el prefacio de un libro titulado


Perspectivas críticas en el estudio de las relaciones persona-ambiente:
territorialidades y creación de espacios de resistencia en América Latina,
acepté sin dudarlo. La positividad con la que está cargada la palabra
crítica y la expresión espacios de resistencia, fue determinante. Pensé que
disfrutaría con su lectura. Y así fue.
La presente publicación destaca por su riqueza teórica y experien-
cial. Evidencia los recursos conceptuales y metodológicos disponibles
para una Psicología Ambiental que pretende romper con las amarras
de sus desarrollos positivistas, centrados en el individuo y despolitiza-
dos. Aporta claves interpretativas y de acción para el despliegue de un
enfoque crítico que potencia la dimensión espacial en la vida de las
personas y de los procesos colectivos y de resistencia en relación a ella.
Es particularmente importante en estos momentos, cuando la crítica
parece acorralada como lo están nuestros cuerpos, a partir de la gestión
de una pandemia de escala mundial que justifica toda forma de control
y represión en nombre de la preservación de una vida reducida a su
dimensión biológica. Espacialidades, corporeidades y relaciones sociales,
se ven fuertemente interpeladas. Confinamiento, distanciamiento social,

15
Relações pessoa-ambiente na América Latina

cuarentena, burburja, contagio, son algunas de las expresiones que ex-


ponen la forma en que nuestros espacios vitales han sido perturbados.
Se intensifican las desigualdades sociales instituidas por el capitalismo
y los efectos de su comportamiento depredador, mientras asistimos a
gobiernos negligentes ante la precarización de las condiciones de vida de
las poblaciones. Al mismo tiempo, se hace evidente la interdependiencia
entre las personas, con la naturaleza y con la tecnología, así como también
la urgencia de concebir y desarrollar formas alternativas de reproducción
de la vida. Por todo esto, este libro es sumamente oportuno.
Luego de recorrerlo, me propongo dialogar con sus contenidos y con
sus autoras y autores a partir de mis propias resonancias, necesariamente
situadas en mis particulares recorridos por este campo de problemas y
por las posiciones vitales que ocupo (mujer, de mediana edad, blanca,
latinoamericana, uruguaya, montevideana, y universitaria).

Sobre las perspectivas críticas situadas

Según Maritza Montero (2004, 2010), crítica proviene de crisis, o de la


palabra griega krisis y significa la posibilidad de elegir. Hay crítica cuando
se reconoce que las cosas no son de una sola manera ni son inmutables,
que admiten varias alternativas en el marco de una concepción compleja de
la realidad. Partiendo de esta premisa podríamos preguntarnos cuáles son
los fundamentos para esta elección en cada situación en particular y qué
principios la orientan. En el texto que las/os lectoras/es tienen entre manos,
la elección por perspectivas críticas en Psicología Ambiental se sustenta en
el interés por denunciar los efectos de un capitalismo destructivo de las
vidas humanas y no humanas, y por visibilizar las estrategias que lo resisten.
La crítica implica realizar un análisis de teorías, conceptos, perspectivas,
metodologías, develar sus contradicciones, sus incoherencias, sus debili-
dades y fortalezas, y sus intereses subyacentes. Supone someter a juicio las
formas en que se excluyen explicaciones alternativas o divergentes y cómo
las teorías y métodos contribuyen a mantener el status quo, en un marco en
el que se reconocen las relaciones de poder. Es persistente en su oposición

16
Prefácio. Perspectivas críticas en el estudio de las relaciones persona-ambiente:...

al principio de autoridad e impide que los conocimientos se conviertan


en dogmas (Montero, 2004, 2010). Como es sabido, el conocimiento
es una producción socio-histórica, ligada a las condiciones que hacen
posible que determinados enunciados, narrativas y prácticas se expresen,
mientras que otras sean rechazadas, invisibilizadas o inconcebibles. “la
crítica subvierte el modo de ver las cosas, desencaja los mecanismos de
poder que sostienen posiciones establecidas y abre nuevas perspectivas al
conocimiento” (Montero, 2004, p. 21). Sin lugar a dudas, este es un logro
de la presente publicación.
Estamos hablando del carácter situado del conocimiento. El libro
pone el foco en el tema de los lugares, de los espacios y de los ambien-
tes. No podía dejar de considerar la localización del conocimiento y sus
condiciones geográficas de producción. Desde allí plantea la crítica al
colonialismo del saber, lo que no supone, como expresan algunos de sus
autores, desechar todo lo que viene de Europa o de EEUU, sino hacer el
esfuerzo de pensar desde el sur del mundo, desde el lugar que se ocupa,
lo que requiere de una perspectiva epistemológica que lo haga posible. La
localización de la producción de conocimientos, cualquiera sea, con-
tiene el potencial para la reproducción de las hegemonías y al mismo
tiempo, para su transformación, lo que nos advierte en relación al riesgo
de las posturas esencialistas. El conocimiento se constituye en el marco
de las relaciones de poder que le son inherentes y por tanto contiene
tensiones y contradicciones.
Podemos pensar su carácter situado en términos de escalas (cen-
tro-periferia en el mundo, centro periferia en la ciudad, rural-urbano,
espacios residenciales, vivienda, etc.), a sabiendas que todas ellas tienen
expresión en cada una. Al mismo tiempo, lo situado nos remite a los
espacios diferenciales de Lefebvre (1974 trad. en 2013), aquellos que son
capaces de expresar la singularidad y de los que dan cuenta las distintas
experiencias que se exponen en esta publicación. Es desde ellas que
es posible producir teoría con algún sentido, es desde ellas y desde la
escucha a sus protagonistas, que las categorías que manejamos toman
cuerpo y se transforman. Como dice el Colectivo Situaciones (2003):

17
Relações pessoa-ambiente na América Latina

“el pensar se convierte en una actividad de riesgo: no consiste en producir


representaciones para los objetos, sino en asumir la dimensión teórica
presente en cada situación” (p. 16). Las perspectivas críticas asumen este
riesgo y las/os autoras/es de los siguientes capítulos lo hacen.
La crítica es cambiante, lo son los fenómenos sociales que se abordan
y el conocimiento en relación a ellos, por lo que es necesaria la continuidad
de una vigilancia permanente de aquello que se construye como alternativo
en un momento dado. “La crítica en si no es ni buena ni mala, es necesaria
para cambiar las cosas”, dice Montero (2004, p. 21).
¿Cómo determinar el carácter crítico de una perspectiva o accionar
psicológico?, se pregunta. Propone los siguientes criterios: la capacidad
de mostrar alternativas a lo criticado; proponer formas de resistencia y de
transformación a partir de lo que se denuncia y se opone; reconocer la
diversidad de actores intervinientes en las distintas situaciones; señalar la
relación entre los fenómenos y sus contextos; la motivación hacia la supera-
ción de la desigualdad y de las formas de injusticia y opresión, y una praxis
consecuente; la permanente reflexividad que conduce a hacernos cargo de
lo que pensamos, sentimos y hacemos, así como también de sus efectos.
La presente publicación cumple ampliamente con estos principios:
desarrolla una crítica a la Psicología Ambiental construida desde las cen-
tralidades del mundo y plantea la necesidad de teorías situadas en América
Latina; denuncia la colonialidad del saber urbano, al evidenciar las formas
de urbanización y de habitar dominantes trasladadas a nuestro continente;
analiza cómo el capitalismo concibe, construye y domina los espacios y los
ambientes y sus efectos en la reproducción de la vida; considera la diversidad
y multiplicidad de experiencias, de modos de pensar, de teorías, y de posi-
ciones en las relaciones de dominación; involucra las contradicciones y las
relaciones de poder en el vínculo personas-ambientes; critica la dicotomía
sujetos-medio planteando su inseparabilidad y su concepción como pro-
ducción social e histórica; postula la necesidad de involucrar la dimensión
subjetiva y ético-política en la relación personas-espacios (inseparables de
las físicas, económicas, culturales, sociales y estéticas); concibe el espacio
como la articulación de múltiples dimensiones (materiales, simbólicas,

18
Prefácio. Perspectivas críticas en el estudio de las relaciones persona-ambiente:...

afectivas, discursivas, corporales, institucionales, normativas, etc.); cuestiona


la fijeza de los espacios y de las categorías que tienden a profundizarla,
incluyendo la idea de movilidad y evidenciando los marcadores identitarios
que ocultan el carácter relacional de los procesos; atiende al modo y a las
intencionalidades con que las categorías que vinculan a las personas con
los espacios son empleadas en los discursos; jerarquiza la voz de las perso-
nas y colectivos implicados, de los sentidos y significados que construyen
y de su participación en los procesos; da cuenta de la multiplicidad de
experiencias contrahegemónicas y de la pluralidad de formas en que se
expresa la resistencia; y expone alternativas metodológicas coherentes con
la crítica que se expresa.
Tomando a Dussel (1973, 1998) Montero plantea que en el ejercicio
de la crítica se trata de poner en juego la analéctica, un procedimiento
que va más allá de la dialéctica y que supone disponernos al encuentro
con lo que no conocemos, a lo invisibilizado, a lo no categorizado por no
responder a los parámetros dominantes, es decir, “introduce un elemento
de contradicción en la totalidad dialéctica de un modo de hacer ciencia,
que no es la antítesis de sus tesis, sino algo inesperado, novedoso y que
desarrolla argumentos inusuales, distintos” (Montero, 2010, p. 180).
Desde las perspectivas poscoloniales y feministas, se trata de escuchar e
incorporar las voces subalternas, las comúnmente inaudibles, las que han
sido acalladas o distorsionadas por las voces oficiales y de la elite (Bidaseca,
2010), la de quienes tienen vidas precarizadas en la ciudad y en el campo,
que traspasan las fronteras en busca de vidas vivibles, que experimentan
sufrimiento psíquico, que son víctimas de distintas formas de violencia
y discriminación, así como también de la relación capital-trabajo y de la
división sexual del trabajo, la de aquellos que disputan el territorio a la
lógica mercantil y con ello, luchan por formas alternativas de reproducir
la vida. También en este aspecto se destaca esta publicación.
Montero (2010) advierte además sobre los riesgos de la influencia del
ambiente sobre el que se pretende incidir desde el desarrollo de un pensa-
miento crítico. Esto es lo que explica que campos de conocimiento que se
inauguraron como críticos respecto de las manifestaciones hegemónicas,

19
Relações pessoa-ambiente na América Latina

a lo largo de su desarrollo, inauguren nuevas perspectivas denominadas


“críticas” en su seno. Han sido visibles los movimientos de ruptura que
varias ciencias sociales y humanas generaron en la década de los 70’ del
pasado siglo: la sociología, la economía, la educación, la teología, la filo-
sofía, la psicología social, entre otras. Las condiciones socio-históricas del
momento generaron un campo fértil para que ello aconteciera. En mo-
mentos de quiebre como el que experimentamos actualmente a propósito
de la sindemia por COVID-19, vuelve a ser imperiosa la necesidad de una
revisión crítica de teorías, nociones, y metodologías disponibles.
La crítica no se desarrolla por fuera de la sociedad en que vivimos,
se produce en sus grietas e intersticios siempre existentes. Por tal motivo,
es necesario estar atentos/as a los riesgos de cooptación de las categorías
conceptuales por parte del propio sistema capitalista en sus formas de
penetración en todas las esferas de la vida, vaciándolas de contenido y
neutralizándolas en su potencial transformador. De allí la importancia del
análisis de la implicación (Lourau, 1975) de quienes adoptamos la posición
de académicos y/o profesionales. Como expresa Spivak (1985, citada por
Bidaseca, 2010) se trata de reconocer que nuestro discurso está inscripto en
una racionalidad burocrática y selectiva que impide cualquier objetividad
y toma una posición política al interior de los aparatos productores de
saber. A ello se agregan las posiciones de género, de clase social, de etnia,
de nacionalidad y de emplazamiento en un espacio que no es ajeno a la
geografía de las relaciones de poder.
Según Esther Wiesenfeld e Hilda Zara (2012), a partir del análisis
que realizan sobre la presencia de trabajos de Psicología Ambiental en seis
Congresos Interamericanos de Psicología desarrollados entre 2001 y 2011
(donde de un total de 176 ponencias, 153 provienen de América Latina),
las dimensiones ética y política han sido desatendidas en la disciplina. Ellas
han sido centrales en los debates vinculados a la psicología crítica en nuestro
continente que ha cuestionado las formas tradicionales de producción de
conocimientos: el énfaiss en los procesos individuales, una concepción
del ser humano pasivo en relación a las condiciones que lo afectan, el uso
del conocimiento psicológico a favor de la desigualdad y la opresión, y

20
Prefácio. Perspectivas críticas en el estudio de las relaciones persona-ambiente:...

la creencia en la neutralidad académica y profesional. El presente libro


contribuye decididamente en nuevas inerpelaciones a la disciplina.

De las relaciones persona-ambiente a la producción co-


lectiva de los espacios

Desde un punto de vista ontológico-epistemológico, la consideración


de la relación persona-ambiente se vincula con la de individuo-sociedad,
abordada históricamente por la Psicología Social con distintas respuestas
ante esa expresión del pensamiento binario moderno. En la Psicología
Ambiental, es la dimensión espacial y territorial la que particulariza esa
relación, aunque en algunos aspectos los debates involucrados coinciden
con aquella (el carácter del vínculo, los cuestionamientos a su considera-
ción como entidades independientes y su producción histórica). Al mis-
mo tiempo, es posible asociarla con otras dicotomías cuyo abordaje está
presente, en forma más o menos explícita, a lo largo de esta publicación,
por la relevancia que adquieren para el tratamiento de su tema central. Me
refiero a las relaciones macro-micro social, local-global, sociedad-naturaleza,
materialidad-subjetividad, subjetividad-sociedad. Creo que las dos últimas
son fundamentales en la consideración de los procesos de producción,
reproducción y resistencia o transformación, en el marco de una sociedad
capitalista en la que la producción de espacios (Lefebvre, 1974, trad. en
2013) y subjetividades se constituye en una dimensión clave.
Lejos de concebir el espacio como simple receptáculo neutro y pasivo
o escenario de la actividad humana, el libro pone en evidencia que se trata
de una dimensión dinámica y densa de la sociedad, donde no es posible
separar la materia de los significados que posibilita y de los que se cons-
truyen en relación a él, ni de las prácticas que lo reproducen y transforman.
El espacio es una fuerza productiva y reproductiva, está compuesto por
múltiples escalas interconectadas y tiene un carácter histórico (León, 2015).
Por tanto, los espacios particulares, como los referidos en las experiencias
relatadas, han de concebirse en su singularidad y al mismo tiempo, con-
teniendo la totalidad, sin que ello implique que sean un reflejo de ella ya

21
Relações pessoa-ambiente na América Latina

que contienen un orden que le es propio. Los espacios ocupan un lugar


activo en la vida de las personas y son constitutivos de las interacciones
entre ellas. Las diversas perspectivas de la Psicología Ambiental han hecho
hincapié en distintos aspectos de la relación de las personas con sus ambien-
tes que podríamos asociar genéricamente con una dimensión inmaterial:
cognitivos, simbólicos, discursivos y relativos a las prácticas no discursivas.
Subyacen diferentes maneras de comprender las formaciones espaciales y
las prácticas sociales. Unas perspectivas más que otras, dejan traslucir la
complejidad inherente a ese vínculo, poniendo el énfasis en el carácter
colectivo de su producción, en el componente político y en las relaciones
de poder, aspectos centrales para una concepción crítica de la temática.
La importancia de analizar las formas en que el capitalismo realiza
un tratamiento del espacio desde una perspectiva de la economía política
y el lugar que tiene en ella la dimensión subjetiva, reside no solo en la
necesidad de problematizar la frecuente dicotomía entre materialidad y
subjetividad, sino también en cuestionar la jerarquía que las concepciones
marxistas tradicionales han establecido entre ellas. Topalov (1979), en su
crítica a la sociología urbana francesa desarrollada hasta los ‘60 (que dejaba
de lado las relaciones sociales de producción), dice que ella se dedicaba al
“estudio de los residuos inexplicables por el postulado de la racionalidad
económica” (p. 7), de las dimensiones sociales, culturales y subjetivas del
comportamiento humano. Considerar estas dimensiones como com-
ponentes residuales de procesos estructurales y macro-económicos, o
como consecuencia, impacto o reproducción de la forma de socialización
capitalista de las fuerzas productivas en el espacio urbano (y también
en el rural), implica sustraer de la subjetividad su potencial productivo,
reproductivo y de transformación, contribuyendo además con ello, a la
frecuente reificación de los espacios. ¿Qué perspectiva de subjetividad es
necesaria para contribuir con un enfoque crítico de los fenómenos ligados
a la espacialidad en la vida de las personas?
Una concepción de subjetividad que permita comprender la comple-
jidad inherente al vínculo de las personas con los ambientes, ha de consi-
derarla como producción histórica espacializada, en permanente devenir e

22
Prefácio. Perspectivas críticas en el estudio de las relaciones persona-ambiente:...

inacabada. Lejos de ubicarse en un ilusorio “adentro” de los sujetos, forma


parte de los procesos sociales, económicos y políticos, y tiene anclaje en
las relaciones de poder. Del mismo modo, los espacios, que también son
producción histórica, no se ubican en un “afuera”, son constitutivos de
dicha subjetividad y contienen la fuerza para la reproducción y para la
alteración de las relaciones sociales dominantes. Así, las distintas expe-
riencias que se vuelcan en esta publicación y los procesos involucrados
en ellas, son expresión de formaciones subjetivas espacializadas que no
pueden pensarse por fuera de las lógicas de la sociedad capitalista. Se trata
de procesos de singularización que expresan tanto aspectos productivos
y reproductivos, como de ruptura, crítica y resistencia (Guattari, 1998;
Guattari & Rolnik, 2006). Junto con Savransky (2012) visualizamos la
importancia de la desencialización de los espacios y de la espacialización
de la subjetividad como un movimiento simultáneo, continuo y situado.
Es preciso resaltar la dimensión colectiva de la relación persona-am-
biente, frecuentemente soslayada en la Psicología Ambiental tradicional
e ineludible en una perspectiva crítica. Además de una concepción de
subjetividad social e histórica, necesariamente colectiva, cabe señalar -y el
propio texto así lo destaca- la producción de lo colectivo en las prácticas
espaciales, el carácter colectivo de la acción, y la conformación de sujetos
colectivos empíricamente considerados (grupos de productores agroeco-
lógicos; mujeres agricultoras; comunidades pesqueras; personas agrupadas
en organizaciones de la sociedad civil; organizaciones barriales; personas
en situación de calle y con padecimiento de lo psiquiátrico nucleadas en
organizaciones de usuarias/os y familiares; personas migrantes; colectivos
feministas; revueltas populares; pueblos indígenas; vendedoras ambulantes;
trabajadoras sexuales; personas víctimas de desastres).
Son dos los aspectos que me interesa señalar en este sentido. Por un
lado, la evidencia de que asistimos a formas novedosas de organización y
a modalidades de participación y producción colectiva que suponen una
ruptura con las que han caracterizado a los movimientos sociales tradi-
cionales. Si bien venían emergiendo desde hace algunas décadas se han
multiplicado en forma notoria. En ellas, la dimensión espacial y territorial

23
Relações pessoa-ambiente na América Latina

se constituyen, o bien en el objetivo de las disputas involucradas, o bien


en un componente sustantivo de los procesos colectivos. Organizaciones
informales, abiertas, flexibles, dinámicas, contingentes, que visibilizan redes
de articulación horizontal, que se expresan en el espacio físico y en el virtu-
al, que emplean recursos artísticos, que colocan el cuerpo y la afectividad
en el centro, dan cuenta de la potencia creadora que fluye en los espacios
que habitamos. No excluyen formas organizativas de larga data, como las
vinculadas a la pertenencia de clase o a los pueblos originarios, pero dibujan
un escenario de enorme riqueza y de expresión de la multiplicidad que
pueblan los intersticios territoriales. Al mismo tiempo, y sobre todo en el
caso de vidas precarizadas al extremo (Butler, 2017), donde el desarrollo
de la autonomía puede encontrar obstáculos, otros actores intervienen en
la producción de espacios alternativos, generando prácticas de solidaridad
y hospitalidad, acogiendo la alteridad desde posicionamientos ético-polí-
ticos que habilitan la destitución de marcadores identitarios a través de la
inauguración y sostenimiento de formas alternativas de experimentar los
espacios y a si mismos/as en ellos.
Por otro lado, estos procesos colectivos son expresión de los entramados
comunitarios (Gutiérrez, 2017) que tienen lugar y de las múltiples formas de
producción de lo común. Los primeros desafían y se contraponen a las pers-
pectivas esencialistas de la noción de comunidad que niegan la diversidad y el
conflicto y construyen alteridades radicales o negativizadas, con aquellas formas
de entender lo comunitario que muchas veces se corresponden con una consi-
deración sustancialista de los espacios y de su papel en los procesos identitarios.
En relación a la producción de lo común, es interesante interrogar la
noción de territorio y territorialización que jerarquizan el dominio y la apro-
piación de los espacios y las disputas en torno a ellos. La idea de propiedad se
contradice con la noción de lo común que, siguiendo a Laval y Dardot (2015)
se define como lo inapropiable. Poner a dialogar estas ideas con la noción de
lo público y particularmente de espacio público donde la construcción de lo
común puede concebirse como resultado de la praxis en relación a ellos, abre
camino al análisis de la finalidad de la apropiación y el control político de los
espacios. El capitalismo los fragmenta y los mercantiliza convirtiéndolos en

24
Prefácio. Perspectivas críticas en el estudio de las relaciones persona-ambiente:...

bien de cambio, produciendo y reproduciendo las desigualdades sociales y


clausurando identidades. Las disputas que se exponen en varias de las expe-
riencias incluidas en este libro, dan cuenta de que lo que se confronta no es
solo la apropiación de los espacios, sino su uso y las intencionalidades que
ella contiene: la reproducción de la vida en una relación con la naturaleza,
la tecnología, los objetos y los otros seres humanos, que supone construir
territorios existenciales para el cuidado de la misma. Al mismo tiempo, como
dicen Caffentzis y Federici (2015), se trata de construir comunes contra
pero también más allá del capitalismo, “desarticulando de forma sostenida,
nuestra existencia del Estado y del mercado” (p. 66).
Precisamente, cabe preguntarnos por el papel del Estado en la produc-
ción de los espacios, presente en buena parte de los trabajos reunidos en esta
publicación. Puede estarlo por acción (a través de sus planes territoriales
y al nominar, calificar y delimitar grupos poblacionales espacializados), o
por omisión, cuando habilita que sea el capital y el mercado quien regule
el acceso y el uso de los espacios. Si bien comparto las perspectivas teóricas
que ubican al Estado como garante del desarrollo del capital en el territorio
y la deseabilidad de los horizontes de autonomía de los procesos colectivos
en relación al mismo, es necesario enfrentar el riesgo de homogeneizar sus
expresiones en los distintos espacios geográficos y momentos históricos.
En el marco de las relaciones persona-ambiente, es necesario considerar su
papel, ya sea para confrontar con él el dominio y control de los territorios
y su finalidad, o para subvertir la normatividad inscripta en ellos, como
para disputar formas de gobierno, inscribiendo modalidades participativas
en el planeamiento y en la toma de decisiones sobre el diseño y uso de
los espacios.

Sobre territorialidades y espacios de resistencia. Tensio-


nes entre reproducción y transformación.

¿Qué puede un espacio? ¿Cuál es su aporte a los procesos de


transformación y a la construcción de alternativas a las formas hegemónicas
de relación social? Como mencionamos, en ocasiones los espacios son los

25
Relações pessoa-ambiente na América Latina

que motivan la organización y la movilización, es en relación a ellos que se


generan las disputas entre agentes interesados. Se trata de espacios cargados
de significaciones y prácticas, connotados particularmente a partir de las
actividades cotidianas que las personas desarrollan en relación a ellos.
En otros casos, los espacios son usados, transformados y subvertidos en
su normatividad, nuevos significados son inscriptos en ellos a partir de
prácticas e intervenciones materiales que contribuyen a la producción de
nuevos sujetos y subjetividades. Los espacios participan activamente del
desarrollo de discursos y prácticas contrahegemónicas vinculados a pro-
blemas sociales cuyos significados se disputan entre fuerzas dominantes
y alternativas. Unas y otras dibujan verdaderas geografías de resistencia
(Savransky, 2012).
Las modalidades de resistencia pueden ser más o menos visibles.
En algunos casos se trata de prácticas programadas e intencionadas y
al mismo tiempo se componen como tales en su propio desarrollo. En
otros, se constituyen en acciones y reacciones que tienen lugar en espacios
micro-ecológicos (Dixon et al, 2008); se trata de prácticas invisibilizadas,
con frecuencia destinadas a sostener la dignidad, operatorias desesperadas
para contrarrestar múltiples formas de violencia y despojo, micropolíticas
de la resistencia.
En todas ellas es posible advertir la dialéctica entre resistencia y re-
producción, y a veces también la analéctica. a partir de la emergencia de
lo novedoso e inesperado. Las tensiones reproducción-transformación
adoptan distintos sentidos, lo que guarda coherencia con una concepción
compleja de la relación entre personas y ambientes. No hay purezas posi-
bles, porque no hay totalizaciones posibles. En los escenarios actuales la
tarea parece ser la de sostener y transitar esas tensiones. Así, situaciones
en las que predominan prácticas contrahegemónicas pueden reproducir
relaciones de poder en distintos planos y mostrar que los cambios en la
relación con los espacios no necesariamente redundan en transformaciones
subjetivas. Por otro lado, en aquellas formaciones espaciales y subjetivas de
extrema violencia que reproducen el estatus quo, cabe preguntarnos por
las condiciones de posibilidad para hacer las vidas vivibles y trascender los

26
Prefácio. Perspectivas críticas en el estudio de las relaciones persona-ambiente:...

esfuerzos para resistir en término de sobrevivencia. Como dice Svampa


(2000), la reflexividad también está desigualmente distribuida, encontramos
distintas condiciones para la crítica en situaciones vitales pecarizadas. Sin
embargo, es posible advertir las luchas invisibles por la dignidad que las
hacen soportables, poniendo en cuestión, por ejemplo, el isomorfismo entre
personas y espacios e interpelando los estigmas territoriales. Del mismo
modo, como lo muestran algunos de los trabajos aquí expuestos, es relevante
el papel de las prácticas territoriales que ponen la alegría, la creación, el
cuidado y la vida en el centro. En esta dirección, quienes investigamos,
intervenimos y acompañamos estos procesos jugamos un rol importante en
la disposición a problematizar las categorías conceptuales que empleamos
(productoras de espacios, sujetos e identidades), y a deconstruirlas para
crear otras que redunden en acciones novedosas. Son varios los ejemplos
de estos movimientos presentes en esta publicación.
Finalmente, hablar de territorialidades y espacios de resistencia supone
involucrar el papel del cuerpo en el espacio, particularmente en los espacios
públicos donde se pone en evidencia su dimensión política (Butler, 2017).
Se pone en evidencia una vez más, la relevancia de los enfoques feministas
y de las perspectivas interseccionales para la Psicología Ambiental. Los
cuerpos agrupados en acciones de lucha, de protesta, de movilización en
el territorio (a veces en una relación sinérgica con la virtualidad), expresan
su potencia de transformación en el despliegue de discursos, significaciones
y prácticas, al tiempo que se constituyen en territorios de disputa cuando
son significados y normatizados socialmente.
Sólo me resta invitar a las/os lectoras/es a adentrase en cada uno de los
capítulos de este texto y dar continuidad a los intercambios que permitan
seguir en el camino de la construcción de otros mundos posibles.

Alicia Rodríguez (Universidad de la República, Uruguay).


Montevideo, marzo de 2021.

27
Relações pessoa-ambiente na América Latina

Referencias
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Latina, Buenos Aires: SB.

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28
Prefácio. Perspectivas críticas en el estudio de las relaciones persona-ambiente:...

Savransky, M. (2012). Will There Be a Place for my Life? Cities, Subjectivities and
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década del milenio. Un análisis crítico. Athenea Digital, 12(1), 129-155.

29
Eixo I

Descolonizando saberes:
perspectivas críticas para as relações
pessoa-ambiente a partir do Sul Global
Capítulo I

Ecos da acumulação primitiva:


Contribuições marxistas para a análise crítica das
relações pessoa-ambiente na América Latina
Tadeu Mattos Farias

Psicologia e relações pessoa-ambiente

Q ual é a importância dos ambientes na formação da subjetividade e dos


comportamentos humanos? Como constituir modos de vida e sociedades
que mantenham relações com o ambiente natural e artificial garantindo,
ao mesmo tempo, uma vida melhor para as gerações que habitam a terra
atualmente e que não tornem a sobrevivência inviável para as gerações vin-
douras? A psicologia como ciência e profissão tem algo a contribuir para a
resposta a essas perguntas?
É possível afirmar que o campo de estudos das relações pessoa-ambiente,
que na Psicologia aparece como a subárea da Psicologia Ambiental, tem
sua curta história voltada para responder tais perguntas. Assim, partindo
do suposto de que os problemas ambientais são, em essência, problemas
humanos (Tuan, 2015), esse campo se voltou para estudar as transações entre
pessoas e seus ambientes, colocando como horizontes o bem-estar humano
e a sustentabilidade planetária (Wiesenfeld, 2005).
Além das questões elencadas que têm direcionado a produção nesse
campo, outras vêm sendo colocadas, com destaque para o questionamento
acerca da pertinência e adequação dos referenciais teórico-metodológicos
advindos do centro do capitalismo para o contexto das relações pessoa-
-ambiente na América Latina (Wiesenfeld, 2005). Colocar esse aspecto em
questão é pertinente, na medida em que não há, na história da Psicologia
Ambiental, um processo de crítica e ruptura, como houve com a Psicologia
Social latino-americana em relação aos referenciais euro-estadunidenses, ou

33
Relações pessoa-ambiente na América Latina

seja, todo o acúmulo dos debates e as próprias contradições que foram


sendo enfrentados pela Psicologia Social da região, seus avanços e percalços,
passaram em grande medida ao largo dessa nova subárea que, ironicamente,
reclama justamente uma origem e herança nos referenciais da Psicologia
Social (Pol, 2006, 2007).
Há razões históricas para isso que não cabem na presente análise. O
que me interessa como ponto de partida deste capítulo é o fato de que a
Psicologia Ambiental parece repetir de maneira geral os sintomas da “mi-
séria da psicologia” (Martin-Baró, 2011), reproduzindo ideias oriundas
da centralidade do capitalismo, que se associam aos interesses das classes
dominantes dos países do capitalismo periférico, como o foco na mudança
de comportamento individual como fonte de transformação na realidade
socioambiental, sem questionamento da estrutura socialmente desigual e
ambientalmente destrutiva em que vivemos. Isso se dá com um agravante:
a relação da Psicologia Ambiental com o tema da sustentabilidade, caracte-
rística marcante de seus estudos a partir do fim dos anos 1980 (Pol, 2007),
confere à área um verniz supostamente alternativo e subversivo que, na
verdade, mascara tal associação entre as ideias produzidas e a reprodução da
ordem social burguesa e a própria relação desigual entre centro e periferia.
Contudo, vale destacar que, entre as contribuições importan-
tes da Psicologia Ambiental até aqui, estão: posicionar o elemento
humano-ambiental no centro do debate sobre a crise ecológica; am-
pliar significativamente, a partir da ênfase na presença da dimensão
ambiental na vida humana, o universo de reflexões para a psicologia;
além de destacar o “lugar” como uma dimensão existencial e ética
fulcral para refletirmos sobre o mundo que temos e aquele que
queremos construir (Farias, Gurgel, Sá Pinheiro, Mascarenhas, & Diniz,
2019). Ainda assim, predomina uma visão a-histórica e despolitizada do
objeto, tanto em seu polo humano quanto ambiental, e, consequentemente,
de sua interação, além de um distanciamento da realidade propriamente
latino-americana.
Como forma de contribuir para a análise das relações pessoa-ambiente na
América Latina no sentido de superar esses problemas e, nessa direção, pensar

34
Ecos da acumulação primitiva: Contribuições marxistas para a análise crítica...

o papel da Psicologia Ambiental nesse cenário, proponho neste capítulo um


diálogo com a teoria social marxiana1 e algumas análises de marxistas poste-
riores a Marx, sobretudo de autores que se debruçaram sobre o capitalismo
periférico, notadamente latino-americano. O objetivo desta análise é pontuar,
a partir de alguns traços da realidade latino-americana, elementos da reflexão
marxiana e marxista sem os quais a realidade das relações humano-ambientais
no continente fica incompleta e, muitas vezes, carente de criticidade.
Nesse sentido, transponho para a Psicologia Ambiental a constatação
de Martin-Baró sobre a Psicologia de que, majoritariamente, seu quehacer
“não somente tem mantido uma dependência servil ao definir problemas
e buscar soluções, mas permaneceu à margem dos grandes movimentos e
inquietudes dos povos latino-americanos” (Martin-Baró, 2011, p. 181). Nessa
direção, a bagagem teórico-metodológica disposta sobre as distintas vertentes
epistemológicas identificadas por Valera (1996) trazem concepções de sujeito,
de objeto e de ciência forjadas na Psicologia estadunidense e europeia, com
predominância do positivismo, do individualismo, do hedonismo, da visão
homeostática e do a-historicismo, dos quais Martin-Baró acusara a Psicologia
Social latino-americana décadas atrás (Martin-Baró, 2011).
Para pensar uma Psicologia Ambiental conectada aos problemas da
maioria da população latino-americana, entender suas tarefas, possibilidades
e limites, é preciso, antes de tudo, enfrentar esses limites teórico-meto-
dológicos, o que deve se configurar também como tarefa prática. É nesse
sentido que aponta o presente escrito.

Marx e o ambiente

Seria justificado um questionamento sobre que tipo de contribuição


relevante pode ter um autor alemão, que escreveu suas principais obras na

1  Do ponto de vista ontológico, este trabalho se insere no Realismo Crítico (Bhaskar, 2008). Nesse
sentido, não parto de pressupostos relativistas subjetivistas sobre a realidade, nem recorro a determi-
nismos geográficos ou de qualquer ordem sobre o sujeito do conhecimento. A crítica ao pressuposto
universalista do eurocentrismo do conhecimento e aos problemas da importação acrítica de modelos
teóricos euro e estadunidocentrados é compatível com o uso de referenciais qualificados de qualquer
posição geográfica, o que inclui a teoria social marxiana.

35
Relações pessoa-ambiente na América Latina

segunda metade do século XIX, muito antes de emergir o amplo debate


ambiental que conhecemos agora, para pensar os problemas ambientais
da América Latina contemporânea. Contudo, vejamos o que escreve Marx
no terceiro volume de sua principal obra, O Capital:

Nem mesmo uma sociedade inteira, ou uma nação, ou um conjunto


simultâneo de todas as sociedades existentes é dono da terra. Eles
são simplesmente os seus posseiros, os seus beneficiários, e preci-
sam legá-las em melhor estado às gerações que as sucedem como
boni patres famílias. (Marx, 1894/2017, p. 833)

Em sua crítica radical à propriedade privada e à acumulação de ca-


pital, o autor antecipa em aproximadamente cem anos uma ideia central
da concepção de desenvolvimento sustentável (Comissão Mundial sobre
Meio Ambiente e Desenvolvimento [CMMAD], 1987/1991). Todavia,
Marx não concebe qualquer compatibilidade entre o desenvolvimento no
sentido capitalista, cujo fundamento é a propriedade privada dos meios
de produção, e a preservação do planeta para as gerações futuras. E os
dados da atualidade parecem confirmar seus receios: o 1% mais rico da
população mundial é dono de 44% da riqueza mundial. Além disso, em
2017, o 1% mais rico ficou com 82% da riqueza gerada. Nessa tendência,
a estimativa é de que, em 2030, esse 1% mais rico seja dono de 70% da
riqueza mundial (Oxfam Brasil, 2018). Isso significa que a existência da
propriedade privada garante que haja “donos da terra”.
A crítica de Marx vai além, reconhecendo em seu tempo uma realidade
que nos aparece na atualidade como um cenário desolador, negritando
que a produção capitalista “só desenvolve a técnica e a combinação do
processo de produção social na medida em que solapa os mananciais de
toda riqueza – o solo e o trabalhador” (Marx, 1867/2013, p. 574). Em
1867, ano de publicação do primeiro volume de O Capital, problemas
como esgotamento da fertilidade do solo, poluição urbana e destruição das
florestas já se destacavam na Europa, e os movimentos do proletariado já
denunciavam as terríveis condições de trabalho na sociedade capitalista.
Contudo, essa marca da tragédia capitalista identificada por Marx aparece

36
Ecos da acumulação primitiva: Contribuições marxistas para a análise crítica...

ainda mais historicamente brutal e evidente na história da América Latina e


outros países da periferia do capital, como o próprio autor foi identificando
e denunciando ao longo de sua vida (Anderson, 2019).
Além disso, tal reflexão também nos remete à atualidade quando
pensamos, por exemplo, nos crimes ambientais das cidades de Mariana, em
2015, e Brumadinho, em 2019, quando barragens de rejeitos de mineração
romperam matando trabalhadores(as), moradores(as) das localidades pró-
ximas e impactando tragicamente os ambientes locais. Ambas as barragens
estão relacionadas à empresa de mineração Vale, que, entre o rompimento
em Mariana e o ano de 2019, seu valor de mercado saltou de 77 para 297
bilhões (“Brumadinho pode aumentar receita da Vale em US$1 bi”, 2019).
Do lado dos/as trabalhador/as e do ambiente, o saldo é da destruição de
cidades da região, de rios inundados por rejeitos de minério, prejudicando
a sobrevivência da população a partir de seus recursos hídricos e pesquei-
ros, 270 pessoas mortas somente em Brumadinho (Brito, 2020), salto em
67% nas tentativas de suicídio na região de Bento Rodrigues (Câmara &
Franco, 2017), entre tantas outras consequências.
Se mantivermos o foco em problemas socioambientais relacionados
às principais atividades econômicas que estão na base da formação social
brasileira e nas características do capitalismo local, podemos pensar também
nas queimadas que assolaram a região amazônica em 2019. Grande parte
dos incêndios funcionam para a abertura das áreas de pastagem de gado,
sendo responsáveis por 9 em cada 10 focos dos incêndios no local (Sobrinho,
2019). Assim, a atividade pecuária ocupa 80% da área desmatada na região
(“Pecuária é responsável por mais de 80% do desmatamento no Brasil”, 2016).
Há também um grande impacto nos biomas brasileiros das plantações
de soja, um dos principais produtos de exportação do país. Junto a tais
atividades, além dos impactos ambientais, estão uma intensa exploração de
trabalhadores(as), grandes concentrações de terra e conflitos decorrentes
dessa concentração. No país, 1% dos proprietários de terra controlam 50%
da terra (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2019), além
de ser, desde 2011, o país onde mais pessoas morrem em conflitos de terra
no mundo, sendo também o líder em assassinatos de lideranças no campo

37
Relações pessoa-ambiente na América Latina

(Comissão Pastoral da Terra, 2020). Também fica em áreas rurais o maior


índice de trabalho análogo à escravidão no país.
Os exemplos ilustrativos e atuais da passagem de O Capital citada acima
poderiam continuar indefinidamente. Certamente o intuito desses exemplos
não é mostrar Marx como profeta, caracterização que seria incoerente com
o materialismo marxista, mas apontar que, além de analisar atentamente a
história do capitalismo até o momento em que escrevia e fenômenos caros
à sua época, ele identificou os traços fundamentais da dinâmica capitalista,
sem os quais o próprio capitalismo não existe e cuja compreensão é tarefa
de quem busca entender e superar os grandes problemas socioambientais de
nosso tempo. Isso porque tais traços continuam presentes até hoje, mesmo
com as mutações pelas quais a sociedade capitalista passou.

Produção capitalista do espaço e “questão ambiental”

Alguns desses traços nos permitem entender a relação entre a dinâmica


de reprodução do capitalismo como totalidade, a forma como esse modo
de produção precisa submeter os espaços, e os fenômenos relacionados à
“questão ambiental”, além dos impactos dessa dinâmica para as formações
sociais do capitalismo periférico.
O capital e a propriedade privada são relações sociais historicamente
constituídas e, por isso mesmo, passíveis de superação. O capital, então,
não é uma coisa, mas diz respeito a relações sociais. Capital, como forma
de riqueza específica da época capitalista, é valor que precisa se valorizar
constantemente, é riqueza em expansão, riqueza essa produzida na explo-
ração da força de trabalho transformada em mercadoria. Sob essa forma de
riqueza, estão, de um lado, a propriedade privada dos meios de produção
dos elementos básicos para a reprodução da vida material – ferramentas,
maquinário, instalações, infraestrutura, terras, matérias-primas - e, de
outro, um conjunto de seres humanos despojados desses meios, e aos
quais só resta vender sua força de trabalho para o proprietário dos meios
de produção. Está na exploração da força de trabalho a fonte do trabalho
excedente que será apropriado pelo capitalista como mais-valor, a riqueza

38
Ecos da acumulação primitiva: Contribuições marxistas para a análise crítica...

do capitalista, o que coloca o antagonismo capital-trabalho na base da


análise das demais relações da sociabilidade capitalista.
A expropriação de uma massa cada vez maior de seres humanos de
seus meios de sobrevivência, a transformação desses meios em capital, e
a exploração da força de trabalho então “livre” são faces de um mesmo
processo. Essa lógica também implica uma tendência crescente à urba-
nização, com um fluxo migratório em direção às cidades. Tal tendência
urbanizante traz consigo uma relação contraditória entre campo e cidade,
em que a cidade passa a acumular a força motriz da sociedade capitalista,
concentrando força de trabalho, ocupada e excedente, capital, mercadorias,
e submetendo a tais necessidades expansivas as próprias relações no meio
rural. A exploração do solo passa a ser voltada para as necessidades de
expansão e acumulação do capital, o que pressiona no sentido da concen-
tração de terras sob forma de latifúndios, das monoculturas, da extração
desenfreada de recursos minerais, da precarização do trabalho no campo
e da exploração irracional das capacidades do solo. Essa exploração, assim,
regida pelo capital, não responde às demandas de sobrevivência e segurança
alimentar da população mundial, tampouco respeita os ritmos de recu-
peração da natureza. É notável também que é a classe proprietária, e não
trabalhadores(as), a responsável pelo ritmo e a intensidade da exploração
dos recursos naturais.
Tal contradição entre campo e cidade e a consequente concentração urbana:

desvirtua o metabolismo entre o homem e a terra, isto é, o retor-


no ao solo daqueles elementos que lhe são constitutivos e foram
consumidos pelo homem sob forma de alimentos e vestimentas,
retorno que é a eterna condição natural da fertilidade permanente
do solo. Com isso, ela destrói tanto a saúde física dos trabalhado-
res urbanos como a vida espiritual dos trabalhadores rurais. (Marx,
1867/2013, p. 786)

Essa ruptura metabólica (Foster, 2005) entre sociedade e natureza está


na base dos grandes problemas ambientais contemporâneos e se funda,
por sua vez, na irracionalidade da produção capitalista.

39
Relações pessoa-ambiente na América Latina

Junto à população urbana em expansão vêm os problemas urbanos,


como poluição, desemprego, densidade populacional, déficit habitacional,
violência etc. Nesse sentido, contrariamente às teses populacionais malthu-
sianas, a “lei de população”, para Marx, não é dissociada das especificidades
de cada época histórica. E a “lei de população” do modo de produção
capitalista é a da produção constante de “uma população trabalhadora
adicional relativamente excedente, isto é, excessiva para as necessidades
médias de valorização do capital e, portanto, supérflua” (Marx, 1867/2013,
p. 857). Essa superpopulação relativa, ou exército industrial de reserva,
concentrada nas cidades, funciona como reguladora para baixo dos salá-
rios, além de constituir força disponível para ciclos de expansão da própria
acumulação de capital. Desemprego, precarização da vida urbana e um
contingente dessa população excedente para o capital jogado às ruas são
elementos estruturais da urbanização capitalista (Farias & Diniz, 2019).
Além do processo de proletarização de massas crescentes da população, as
expropriações dos sujeitos de seus meios de vida fazem parte de um processo
de mercantilização geral da vida. A transformação dos sujeitos em proletários
e de sua força de trabalho em mercadoria acontece junto à transformação de
formas não mercantis em bens compráveis. O capital necessita, de um lado,
consumir força de trabalho para a produção de mercadorias e, de outro, de
consumidores destas. Quanto mais esferas da vida mercantilizadas, maiores
as possibilidades para o processo expansivo do capital. Isso faz da ideologia
do consumismo não uma concepção abstrata, uma opção, superável por uma
conscientização generalizada, mas uma forma cultural necessária desdobrada
das relações materiais da produção capitalista, que só pode ser superada com
a superação de tais relações. Ainda assim, o capitalismo consegue compati-
bilizar a ideologia do consumo com a manutenção de uma imensa parcela
da população em condições precárias.
Esse sintético percurso por algumas determinações do modo de pro-
dução capitalista coloca nosso objeto de análise, as relações humano-am-
bientais, e alguns fenômenos que mobilizam interesse e atenção do campo
de estudos em debate, como o crescimento populacional, a exploração
irracional dos recursos naturais, a problemática do crescimento urbano,

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Ecos da acumulação primitiva: Contribuições marxistas para a análise crítica...

consumismo etc., vinculadas ao aspecto mais amplo do sociometabolismo


do capitalismo. Ou seja, o debate “ambiental” precisa estar ancorado na
contradição capital-trabalho e seus desdobramentos e nas lutas de classes
que daí se desenvolvem, tanto quanto o debate “social”.

Ecos da acumulação primitiva: questão ambiental no


capitalismo periférico

Em julho de 2020, o empresário Elon Musk, atualmente a quarta pessoa


mais rica do mundo2, foi indagado em suas redes sociais sobre sua suposta
participação no apoio ao golpe de Estado desencadeado na Bolívia no ano de
2019, que tirou da presidência Evo Morales. Musk tem sua imagem mun-
dialmente projetada especialmente em seus projetos vinculados às empresas
SpaceX, Tesla Motors e SolarCity, as duas últimas lhe garantindo um verniz de
defensor da sustentabilidade ambiental. À indagação sobre seu papel e dos
Estados Unidos no golpe, o empresário respondeu: “vamos dar um golpe em
quem quisermos! Lide com isso”. Sobre seu real papel nesse processo e sobre
estar ligado ao interesse no lítio das reservas bolivianas, importante para a
produção das baterias da SolarCity, como vem sendo especulado, ainda se
sabe pouco, mas o caso nos serve para entender a condição trágica da peri-
feria do capitalismo na organização da divisão internacional do trabalho, e
o impacto disso sobre trabalhadores(as) e ambiente locais.
A passagem de O Capital que trata da produção capitalista como fonte de
esgotamento da terra e do trabalhador, mencionada anteriormente, ganha um
sentido extremo na periferia do sistema. A configuração de uma relação centro-
-periferia é resultado do próprio processo de expansão das relações capitalistas,
submetendo territórios à brutal exploração colonial e ao imperialismo, impondo
uma realidade nociva à população e ao ambiente desses locais, e configurando
um sistema de dominação e dependência, que se mantém até o presente.

2  A escrita deste capítulo se deu em 2020, ano em que o mundo foi assolado por uma pandemia que
levou a um aumento do desemprego, da precarização das relações de trabalho e da pobreza e miséria em
todo o mundo. Ao longo desse mesmo período, Elon Musk tornou-se a segunda pessoa mais rica do
mundo, com uma fortuna de 146 bilhões de dólares.

41
Relações pessoa-ambiente na América Latina

Tal esgotamento foi expresso por Eduardo Galeano (1979), mostrando


o sentido do desenvolvimento capitalista na região, construído sobre o
jorro de sangue de trabalhadores, de negros sequestrados da África e seus
descendentes, de indígenas, e também das terras e águas do continente: “as
terras ficavam tão exaustas quanto os trabalhadores; às terras roubavam o
húmus e aos trabalhadores os pulmões, porém, sempre havia novas terras para
explorar e mais trabalhadores para exterminar” (Galeano, 1979, p. 77).
Marx (1867/2013), ao criticar a visão idílica com a qual os ideó-
logos liberais tratavam o processo de acumulação primitiva de capital,
como se tivesse sido um processo derivado de uma “elite laboriosa”,
“inteligente”, “parcimoniosa”, capaz de acumular riquezas, mostra
que, “na história real como se sabe, o papel principal é desempenhado pela
conquista, a subjugação, o assassínio para roubar, em suma, a violência” (p.
961). Essa violência, a real acumulação primitiva, marcou e marca o
processo de expropriação, de separação entre produtores e meios de
produção, já mencionado. Marx (1867/2013) ainda sublinha que
“tão logo a produção capitalista esteja de pé, ela não apenas conserva essa
separação, mas a reproduz em escala cada vez maior” (p. 961), indicando que
a acumulação primitiva não é artifício do passado do capital. Na contraface
das expropriações, está o fato de que, aquilo que antes era meio de subsis-
tência e matérias-primas agrícolas de grupos vinculados à terra, se converte
em parte do capital pertencente, a partir de então, a proprietários privados.
Se o processo de acumulação primitiva foi brutal contra os camponeses
da Europa, essa realidade de saque e violência se expande para o chamado
“novo mundo” com requintes de crueldade e é fundamental no processo de
acumulação primitiva. Foram as veias abertas das colônias e dos negros e indí-
genas escravizados que alimentaram a riqueza que se transformaria em capital:

a descoberta das terras auríferas e argentíferas na América, o ex-


termínio, a escravização e o soterramento da população nativa
nas minas, o começo da conquista e saqueio das Índias Orientais,
a transformação da África numa reserva para a caça comercial de
peles-negras, caracterizam a aurora da era da produção capitalista.
(Marx, 1867/2013, p. 821)

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Ecos da acumulação primitiva: Contribuições marxistas para a análise crítica...

A acumulação primitiva também diz respeito à lógica de “caça às bru-


xas”. Esse processo foi fundamental para a consolidação do capitalismo, tanto
acontecendo no terreno europeu como sendo parte da lógica de coloniza-
ção. A caça às bruxas foi uma maneira pela qual destruíram-se resistências
coletivas e foi possível instaurar conflitos em comunidades não capitalistas,
cercar e expropriar terras, submeter mulheres à lógica patriarcal, enfim,
promover o terror e instaurar um processo de desumanização legitimando
o genocídio de mulheres e indígenas do “novo mundo” (Federici, 2017).
Desde o início da colonização, a América Latina passou a estar integrada
ao capitalismo mundial, e a dominação de espanhóis e portugueses por
estas terras “combinou a propagação da fé cristã com a usurpação e
o saqueio das riquezas nativas” (Galeano, 1979, p. 12). A decadência
dessas metrópoles abriu espaço para o domínio inglês que, por sua vez,
perdeu sua força após a segunda guerra mundial, quando os Estados
Unidos emergem definitivamente como principal potência imperialista.
A prata de Potosí (Bolívia), o ouro de Minas Gerais, a monocultura
do açúcar no Caribe e no nordeste brasileiro, a borracha na Amazônia, a
banana na América Central e do Sul, o cacau na Venezuela e no Brasil,
o guano no Peru, o cobre no Chile, o estanho na Bolívia, o ferro, entre
tantas outras riquezas do solo latino-americano e caribenho, garantiram,
de um lado, o pleno desenvolvimento do capitalismo mundial e, de outro,
a formação de elites locais submissas aos desígnios das potências centrais,
grandes latifundiários que vivem da destruição permanente do solo e das
águas, junto com a superexploração da força de trabalho local (Galeano,
1979). Assim, não é possível falar em desenvolvimento capitalista mundial
sem considerar a posição dos países feitos colônias na divisão internacional
do trabalho e do preço que o meio ambiente e trabalhadores(as) desses
países pagaram e pagam até hoje.
Se o ciclo colonial entre o século XVI e XVIII criou as condições para
a acumulação primitiva e para o amadurecimento da ordem do capital,
na fase madura dessa ordem foi o imperialismo que passou a garantir sua
expansão definitiva e a subjugação de todos os rincões do planeta, a partir
do último terço do século XIX. O imperialismo é a forma própria do

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Relações pessoa-ambiente na América Latina

capitalismo em sua fase monopolista, em que a livre concorrência passa


a perder espaço para a predominância de grandes capitais concentrados e
centralizados em poucas mãos, sob direção do capital financeiro (Lênin,
2011). O volume de capitais que precisam ser valorizados impele à sua
exportação, o que é feito com a ajuda do poderio militar dos estados-
-nação que abrigam tais capitais. Trata-se de uma “uma época peculiar
da política colonial mundial” (Lênin, 2011, p. 201). Nessa etapa, pela
lógica imperialista, o capitalismo se espalha definitivamente pelo mundo,
invadindo a África e a Ásia, e possibilitando também ao capital financeiro
a subordinação de economias já independentes do ponto de vista formal
(Lênin, 2011), como era o caso da maioria dos países da América Latina.
A etapa imperialista impõe um novo ritmo às expropriações e
uma nova cara à exploração dos recursos naturais, com a disputa
entre monopólios pela conquista de territórios inteiros, re-divisão de
territórios já subjugados, suas matérias-primas, força de trabalho e
mercados, e incorporação de um novo recurso na disputa que definirá
os rumos da dominação desde então, o chamado “ouro negro”. O
petróleo, ou bem dizendo, os interesses de capitais concentrados,
centralizados e volumosos que veem no petróleo seu mais valioso
nicho de valorização e acumulação, passa a colocar no poder e depor
presidentes, alavancar ditaduras, promover guerras e a determinar
quem são os donos do mundo, além de levar a destruição da natureza
e os riscos de um colapso ambiental a partir da emissão de gases do
efeito estufa e das mudanças climáticas globais a um patamar que
coloca toda a vida na terra sob risco.
A América Latina e o Caribe, ao longo do século XX, foram
vítimas de toda a sorte de intervenções militares, deposições presi-
denciais, ditaduras militares impostas, conspirações de burguesias
locais e externas, intervenção de exércitos mercenários, atentados,
sanções e bloqueios econômicos etc., para que fossem garantidos
os interesses das corporações estadunidenses (Ianni, 1993; Prashad,
2020). Assim como os processos de colonização dos séculos anterio-
res, essas intervenções imperialistas foram acompanhadas de muita

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Ecos da acumulação primitiva: Contribuições marxistas para a análise crítica...

resistência, luta e revoluções anti-imperialistas, como no México,


em Cuba, na Nicarágua, em El Salvador, algumas das quais tiveram
o protagonismo dos povos do campo e da luta pela terra contra os
latifúndios, como foi a luta zapatista no México.
No alto século XX, sobretudo após a vitória dos movimentos e
lutas anticoloniais na África e Ásia, termos como imperialismo foram
sendo considerados obsoletos, dando espaço para versões cosméticas
como “globalização”, “integração mundial”, “mundialização”, cuja
função ideológica é mascarar os processos de dominação que ga-
nharam novas formas a partir desse período. István Mészáros (2001)
considera que a atual fase do imperialismo é a mais perigosa, pois a
crise estrutural em que o capital mergulhou desde os anos1970 tem
levado as potências imperialistas a uma postura cada vez mais agres-
siva, em especial os Estados Unidos, levando ao limite a contradição
entre o capital transnacional com seus interesses e a soberania dos
estados-nação, além da presente ameaça nuclear.
Virgínia Fontes (2010) define a fase atual do capitalismo como
capital-imperialismo, caracterizado pelo “predomínio do capital mo-
netário [dinheiro sob a forma de capital, ou seja, que busca se valorizar],
expressando a dominação da pura propriedade capitalista e seu impulso
avassaladoramente expropriador” (Fontes, 2010, p. 146). Com a mag-
nitude dos capitais concentrados e centralizados, especialmente sob
sua forma de pura propriedade, possuindo o poder de controlar
cada vez mais extensivamente o processo de produção de mais-valor,
esses capitais agigantados exigem crescentemente mais do processo
de exploração para sua valorização e o retorno na forma de lucro
para tais proprietários, sem precisar ter qualquer contato com o
processo de produção. É o caso dos acionistas da Vale que, mesmo
com as tragédias de Mariana e Brumadinho, não deixaram de ter seu
retorno garantido. Caso aqueles que cumprem a função de colocar
a produção para acontecer (capitalista funcionante) não consigam
remunerá-los, esses capitais migram com a mesma facilidade com a
qual esquecem a tragédia social e ambiental que deixam para trás.

45
Relações pessoa-ambiente na América Latina

O caráter fetichizado é tamanho que, a tais proprietários, parece


que seu dinheiro é capaz de virar mais dinheiro sem sequer tocar
no suor e sangue de trabalhadores(as), na contaminação dos rios
e lagos, nos vazamentos de petróleo em oceanos e nas crateras de
extração de minérios.
Mas esse capital agigantado vai além de se apropriar de parte
da mais-valia produzida no processo de produção, ele precisa que
as relações sociais capitalistas se expandam, e um dos meios pelos
quais faz isso é expandindo vertiginosamente as expropriações que,
como vimos, são condição para fazer da totalidade da vida social
algo subordinado ao capital. Trata-se da disponibilização crescente
de trabalhadores(as) ao capital, separando populações inteiras de suas
condições de produção. Ora, essa é a operação própria da chamada
“acumulação primitiva”, já discutida, operação que não somente não
deixou de ser condição reposta pelo capital, como manteve proces-
sos de extrema violência e em escala ampliada, pois é condição da
formação e incremento da base social capitalista.
Assim, como forma de expansão das relações capitalistas sob
imposição das necessidades de capitais volumosos que precisam se
valorizar, a expropriação atravessa diversos âmbitos da vida: “incide
sobre direitos tradicionais, como uso de terras comunais, direitos
consuetudinários, relação familiar mais extensa e entreajuda local,
conhecimento sobre plantas e ervas locais” (Fontes, 2010, p. 51),
“sobre conhecimentos ... sobre a biodiversidade, sobre técnicas diversas,
desde formas de cultivo até formas de tratamento de saúde utilizadas por
povos tradicionais”, também como “privatizações de instituições públi-
cas, industriais”, e devoram também bens naturais “como as águas doces
e salgadas, o patrimônio histórico e cultural (convertido em mercadoria
através do turismo), o patenteamento de códigos genéticos, a qualidade
do ar” (Fontes, 2010, p. 60).
Isso não suprime da lógica do capital aquelas expropriações
típicas do período de gênese do capitalismo e sua contraparte como
migração massiva para as cidades. Ao contrário, essas se intensifica-

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Ecos da acumulação primitiva: Contribuições marxistas para a análise crítica...

ram nos ciclos de crescimento do capitalismo e a população urbana


saltou no mundo de 30% para 54%, desde 1950, com estimativa
de 66% para 2050 (United Nations, 2019). Esse processo é mais
intenso nos países que expandiram essa lógica posteriormente e de
forma subordinada às economias centrais. No caso da América Latina,
um fator chave para esse ciclo de intensificação da urbanização foi a
chamada “revolução verde”. Sob o mote ideológico de “solucionar” o
problema da fome no mundo, esse processo significou a exportação
de capitais excedentes, como tecnologias químicas e maquinários
acumulados ao longo da II Guerra Mundial, transformando-os em
tecnologia agrícola concentrada nas mãos de grandes corporações
monopolistas (Ford, Shell, Ciba-Geisy, ICI, UNILEVER, Bayer, Dow
Química, Pfizer, Monsanto etc.) e criando dependência dos produtores
locais de pacotes tecnológicos com sementes, pesticidas etc., além
de intensificar a concentração de terras, mecanizar a produção e
expulsar intensamente mão de obra em direção às cidades (Andrades
& Ganini, 2007; Fontes, 2010).
Na outra face do capital-imperialismo está o capitalismo dependente
(Fernandes, 1975; Marini, 1973). As formações sociais submetidas às
determinações da divisão internacional do trabalho e às necessidades de
expansão dos grandes capitais, em sua maioria de origem no capitalis-
mo central, acabam por desenvolver suas relações econômicas, sociais,
culturais, ambientais, de forma estruturalmente ligada a esses capitais.
Não há desenvolvimento de um lado sem o subdesenvolvimento do
outro. Isso implica uma relação que envolve diversos mecanismos de
transferência para o centro de valor produzido na exploração da força
de trabalho e da natureza na periferia (Marini, 1973). Para compensar,
a burguesia local precisa colocar em prática uma superexploração da
força de trabalho, com o uso constante de mecanismos de repressão para
conter as reivindicações por melhores condições de vida. O resultado
na periferia é uma condição de enorme pauperização da população e a
extrema concentração de renda e riqueza, mas também de uma penetração
da dependência em todos os poros da sociedade, dos gostos culturais aos

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Relações pessoa-ambiente na América Latina

modelos científicos incorporados. Assim, as relações de dependência só


podem desenvolver mais dependência (Marini, 1973).

As veias ainda abertas e a psicologia (socio)ambiental

O pensador cubano Roberto Retamar (2005) fez, em 1971, uma incur-


são pela história e os personagens da peça “A tempestade”, de Shakespeare,
além de analisar as releituras da peça que haviam o precedido. Caliban,
anagrama criado pelo dramaturgo inglês para canibal, que ao longo dessas
interpretações precedentes a Retamar foi o monstro disforme, o habitante
da ilha que recebe as bênçãos do progresso trazido por Próspero, o povo
bruto que ousa se levantar e causar balbúrdia, é retomado pelo cubano
como símbolo anticolonial para a América Latina. Em sua leitura:

Próspero invadiu as ilhas, matou a nossos ancestrais, escravizou a


Caliban e lhe ensinou seu idioma para entender-se com ele: que ou-
tra coisa pode fazer Caliban a não ser utilizar esse mesmo idioma
para maldizer, para desejar que caia sobre ele a “praga vermelha”?
(Retamar, 2005, p. 49)

Silvia Federici (2017) vai além, e considera que Caliban não se reduz
ao rebelde colonial, mas representa também o proletariado de todo o
mundo e seu corpo “como terreno e instrumento de resistência à lógica
do capitalismo” (p. 23), e que a figura da bruxa “situa-se no centro da
cena, enquanto encarnação de um mundo de sujeitos femininos que o
capitalismo precisou destruir” (Federici, 2017, p. 23).
A história de destruição do meio-ambiente latino-americano e, con-
sequentemente, a forma como pensamos a realidade humano-ambiental
local, não pode ser dissociada da história de superexploração da força
de trabalho, de genocídio indígena, dos negros escravizados e de seus
descendentes, do roubo de terras e de corpos, e da história de dominação
político-econômica determinada pela divisão internacional do trabalho
pelo capitalismo, desde sua gênese até sua etapa imperialista. Nosso pro-
cesso de análise, entendimento e enfrentamento da “questão ambiental”

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Ecos da acumulação primitiva: Contribuições marxistas para a análise crítica...

latino-americana deve ter como ponto de partida a propriedade privada


e a contradição capital-trabalho, buscando as mediações pelas quais essa
contradição se expressa no contexto de capitalismo dependente e periféri-
co. As tentativas de equalizar a sociabilidade burguesa com a preservação
ambiental, seja buscando soluções individualizadas, apostas em mudanças
éticas, alternativas tecnológicas, sem que esses elementos se articulem com
o enfrentamento das raízes do problema, redundarão em mais capitalismo
e, consequentemente, mais tragédia social e ambiental.
Mas essa história é também de inúmeras formas de resistência e luta.
Há uma linha que leva das mulheres acusadas de bruxaria que organizavam a
resistência contra a colonização até a revolução cubana, que leva da rebelião de
Tupac Amaru aos movimentos campesinos como o Movimento dos Trabalha-
dores Sem Terra (MST) e de luta pelo solo urbano de direito à cidade, como
Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), passando pela revolução
negra haitiana e pela luta por direito à terra de Emiliano Zapata. Aquilo que
muitos cientistas voltados para os problemas ambientais, como é o caso de
psicólogos(as) ambientais, enxergam ter começado com o importante livro
de Rachel Carson, “Primavera Silenciosa” (1962), ou com o Relatório “Nosso
Futuro Comum” (CMMAD, 1987), esteve desde sempre presente, de variadas
maneiras, nas formas de lutas sociais latino-americanas. Não por uma visão
profética do que vivemos como ameaça ao ambiente global atualmente, mas
pelo fato de que a luta entre o capital e o lugar (como o espaço físico que
transformamos e dotamos de sentido na mesma medida em que construímos
a nós mesmos como humanos) é parte constitutiva do desenvolvimento da
ordem do capital. O que significa que as lutas de classes, em especial nos países
periféricos, sempre contiveram, mais ou menos explicitamente, a dimensão
ambiental articulada à dimensão social dessas lutas e resistências.
A história de Próspero e Caliban não é a história do europeu
individualizado que se sente superior e do latino-americano regionalista que
defende sua cultura, como já argumentou Federici (2017). É, de um lado, a
história do conflito entre capital e lugar que incide sobre os territórios coloni-
zados desde a formação do capitalismo. De outro lado, essa história só existe
articulada à história dos trabalhadores e trabalhadoras e dos povos oprimidos

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Relações pessoa-ambiente na América Latina

de todo o mundo, subjugados pela necessidade de expansão indefinida do


capital, que é indiferente às necessidades humanas e à preservação da terra.
Por essa relação entre a reprodução do capital e a “questão ambien-
tal”, da mesma forma que só pode caber à classe trabalhadora a tarefa
de superação das classes sociais e da exploração do ser humano pelo ser
humano e, consequentemente, de garantir o fim da propriedade privada,
também a tarefa de conter a exploração catastrófica dos recursos naturais
e suas consequências pertence a tal classe. Isso pois a burguesia não pode
carregar essa tarefa, sob pena de deixar de existir como classe, uma vez que
seu comportamento destrutivo é filiado à sua necessidade de acumulação
de capital em concorrência uns com os outros, e isso independe das per-
sonalidades de cada burguês individual.
E como fica a nossa Psicologia Ambiental na América Latina? Vale
recorrer novamente ao pensador da Psicologia da Libertação. Martin-Baró
(2011) destacava três tarefas mais fundamentais para a psicologia latino-
-americana voltada para a libertação dos povos locais: “a recuperação da
memória histórica, a desideologização do senso comum e da experiência
cotidiana e a potencialização (potenciación) das virtudes populares” (Mar-
tin-Baró, 2011, p. 194).
Sobre o primeiro ponto, parece fundamental recuperar a luta dos povos
originários, dos povos do campo, das águas e florestas, dos povos das periferias
urbanas, e de todos(as) aqueles(as) que trouxeram e trazem o território e a
defesa do lugar em suas resistências. O pertencimento a um povo, a uma
tradição, traz junto vínculos identitários com a terra, com o território, com o
lugar, mas também a memória de lutas em defesa desse lugar, com elementos
que serviram e ainda servem hoje para a luta por libertação.
Por sua vez, “desideologizar significa resgatar a experiência original dos
grupos e das pessoas e devolvê-las como dado objetivo, o que lhes permitirá
formalizar a consciência de sua própria realidade, verificando a validade do
conhecimento adquirido” (Martin-Baró, 2011, p. 195). Quando se trata
das relações humano-ambientais há toda uma sorte de recursos ideológicos
que buscam responsabilizar individualmente os sujeitos pelos problemas
ambientais, pelos problemas urbanos, mas também que servem para velar as

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Ecos da acumulação primitiva: Contribuições marxistas para a análise crítica...

reais responsabilidades da ordem do capital sobre tais problemas. Contudo,


não há destruição ambiental que não esteja ligada à opressão dos povos, e isso
é patente na América Latina, como os exemplos dados ao longo deste texto
mostram. Desideologizar é desvelar essa conexão. Um fazer desideologiza-
dor demanda, para a Psicologia Ambiental tanto quanto para a Psicologia
Social como queria Martin-Baró (2017), que “(a) assuma a perspectiva
das maiorias oprimidas; (b) desenvolva pesquisas sistemáticas so-
bre a realidade dessas maiorias; (c) utilize de forma dialética esse co-
nhecimento, comprometendo-se com os processos históricos de
libertação popular” (Martin-Baró, 2017, p. 62). A potencialização das
virtudes dos nossos povos, por sua vez, diz respeito a elementos que fa-
zem parte das tradições populares, saberes, religiosidade, tudo aquilo que
permite resistir e sobreviver às relações opressivas diárias.
A partir desses elementos, é importante libertar a própria Psicologia
Ambiental, aqui pensada como Psicologia Socioambiental - uma vez não
há como dissociar essas realidades - de seus referenciais que legitimam a
dominação e as opressões, desenvolver pesquisas e práticas que se engajem
com os movimentos insurgentes contra a ordem capitalista, que surgem
no seio da classe trabalhadora e dos grupos oprimidos, e que mostram que
as lutas de classes e lutas pelo território e pelo ambiente são uma só coisa,
como tanto nos mostrou Chico Mendes.
O que o presente texto buscou mostrar foi que o pensamento marxista
é uma das ferramentas desse processo, que nos serve como forma de análise
do funcionamento do capitalismo e de como ele opera em nossa realidade
periférica. Apreender e utilizar tais ferramentas são uma parte de nossas
responsabilidades críticas. Elas ajudam a iluminar o caminho apontando
para os fundamentos de nosso problema, as relações humano-ambientais
latino-americanas.
A tarefa de fazer análises das especificidades desses problemas em nossa
realidade não para por aí. Mas entender as raízes desses fenômenos em
questão nos ajuda a construir uma ciência e uma prática que saiba de que
lado das lutas de classes devemos nos posicionar para que nossa subárea
não se torne mais um dos instrumentos de dominação do capital.

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Relações pessoa-ambiente na América Latina

Referências

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Relações pessoa-ambiente na América Latina

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54
Capítulo II

Contribuições subversivas
para uma Psicologia Ambiental
insurgente e genuinamente
latino-americana
Raquel Farias Diniz

C omo desdobramentos das dinâmicas e transformações sociais, geopolí-


ticas, econômicas e ambientais, cenários complexos se delineiam histo-
ricamente ao redor do mundo e, consequentemente, demandam múltiplas
abordagens para a compreensão dos fenômenos psicossocioambientais que
se (re)produzem. Por conseguinte, as relações pessoa-ambiente se tornam
alvo de interesse numa miríade de olhares, constituindo um foco de diálogos
entre campos do conhecimento, com aproximações de saberes específicos
de diversas disciplinas, buscando compor uma fala acessível às diferentes
interlocuções. De modo específico, encontramos na Psicologia Ambiental
(PA) uma dessas interlocutoras, que se constitui como disciplina a partir de
referenciais teórico-metodológicos que advêm tanto de subáreas da própria
área mãe, a Psicologia – e.g. Psicologia Social, Psicologia da Gestalt, Psico-
logia do Desenvolvimento – quanto de áreas de interface como Arquitetura
e Urbanismo, Geografia, Ecologia, Educação Ambiental, entre outras.
A interface entre esses campos do conhecimento tem buscado responder
a uma amplitude de questões, com direções distintas, tais como: o meio
físico interfere na subjetividade humana? Quais os impactos dos ambien-
tes nas relações sociais? Como os comportamentos das pessoas modificam
seus entornos? Como promover estilos de vida alinhados com os ideais da
sustentabilidade? O objeto de interesse seria, em síntese, as relações bidi-
recionais entre as pessoas (indivíduos ou grupos) e seus diversos ambientes
sociofísicos, em diferentes escalas espaciais (desde a casa, a comunidade, a

55
Relações pessoa-ambiente na América Latina

cidade, até o próprio planeta) e temporais (percebidas, biológicas, crono-


lógicas, históricas etc.).
Em relação à Psicologia Ambiental, Corral-Verdugo (2005) afirmou que
sua emergência se deu “como uma área aplicada da psicologia objetivando
resolver problemas com respeito às interações ambiente-comportamento”
(p. 73). Segundo o autor, duas abordagens dominam e prevalecem sobre
a construção de conhecimento desde suas origens: (a) estudo dos efeitos
ambientais sobre o comportamento (ambiente => comportamento), abor-
dando percepção ambiental, mapas cognitivos, preferências ambientais,
usos dos espaços construídos etc., e; (b) estudos referentes a como e por
que o comportamento humano afeta o ambiente (comportamento =>
ambiente), abarcando temas como comportamento sustentável, crenças
ambientais, valores, personalidade, variáveis demográficas, entre outros.
Tais abordagens podem ser compreendidas a partir das ênfases em seus
objetos, posto que a primeira se volta para o comportamento humano
como resultante das relações com os ambientes construídos; e a segunda
abordagem tem o comportamento humano como agente nas relações com
o meio natural (Bonnes & Bonaiuto, 2002).
As diferentes abordagens levariam em conta, de um lado, um ambiente
objetivo, tangível, feito de elementos físico-químicos, e, de outro, os seres
humanos, como sujeitos sociais expostos a artefatos culturais, símbolos e
convenções (Corral-Verdugo, 2005). É possível afirmar que tal diferencia-
ção entre abordagens, atrelada à compreensão de seu objeto, deita raízes
na constituição histórica da PA, com os primeiros desenvolvimentos no
contexto europeu do início do século XX, e consolidação em solo norte-
-americano a partir dos anos 1950.
Para a presente reflexão, parte-se do entendimento de que ciência
ocidentalizada e sua epistemologia dominante se inserem no paradigma
moderno, hegemônico, que se orienta por um saber-fazer colonialista, ra-
cista, sexista e capitalista (Grosfoguel, 2016; Sousa-Santos, 2018a). Desse
modo, o argumento a ser defendido é o de que a Psicologia Ambiental,
assim como os estudos das relações pessoa-ambiente, não tem escapado
a essa orientação, algo que se evidencia ao lançar luz sobre as bases mate-

56
Contribuições subversivas para uma Psicologia Ambiental insurgente e genuinamente...

riais, as demandas e as respostas, teóricas e práticas, que vêm sendo dadas


desde a emergência desse campo do conhecimento. No desafio de propor
contribuições que perturbem a ordem (im)posta aos estudos pessoa-am-
biente, e à própria Psicologia Ambiental, cabe uma análise sobre como as
bases teórico-epistemológicas, marcadamente eurocentradas e anglo-saxãs,
numa matriz colonial, que orientam de forma hegemônica a construção de
conhecimento sobre seu objeto, se desdobram em uma prática científica
universalista, de caráter extrativista e desconectada da realidade concreta
da reprodução social da vida nos países periféricos. A partir dessa análise,
são propostos encaminhamentos para uma psicologia ambiental insur-
gente que, orientada por uma opção ou ética decolonial, lance mão de
metodologias não-extrativistas, colocando-se em diálogo com experiências
e saberes ancestrais, nascidos nas lutas históricas dos povos originários da
periferia do capitalismo.

Relações pessoa-ambiente e Psicologia Ambiental:


desenvolvimentos teórico-metodológicos e definições

Em vista da múltiplas demandas postas ao longo de sua história, é


possível afirmar que, no campo dos estudos pessoa-ambiente, a Psicologia
Ambiental tem como objeto “pessoas-como-seres-sociais-nos-seus-am-
bientes”, com o foco na participação humana nas diferentes expressões
da questão ambiental (e.g. antagonismo campo-cidade, superpopulação
urbana, poluição ambiental, esgotamento de fontes hídricas e do solo
etc.). Desse modo, busca contribuir para a promoção do bem-estar e de
relações mais harmônicas entre as pessoas e os ambientes, assim como
para o avanço em direção à sustentabilidade, compreendendo-a como um
valor social positivo (Pol, 2007; Wiesenfeld, 2005). Contudo, observa-se
que as definições de seu objeto, e de seus objetivos, têm se modificado
a fim de facear as contingências de diferentes contextos e momentos nas
sociedades ocidentalizadas.
No primeiro terço do século XX, os estudos pessoa-ambiente surgem
para atender demandas das sociedades ocidentais, em transição, abaladas

57
Relações pessoa-ambiente na América Latina

por mudanças geopolíticas, tecnológicas e sociais, marcadas pelas migrações,


aumento das concentrações urbanas, e o surgimento de novos tipos de
pobreza e novos conflitos. Apesar de não reunir as condições do que define
uma disciplina específica, aproximava-se da compreensão do ambiente a
partir de uma visão holística para explicar o comportamento humano,
contando com as contribuições da geofísica e da Psicologia da Gestalt, em
desenvolvimento na Alemanha. Foi o princípio do olhar sobre as distinções
entre as dinâmicas da vida urbana e da vida rural, com destaque para as
contribuições de George Simmel na direção de uma Psicologia Urbana.
Nesse momento, áreas como a arquitetura e o urbanismo já apresentavam
uma das primeiras demandas para a psicologia: o hiato na comunicação
entre projetistas e pessoas usuárias (Pol, 2006).
Já num contexto marcado pelos efeitos da crise de 1929 e do fim da
II Guerra Mundial, as migrações de pensadores europeus e as ideias da
Escola de Chicago encontraram ressonância tanto no campo da Sociologia
como na Psicologia Social. Kurt Lewin, considerado um dos precursores
da Psicologia Ambiental, atentou para a relevância do ambiente e das situ-
ações nas quais aconteciam os comportamentos humanos, propondo uma
ruptura com a tradição dos estudos em laboratório até então dominantes
na investigação dos fenômenos psicológicos (Bonnes & Secchiaroli, 1995).
Nesse contexto também foram propostas a Psicologia Ecológica, com foco
molar na díade ambiente-comportamento (ou ecocomportamental), assim
como as teorias ecológicas da percepção, os estudos sobre mapeamento
cognitivo, comportamento territorial e aglomeração, e se observam as
primeiras elaborações sobre o valor simbólico do espaço, e as primeiras
publicações sobre o comportamento pró-ecológico (Pol, 2006).
Posteriormente, a aproximação da psicologia com a arquitetura e
o urbanismo passou a atender demandas por construções mais práticas
e confortáveis, o que se considera como uma vertente arquitetônica da
área. No contexto de reconstrução das cidades europeias no pós-guerra,
o foco passou a ser os ambientes construídos e seus efeitos sobre o com-
portamento humano. Os estudos pessoa-ambiente eram essencialmente
arquitetônicos, com interesse no âmbito individual e na construção de

58
Contribuições subversivas para uma Psicologia Ambiental insurgente e genuinamente...

conhecimento de mensuração empírica, com grande difusão no contexto


estadunidense (Bonnes & Bonaiuto, 2002; Pol, 2007). Nesse momento,
surgiram as primeiras publicações norte-americanas e europeias sobre as
relações entre design e comportamento, os primeiros manuais, e foram
realizados encontros pioneiros que consolidaram a área.
No último terço do século XX, Pol (2007) considera que houve a incor-
poração de uma dimensão “social” para a composição das perspectivas em
Psicologia Ambiental, contando com dois marcos importantes. O primeiro,
relativo à aproximação com a Psicologia Social, resultou na mudança do
foco sobre aspectos mais estruturais dos fenômenos (e.g., funcionalida-
de, cognição) para dimensões experienciais e simbólicas (e.g., satisfação,
identidade de lugar, apropriação e apego), as pesquisas “básicas” perderam
espaço para as propostas teóricas baseadas na pesquisa social aplicada. O
segundo fator diz respeito à emergência dos debates científicos e públicos
sobre os problemas ambientais na década de 1970, quando ocorreu um
incremento nas publicações sobre atitudes e comportamentos em relação ao
meio ambiente e às mudanças ambientais globais (Pol, 2007). A partir de
então, a PA assume uma vertente verde, passando a se interessar pela mu-
dança de valores, atitudes, visões de mundo e comportamentos e a assumir
um papel mais efetivo no campo das ciências ambientais (Kazdin, 2009).
Os desenvolvimentos, pontuados de forma bastante breve até aqui,
favorecem um entendimento sobre o panorama da área, bem como as
diversas facetas dos estudos das relações pessoa-ambiente, tendo em vista
a representatividade de sua produção ainda situada nos centros de origem:
Europa e Estados Unidos. Sobre essa circunscrição georeferenciada do
conhecimento, Esther Wiesenfeld (2005) afirmou que, enquanto os desen-
volvimentos norte-americanos enfatizaram o indivíduo e a otimização de
sua relação com o ambiente, no contexto europeu a área emergiu com forte
vocação social, em decorrência da crise social e habitacional do pós-guerra.
A forma como a área surge e se consolida nos referidos centros é
determinante para a sua constituição em outros contextos. Ao considerar
especificamente o contexto brasileiro, Pinheiro (1997) afirmou, naquele
momento, que a “Psicologia Ambiental ainda é um corpo mais ou menos

59
Relações pessoa-ambiente na América Latina

estranho no cenário da Psicologia brasileira. (...) Tal situação não é muito


diferente do cenário mais amplo da Psicologia Ambiental na América Latina”
(p. 222). Algo que não se modifica de forma decisiva, a despeito de mais
de vinte anos terem se passado, tendo em vista ainda ser encarada como
uma área “emergente” em nosso país e no continente. Se considerarmos as
particularidades históricas, sociais, culturais, econômicas, políticas e ambien-
tais que compõem a realidade latino-americana, caberia então questionar:
como tem se dado o desenvolvimento da área em nossa região? Como se
caracteriza e quais as especificidades de sua produção de conhecimento?
Nos registros sobre a história da PA, salta aos olhos a ausência ou a escassa
referência ao contexto latino-americano. Em estudo historiográfico seminal
sobre área, Pol (2007) mencionou de forma pontual as contribuições de um
pequeno número de pesquisadoras/es e grupos de pesquisa no continente,
com destaque para a Venezuela, o México e o Brasil. Mais recentemente,
numa análise da produção científica da PA publicada em periódicos latino-
-americanos de acesso aberto, Diniz, Moisés e Barbosa (2019) identificaram
que Colômbia, Chile e Argentina vêm aumentando sua produção científica
na área, embora o Brasil siga sendo responsável por mais da metade dos
artigos publicados no continente nas últimas três décadas.
A fim de situar os desenvolvimentos da PA na América Latina e suas
contribuições para a consolidação da área, contamos com apontamentos
feitos por pesquisadoras/es pioneiras/os na região, que se remetem aos
cenários dos anos 1980, 1990 e 2000 (Pinheiro & Corral-Verdugo, 2007;
Wiesenfeld & Zara, 2012). Tais apontamentos convergem no que se refere
às especificidades da região, e sobre a necessidade de considerar o contexto
e as particularidades regionais para a construção de conhecimento na área.
Corral-Verdugo e Pinheiro (2009) defenderam o potencial dos desenvol-
vimentos e o contínuo crescimento da área no continente, expresso pelo
aparecimento de novos grupos de pesquisa, o aumento das produções e
comunicações científicas, surgimento de novos cursos de pós-graduação
e sua presença na graduação e, finalmente, a comunicação entre grupos
dentro da região e com equipes em centros de pesquisa na Europa, América
do Norte, Ásia e outras partes do mundo.

60
Contribuições subversivas para uma Psicologia Ambiental insurgente e genuinamente...

A fim de ilustrar a emergência e consolidação da PA latino-americana, to-


memos o caso do Brasil. Pinheiro (2003) elencou ao menos três momentos com
características que denotavam avanços em sua história. Entre os anos de 1970
e 1980, que tem como marco o regime da ditadura civil-militar, momento em
que ocorreu a saída (forçada) de diversos intelectuais do país, o autor destacou
a tradução de alguns manuais europeus e norte-americanos e a oferta de alguns
cursos isolados em diferentes instituições. Já de meados dos anos de 1980 ao
início dos anos de 1990, com a restauração do regime democrático e instauração
de uma agenda econômica marcadamente liberal, assim como o retorno de vários
intelectuais ao país, o destaque é dado para a emergência de alguns grupos de
pesquisa em diferentes universidades, em paralelo à formação de pesquisadoras/
es em universidades e junto a grupos de pesquisa exterior, momento em que se
observou o início de um fortalecimento acadêmico.
De meados dos anos 1990 ao momento mais atual, com a intensificação
de investimentos no desenvolvimento técnico-científico no país nos anos
2000, a área conta com grupos organizados e consolidados em diferentes
instituições públicas e privadas, que se reúnem em eventos científicos
nacionais e internacionais, em publicação de revistas e livros, e com o
fortalecimento de intercâmbios com autoras/es no país e no exterior, ocor-
rendo também iniciativas intergrupos de pesquisa internamente (Pinheiro
& Günther, 2008a). Surgiram, também, novas linhas de orientação de
mestrado e doutorado nos programas de pós-graduação em Psicologia.
Outras iniciativas merecem destaque por suas contribuições que perduram
ao longo desse período, como o Grupo de Trabalho de Psicologia Am-
biental, vinculado à Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em
Psicologia (ANPEPP), e a Rede de Psicologia Ambiental Latino-Americana
(REPALA), uma lista de discussão virtual em funcionamento desde os anos
2000 (Pinheiro & Günther, 2008a). Destacam-se, ainda, as contribuições
do Grupo de Trabalho de Psicologia Ambiental vinculado à Sociedade
Interamericana de Psicologia (SIP) e a fundação em 2019 da Associação
Brasileira de Psicologia Ambiental e Relações Pessoa-Ambiente (ABRAPA).
O panorama da área no Brasil contém especificidades em relação a
outros centros latino-americanos com importância histórica para a con-

61
Relações pessoa-ambiente na América Latina

solidação da área, como México, Venezuela e Colômbia. No entanto, há


aspectos comuns aos demais países do continente, principalmente no que
se refere à formação de pesquisadoras/es no exterior (em geral, Europa e
Estados Unidos), as iniciativas de ensino e pesquisa de grupos pioneiros
em diferentes instituições, cooperação internacional com pesquisadoras/
es e centros europeus e norte-americanos, o incremento na formação
pós-graduada, a relevância dos encontros e eventos, as traduções de obras
e as publicações originais, entre outras iniciativas.
Conquanto consideremos os diferentes movimentos e demandas que
impulsionaram os desenvolvimentos dos estudos pessoa-ambiente e da Psico-
logia Ambiental, em diferentes partes do globo, encontramos sobreposições
e confluências, tanto na definição de seu objeto e de suas delimitações teóri-
co-epistemológicas quanto em seu projeto ético-político como ciência. Algo
que se evidencia ao atentarmos para as definições e características apontadas
como específicas da área. Segundo Gabriel Moser, a PA,

estuda a pessoa no seu contexto físico e social, no intuito de desem-


baraçar a lógica das inter-relações entre a pessoa e o seu ambiente,
pondo em evidência as percepções, atitudes, avaliações e represen-
tações ambientais, de uma parte, e, da outra, os comportamentos
e condutas ambientais que as acompanham. (Moser, 2019, p. 21)

Em outra definição, Sergi Valera (1996) apresentou a PA como a


disciplina que tem por objeto o estudo e a compreensão dos processos
psicossociais derivados das relações, interações e transações entre as pes-
soas, grupos sociais ou comunidades e seus entornos sociofísicos. Esther
Wiesenfeld (2005) acrescentou à essa definição a busca por promover
uma relação harmônica entre pessoa-ambiente, com vistas ao bem-estar
humano e à sustentabilidade ambiental. A autora destacou como objetivos
postos para a área: estudar a relação pessoa-ambiente no contexto natural;
abordar os fenômenos de maneira holística; incorporar diversas perspec-
tivas teóricas; enfatizar a dimensão social da relação humano-ambiental;
estabelecer vínculos interdisciplinares; aplicar os conhecimentos obtidos,
considerando sua pertinência social.

62
Contribuições subversivas para uma Psicologia Ambiental insurgente e genuinamente...

Dois pontos merecem destaque a respeito das definições e caracte-


rísticas apresentadas. O primeiro deles diz respeito às orientações teóricas
que embasam tais definições. Segundo Valera (1996), podemos considerar
diferentes perspectivas teóricas que compõem o campo da PA, desde as mais
tradicionais, de caráter individualista – focadas na cognição e traços de per-
sonalidade – até concepções de caráter transacionalista, que almejam uma
leitura holística, dinâmica e molar das relações pessoa-ambiente, as quais
estariam recebendo maior atenção nas pesquisas em momentos mais recentes.
Em termos de orientação epistemológica, o autor situou tais perspectivas (à
exceção da transacionalista) no marco do positivismo, no qual a/o pesquisa-
dora/or se distancia do fenômeno que se pretende investigar, levando a cabo
uma leitura objetivista e recortada de seu contexto. Agregado ao ideal de
neutralidade, esse marco adere a uma visão determinista e desconectada das
dinâmicas sociais que atravessam os fenômenos. Como afirma Wiesenfeld
(2005), ao identificar a prevalência desse marco na produção científica da
área, “as premissas da Psicologia Ambiental positivista descontextualizam
os objetos, assumindo a universalidade e a-historicidade do conhecimento
produzido” (p. 65). Em suma, a autora identificou a ausência de diálogo com
as demandas e os problemas locais, incorrendo numa leitura fragmentada e
reducionista dos ambientes e dos processos psicológicos, relevando a natureza
social e dinâmica dos fenômenos; e a área assume um isolamento disciplinar,
na contramão de seu chamado à interdisciplinaridade.
Ainda em consonância com Wiesenfeld (2005), ressalta-se o segundo
ponto: a ausência de um pronunciamento ético e a escassa referência à dimen-
são política na produção científica da PA. Embora se invoque com frequência
seu caráter aplicado e orientado para problemas de relevância social (Bonnes
& Bonaiuto, 2002; Corral-Verdugo, 2005), uma questão urge ser colocada:
a serviço de quem ou de que projeto de sociedade está a Psicologia Ambiental?
Questão central para a história da psicologia (social) latino-americana, a
reflexão acerca de um compromisso ético-político da Psicologia Ambiental se
coloca como imprescindível na disputa por uma ciência que ouça, dialogue e
atue em prol da transformação social e ambiental, com impacto efetivo para
as maiorias populares em nosso continente. É urgente uma práxis científica

63
Relações pessoa-ambiente na América Latina

que se alinhe com as demandas situadas, materiais e concretas da vida das


pessoas, que padecem historicamente em nosso continente com processos
de exploração e sistemática violação de direitos.
Faz-se necessária a construção de conhecimentos críticos sobre as rela-
ções entre as pessoas/grupos e seus entornos, partindo do tensionamento da
noção de universalidade, e do reconhecimento da diversidade de cenários
que se desdobram do que pensadoras/es latino-americanas/os contempo-
râneas/os nomeiam por “sistema-mundo europeu/euro-norteamericano
capitalista/patriarcal moderno/colonial”. Tal sistema decorre do fato de
que a divisão internacional do trabalho entre países centrais e periféricos
do capitalismo, assim como a hierarquização étnico-racial dos povos, não
se modificou significativamente com o fim do colonialismo e da formação
dos estados-nação na periferia (Ballestrin, 2013). Em suas análises sobre
o subdesenvolvimento, algo indissociável do desenvolvimento, Milton
Santos (1980) já denunciava que as desigualdades econômicas e sociais,
associadas à decrescente participação do povo nos processos de tomada de
decisão, geravam uma alienação social e econômica, com efeitos decisivos
para a organização do espaço. Em concordância com o autor, segue sendo
imperativo atentar para o papel de teóricas/os periféricas/os na elaboração
de teorias que deem conta de desvelar as determinações das múltiplas forças
internas e externas, passadas e presentes, políticas, econômicas e sociais
que incidem sobre as periferias no sul global.
É imprescindível considerar que vivemos uma transição do colonialismo
moderno à colonialidade global, processo em que se modificam as formas
de dominação, mas se mantém a estrutura das relações centro-periferia em
escala mundial. Ressalta-se aqui a colonialidade do saber, no âmbito da
geopolítica do conhecimento, referente às relações de poder em que países
centrais mantêm países da periferia do sistema em posição subordinada em
termos epistemológicos e de produção de conhecimentos (Sousa-Santos,
2018a). Nesse sentido, Milton Santos (2004) alertou para a existência de
um “imperialismo cultural” (p.128) na produção científica, decorrente da
importação de referenciais teóricos estrangeiros que resulta na interpretação
alienada das realidades locais.

64
Contribuições subversivas para uma Psicologia Ambiental insurgente e genuinamente...

Diante dos limites e desafios que se colocam para o debate em torno


das relações pessoa-ambiente e da promoção de estilos de vida sustentáveis,
defende-se aqui a descolonização, ou antes, um processo anticolonial de
construção de conhecimento em Psicologia Ambiental, assim como a
aposta em epistemologias periféricas e numa razão cosmopolita subalterna
(Sousa-Santos, 2018a), que rompem com a hegemonia do conhecimento
branco, hetero-patriarcal, eurocentrado, e podem abrir novos horizontes
de pesquisa e intervenção para o campo das relações pessoa-ambiente em
contextos do sul global, como a América Latina.

Por uma Psicologia Ambiental latino-americana


insurgente

Do exposto anteriormente, fica evidente o berço ocidental dos es-


tudos das relações pessoa-ambiente e, consequentemente, a construção
de conhecimentos e práticas científicas hegemonicamente (re)produzidas
em universidades ocidentalizadas, circunscrita ao paradigma dominante
nos países centrais do capitalismo, marcado pelo racismo e pelo sexismo
epistêmico (Grosfoguel, 2016, Sousa-Santos, 2018a). Não é acidental,
portanto, que esse campo tenha produzido leituras universalizantes e
pretensamente neutras dos fenômenos sobre os quais se debruça, com
enfoques exclusivamente pragmáticos, e gerado análises por vezes indivi-
dualizantes e recortadas de seu contexto histórico, cultural, social, político,
econômico e ambiental.
Do ideal da interdisciplinaridade que se vislumbra para esse campo
de estudos, vê-se a pretensa diversidade metodológica, bastante celebrada
no exercício da pesquisa pela defesa dos multimétodos, métodos mistos ou
triangulação metodológica (Gifford, 2016; Pinheiro & Günther, 2008b).
Contudo, alinhada e orientada por uma epistemologia marcadamente
positivista, por via dessa diversidade metodológica se reproduz uma lógica
colonizadora e extrativista na construção do conhecimento, dando prio-
ridade ao conhecer sobre os objetos de interesse, mantendo a separação e
assimetrias entre sujeito/conhecedor-objeto/a ser conhecido.

65
Relações pessoa-ambiente na América Latina

Tal postura finda por negligenciar diversos processos contra-hegemô-


nicos que poderiam contribuir sobremaneira para o avanço em múltiplas
direções ainda não visibilizadas, a respeito do que se conhece sobre as
relações pessoa-ambiente. Nesse sentido, Boaventura de Sousa Santos
(2018b) identifica cinco lógicas que embasam a produção da “não-exis-
tência”, percebidas no campo de saber em análise: a monocultura do saber
e do rigor do saber, tendo a ciência moderna como único saber válido;
a monocultura do tempo linear, único e universal; a monocultura da
naturalização das diferenças, resultando em diversas hierarquias; a lógica
da escala dominante, com foco no universal e global; a monocultura dos
critérios de produtividade capitalista. Em contraposição aos mecanismos
de invisibilização de experiências e fenômenos que escapam e fazem frente
aos modos dominantes da sociabilidade capitalista, está a “sociologia das
ausências”, que ao produzir presenças se centra “no estudo e na análise de
fragmentos da experiência social não reconhecidos pela ciência eurocêntrica”
(Sousa-Santos, 2018b, p. 4).
Em favor de uma Psicologia Ambiental “das ausências”, torna-se
imprescindível lançar luz, de modo especial, sobre as experiências humano-
-ambientais vividas há séculos por nossos ancestrais ameríndios e africanos
escravizados. Desse modo, considera-se a importância de uma psicologia
ambiental genuinamente latino-americana, que tenha como fundamento
visibilizar e, principalmente, aprender com a amplitude de saberes histori-
camente ocultados em nosso continente. Soma-se a esse empreendimento
a ecologia de saberes e a tradução intercultural que “procuram valorizar
as pequenas experiências humanas que podem ser potenciais embriões de
transformações mais amplas” (Sousa-Santos, 2018b, p. 8).
A proposição de uma Psicologia Ambiental das ausências – portanto,
insurgente – tem como inspiração primordial a defesa de Ignacio Martin-Ba-
ró (2017) por uma psicologia alinhada aos anseios e demandas populares,
participante ativa na construção de um projeto de sociedade em que se
tenha como prioridade a satisfação das necessidades básicas do povo, e a
formação de uma mentalidade solidária e comunitária. Ao considerar a
relação entre pesquisa e mudança social, Martín-Baró alertava para a ne-

66
Contribuições subversivas para uma Psicologia Ambiental insurgente e genuinamente...

cessidade de rompermos com “o imperativo reinante no meio acadêmico


norte-americano” de produzir para publicar, que resulta na produção de
conhecimento sem qualquer significado social. Dando sequência às pala-
vras do autor, “nós necessitamos, urgentemente, fazer pesquisa, não tanto
para ser publicada, mas para ser utilizada como instrumento de mudança
social” (Martin-Baró, 2017, p.95).
Na esteira da visão sublevadora baroniana, soma-se a proposição de uma
psicologia descolonizada por Bruno Gonçalves (2019), uma psicologia desde
abajo, que parte da construção de conhecimento que leva em conta a me-
mória histórica, o cotidiano das práticas de reprodução social e da resistência
popular. Em concordância com a visão do autor sobre a própria Psicologia,
numa Psicologia Ambiental insurgente, desde abajo, adquire centralidade
o conhecimento acumulado pelos povos do continente latino-americano,
contemplando seus aspectos éticos, políticos, psicossociais, técnicos e filosó-
ficos extremamente diversos. Os saberes milenares das lutas e das tradições
indígenas e africanas, ignorados pelo pensamento eurocentrado e pela ciência
em geral, são parte da subjetividade brasileira e latino-americana, e precisam
compor a compreensão da realidade vivida em suas múltiplas expressões.
Nessa mesma direção, Catherine Walsh (2005) defendeu o “posiciona-
mento crítico fronteiriço” (p. 27), ressaltando a agencialidade dos grupos
subalternizados, não apenas para incidir ou fazer fronteiras com o pensa-
mento hegemônico, mas mover-se estrategicamente em uma variedade de
esferas. Assinalou um posicionamento forte que tem como meta implodir
desde um lugar próprio do saber, indo além das categorias sociais, políticas
e epistêmicas estabelecidas pelo pensamento eurocêntrico e pretendendo
construir alternativas a essa eurocentricidade. Sobre o posicionamento
crítico fronteiriço,

Su meta es interculturalizar críticamente a partir de la relación entre


varios modos de pensar incluyendo entre pensamientos-otros (en su
pluralidad), una relación conflictiva y de lucha en, entre y alrededor de
conocimientos no simplemente a nivel teórico, sino dentro de contextos
vividos de sujetos cuya agencia necesariamente está enraizada en una
red compleja de relaciones de poder. (Walsh, 2005, p. 30)

67
Relações pessoa-ambiente na América Latina

Alinhadas ao que propõe Walsh estão a Constituição do Equador e a


lei a favor da Mãe Terra da Bolívia, casos que buscam resgatar em termos
práticos e legais a diversidade cultural dos povos originários desses países,
valorizando suas práticas e costumes ancestrais de interdependência com
a natureza, reconhecendo seu potencial para fazer frente às expressões da
questão ambiental. Segundo Jeaneth Stefaniak (2016), ambas as alternativas
apontam para um novo paradigma a transformar as relações pessoa-ambien-
te, pautado na valorização da diversidade, ao lançar um outro olhar sobre
a natureza, como organismo vivo, contrapondo-se às práticas extrativistas
e mercantilizantes típicas do modo de produção capitalista.
Ao defender a importância da diversidade como forma de pensar e
como base para a manutenção de relações não destrutivas com a natureza,
Vandana Shiva (2003) abordou as “monoculturas da mente”. A partir do
contato com experiências de monocultivo de espécies, com o consequente
empobrecimento das plantações e comprometimento do abastecimento de
água e das condições de vida das pessoas nesses contextos, a autora propôs
a diversidade como alternativa à monocultura, à homogeneidade e à uni-
formidade. Desse modo, “Viver a diversidade na natureza corresponde a
viver a diversidade de culturas. As diversidades natural e cultural são fontes
de riqueza e alternativas” (p. 17).
Outra experiência que inspira a proposta de construção de uma Psico-
logia Ambiental insurgente e autenticamente latino-americana é apresentada
por Mariana Gonçalves (2019) como “Psicologia Favelada”. De acordo
com a autora, uma psicologia que se pode qualificar como marginalizada,
popular, periférica, emancipada, se produz nos encontros e diálogos dire-
tos com a vida na favela, resultando em possibilidades de transformação
no saber-fazer psicológico, na ruptura com sua tradição elitista e neutra,
que tenha a ambição de reconstruir saberes e práticas orientadas para as
questões que afligem as favelas. Tal experiência dialoga com o que Esther
Wiesenfeld (2001) denominou por “Psicologia Ambiental Comunitária”,
cuja abordagem propicia uma relação horizontal, democrática com todas as
pessoas envolvidas na gestão comunitária de uma problemática ambiental,
conhecendo e confrontando os significados que diferentes agentes sociais

68
Contribuições subversivas para uma Psicologia Ambiental insurgente e genuinamente...

elaboram a respeito de sua situação, estimulando a participação a partir


dos recursos e da autodeterminação da própria comunidade.
Numa esfera interdisciplinar de inspirações insurgentes para os estudos
das relações pessoa-ambiente, nos anos 1970, Milton Santos (1980) já
defendia o que mais recentemente se pode denominar por descolonização
da geografia, propondo uma geografia da pobreza, na qual se reconhece
que riqueza e pobreza não são separadas, e que essa ciência deve analisar
os processos considerando suas desigualdades no centro e na periferia do
capitalismo. Movimento semelhante é discutido por Gimeno-Martín e
Castaño (2016) a respeito da descolonização da antropologia, que pas-
saria a adoção de um compromisso ético e social, de orientação pública,
assumindo um papel numa prática científica voltada para a emancipação.
Para tanto, é mister a adoção de uma perspectiva de co-laboração, de
trabalho conjunto, em que o diálogo e parceria com agentes das lutas na
arena social, os movimentos sociais, os grupos organizados, cooperativas,
sindicatos etc., têm implicações diretas para todo o processo etnográfico.
Ao considerar tais práticas e orientações subversivas em termos de
compromisso ético-político e consequente definição de focos e objetos
de análise, torna-se inevitável problematizar a prática da pesquisa cien-
tífica em termos metodológicos, de modo a promover rupturas com o
uso hegemônico das metodologias extrativistas evidente na produção dos
estudos pessoa-ambiente. Nesse sentido, destacam-se as contribuições de
Orlando Fals Borda. Em sintonia com as proposições educacionais de
Paulo Freire, o sociólogo colombiano defendeu o papel da educação para
a mudança social, tendo como elemento central o método da Investigação-
-Ação-Participativa (IAP), embasada pelo compromisso social de produzir
conhecimento com as pessoas para promover a consciência necessária aos
processos de transformação da realidade, processo no qual se aprende
fazendo (Ocampo-López, 2009).
Propostas metodológicas, e formas de operar em campo procedimen-
tos empíricos de coleta e (co)construção de dados, que buscam romper
com a lógica extrativista da ciência eurocentrada têm emergido entre as
humanidades, incitando uma colaboração efetivamente interdisciplinar

69
Relações pessoa-ambiente na América Latina

enriquecedora para a leitura da complexidade dos fenômenos de interesse


para a Psicologia Ambiental. Mario Rufer (2018) propõe, por exemplo, a
construção de memórias subalternas, ou contra-memórias, a partir da escuta
direta de pessoas que, em suas próprias palavras e meios, contam histórias que
contradizem a história oficial (em especial nos museus), algo possível com a
eliminação das hierarquias na coprodução do conhecimento com as pessoas
envolvidas no contexto em estudo, descolonizando o fazer etnográfico. Já
Ivani Faria1 (2017) aborda as metodologias participantes, como alternativas
não extrativistas na construção do conhecimento científico, com ênfase
em sua experiência com povos indígenas no norte do Brasil, no sentido de
promover autonomia e possibilitando a presença e o diálogo direto com as
epistemologias próprias desses povos na coconstrução do conhecimento.
Outra contribuição para repensar (e romper com) o uso de metodologias
dominantes se trata da abordagem das performances, discutida por Maria
Antonieta Antonacci (2016), em que se coloca a importância do corpo e
da oralidade na construção de saberes, historicamente negligenciados em
função do eruditismo que impregna o fazer acadêmico.
Da articulação entre uma epistemologia crítica, decolonial, que rom-
pe com os fundamentos do pensamento eurocentrado sexista e racista,
orientando metodologias alternativas que desconstruam hierarquizações
e assimetrias na pesquisa e nas práticas em geral, resultaria a abertura para
práxis científica de uma psicologia ambiental insurgente. Assim, abre-se
caminho para debates imprescindíveis em torno da comunalidade e da
reprodução comunitária da vida (Tzu-Tzu, 2015), que serviriam a um
propósito ético-político de transformação das relações pessoa-ambiente no
sentido em que se propõe a pensar aqui. Por essa perspectiva, o comunal
indígena é compreendido não

1  Faria, I. (2017). Metodologias Participantes e conhecimento indígena na


Amazônia: propostas interculturais para autonomia. Manuscrito não publi-
cado, Universidade Federal do Amazonas, Instituto de Ciências Humanas
e Letras, Manaus, Amazonas.

70
Contribuições subversivas para uma Psicologia Ambiental insurgente e genuinamente...

como una esencia que se tenga que mantener, que se tenga que cuidar
para que no se contamine con fuerzas externas, tampoco es una forma
arcaica del pasado. Por ello propongo que pensemos lo comunal indígena
como el funcionamiento de las estrategias de hombres y mujeres que co-
tidianamente gestionan, autorregulan y defienden su territorios. (Tzu-
-Tzu, 2015, p. 125)

Uma prática científica que busque e aprenda com as experiências dos


nossos povos originários pode contribuir para compreender e transformar
nosso tempo presente e as relações que estabelecemos com nossos múlti-
plos ambientes e territórios. As epistemes subalternizadas e metodologias
insurgentes lançam luz sobre esse processo de aprendizagem, que passa
necessariamente pelo reconhecimento da ignorância e da produção de
ignorâncias e desconhecimentos. E se a ciência é produzida de forma
predominante em nossas universidades, necessitamos assumir um papel
na luta por sua atuação polifônica, como campo de múltiplas vozes e com-
prometida com sua função social na emancipação humana, valorizando a
pluralidade e processos de subversão da norma vigente nas epistemologias
do norte (Sousa-Santos, 2018b).
Finalmente, a partir das contribuições aqui apresentadas, que buscam
subverter a ordem dominante na construção do conhecimento psicos-
socioambiental, espera-se alimentar novos horizontes para a Psicologia
Ambiental, que sejam politicamente orientados, comprometidos com um
projeto de sociedade pautado pela justiça social e cognitiva com os povos
historicamente excluídos e explorados, uma construção genuinamente
latino-americana e, portanto, definitivamente subversiva e insurgente.

71
Relações pessoa-ambiente na América Latina

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74
Capítulo III

Caminhos para uma inserção


territorializada da Psicologia1
Ana Paula Soares da Silva
Bianca Oliveira de Macedo
Fernanda Graña Kraft
Juliana Bezzon da Silva
Karine Regina Jurado

Introdução

A relação entre sujeito e meio atravessa o debate histórico de construção


da Psicologia e, explícita ou implicitamente, está presente em todas
as suas correntes ou subáreas. A natureza de seu objeto, a necessidade de
sua definição e a dificuldade de sua apreensão impõem uma busca inces-
sante na compreensão das delimitações ou interpenetrações entre sujeito e
mundo. As explicações para a constituição do que é próprio do humano se
compõem, assim, de movimentos pendulares, sejam eles promovidos pelo
tempo longo ou por arranjos situacionais que aparecem ora centrados mais
no sujeito, ora no meio.
A Psicologia Ambiental, desde sua origem, colocou-se como crítica a
uma visão que encapsula os sujeitos e os trata como desprovidos da força dos
contextos em que atuam e, ao mesmo tempo, afastou-se de abordagens não
comprometidas com o papel que os sujeitos também ocupam na produção
de seus meios de vida. Os movimentos internos à Psicologia recuperados
por Soczka (2005) para a narrativa sobre as origens da Psicologia Ambiental
evidenciam seus distanciamentos de perspectivas que não consideravam os

1  Agradecemos à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e à Coordenação


de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo financiamento das pesquisas desenvol-
vidas pelos/as integrantes do Laboratório de Psicologia Socioambiental e Práticas Educativas (LAPSAPE/
FFCLRP-USP).

75
Relações pessoa-ambiente na América Latina

sujeitos em seus ambientes. Contudo, em que pesem os avanços na cons-


trução de concepções não dicotômicas entre sujeito e meio na Psicologia
(e na Psicologia Ambiental), nem sempre elas vêm acompanhadas de seus
fundamentos ontológicos e, dessa forma, não raro, esses termos carecem
de definições, tanto na pesquisa como na intervenção.
Neste capítulo, apresentamos uma forma de inserção prática e em
pesquisa que promove intersecções da Psicologia Ambiental, Psicologia
Social, Psicologia do Desenvolvimento e Geografia, tendo como base a
epistemologia materialista histórico-dialética a sustentar nossas concepções
de sujeito (fundamentadas na teoria histórico-cultural vigotskiana) e meio
(identificado por nós como espaço, com inspiração nas contribuições de
Milton Santos). Essa forma alinha-se ao que Tassara e Ardans-Bonifácio
(2008) definem como Psicologia Socioambiental: “estudo de relações entre
seres humanos e circunstâncias histórico-culturais que condicionam suas
existências e são por elas condicionadas” (Tassara & Ardans-Bonifácio, 2008,
p. 128). Essa vertente teórico-metodológica defende o caráter inseparável
e interdependente entre sujeito e meio e propõe práticas pautadas pela
transformação social e pela compreensão de que os sujeitos e suas existências
se dão de forma situada, permeados pelo espaço, pela localidade e pela ter-
ritorialidade (Pinheiro & Silva, 2018; Tassara & Ardans-Bonifácio, 2008).
São esses fundamentos e este horizonte que nos impelem à construção
de uma proposta de inserção espacializada e territorializada da Psicologia,
a exigir o permanente e necessário diálogo com as demandas, os modos de
ação e o mundo material e simbólico de sujeitos concretos, constituídos
espaço-temporalmente.
Estudos e práticas em contextos rurais, urbanos e periurbanos, desen-
volvidos no Laboratório de Psicologia Socioambiental e Práticas Educativas
(LAPSAPE), atualizam paulatinamente nossos passos e conhecimentos
no enfrentamento aos desafios desse debate. Os resultados da práxis do
LAPSAPE, em diálogo com as ações em comunidades, provocaram a ne-
cessidade de leitura de processos simbólicos, práticas sociais e interesses
locais, mas também sinalizaram particularidades compartilhadas por grupos
socioculturais atravessados por forças e interesses globais. Ações coletivas e

76
Caminhos para uma inserção territorializada da Psicologia

educativas em territórios rurais e da reforma agrária, significações de comu-


nidades afetadas pelo modelo hegemônico de urbanização, deslocamentos
em virtude de “desastres” ambientais, apropriação do espaço por grupos
geracionais específicos, por exemplo, acenam para singularidades banhadas
por processos dinâmicos do local-global, de interesses e poderes diversos.

A necessária espacialização do sujeito

Lev S. Vigotski (1896-1934), fundamentado no método marxiano,


materialista histórico-dialético, e na crítica à Psicologia que se construía à
sua época, propõe a superação de compreensões dualistas e reducionistas,
expressas por meio de visões empiristas/mecanicistas ou idealistas/subje-
tivistas e por oposições interno x externo, biológico x social, individual x
social. Deriva da formulação vigotskiana o sujeito como ser social unitário,
não fragmentado, histórico, datado, concreto e marcado pela cultura,
constituído em um processo interativo possibilitado e mediado pela lin-
guagem (Alencar & Francischini, 2018; Freitas, 2003; Pinheiro & Silva,
2018; Vigotski (1929/2000).
No processo de desenvolvimento cultural do sujeito, de forma sin-
gular, ele apropria-se do mundo já objetivado nos aspectos que lhe são
significativos e, ao mesmo tempo, imprime nele sua marca e o modifica
(Vigotski, 2000). As objetivações promovidas pelo sujeito são ao mesmo
tempo produtos de apropriações já ocorridas e processos em constantes
atualizações nele e no contexto em que está (Zanella, Reis, Titon, Urnau,
& Dassoler, 2007).
Por essa perspectiva, a relação do sujeito com o meio não se dá de
forma direta, mas mediada e afetada por elementos e ferramentas (signos ou
instrumentos psicológicos) que se direcionam tanto para o mundo interno
do sujeito quanto para o externo (Alencar & Francischini, 2018; Pinheiro
& Silva, 2018). Assim, o meio, na teoria vigotskiana, é concebido não em
si, mas pelo “seu papel e significado, sua participação e sua influência no
desenvolvimento da criança” (Vigotski, 1935/2010, p. 682). Como alerta
Vigotski, ele não é absoluto, e sim relativo ao momento do processo histórico

77
Relações pessoa-ambiente na América Latina

de desenvolvimento do sujeito e, nesse sentido, é a relação sujeito-meio que


permite dizer sobre o papel do meio no desenvolvimento. É essa relação
como uma totalidade que Vigotski denomina de vivência (perejivanie).
A singularidade é produzida e expressa-se nessas relações, experien-
ciadas de formas diferentes por cada sujeito, uma vez que “na vivência,
nós sempre lidamos com a união indivisível das particularidades da per-
sonalidade e das particularidades da situação representada na vivência”
(Vigotski, 1935/2010, p. 686). Aqui, é necessário lembrar que a persona-
lidade deve ser compreendida de forma dramática, como “o conjunto de
relações sociais, encarnado no indivíduo (funções psicológicas, construídas
pela estrutura social)” (Vigotski, 1929/2000, p. 33), repleta de relações
e tensões cognitivas, emocionais, afetivas e volitivas, ligadas aos papéis
produzidos nas relações sociais, às suas funções reguladoras e às emoções
e afetos correspondentes que são, pela sua complexidade e pela dinâmica
social, também contraditórios.
Perejivanie é descrita por Vigotski como uma experiência concreta,
que envolve um trabalho de atribuição de significado e sentido do sujeito
(personalidade) aos elementos do meio que constituem a experiência.
Interessa assim “o ambiente em relação com a ação, a experiência e o de-
senvolvimento do sujeito”, uma vez que “é a experiência (perezhivanie2)
que a criança tem do ambiente, organizada pelo uso de significados (o
‘estímulo-meio’ socialmente construído), que constitui a essência do estudo
do ambiente” (Van der Veer & Valsiner, 1996, p. 343).
Pino (1993) discorre sobre esse processo lembrando que não se trata de
uma interação adaptativa do tipo organismo-meio, mas sim uma produção
social na qual o sujeito participa ativamente. Isso significa dizer que o sujeito
constitui e é constituído em um processo dinâmico e dialético no meio, esta-
belecendo vivências que, ao mesmo tempo, o tornam um ser social e singular.
Na superação vigotskiana de reducionismos e dicotomias, que pro-
põe o processo de constituição do sujeito destacado na sua característica

2  Os termos perejivanie e perezhivanie aparecem igualmente em textos sobre a obra de Vigotski para
se referirem ao que, em português, também foi traduzido como vivência.

78
Caminhos para uma inserção territorializada da Psicologia

dramática e eminentemente relacional ao meio, os significados e sentidos


atribuídos pelo sujeito ao meio sustentam-se em processos de significação
coletivos. A unidade subjetiva é dialeticamente múltipla e dinâmica e
sintetiza a relação sujeito-meio, eu-mundo, eu-outro, mediada na e pela
linguagem, nas formas e conteúdos das relações sociais. Nesse sentido, a
constituição do sujeito ocorre em dinâmicas intersubjetivas, configuradas
como locus de encontro, de confronto e campo de negociações de mundos
de significação tanto públicos quanto privados (Molon, 2011).
Esse reconhecimento remete-nos ao fato de que os elementos do meio
externo atuam como substrato para a sustentação dos significados sociais
e sentidos pessoais atribuídos pelo sujeito, que configuram e estruturam
culturalmente modos de pensar, sentir e agir. Como o próprio Vigotski
destaca, recorrendo a Deborin, “o pensamento sem o conteúdo é vazio”
(Vigotski, 1929/2000, p. 33, grifo do autor). É esse aspecto, do substrato
do meio, que nos impulsiona a compreender, além das formas (modos de
pensar, sentir e agir), também os conteúdos produzidos e circulantes nas
relações e interações sociais presentes no meio social, tornando necessá-
rios, consequentemente, investimentos para uma definição sobre o meio.
Considerar os elementos do meio, seus significados, seus conteúdos e seus
modos de produção pode ser profícuo para ampliar as possibilidades de
compreensão da própria constituição dos sujeitos e, consequentemente,
para uma inserção da Psicologia de maneira espacializada e territorializada.
Para Pino (2010), meio é um termo genérico, utilizado por diferentes áreas
e que, ao mesmo tempo, mostra-se vago e específico: refere-se às condições
ambientais necessárias à existência de qualquer organismo; determina condições
peculiares de cada espécie. No caso humano, de uma dependência direta das
condições naturais do meio, passou-se para um meio culturalmente adaptado.
Temos buscado compreender a relação sujeito-meio por um deslocamen-
to sujeito-espaço (Pinheiro & Silva, 2018; Silva, 2017), menos em virtude
do possível caráter vago do termo meio e mais pela potência e possibilidades
apresentadas pelo conceito de espaço. Este conceito permite discutir os modos
como atuam os conteúdos das relações sociais, seu passado, presente e futuro,
aspectos globais e locais, numa semântica que não apaga ou torna neutras

79
Relações pessoa-ambiente na América Latina

as relações entre os elementos materiais e simbólicos da vida dos sujeitos e


grupos. O conceito de espaço contribui para uma perspectiva dinâmica e
não abstrata da ação dos sujeitos na produção da vida e de seus territórios.
Nesse sentido, o espaço ganha destaque ao pensarmos a constituição
dos sujeitos encarnados em uma localidade e em uma temporalidade. As-
sim, sujeito e sociedade não existem no vazio temporal; o mesmo se dá em
relação ao espaço. É essa urgência para trazer o espaço como indispensável
nas explicações dos processos e produções sociais que mobiliza o chamado
giro espacial nas ciências (Boyer, 2007; Carlos, 2015; Velázquez Ramírez,
2013) e que tem aproximado a Psicologia a esse conceito.
Desde o sul global, temos nos apropriado do conceito de espaço de
Milton Santos (1926-2001) que, baseado no materialismo histórico e
em outras correntes, compreende-o não como um cenário ou como uma
paisagem para a ação humana, mas constituído e constituinte a partir das
trocas entre ambos; ele o concebe como uma “organização histórica que
abrange a totalidade da vida social” (Saquet & Silva, 2008, p. 33).
Santos (2014) define o espaço como o conjunto indissociável de sistemas
de objetos e sistemas de ações, compostos por elementos materiais e imateriais.
Esses sistemas formam uma unidade em constante interação e movimento,
isto é, transformam-se uns aos outros a todo momento pela história indivi-
dual e coletiva. Dessa forma, o espaço é concebido também indissociável do
tempo, concepção essa, segundo Harvey (2005), representada pela ideia de
espaço-tempo como uma unidade do real e da existência humana.
Os sistemas de objetos referem-se a toda materialidade presente no
meio natural e no meio técnico, isto é, o conjunto de objetos advindos da
história natural e do efeito das criações objetivas dos homens mediados pela
técnica. Já os sistemas de ações advêm das necessidades materiais e imate-
riais dos sujeitos associadas ao meio social, embutido de funções, relações
e comportamentos orientados por intenções e propósitos que conduzem
para a definição, a criação e o uso de objetos, das formas geográficas que
lhes atribuem sentido (Santos, 2014).
Em cada período histórico, os sistemas de objetos e os sistemas de
ações se renovam em conjugação ao movimento da sociedade que cria

80
Caminhos para uma inserção territorializada da Psicologia

novas funções, situações e formas. A sociedade e o sujeito, ao agirem sobre


o espaço enquanto realidade social, atribuem conteúdo às formas. Para
Santos (2014), forma-conteúdo aparecem fundidas, em uma compreensão
de unificação entre processo e resultado, sujeito e objeto, natural e social.
Dessa maneira, compreende-se o espaço geográfico como um híbrido
que contém em si significações sociais e físicas, perpassado por diversas
temporalidades. É o lugar de encontro entre passado, presente e futuro
em dado momento histórico (Santos, 2014).
Essa dinâmica do espaço se dá dialeticamente em diferentes escalas,
desde a formação socioespacial global aos territórios em uso e lugares,
que configuram a realidade como uma unidade, uma totalidade. Há um
movimento de análise e síntese que ocorre constantemente pela fragmen-
tação e recomposição do todo. A totalidade é compreendida, portanto,
pela realidade em sua integridade, o conjunto de coisas e pessoas que se
movimentam e se relacionam (Santos, 2014).
A técnica, um fenômeno histórico e a principal forma de relação entre
sujeito e meio, possui um papel importante para compreensão da unidade
entre tempo e espaço que se dá em diferentes escalas. Isso porque ela produz
espaço e tempo na medida em que age e transforma dado território, ao
mesmo tempo que percebe o espaço e o tempo pelas características instru-
mentais e sociais que são datadas em determinado momento histórico e
lugar (Santos, 2014), entendendo o lugar como o espaço da escala curta,
“escala da totalidade do cotidiano” (Queiroz, 2014, p. 5).
Por meio dos objetos, a técnica pode revelar as condições sociais, políticas,
econômicas, culturais e geográficas (que são históricas) da relação estabelecida
entre espaço e tempo tanto em escala global quanto local. O modo como as
técnicas são utilizadas e apropriadas pela sociedade pode destacar as desigual-
dades sociais que se dão nos territórios e entre os territórios. Exemplos disso
são a separação socioeconômica entre centro e periferia de uma cidade pela
detenção de algumas técnicas e o poder que determinados países impõem
sobre outros pela produção de um conhecimento tecnológico (Santos, 2014).
Para Santos, o território é a delimitação de uma área cuja existência é
marcada pela materialidade, tanto física quanto historicamente produzida

81
Relações pessoa-ambiente na América Latina

pela ação dos homens sobre a natureza. É uma configuração relativamente


imutável, mas não regular, de seus limites geográficos (estado-nação ou
região), e ao mesmo tempo, constituída por relações de poder e relações
sociais que articulam o espaço local e global perante as ações dos sujeitos.
São os atores sociais que atuam sobre o território e que, assim, criam
espaço (Santos, 2014; Saquet & Silva, 2008); os sujeitos espacializados
estão inscritos e se inscrevem no território e, cotidianamente, no lugar.
Sujeito-espaço é, portanto, atravessado por elementos de ordem mi-
cro e de ordem macro, em que um conjunto de forças globais e locais se
interconectam, evidenciando que a totalidade do espaço, os fragmentos
geográficos e a ação dos sujeitos são inseparáveis (Silva, 2017).
Uma vez que a Psicologia Socioambiental adota como objeto a “concre-
tude da experiência humana no ambiente” (Tassara, Rabinovich, & Goubert,
2004, p. 332) e define ambiente como “organização humana no espaço
total” (Tassara, 2005, p. 262), os conceitos de espaço e território tornam-se
instrumentais, pois criam uma lente que permite olhar, ao mesmo tempo,
a materialidade e a dimensão da constituição dos sujeitos e de processos
psicossociais. Nessa concretude, constrói-se também uma determinada
Psicologia, comprometida com sujeitos espacializados inscritos em e inscri-
tores de determinados territórios, forjados em uma localidade. Faz sentido
assim falar em uma Psicologia situada, pensada, por exemplo, desde uma
perspectiva latino-americana, que explica e cria processos e práticas, formas
e conteúdos posicionados deste lado e desta história do mundo globalizado.
Decorrem dessas concepções de sujeito, espaço e território implicações
metodológicas e desafios ético-políticos para a inserção espacializada e territo-
rializada da Psicologia. A seguir, apresentamos nossa proposta de inserção de
pesquisa e prática profissional nos territórios e, em seguida, traçamos alguns
apontamentos na direção dos desafios ético-políticos e seus enfrentamentos.

3. Uma Psicologia feita com os pés: caminhar no território

O interesse geral da inserção territorializada, a partir de nossas concep-


ções, circunscreve-se: aos significados e sentidos atribuídos pelos sujeitos,

82
Caminhos para uma inserção territorializada da Psicologia

espacializados e territorializados, às suas vivências; aos efeitos e possíveis


conflitos surgidos das forças uniformizadoras dos processos globais e das
forças criativas dos sujeitos do território.
O posicionamento primeiro é o reconhecimento de que, mais do que
conhecer o sujeito e o território, é necessário identificar o sujeito do território
(Tassara, 2013), o que implica que a Psicologia tome para si os processos
de constituição dos sujeitos e as dinâmicas psicossociais encarnados no
espaço, compreendendo que a sua ocupação relaciona-se dialeticamente
à produção das (inter)subjetividades: “as relações sociais e os sujeitos pro-
jetam-se, definem-se e sustentam-se em territórios” (Silva, 2017, p. 315).
A inserção territorializada prevê um movimento inicial que chamamos
Leitura Socioambiental, implicada na história de um território. Essa leitura é
sempre fruto de uma orientação intrinsecamente política, uma vez que, ao
organizarmos os procedimentos e a narrativa dessa, mobilizamos histórias
em disputa sobre o território. A Leitura Socioambiental desenha-se a partir
de desdobramentos fundados na nossa práxis combinados com a incor-
poração de algumas categorias e indicações propostas por Ferraro (2007)
para a construção do que denomina de Mapeamento Socioambiental no
âmbito da elaboração de programas de educação ambiental.
Do ponto de vista da estruturação das informações espaço-temporais,
propõe-se um conjunto de procedimentos e categorias que levantem e
organizem informações relativas a duas dimensões: diacrônica e sincrônica.
Na dimensão diacrônica, o eixo principal é a história em seus diferentes
tempos e níveis, em suas relações de coconstituição. Instrumentos e pro-
cedimentos são pensados para a produção de conhecimento por meio
do cruzamento da: história dos sujeitos (focada na singularidade, busca
elementos e narrativas sobre as vivências pessoais e coletivas e a vida dos
sujeitos baseada no lugar, suas histórias e relações no e com o território);
história da localidade (interessada no particular, reconstrói narrativas que
descrevem e significam a constituição das relações e dos espaços, os eventos
e acontecimentos, as referências materiais e simbólicas do local); história
da problemática (focada em processos gerais, construídos na história de
tempo longo, que constituem o campo/temática objeto de interesse e que

83
Relações pessoa-ambiente na América Latina

se atualizam no lugar e na vida dos sujeitos). Na dimensão sincrônica, o


eixo principal é o contexto, aquilo que está tecido junto. Busca-se cons-
truir um conjunto de informações que expressem a configuração atual dos
objetos e ações, as objetivações do território, as marcas, os elementos da
paisagem, levantando assim os determinantes materiais e simbólicos que
interagem no momento da inserção no território, como moradia, mobi-
lidade, espaços públicos, serviços de saúde e educação, classe econômica,
raça, idade, gênero.
Essa chave geral é incrementada com informações que discorrem sobre
três pontos, conforme proposto por Ferraro (2007): a Terra, o Homem e
a Mulher (preferimos chamar de Sujeitos, que melhor representa para nós
também o recorte geracional) e as Lutas. Relativa ao ponto Terra, a leitura
consiste em olhar para a história, para a socioeconomia, para o ambiente
e para as estruturas de apoio do território. Identificam-se os processos de
ocupação, as atividades produtivas desenvolvidas pelos sujeitos, as condi-
ções biofísicas e materiais dos espaços físicos existentes no território. Em
Sujeitos, a leitura propõe conhecer a base populacional, sua diversidade
e as instituições/movimentos daquele território, de forma a compreender
quem são as pessoas que vivem/trabalham ali, grupos geracionais e etários
predominantes, suas condições econômicas, questões de gênero, culturais,
religiosas e étnico-raciais, relação com o ambiente natural e construído. E
em as Lutas, são levantados os conflitos e sujeitos políticos daquele terri-
tório, perguntando-se quais são as problemáticas, entraves, necessidades
existentes, como as pessoas lidam com isso e, também, que estratégias
adotam e quais espaços coletivos de discussão e articulação integram o
território (Ferraro, 2007).
Esses referentes são submetidos a uma narrativa interpretativa que
destaca o território dos sujeitos e os sujeitos do território, o “aqui e agora”
a partir de sua constituição histórica, identificando horizontalidades (re-
sistências locais) e verticalidades (forças homogeneizantes) (Santos, 2001),
as objetivações e as subjetivações no território, os movimentos (ou não) de
apropriação, as identificações e os afetos, assim como as potencialidades
e as problemáticas desde a perspectiva dos sujeitos-espaços. No final do

84
Caminhos para uma inserção territorializada da Psicologia

processo, a Leitura Socioambiental sintetiza um emaranhado de pontos


costurados a partir da inserção, análise e interpretação do e no território.
Para a realização da Leitura Socioambiental, um conjunto de ins-
trumentos mediadores são utilizados para: (a) promover a relação do(a)
pesquisador(a)/psicólogo(a) com o território; (b) mobilizar significados e
sentidos nos sujeitos do território.
No primeiro caso, para a apreensão inicial do território, dois movi-
mentos distintos e complementares são propostos: a deriva urbana (Jacques,
2005; Jolé, 2005) e desenvolvimentos para contextos periurbanos e rurais
(Pinheiro, 2018); e a observação de pontos no espaço, que também pode
ser chamada de “olhar ambiental”, conforme proposto por Campos-de-
-Carvalho3 (2007). A deriva consiste em uma relação com o território não
orientada previamente, realizada no caminhar, de uma interação guiada
pelos próprios elementos do espaço e que proporciona uma apreensão
corporal e sensorial. Ela é registrada contendo as impressões e afetações,
os sentimentos de segurança, de familiaridade ou de estranhamento, de
acolhimento ou o incômodo de estar no território, as marcas dos sujeitos
no espaço. A observação/olhar ambiental, contrariamente, sistematiza
um olhar na dinâmica social que se dá em um espaço fixo e exige atenção
aos detalhes e ao conjunto de relações sociofísicas que ocorrem ali. Exige
fixar-se em um ponto no espaço para apreender como as pessoas agem,
observando o feixe de relações que indicam os papéis ali desenvolvidos, os
usos por gênero, raça, idade e geração, a qualidade e as características das
relações, as formas de tratamento, os impedimentos e as obrigações. Além
desses dois instrumentos, outros mediadores podem compor a leitura inicial
no caminho do conhecimento do território, permitindo apreensões das
significações sobre o mesmo, como, por exemplo, a análise de documentos,
sites, blogs e banco de informações oficiais.
Para o segundo objetivo, de mobilização dos significados e sentidos dos
sujeitos do território, constituem instrumentos mediadores, por exemplo,

3  Campos-de-Carvalho, M. I. (2007). Notas de conferência sobre o Olhar Ambiental como técnica


da Psicologia Ambiental. Registros não publicados da disciplina Psicologia Ambiental, Departamento
de Psicologia, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.

85
Relações pessoa-ambiente na América Latina

as entrevistas de história de vida baseada no lugar, as conversas rápidas


com moradores sobre o território, os grupos de discussão, a elaboração de
desenhos, o uso de fotografias, a elaboração de mapas cognitivos e afeti-
vos, o poema fotográfico, o itinerário e o percurso comentado propostos
respectivamente por Petiteau e Pasquier (2001) e Thibaud (2001), que
têm inspirado procedimentos que potencializam processos psicossociais
relativos às memórias e aos afetos das pessoas com os seus lugares. Estes
procedimentos também promovem o caminhar no território e permitem
que os sujeitos compartilhem com o pesquisador(a)/psicólogo(a) suas
impressões, histórias e relações com o lugar de forma multitemporal,
podendo ser relativas ao que já foi vivido ali, ao que se vive e também às
expectativas em relação ao futuro. Nesse sentido, há complexificação da
dimensão temporal no momento dessa vivência, uma vez que passado,
presente e futuro se imbricam à medida em que as pessoas se movem pelos
lugares escolhidos e contam suas histórias e seus dramas neles construídos.
Vale destacar que o princípio orientador da inserção territorializada
da Psicologia é o diálogo constante com as demandas, a cultura e as ações
dos sujeitos territorializados, de forma que a inserção seja ela mesma, des-
de seu início, mobilizadora, promotora da participação e de um trabalho
colaborativo com os sujeitos do território.
A partir da inserção territorializada, a ação investigativa ou profissional
é delineada conforme os objetivos construídos sobre o objeto da pesquisa e a
problemática a ser transformada. As escolhas de instrumentos nesse deline-
amento dependem de especificidades da problemática/objeto, podendo ser
pontuais ou prolongadas, a depender do movimento do objeto de estudo e/
ou dos interesses dos sujeitos do espaço e das demandas que se apresentam.
No caso da investigação científica, os movimentos iniciais da Leitura
Socioambiental auxiliam na definição do objeto de estudo e na construção
dos objetivos de pesquisa, que também são revisitados ao longo de todo o
processo e podem contar com a colaboração de reflexões dos participantes
sujeitos do território.
No caso da ação profissional diante de uma problemática socioam-
biental, a participação dos sujeitos é facilitada desde que o conjunto de

86
Caminhos para uma inserção territorializada da Psicologia

informações e as análises da realidade tenham sido feitos a partir do pro-


gressivo envolvimento da comunidade. Articular as necessidades sentidas
da comunidade com suas forças, potencialidades e desejos possibilita que
a inserção territorializada caminhe para a organização coletiva em torno
da problemática socioambiental identificada. Nesse sentido, é necessário
pontuar que, se os movimentos iniciais da Leitura Socioambiental podem
ocorrer a partir de interesses próprios da Psicologia, seus desdobramentos em
termos de ação só podem se dar em virtude das demandas e problemáticas
que os sujeitos assim as identificam, mesmo que em sua aparência. Existe
aqui um princípio para a definição dos problemas a serem trabalhados: o
programa da ação e seus instrumentos devem ser construídos conjunta-
mente e revisitados ao longo de todo o processo.
Em síntese, metodologicamente, a inserção territorializada requer
movimentos de uma Psicologia que caminha: deslocar-se para o e no terri-
tório; conversar e fazer junto com os sujeitos do território; dedicar tempo
às pessoas; observar as atividades e os tempos; conhecer as estruturas de
serviços e os equipamentos públicos e privados; conhecer como se movem e
como se fixam os sujeitos no lugar; ver e partilhar o espaço em movimento
e em uso; enfim, implicar-se e descrever/sentir o espaço em seus sistemas
de objetos e sistemas de ações.

Enfrentando os desafios da inserção territorializada

As referências teórico-metodológicas da proposta apresentada de


inserção territorializada da Psicologia colaboram para a superação de
dilemas presentes em explicações, acerca dos processos psicossociais, que
hipervalorizam ou as forças globalizantes ou as culturas, potencialidades
e resistências locais. Acompanhar territórios rurais e (peri)urbanos, em
especial por período prolongado, permite compreender a complexidade
dessa relação, no jogo entre universal, particular e singular. No encontro
com os sujeitos e comunidades localizados espaço-temporalmente, o global
e o local se imbricam. Se as forças hegemônicas se fazem presentes nos
territórios, a escuta e a leitura dos novos possíveis, produzidos pela força

87
Relações pessoa-ambiente na América Latina

social e política própria, informam a emergência de sujeitos e coletivos que


sucumbem e também resistem ao modelo hegemônico (Tassara, 2016). No
meio técnico-científico-informacional que configura nossa era globalizada
(Santos, 2001, 2014), modelos contra-hegemônicos, no lugar, cotidiana-
mente ensaiam insurgir diante de padrões que desrespeitam as diferenças e
produzem desigualdade e exclusão (eixo norte x eixo sul; centro x periferia;
riqueza x pobreza).
Nessa perspectiva, é necessário reconhecer que o movimento de
conservação/transformação dos sujeitos e comunidades depende de um
processo sociopolítico ancorado em um espaço-tempo e em um processo
psicossocial. Esse movimento é ele mesmo a expressão do território, pois
dele depreendem-se as territorialidades presentes na localidade, os modos
como os sujeitos o usam, produzem e exercem nele relações de poder.
É nesse movimento que compreendemos a inserção da Psicologia,
pela pesquisa e pela ação, comprometendo-nos também como novos/as (e
estrangeiros/as) sujeitos naquele território, e assumindo responsabilidades
ético-políticas dessa inserção.
A primeira dessas responsabilidades consiste no compromisso com a
promoção do bom encontro com o lugar, na plenitude do que o encontro
possa significar, a partir do investimento em processos de construção de
vínculos. Essa produção não é abstrata, mas orientada pela complexidade
que os conceitos de território e de sujeitos assume a partir de nossas refe-
rências teórico-metodológicas.
Partir do território, como campo de ação de múltiplos sujeitos, com
interesses conflitantes e por vezes antagônicos, torna a identificação da posição
social, da função e dos interesses dos demandantes da ação da Psicologia tarefa
intrínseca à inserção. Assim, as lealdades da nossa atuação/pesquisa devem
ser explicitadas desde o início, as quais são orientadas por compromissos da
Psicologia com os direitos humanos, a promoção do desenvolvimento de
pessoas, grupos e comunidades, as práticas de emancipação e a desconstru-
ção de relações de dominação. Esse movimento reconhece que, embora não
sejamos sujeitos do território, somos sujeitos no território, que carregam
referências na mobilização de conhecimentos e concepção de mundo.

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Caminhos para uma inserção territorializada da Psicologia

Considerar os sujeitos como múltiplos, concretos e dramáticos exige


entender que estar com grupos e coletivos é também defrontar-se com
contradições emergentes nem sempre objeto da pesquisa ou da ação. São
comuns processos de atuação/pesquisa que, como efeitos secundários,
expõem concepções de gênero, geracionais ou etárias, étnico-raciais e
de classe reprodutoras de relações de subalternidade, de dominação e de
preconceito. Lidar com o interesse principal da pesquisa ou atuação e com
esses efeitos é um compromisso que necessita ser manejado, por vezes exi-
gindo reorganizações e renegociações ou mesmo a criação de novas ações
voltadas para essas novas demandas dialogadas com nossas lealdades éticas
e políticas. Estar no território desde essa concepção de sujeito implica
saber colocar-se no conjunto das relações não apenas conflituosas, mas
também emergentes. Os sujeitos territorializados, concebidos como drama,
movimento e vida, desafiam as práticas e pesquisas da Psicologia a uma
postura sempre flexível e atenta à escuta das novas demandas que exigem,
por vezes, o abandono de ações originalmente planejadas.
No caso da atuação, também o seu tempo, quando longo (e em parti-
cular se efetivada com os mesmos sujeitos), cria desafios próprios, relativos
ao papel da Psicologia na localidade e ao paradoxo da vinculação e da
autonomia necessária para não gerar relações de dependência, contrárias
a processos de emancipação social. Construir bons vínculos e cuidar de
processos que promovam a autonomia dos grupos e comunidades exigem
escolhas cuidadosas de procedimentos e instrumentos mediadores dos
encontros que a ação promove. A construção da sustentabilidade afetiva
comporta exatamente a dialética entre vinculação e autonomia.
Cabe dizer que os instrumentos devem ser pensados cuidadosamente
para servir de fomento aos processos de vinculação entre os sujeitos, de
mobilização, envolvimento e participação, uma vez que, em geral, os
territórios da pesquisa e da atuação caracterizam-se por situações de vio-
lação de direitos, ausência de políticas públicas, desigualdades no acesso
a bens materiais, ausência de poder na sua gestão, enfim, dificuldades
que minam as práticas organizativas de coletivos e grupos. Na atuação,
conhecer a história dos problemas, despertar sonhos para pensar o presente

89
Relações pessoa-ambiente na América Latina

e o futuro, manter vínculos com as lideranças, buscar apoio de agentes de


mobilização, diversificar linguagens e formas de comunicação, fomentar
as aplicações das temáticas no dia a dia da comunidade, criar condições
para a diversificação dos lugares de fala, manter frequência de encontros,
criar relações de confiança, associar cada ação aos sentidos e significados
para os sujeitos e suas vidas, por exemplo, orientam a escolha, a constru-
ção e a mobilização dos instrumentos (simbólicos) e métodos utilizados e
detalhadamente preparados para cada encontro.
Todos esses desafios e seus enfrentamentos não são, contudo, abstratos.
Eles são produzidos a partir dos processos contemporâneos de produção
do espaço total e da geopolítica do conhecimento. É necessário então fazer
o movimento inverso: do território aos processos globais.
Nesse momento da globalização e do capitalismo, são recriados e
renovados os fenômenos que, de certa forma, unificam os fragmentos de
territórios, mas, ao mesmo tempo, não eliminam suas especificidades porque
é próprio do capitalismo distribuir-se de modo a produzir desigualdades,
mesmo que, ao projetar dinâmicas particulares em distintos territórios e
lugares, estes estejam obrigados a produzir diferentes estratégias de enfren-
tamento à globalização como fábula e como perversidade (Santos, 2001).
Wiesenfeld e Giuliani (2004) e Lapalma (2001) discutem como a
globalização nos moldes atuais, considerada um espaço-contexto, com a
promessa de trazer melhorias e qualidade de vida para a sociedade e di-
minuir as distâncias entre países/culturas, possibilitou a intensificação de
um discurso neoliberal que promove a transnacionalização e volatilidade
do capital, alavancando as privatizações, precarização do trabalho, desem-
prego, aumento das desigualdades sociais, migrações, privação econômica
e social, gerando uma série de exclusões sociais e efeitos psicossociais de-
sencadeados pela mesma, com uma incidência peculiar nos países e povos
da América Latina.
Nesses países, os grupos economicamente desfavorecidos são impe-
didos de participar de processos sociopolíticos e econômicos de gestão
do território que afetam diretamente suas vidas. A questão da terra, a
reforma agrária, a demarcação de terras indígenas, a luta dos camponeses,

90
Caminhos para uma inserção territorializada da Psicologia

o avanço de modos de ocupação do solo pautados na expansão do capital,


a produção do espaço urbano, a mercantilização de bens naturais como a
água, o modelo de produção de energia pautado na degradação ambiental,
a fragilidade na oferta de serviços públicos, por exemplo, são problemáticas
que atuam nas (inter)subjetividades, posicionando-as geopoliticamente
em extremos conflituosos e provocando exclusões sociais significativas nos
pontos mais frágeis e desprovidos de poder. Lapalma (2001) argumenta
que tais exclusões ocorrem quando os sujeitos não possuem meios para
participar dos processos produtivos, quando são impedidos de exercer ou
regular o exercício de poder, através do estabelecimento de normas, deveres
e direitos sociais e, por fim, quando são impossibilitados de expressar seus
valores, aspirações e significados atualizados pela educação, religião, rituais
tradicionais e meios de comunicação.
Estar inserido nesse modelo marcado pelas desigualdades e exclusões
e por um processo dinâmico e complexo de crises socioambientais e incer-
tezas sociais e econômicas obriga-nos, como sujeitos latino-americanos, a
todo instante, a nos redefinir, transformando-nos e transformando nossas
“relações intra e intersubjetivas no sócio-ambiente” (Tassara, 2016, p.
18). Isto evidencia que a produção de singularidades e particulares de
uma localidade dá-se em um jogo das tensões e forças que não permi-
te às localidades saírem ilesas das relações estabelecidas com as lógicas
mundializantes. É nessa dinâmica que ocorre a inserção espacializada e
territorializada da Psicologia.

Considerações finais

A proposta de uma inserção territorializada da Psicologia assenta-se


em uma concepção de sujeito espacializado, concreto, constituído nas
múltiplas determinações que conformam sistemas de objetos e sistemas
de ações. Essa visão colabora para que sujeitos e comunidades locais sejam
compreendidos em constituição dinâmica, caracterizada por processos
globais que incidem nas localidades e, ao mesmo tempo, pela recriação e/
ou resistência a esses processos a partir de um papel ativo dos seus sujeitos.

91
Relações pessoa-ambiente na América Latina

Essa inserção traz responsabilidades ético-políticas que nos aproximam


da visão epistemológica e da práxis da Psicologia defendida por Martín-Baró
(1986/2011), para o qual é a partir do povo e de sua história latino-a-
mericana (marcada por opressões) que a transformação da realidade deve
se efetivar junto à desideologização de práticas configuradas no discurso
hegemônico, pelo resgate da memória histórica e pela potencialização das
virtudes dos sujeitos, dos territórios e de suas relações.
A inserção territorializada da Psicologia traduz-se, assim, como uma
necessidade-compromisso impulsionada pela adoção de referenciais que
ampliam nossos olhares para os sujeitos e incorporam as dinâmicas, os con-
teúdos e as formas de produção do espaço, em diferentes escalas, de modo
a politizá-la e a contribuir para espaços/sujeitos democráticos, resistentes
e participativos. Inseridos nas localidades, os sujeitos revestem-se de um
triplo papel no meio em que vivem e nas problemáticas socioambientais:
são vítimas, agentes causadores e agentes de transformação (Kruse, 2004).
Daí a importância da promoção dos sujeitos como agentes de transformação
e das suas ações interventivas em escala local, já que no micro, partindo da
análise macro, é onde ocorre a urgência da transformação. Nesse movimento
dialético entre micro e macroprocessos, os sujeitos atuam como media-
dores de transformação da concretude de suas vidas, territórios e lugares
nos quais estão inseridos, modificando seus modos de sentir, pensar e agir.
Para compreender a constituição dos sujeitos, suas dimensões psicos-
sociais e como produzem a vida, a atuação profissional e a pesquisa em
Psicologia devem partir dos territórios em que estão inseridas. Os caminhos
aqui apresentados indicam algumas possibilidades para essa abordagem,
ainda vislumbrando necessários desdobramentos. Pôr-se em movimento
no território é um início para essa construção.

92
Caminhos para uma inserção territorializada da Psicologia

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Capítulo IV

Das raízes do indivíduo burguês:


Odisseu, nostalgia e a dominação da natureza
Gustavo Martineli Massola
Pedro Fernando da Silva

A Psicologia Ambiental e o problema das relações pessoa-


ambiente

A área do conhecimento que estuda as relações pessoa-ambiente, também


conhecida como psicologia ambiental, encontra-se imersa em uma
indefinição conceitual que merece ser considerada mais detidamente. Além
de não haver definições precisas para termos como enraizamento, apego
ao lugar, identidade de lugar e pertencimento, entre outros, os próprios
termos centrais, pessoa e ambiente, parecem ambíguos e indefinidos. Valera
(1996) afirma, num conhecido texto introdutório, que uma das questões
fundamentais da área diz respeito à “multiplicidade de maneiras de enten-
der as relações entre as pessoas e os ambientes físicos (como uma unidade
indissolúvel, unidirecionalmente, bidirecionalmente)” (p. 2).
Parte dessa aparente indefinição vem da imagem de ciência adotada mui-
tas vezes nesta área. Para muitos autores, a pesquisa empírica, o levantamento
sistemático e rigoroso de dados, será suficiente para superar as indefinições
conceituais e teóricas que ela experimenta. Isso não nos parece o bastante.
A pesquisa empírica é fundamental para a compreensão da realidade, mas
o sentido dos dados não pode ser derivado automaticamente dos próprios
dados. Apenas a teoria é capaz de orientar a análise e a interpretação empírica
e apenas uma teoria sensível à variação histórica dos dados pode indicar seu
sentido (Horkheimer & Adorno, 1973). O presente capítulo parte da teoria
crítica da sociedade (Horkheimer, 1991) para avaliar a relação entre esses
dois polos, pessoa e ambiente, e apresentar uma interpretação sobre por que

97
Relações pessoa-ambiente na América Latina

essa relação aparece como algo tão problemático no campo da Psicologia


Ambiental. Para isso, partiremos das reflexões de Adorno e Horkheimer
(1944/2006), dois dos autores maiores da teoria crítica, sobre a obra Odisseia
e sobre a figura de Odisseu, considerado pelos autores como personagem
fundamental para compreender a relação entre cultura e natureza e, para
nós, para compreender como se constitui historicamente a relação entre
pessoa e ambiente. Gostaríamos de defender que só é possível avançar na
compreensão dessa relação quando admitimos o caráter contraditório,
histórico e dialético da realidade.
O próprio texto de Valera (1996) permite exemplificar o problema
mencionado. Ele parte do conhecido trabalho de Altman e Rogoff (1991),
que define quatro visões de mundo dominantes na psicologia ambiental,
a individualista, a interacionista, a organísmica e a transacional, que eles
também denominam de perspectivas. Em princípio, essas visões de mundo
diferem fundamentalmente em suas concepções sobre as relações entre
pessoas e ambientes. Apesar do valor da taxonomia proposta pelos autores,
ela talvez não possa senão levar a uma antinomia.
Na visão individualista, a atenção está centrada na pessoa, e seu de-
senvolvimento é visto como uma sucessão de processos internos a ela
mesma, quase sem interferência ambiental. A psicanálise aparece como um
exemplo dessa abordagem, ao menos naquelas vertentes que enfatizam o
desenvolvimento da personalidade como um processo de sucessão de etapas
quase predefinidas. Visões interacionais (ou interacionistas) subjazem às
abordagens dominantes da psicologia contemporânea. Tratam processos
psicológicos, settings ambientais e fatores contextuais como entidades
que operam e se definem independentemente. Fatores antecedentes
afetam ou produzem variações nos processos psicológicos, tipicamente
de forma unidirecional. A visão interacionista adota como unidade de
análise, assim, “a pessoa e o ambiente”, e seu objetivo seria a busca de
relações causa-efeito entre variáveis para a previsão e controle de com-
portamentos e processos psicológicos. As visões de mundo organísmicas
definem a psicologia como o estudo de sistemas psicológicos dinâmicos
e holísticos, nos quais os componentes pessoa e ambiente exibem influ-

98
Das raízes do indivíduo burguês: Odisseu, nostalgia e a dominação da natureza

ências e relações complexas e recíprocas. A unidade de análise é o sistema


integrado. O sistema como um todo (whole) é orgânico e não mecânico.
Aqui se busca descobrir princípios “orgânicos” (Altman & Rogoff, 1991,
p. 20) que regulam a operação do sistema e que são universais para uma
classe de fenômenos. Essa perspectiva entende que os sistemas lutam por
manter ou atingir estados ideais por meio de seus processos organísmicos.
Um exemplo consignado para essa perspectiva é a epistemologia genética
de Piaget. A visão transacional (iremos nos basear na síntese disponível em
Massola, 2020) define a psicologia ambiental como o estudo das “relações
variáveis entre aspectos psicológicos e ambientais de unidades holísticas”
(Altman & Rogoff, 1991, p. 24). A unidade de análise psicológica é consti-
tuída por entidades holísticas, como eventos envolvendo pessoas, processos
psicológicos e ambientes. O todo transacional não é composto por elementos
separados, mas pela confluência de fatores inseparáveis que dependem uns
dos outros para sua própria definição e para seu significado. Os aspectos
de um sistema, “ou seja, pessoa e contexto”, coexistem e definem “conjun-
tamente um ao outro, contribuindo para o sentido do evento holístico”
(Altman & Rogoff, 1991, p. 24). O organismo é permeado inteiramente
pelo ambiente. O organismo não termina na superfície da pele, mas pene-
tra no próprio ambiente. A mudança é inerente ao sistema. Observadores
em diferentes localizações, com diferentes características e perspectivas,
interpretam diferentemente o mesmo evento. Os observadores são, assim,
inseparáveis do fenômeno. Autores que servem de exemplo para a visão
transacional são Gibson (2015) e Lewin (1973).
A escolha entre essas diversas perspectivas, tendo todas produzido
importantes contribuições teóricas e metodológicas ao campo da psico-
logia ambiental, parece exigir uma eleição em tudo artificial, pela qual,
ou bem descartamos perspectivas que já mostraram seu valor, ou bem as
hierarquizamos umas em relação às outras em um campo no qual qualquer
pretensão de existência de verdadeiros paradigmas (Kuhn, 2013) é no mí-
nimo ingênua. Mas talvez a cada momento histórico devamos considerar
formas diferentes de relação entre indivíduos e ambientes. Essa relação pode
mudar ao longo do tempo, está na história e é permeada por processos de

99
Relações pessoa-ambiente na América Latina

dominação entre as pessoas, e entre as pessoas e a natureza. Assim, talvez


essas perspectivas indiquem possibilidades históricas realmente existentes
em momentos distintos da história e que subsistem de formas variadas.
Acompanhar o processo histórico pelo qual indivíduos se relacionam com
a natureza ou o ambiente, se distinguem ou se aproximam da natureza,
talvez permita superar a necessidade de eleger uma perspectiva que, de
forma reificada, devesse representar de uma vez por todas essa relação.
Isso indicaria que apenas a observação da variação histórica do objeto nos
permitiria conhecer suas determinações de forma mais precisa.

Do que trata a Odisseia

Duas obras marcaram a aurora da civilização ocidental e o advento


de seu cânone literário (Bloom, 1994; Lourenço, 2018): Ilíada e Odisseia.
Compostas por volta do século VIII a.C., narram, a primeira, um episó-
dio da Guerra de Tróia centrado no herói Aquiles, e a segunda, o trajeto
final do longo e tortuoso retorno de Odisseu à sua casa, após vinte anos
de ausência de sua amada ilha de Ítaca (Martin, 2014), da qual partiu
para lutar na mesma guerra. De Homero, o rapsodo a quem se atribui a
autoria de ambas, pouco se sabe, talvez sequer tenha existido (Lourenço,
2018). Odisseu (também chamado de Ulisses na versão latinizada de seu
nome), um guerreiro, aparentemente, em tudo inferior aos seus mais
valorosos companheiros, manejava com incomparável destreza o arco e a
flecha, arma na qual o combate se faz a distância, sem contato físico com
o inimigo, e, portanto, com menor exercício de virilidade. Renunciou,
recém-casado, à companhia de Penélope, a esposa muito amada, e de um
filho ainda pequeno, chamado Telêmaco, ou “lutar longe” (Martin, 2014)
– referência tanto a seu longo afastamento de casa quanto à sua arma de
predileção – para seguir seus companheiros helenos em uma guerra que
ele mesmo não desejara e que tudo fizera para evitar.
O herói da Odisseia era um guerreiro corajoso, habilidoso, valioso
no campo de batalha. Mas era outra a característica que o distinguia
dos demais guerreiros. Diante dos formidáveis Aquiles, Ajax, Heitor,

100
Das raízes do indivíduo burguês: Odisseu, nostalgia e a dominação da natureza

Agamenon, Odisseu elevava-se por sua astúcia. Nisso, chegava próximo


de rivalizar com sua deusa protetora, Atena (Martin, 2014). Astúcia, ou
métis, é um epiteto frequentemente aplicado a Odisseu, a quem o poema
chama de polimétis – literalmente, possuidor de grande inteligência astu-
ta – ou de politropos – o muitas-vias (Pucci, 1998). A artimanha que pôs
fim à Guerra de Troia, o cavalo de madeira dado como oferta aos deuses
e aparentemente abandonado na praia em frente à cidade, foi invenção
de Odisseu. Muitas-vias pode indicar sua longa e acidentada trajetória
para casa, através de terras estranhas e longínquas. O prefixo poli indica
pluralidade, multiplicidade. Odisseu, porém, também era possuidor de
um arsenal de ideias e de caminhos, era capaz de encontrar meios para
resolver problemas onde outros mortais não veriam nenhuma passagem.
Se ele é, indubitavelmente, o protagonista da Odisseia, não é impossível
que também seja o protagonista da Ilíada e de todo o ciclo épico troiano
(Manfredi, 2014). Odisseu era um exemplo da mais importante virtude para
o mundo grego, a prudência, a temperança ou a moderação (sophrosyné),
e a Ilíada tem como tema a cólera de Aquiles, o momento em que o herói
sucumbe a uma reação desmedida, à húbris (Chauí, 2018), que o lança
em irremediável desgraça diante dos deuses. De todo modo, a prudência
de Odisseu destaca-se especialmente diante de seus companheiros de luta.
Ele representava, e talvez ainda represente, uma espécie de ideal. Capaz
de renunciar aos prêmios imediatos em busca de objetivos mais elevados
e estáveis, o herói abdicou de disputar a mão de Helena, posteriormente
a causadora da guerra, em prol da paz entre os reinos da Grécia. Numa
brevíssima conversa com a jovem, divisou através de sua estonteante be-
leza que aquele que a desposasse não atrairia para si senão a desgraça. E
Helena trouxe a ruína para muitos reinos gregos ao abandonar marido e
filho e partir para Tróia junto com Páris, por quem se apaixonara. Odisseu
encontrou na prima de Helena um amor que ultrapassava as aparências,
se assim pudermos dizer, de forma um tanto anacrônica. Resistiu aos en-
cantos de Helena, que o teria desejado. Resistiu aos encantos das sereias
em seu caminho de volta para casa. Resistiu, ainda durante sua jornada, a
entregar-se ao doce esquecimento na terra dos lotófagos, que viviam para

101
Relações pessoa-ambiente na América Latina

os prazeres imediatos. Jamais deixou de resistir aos prazeres efêmeros em


benefício da obediência aos costumes, da memória dos antepassados, do
culto aos deuses, dos deveres da hospitalidade aos estrangeiros, da honra
na guerra, do respeito à família, da lealdade entre guerreiros.
Ilíada e Odisseia nunca deixaram de ser lidas. Pode-se dizer que os
gêneros literários do Ocidente já se encontram ali, plenamente desdobra-
dos ou ainda em embrião. São a semente da educação do jovem grego da
época clássica, e contra elas ergue-se o intelecto de Platão, que as baniu de
sua República ideal. Alexandre o Grande, inventor arcaico da globalização
do Ocidente, dormia com a Ilíada sob o travesseiro e a erigiu em símbo-
lo maior da sofisticação da cultura grega, que se espalhou pelo mundo.
Dante buscou medir-se contra Odisseu (Bloom, 1994). Joyce encontrou
ressonâncias de Odisseu em seu herói. O mundo Ocidental é grego do
fio do cabelo aos dedos dos pés, e o mundo grego é, em grande medida,
o mundo de Homero.

O sentido do retorno de Odisseu e a transformação da


natureza em ambiente

Se, como se pode depreender da magnifica interpretação elaborada


por Horkheimer e Adorno (1944/2006), dentre os sentidos da Odisseia
encontra-se o de representar alegoricamente o confronto do ser humano
com as forças descomunais da natureza que lhe infundia medo e ameaçava
objetivamente a sua autoconservação, constituindo-se como a própria
dialética da civilização, o retorno de Odisseu à sua pátria implicou a
transformação tanto do ser humano – que nesse percurso aprendeu a se
autoconservar, valendo-se do emprego astucioso de seu conhecimento
para dominar essas monstruosas forças da natureza, transfiguradas em
criaturas mitológicas de grande poder destrutivo como o ciclope Polifemo
e as sedutoras sereias, que ameaçam sua existência como que por meio
de uma imediatidade – quanto também da própria natureza da qual ele
mesmo provinha e a qual carregava dentro de si como uma ameaça interna
aos desafios que se apresentavam à sua capacidade de sobrevivência. Esse

102
Das raízes do indivíduo burguês: Odisseu, nostalgia e a dominação da natureza

confronto com a natureza ameaçadora por meio da qual ela é convertida


em objeto dos estratagemas de Odisseu nos remete a uma das mais antigas
formulações da dialética:

Heráclito diz em alguma passagem que todas as coisas se movem e


nada permanece imóvel. E, ao comparar os seres com a corrente de
um rio, afirma que não poderia entrar duas vezes num mesmo rio
(...). Heráclito retira do universo a tranquilidade e a estabilidade,
pois é próprio dos mortos; e atribui movimento a todos os seres,
eterno aos eternos, perecível aos perecíveis. (Platão, Crátilo, DK 22
A, citado por Souza, 1996)

O nostos, a viagem de retorno de Odisseu de Tróia a Ítaca, depois


dos dez anos consumidos pela guerra épica na qual houvera se populari-
zado herói mais por sua astúcia, empregada no estratagema do cavalo de
Tróia, do que pelo vigor físico típico de seus contemporâneos Aquiles e
Ajax, diz respeito tanto ao processo por meio do qual Odisseu superou
a natureza, aprendendo a dominá-la e, com isso, a conservar a própria
vida, quanto ao sentido que a natureza adquiriu para ele. Pode-se dizer
que se afastando de uma relação imediata com as expressões da nature-
za, Odisseu nomeou-as e as interpretou com sentidos humanos. Nesse
mesmo processo de controle daquelas forças descomunais, também pôs
em marcha um processo de apropriação de sua presença material, retiran-
do-a da imediatidade e modificando seu sentido. Odisseu redescobriu a
natureza. A narrativa épica das astuciosas estratégias por meio das quais
soube se proteger e dominar as fantásticas criaturas e situações que se
interpuseram em seu percurso de retorno a Ítaca constitui não somente
uma alegoria acerca da dominação da natureza, mas indica também que
essa dominação a transformou em algo para o humano, transformou-a
em ambiente. Não mais pura natureza, experimentada por meio da
imediatidade, mas natureza dominada e convertida em ambiente para o
humano, no qual ele pode ou não se reconhecer.
A dificuldade de descrever a natureza primeira dos seres humanos é
parte da dificuldade maior de recuperar e descrever a natureza primeira

103
Relações pessoa-ambiente na América Latina

em geral, correspondente ao mundo físico no qual existimos, como se ele


pudesse ser compreendido como um ser em si. Ela nos recorda os limites
do alcance do conhecimento humano, observados por Kant (1781/2015),
quanto a podermos conhecer a coisa em si. Não apenas não podemos
conhecer a coisa em si, mas somente nos aproximamos dela por meio da
projeção que já a modifica e a captura como objeto para nossa percepção
(Horkheimer & Adorno, 1944/2006), como também a natureza não pode
mais, desde Odisseu, ser conhecida em si mesma; ela somente existe para
nós como objeto capturado pela interpretação que a nomeia e a dota de
sentido humano. Esse processo de dominação e apropriação da natureza
converte-a em algo mais que pura natureza, converte-a naquilo que comu-
mente se busca compreender sob a insígnia “ambiente”. Ao redescobrir a
natureza, Odisseu criou o ambiente.
A passagem de Odisseu e de seus marujos pelo estreito entre Cila, a
criatura monstruosa não subestimada por ele que sabia tratar-se de um
flagelo invencível diante da qual sucumbiriam muitos de seus companheiros,
e o mortal redemoinho, Caribdes, capaz de tornar a sobrevivência quase
impossível, demonstra não apenas a capacidade de Odisseu de dominar
seu temor diante da iminência da morte e da dor provocada pela perda de
seus companheiros, mas também o que Werner (2014) considerou mo-
tivo de admiração: “o estranho e fascinante mundo que conhecemos por
meio dele” (Werner, 2014, seção 732). As poderosas correntes marítimas
às quais Odisseu sobreviveu foram magistralmente narradas por Homero
como criaturas míticas. Foi assim que, segundo a epopeia, Odisseu as co-
nheceu, enfrentou e venceu. Essas expressões do poder de uma natureza
primeira, cuja imediatidade está perdida para todo o sempre, somente
podem ser descritas como mito. O mito, que foi uma forma rudimentar
do esclarecimento e que melhor demonstrou sua capacidade de domina-
ção é, nesse caso, também uma apropriação da natureza e sua conversão
em ambiente humano. Horkheimer e Adorno (1944/2006) observaram
essa propriedade da epopeia homérica e dela derivaram elementos para
compreensão do processo por meio do qual o herói astucioso se revelou o
protótipo do indivíduo burguês:

104
Das raízes do indivíduo burguês: Odisseu, nostalgia e a dominação da natureza

A impossibilidade, por exemplo, de escolher uma rota diversa da


que passa por entre Cila e Caribde pode ser compreendida de ma-
neira racionalista como a transformação mítica da superioridade
das correntes marítimas sobre as pequenas embarcações da An-
tiguidade. Mas, nessa transferência objetualizadora operada pelo
mito, a relação natural entre força e impotência já assumiu o cará-
ter de uma relação jurídica. Cila e Caribde têm o direito de reclamar
aquilo que lhes cai entre os dentes, assim como Circe tem o direito
de metamorfosear quem quer que não seja imune a sua mágica,
ou Polifemo o direito de devorar seus hóspedes. Cada uma das
figuras míticas está obrigada a fazer sempre a mesma coisa. Todas
consistem na repetição: o malogro desta seria seu fim. Todas têm
os traços daquilo que, nos mitos punitivos do inferno – os mitos
de Tântalo, de Sísifo, das Danaides –, se fundamenta no veredicto
do Olimpo. São figuras da compulsão: as atrocidades que cometem
representam a maldição que pesa sobre elas. A inevitabilidade mí-
tica é definida pela equivalência entre essa maldição, o crime que
a expia e a culpa que dele resulta e reproduz a maldição. A justiça
traz até hoje a marca desse esquema. No mito, cada ponto do ciclo
faz reparação ao precedente e ajuda assim a instalar como lei as
relações de culpa. É a isso que se opõe Ulisses. O eu representa a
universalidade racional contra a inevitabilidade do destino. (p. 56)

O processo que propiciou a constituição do eu apoiou-se na capacidade


de Odisseu de romper com o ciclo compulsivo que caracteriza a natureza;
o qual também se manifestou na inevitabilidade mítica, que identificada
e conhecida por Odisseu, lhe permitiu lográ-la. Ele bem soube adaptar-se
às situações limites a que fora exposto, “amoldando-se resignadamente à
natureza” para, então, lográ-la.
Com isso, pode-se formular a hipótese de que Odisseu inventou o
ambiente por meio da dominação da natureza. Supõe-se, então, que a
análise desse processo pode nos auxiliar na busca por maior precisão do
conceito de ambiente adotado pela psicologia ambiental. Logo, imbuídos
dessa complexa e necessária tarefa de discutir a relação dos indivíduos com
a natureza, mas cientes das limitações que uma conceituação estagnada
de qualquer um desses termos comportaria, não permitindo superar as
limitações ora vigentes no campo da psicologia ambiental, conclamamos a
observar a relação entre indivíduo e ambiente sob o prisma talvez inusual,

105
Relações pessoa-ambiente na América Latina

circunscrito a partir de considerações teóricas apoiadas na análise desen-


volvida por Horkheimer e Adorno (1944/2006) a respeito do processo
histórico de formação do indivíduo moderno. Por meio da interpretação
da Odisseia, esses autores propuseram que Odisseu seria o protótipo do
indivíduo burguês e assumiram sua trágica viagem de retorno à Ítaca, o
nostos, como uma alegoria do processo por meio do qual se constituiu
como indivíduo.

Odisseu como protótipo do indivíduo burguês

Sem dúvida, um dos principais problemas delimitados pela psicologia


ambiental, para além da compreensão da relação abstrata entre pessoa e
ambiente, é compreender as razões da continuidade do modo destrutivo
com que o indivíduo contemporâneo – desdobramento regredido do
indivíduo burguês que pôde se desenvolver principalmente a partir da
sociedade individualista do século XIX, na medida em que adquiriu uma
autonomia relativa e ajustada aos interesses liberais da época – se relaciona
com o ambiente, tratando-o como objeto de dominação, que pode ser
explorado, para além de todos os limites, como fonte de acumulação de
capital e manutenção do poder econômico, apesar da reprodução muitas
vezes inócua dos programas educativos de conscientização e preservação do
ambiente. A reificação do ambiente, conforme se observa no desmatamento
descontrolado de áreas com um incomensurável patrimônio biocultural, na
extração inconsequente de material mineral ou vegetal para fins puramente
mercadológicos, na emissão irresponsável de gases e de demais substâncias
tóxicas e na subsequente destruição indiferente e irreversível de ecossistemas
complexos que permitiriam descobrir novas formas de convivência do ser
humano com as demais formas de vida existentes no planeta, consiste em
um problema ambiental diretamente articulado com a condição das pessoas
que a propiciam ou se acomodam diante dela. Nesse sentido, compreen-
de-se que não há como discutir a respeito dos processos de destruição da
natureza senão mediante a reflexão sobre as condições psicológicas das
pessoas que executam esses processos. Menos ainda, poder-se-ia efetuar

106
Das raízes do indivíduo burguês: Odisseu, nostalgia e a dominação da natureza

programas de conscientização sobre os danos irreversíveis assim produzidos


ou de resistência a esse processo aparentemente descontrolado sem tam-
bém se considerar os fatores que contribuiriam para que os seres humanos
superassem a postura de dominação em relação às demais forma de vida.
Embora cada etapa do processo descrito na Odisseia represente desafios
do processo de individuação filogeneticamente experimentados pelo ser
humano, a indissociabilidade das experiências de Odisseu de sua finalidade
reiterada, que era retornar à sua pátria, onde possuía uma identidade espe-
cifica e relações que a sustentavam, permeou seus esforços diante das várias
circunstâncias que viveu, sobretudo diante daquelas que lhe seduziram a se
esquecer desse objetivo. Como uma das hipóteses deste capítulo, supomos
que essa mediação do desejo de retorno à pátria no processo de constituição
do indivíduo moderno indica a importância do ambiente referencial para o
sujeito em formação e que, ademais, as próprias aventuras experimentadas
por Odisseu em relação às criaturas míticas que durante todo o percurso
ameaçaram a sua vida seriam representações das forças da natureza contra
a qual digladiou para assegurar sua autoconservação. Se, de um lado, seu
lugar de referência, para o qual se empenhou em retornar corresponde ao
ambiente no qual se reconhece como alguém, de outro, as forças da natureza
que o desafiam compõem ambientes novos, desconhecidos, mas que, uma
vez experimentados, passaram a fazer parte de seu eu recém-adquirido.
A perspectiva que ora intentamos esboçar a partir da referência à Odis-
seia se articula com o entendimento de que pessoa e ambiente relacionam-se
bidirecionalmente, pois Odisseu somente assegura a sua sobrevivência na
medida em que aprimora habilidades intelectuais que lhe permitem so-
brepujar as forças da natureza que o ameaçam. Sua relação com a natureza
é de dominação; portanto, determinava o modo como o meio deveria
ficar disposto a suas necessidades. Não obstante, o desenvolvimento dessa
capacidade de ludibriar as forças superiores da natureza que o oprimia,
autoconservando-se, fora determinada pelas condições ambientais a que
estava exposto. O ambiente estava presente na determinação de seu objetivo
principal de retorno à pátria e também na determinação do desenvolvimento
das habilidades que lhe assegurariam executar esse objetivo.

107
Relações pessoa-ambiente na América Latina

Todavia, na medida em que não há mais ambientes absolutamente natu-


rais, isentos da interferência humana motivada pelo interesse na dominação,
pode-se constatar que a disparidade de força entre indivíduo e sociedade
se estende também para a relação que os seres humanos mantêm com a
natureza, ou seja, com o ambiente. A despeito do processo de dominação
exercido por Odisseu em relação à natureza, inclusive a dele próprio, a qual
precisou conter para, então, poder empregar os astuciosos estratagemas que
lhe permitiram controlar as ameaças que o cerceavam, essas mesmas forças
impuseram-lhe um modo específico de subjetivação; seu eu refletia as pos-
sibilidades materialmente determinadas por aquelas forças. Tal como o ser
humano contemporâneo que se encontra subjugado pela totalidade social
e a ela reage regredindo em sua individualidade para assim se conservar,
Odisseu pôde reagir individuando-se, pois assim podia conservar sua vida.
Em ambas as situações, embora haja determinação bidirecional, a sociedade
ou o ambiente têm primazia diante do particular coagido.
A narrativa homérica a respeito do retorno de Odisseu a Ítaca eternizou
a alegoria essencial da formação do indivíduo moderno. O processo por
meio do qual o herói grego, que já na Ilíada se tornou notório mais por
sua habilidade intelectual do que por sua destreza ou força física, também
se destacou pelo controle dos impulsos, um exercício de comedimento ou
temperança muito valorizado no mundo grego antigo, que possibilitou a
Odisseu dominar a sua natureza interna. A dominação da natureza externa
pressupunha a habilidade de decifrar o código compulsivo da repetição
manifestada pelas criaturas míticas, e Odisseu se mostrou astuto no exercício
dessa habilidade, tornando-se, de fato, o mais destacado dentre os heróis
pelo uso da razão. Todavia, a execução dessa habilidade antes requereu
dele o desenvolvimento da capacidade de conter tanto o medo quanto os
impulsos que o empurrariam à entrega ao prazer lascivo que o aprisionaria
a seus próprios desejos e à ira que o levaria aos enfrentamentos físicos em
situações nas quais provavelmente seria aniquilado por seus oponentes fisi-
camente mais poderosos. Odisseu soube conter esses impulsos, sobretudo
a entrega aos prazeres, em vários momentos essenciais de sua jornada. Um
dos primeiros desafios que teve de enfrentar a esse respeito foi a sedutora

108
Das raízes do indivíduo burguês: Odisseu, nostalgia e a dominação da natureza

possibilidade de permanecer na terra dos lotófagos, compartilhando com


eles a felicidade semelhante à dos narcóticos que se valem de substâncias
químicas para suportar os infortúnios que a injusta realidade social lhes
impõe. Conforme observaram Horkheimer e Adorno (1944/2006), a
permanência dentre os lotófagos, os comedores da doce e inebriante planta
do lótus, não implicaria que Odisseu e seus companheiros se tornassem
vítimas da agressão externa, mas, sim, vítimas de seus próprios impulsos,
de modo a permanecerem ali entregues àquele prazer e esquecidos de seus
objetivos: “A única ameaça é o esquecimento e a destruição da vontade. A
maldição condena-os unicamente ao estado primitivo sem trabalho e sem
luta na ‘fértil campina’” (p. 59).
O autocontrole de Odisseu sobre seus próprios impulsos permitiu-lhe
exercer também seu poder de controle sobre os demais que o acompanhavam.
Esse controle de si mesmo permitiu a ele fazer uso da força para conter e
reordenar seus marujos, preservando, com isso, o objetivo da viagem, que
era retornar à pátria e à família:

Todo aquele que comesse o fruto meloso do lótus não desejava ser-
vir de mensageiro nem retornar, mas preferia lá mesmo, com os
varões lotófagos, comendo lótus, permanecer e esquecer o retorno.
A eles, que choravam, conduzi às naus, à força, e, nas cavas naus,
empurrando-os sob os bancos, prendi; e aos outros ordenei, leais
companheiros, que sem demora embarcassem nas rápidas naus
para ninguém do lótus comer e do retorno esquecer. (Homero,
2014, seção 4094)

O controle sobre os impulsos de seus marujos fora exercido por Odisseu


e não por eles próprios como ele fizera a si mesmo. Essa qualidade estoica
de abdicar dos prazeres em prol da retidão moral lhe permitiu manter, na
memória imediata, o objetivo principal de sua viagem e também, sob suas
ordens e implicado nesse objetivo, o trabalho dos que lhe acompanhavam
e assegurariam enfrentar os desafios ulteriores.
A renúncia pulsional representada nessa passagem parece não apenas ter
se repetido infinitas vezes na história filogenética da civilização repressiva,
mas, também, manifestar-se cotidianamente no processo ontogenético

109
Relações pessoa-ambiente na América Latina

básico de constituição do eu, que requer a substituição do princípio do


prazer pelo princípio de realidade. A mesma habilidade de autocontrole foi
manifestada por Odisseu no enfrentamento ao ciclope Polifemo quando,
vulnerável na caverna dessa criatura antropófaga, precisou conter tanto seu
temor quanto sua ira ao presenciar o ciclope devorar vivos alguns de seus
mais queridos companheiros. Ciente de sua inferioridade física perante a
força descomunal do gigante e, além disso, de sua impotência em relação
ao aprisionamento na caverna da qual não conseguiria sair sem a força do
ciclope, Odisseu negou sua própria identidade e o heroísmo iliádico em
uma magistral artimanha que assegurou a ele e aos demais saírem vivos da
emboscada fatal. Ofereceu vinho ao ciclope de modo a embriagá-lo, apre-
sentou-se com um nome falso que não permitiria à fera bradar por ajuda
contra o lendário Odisseu e cegou-o, tornando-o incapaz de capturar os
prisioneiros, mas ainda apto a abrir o acesso à caverna obstruído por uma
rocha somente movimentada por braços tão fortes quanto os de Polifemo:

Num átimo, porém, a inteligência de Odisseu – aparentemente fa-


lha por tê-lo conduzido a uma arapuca – arma um plano genial, em
cujo centro está a absoluta negação do que é representado no he-
roísmo iliádico: Odisseu autodenomina-se Ninguém, o oposto do
herói que em momentos de luta aguerrida, gosta de bradar nome
e linhagem. Esse falso nome vai confundir os outros ciclopes, que,
alertados por Polifemo, já cego, não compreendem o que ele diz e o
abandonam. (Werner, 2014, p. 743)

Horkheimer e Adorno (1944/2006) ponderaram que Odisseu soube


cumprir o estatuto mítico, insinuando-se como prenda para, então, ludi-
briar o algoz assim vencido pela astúcia humana. Nessa passagem, tanto o
autocontrole, expressão da dominação da natureza interna, antes manifes-
tada em relação à sedução por ficar entregue ao esquecimento na terra dos
lotófagos, quanto o controle da ira diante do agressor que devorou alguns de
seus companheiros, ameaçando devorar a todos, indica o desenvolvimento
em Odisseu de um eu superior à natureza e capaz de dominá-la tanto em
si mesmo como nos outros, inclusive como expressão de uma força mais
poderosa e indômita. O estratagema do nome foi destacado por esses

110
Das raízes do indivíduo burguês: Odisseu, nostalgia e a dominação da natureza

autores como uma paráfrase da habilidade de Odisseu de se assemelhar


ao amorfo, de mimetizar a natureza a ser dominada:

A assimilação da ratio ao seu contrário, um estado de consciência


a partir do qual ainda não se cristalizou uma identidade estável e
representado pelo gigante trapalhão, completa-se, porém, na astú-
cia do nome. Ela pertence a um folclore muito difundido. Em grego
trata-se de um jogo de palavras; na única palavra que se conserva
separam-se o nome – Odysseus (Ulisses) – e a intenção – Ninguém.
Para ouvidos modernos, Odysseus e Oudeis ainda têm um som se-
melhante, e é fácil imaginar que, em um dos dialetos em que se
transmitiu a história do retorno a Ítaca, o nome do rei desta ilha era
de fato um homófono do nome de Ninguém. O cálculo que Ulisses
faz de que Polifemo, indagado por sua tribo quanto ao nome do cul-
pado, responderia dizendo: “Ninguém” e assim ajudaria a ocultar o
acontecido e a subtrair o culpado à perseguição, dá a impressão de
ser uma transparente racionalização. Na verdade, o sujeito Ulisses
renega a própria identidade que o transforma em sujeito e preserva
a vida por uma imitação mimética do amorfo. Ele se denomina Nin-
guém porque Polifemo não é um eu e a confusão do nome e da coisa
impede ao bárbaro logrado escapar à armadilha: seu grito, na medi-
da em que é um grito por vingança, permanece magicamente ligado
ao nome daquele de quem quer se vingar, e esse nome condena o
grito à impotência. (Horkheimer & Adorno, 1944/2006, pp. 62-63)

Ao derrotar a entidade mítica por meio do astuto emprego da razão,


Odisseu assegurou a sua autoconservação imediata, mas principalmente
inaugurou a dinâmica que depois se converteu no processo de formação
do indivíduo moderno. Conforme observaram Horkheimer e Adorno
(1944/2006), Odisseu se tornou o protótipo do indivíduo burguês preci-
samente porque as estratégias por meio das quais se conservou denotam
a um só tempo a capacidade de diferenciação e de autoconsciência neces-
sárias para a autodeterminação e a força de espírito típica do dominador
burguês que submete os demais a seus próprios interesses. A relação com a
natureza e as relações sociais se entrecruzam de modo que nem a natureza
é mais pura natureza, mas sempre natureza transformada em natureza para
o ser humano, sobretudo por meio da dominação propagada nas relações

111
Relações pessoa-ambiente na América Latina

sociais, nem a sociedade existiria senão como reação às forças ameaçadoras


da natureza primitiva, cuja ameaça infundia o medo que a civilização se
empenhou em controlar. Nesse sentido, pode-se considerar que o conceito
de ambiente corresponde à intersecção dessas duas esferas essenciais e não
reconciliadas da existência humana: a natureza, ainda subjugada, mas do-
tada de alto poder de reação destrutiva, e a sociedade imbuída do espírito
totalitário que mantém e impõe a dominação como forma da relação das
pessoas umas com as outras e com a natureza.
O indivíduo burguês é aquele que conserva o ímpeto dominador de
Odisseu e repete ad infinitum a manifestação dessa partícula não recon-
ciliada da natureza ainda presente na racionalidade humana. Regredidas
na sociedade de massas, as pessoas sequer conseguem atingir a condição
de indivíduos outrora realizada pelo indivíduo burguês típico do século
XIX, sucumbem à massificação e ao irracionalismo, tornando-se parte de
uma totalidade social opressiva que os despersonaliza. Foi por constatar
a imensa debilidade a que os indivíduos ficaram relegados na sociedade
capitalista tardia que Adorno (1955/2015) admitiu a paradoxal precisão do
termo psicologia social. O mesmo talvez possa ser considerado em relação
a outro termo composto: psicologia ambiental. Somente quando as pessoas
puderem desenvolver plenamente a sua individualidade, conquistando a
autodeterminação, é que poderão superar a dominação da qual pensam
depender ontologicamente. Então, talvez, tornem-se efetivamente indiví-
duos e a natureza presente neles mesmos e no ambiente no qual convivem
possa ser efetivamente apaziguada.

112
Das raízes do indivíduo burguês: Odisseu, nostalgia e a dominação da natureza

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Relações pessoa-ambiente na América Latina

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114
Capítulo V

A construção da classe
trabalhadora nos processos de
territorialização
Guilherme Paim Mascarenhas

Introdução

Resistir às imposições do regime capitalista que subjugam as necessida-


des humanas é agir de forma intencional e, para isso, é preciso ação coletiva
consciente e organizada. No entanto, a construção da classe que pode se
contrapor à ordem vigente (a classe trabalhadora) encontra barreiras em
seu processo de constituição. Ainda que a complexificação da dinâmica do
capital tenha promovido a fragmentação objetiva no âmbito do trabalho e
subjetiva enquanto classe, contraditoriamente, essa mesma dinâmica cria
tensões comuns que podem unificar a organização das(os) trabalhadoras(es)
em torno de um projeto político emancipatório. Como fenômeno geográfico,
a territorialização do capital confronta modos de vida que, em alguma medida,
enfrentam os efeitos desse processo. Nesse sentindo, no momento em que
a dinâmica de acumulação capitalista invade o solo das(os) trabalhadoras
em seu sentindo ampliado, também surgem conflitos de ordem espacial e
é no processo de luta que a formação da classe, em seus aspectos objetivos
e subjetivos, pode acontecer. Em suma, este trabalho ensaia uma discussão
sobre a relação entre o processo de constituição territorial capitalista e o
processo da formação da classe trabalhadora.
Território é uma espécie de manifestação espacial da vida humana
estudada por diversas áreas do conhecimento e pode ser abordada a partir
de sua expressão cultural, econômica, histórica, segundo os processos de
subjetivação que ocorrem na relação com o ambiente etc. Para o geógrafo
brasileiro Milton Santos (2007), o que define um território é o seu uso.

115
Relações pessoa-ambiente na América Latina

Dessa maneira, sua determinação depende das relações sociais esta-


belecidas num determinado período histórico. Por exemplo, antes da
construção de embarcações capazes de atravessar os oceanos não havia
como dominar uma “fatia” do mar ou pensar em controle de espaço
aéreo antes das aeronaves (Gottmann, 2012). Além disso, os diferentes
modos de vida dos agrupamentos humanos estabeleceram, ao longo da
história, relações com o espaço das mais variadas naturezas. E um dos
princípios dessa dinâmica que cria espaços singulares é a divisão do
trabalho (Santos, 2006).
Para reproduzir-se socialmente, o que inclui necessidades do corpo
e do espírito (Marx & Engels, 1932/2007), o ser humano transforma a
natureza a partir de seu trabalho e esse metabolismo pode ser organizado
de diversas formas. Um modo comum de estabelecer relação com o meio é
a divisão do trabalho entre as(os) integrantes de um agrupamento humano.
Historicamente, o desenvolvimento e complexificação da divisão social do
trabalho tem origens e caminhos distintos, mas foi sempre acompanhado por
mudanças nos processos de apropriação e dominação do espaço. A divisão
do trabalho no capitalismo introduziu elementos novos que transformaram
não apenas a forma, mas a essência da organização social que o germinou.
Sob o regime da propriedade privada dos meios de produção, uma massa
de despossuídos tornaram-se “livres” para vender sua única mercadoria: a
força de trabalho (Marx & Engels, 1932/2007).
Se no estágio de consolidação do capitalismo europeu o teto da fábrica
congregava um grande contingente de pessoas com atividades comuns e
interligadas, atualmente, as formas de “ganhar a vida” são as mais diversas e
ocorrem em diferentes localidades. Isso não quer dizer que as pessoas estejam
mais dispersas, ao contrário, as cidades concentram hoje a maior parte da hu-
manidade. No entanto, a constante necessidade de transformação do modelo
produtivo do capital é acompanhada de inovações tecnológicas e de modelos
de gestão que consigam disciplinar a força de trabalho; uma forma oportuna
de gerir o proletariado. Nesse cenário, a fragmentação das estruturas produti-
vas em unidades menores e mais flexíveis necessariamente altera o terreno de
organização das(os) trabalhadoras(es) e da burguesia (Antunes, 2006).

116
A construção da classe trabalhadora nos processos de territorialização

Em economias da periferia do capitalismo, como a do Brasil, a orga-


nização da classe trabalhadora enfrenta ainda a situação histórica, segundo
Costa (2010), de superexploração de sua força de trabalho. Para ela “a de-
socupação, o subemprego, o trabalho informal, o emprego regulamentado,
mas de baixíssimos salários e poder de barganhar, são problemas centrais na
sociedade brasileira” (p. 187). Nessa situação, qual a natureza da organização
de quem trabalha sem direitos garantidos ou por conta própria? E quanto
aos trabalhos reprodutivos (limpeza da casa, preparação de alimentos,
cuidado de filhos ou pessoas que precisam de acompanhamento etc.), em
sua maioria realizado por mulheres (Melo & Castilho, 2009)? Será que as
organizações tradicionais contemplam as(os) desalentadas(os), a população
em situação de rua, as(os) sem-terra, enfim, todas(os) aquelas(es) que, de
uma forma ou de outra, estão a serviço do capital? Certamente este texto
não conseguiria esgotar todas as discussões possíveis que essas questões
levantam. O objetivo deste trabalho é destacar o elemento das classes so-
ciais presentes nos processos de territorialização. Para isso, o caminho a ser
percorrido passa pela transformação da divisão do trabalho no capitalismo
e de suas implicações nos processos de territorialização e de organização
coletiva. Ressalta-se que não se trata de um movimento que segue apenas
uma direção. Visto que, da mesma forma que a divisão do trabalho impõe
divisões territoriais, logo, condições específicas para a conformação da
classe trabalhadora, as formas já estabelecidas de organização social desta
também conduzem o processo de territorialização do capital.

A divisão do trabalho e a organização da classe


trabalhadora

Segundo Marx e Engels, o início da história humana pressupõe duas


condições básicas: a existência corporal de indivíduos e o necessário in-
tercâmbio “com o restante da natureza” (Marx & Engels, 1932/2007, p.
87). Mas, diferentemente dos outros seres orgânicos, o ser humano cria
coisas que não estão naturalmente disponíveis. Os objetos de sua atividade
“contam” histórias de como vivem ou viveram determinados agrupamentos

117
Relações pessoa-ambiente na América Latina

e civilizações, seus rituais, suas formas de reprodução material e espiritual


(subjetiva). Aliás, seria essa separação que evidenciaria a consolidação da
divisão do trabalho; nas palavras de Marx e Engels (1932/2007, p. 35) a
“divisão do trabalho só se torna realmente divisão a partir do momento
em que surge uma divisão entre trabalho material e [trabalho] espiritual.1”.
No resgate histórico das formas anteriores de divisão do trabalho até
chegar ao regime do capital que aparece na Europa, Marx (1867/2013)
observa que as primeiras configurações tinham como parâmetro o aspecto
mais fisiológico, como idade e sexo, além de serem restritas ao âmbito de
agrupamentos familiares ou tribos. Essa divisão se acentua “com a expansão
da comunidade, com o aumento da população e, especialmente, com o
conflito entre as diversas tribos e a subjugação de uma tribo por outra”
(Marx, 1867/2013, p. 478).
Segundo o autor supracitado, o que era inicialmente “espontâneo”
passa a fazer parte de uma totalidade de produção mais ampla. Assim,
ao passo que começam a depender mais da relação de troca, os “órgãos
internos” que compunham uma determinada comunidade começam a
se desprender do corpo tribal original e passam a ligar-se com órgãos de
outras formações sociais criando um organismo diferente. Essa conexão
ocorre primordialmente por meio da troca, situação em que os trabalhos
combinados de uma tribo são comparados e negociados com a produção
de outras. O processo de troca altera o trabalho das comunidades natu-
ral-espontânea que antes atendia exclusivamente às necessidades locais. O
que diferenciava os produtos nessas formas primitivas de mercado era a
capacidade produtiva advinda das condições “naturais” e organizativas de
grupos distintos. Aos poucos, a divisão social do trabalho se complexifica
e diversifica os instrumentos (os meios) e os próprios trabalhadores que
formam ofícios distintos. A criação de uma cadeia cada vez mais variada
de produção de mercadoria é o solo fértil para o modo de produção ca-

1  A expressão “espiritual” refere-se à dimensão subjetiva do indivíduo. No contexto da frase, enten-


de-se que, no momento em que a divisão do trabalho permite que algumas(ns) trabalhadoras(es) se
dediquem à produção imaterial (procedimentos religiosos, tarefas ligadas a educação, filosofia, política
etc.), é que ela se encontra consolidada.

118
A construção da classe trabalhadora nos processos de territorialização

pitalista. No entanto, sob esta ordem, a divisão social do trabalho ganha


novos contornos.
A divisão no interior das manufaturas capitalistas pode ser confundida
com um aprofundamento da divisão social, mas elas guardam essências
distintas. Enquanto as divisões sociais anteriores eram fundamentadas em
relações entre produtores independentes a partir da troca dos objetos do
trabalho como mercadoria, a mercadoria que conecta os trabalhadores de
uma empresa manufatureira é a força de trabalho. Na divisão do interior
das empresas capitalistas, a mercadoria só é produzida pelas diferentes for-
ças dos trabalhadores parciais combinadas pelo dono do empreendimento
como outros insumos necessários à produção (Marx, 1867/2013). E, assim,
geram o lucro a partir do trabalho que não é pago. Trata-se, portanto, de
“um tipo específico de propriedade privada, aquela que exclui o trabalhador
direto da posse dos meios de produção” (Mattos, 2019, p. 52).
O desenvolvimento da manufatura quebra, aos poucos, as formas
anteriores de organização social do trabalho que limitam seu crescimento.
Havia leis para limitar, por exemplo, o número de “aprendizes” que um
mestre de um ofício poderia ter. Isso ocorria pelos interesses recíprocos
dissolvidos entre as(os) trabalhadoras(es) que resistiam, deliberadamente,
às insinuações do capital comercial que batiam à porta. Como Marx
(1867/2013, p. 485) traz, “o mercador podia comprar todas as merca-
dorias, menos o trabalho como mercadoria”. No entanto, por mais que
as empresas manufatureiras fossem proprietárias das ferramentas e maté-
rias-primas, as(os) trabalhadoras(es) controlavam as habilidades de feitura
das mercadorias. Essas condições criam um ambiente de conflito entre os
capitalistas e a classe-que-vive-do-trabalho que se desdobra na dimensão
disciplinar e técnica no trabalho. A insubordinação, principalmente das(os)
mais habilidosas(os), aparece como obstáculo a ser vencido. Não por acaso,
a introdução de novas fontes energéticas e de maquinário que “suprassume
… a atividade artesanal” (Marx, 1867/2013, p. 494) cria uma nova forma
de ajustamento do trabalho social.
O desenvolvimento da indústria supera, segundo Marx, as bases da
produção manufatureira que se assentava sobre o fazer artesanal a partir

119
Relações pessoa-ambiente na América Latina

da venda da força de trabalho. Sua inovação se dá, sobretudo, pelo do-


mínio dos meios de trabalho que, sob comando do capital, ditam novos
ritmos, habilidades, conhecimentos a serem adquiridos, principalmente,
subjugam quem vive do trabalho. A cadeia de máquinas, apropria-se da
combinação das(os) trabalhadoras(es) e suas ferramentas na atividade
laboral, assumindo um modelo de disciplina e precisão técnica a ser
seguido. No entanto, o trabalho “congelado” em forma de máquina
ainda precisa do trabalho de indivíduos vivos para sua operação. Por
mais que tente desprender-se das(os) trabalhadoras(es), a expansão da
grande indústria faz crescer o operariado.
Combinada pelas “mãos” do capital, a divisão do trabalho não res-
ponde mais aos interesses distribuídos de trabalhadoras(es) independentes,
mas à necessidade de acumulação privada. Desse modo, a divisão impacta
as pessoas que vivem do trabalho como algo que vem de fora; como algo
estranho. “Cada vez mais o homem se vê obrigado a utilizar técnicas que
ele não criou, para produzir para outros aquilo de que não tem necessidade
ou que não tem os meios de utilizar” (Santos, 2003, p. 138). Nesse cená-
rio, o indivíduo é “desmembrado” em capacidades específicas necessárias
à produção, alienado2 do que produz, dos meios para produzir, de si, dos
outros, do humano; dividido por necessidade de domínio de seu fazer, por
questões disciplinares, por estarem próximos. O processo de estranhamento
varia, no entanto, de acordo com o momento histórico do capital e das
especificidades locais.
Esse movimento pode ser observado nas mudanças ocorridas no mo-
delo de produção taylorista-fordista na década de 60 e 70. Nesse período,
o capital enfrentava limitações que foram respondidas com padrões mais

2  Segundo Bottomore (1988, p. 6), a alienação é “ação pela qual (ou estado no qual) um indivíduo,
um grupo, uma instituição ou uma sociedade se tornam (ou permanecem) alheios, estranhos, enfim,
alienados [1] aos resultados ou produtos de sua própria atividade (e à atividade ela mesma), e/ou [2] à
natureza na qual vivem, e/ou [3] a outros seres humanos, e - além de, e através de, [1], [2] e [3] - tam-
bém [4] a si mesmos (às suas possibilidades humanas constituídas historicamente). Assim concebida, a
alienação é sem pré-alienação de si próprio ou autoalienação, isto é, alienação do homem (ou de seu ser
próprio) em relação a si mesmo (às suas possibilidades humanas), através dele próprio (pela sua própria
atividade). E a alienação de si mesmo não é apenas uma entre outras formas de alienação, mas a sua
própria essência e estrutura básica”.

120
A construção da classe trabalhadora nos processos de territorialização

flexíveis de acumulação de capital, o que significou, em última análise,


maior intensidade de exploração da classe trabalhadora (Antunes, 2002).
Enquanto uma das experiências mais proeminentes desse contexto, o
toyotismo se caracterizou por direcionar a produção para a demanda, ter
equipamentos que automatizam ainda mais os processos fracionados e re-
petitivos, portanto, que exigem um(a) trabalhadora(or) mais qualificada(o)
e polivalente. Além dos movimentos corporais, a subjetividade é acionada
enquanto parte imaterial da força de trabalho, o que não significa um tipo
identificação de quem trabalha com o produto de sua atividade. Por mais
que seja um modelo de organização mais horizontal e participativo, o
“saber-fazer” das(os) trabalhadoras(es) atende aos interesses das empresas
capitalistas (Antunes, 2002).
Nesse cenário, o aparente domínio dos processos produtivos por parte
das(os) trabalhadoras(es) inseridas(os) em modelos mais flexíveis de acu-
mulação contrasta com a maior intensidade de exploração de sua força de
trabalho. Ao passo que se cria uma “elite” de proletários intelectualizados
e estáveis, gera-se também uma parcela de subproletariados “presente nas
formas de trabalho precário, parcial, temporário, subcontratado, ‘terceiri-
zado’, vinculados à ‘economia informal’, entre tantas outras modalidades
existentes” (Antunes, 2006, p. 70). Nesse sentido, de acordo o autor, as
diversas dimensões de estranhamento que fazem parte do capital não
desaparecem com a formação de trabalhadores supervisores de máquinas;
mudou de forma, mas manteve-se em sua essência.
O sucesso da integração do modelo de acumulação flexível não se
limita apenas à organização das tarefas de trabalho. Em um cenário de
aprofundamento da fragmentação e heterogeneização da classe-que-vive-
-do-trabalho, os sindicatos são enfraquecidos, quando não são totalmente
cooptados pela empresa. A dispersão da classe em questão ocorre também
pela ampliação das relações de assalariamento do setor de serviços que
emprega grande parte das(os) trabalhadoras(es) até hoje. Antunes (2006)
aponta que, mesmo fazendo parte de diferentes “campos” da reprodução do
capital, os setores econômicos estão interligados. Em suma, essas mudanças
no mundo do trabalho criam uma espécie de “harmonia” conveniente à

121
Relações pessoa-ambiente na América Latina

exploração. Nesse sentido, a desmobilização das organizações da classe


trabalhadora não é um efeito colateral, ela constitui o ordenamento dos
processos produtivos.
No momento que trata do contexto do trabalho brasileiro, Alves
(2007) destaca que o regime de acumulação flexível aprofunda elementos
estruturais particulares da formação social do país. Por si, o modo de pro-
dução capitalista se caracteriza, dentre outros elementos, pela apropriação
privada da riqueza socialmente produzida. Nesse sentindo, de forma mais
abstrata, trata-se de determinações gerais que relacionam o trabalho à uma
condição de precariedade, mas para apreender os elementos que compõem
o capitalismo no Brasil é necessário levar em consideração sua história.
Dentre os fatores estruturais que explicam a nova precariedade brasileira,
Alves (2007) destaca o passado colonial-escravista que produziu marcas
na configuração do sistema capitalista do referido país. Mesmo com a
abolição da escravatura, os trabalhos mais precários foram reservados
aos negros recém-libertos que se juntaram de maneira particular à massa
de trabalhadoras(es) brasileira. Impedidos de acessar a terra no campo e
encontrando obstáculos para se inserir na economia urbana capitalizada
(indústria e serviços), a classe trabalhadora do Brasil se desenvolve de for-
ma subalternizada e à mercê da superexploração de sua força de trabalho.
Essa conformação da classe proletária brasileira reflete também o “caráter
dependente e subalterno da economia produtora de mercadorias” (Alves,
2007, p. 262), traço do Brasil no cenário capitalista mundial.
De modo geral, a divisão do trabalho por si não desata os laços que
unem as(os) trabalhadoras(es) no sentido de se perceberem como uma
classe. Porém, é inegável que, na luta de classes, a variedade de condições
de trabalho impõe desafios à união das(os) trabalhadoras(es), principal-
mente quando estas disposições desiguais são utilizadas como armas nas
disputas ideológicas. Mesmo assim, como aponta Antunes (2006, p. 98),
“a superação do capital somente poderá resultar de uma empreitada que
aglutine e articule o conjunto dos segmentos que compreendem a classe-
-que-vive-do-trabalho”. E para isso, segundo o autor, deve-se considerar as
formas particulares e singulares de manifestação do capital.

122
A construção da classe trabalhadora nos processos de territorialização

Divisão territorial do trabalho

Na história da luta de classes do capitalismo, a concentração espacial


promovida pela indústria e pelo desenvolvimento dos meios de comunicação
aproximou pessoas familiarizadas com os males do trabalho estranhado.
Avizinhadas(os) e compartilhando modos de vida semelhantes, as(os) tra-
balhadoras(es) formaram diversas organizações que congregavam interesses
comuns. Mas, com as transformações produtivas, outras formas de tensões
sociais emergem acompanhando o movimento da acumulação de capital;
uma dinâmica, aliás, “profundamente geográfica” (Harvey, 2005, p. 193).
Um dos fenômenos socioespaciais que fazem parte da divisão social do
trabalho é o da territorialização (Santos, 2006). Naturalmente, qualquer
trabalho ocorre no espaço, seja este “o alvo” direto da tarefa ou não. No
entanto, a acumulação capitalista precisa dominar o espaço de maneira
privada para que seja possível perpetuar-se; é a condição oferecida pelo
regime de propriedade privada dos meios de produção. Ao segmentar o
trabalho, o capital cria territorialidades que correspondem a sua natureza.
Divide, para utilizar os conceitos espacializados de Santos (2006), os sistemas
de objetos e ações que integram seu modo de produção. Porém, a totalidade
da dinâmica de acumulação não “atinge” os lugares da mesma forma e é
justamente isso que promove a identidade dos lugares (Santos, 2006).
Segundo Santos (2003, p. 139), os “espaços aparecem cada vez mais
como se diferenciando por sua carga de capital, pelo produto que criam e
pelo lucro que engendram”. Por isso nem toda zona rural ou urbana é igual.
Por mais que existam elementos semelhantes que dão forma, por exemplo,
às áreas de produção agrícola e industriais, estradas e ruas, moradias, aos
escritórios, às lojas e aos mercados, aos equipamentos de saúde, educação,
segurança, lazer etc., a dinâmica social que dá vida aos sistemas de objetos
à nossa volta acompanha a configuração de reprodução do capital insta-
lada. Nesse emaranhado de relações que servem à geração de riqueza em
alguma medida, existem modelos mais produtivos que tendem a sobrepor
padrões menos desenvolvidos. Essas diferenças presentes na divisão social
do trabalho em âmbito internacional “cria uma hierarquia entre lugares

123
Relações pessoa-ambiente na América Latina

e, segundo a sua distribuição espacial, redefine a capacidade de agir de


pessoas, firmas e instituições” (Santos, 2006, p. 88).
Certamente que os recursos naturais disponíveis também contribuem
para atrair ou não um determinado ramo de atividade econômica, mas
o elemento natural por si não explica os diferentes papéis dos países na
divisão social do trabalho em âmbito internacional (Benko, 1998). A
ideia de que cada país possui uma “vocação natural”, esconde a dimensão
histórica do desenvolvimento econômico e social destes processos. Aliás,
o tempo histórico é, para Santos (2006), uma manifestação geográfica,
precisamente: “tempo e espaço são uma só coisa” (2006, p. 33). E continua
o autor: “O espaço do trabalho contém técnicas que nele permanecem
como autorizações para fazer isto ou aquilo, desta ou daquela forma, neste
ou naquele ritmo, segundo esta ou outra sucessão. Tudo isso é tempo.”
(2006, p. 34). Essa forma de pensar tempo e espaço pode ser encontrada
em Marx e Engels (1932/2007), no momento em que eles criticam o ide-
alismo presente na leitura do real que dissocia história e natureza. Em suas
palavras: “como se as duas ‘coisas’ fossem coisas separadas uma da outra,
como se o homem não tivesse sempre diante de si uma natureza histórica
e uma história natural” (1932/2007, p. 31). Nesse sentido, percebe-se que
a ideia de “vocação natural” da divisão do trabalho serve para manter os
países em níveis de desenvolvimento distintos.
Para além das transações desiguais entre Estados nacionais, a hierar-
quia entre localidades pode ser encontrada em outras escalas como, por
exemplo, entre cidade-cidade ou cidade-campo, entre bairros etc. Nessas
relações, existe uma inegável importância das conexões horizontalizadas,
isto é, as relações entre territórios vizinhos. Porém, no contexto do capital
mundializado, as associações também se dirigem no sentido vertical e são
interligadas por redes de pontos remotos (Santos, 2006). No momento que
discute as diferentes possibilidades de composição dos lugares, Santos (2006)
aponta que estes últimos são, ao mesmo tempo, resultado e condição da
divisão do trabalho. O autor apresenta ainda exemplos de metamorfoses
espaciais promovidas pela atuação de fatores geográficos, como as grandes
instituições financeiras que movimentam os lugares ao influírem sobre a

124
A construção da classe trabalhadora nos processos de territorialização

divisão do trabalho. No entanto, o “jogo de forças” não se dá só de “fora


para dentro” do lugar, existem outros elementos que se fazem presentes
no processo de singularização dos espaços.
Por partirem de interesses antagônicos, a divisão territorial do trabalho
sob regime do capital condiciona sua existência ao conflito entre as classes.
Nesse sentido, as forças alienantes do capital global que apontam para as
localidades encontram resistências a sua realização plena; criam tensões
advindas, por um lado, da necessidade de exploração da força de trabalho
para a reprodução capitalista e, por outro, da vontade das(os) trabalha-
doras(es) de não serem explorados. A partir de uma leitura geográfica dos
movimentos sociais, Fernandes (2000, 2005) propõe a criação da categoria
de movimentos socioterritoriais. Para ele todo movimento social reivindica
alguma dimensão do espaço, seja uma determinada estrutura ou recurso, por
isso, todos seriam socioespaciais. No entanto, existem organizações sociais
que possuem o espaço como trunfo. Mesmo que esses, em sua origem,
tenham um caráter isolado, isto é, que estejam limitados a um determinado
espaço, seu desenvolvimento é referenciado pela construção de territórios
para além do local de sua emergência. Como exemplo, Fernandes (2000,
2005) discute a atuação dos movimentos ligados à questão agrária no Brasil,
sendo o de maior destaque o MST (Movimento dos Trabalhadores Sem
Terra). Para ele trata-se de um movimento social constituído por fatores
como a “indignação e a revolta, a necessidade e o interesse, a consciência e
a identidade, a experiência e a resistência, a concepção de terra de trabalho
contra a de terra de negócio e de exploração, o movimento e a superação”
(Fernandes, 2000, p. 62).
Na dinâmica urbana há também expressões de movimentos sociais
que possuem o espaço como “alvo”. Esse é o caso do Movimento dos Tra-
balhadores Sem Teto (MTST), que desde seu nascimento guarda relações
com seu correlato agrário, o MST (Silva, 2017). Como particularidade, a
construção territorial do MTST ocorre na luta, sobretudo, por moradia,
elemento fundamental para a existência da força de trabalho urbana.
Ainda que pareçam fenômenos dissociados, os movimentos socioterri-
toriais citados lidam com expressões da produção capitalista do espaço e

125
Relações pessoa-ambiente na América Latina

das contradições desse sistema que atingem o chão comum de segmentos


distintos da classe trabalhadora.
A discussão sobre a composição da classe-que-vive-do-trabalho não é
nova e está longe de encerrar. Para abordar esse tema, destaco a perspectiva
de dois autores que partem da leitura de Marx e intérpretes. Tanto Antunes
(2006) como Mattos (2019) apontam, em suas sínteses, para a característica
ampliada e dinâmica da classe. Além de ser composta por pessoas direta-
mente exploradas, as que não são também estão inseridas na dinâmica de
acumulação do capital, portanto, contribuem de alguma forma para seu
movimento. Por exemplo, o trabalho doméstico (normalmente, no Brasil,
realizado por mulheres) mesmo não produzindo mais-valia, se insere na di-
nâmica de acumulação pois cria condições para que outra(o) trabalhadora(or)
produza (Melo & Castilho, 2009). Dessa forma, o capital submete a classe de
despossuídas(os) para extrair a riqueza de suas “capacidades socialmente com-
binadas” (Antunes, 2006, p. 84). Nesse sentido, a classe de trabalhadoras(es)
abarca as atividades formais ou não, os diferentes níveis de precariedade, as
pessoas empregadas ou desempregadas etc. (Mattos, 2019). No entanto, a
classe-que-vive-do-trabalho “não é definida apenas pela posição em relação
aos meios de produção, pois também define a si mesma, na medida em que
desenvolve uma consciência de classe e apresenta um potencial de atuação
como sujeito da transformação social” (Mattos, 2019, p. 213).
Em um cenário em que a classe trabalhadora encontra-se cada vez mais
espalhada pelo globo, Harvey (2005) reafirma a natureza cooperativa dos
movimentos laborais. Mesmo no passado as lutas tencionavam os limites
do capital para além dos muros das fábricas. No entanto, para esse autor,
as organizações tradicionais do operariado perderam suas bases geográficas.
Isso não quer dizer que desapareceram enquanto forças da classe trabalha-
dora, mas que existem atualmente estratégias baseadas nos territórios que
criam condições para aglutinar diferentes segmentos de trabalhadoras(es).
O desafio, continua o autor, é agir de acordo com o movimento do capital,
isto é, partir das localidades, mas superá-las; conduzir simultaneamente
lutas em diferentes escalas atingindo os diferentes canais de fluxo e pontos
da rede de reprodução do capital, que é profundamente espacial.

126
A construção da classe trabalhadora nos processos de territorialização

Conclusão

Estudar o espaço como manifestação do ser humano é compreendê-lo


como fenômeno integrante de uma totalidade ordenada e estruturada. Esse
todo se expressa, no entanto, de forma particular no momento de sua
espacialização configurando sua unidade básica que é o lugar. No capital,
a constituição das territorialidades passa pela divisão do trabalho em suas
diferentes escalas. É nesse processo que as cercas da alienação conformam
territorialidades; aglutinam e dividem as(os) trabalhadoras(es). Por sua
natureza conflituosa, a espacialização do capital desenraiza relações so-
ciais convertendo-as a seu favor produzindo, assim, paisagens de fartura
e carência, contradições essas que habitam o espaço em qualquer escala
(países ricos e pobres, cidade e campo, condomínios de luxo e favelas etc.).
Nesse emaranhado de relações sociais, o território apresenta-se como
chão dos fragmentos das relações de (re)produção e, portanto, da classe-
-que-vive-do-trabalho. Todavia, olhar para si, enquanto classe, não ocorre
de forma automática. A reunião dos estilhaços identitários que estão em um
determinado território realiza-se na prática cotidiana, sentindo os relevos
de seus tensionamentos e compreendendo, em algum nível, as origens das
rachaduras e os horizontes possíveis que a construção de uma obra sempre
inacabada proporciona.

127
Relações pessoa-ambiente na América Latina

Referências

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do estranhamento (alienação). Caderno Crh, 15(37), 23-45.

Antunes, R. L. (2006). Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do


mundo do trabalho (11o ed.). Cortez/Unicamp.

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Praxis.

Benko, G. (1998). Organização econômica do território: Algumas reflexões sobre a evolução


no século XX. In M. Santos, D. S. Maria Adelia, & M. L. Silveira (Orgs.), Território,
globalização e fragmentação (pp. 51-71). HUCITEC.

Bottomore, T. (1988). Dicionário do pensamento marxista. Editora Zahar.

Costa, M. S. (2010). Trabalho informal: um problema estrutural básico no entendimento


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teórica para uma leitura geográfica dos movimentos sociais. Revista Nera, 8(6), 14-34.

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Marx, K. (2013). O capital: Crítica da economia política. Boitempo. (Original de 1867)

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Mattos, M. B. (2019). A classe trabalhadora: De Marx ao nosso tempo (1o ed.). Boitempo.

Melo, H. P. D. & Castilho, M. (2009). Trabalho reprodutivo no Brasil: quem faz? Revista de


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128
A construção da classe trabalhadora nos processos de territorialização

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Lamparina.

Silva, H. C. G. M. (2017). Análise da atualidade das ações dos movimentos socioterritoriais


camponeses e urbanos no estado de São Paulo: MST e MTST. Revista NERA, 20(36), 178-195.

129
Capítulo VI

Retirâncias:
O que nos move pelo mundo?
Monique Araújo de Medeiros Brito
Alexandra Cleopatre Tsallis

DESLOCAmentos……………… …… ………………………………………....
…………………………………………… …… ……………desloca-MUNDOS

A ruana1 desloca-se para seu trabalho. Jaciara2 acorda cedo para ir à es-
cola. Ayane3 caminha pelas ruas da cidade vendendo doces. Maitê4 se
prepara para fazer sua primeira viagem de avião. Aurora5 agora pedala pela
cidade para fazer sua parte na despoluição do ar. Zoe6 acorda cedo pra fazer
a primeira grande caminhada do dia até o açude para buscar água para as
atividades diárias da casa. Sofia7 entra no ônibus para 27 horas de estrada.
Luíza8, Ayo9, Kieza10 e Shaira11 entram naquele barco buscando uma nova
vida em terras distantes. Maya12 organiza as coisas em casa e as deixa sob
os cuidados de sua filha mais velha, Antonella13, porque hoje começa mais

1  Nome feminino de origem indígena que significa sentinela.


2  Nome feminino de origem tupi que significa “nascida da lua”.
3  Nome feminino de origem japonesa que significa som colorido.
4  Nome feminino de origem basca que significa amável ou senhora do verão.
5  Nome feminino de origem latina que significa “o raiar do dia”.
6  Nome feminino de origem grega que significa cheia de vida.
7  Nome feminino de origem grega que significa sabedoria.
8  Nome feminino de origem latina que significa guerreira gloriosa.
9  Nome feminino de origem iorubá que significa alegria.
10  Nome feminino que tem origem a partir do quimbundo e significa “a que chega”.
11  Nome feminino que tem origem na cultura rastafári e significa poetisa ou cheia de poesia.
12  Nome feminino de origem grega que significa deusa da terra.
13  Nome feminino de origem italiana que significa “de valor inestimável”.

131
Relações pessoa-ambiente na América Latina

uma marcha pela terra e ela é uma das lideranças do movimento. Uma
estrela cadente viaja a 250.000 km por hora. A Terra demora 365 dias e 6
horas para dar uma volta em torno do sol. Bárbara14 acaba de deslocar-se
do útero da sua mãe para esse mundo frio e assustador e alegre e pulsante.
Deslocamento. Movimento. Não apenas físicos, geográficos. Desloca-
mentos subjetivos. Deslocamentos imaginários. Deslocamentos do desejo.
Quando des-loco de onde estou, saio de um locus15 e passo a outro. Des-colo.
Já não estou tão colada ao conhecido e com isso vem o risco. Entrego-me
a ele. Não em totalidade. Não em eternidade, apenas em caminho.
A vida humana é marcada pelos deslocamentos. Eu arriscaria dizer da
vida mais que humana. A história da vida. Penso agora nas placas tectônicas.
Até 200/250 milhões de anos atrás, existia apenas um continente no globo
terrestre, que foi denominado Pangeia (etimologicamente, pan - todo -,
geo - terra). Esse corpo, até então uno, começou a separar-se em decorrência
de um movimento subterrâneo, não perceptível aos seres vivos, que foi
denominado deriva continental. Uma força maior que a inércia, capaz de
descolar e deslocar corpos gigantescos pelos oceanos afora16.
Tudo está se deslocando. Até as rochas, aparentemente paradinhas
ali, são deslocadas e refeitas pelo movimento dos ventos que trazem e
levam matéria, alterando formatos e composições. Assim o mundo vai se
produzindo. Recompondo-se. Até as guerras se deslocam. Vírus se des-
locam com uma rapidez quase inimaginável. Desejos, além de des-locar,
também des-colam.
Os deslocamentos são motivados e produzidos pelas mais diversas
situações e contextos, assim como também são barrados. Pessoas mudam
de casa, bairro, cidade, estado, país, continente. Quem sabe no futuro
também possam mudar de planeta. Às vezes esses deslocamentos são de-
sejados e planejados. Sonhos e desejos mais individuais ou mais coletivos.

14  Nome feminino de origem grega que significa estrangeira.


15  Palavra do latim, que significa “lugar, posição ou local”.
16  A Teoria da Deriva Continental foi criada pelo meteorologista alemão Alfred Wegener, em 1912.
A partir dela, diversos outros estudos culminaram com a teoria das placas tectônicas, desenvolvida no
final dos anos 60, por Robert Palmer e Donald Mackenzie.

132
Retirâncias: O que nos move pelo mundo?

Algumas vezes seguem lentamente pelo tempo. Em outras acontecem de


supetão - por oportunidade e/ou necessidade. Pessoas não se deslocam
só porque querem. Às vezes são obrigadas. Expulsas. Fogem. Às vezes o
deslocamento é uma questão (de) sobre-viver. Fome. Sede. Guerras. Per-
seguições. Intolerância. Discriminação. Violências.
Ao mesmo, tempo, há forças de diversas ordens que tentam barrar
esses deslocamentos. Há uma multiplicação de barreiras e intensificação
de conflitos. Bela Feldman-Bianco (2011), antropóloga brasileira, filha
de pai ucraniano e mãe polonesa, ambos judeus que se deslocaram para
o Brasil escapando da Segunda Guerra Mundial, estudiosa dos desloca-
mentos e migrações, nos alerta que as movimentações de capital, signos,
informações e a comunicação virtual aparentam dissolver fronteiras, ao
mesmo tempo que certos fluxos de pessoas, produtos e lugares tornam-se
focos de políticas restritivas e de controle seletivo. Muitas pessoas vivem
os dois movimentos ao mesmo tempo. Um lado da fronteira expulsa - de
diversas formas. O outro lado da fronteira não permite ou dificulta sua
entrada - também de diversas formas.

---------------------------- fronteira ----------------------------

Pois bem, temos aqui duas mulheres lhes escrevendo17. Uma delas é
Monique Brito, mulher branca18, nordestina, vinda do sertão, no interior
do estado do Rio Grande do Norte. Migrou muitas vezes para estudar, para
“formar-se”. Tem se formado (especializado) em deslocamentos. Tem sido

17  Nossa política de escrita é da explicitação do local de fala. Trazemos nomes, origens, histórias.
Também utilizamos diferentes pessoas nas conjugações verbais. Às vezes quem fala é o eu, mesmo sa-
bendo-se atravessado por tantes outres. Às vezes quem fala é o nós, mesmo sabendo-se responsável pelo
que diz e sem buscar generalizações.
18  Não é sem incômodo que me descrevo como mulher branca. Pensar que nasci no nordeste brasi-
leiro e me colocar como branca sempre me pareceu bem surreal, mas aos poucos, aproximando-me das
discussões sobre raça e racialização, entendi que me perceber como mulher branca está para além da cor
da minha pele e dos traços do meu rosto. Trata-se de reconhecer meus privilégios em uma sociedade
racista como a nossa. É afirmar para mim mesma e para o mundo que eu não sei o que é ter a vida
dificultada por causa da minha cor e de outras características fenotípicas utilizadas cruelmente para
separar, classificar e valorar as pessoas.

133
Relações pessoa-ambiente na América Latina

formada e formado a si mesma em deslocamento (em trânsito, movimento).


Hoje é professora no recôncavo da Bahia e estudante no Rio de Janeiro,
onde cursa o doutorado em Psicologia Social. A outra é Alexandra Tsallis,
mulher branca francesa, que tem um pai grego, uma mãe argentina, um
irmão brasileiro e outro irmão estadunidense. Ser estrangeira é sua consti-
tuição. É desses dois corpos, des-locados ou trans-locados por tantes outres
que estão vindo essas palavras.
O campo desta pesquisa é amplo e diverso: um assentamento do
Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), no baixo sul da
Bahia; uma vila no Vale do Capão (Chapada Diamantina), também na
Bahia; e migrantes brasileiras vivendo em Paris, França. Sim, algumas
vezes o campo é mais o local e as pessoas que neles vivem, outras vezes é
mais as pessoas e suas relações com os territórios. Actantes que estão juntes,
inseparáveis, alternando-se nas posições de figura e fundo. Esses campos
estão juntos aqui por um motivo: o deslocamento. Terras e pessoas que se
movimentam e, ao se movimentarem, contam histórias. Deixam rastros.
Marcam as relações com os territórios percorridos, habitados, vividos.
Não entraremos em pormenores de cada campo neste texto. Mais do que
contar sobre cada grãozinho de areia em deslocamento, nossa política de
escrita priorizará o entre, aquilo que está margeando, mas ao mesmo tempo
atravessando esses campos.
As pessoas hoje assentadas, em algum momento de suas vidas re-
tiraram-se dos lugares onde estavam para lutar por uma terra própria,
para produzir seu sustento, sua vida. Marcharam, acamparam, resistiram.
Assentaram-se e foram assentadas. “Porque ter saúde e viver bem é ter
um pedaço de terra pra plantar”. Entre aquelas pessoas que vivem hoje
no Vale do Capão, poucas nasceram lá, e muitas foram em busca de algo
e/ou alguém: “trabalhar, plantar, amar, mudar de vida...”. Já as mulheres
brasileiras que estão na França, nos arredores de Paris, deslocaram-se para
lá “sozinhas, acompanhadas, para sempre ou temporariamente. Em busca
de formação, emancipação, oportunidades, crescimento, expansão”. Essas
são palavras utilizadas por algumas das pessoas que encontramos nesses
territórios para definir suas jornadas.

134
Retirâncias: O que nos move pelo mundo?

Seguimos perguntando-nos: O que produz os deslocamentos? O que


faz-fazer os deslocamentos e o que eles fazem-fazer? O desejo de mover-se…
De onde será que ele vem? Como ele é performado? Em outras palavras,
objetivamos seguir os rastros dessas questões ao longo do texto, o que não
implica necessariamente respondê-las.
Os filósofos franceses Deleuze e Guattari nos trouxeram uma pers-
pectiva sobre o desejo diferente daquela atrelada à falta. Para eles, desejo é
produção. Eles escreveram sobre o desejo desde sua primeira obra conjunta, o
Anti-Édipo, escrito em 1972, ainda com toda a energia dos acontecimentos
político-revolucionários de 1968. É do Abecedário, porém, que traremos
algumas de suas ideias sobre o desejo. Na letra “D” de desejo, Deleuze
explicita algumas questões:

Não há desejo que não corra para um agenciamento. Nunca desejo


algo sozinho, desejo bem mais. Também não desejo um conjunto,
desejo em um conjunto. Desejar, pois, é construir um agenciamen-
to, construir uma região, é realmente agenciar. Cada vez que al-
guém diz: desejo isso, quer dizer que ele está construindo um agen-
ciamento. (Deleuze & Parnet, 1996, documento sem paginação)

O desejo é produção de agenciamentos. Portanto, ele tem agência


sobre, assim como é afetado pela agência de outres. Fazendo uma conexão
com Bruno Latour (2012) e seu conceito de actante19, poderíamos ousar
dizer que o desejo é um actante. Outras humanas e não-humanas podem
ser actantes em determinados contextos, a depender de sua capacidade de
produzir agência ali. O desejo sempre é… Hesitação, dúvida... O desejo
sempre é um actante? Preferimos seguir com a pergunta a ficar com a res-
posta. Questões produzem mais movimento que as afirmações.
Até pensamos, num primeiro momento, o desejo como actante prin-
cipal, mas preferimos pensá-lo compondo um rizoma, onde não existem
hierarquias. Lá, o desejo seria um actante importante. MAS não é ele o

19  Tudo aquilo que tem agência sobre, podendo ser humano ou não humano. O conceito foi criado
para escapar da palavra ator, muito utilizada para humanos. Aqui, utilizamos com mais uma motivação:
actante não traz, como a palavra ator, um marcador de gênero dominante.

135
Relações pessoa-ambiente na América Latina

início de tudo. Também não vamos falar em hierarquias temporais. Até


porque, como vimos acima, Deleuze, em seu diálogo com Parnet (1996),
afirma que desejamos em um conjunto. Eu não desejo comer carne do sol.
Eu desejo comer uma carne do sol de tal forma, que tem aquele tal sabor,
que me remete a tais lembranças, contextualizadas no tempo, no espaço,
e outras variáveis mais. Repetindo: Eu não desejo um conjunto. Eu desejo
em um conjunto. Vou ousar outro acréscimo: DesejoCOM. E não estou
falando de desejar o desejo do outro. Estou querendo afirmar que o desejo
não apenas produz agenciamentos. Ele é, em si, um agenciamento. Mas
isso não é nenhuma novidade.
O desejo não está no vácuo. O desejo não está no vazio e nem vem
para preencher um vazio. Nosso desejo não nos conduz à busca de preen-
chimento de um vazio, de algo que nos falta. Somos completas ou, na pior
das hipóteses, não nos sentimos assim, mas temos a potência de completar
a nós mesmas. O desejo é aquilo que nos leva ao transbordamento. Eu
desejo porque tenho em mim, em meu corpo, essa energia de produção
de vida. Eu a produzo porque desejo. Não porque tenho precisão, neces-
sidade. Não é para tapar um buraco. Buracos, aliás, quando existirem,
podem continuar sendo buracos em sua essência. Não há necessariamente
um vazio a ser preenchido neles. É o seu modo de estar no mundo - que
pode nem ser recôncavo nem reconvexo20. Nem por isso deixa de existir
enquanto tal. Sem precisar habitar ou ser colocado na categoria de outro
para legitimar sua existência.
Para Deleuze, ao mesmo tempo que é um agenciamento, o desejo
também é delirar. Para ele, delira-se sobre o mundo inteiro. Delira-se sobre
a história, a geografia, as tribos, os desertos, os povos. Delira-se o mundo,
e não sua pequena família. E é aí que o desejo se produz... desejar é deli-
rar, e o delírio é geográfico-político, é situado, localizado. O desejo-delírio
caminha por terras, ainda que nunca as tenha pisado. Ao mesmo tempo,
essa terra vai se constituindo enquanto território habitado, usado, como
diria o geógrafo baiano negro Milton Santos (1997). Habitar um território

20  Referência à música “Reconvexo”, do músico e compositor baiano Caetano Veloso.

136
Retirâncias: O que nos move pelo mundo?

torna-se um ato político na medida em que sua presença - ou a presença da


sua ausência - passa a ter agência sobre ele. Presença da ausência porque,
quando as ausências de actantes humanos ou não humanos são percebi-
das, trazidas ao foco, elas podem passar a ter agência sobre aquele campo.
Perceber e discutir ausências é torná-las presentes.
O desejo está, portanto, territorializado. E, com isso, não queremos
afirmar que está cristalizado, pois desejo também é movimento. Ele se
desterritorializa e, imediatamente, inicia outro processo que irá reterri-
torializá-lo. Ele é movimento. Deslocamento. A produção desejante é
contínua. Caótica. Múltipla. Rizomática. O desejo é produtor de devir.

Devir é, a partir das formas que se tem, do sujeito que se é, dos ór-
gãos que se possui ou das funções que se preenche, extrair partícu-
las, entre as quais instauramos relações de movimento e repouso,
de velocidade e lentidão, as mais próximas daquilo que estamos em
vias de devir, e através das quais devimos. É nesse sentido que o
devir é processo do desejo. (Deleuze & Guattari, 1997, p. 67)

Ainda sobre o desejo, Guattari e Suely Rolnik (1986), psicanalista


brasileira, vão problematizar a “dimensão bestial” usada para classificá-lo
enquanto desejo-pulsão, desejo-desordem, desejo-morte, desejo-agressão,
colocando-o como oposição a qualquer possibilidade de interação simbóli-
ca, organização de uma sociedade e poder centralizado em funções de um
Estado. Para eles, essa é uma postura totalmente reacionária de oposição ao
desejo e sua potência criadora, enfatizada por eles em “Cartografias do Desejo”:

Por não querer me atrapalhar com definições complicadas, eu pro-


poria denominar desejo a todas as formas de vontade de viver, de
vontade de criar, de vontade de amar, de vontade de inventar uma
outra sociedade, outra percepção do mundo, outros sistemas de va-
lores. (Guattari & Rolnik, 1986, p. 216)

Então estamos combinadas.


Por aqui, o desejo é isso. Produção. Delírio. Agenciamento. Fazedor
de Devir.

137
Relações pessoa-ambiente na América Latina

---------------------------- fronteira ----------------------------

Trazemos para essa conversa textual a retirância e o devir-retirante.


O retirar-se como expansão, não como abandono. Ocupação de novos
lugares. Novos territórios existenciais. O retirar-se que expande as conexões
do rizoma. Que explode os nós dos rizomas não para cortar conexões, mas
como uma estrela do mar que, perdendo uma de suas partes, torna-se duas.
Ou mais. O retirar-se que carrega em si muito de si e muito de outres.
Não vou dizer tudo porque não carregamos tudo, também deixamos pelo
caminho. A retirante que está em um movimento constante de des e reter-
ritorialização, construindo novos possíveis e retirando-se novamente. Um
devir-retirante e todo o movimento que lhe é característico. Devires são
sempre minoritários (Deleuze & Guattari, 1997). Não são criados para
ficarem intactos. É sempre aquilo que está por vir. É o que nos move pelo
mundo. Um mundo sem fronteiras entre dentro e fora. Embora tantas
fronteiras existam no dentro e no fora. E entre o dentro e o fora. Fronteiras
criadas. Inventadas. Política. Religião. Cultura. Dinheiro. Posse.
O devir-retirante recalcitra, resiste, ao recusar territorializar-se na
estabilidade da permanência. Desobedecer à imposição da estabilidade que
lhe chega na forma de paredes intransponíveis, sem janelas e sem portas.
Em último caso, o devir-retirante nos impele a cavar túneis. Abrir buracos.
Explodir barreiras que tentam implodir o desejo de delirar movimentos.
Eu me retiro. Você se retira. Retiramo-nos porque deixamos de caber?
Falta-nos espaço? Não! A retirante é como uma esponja, que pode adquirir
maior densidade ocupando o mesmo espaço. Ela se move porque está em
eterna produção. Porque tem ânsia de retirar-se deixando muito de si.
Retirar-se para uma espécie de retiro de si. No movimento, no deslocar-se
é que ela se faz. Ela existe no movimento porque quando ele paralisa perde
sua potência.
Historicamente, foram várias as expressões utilizadas para denominar
aquelas pessoas em retirância: famintos, esqueletos animados, flagelados,
endemias andantes, dentre outros, ora sendo tomadas como vítimas apáticas,
comparadas a animais que se movem pelos seus instintos de sobrevivência,

138
Retirâncias: O que nos move pelo mundo?

“caracterizados em memórias e até na historiografia como animais que


seguem um estímulo natural de arribar quando a natureza não permite a
opção de permanecer e se adaptar”, como nos traz a historiadora brasileira
Lara de Castro (2011, p. 1); ora como trabalhadores heroicos e, conse-
quentemente, tendo sua força de trabalho explorada ao máximo por onde
passavam em busca de sobrevivência. Neste último papel, o historiador
brasileiro Alexandre Cardoso (2011) lembra da representação dos retirantes
como amansadores de desertos, em várias obras de Euclides da Cunha,
por sua voracidade no enfrentamento das duras rotinas de trabalho na
Amazônia, desbravando aquele espaço ainda pouco conhecido.
Essas representações abordam as pessoas “nortistas” e “nordestinas”
de forma parcial, muitas vezes caricatural. Embora a abordagem do tema
retirantes em algumas obras da literatura brasileira tenham assumido, no
momento em que foram escritas, ou mesmo apenas muitos anos depois,
um caráter de denúncia, elas também serviram à construção de uma ima-
gem parcial da figura nordestina, que tem a sua humanidade diminuída
ou despotencializada ao ser colocada no lugar de “pobre coitada” ou de
“trabalhador voraz”, quase que uma máquina.
É importante trazer esse aspecto e não poderíamos nos furtar a fazer
essa reflexão aqui e acabarmos sendo negligentes com isso. No entanto,
seguiremos por outros caminhos. Buscando não cair na armadilha da
romantização, abordaremos a retirância em sua potência e capacidade
produtora de vida. Isso não significa que travaremos aqui uma luta entre
bom e ruim, bem e mal. Somos afeitas às multiplicidades, não às dualidades.
Partimos das histórias das pessoas retirantes nordestinas para pensar
outros deslocamentos pelo mundo. Não queremos, com isso, produzir
pensamentos genéricos ou generalizantes e que homogeneízem experiências
e histórias de vida, deslocamentos e relações com os mais diversos territó-
rios. Queremos aqui propor a retirância como conceito-movimento. E esse
conceito-movimento não surgiu do nada. Não vem de uma palavra nova,
inventada para denominar um conjunto de outras palavras que almejam
designar algo novo. Não. Tem uma história. E essa história vem do sertão
nordestino. E do sertão nordestino vai ganhando corpo e mundo.

139
Relações pessoa-ambiente na América Latina

Por isso que partimos das descrições acima sobre retirantes. Foi ao
começar minha retirada do sertão, em busca de outras oportunidades de
estudo, que um rizoma começou a se fazer. Esticando alguns caminhos,
criando outros, alguns NÓS foram produzidos. Ao retirar-me, levei co-
migo. A retirante sempre leva. Sempre deixa. As lembranças do sertão. O
sol alaranjado fazendo tremer o horizonte. O barulho do chocalho das
vacas no iniciar e no findar dos dias. As árvores secas, porém não mortas:
guardando energia para o próximo inverno. Inverno que no sertão não tem
a ver com frio, mas com chuva. Aquele tanto de pedra, pedregulho, lajedo,
onde brincava quando criança. As histórias de meus avós. Das secas que
eles viveram. Das precisões21 que passaram. A partilha da comida. A lida
com o gado. A seca. A alegria da chegada das chuvas. O raro e precioso
cheiro de terra molhada.
É com história, com muitas histórias, que se cria um conceito. Um
conceito que traz consigo sua ancestralidade. Suas heranças. Vinciane
Despret (1999), filósofa da ciência belga, nos lembra que nossas heranças
nos acompanham. E aqui estamos olhando-as nos olhos. Não a engolimos
ou implodimos. Não as deixamos nos engolir ou implodir. Adentramos
essa terra ancestral fazendo rizoma com elas. Criamos novos NÓS, que
vão se ramificando por dentro da terra, mas também em sua superfície.
Às vezes a terra é fofa e nos espalhamos mais rapidamente. Às vezes está
bem densa e encaliçada e o tempo de enraizamento é outro.
A figura da retirante, apesar de muito estudada por nordestinas, foi
performada, forjada em relação ao cidadão - sim, no masculino genera-
lizante - sulista e sudista. Assim como o rural em relação ao urbano. O
menos em relação, comparação, posição de falta diante do mais, do maior,
do hegemônico, do dominante, do mais rico. São muitos e diversos os
processos de colonizações internas vivenciadas no nosso tão grande Brasil.
Nossas diferenças de recursos naturais, explorados pelos colonizadores eu-
ropeus, associados a uma imensa variedade de outras diferenças climáticas,

21  Palavra muito utilizada no sertão nordestino, geralmente relacionada às necessidades básicas de
sobrevivência. Geralmente “passar precisão” é utilizado como sinônimo de “passar fome”.

140
Retirâncias: O que nos move pelo mundo?

geográficas, culturais, dentre tantas outras, foram utilizadas perversamente


para nos distinguir e hierarquizar nossas histórias. Distinguir e hierarquizar
nossos costumes. Distinguir e hierarquizar nossas vidas. Sem esquecermos,
obviamente, dos marcadores de raça, classe e gênero. Mas, aprendendo
uma lição com alguns movimentos feministas, sorte dos homens que não
queremos vingança, apenas garantir nossos direitos. Não estamos aqui
buscando sair da posição de oprimidas para opressoras.
Pensando na perspectiva da construção de saberes descolonizadores, as
epistemologias do Sul, no caso do Brasil, teriam que ser chamadas de episte-
mologias nortistas e nordestinas. Porque aqui a colonização do ser, do saber
e do poder aconteceu de forma invertida ao modelo do norte e sul globais22.
Apesar de sua divisão geopolítica em cinco regiões, o Brasil historica-
mente tem sido pensando - caricaturizado - em Norte e Sul. O Nordeste
virou norte: “vocês do norte”, “vocês nortistas” e o Sul era basicamente
formado pelos estados do Rio de Janeiro e São Paulo (que geograficamente
estão no Sudeste) nas representações dessa migração interna tão tipicamente
brasileira nomeada como retirância. Aliás, não! Seja na literatura, seja na
história, pouco se fala no substantivo-movimento retirância. Muito se fala
no adjetivo-substantivado-pejorativo retirante.
Atravessada e movida pelas inquietações produzidas no COMtato
com o pensamento decolonial, seguimos com a intenção de produzir novos
significados com a retirância, fazendo-a mover-se até uma função-conceito.
Conceito do nordeste brasileiro e do sul epistemológico.

22  Sobre esses conceitos que não conseguiremos desenvolver com a devida importância aqui, suge-
rimos as obras:
Maldonado-Torres, Nelson (2007). Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de un
concepto. In Castro-Gómez, S. & Grosfoguel, R. (Orgs.), El giro decolonial. Reflexiones para una diver-
sidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Universidad Javeriana-Instituto Pensar, Univer-
sidad Central-IESCO, Siglo del Hombre Editores.
Mignolo, Walter (2005). A colonialidade de cabo a rabo: o hemisfério ocidental no horizonte concei-
tual da modernidade. In E. Lander (Org.), A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais.
Perspectivas Latino-Americanas. Colección Sur Sur. Buenos Aires: CLACSO.
Quijano, Aníbal (2005). Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina. In E. Lander
(Org.), A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas Latino-Americanas. Co-
lección Sur Sur. Buenos Aires: CLACSO.

141
Relações pessoa-ambiente na América Latina

Seguindo nossa política de escrita e produção de conhecimento no


feminino, vamos nomear como noção de retirância, trazendo esse caráter
fluido e menos fechado que o de conceito. Estamos fazendo ciência no
feminino. Para as psicólogas brasileiras Laura Quadros, Márcia Moraes,
Maria de Fátima Melo, Marília Machado e Sheila Miranda,

Dizer que fazemos ciência no feminino tem o sentido de afirmar


as marcas que nos constituem, marcas que tatuam nossas peles, se
inscrevem em nossos corpos, fabricam nossos olhos, afinam nossos
ouvidos. Dessas marcas não nos furtamos, conhecemos a partir e
com elas. (2016, p. 6)

Poderia haver uma tendência, talvez, de pensar que a ciência no femini-


no tal como estamos compartilhando aqui seria coisa de ciências humanas.
No entanto, Barbara McClintock, que tanto tem inspirado essas discussões,
foi uma citogeneticista estadunidense doutora em botânica e vencedora
do prêmio Nobel de Fisiologia / Medicina de 1983 pela descoberta dos
elementos genéticos móveis nas células do milho, que causam o fenômeno
conhecido como transposição genética. Deslocamento genético. A filósofa
belga Isabelle Stengers (1989), ao trazer a experiência dessa pesquisadora,
aponta que seu modo de fazer pesquisa é com o milho, e não sobre o milho.
A retirância é atravessada e ativada por esse devir-retirante, esse desejo
de mundo, de deslocamento, que carrega em si a potência de ultrapassar
qualquer tipo de fronteira. Esse desejo que faz com que nos movamos
pelo mundo - ainda que na mesma cidade ou território. O desejo que nos
impulsiona a buscar o estranhamento. É esse estranhamento que nos dá
condições para não banalizarmos a vida e o cotidiano.
A retirância diz muito mais sobre nossos deslocamentos na relação
com o mundo e as pessoas do que em sobre deslocamentos geográficos,
embora estes também a componham. Uma retirância sem necessidade de
passaporte, visto ou documento de cidadania de qualquer lugar no mundo
que a fixe. Que busca e produz um deslocamento subjetivo antes de qual-
quer coisa. Aquilo que nos move pelo mundo. Pelos mundos geográficos,
políticos, culturais, temporais, subjetivos e, por excelência, transfronteiriços.

142
Retirâncias: O que nos move pelo mundo?

Propomos, então, a performance - e não apenas a imagem, posto que


ela é mais que isso -, da retirância como uma mulher. Uma mulher livre.
Livre não significa sem vínculos. Quanto mais vinculadas, mais livres somos,
como ressaltam a psicóloga brasileira Virgínia Kastrup e Alexandra Tsallis
(2009), já apresentada aqui como uma das autoras do texto, lembrando-
-nos que são os vínculos que possibilitam nossos deslocamentos nas redes
das quais fazemos parte, bem como nossa potência para produzir novos
cenários-proposições.
Uma retirância-mulher no sentido mais amplo possível, não submetida
a qualquer tipo de marcador biológico. Aquela que se tornou mulher por
meio de sua performance no mundo… A retirância é uma mulher-ideia
que se desloca. Ora lentameeente... ora rapidamente! A retirância nos habita
e nos interroga: o que nos move pelo mundo? O que nos move pela vida?

143
Relações pessoa-ambiente na América Latina

Referências

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Ceará e o território amazônico. Tese de Mestrado, Programa de Pós-graduação em História
Social, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza.

Castro, L. (2011) Migrantes, retirantes, trabalhadores: Memória, História e as representações


em torno dos cassacos. In Anais do I Encontro Estadual da ANPUH-AP - I Jornada
Internacional de Estudos de História da Amazônia: “Diásporas, migrações e territorialidades
na Pan-Amazônia”, 1., (p. 1-12). Macapá.

Despret, V. (1999). Ces émotions que nous fabriquent Ethnopsychologie de l’authenticité.


Paris: Synthelabo.

Feldman-Bianco, B. (2011) Caminos de ciudadanía: emigración, movilizaciones sociales y


políticas del Estado brasileño. In B. Feldman-Bianco, L. Rivera-Sanchez, C. Stefoni, & M.
Villa Martinez (Orgs.), La construcción social del sujeto migrante en América Latina: Prácticas,
Representaciones y Categorias (pp.235-280). Quito: Flacso, Clacso y Universidad Alberto
Hurtado.

Deleuze, G. & Guattari, F. (1997). Mil platôs 4. São Paulo: Editora 34.

Deleuze, G. & Parnet, C. (1996). L’abécédaire de Gilles Deleuze (Entrevista por Claire
Claire Parnet), Pierre-André Boutang (Dir.). Paris: Vidéo Éditions Montparnasse. (http://
www.langlab.wayne.edu/CStivale/D-G/ABC 1.html, e traduzida para o português por
Tomaz Tadeu, http://www.ufrgs.br/faced/tomaz/abc.htm)

Guattari, F. & Rolnik, S. (1986). Micropolítica: cartografias do desejo. Petropólis/RJ: Vozes.

Kastrup, V. & Tsallis, A. (2009). Acoplamentos, vínculos e deficiência visual: sobre um


vetor de atravessamento. Informática na Educação: Teoria & Prática, 12, 12-22. doi: https://
doi.org/10.22456/1982-1654.9598

Latour, B. (2012). Reagregando o social. Salvador; São Paulo: EDUSC.

Quadros, L. C. T., Moraes, M. O., Melo, M. F. Q., Machado, M. N. M., & Miranda, S. F.
(2016). O PesquisarCOM e o feminino na ciência. Pesquisas e Práticas Psicossociais, 11(1),
4-10. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-
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Santos, M. (1997). Metamorfoses do espaço habitado. São Paulo: Hucitec.

Stengers, I. (1989). A Ciência no Feminino. Revista 34 Letras, (5/6), 427-431.

144
Capítulo VII

Deixar mover e fazer parar:


Uma leitura do urbano pelas mobilidades
Nikolas Olekszechen

Introdução

0 4 de maio de 2020. 51º dia do isolamento. Um vírus está à solta. O mun-


do globalizado foi apresentado à propagação pandêmica de uma doença
que não é uma qualquer, e leva o adjetivo “novo”. Lidar com a novidade
requer outras ferramentas de frenagem que são conhecidas e produzidas à
medida em que o globo terrestre permanece (em parte) imobilizado diante
da velocidade de contaminação.
A pandemia da covid-19, provocada pelo novo coronavírus, tem apre-
sentado uma infinidade de novas palavras e práticas que nos fazem repo-
sicionar no tempo e no espaço, o que afeta em certa medida os modos de
deslocamento. Nas cidades alguns processos são mais evidentes, por exemplo,
a imposição de medidas de fechamento e distanciamento para frear os altos
índices de contágio e contaminação provocado pelo novo coronavírus. No
plano político e jurídico, decreta-se o fechamento de espaços compartilhados
e se limitando ao máximo o deslocamento de pessoas, com a justificativa
de que as pessoas saiam de suas casas somente para acessar o estritamente
necessário nas ruas (compras, saúde e trabalho) e, quando saírem, que
justifiquem o motivo.
A adoção de medidas como essas, com maior ou menor grau de restrição,
tem trazido alguns desdobramentos que merecem atenção, pois colocam luz
em modos de gerir a vida nas cidades que se relacionam intimamente com
modos de habitar e se mover. Em um primeiro nível de análise, noticiários
têm demonstrado a retomada das diversas formas de vida que o processo de
urbanização se encarrega de dispersar: veados em Londres, peixes em Veneza,

145
Relações pessoa-ambiente na América Latina

javalis em Barcelona... Quando a vida humana/urbana se encerra, outros


movimentos habitam os mesmos espaços.
Outro efeito da restrição de mobilidade das pessoas foi a diminuição da
emissão de poluentes na atmosfera em grandes centros urbanos, quer sejam
eles derivados da produção industrial, quer sejam do trânsito motorizado.
Grandes cidades indianas como Nova Déli e Mumbai registraram quedas
consideráveis nas emissões de partículas poluentes (chegando a 60% a menos
em relação a períodos anteriores), isso porque o governo decidiu por me-
didas sérias de isolamento, deixando 1,3 bilhão de pessoas em isolamento1.
Acontecimentos semelhantes se deram em cidades chinesas, sul coreanas e
em diversos pontos das Américas. Na região metropolitana de São Paulo, a
redução chegou a 50% no período de maior adesão às medidas de isolamento2.
No campo do trabalho, cada vez mais empresas têm adotado estraté-
gias de teletrabalho como resposta às medidas de restrição da mobilidade.
Se o transporte pendular é um dos principais geradores de viagens intra
e interurbana, a redução dos deslocamentos impactam não só na viabili-
zação dessa forma de trabalho por parte das empresas, como também no
transporte urbano, que se reduz ao mínimo necessário e ajuda a engordar
índices de despoluição atmosférica. Assim, urbanistas e gestores admitem
de maneira mais e mais aberta a necessidade de dinamizar, flexibilizar,
conectar e informatizar cidades e relações de trabalho, com vistas à utopia
da cidade sem deslocamento.
Essas presenças e ausências são a marca de um modo desfuncional de
organizar e agrupar a vida humana nas cidades que, ao que parece, está
ruindo. Desfuncional não porque funciona de modo errado, mas porque,
ao funcionar, expõe as contradições de certo modo de vida. Não só as
relações de trabalho, como também o desenho das cidades clamam por
transformações. Mesmo que esses pequenos acontecimentos possam abrir
para uma dezena de outras contradições que o modo de vida urbano-ca-

1  https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/2020/04/22/principais-cidades-do-mundo-tem-re-
ducao-de-ate-60-na-poluicao-do-ar
2  https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2020/04/imagens-de-satelite-mostram-que-mancha-
-de-poluicao-em-sp-se-reduziu-na-quarentena-contra-coronavirus.shtml

146
Deixar mover e fazer parar: Uma leitura do urbano pelas mobilidades

pitalista dispara, são tomados como casos emblemáticos para analisar a


dimensão da mobilidade nas cidades.
Em um mundo globalizado, que produz “sujeitos móveis” em larga
escala, a tensão entre movimento e parada, distância e proximidade,
produção e recessão é cada vez mais explícita. Afinal de contas, um modo
de produção que funciona sob a insígnia dos fluxos, das especulações e
das constantes flutuações, possui como base concreta a força de trabalho
de milhões de pessoas localizadas justamente no epicentro da pandemia
(e na periferia do capitalismo). Enquanto algumas pessoas se isolam,
outras são entendidas como peças importantes para a manutenção
de serviços essenciais. Para que pessoas possam fazer teletrabalho, há
a necessidade de uma infraestrutura de telecomunicações que lhe dê
suporte e permita o fluxo de informações entre casa e central de traba-
lho. Locadoras de carro dispõem de grandes extensões de terras para
abrigar sua frota, que deveria fazer funcionar uma cidade moderna,
conectada e flexível.
Rastrear essas fraturas evidenciadas pela pandemia sinaliza para a
possibilidade de ler a história do presente a partir da lente das mobilida-
des. Objetos, ideias, vírus, informações e pessoas estão em movimento
e articulados em redes. Eles desempenham papéis na produção da vida
cotidiana ao ponto de considerarmos a mobilidade como constitutiva do
social (Sheller & Urry, 2006). No entanto, isso faz da mobilidade um
imperativo de nosso tempo? Tudo e todos se movem ao mesmo tempo na
mesma intensidade?
O paradigma das novas mobilidades, movimento que pretende colocar
a mobilidade como chave de análise para a vida contemporânea, toma
questionamentos dessa natureza para organizar um campo empírico e te-
órico nas ciências sociais e humanas (Sheller & Urry, 2006). Neste estudo
teórico, buscamos analisar os processos de espacialização da mobilidade,
apresentando uma rede conceitual que articula política, produção do es-
paço e produção de subjetividade. Em um sentido mais amplo, buscamos
articular este referencial com o campo de estudos pessoa-ambiente e a
psicologia social.

147
Relações pessoa-ambiente na América Latina

Mobilidades e movimentos: precisões conceituais

Tomamos a tensão entre movimento e parada como chave de análise da


construção da vida moderna no mundo ocidental. Os significados atribuídos
à localização e ao movimento se transformam à medida em que tecnologias
de poder e de controle das populações se aperfeiçoam. Por exemplo, no final
da Idade Média, a vida compartilhada estava atrelada ao pertencimento a
alguma associação ou grupo definido. Naquele período histórico, mobilidade
poderia significar a exclusão da vida comunitária e do lugar geográfico em que
a vida ocorria. Por outro lado, as condições concretas de vida e de reprodução
econômica demandavam das pessoas e grupos a viabilização do movimento.
Sob a insígnia do capitalismo mercantil, o deslocamento estava atrelado à
possibilidade de expandir relações de troca e estabelecer rotas comerciais e
exploração de outros territórios (Cresswell, 2006).
O advento da modernidade como período histórico marcou a coe-
mergência de fenômenos imprescindíveis para compreender a lógica da
mobilidade, como a organização política dos estados-nação, tecnologia de
poder que é garantidora das normas, contratos e condições sob as quais
o movimento vai se dar; o pensamento científico, que estabelece leis e
caminhos predeterminados sob os quais os corpos se movem; e a espacia-
lização dos movimentos e das trocas, que ganham consistência nas cidades.
Enquanto no campo político a consolidação dos estados-nação organiza o
senso de individualidade e pertencimento, o pensamento científico coloca
o movimento como como objeto de análise. Do mais infinitamente grande
ao mais infinitamente pequeno, as leis da física regem a dinâmica dos cor-
pos, astros e moléculas e permitem não só conhecer a fundo a trajetória de
corpos em movimento, como também antever seu estado futuro. Dessas
invenções e de seus efeitos, precipita uma figura que encarna os ideais de
uma época: o indivíduo.
Essa “figura movente” é portadora de direitos individuais, que exerce a
liberdade de ir e vir, de empregar a mão de obra e de construir seu próprio
destino. O indivíduo moderno se torna pedra angular para a consolidação de
uma maneira inédita de existir no mundo. O ponto de vista, o referencial,

148
Deixar mover e fazer parar: Uma leitura do urbano pelas mobilidades

a causa e o efeito, a medida de todas as coisas, a imagem e semelhança.


Por esses motivos, constitui-se como ser universal e abstrato, deslocado no
tempo e no espaço, que gravita pela modernidade como espírito do tempo.
Ao adotar a mobilidade como objeto de análise, as ciências sociais e
humanas se reportam a essa figura da modernidade para desenvolver dois
modelos de leitura dos movimentos. Um deles, propriamente moderno, é
o modelo sedentário (Cresswell, 2006; Sheller & Urry, 2006), que carrega
consigo palavras como estabilidade, fixidez, autenticidade e enraizamento.
Dessa perspectiva, não haveria lugar melhor que o próprio lar, onde se
encontra familiaridade, privacidade, segurança, constância, ou qualquer
outro atributo que remeta à previsibilidade e controle do futuro. Qualquer
evento que rompa com a padronização dos modos de dispor o espaço e o
tempo é entendido como potencialmente desagregador do senso de unidade
e, por isso, indesejável e perigoso.
No entanto, nem sempre o movimento é lido como algo ameaçador. A
crítica ao sedentarismo encontra eco na metafísica nômade que, inspirada
pela velocidade do modernismo e pelo apreço às transformações técnicas
e tecnológicas da sociedade moderna, faz um elogio do deslocamento.
Encarnada na figura do viajante ou do flâneur parisiense, algumas teorias
nômades falam da sobreposição do tempo sobre o espaço, em que o espaço
geográfico seria antes de tudo uma barreira a ser superada na atualização
das potencialidades humanas (Cresswell, 2006; Sheller & Urry, 2006).
Nessa perspectiva, a mobilidade é tomada como um conceito genérico
que contempla o movimento corporal (como no caso da caminhada) e
aqueles viabilizados por tecnologias (como carros e bicicletas), admitindo
o tráfego de imagens, informações e ideias em escalas locais, nacionais e
globais. Com efeito, a condição histórica para se admitir esse “giro” para as
mobilidades é a da globalização e desterritorialização dos estados-nação, o
que faz redirecionar os interesses das ciências sociais e humanas, produzindo
interrogações de outra natureza (Sheller & Urry, 2006).
Em termos conceituais, mobilidade difere fundamentalmente do mo-
vimento. Este pode ser entendido como abstração da mobilidade, isento
das relações de poder e dos interesses que se possam ter sobre o que e quem

149
Relações pessoa-ambiente na América Latina

se move entre um ponto A e um ponto B. Portanto, movimento se refere à


ideia de deslocamento ou a um ato genérico, antes mesmo de ser colocado
em ação ou ser caracterizado em função do tipo de deslocamento, finalidade,
tipo ou função. De modo distinto, mobilidade designa o movimento social-
mente produzido a partir de três momentos relacionais: (a) como movimento
potencialmente observável na realidade empírica; (b) como movimento que
pode ser representado e reproduzido nas relações cotidianas; (c) mobilidade
como prática experienciada e incorporada (Creswell, 2006).
Em um primeiro nível de análise, considera-se a mobilidade não
como fluxo etéreo e infinito, mas como movimento concreto. Em um
segundo nível, envolve a distribuição das condições de movimento. Se
a mobilidade é um recurso que é desigualmente distribuído, assume-se
que sua análise passa necessariamente pela questão do poder e da justiça,
já que os efeitos do movimento ou não movimento se opera de maneira
diferente em diferentes corpos. Em terceiro, a mobilidade é tomada como
um sistema que envolve elementos humanos e não humanos, os “sistemas
móveis” (Nail, 2019).
Osborne e Rose (1999) se referem a elementos discursivos e não dis-
cursivos na composição do diagrama urbano, que organizam a existência,
a conduta e a subjetividade humanas em nome de uma lógica de governo.
Esses diagramas permitem que coisas possam ser ditas e compreendidas
a respeito da existência na cidade. O terreno comum dessas abordagens
parece repousar na territorialização dos movimentos concretos articulados
ao sistema sociotécnico ao qual a reprodução da vida cotidiana está sub-
metida. Isso quer dizer que humanos e objetos não se movimentam por si
mesmos, como atualização evolutiva, senão a partir de agenciamentos que
se espacializam em “geografias híbridas” e se desenham à medida em que
o movimento de humanos e não humanos é viabilizado no tecido espacial
(Sheller & Urry, 2006).
Entender os fenômenos urbanos pela ótica das mobilidades implica
admitir que nem todos os elementos se movem da mesma maneira, ou
que nem sempre o interesse do indivíduo em se mover corresponde às suas
possibilidades concretas. No caso do trânsito, por exemplo, a opção pelo

150
Deixar mover e fazer parar: Uma leitura do urbano pelas mobilidades

carro ou pela bicicleta indica um campo potencial pela disputa de espaço


no trânsito. Ser homem, mulher ou criança, outro. Ser jovem, idoso e/
ou pessoa com deficiência, outro. Ter opção de se deslocar com outros
modais, outro ainda. Permanecer imóvel, outro. Por isso, retomamos a
diferença entre movimento e mobilidade para enfatizar o caráter relacional
da mobilidade nas cidades.
Ao invés de levar em conta as vontades humanas ou as estruturas
fixas dispostas na cidade, consideramos os regimes de mobilidade em que
humanos e não humanos circulem juntos (Nail, 2019): para fazer mover,
há uma infraestrutura parada, ruas, postes e prédios; essa infraestrutura
é ela mesma atravessada por movimentos e controles (como o sistema de
processamento de informações que permite o funcionamento de semáforos);
há um agenciamento humano-máquina que faz movimento, com a escolha
modal; há um modo de distribuir a cidade, suas regras e regulamentações
que favorecem um modal em detrimento de outros (no caso do transporte
motorizado nas cidades contemporâneas), inserindo o trânsito em uma
trama de relações de poder que se atualizam e se distribuem na cidade.
Desviando das dicotomias entre sedentarismo e nomadismo, as mo-
bilidades devem ser analisadas na interdependência dos elementos que a
produzem, e não em esferas separadas (como transporte, viagens, lazer,
trabalho etc.). Antes, assume-se um ponto de partida relacional que con-
sidera no cerne do movimento estruturas e condições para deixar mover e
fazer parar. “A mobilidade é sempre localizada e materializada” (Sheller &
Urry, 2006, p. 210), o que quer dizer que existe um aparato infraestrutural
imenso que viabiliza e torna possível o movimento.

Disputas em trânsito. A cidade em perspectiva

A vida nas cidades se produz a partir de políticas, que dizem respeito


aos modos como as mobilidades são ao mesmo tempo produtoras e efeito
das relações sociais (Cresswell, 2010). Nesse sentido, mobilidade é um
recurso que pode ser lido como movimento físico, como representação
desse movimento e como prática concreta desempenhada por atores.

151
Relações pessoa-ambiente na América Latina

Assim, classe social, gênero, etnia, religião e outros marcadores sociais


de grupos específicos são atravessamentos importantes na produção da
mobilidade. Além disso, os motivos do deslocamento, a velocidade, o
ritmo, as vias pelas quais se move, os afetos disparados e o que produz e
faz parar o movimento são aspectos que inserem a mobilidade no campo
de força e nas disputas pelo poder. A definição de políticas da mobilidade
sinaliza para uma leitura desnaturalizante da mobilidade, uma vez que
diz respeito a relações sociais concretas, situadas e historicizadas. Nesse
sentido, mover-se tem o potencial de deslocar (ou desequilibrar) os jogos
de força que configuram as relações de poder.
A produção do espaço pode ser entendida como um modo de dia-
gramação das condutas, das subjetividades e da própria vida, entendendo
que os vetores que a compõem agem em nome do governo, em direção a
objetivos particulares (Osborne & Rose, 1999). A forma que uma cidade
adota, bem como as práticas cotidianas que aí se desenvolvem e os modos
de se deslocar não são pura concretização de um plano de prancheta. São
atravessados por interesses, disputas, narrativas, atores/as e utopias mui-
tas vezes divergentes. Produzir espaço é mover, narrar, confluir, afastar,
criar futuros possíveis, reforçar aquilo que já está. Atualizar essas lutas no
espaço vivido permite acessar seu processo de constituição, as condições
que tornaram possível sua emergência, fisgar elementos que deem a ver
como adota a forma atual (e não outra) e abrir para invenção de espaços
possíveis no limite do possível.
Em outras palavras, defender uma política da mobilidade nas cidades
implica distribuí-la na história e no espaço e analisar os movimentos e
fluxos a partir da ótica do poder. Se a mobilidade é um recurso, abre-se
campo para disputá-lo, torná-lo viável ou inviável, restringir ou facilitar
seu acesso. Por isso a questão do poder adquire centralidade nos estudos
sobre mobilidade (Jensen, 2011).
Ao afirmar que a produção do espaço é recortada por práticas de
mobilidade, aliamo-nos a certa leitura foucaultiana da governamentalidade
(Bærenholdt, 2013; Foucault, 2006; Jensen, 2011), conceito que se refere
a um conjunto delineado por instituições procedimentos e táticas que

152
Deixar mover e fazer parar: Uma leitura do urbano pelas mobilidades

permitem uma forma específica de exercício do poder, que tem vistas à


população (Foucault, 2006). Ou seja, trata-se de um conjunto de práticas
que institucionalizam uma lógica governamental, que colocam parâme-
tros, regras e rotinas através das quais a população governa a si própria.
Na constituição dessas práticas, o território se torna parte fundamental
do controle das populações. Nesse sentido, a territorialidade se desloca da
questão da soberania e controle de fronteiras para qualidades específicas
das áreas onde a população governa a si mesma, com o auxílio do próprio
ambiente físico e aparatos materiais, muitos dos quais agem sobre a mo-
bilidade (Bærenholdt, 2013).
Jensen (2011) e Bærenholdt (2013) se apropriam dos argumentos
foucaultianos sobre governo e poder (que remetem a fluidez e flexibili-
dade) para dizer que são dimensões imanentes à mobilidade. Com isso,
ampliam a dimensão das relações do poder na analítica do espaço inserindo
a mobilidade como vetor fundamental. Se as relações de poder são funda-
mentalmente fluidas, o governo e a governamentalidade não só negociam
e lidam com a mobilidade, elas funcionam pela mobilidade.
Portanto, a governamentalidade é recortada pelas práticas que incidem
sobre as populações e que levam em consideração o fato biológico funda-
mental do ser humano como modo de construir uma estratégia geral do
poder (Foucault, 2008). A vida biológica é posta como objeto de disputa
política na gestão da população visando à mitigação de riscos: parte-se do
dado que o trânsito é um contexto violento e perigoso por natureza (o que
se evidencia estatística e epidemiologicamente nos anuários de acidentes
e mortes), desdobrando-se na necessidade de desenvolver ferramentas de
gestão (dos povos e das condutas) que otimizem a circulação e ao mes-
mo tempo diminuam as mortes. A relação é probabilística: conduzir as
populações de modo que se aproximem de uma curva normal, tomando
os devidos cuidados para eventuais desvios, que podem ser corrigidos ou
simplesmente deixados de lado de acordo com o cálculo político que se
faça. Portanto, a relação entre as técnicas disciplinares (que incidem sobre
o corpo individual) e aquelas destinadas aos níveis mais gerais da popu-

153
Relações pessoa-ambiente na América Latina

lação é de complemento, sobreposição e interação, que ao mesmo tempo


individualiza e massifica.
Os efeitos de poder que as disputas pelo espaço provocam são de
ordem microfísica. Sob a perspectiva da mobilidade, condutas específicas
são incorporadas sem o uso da coerção ou da força. Isso porque o poder
é produtivo: produz efeitos de subjetivação pela modulação de emoções e
sentidos disparados pela paisagem urbana, desenhada para forjar afetos e
desejos nos habitantes das cidades; e produz efeitos de saber, ao construir
fórmulas para decifrar o comportamento de risco no trânsito e incidir
diretamente no protótipo do “bom pedestre”, “bom ciclista”, “bom moto-
rista”... Sujeitos móveis e suas práticas reais são situados, compreendidos no
lugar onde habitam, agem e performam suas vidas. A partir daí é possível
acessar a dimensão da produção dos sentidos da vida cotidiana, onde a
prática governamental de normalização e disciplina encontra a dimensão
do desejo e dos afetos das pessoas que vivem na cidade (Jensen, 2011).
Portanto, a governamentalidade e a gestão pela mobilidade se cravam
no território, onde as pessoas se constituem como tais dão sentido às vidas,
às práticas cotidianas e aos modos como circulam e fazem circular coisas,
corpos e ideias. Daí a necessidade de compreender como os modos de
organizar a cidade e produzir espaço implicam determinado modo de se
mover. Nesse sentido, mobilidade é uma ferramenta que age sobre a con-
dução das populações ao facilitar ou impedir o movimento, na construção
de barreiras seletivas e porosas o bastante para deixar passar e fazer ficar
alguns elementos específicos. A mobilidade, ela mesma, tornou-se parte
das novas formas de exercício do poder e de governamentalidade, ou antes,
um dispositivo que faz funcionar a cidade contemporânea.
Efeito desse modo de gestão da vida nas cidades é a disposição de
elementos (discursivos e não discursivos) que oportunizam ou impedem a
passagem e a permanência nos espaços compartilhados. Cresswell (2014)
caracteriza como fricção um modo particular de relação entre corpos e es-
paços que é vivenciada como frenagem ou dificuldade de acesso. Ao mesmo
tempo em que entendemos que a mobilidade é favorecida por uma série
de elementos mais ou menos imóveis, a ideia de fricção aponta para uma

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Deixar mover e fazer parar: Uma leitura do urbano pelas mobilidades

relação mais ambígua, de uma permanência relativa que ao mesmo tempo


impede e permite que a mobilidade ocorra (Cresswell, 2014). A relação
entre poder e fricção não é imediata e se expressa antes no modo como
ela é gerida de acordo com os corpos/informações/objetos que se movem.
Se o espaço planejado da modernidade é aquele que prevê o movi-
mento livre e absoluto, o conceito de fricção finca o movimento no mundo
vivido e compartilhado, em que nem todos têm as mesmas condições de
acessar a mobilidade da mesma forma. O movimento pendular na cidade
de São Paulo pode ser tomado como um emblema das facilidades e en-
traves seletivos à mobilidade. A necessidade de deslocamentos na cidade
acompanha sua complexa constituição territorial que tende a afastar o
acesso à moradia digna das oportunidades de trabalho, do acesso a serviços
e equipamentos públicos. Enquanto a cidade registra em séries históricas
a diminuição do tempo médio gasto em todos os deslocamentos diários
(em 2019 o/a paulistano/a ocupou 2h25min do dia em deslocamentos),
moradores/as das regiões leste e sul, locais evidenciam as desigualdades
urbanas, pressionam a média para cima, relatando 2h 39 min. e 2h 27
min. respectivamente. Enquanto 42% dos/das habitantes gastam até duas
horas em todos os deslocamentos diários, 39% levam entre duas e quatro
(ou mais) horas, dentre os quais 44% residem na zona leste. Em relação
ao modal, quase metade das pessoas relataram uso de ônibus municipal
de uma a cinco vezes por semana e apontaram preço da tarifa, lotação,
pontualidade e frequência dos ônibus como principais empecilhos para
o deslocamento3.
A pandemia da covid-19, que se tem se espalhado com vigor entre
os meses de abril e agosto em todo o território nacional, acompanha essa
mesma lógica de distribuição. Em pesquisa realizada na cidade de São Paulo,
que cruzou dados de internações por Síndrome Respiratória Aguda Grave
(incluindo covid-19) e o código postal disponível no sistema DATASUS,
sugere-se que as pessoas mais afetadas pela enfermidade foram aquelas que

3  https://www.nossasaopaulo.org.br/wp-content/uploads/2019/09/Apresentacao_Pesquisa_Vive-
rEmSP_MobilidadeUrbana_2019.pdf

155
Relações pessoa-ambiente na América Latina

tiveram que sair para trabalhar e realizaram percursos longos de transporte


coletivo4. De diversas maneiras a fricção tem sido uma ferramenta a favor
da manutenção do poder e da reprodução das desigualdades socioespaciais.
Geralmente, esse modo de operar a fricção é distribuído no território de
modo a proteger interesses estratégicos daqueles que se dedicam a limitar
a mobilidade da multidão.
Por outro lado, a fricção também pode ser entendida nas estratégias
de contrapoder. No dia 30 de junho de 2020, trabalhadores/as de aplica-
tivos de entrega de comida e mercadorias organizaram o “breque dos app”,
movimento que disseminou em diversas capitais brasileiras e latino-ame-
ricanas para “fazer parar” um mercado que, só no ano de 2018 no Brasil,
movimentou cifras que superam 200 bilhões de reais5. Os/as entregadores/
as reivindicaram melhores condições de trabalho e de remuneração, seguro
contra acidentes e roubos e condições de higienização para se prevenirem
do contágio ao novo coronavírus. Essa é a imagem bifurcada da fricção,
que ao mesmo tempo impede e impele à mobilidade irrestrita, a depender
do jogo de forças em que os corpos e ideias estejam envolvidos.
A disputa pela mobilidade se trava em movimento, aliando elemen-
tos discursivos e não discursivos. A cidade não é o palco, senão força que
compõe com um agenciamento complexo que deixa mover e faz parar.
A aproximação do campo das mobilidades abre para uma estratificação
da leitura política: a dos textos legais, cartilhas e políticas públicas que
emergem como institucionalização da gramática da cidade; a da produção
do espaço, que se dá no embate cotidiano de movimentos heterogêneos; e
uma política de subjetivação, ou uma política de afirmação de modos de
se mover que escapam à lógica de governamentalização da mobilidade. É
uma leitura política que estratifica e coexiste, como camadas de um mesmo
tecido heterogêneo de atores, objetos, ideias, corpos, textos, concreto, aço
e silício. O papel das políticas é também forjar um tipo de subjetividade,
é entretecida ao desenho da cidade neoliberal.

4  http://www.labcidade.fau.usp.br/circulacao-para-trabalho-inclusive-servicos-essenciais-explica-
-concentracao-de-casos-de-covid-19/
5  https://forbes.com.br/negocios/2019/06/conheca-o-bilionario-mercado-de-entregas-de-comida/

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Deixar mover e fazer parar: Uma leitura do urbano pelas mobilidades

Da distribuição da subjetividade

A história da modernidade se encarregou de construir diferentes nar-


rativas sobre o movimento (de corpos, ideias e mercadorias). Discursos que
se expressam no delineamento de fronteiras nacionais, no desenho urbano,
na distribuição de moradias, no acesso aos bens e serviços urbanos e na
criação de uma classe de sujeitos móveis. As transformações do modo de
produção capitalista e sua correlata dinâmica de deslocamentos produzem
filtragens e segmentações que estratificam o que e quem se move. O efeito
seletivo tem um fundo estético-político e inventa figuras subjetivas que
se antagonizam: o turista e o viajante como classes de pessoas desejáveis,
visíveis, pertencentes a um território e subordinados às regras de um poder
central. O negativo dessas figuras dá contornos subjetivos aos vagabundos,
fugidos, piratas e outra classe de errantes despertencidos, sem língua nem
lar, habitados por um mover que coloca as fronteiras sob tensão.
Essa não é a única polarização moderna que permanece ressoando.
Outras estratificações (eu X outro, interno X externo, social X psicológico,
cidade X campo) que privilegiem o indivíduo internalizado e essencializado
desfocarão a dimensão territorializada da produção de subjetividade. Nossa
aposta é que a reorientação do foco de investigação para as mobilidades
implica o descentramento do indivíduo de suas cognições e comportamen-
tos e o localize no jogo de forças que configura a vida e as relações sociais
sob a égide do capitalismo neoliberal. Nos limites da cidade-financeira,
da cidade controle, da cidade-fluxo, admitimos a possibilidade de rotas
outras, que transitem pela contramão, por corredores e vias transversais.
A interrogação que lançamos envolve o advérbio como: como sujeitos,
ao se moverem, ao dialogarem com a cidade, produzem o espaço e a si
mesmos? A resposta a essa pergunta será um esboço das micropolíticas da
mobilidade, ou seja, estratégias inventadas na escala local e cotidiana para
produzir o espaço e a si mesmo.
Afirmamos as micropolíticas antes por sua dimensão local e por suas
estratégias de se fazerem visíveis do que por sua escala (pequena ou grande).
Na dimensão local ficam evidentes as práticas de produção da vida, onde

157
Relações pessoa-ambiente na América Latina

A Cidade, O Capitalismo e A Mobilidade ganham expressões singulares,


ganham cor, corpo, gênero, e se materializam nos encontros diários, no
medo de andar nas ruas à noite, no olhar para trás para saber quem vem
na sequência, na invenção de espaços outros para garantir condições de
circulação, na sinalização com olhares e outros gestos que ultrapassam as
normas formais de circulação.
Ao admitir que as forças que compõem o mundo nos atravessam,
afirmamos a subjetividade como uma experiência que se constitui pelo fora.
Diferente da exterioridade (remetida à forma), o lado de fora diz respeito
às forças que estão sempre em relação com outras e remetem a um lado
de fora irredutível, ali onde se abre brecha para mútuas afetações de tais
forças (Deleuze, 2005). Ao tomar a subjetividade como uma superfície
que delimita dois lados, um dentro e um fora, o jogo de forças ao qual é
exposta a deixa tensionada. Ao não suportar a profusão dessas forças para
todos os lados, produzem-se rugas, irregularidades, a superfície dobra-se
sobre si mesma e faz mudar sua forma habitual. Nessa figura, a lógica de
separação entre dentro e fora deixa de fazer sentido, pois, na invaginação
da superfície, o dentro constitui-se por pedaços do fora. Nesse sentido,
subjetividade não pode ser definida nem como pura interioridade nem
pura exterioridade: ela se distribui, se espacializa, dissipa-se para fora de
si mesma e ganha consistência quando se dobra sobre si mesma. Ganha
densidade justamente na relação que estabelece com o fora.
Nail (2019) sugere que a dobra (ao lado de fluxo e campo de circulação)
é um conceito fundamental para entender as políticas da mobilidade. Se
a realidade social se constitui de fluxos e movimento, as dobras funcio-
nam naqueles casos em que se percebe alguma parada ou permanência. É
quando um fluxo se volta sobre si mesmo. Esse é o ponto de torção con-
ceitual entre mobilidade e subjetividade. Por exemplo, na criação dos/das
personagens do trânsito, o motorista/ciclista/pedestre não são indivíduos
puros e translúcidos, que se constituem isoladamente, mas configuram um
ponto preciso em que um processo se volta sobre si mesmo. O agencia-
mento pessoa-carro-rua-semáforo-velocidade permite definir de maneira
bastante precária e transitória essa dobra específica

158
Deixar mover e fazer parar: Uma leitura do urbano pelas mobilidades

A cidade interpela em diferentes pontos de vista, e o espaço construído


se produz como máquinas enunciadoras. Ele produz uma subjetivação
parcial que se agrega a outros elementos: “a cidade, a rua, o prédio, a
porta, o corredor... modelizam, cada um por sua parte e em composições
globais, focos de subjetivação” (Guattari, 2000, p. 161). Em termos on-
tológicos, Guattari (2000) permite a leitura da produção da cidade e da
subjetividade como partes de um mesmo processo que está sempre em
vias de se fazer. A parcialidade do processo de subjetivação sinaliza para
a possibilidade de entender a espacialização da cidade como algo que
ultrapassa as estruturas visíveis e funcionais. São máquinas de produção
de sentido com as quais compomos: dobra-se no e com espaço. Nossos
reflexos etológicos, sensações e órgãos do sentido se conjugam a esse meio
técnico-científico da cidade. Mesma matéria, forças transversais. Cria-se
um agenciamento que pode tanto operar no sentido do apagamento da
subjetividade como no sentido de uma ressingularização individual e
coletiva. A produção do espaço urbano implica certo processo de subje-
tivação. A cidade é um texto aberto.
Ao se admitir um campo de disputa de forças que produz subjetivida-
de-cidade, seja com o fora (outro/espaço) ou consigo mesma, destacamos
algumas que constituem esse processo: textos, políticas, planos diretores,
prédios, ruas, pessoas, bicicletas, trânsito, carros, motoristas, imagens. São
elementos heterogêneos que não se restringem ao intraindividual, ao psí-
quico ou somático, as se capilarizam para o campo da política, do Estado,
das tecnologias, do espaço construído e da comunicação.
No cruzamento desses elementos heterogêneos (humanos e não huma-
nos), esbarra-se com algumas majoritárias e outras minoritárias. O desenho
que se produz da cidade, sua paisagem geral e constituída é o vetor resultante
desse jogo de forças, em que há a prevalência de algumas em detrimento
de outras. São essas disputas que colocam a produção do espaço urbano
e da subjetividade no campo da política e nas teias das relações de poder.
Política diz respeito à vida, pois está na ordem das relações de poder e
da produção de subjetividade. Nesse sentido, para além da esfera institu-
cionalizada e da lógica governamental de exercício do poder, o campo das

159
Relações pessoa-ambiente na América Latina

micropolíticas abre para uma dimensão da produção da vida. Na escala


da cidade, nem todo gesto é político, mas pode ser politizável, pois se na
esfera pública o sentido de política se esvazia em benefício da ideia de
controle sobre o indivíduo, é no interior dessa mesma lógica das artes de
governar que as contracondutas podem ser engatilhadas.
Nas cidades contemporâneas, o discurso da mobilidade extrapola o
campo dos transportes e das governanças locais e envolve uma complexa
trama cotidiana de atores/as políticos/as, espaços, normas e modos de
circulação. Ao disputar a mobilidade, produz-se o espaço e a si mesmo
(Sheller, 2018). A aliança entre mobilidade e transporte sustentável, por
exemplo, agrega capital retórico e simbólico à vida na cidade, tendo em
vista que esses modos de circulação correspondem a um ideal da sociedade
de controle, que prevê o constante aperfeiçoamento de si: ser saudável,
ser ecológico, otimizar o tempo, influenciar boas práticas, ser 1% melhor
todos os dias. Soma-se a isso que não é qualquer corpo que circulará e
fará circular a cidade: na ordem do discurso da mobilidade ativa e verde,
é desejável (desde o ponto de vista da governança) que certos corpos ocu-
pem e performem a mobilidade de determinada maneira, mantendo seu
negativo (mulheres, migrantes, crianças, idosos) fora da circunscrição do
“cidadão desejável”. Essas dimensões da ação humana são a concretização
(ou os efeitos) dos discursos sobre a mobilidade sustentável que prescindem
de um poder centralizado em agências institucionalizadas e de um saber
técnico especializado para se capilarizarem no horizonte sociocultural de
nosso tempo. Agem como modo de polir e dar acabamento à subjetividade,
ou então delinear um horizonte existencial.
Se subjetividade e espaço são entretecidos por discursos da mobili-
dade, assumimos que mover-se coloca em diálogo e performa realidades.
Mover-se propõe uma narrativa do espaço, propõe modos de ser e estar na
cidade, mover afirma uma direção possível. Mover produz efeitos na reali-
dade. Ao que parece, o imperativo da mobilidade na sociedade dos fluxos
deve ser relativizado quando lido pelas relações de poder. A mobilidade é
uma das forças no contemporâneo que está em negociação com outras na
construção da vida cotidiana. O que propomos neste trabalho é a análise

160
Deixar mover e fazer parar: Uma leitura do urbano pelas mobilidades

das condições sob as quais pessoas, objetos, palavras, ideias e discursos se


movem; qual seu contexto de produção; o que emerge e o que permanece
inaudito, e não dito, e não visto e imóvel; e em seguida, que sentido os
“sujeitos móveis” atribuem a isso.

Considerações finais

Neste capítulo procuramos compor um quadro teórico que conjugue


conceitos como mobilidade, política, subjetividade e produção do espaço.
Com base nas ideias do paradigma das novas mobilidades, tensionamos a
ideia de que a cidade é um pano de fundo onde a vida se desenrola para
situá-la como força produtora nos processos de subjetivação. Nesse sentido,
situamos a produção do espaço como disputas móveis que se dão no plano
local, no campo das micropolíticas.
Endereçamos essa discussão ao campo das relações pessoa-ambiente
e da psicologia social, espaço de interlocução de nossa investigação atual
sobre a mobilidade com bicicletas como dispositivo de produção cidade-
-subjetividade. Outros estudos caminham no mesmo sentido, relacionando
mobilidade a fenômenos como apego e identidade de lugar em contextos
que envolvem deslocamentos, trânsito territorial e assimetrias de poder
em termos de permanência e acesso (Di Masso et al. 2019).
Entendemos que essa leitura acompanha o horizonte crítico da
psicologia social e das relações pessoa-ambiente por apontar para a
ultrapassagem de dicotomias tradicionais da psicologia que encerram a
subjetividade dentro do sujeito, opondo-o ao lugar e à história. Além
disso, a leitura da realidade pela lente dos movimentos e fluxos toca nas
possibilidades de aprofundar a compreensão das dinâmicas das cidades
contemporâneas, nas desigualdades produzidas por políticas da mobili-
dade e no entendimento da subjetividade como processos coextensivos
à produção da vida nas cidades.
A construção de um quadro teórico que agrega fixidez e fluidez con-
voca à reorientação das agendas de pesquisa para fenômenos que saltem os
muros do lar, do local e da homogeneidade de guetos e pequenos grupos.

161
Relações pessoa-ambiente na América Latina

Orientando as atenções para o sul global, em territórios onde as contradi-


ções neoliberais se acentuam, visibilizam-se fenômenos como migração,
refúgio, vida em situação de rua, acesso à habitação digna, ocupações e
remoções de terra no campo e na cidade, condição de deslocamento e acesso
à cidade, entre outros, tomando-os como efeito de uma forma específica de
sociabilidade no mundo contemporâneo que desvela as desigualdades de
acesso, de permanência e de vida nos territórios. A mobilidade impulsio-
nada pelo mundo globalizado convoca a outros modos de pensar o local,
os pertencimentos e os afetos que ligam pessoa e ambiente.

162
Deixar mover e fazer parar: Uma leitura do urbano pelas mobilidades

Referências

Bæernholdt, J. O. (2013). Governmobility: the powers of mobility. Mobilities, 8(1), 20-34.

Cresswell, T. (2006). On the move: mobility in the modern western world. New York:
Routledge.

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163
Capítulo VIII

El “hogar” en movimiento:
La expulsión en el espacio público de personas en
situación de calle
Catalina Ramírez Vega
Tomeu Vidal Moranta

Introducción

E l número de personas en situación de calle (PSC) en el mundo ha ido


en aumento siendo diversas las razones que explican dicho crecimiento.
En América Latina, por ejemplo, Serrano, Osorno y Silva (2012) atribuyen
al modelo de desarrollo la responsabilidad de que, de manera creciente,
surjan personas que se encuentran marginadas de las estructuras sociales
y, por tanto, sin acceso a condiciones básicas que les permitan disfrutar de
una buena calidad de vida. Costa Rica, en términos más específicos, no es
la excepción.
Desde el año 2016, la ciudad de San José, capital de Costa Rica y
núcleo urbano más populoso del país, ha visto duplicado el número de
personas en situación de calle, de acuerdo con la información registrada en
el Sistema de Información de la Población Objetivo del Instituto Mixto de
Ayuda Social. En términos cuantitativos, en apenas cuatro años el número
de PSC pasó de 1176 a 2377.
La vida de las personas en situación de calle transcurre la mayor parte
del día en el espacio público, no obstante, paradójicamente son muy pocos
los estudios que hacen del espacio público, de la calle y de las experiencias
de vida cotidiana de las PSC, el eje central de sus reflexiones según el sig-
nificado que todo ello tiene para estas personas. De cara a esta carencia,
Berroeta y Muñoz (2013) proponen que conocer la forma en que las PSC
significan el espacio que habitan, no sólo permitiría conocer sus prácticas

165
Relações pessoa-ambiente na América Latina

de vida sino que permitiría “explorar el trasfondo normativo desde dónde


se construye el espacio público contemporáneo” (p. 4). Esto se constituye
como un tema relevante para la psicología social, tanto por sus alcances
teórico-metodológicos como por la posibilidad de proponer intervenciones
sociales críticas que ajusten con las características y necesidades propias
de estas personas. También se torna un tema de interés para la psicología
ambiental, en particular, en la que a pesar de su énfasis en las relaciones
persona-entorno, tampoco abundan los estudios en este sentido.
En estas misma línea, Toolis y Hammack (2015) plantean que es ne-
cesario llevar a cabo estudios que den cuenta de la relación que establecen
las PSC con el espacio público, cómo lo significan, cómo lo ocupan y el
tipo de negociaciones que llevan a cabo para realizar ciertas conductas. Esto
permitiría conocer mejor a estas personas y, frente a procesos de interacción
social, generar métodos de desmitificación, dado que generalmente estas
personas tienden a ser consideradas como una amenaza para la seguridad,
el paisaje y la vitalidad económica del espacio público. Lo cierto es que
las PSC tienen su vivencia de construcción de hogar en la calle, ésta se
convierte en el continente que las “cobija” y en el que establecen relaciones
interpersonales significativas, pero a la vez, es el espacio donde enfrentan:

los embates del azar y de la marginalidad, de la pobreza y la exclu-


sión, del maltrato y del dolor; del desplazamiento, la soledad y la
orfandad, del delito y del ocio improductivo, de los psicoactivos, la
mendicidad y el rebusque. Desde este panorama, la calle queda sig-
nificada como espacio para la sobrevivencia. (Correa, 2007, p. 42)

Sheehan (2010) respalda nuestra posición de que los científicos so-


ciales han dedicado menos tiempo a considerar la relación que existe entre
las personas en situación de calle y el lugar que consideran casa o lugar
de trabajo. En este sentido se ha prestado menos atención al estudio del
universo de sentido propio de la relación que la PSC establecen con estos
espacios, el pasado que se comparte y la pertenencia que se experimenta.
Daya y Wilkins (2012) destacan que una parte de la investigación que se
realiza sobre espacio público y PSC, se ha centrado en estudiar los dispo-

166
El “hogar” en movimiento: La expulsión en el espacio público de personas en situación...

sitivos diseñados para regular y vigilar las formas cómo las PSC utilizan
el espacio público, las formas cómo resisten y burlan estos dispositivos de
control y, finalmente, cómo, de diversas maneras, logran construir espacios
propios dentro de las ciudades. En medio de esto, Sheehan (2010) señala
que uno de los vacíos más significativos es la carencia de estudios sobre
los afectos, las emociones y las situaciones relacionales que se dan a partir
de la falta de vivienda.
En función de las carencias detectadas nos parece importante ocuparnos
de estudiar precisamente la relación que establecen las PSC con el espacio
público, las actividades que desarrollan, los procesos a partir de los cuales
convierten o significan el espacio público en espacio privado, los significados
que atribuyen a estos lugares en su vida cotidiana. Y, en el plano de la interven-
ción social, poder generar conocimiento del que derivarán recomendaciones
acerca de cómo afrontar integralmente esta situación, esto es, tal y como
lo entiende Di Iorio et al. (2014), desde una perspectiva restaurativa y de
cuidado que supere los enfoques asistencialistas, articulando a las PSC, a las
políticas públicas, a las instituciones gubernamentales y a las organizaciones
del tercer sector que trabajan con estas personas.
En este capítulo presentamos avances de un proceso de investigación
que estamos llevando a cabo con personas en situación de calle de la pro-
vincia de San José en Costa Rica. Esta investigación tiene por objetivo
contribuir para atenuar los vacíos recién descritos y, por ello, se ocupa
de tratar de entender la compleja relación que establecen las PSC con el
espacio público y las formas como construyen cotidianamente su hogar en
dicho espacio. Utilizando entrevistas en movimiento nos adentramos en
este mundo con el objetivo de contar historias según la miran, la sienten
y la viven las PSC.

¿Por qué personas en situación de calle (PSC)?

Para designar a estas personas en la literatura encontramos diferentes


denominaciones: “personas en situación de calle”, “personas en la calle”,
“personas sin hogar”, “personas sin techo”, “habitantes de calle”, “deam-

167
Relações pessoa-ambiente na América Latina

bulantes”, “homeless”, entre otras. Estas denominaciones corresponden


con maneras específicas de entender e intervenir/abordar este fenómeno.
Para Rosa (2010), la etiqueta que se utilice para designar a esta población
está asociada, al menos, a dos direcciones o perspectivas, a saber, aquellas
que ponen el énfasis en la persona y aquellas que lo ponen en la situación.
Cuando el énfasis de la definición se pone en la situación más que
en las personas, los planes y las intervenciones que se desarrollan no son
dirigidas a un grupo de personas en particular, sino a enfrentar una si-
tuación en la cual se vulnera un derecho fundamental de las personas,
como es el derecho a la vivienda (Ajuntament de Barcelona, 2016). Por
el contrario, términos como “personas sin techo”, tienden a definir la
situación como si se tratase de una condición personal, lo que ha llevado
a autores como Rosa (2010) a no recomendar su utilización y en su lugar
optar por denominaciones tales como “habitantes de calle”, dado que en
una denominación de esta naturaleza:

el énfasis está puesto en el medio en donde la persona habita y de-


sarrolla su vida cotidiana y no en sus carencias. Se habla de habi-
tantes porque se entiende que estos habitan el espacio de la calle
pues entablan una relación con el entorno y establecen vínculos e
interacciones con diferentes personas y grupos que se encuentran
en su misma situación como con otros que no (vecinos, comercian-
tes, transeúntes etc.). (p. 12)

Lo esencial de esta definición es que, en su comprensión del fenóme-


no, va más allá de la mera posesión o carencia material de la vivienda, en
tanto entiende que estas personas desarrollan su vida “en la calle no solo
como una condición física territorial” (Rosa, 2010, p. 12), sino como una
situación psicosocial compleja en donde se establecen distintas relaciones
interpersonales y se generan prácticas de subsistencia a partir de una desigual
distribución del espacio público (Di Iorio et al., 2017).
La denominación “personas en situación de calle”, en consonancia
con la anterior, refiere precisamente a una situación y no a una condición
irrevocable y casi inmanente a la persona: “es decir, que a partir de esta

168
El “hogar” en movimiento: La expulsión en el espacio público de personas en situación...

categoría se entiende que vivir en la calle es una situación transitoria” (Rosa,


2010, p. 12). En este mismo sentido, Di Iorio et al. (2014) definen el estar
en situación de calle como:

una paradójica forma de inclusión social sostenida desde la expulsión


y la marginalización, la ruptura y/o la fragilidad de vínculos sociales,
laborales y familiares, las dificultades para cubrir necesidades mate-
riales, simbólicas y afectivas, así como también para acceder a bienes y
servicios (salud, educación, vivienda, alimentación, justicia etc.). (p. 1)

A su vez, Correa (2007) define al habitante de calle como “aquella per-


sona cuya vida se desenvuelve fundamentalmente en la calle, como espacio
físico-social, donde resuelve necesidades vitales, construye relaciones afectivas
y mediaciones socio-culturales estructurando un estilo de vida” (p. 40).
Para la compresión de la vinculación de las personas en situación de calle
con los lugares que transitan cotidianamente, coincidimos con Di Iorio et
al. (2017), asumiendo que ésta no debe ser definida como un estado o cosa,
sino como “una relación social, donde lo efímero se convierte en constante,
emergiendo una forma de padecimiento social relacionada con expresiones de
inequidad e injusticia social, configurándose identidades estigmatizadas” (p. 4).
En concordancia con esta línea, el punto de partida de cualquier inter-
vención con personas en situación de calle debe partir de la comprensión de
que estas personas fueron llevadas por diferentes motivos a esta situación,
y no nacieron en la calle (Di Iorio et al., 2017). Debe, en consecuencia
reconocerse la complejidad y el carácter multicausal del fenómeno, causas
que pueden estar asociadas tanto a aspectos individuales/familiares como
a aspectos sociales-estructurales, relacionados a los cambios que se dan en
los ámbitos laborales, en las condiciones básicas de vida y en los procesos
de exclusión o marginalización social.

Supuestos teóricos

La disponibilidad de una vivienda conlleva a una serie de procesos


psicosociales (sentido, identidad, seguridad, sentido de arraigo y perte-

169
Relações pessoa-ambiente na América Latina

nencia), como muestran los conceptos de hogar y apego al hogar. En el


caso de las personas en situación de calle las tensiones provocadas por la
carencia desplazan la construcción de dichos vínculos hacia el espacio
público, a través de los recorridos por los lugares en los que transcurren
las experiencias diarias de las PSC. En este apartado describimos algunos
elementos conceptuales que nos permiten situar una lectura teórica acerca
de la vinculación de las PSC con los espacios por los cuales se mueven
cotidianamente. En concreto nuestra lectura del proceso de construcción
de hogar de las PSC se apuntala principalmente sobre conceptos tales como
espacio público, hogar y apego de lugar.

La fragilidad del sentido de propiedad en el espacio público

En las plazas, parques, calles, entre otros lugares, las personas tienen sus
encuentros sociales, realizan actividades que les generan diversión y ocio,
consumen productos que les permiten satisfacer sus necesidades básicas
y, en algunas situaciones específicas, expresan en estos lugares demandas
políticas. Valera (2008) define el espacio público como “el espacio de todos,
o mejor, el espacio para todos” (p. 150).
Di Masso (2015) señala que de las definiciones existentes sobre el espa-
cio público se colige que se trata de un espacio en el que tienen libre acceso
los diferentes grupos sociales y sin restricciones de uso. No obstante, “… el
disentimiento en torno a los usos legítimos del espacio urbano es una práctica
definitoria del espacio público” (Di Masso, 2007, p. 2), esto se deriva de la
existencia de diferentes grupos que requieren usar el espacio de formas diversas,
de modo tal que satisfagan sus necesidades. Es decir, que los espacios públicos
son “todas aquellas áreas que están abiertas y son accesibles a todos los miem-
bros del público en una sociedad, en principio, pero no necesariamente en la
práctica” (Neal, citado por Di Masso et al., 2017, pp. 66-67).
En esta lógica también hay que reconocer que el libre acceso y uso del
espacio público da lugar a interacciones francamente competitivas entre los
actores sociales por lo que habría que entender el espacio público como un
escenario también conflictivo; esta postura conflictivista del espacio público:

170
El “hogar” en movimiento: La expulsión en el espacio público de personas en situación...

defiende de forma radical que el espacio público siempre ha estado


fundamentado en alguna forma de exclusión social (esclavos, mujeres,
niños, extranjeros, bárbaros, indígenas, negros, clase obrera, indigen-
tes, inmigrantes, adolescentes alternativos, okupas, drogadictos, ho-
mosexuales, prostitutas, skaters, movimientos sociales etc.) La exclu-
sión, y más concretamente, las luchas de los sectores excluidos por ser
incluidos y aceptados como públicos legítimos, son condiciones estruc-
turales del espacio público. (Di Masso et. al., 2017, p. 60)

Desde esta perspectiva, las personas en situación de calle forman parte


de los grupos que han sido excluidos del espacio público, ya sea porque
generan desorden, o bien, porque hacen de este un uso “inadecuado”,
tomando por ejemplo una calle o una esquina como si fuera una casa o
un espacio propio.
Para determinar los usos “adecuados” del espacio público, las personas
generalmente se posicionan desde el espacio privado y desde allí establecen
los límites entre lo que es posible realizar en un ámbito y en otro. Ahora
bien, si para establecer un uso inadecuado del espacio público nos posicio-
namos desde el espacio privado ¿qué pasa cuando una persona construye
hogar en el espacio público?
El concepto de hogar, tal y como predica Windsong (2010), se rela-
ciona con la posibilidad de “echar raíces” en un espacio, un lugar donde se
viven y establecen relaciones de tipo primario con otras personas, lugares y
cosas. Dovey (1985) plantea que la vivencia de hogar surge de un vínculo
significativo y duradero entre la persona y el entorno. La sensación de
“estar en casa” posibilita orientarse dentro de un orden espacial, temporal
y sociocultural que se comprende porque resulta un lugar familiar, que
se siente propio y que brinda una gran seguridad al sujeto para situarse y
“manejarse en el espacio”.
De acuerdo con Moore (2007), el hogar concentra diversas actividades
y funciones, es una fuente de identidad para las personas, brinda un sentido
de pertenencia con el pasado y todo ello lo convierte en algo que va mucho
más allá del mero lugar físico. Esta misma autora plantea que el contexto
físico en el que se encuentran las personas en situación de calle es muy
importante, pero a pesar de ello su relevancia ha sido negada u omitida en

171
Relações pessoa-ambiente na América Latina

las distintas investigaciones que se llevan a cabo. En la lógica de esta autora


suponer que, en la experiencia de las personas en situación de calle, hay una
ausencia absoluta de sentirse en casa y de sentido de pertenencia es ignorar
las tensiones que existen entre el concepto de hogar y estas personas.
Generalmente, al término hogar se le atribuye una valoración positiva
(Manzo, 2003; Moore, 2000), no obstante, diversas situaciones hacen que
dicha valoración sea muy discutible. La violencia intrafamiliar constituye un
ejemplo categórico que ilustra lo anterior ya que pone en evidencia que hay
hogares “tóxicos” que ni brindan seguridad a las personas ni operan como
dispositivos integradores en términos identitarios sino todo lo contrario.
Este tipo de situaciones destrozan la ilusión del hogar como una instancia
armónica, mostrando que puede ser fuente de graves conflictos al punto de
terminar convirtiéndose en un espacio inseguro (Brickell, 2012), en una
suerte de “antihogar”. El hogar no es reductible a un espacio físico donde
vivir, se trata además y principalmente de un proceso social y psicológico
con distintas cualidades que son valoradas por grupos específicos (Rivlin &
Moore, 2001), tales como control, privacidad, independencia, seguridad,
comodidad y libertad.
Cladera, Garcia, Estany y Uribe (2019) plantean que las personas en
situación de calle que acceden a un apartamento a través del Programa
Housing First, empiezan a experimentar y reconocer estas cualidades —
principalmente la sensación de control y de apropiación del espacio— a
partir de los 24 meses de habitar el lugar. Es por esto que se insiste en
que, a las personas en situación de calle se les debe proveer de opciones
permanentes de vivienda en vez de ofertas temporales de alojamiento.
Asimismo, situándonos en una lógica que se distancia notablemente de los
enfoques tradicionales, se hace necesario operar cambios en el ejercicio del
rol profesional en el sentido de pasar de la intervención asistencialista al
rol de acompañamiento en la construcción de hogar. Esto implica, entre
otras cosas, visualizar a la otra persona como capaz de tomar sus propias
decisiones, con el fin de fortalecer, precisamente, las cualidades a las que
hacíamos referencias líneas atrás (control, independencia, seguridad, li-
bertad, etc.).

172
El “hogar” en movimiento: La expulsión en el espacio público de personas en situación...

Otro aspecto de suma importancia es que para entender a cabalidad


la experiencia de las personas en situación de calle, es necesario conocer los
desplazamientos y recorridos que realizan diariamente estos individuos con
el propósito de buscar satisfacer sus necesidades básicas como aquellos que
realizan con otros propósitos y por voluntad propia. Coincidimos con May
(2000) en que esta experiencia no puede ser comprendida sin considerar el
movimiento. La relación entre los vínculos con los lugares y el movimiento
ha sido entendida como polos opuestos a lo largo del tiempo. Algunas ex-
cepciones en la literatura son Moles y Rohmer (1972), quienes recogían dos
lógicas de la dialéctica espacial (centralidad y extensión), correspondientes a
dos modos de apropiación del espacio (arraigo y vagabundeo), o también la
doble lógica (Roots and routes) apuntada por Gustafson (2001).
En los últimos años, en cambio, se ha producido lo que algunos han
denominado el giro de la movilidad en ciencias sociales (Creswell, 2006;
Urry, 2000) y en el estudio de los procesos de vinculación entre personas y
espacios (Gustafson, 2014), incorporándose mayor diversidad en las formas
de vínculos con los lugares y argumentos para entenderlos (Di Masso, et
al. 2019). Es por esto que, en cuanto al apego de lugar, incorporamos la
argumentación teórica relacionada con la movilidad. Desde esta perspec-
tiva, reconocemos que tanto las comunidades como las personas tienen
distintos apegos a lugares relacionados con la movilidad e inmovilidad. El
apego de lugar, por tanto, no es una construcción psicológica estable, sino
que se transforma con el paso del tiempo y de acuerdo con las condiciones
de movilidad (Di Masso et al. 2019) lo que nos brinda una oportunidad
para situar los recorridos y las formas de relación con los espacios públicos
y los “hogares” o la suplencia de ellos entre las personas en situación de
calle en San José.

Método de producción de información

Para llevar a cabo la investigación que nos hemos propuesto y que


consiste en estudiar las experiencias de vida de personas en situación de
calle, las relaciones que tejen y construyen y los significados que atribuyen

173
Relações pessoa-ambiente na América Latina

a los diferentes lugares que habitan y por los que transitan en el espacio
público, optamos por una metodología de tipo cualitativa. Esta nos per-
mite comprender “casos concretos en su particularidad temporal y local,
y a partir de las expresiones y actividades de las personas en sus contextos
locales” (Flick, 2012, p. 7) y enfatizar en las historias o en los contextos
en los que ocurren ciertas situaciones, sin pretender la homogenización
de estas en todos los contextos (Levitt et al., 2018). Para el caso que nos
ocupa, ello ha significado incorporarnos “desde dentro” en las situaciones
y actividades cotidianas de las PSC.
Las personas participantes en esta investigación son sujetos mayores
de 18 años con una vivencia de calle cronificada, es decir, que han per-
manecido en un mismo sitio por mucho tiempo, o bien, que han tenido
una vivencia intermitente en la que han alternado la permanencia en calle
con el alojamiento en albergues, hoteles o casas. El contacto inicial con
las personas participantes lo hicimos a través de dos organizaciones que
trabajan brindando apoyo a esta población, a saber, el Centro Dormitorio
de San José y la Fundación de la Mano con la Calle. Para poder concretizar
el trabajo de campo, tuvimos entrevistas tanto con el Director del Centro
como con la Directora de la Fundación, quienes nos abrieron espacios de
inserción en ambas organizaciones participando en un primer momento
como voluntarios en los servicios y las actividades que desarrollan para la
población. Este primer momento nos permitió familiarizarnos con el trabajo
de estas organizaciones y hacer contacto con las personas que estuvieren
dispuestas a participar de esta investigación. Este proceso inicial consu-
mió un largo periodo de tiempo durante el cual se construyó un vínculo
de confianza tanto con los miembros de las organizaciones como con los
usuarios y usuarias de sus servicios que se convertirían eventualmente en
participantes de esta investigación.
La cantidad de tiempo invertido en la fase inicial de contacto con
las personas en situación de calle ha sido necesaria porque consideramos
que un aspecto central en esta investigación, en vista de la metodología
empleada, es la construcción de un vínculo de confianza, de cuidado y
respeto hacia el otro, y porque tal y como plantea Ferrándiz (2011), la

174
El “hogar” en movimiento: La expulsión en el espacio público de personas en situación...

calidad de los datos que se produzcan depende del vínculo que se establece
con el otro. Es por esto que la duración del trabajo de campo en San José
se ha prolongado por un periodo aproximado de dos años. Durante este
período hemos hecho uso de diferentes técnicas de producción de infor-
mación tales como observación participante, conversaciones informales,
entrevistas en movimiento y toma de fotografías.
Tal y como hemos mencionado, por medio de la observación partici-
pante hemos podido tomar parte en una gran cantidad de las actividades
cotidianas en las que participan personas en situación de calle tanto en el
marco de las actividades llevadas a cabo por organizaciones como otras
actividades realizadas a título personal. Hemos podido participar en acti-
vidades tales como celebración de cumpleaños, partidos de fútbol, talleres
de capacitación y reflexión, cine foros y, en todas ellas, hemos establecido
un vínculo construido a partir de encuentros y múltiples conversaciones
informales.
El uso de las “conversaciones informales” ha mostrado ser un recurso
de mucha utilidad ya que permite “descentrarse del lugar central de las
preguntas para integrarse a una dinámica de conversación, que va tomando
diversas formas, y es responsable de la producción de un tejido de infor-
mación que [implica] con naturalidad y autenticidad a los participantes”
(González, 2007, p. 32). La naturalidad de las conversaciones informales
ha permitido no solo un tráfico fluido de intercambios comunicacionales
cargados de una gran cantidad de información sino también crear las
condiciones para granjearse la confianza de los participantes para permitir
previa firma del consentimiento informado la realización de las entrevistas
en movimiento Durante las entrevistas en movimiento (walking interview)
recorremos junto a las personas las trayectorias que realizan cotidianamente,
y platicamos acerca de los lugares incluidos en sus recorridos, los significa-
dos que les otorgan y las conexiones que tienen con el sitio específico. El
objetivo de esta técnica es conocer la relación de la persona con el espacio
(Evans & Jones, 2011) ya que son las mismas personas las que definen
los recorridos. Durante las entrevistas en movimiento se realiza también
la toma de fotografías y para ello le preguntamos a la persona si desea

175
Relações pessoa-ambiente na América Latina

fotografiar (ellos y ellas mismas) los lugares que considera especiales a lo


largo de su trayectoria, para profundizar durante la entrevista y posterior
a ella acerca del valor atribuido a lugares específicos que son significativos
en su experiencia de vida.
La información producida a partir de cada una de las técnicas que
utilizamos se registra en un diario de campo. Durante el trabajo de campo
se registran temas, nombres de personas y lugares, percepciones, algunas
sensaciones y todos estos elementos operan como recursos mnémicos claves
para posteriormente hacer una reconstrucción detallada de lo sucedido.
En el diario registramos todo lo que sucede en el espacio que se comparte
con las PSC, lo que pasa en las organizaciones y en el espacio público.
Los hitos estructurales del registro están conformados por lo que Guber
(2014, p.105) denomina con el acrónimo PATE que refiere a personas –
actividades – tiempo – espacio.” (p. 105)

Hallazgos preliminares: lo que nos muestra la


información producida en movimiento

En este apartado presentamos algunos resultados preliminares derivados


principalmente de las entrevistas en movimiento realizadas en la ciudad de
San José. Las rutas recorridas durante la entrevista fueron elegidas por cada
una de las personas en situación de calle, y corresponden a sus recorridos
cotidianos. El significado atribuido a cada uno de los lugares significativos
corresponde a una combinación de elementos subjetivos, interpersonales y
de satisfacción de necesidades básicas. El significado atribuido a los lugares
muestra valoraciones, tanto positivas como negativas, en función de la ex-
periencia de cada una de las personas, en relación con dichos lugares, y del
tipo de vínculo que establece tanto con el lugar como con otras personas.
El primer hallazgo que informamos, de trascendental importancia para
el desarrollo de esta investigación, es que hemos podido identificar aspectos
básicos acerca de cómo trabajar con personas en situación de calle. Hemos
aprendido que para cumplir con los objetivos que nos hemos trazado es
vital trabajar, en primera instancia, en la construcción de un vínculo de

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El “hogar” en movimiento: La expulsión en el espacio público de personas en situación...

confianza con las personas y con las organizaciones que trabajan con ellas,
que permita crear un ambiente de libertad, transparencia y compromiso
mutuo. La construcción de este vínculo de confianza pasa también por
la necesidad de crear una situación relacional que se encuentre a salvo
de prejuicios y estigmatizaciones. El haber destinado varios meses a la
construcción de este vínculo de confianza ha permitido realizar entrevistas
fluidas en las que hemos podido identificar el compromiso y la franqueza
de las personas a la hora de compartir sus vivencias en el espacio público.
En lo que respecta propiamente a la información producida, nuestros
análisis preliminares nos han permitido identificar que, entre los lugares
significativos en los recorridos por la ciudad, se encuentran lugares ligados
a la historia familiar, mismos lugares significados y usos distintos, lugares
para satisfacer necesidades básicas y lugares asociados a la experiencia de
hogar en el espacio público. A continuación presentamos algunos ejemplos:

1. Lugares ligados a su historia previa:

Durante esta entrevista en


movimiento, la persona nos guía
a un parque, y al encontrarnos con
este monumento comenta:

“Esta estatua me recuerda mi pasado,


porque vea una de las figuras tiene un
hacha en su mano, y eso lo usaban en mi
pueblo.” (p. 2)

177
Relações pessoa-ambiente na América Latina

2. Mismos lugares, significados distintos:

Durante dos entrevistas en movi-


miento con diferentes personas, llega-
mos a este sitio llamado “El Taconazo”,
y cada una de las personas mencionó
cosas distintas, la primera se refirió así:

“Aquí yo vengo a tomar café en la tarde, llego


a las 4:30 – 4:45 y luego me voy a la Biblioteca
Nacional, para revisar el correo electrónico”

Posteriormente, durante otra


entrevista en movimiento, la persona
refiere lo siguiente:

“Yo vengo de 4 a 6 para mantenerme concen-


trado y evitar los vicios, gasto tiempo y no estoy
libre sin hacer nada y pensando tonteras.” (p. 2)

3. Lugares para satisfacer sus necesidades básicas:

En cuanto a los dispositivos o es-


pacios que utilizan para la satisfacción
de sus necesidades básicas, estos no
resultaron ser especialmente signifi-
cativos, sino que fueron menciona-
dos con respecto a la necesidad que
satisfacen y en el día específico de la
semana. Para satisfacer las necesida-
des alimenticias, una de las personas
menciona:

178
El “hogar” en movimiento: La expulsión en el espacio público de personas en situación...

“Uno se levanta, y tiene que pensar el día que es. ¿Qué día dan desayuno
y dónde? Entonces, me voy para las Obras del Espíritu Santo.

Esto significa que, para satisfacer sus necesidades, los recorridos se


constituyen a partir de los lugares en que les brinden alimentación, ropa,
entre otros.

4. El hogar en el espacio público:

¨…ven, esa es la casa de alguien”. (p. 5)

Los recorridos realizados con


las PSC van a depender del día de la
semana y los lugares en los cuales les
brinden apoyo en la satisfacción de
sus necesidades básicas. Asimismo,
los lugares elegidos están relaciona-
dos con el bienestar que sienten cada
una de las personas en estos lugares,
y de algunas características ambien-
tales: tránsito de personas, de coches,
permanencia de otras personas en
situación de calle, peligrosidad del
lugar, entre otras. Asimismo, en las
entrevistas relatan la necesidad de moverse constantemente, de acuerdo
con las limitaciones que se les imponen para habitar espacios específicos,
tanto por los y las vecinas de los lugares como por acciones represivas de
las autoridades de la ciudad.
Las conversaciones informales y las entrevistas en movimiento nos han
permitido ver en su estado natural las condiciones azarosas en que viven
estas personas y tomar consciencia de un aspecto que resulta a nuestro
entender medular, a saber, que la situación de vida y el destino de estas

179
Relações pessoa-ambiente na América Latina

personas no pasa de ser visualizado como un problema de carácter indi-


vidual y de ello dan cuenta los periplos cotidianos que tienen que realizar
con el propósito de conseguir suministros básicos y de encontrar un lugar
seguro para pernoctar. Una perspectiva afincada en la estructura política
económica no se vislumbra ni siquiera en las organizaciones que dan apoyo
a esta población, en su lugar se imponen perspectivas individualistas.
La vigencia de perspectivas funcionalistas en las cuales el tema de las
personas en situación de calle se visualiza como una disfunción del sistema
afectada por agentes extraños y no como una fractura de carácter estructural,
hace que la vida de las personas sin hogar se vea atrapada en dinámicas de
estigmatización y las expectativas de vida terminen siendo significadas como
parte de una especie de reinvención individual. Esta miopía estructural
queda de manifiesto en los relatos de las personas que hemos entrevistado
cuando expresan que a nadie parece importarle verdaderamente lo que les
sucede, lo que se hace patente en la carencia de opciones integrales que
permitan efectivamente resolver problemas concretos de personas concretas,
pero también atender las contradicciones socio económicas que están en
la base de la emergencia de este tipo de situaciones.

Reflexiones

A partir de lo que hemos desarrollado hasta ahora, las distintas organi-


zaciones que hemos conocido y la revisión de los planes y políticas públicas
que hemos realizado, consideramos imperativa la necesidad de incorporar
el trabajo en el espacio público con las PSC. Asimismo, consideramos
fundamental, contemplar las actividades que desarrollan y la forma que
se vinculan en el espacio público para la generación de dispositivos de
acompañamiento más acordes a sus necesidades, contemplando y dando
prioridad a esos movimientos/desplazamientos que realizan las personas
en situación de calle.
La comprensión de las relaciones que establecen las PSC con los lugares,
las características físicas y las dinámicas interpersonales que se dan en ellos
y entre ellos, posibilitarían diseñar espacios de acogida u opciones de aloja-

180
El “hogar” en movimiento: La expulsión en el espacio público de personas en situación...

miento que resulten más adecuadas para la propia población. Es acercarse


a ellos y ellas, y desde ellos y ellas, conocer sus preferencias y las razones
por las cuales eligen un lugar u otro, entendiendo las particularidades y
las generalidades de la vivencia de la situación de calle por cada una de las
personas, para diseñar dispositivos más acordes a sus necesidades. Esto se
ha visto reflejado más claramente en la crisis del COVID-19, durante la cual
se han creado albergues para acoger a PSC en lo que se ha restringido el
ingreso de mascotas, siendo que para muchas de estas personas su mascota
representa el vínculo más importante. Ante la prohibición usualmente
las personas se deciden por continuar en la calle en vez de permanecer en
estos dispositivos.
Así, como hay personas que llevan su hogar en la espalda, otras lo
construyen en un espacio público, en un parque o en otro sitio, o bien, lo
encuentran en los dispositivos de atención pensados para ellos y ellas. Si se
lograra comprender, tal y como lo plantea Moore (2007), el hogar como
un proceso continuo, dentro de las lógicas de atención a esta población se
generarían apoyos para su construcción tanto desde las políticas públicas
como en las estrategias de trabajo con esta población. Un enfoque de esta
naturaleza redefine las coordenadas prevalentes en los enfoques tradicio-
nales cuya preocupación fundamental descansa en el inmueble y redirige
la mirada hacia otros órdenes de materialidad -menos economicistas y
arquitectónicos- más centrados en los procesos psicosociales.
Consideramos necesario seguir desarrollando investigaciones que den
cuenta desde las propias personas en situación de calle, de las relaciones que
establecen con y en el espacio público, los afectos que se movilizan, y la
necesidad de pensar en espacios diferenciados para hombres y mujeres que
viven esta situación. Esto se daría a partir de metodologías que posibiliten
la construcción de un vínculo con la persona y se adecúen a la movilidad
característica de estas personas, para incidir y generar nuevos dispositivos
de acompañamiento, que traspasen los enfoques asistencialistas.

181
Relações pessoa-ambiente na América Latina

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184
Capítulo IX

Contribuições de um estudo
etnográfico no circuito-rua do
Centro de São Paulo para a
discussão sobre a rualização
nas relações pessoa-ambiente
Gabriela Milaré
Gustavo Martineli Massola

A pandemia escancara um processo territorial desigual no Brasil de longa


data: as diversas regiões do país têm sido desproporcionalmente afetadas
por suas consequências sociais, econômicas e sanitárias, com um número de
mortes mais elevado em bairros, estados e regiões empobrecidas e vulnera-
bilizadas, bem como entre pessoas pretas, pardas e indígenas (ISA, 2020;
Santos et al., 2020). Esse momento de agravamento de desigualdades revela
ainda em específico sobre a relação entre o espaço da casa e da rua, como
visto pelo aumento de pessoas em situação de rua e pelo dobro de remoções
e despejos na cidade de São Paulo nesse período (Lara, 2020; Marino et al.,
2020). O processo histórico da relação entre casa e rua é pautado em uma
dicotomia na qual o último polo, como espaço coletivo, compartilhado,
público, ganhou uma série de conotações negativas – o perigo, a desordem,
o desconhecido, o diferente, o inaceitável, local de passagem. A casa, lugar
da proteção, da ordem, do controle, do espaço sagrado da família, do seme-
lhante, do conhecido, da permanência, foi permeada por símbolos positivos.
A casa, lugar da centralidade hegemônica. A rua, lugar da exclusão periférica.
Para muitas pessoas, porém, a rua é casa.
Conforme a intuição original de Proshansky, Fabian e Kaminoff (1983),
a identidade psicossocial é, além de social, espacial. Uma extensa literatura

185
Relações pessoa-ambiente na América Latina

já foi dedicada à importância da casa para nossa identidade de lugar (Ba-


chelard, 2008; Massola & Svartman, 2018; Terkenli, 1995; Tuan, 1980).
De maneira esperada frente à conotação negativa que carrega – não apenas
como lugar que abarca o indesejável, mas também no qual não se cultiva
pertença – muito pouco foi dedicado ao papel da rua nesse processo.
Gostaríamos de apresentar neste texto algumas reflexões sobre o papel da
rua em nossa identidade de lugar a partir de uma situação extrema em que
supomos que a importância desse papel se torna mais evidente.
Nossa análise parte do centro antigo de São Paulo, retomando ele-
mentos históricos e sociais que constituem esse território efervescente,
heterogêneo e em permanente disputa. Ao reconhecer que há discursos
e preocupações mais legitimados frente à atenção de governos, da mídia
e do mercado imobiliário quando se referem a territórios historicamente
privilegiados em relação a territórios periféricos da cidade, como é o caso
da região central de São Paulo, é pela marginalidade que abriga o território
que pretendemos abordá-lo.
Assim, apresentamos a pesquisa etnográfica realizada por Milaré
(2019) acerca da vivência de crianças e adolescentes em situação de rua no
centro antigo de São Paulo, e contextualizamos o fenômeno da rualização
como próprio da constituição das cidades. Aproveitando da abrangência
da proposta etnográfica, ressaltamos a participação e percepção de atores
e atoras1, instituições, e organizações no que denominamos circuito-rua
(Milaré & Massola). A partir disso, estendemos nossas reflexões acerca do
espaço da rua como elemento relevante para a compreensão da relação
pessoa-ambiente no âmbito urbano. Isto é, a rua como uma produção so-
cial, histórica e material, pode se oferecer como reveladora da constituição

1  Fazemos o uso intencional dos termos nos dois gêneros ao longo do texto como explicitação
de nosso posicionamento de que a própria língua é uma arena de tensionamento e disputa política.
Marcando o elemento de gênero ao nos referirmos às pessoas e populações, buscamos minimamente
romper com a universalização dos/as sujeitos/as e apontar que são situados/as histórica e socialmente.
No caso, as palavras atoras e sujeitas não são reconhecidas formalmente na língua portuguesa, mas
representam o exercício de questionar a forma como enuncia-se e criam-se discursos homogeneizantes
e invisibilizantes.

186
Contribuições de um estudo etnográfico no circuito-rua do Centro de São Paulo...

social urbana, e, portanto, uma chave de leitura profícua para o campo da


Psicologia interessada na interprodução de espaço e subjetividade.

O Centro antigo de São Paulo e a presença da população


em situação de rua

A cidade hoje conhecida como São Paulo, a mais populosa cidade


do Brasil, o principal centro econômico da América do Sul e a primeira
megalópole do hemisfério sul, iniciou-se em um território então ocupado
majoritariamente por povos Tupi. O pequeno vilarejo organizou-se em
função de uma missão de jesuítas portugueses no ano de 1554, onde
atualmente se encontra o Páteo do Colégio.
Próximos do local foram construídos o Largo do Pelourinho, a Cadeia
Municipal e o primeiro cemitério público, todos símbolos do poder sobre
os indigentes, condenados e pobres. Esses símbolos foram logo misturados
àqueles construídos pela população escravizada que, por suas tradições de
fé, agregaram à região um sentido de sacralidade, junto com o erguimento
da Igreja dos Aflitos. Apesar de hoje ser conhecido pela produção turística
das lanterninhas japonesas, a presença e a força da comunidade negra no
bairro da Liberdade é elemento central de sua história.
No início do século XX, no intervalo de aproximadamente 400 anos, o
local tornou-se o eixo articulador da vida da cidade de São Paulo, símbolo do
urbanismo moderno de sua época. Durante muitas décadas, a região teve o “po-
tencial de polarização de recursos, centralidade orgânica, articulação de fluxos,
referência espacial, simbolização e visibilidade” (Sevcenko, 2004, pp.18-19).
Tal conformação deve ser remontada a fatores muito anteriores, como a
Lei de Terras, no ano de 1850, que passa a valer sobre todo o solo brasileiro
de maneira a regulá-lo como uma nova modalidade de propriedade privada
(Ferreira, 2005). Tal legislação favoreceu os que já possuíam bens e terras,
e fortaleceu a presença de latifúndios, coibindo as pequenas produções de
subsistência. Esses/as pequenos/as produtores/as, por sua vez, ou passaram
a trabalhar como mão de obra semiescrava nos latifúndios ou migraram
para as cidades, como São Paulo, em busca de sobrevivência.

187
Relações pessoa-ambiente na América Latina

A promulgação dessa lei associa-se à proibição do tráfico de pessoas


escravizadas, pois, uma vez que a posse de pessoas escravizadas não poderia
mais ser o indicativo de poder e riqueza, o solo o seria (Ferreira, 2005). Além
de ser posta como objeto de possessão, a população negra escravizada foi
também impedida de exercer trabalhos remunerados e juntarem bens para
o acesso à terra, pois a crise do sistema escravocrata não desfez a estrutura
racista e colonialista. Na realidade, em vez de serem incorporados/as ao
mercado de trabalho, houve a implementação de uma política de subsídio
à migração internacional.
A essa altura, a cidade de São Paulo figurava-se como sede administra-
tiva do negócio de agroexportação cafeeiro, e já assumia caráter de capital,
com uma grande população. De forma semelhante ao Rio de Janeiro,
ambas sendo centros comerciais e políticos do país, a implementação de
uma ideologia colonialista recai também sobre a própria materialidade da
cidade, com o interesse de que correspondesse aos padrões estéticos das
cidades europeias, visando a sua projeção internacional. Tal relação de
submissão aos padrões europeus e de modificação da cultura no país para
agrado de um mercado internacional escancara a relação colonial ainda
viva: grandes intervenções urbanas “para inglês ver” foram realizadas na
época, reproduzindo no espaço urbano também uma segregação dos espaços
bem vistos – destinados à presença das elites – e dos que comportavam
o que se desejava ocultar, “o populacho inculto, desprovido de maneiras
civilizadas, mestiço” (Ferreira, 2005, p. 5).
Como afirma Rolnik (1989) ao tratar dos territórios negros nas
cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, a virada do século XIX para o XX
foi marcada não apenas pelo crescimento populacional e adensamento
demográfico já mencionados, mas também pelo embranquecimento.
Uma vez que a posse de terras passou a ser uma medida de poder também
nas cidades, o projeto de limpeza social e exclusão tem como principais
alvos os territórios negros. Nessa reconfiguração espacial, a elite paulis-
tana passa a buscar por locais afastados do Centro antigo, com maior
exclusividade e distância das populações pobres, majoritariamente negra,
que permaneceram no bairro central ou às margens dos novos bairros

188
Contribuições de um estudo etnográfico no circuito-rua do Centro de São Paulo...

ricos, dado que neles viam uma fonte de empregos. Um caso a ser men-
cionado é o bairro de Campos Elíseos, em torno do qual se assentou
uma significativa população pobre, e que atualmente figura como alvo de
especulação imobiliária e de ações de gentrificação por parte do próprio
governo municipal – local não coincidentemente em que se situa e se
perpetua a Cracolândia.
As ações de cunho sanitarista nas quais as capitais brasileiras, essencial-
mente Rio de Janeiro e São Paulo, passam a investir com projetos de sane-
amento básico e planos urbanísticos de “melhoramento e embelezamento”,
pouco escondiam seus propósitos de higienização social (Ferreira, 2005).
Com base no status inegável do conhecimento científico, o argumento
de controle sanitário tinha como foco locais com grande adensamento
populacional, locais vistos como imundos e infectos, como as moradias
populares, tipo cortiço.
Tais ações vêm, na realidade, na esteira de medidas já anteriores, como
exemplifica o código municipal de posturas em 18632, que tinha como
propósito expresso regulamentar, tornando consequentemente irregulares,
práticas cotidianas características da população negra – por exemplo, a
presença de quituteiras nas ruas e a prática de pais-de-santo (Rolnik, 1989).
Impunha também a obrigatoriedade de recuo às construções, norma que
apenas poderia ser cumprida em terrenos de maior porte, o que inviabilizava
a existência de terrenos pequenos e mais baratos.
Aprofundando as mudanças trazidas pela Lei de Terras, tais restrições
ao uso do solo e à construção tornam-se progressivamente mais rígidas,
privilegiando o mercado imobiliário, único capaz de respeitar as novas
normas, ou ainda burlá-las dado seu poder financeiro e de influência sobre
o poder público (Ferreira, 2005). Com a pressão demográfica e o declínio
da cafeicultura, a atividade mais rentável (aos que já possuíam capital,
como os cafeicultores decadentes) passou a ser a especulação imobiliária,
conformando a dinâmica habitacional observada atualmente.

2  Código de Posturas do Município de São Paulo, 6.10.1886. Arquivo Histórico Washington Luís.

189
Relações pessoa-ambiente na América Latina

Com o movimento das elites para novos bairros com maiores inves-
timentos em urbanização, com o aumento da população e das ações de
expulsão do centro, ocorre a dispersão da população empobrecida de forma
não planejada, precarizada e ilegal. A extensão da malha viária possibilitada
pelos ônibus inicia uma nova tendência entre a população proletária de
compra de lotes e da casa própria em bairros afastados. Assim, vê-se o início
do modelo centro-periferia, concomitantemente à distribuição desigual
de brancos/as nas regiões mais centralizadas e de pretos/as e pardos/as nas
regiões periféricas, presente ainda hoje.
O papel do Estado neste apanhado histórico é um aspecto de fun-
damental destaque. A ação do poder público, nos diversos momentos
recapitulados, deveria corresponder ao papel de regulação em prol de
processos de democratização do acesso aos bens nacionais, sejam eles
materiais ou imateriais. Contudo, como colocado por Deák (2001, citado
por Ferreira, 2005), intervenções como obras urbanizadoras, instrumentos
tributários e outros reguladores do uso e da forma de ocupação do solo
urbano, evidenciam uma postura ativa do Estado em prol da manutenção
do poder das elites e dos valores coloniais capitalistas. Tais intervenções
de controle sobre o solo urbano favoreciam aos que pudessem pagar para
ocupá-lo de maneira privilegiada, e/ou que tivessem poder de influência
sobre a máquina pública, replicando sempre a lógica de delimitação entre
os/as que podem possuir um local – simbólico e material – na cidade e os/
as que estão inclusos/as de maneira precária e perversa.

A situação de rua como fenômeno urbano

Compreendido que todo território é uma combinação das várias


produções que nele se inscrevem, tanto utilitárias quanto simbólicas, Ha-
esbaert (2004) ressalta que é necessário distinguir os/as vários/as sujeitos/
as produtores/as dos territórios. Esses podem ser indivíduos, grupos, ins-
tituições e aparatos do Estado, ou do setor privado, como empresas, entre
outros, que coexistem em processos macroestruturais – como reformas e
construções, abandono de terrenos ou implementação de serviços públicos

190
Contribuições de um estudo etnográfico no circuito-rua do Centro de São Paulo...

– bem como nas microestruturas, ao passo que falamos das relações criadas
nas vivências dos/as sujeitos/as e forças que habitam o território. A relação
sociedade-espaço, dessa forma, produz territórios num espectro que vai da
“dominação político-econômica mais ‘concreta’ e ‘funcional’ à apropriação
mais subjetiva e/ou ‘cultural-simbólica’” (Haesbaert, 2007, p. 96).
Tais aspectos da produção territorial são, portanto indissociáveis
e os/as atores/as sociais já mencionados/as podem territorializar-se de
maneira mais funcional ou simbólica, a depender das dinâmicas de poder
constituídas historicamente, e que podem implicar conflitos de diferentes
ordens. Um exemplo que pode facilmente servir de ilustração é a forma
como o mercado imobiliário domina terrenos, prédios e áreas da cidade
com o propósito de promover a especulação imobiliária, que em seu caráter
econômico-político, produz maior lucro e poder sobre o espaço urbano.
Já a relação estabelecida por movimentos sociais de ocupação de imóveis
abandonados, que lutam pelo direito constitucional à moradia, não gera
lucro ou expressivo poder de decisão sobre o uso do espaço urbano, mas
busca ocupar o território por sua função social e tensionar politicamente
a disputa por uma cidade mais acessível.
Tais disputas não são neutras ou simétricas. Uma grande parcela da
população encontra-se submetida à precarização de suas condições básicas
de vida, como a de ocupar o solo urbano, e/ou à negação da possibilidade
de expressarem-se simbólico-culturalmente. Essa condição de determinação
extrínseca, que não parte das ações de domínio e apropriação dos próprios
indivíduos ou grupos sobre o território que ocupam, é denominada territo-
rialização precária (Haesbaert, 2007). Sob essas condições, a reterritorialização
– ou a busca por dominar e apropriar-se, em sentido amplo, do território
ocupado – por parte desses sujeitos configura-se como um movimento de
resistência. Em última instância, há uma constante desreterritorialização, um
jogo de poderes em que os processos de desterritorialização e reterritorialização
podem ocorrer simultaneamente – prevendo que forças hegemônicas que
impõem heteronomamente movimentos de domínio serão contrapostas por
ações de apropriação e autogestão do território, subjetivas ou coletivas, que
busquem romper com processos de territorialização precária.

191
Relações pessoa-ambiente na América Latina

Nesse jogo de poderes, há a segregação dos espaços por intermédio dos


interesses das classes proprietárias, como apresentado no caso do centro de
São Paulo, tendo como um dos efeitos a interdição da dignidade do espaço
da rua, levando as principais atividades humanas para espaços privativos,
onde se pode evitar o contato com o outro, ou seja, o que não se encaixa
nos padrões de consumo e às normas postas ao espaço da casa. Utilizando
dos termos propostos por Lefèbvre (2008) em sua discussão sobre o direito
à cidade, a rua torna-se então esvaziada da possibilidade de sediar relações
mediadas pelo valor de uso, isso é, passa a ter sua produção e significação
relacionadas a um valor de troca, como um produto. 
No que tange à psicologia, Farias e Diniz (2018) ressaltam como
esse campo tem tradicionalmente sustentado sua produção em uma
concepção pragmática, a-histórica, cognitivista e pretensamente neutra
sobre a relação pessoa-ambiente, apartando, assim, discussões que avan-
cem por uma leitura crítica que complexificam essa relação nos sentidos
social, político e subjetivo. Uma vez que estamos interessadas/os em
discutir o caráter eminentemente político e histórico da cidade, que se
fazem presentes nos processos de subjetivação relacionados à interação
entre sujeito/a e ambiente urbano, faz-se necessária a explicitação da
assunção dos espaços urbanos como “lócus de tensões e forças, em que
concorrem modos de subjetivação hegemônica e produção de outros
modos de vida” (p. 281).
Voltamos ao marco zero da cidade de São Paulo. A Praça da Sé condensa
uma memória extensa e profundamente reveladora: tem como origem a
primeira missão jesuíta, incumbida de catequizar e massacrar a popula-
ção nativa e sua cultura, processo do qual nasce a cidade de São Paulo; é
construída ao custo da demolição de cortiços, pensões e hotéis, moradias
para a população mais pobre, em favor da reforma e da “limpeza” urbana
ao gosto burguês neoclássico; e torna-se o palco para o Massacre da Sé,
em 2004. No entanto, é igualmente espaço de resistência, por exemplo,
como berço do surgimento da Educação Social de Rua, na década de
1980, com a tentativa de promover a cidadania de crianças e jovens que
se encontravam nas ruas.

192
Contribuições de um estudo etnográfico no circuito-rua do Centro de São Paulo...

É na Praça e aos seus arredores que os últimos censos, bem como a


literatura e os/as trabalhadores/as da área, identificam a maior concentração
de pessoas em situação de rua e de prédios ocupados por movimentos de
moradia de todo município. Mais precisamente, 11.048, ou 45%, das
24.344 pessoas identificadas como em situação de rua no ano de 2019
na cidade de São Paulo encontram-se na subprefeitura da Sé (Secretaria
Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social [SMADS], 2019).
Das estatísticas gerais, destaca-se que uma grande maioria é de homens
(85%) não-brancos (71,9%); menos da metade acessa albergues noturnos;
3,9% são crianças e adolescentes, entre as quais não há desproporção por
gênero, como na população adulta. É alarmante o crescimento de 11,23%
da população em situação de rua visto entre os anos de 2015 e 2019, que
figura como muito superior ao ritmo de crescimento da população em geral
(4,76%) – afora a subnotificação, dada a dificuldade de uma metodologia
coerente com a mobilidade na rua. Questionadas sobre o motivo de irem
para a rua, a resposta mais frequente das pessoas em situação de rua é por
conflitos familiares, seguido de desemprego. Contudo, seria difícil presu-
mir que conflitos familiares per se respondam direta e principalmente pelo
crescimento do fenômeno.
Propondo uma leitura marxista do fenômeno urbano, Farias e Diniz
(2019) retomam a cidade como simultaneamente lócus da (re)produção
capitalista e mercadoria e desdobram sua análise, tomando o fenômeno
da situação de rua como parte deste processo. Qualificam a relação entre
cidade e população em situação de rua como inerentemente contraditória,
pois, ao passo em que é marcada pela inclusão perversa dessa população
como mão de obra excedente, é também marcada pela negação de seus
direitos aos recursos urbanos e à possibilidade de ser representada nas
decisões políticas sobre a cidade. Apesar de manejarem recursos urbanos
para garantirem sua sobrevivência, fazem-no de maneira precária, ditada
por contingências externas estruturais que delimitam seu acesso aos equi-
pamentos urbanos e mesmo à legitimação como sujeitos/as dignos/as de
direitos. Como colocam os autores, a abstenção de uma análise histórica
e social da cidade leva à alienação das pessoas em situação de rua como

193
Relações pessoa-ambiente na América Latina

indivíduos responsabilizados por sua suposta disfuncionalidade, retirando


qualquer  responsabilidade da coletividade.
Todo esse amplo processo histórico segue operando e põe-se às vistas
no Páteo do Colégio. Sensibilizadas/os pela experiência de extrema vul-
nerabilização da população em situação de rua, especialmente de crianças
e adolescentes, e de suas formas de resistência, podemos nos perguntar de
que maneira os demais atores e atoras do espaço urbano participam do
processo de territorialização, produzindo estrategicamente ou servindo à
manutenção da rua como espaço marginalizado.

Pesquisa etnográfica na rua: um olhar para o Centro de


São Paulo a partir da rualização

Como já apresentado, as reflexões que trazemos baseiam-se em um


estudo etnográfico que buscou aproximação com crianças e adolescentes
em situação de rua (CASRua) no Centro antigo de São Paulo. O interesse
de aprofundar o entendimento sobre as relações entre territorialidade e
a vivência da situação de rua por crianças e adolescentes nasceu da expe-
riência com a Educação Social de Rua por parte da primeira autora, que
entre os anos de 2015 e 2016, atuou como orientadora socioeducativa
em um espaço de convivência para essa população no centro antigo de
São Paulo. Dessa forma, a pesquisa deu prosseguimento, entre os anos de
2017 e 2019, ao estudo da infância e adolescência rualizada e do circuito
de outros atores participantes nesse processo.
Frente à ausência de consenso quanto à terminologia adequada para o
que aqui nomeamos “situação de rua” (Conselho Nacional de Assistência
Social [CNAS], 2016), Prates, Prates e Machado (2011) propõem uma
interessante discussão, apresentando o termo rualização. Referindo-se ao
processo de estigmatização e homogeneização decorrente de termos que
impliquem uma identidade fixada, como por exemplo morador de rua ou
criança de rua, os autores enfatizam o caráter processual de relação com
a rua, em que ocupá-la como espaço de sobrevivência se dá de maneira
gradual. Envolvendo apropriações materiais e simbólicas, a rualização é

194
Contribuições de um estudo etnográfico no circuito-rua do Centro de São Paulo...

apresentada como um processo social de imbricação com a rua conformado


por múltiplos condicionantes, e que, em última instância, é marca de um
processo específico que ganha maior visibilidade no momento em que a
pessoa encontra-se em situação de rua.
Nessa proposta, compreende-se a rua como parte de um processo mais
abrangente, isto é, compreensão da rua como espaço material-simbólico
que é palco e participa em uma complexa teia de dinâmicas sociais. Des-
tacamos tal formulação pois é a partir dessa compreensão que propomos
a leitura da experiência com a rua e na rua, por exemplo, por meio da
noção de circuito-rua. Circuito-rua, relacionado com o termo cunhado
por Gregori (2000) de viração, revelou-se em nossa pesquisa como um
ciclo de violência e invisibilização que engloba trabalhadores/as que atu-
am diretamente com as CASRua, instituições e movimentos políticos de
defesa de seus direitos, para além das próprias crianças e adolescentes.
Sendo um circuito que incorre na circularidade e no aprisionamento, a
pauta é “encapsulada” em seu universo, pouco afetando outras instâncias
de recursos e poder. Em decorrência dessa viração, há a manutenção ou
agravamento da situação dessa população, das condições de trabalho e dos
serviços e, em última instância, da visibilidade e investimento por parte
do poder público (Milaré & Massola, no prelo).
O movimento evocado pelo circuito-rua leva a considerar a participação
dos/as demais atores/as presentes na rua na experiência de CASRua. O
espaço público e o espaço da rua por excelência compreendem o encontro
com o outro, com o diferente (Magnani, 2009), ao mesmo tempo com um
contexto social e cultural comum – ainda que seja o de desigualdade. Nele,
física ou abstratamente, entramos em contato com o senso comum, com o
saber popular, com os valores morais cultivados, com a opinião pública…
Sendo assim, comporta também uma parte importante de nossa formação
subjetiva, tanto em nossas características semelhantes quanto diferentes em
relação à norma. Em suma, ocupar o espaço público é estar sob influência
do outro também, de categorias externas, de valores extrínsecos, dos quais
nem sempre partilhamos, mas que ainda assim operam sobre nossas vidas.

195
Relações pessoa-ambiente na América Latina

É nesse sentido que incursões etnográficas foram realizadas, abordando


outras pessoas participantes da comunidade que, presentes no território,
mantêm um contato direto com as crianças e adolescentes em situação
de rua – mas que podem não ser lembrados/as na leitura sobre o circuito-
rua por não fazerem parte da rede de trabalhadores/as. As trocas entre
essas personagens na rua, sendo as relações pacíficas, de cooperação, ou
conflituosas, de embate, de hierarquia de poderes, explícitas ou tácitas,
conformam um tecido de imbricações, onde se fazem presentes também
todo o passado histórico, social, econômico e cultural do território.
Como experienciado no período de atuação profissional no Centro de
São Paulo, a rede de trabalhadores/as compartilhava de saberes transmitidos
há anos pelos serviços do território de que os grupos de meninos e meninas
atendidos/as possuíam características que variavam de acordo com as regiões
da cidade que mais frequentavam. Como exemplo, os que estabeleciam a
maioria de suas atividades em torno da Avenida Paulista, de maneira geral
para mendicância, dependiam do sucesso da interação com os pedestres.
Era marcante o reflexo desse fato na importância que davam às atividades
relacionadas à higiene pessoal e aparência – lavavam suas roupas, tomavam
banho, buscavam por produtos de beleza e roupas novas – e na disposição
para os atendimentos e atividades propostos no serviço.
Isso é, a experiência de situação de rua está localizada e permeada
pela territorialização dos espaços pelos quais transitam. Ao mesmo tempo,
significa que o fenômeno da situação de rua não se encerra na vivência dos/
as sujeitos/as em situação de rua: é um fenômeno urbano por excelência,
tanto afeta a cidade e os demais cidadãos quanto é afetado por eles.
Oito profissionais de segurança pública e privada, um comerciante
autônomo, uma vendedora, um funcionário do museu do Páteo do Co-
légio, um pedestre consumidor e dois skatistas foram entrevistados nos
arredores da Rua Anchieta, local identificado como ponto de referência na
mobilidade de crianças e jovens em situação de rua. Perguntados/as acerca
de sua impressão sobre a região – que não era a de moradia de nenhum/a
dos/as entrevistados/as, moradores/as de áreas periféricas da cidade – al-
guns temas se destacam: a percepção de perigo enunciada por todos os

196
Contribuições de um estudo etnográfico no circuito-rua do Centro de São Paulo...

entrevistados; uma mudança recente quanto à frequentação do local, no


momento com mais “maloqueiros”, e o aumento significativo dos aluguéis;
a imponência histórica do local, explorada pelo turismo; a grande oferta de
lazer e cultura; a diferença entre “tipos” de postura na rua, por exemplo,
pessoas sentadas e em movimento, as primeiras relacionadas ao pedaço sujo
da Praça da Sé, enquanto as últimas relacionadas a pessoas bem vestidas
frequentadoras da parte superior da Praça (próximo ao Fórum Central); o
desejo de maior limpeza e manutenção urbana da área por parte do poder
público e dos civis pedestres; o carácter positivo do policiamento no território,
expressado como orgulho por parte de uma dupla de guardas municipais
pela eficiência em promover a expulsão dos “cheiradores de cola”, e como
uma necessidade para a moralização do espaço e a prosperidade do comércio,
por parte de um comerciante.
Apesar de não serem mencionadas espontaneamente por todos/as os/
as entrevistados/as, caso em que então foram questionados/as diretamente,
alguma percepção sobre as crianças e adolescentes em situação de rua foi
compartilhada. Ao passo que uma guarda municipal, trabalhadora do
território há sete anos, relatou empatia quanto à presença e aos modos de
uso das ruas pelas crianças moradoras de ocupações, referenciando a Praça
como “o quintal da casa deles”, e também de pessoas em situação de rua,
por exemplo, ao dizer “Tem gente que vem reclamar que a mulher tá tro-
cando de roupa, e eu falo que ali é o closet dela, ela tá ali se arrumando”;
uma outra dupla da base móvel da guarda civil municipal no Páteo do
Colégio enfatizou a periculosidade e a presença viciosa da população em
situação de rua, afirmando que “O que estraga o centro são os moradores de
rua”. Ainda, por parte do comerciante e da vendedora, a alusão às CASRua
inclui rechaço ao uso de drogas que fariam, e suas presenças são lidas como
uma interferência negativa no comércio, sendo fonte de tumultos, sujeira e
perigo aos potenciais consumidores. Após serem diretamente questionados,
os skatistas relacionaram o período de revitalização do Vale do Anhangabaú
e da Praça da República à diminuição da presença de crianças em situação
de rua, e revelaram que sua percepção sobre a presença de pessoas em situ-
ação de rua é de que “por ser centro de uma cidade grande, é normal, né”.

197
Relações pessoa-ambiente na América Latina

Em todas as falas, o elemento do público e do que se passa nas ruas é


central e carregado de significados diferentes de acordo com sua experiência
e uso do espaço – experiência essa que veta o uso do local como moradia,
sem exceção, de modo que a referência a noções de apropriação privada do
espaço não aparecem nas entrevistas. Outrossim, as falas sobre a população
em situação de rua (adulta ou infantil e adolescente) expressam, de maneira
contundente, ideias sobre essa população em si, mas também sobre como
afetam a percepção e o uso pelos/as entrevistados/as no local e do espaço
da rua (ou público) como um todo – inclusive, fortemente marcadas por
higienismo social em parte dos/as entrevistados/as.
A construção histórica do Centro de São Paulo já apresentada em
seus elementos segregacionistas, de expulsão das populações pobres e não
brancas, da conformação de um discurso e um aparato legal que discrimina
quais presenças e ocupações da cidade são desejáveis ou não, de medidas
higienistas vendidas como intervenções urbanísticas, desvela-se nas en-
trevistas, sobretudo sobre a percepção de meninos e meninas em situação
de rua. É nesse sentido que afirmamos anteriormente (Milaré, 2019) que
a rualização é um processo psicossocial que não se dá individualmente,
mas territorialmente, como no caso do Centro Antigo de São Paulo. Isso
é, resgatando novamente o aspecto coletivo do fenômeno, a situação de
rua é uma produção social e, por consequência, não diz respeito apenas à
população na ponta do processo de vulnerabilização, mas também aos/às
demais atores e atoras inseridas no território.

A relação social com a rua como chave de leitura profícua


para os estudos pessoa-ambiente

Como já dito, as observações etnográficas apontam para a compreensão


de que rualização não se encerra na vivência das crianças e adolescentes em
situação de rua, e o lugar de marginalidade que ocupam no Centro não é algo
fora da produção humana que é o tecido urbano: é também um lugar parte
do corpo social. Nesse sentido, não deve ser tratado como um subproduto
desvinculado de toda a estrutura, ou como algo distinto do próprio centro

198
Contribuições de um estudo etnográfico no circuito-rua do Centro de São Paulo...

simbólico. Baseada nas reflexões trazidas por Hooks (2019), pensadora do


feminismo negro interseccional, a produção dessa exterioridade delimita
o alcance e a legitimidade das narrativas marginalizadas e afeta noções de
pertencimento e territorialização de todo o corpo social. É dessa forma que
o próprio centro precisa ser revisto a partir de sua relação com as margens,
uma vez que a experiência de centralidade conformada de maneira alijada
das margens que produz distorce a percepção nos lugares de privilégio social.
Como já colocado, à menção da noção de rua são associadas imagens,
afetos e análises negativas, e as populações que têm sido historicamente
relacionadas a esses signos são logo lembradas. A ideia de que suas vidas
são determinadas por essas condições é facilmente reconhecida, e é um
processo em que a essas pessoas são atribuídas exteriormente uma série de
nomenclaturas, definições, estigmas, análises etc. que geram a condição
de outridade, isso é, uma condição da qual os/as que podem nomear e
categorizar não compartilham. Contudo, não parece explícita a relação que
pessoas domiciliadas e os processos urbanos dos quais participam direta
ou indiretamente mantêm com a situação de rua.
Pensar no espaço da rua a partir do prisma das crianças e adolescentes
em situação de rua diz sobre a relação de alienação que temos com esse
espaço. O uso dos termos que heteronomeiam essa população (menor,
criança de rua, maloqueiro...), e os estigmas concomitantes, além do pouco
investimento público e pressão social para o enfrentamento dessa pauta,
contam a história de categorização da situação de vulnerabilidade de ma-
neira a construí-la como algo externo, no campo da outridade, e não como
um processo complexo de vulnerabilização produzida socialmente (Milaré
& Massola, no prelo). Retomando nosso ponto de partida de interesse, a
relação dialógica entre pessoa e ambiente tem implicações para processos
de subjetivação e, nesse sentido, propomos que seja permeada pela discus-
são proposta. Tomando a acepção freiriana de Sujeito (Freire, 1980), os
processos que levem à produção de uma subjetividade do sentido forte do
termo – em oposição ao lugar passivo de objeto – têm como condição a
compreensão de si de maneira historicizada, não obstante um imperativo
também à leitura dos processos de territorialização.

199
Relações pessoa-ambiente na América Latina

Frente aos processos estruturais históricos de dominação e opressão,


espacialmente localizados, há a construção dos/as que são estruturalmente
aceitos/as como sujeito/a – condição negada a pessoas que se encontram
em situação de rua, por exemplo. Contudo, mesmo que nascido/a com o
privilégio de estar incluído/a em grupos sociais não marginalizados, é preciso
uma busca ativa e crítica para tornar-se sujeito/a que toma para si o exercício
da sua liberdade, de reflexão crítica sobre sua realidade, e assume seu papel na
transformação em diálogo com os/as demais. É essa conscientização crítica
que permite uma subjetividade situada em um lócus social em relação ao
todo, que por sua vez permite a assunção das pessoas situadas nos demais
lócus sociais como igualmente sujeitos/as (Freire, 1980, 2017).
Além, é preciso considerar a produção subjetiva em um contexto
marcado profundamente por relações de colonialidade (capitalista, racista
e patriarcal). Kilomba (2019) reafirma a condição fundamentalmente rela-
cional da subjetividade e de status de sujeito/a, dada entre individualidades
e uma sociedade estruturada com base da legitimidade da branquitude e
de subalternização do/a não-branco/a. Possuir o status de sujeito3 é poder
“se encontrar e se apresentar em esferas diferentes de intersubjetividade e
realidades sociais” e “participar em suas sociedades, isto é, ... determinar
os tópicos e anunciar os temas e agendas das sociedade em que vivem”
(Kilomba, 2019, p. 74) – status negado à população historicamente cons-
truída como não-branca. A retomada de elementos históricos no centro
de São Paulo não deixam dúvida de que é por essas estruturas que sua
territorialidade foi e segue sendo produzida.
É nessa esteira que propomos a rua como elemento de análise frutífero,
pois faz desvelar elementos identitários subjetivos não apenas marcantes
para a população que se encontra na situação de extrema rualização, mas
para todas as pessoas territorializadas em espaços urbanos. Isso é, enquanto
elemento simbólico e material do espaço urbano, estamos em constante
relação com a rua, experiência essa que por sua vez é marcada por outros
marcadores identitários, como classe, gênero, raça e sexualidade.

3  Aqui o termo é utilizado e grafado como pela autora.

200
Contribuições de um estudo etnográfico no circuito-rua do Centro de São Paulo...

Considerações finais

O espaço da rua não é elemento presente apenas nas vidas de pessoas


que nela têm sua situação de sobrevivência, a rua é elemento da vida urbana,
e diz respeito também à constituição subjetiva de domicialidos/as: a rua
é produção da exclusão social racista, de matriz capitalista colonizadora e
patriarcal estrutural, estrutura pela qual toda a vida urbana é tecida, como
exemplificado no caso do território central de São Paulo. Os discursos frente
à situação de rua muitas vezes incorrem ao veto moral do espaço da rua.
Tal perspectiva ignora o caráter processual da rualização e desconsidera a
natureza social e histórica da construção do espaço urbano, bem como das
relações privado-público e individual-comum. Nesse sentido, remetendo
à problemática de volta aos sujeitos e sujeitas diretamente afetados/as pela
situação, incorremos na dessensibilização e desresponsabilização da agenda
pública frente à violação de direitos e criminização que incide sobre essa
população, mantendo um ciclo de violência e invisibilização.
Contudo, ao não elegermos a rua e as relações que travamos com
ela a partir de diferentes lócus socioterritoriais, deixamos de explorá-la
como o local de potência e de disputa que fundamentalmente represen-
tam quanto ao acesso à cidadania. Isso é dizer que o exercício do direito
à cidade ou da cidadania plena é interceptado não apenas para as pessoas
em situação de rua, mas a uma sociedade que segue perpetuando o veto à
possibilidade de uma rualização positivada, que tenha a rua, ou o espaço
público, como arena fundamental de exercício de vivência do comum e
da decisão sobre ele.
A atenção e conscientização sobre nossa relação com a rua, inclusive
tomá-la como elemento de análise nos estudos pessoa-ambiente, abrem
um campo de atuação que integra a dimensão da produção subjetiva e
territorial urbana e caminha para uma melhor compreensão das vias para
cidades cidadãs e colaboração para a coconstrução de estratégias de eman-
cipação e autonomia crítica.

201
Relações pessoa-ambiente na América Latina

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204
Capítulo X

Energías Renovables en
América del Sur:
Injusticias energéticas y colonización tecnológica
Rafaella Lenoir-Improta

Introducción

M uchos estudios han utilizado los constructos psicológicos internos (per-


cepciones, creencias, actitudes, comportamientos) para comprender
los motivos del rechazo social a las infraestructuras de energías renovables
(IER). Sin embargo, la evaluación social sobre las IER no puede ser enten-
dida fuera del contexto cultural y político en el cual se estructura, siendo
imprescindible la exploración del papel que cumplen esas dimensiones en
la legitimación de las IER. Los elementos que circulan en el imaginario
social están embebidos de características culturales y políticas, que a su vez
también conforman las relaciones de poder.
Tanto a nivel micro como macro, los vínculos persona-lugar (p.ej. ape-
go al lugar o identidad de lugar) son elementos utilizados para conformar
relaciones de poder (Di Masso et al., 2014, Dixon & Durrheim, 2000).
Las posiciones subjetivas derivadas de esos constructos son formulaciones
variables estratégicamente utilizadas para romper o fortalecer una determi-
nada relación y orden social (Di Masso, 2015).
En la implementación de las IER, la dimensión política del uso de los
vínculos persona-lugar se demuestra, por ejemplo, cuando la defensa de
territorio se formula en base a un vínculo existente de apego al lugar que
quiere ser protegido de una amenaza externa, en este caso, las IERs (Aitken
et al., 2008; Batel et al., 2015; Devine-Wright, 2009; Späth, 2012; Zogra-
fos & Martínez-Alier, 2009). Por otro lado, las IER, también pueden ser
socialmente asimiladas como promesa del rescate tanto del apego como de

205
Relações pessoa-ambiente na América Latina

la identidad de lugar, cuando estas generan empleo, rescatan la economía


local o inclusive se entrelazan con la herencia histórico-cultural del lugar
(Devine-Wright & Howes, 2010; Lenoir-Improta & Pinheiro, 2011;
Lenoir-Improta, 2017). Es decir, además de ser un posicionamiento psi-
cológicamente relevante, los vínculos con el lugar son, al mismo tiempo,
una declaración política que sirve para hacer y justificar la resistencia o
la aceptación a la implementación de las IER, así como (des)legitimar la
perpetuación de relaciones de poder.
A nivel macro, en nombre de la identidad de lugar, las históricas
relaciones de poder hegemónicas entre norte-sur global/países desarrolla-
dos-subdesarrollados se perpetúan (Batel & Devine-Wright, 2017; Dixon
& Durrheim, 2000). De esta manera, la relación colonizador-colonizado,
forjada desde hace ciclos entre estos grupos de países, solo cambia de
“vestimenta”. Por ser normalizada, esta relación dispar es estructurada sin
contestar sus motivos (Quijano, 2000).
A nivel de las políticas energéticas, la relación subordinador-subordi-
nado se perpetúa, por ejemplo, a través de la implementación de nuevas
tecnologías”, lo que podemos denominar de colonialismo energético (Batel &
Devine-Wright, 2017). En este vínculo, el conocimiento y las tecnologías
por él generada son exportados a los países de economías más incipientes,
perpetuando las relaciones de poder hegemónicas. Como resultado, las
tecnologías del norte global son aceptadas sin demasiada controversia (y
si la hay es rápidamente encubierta). En general, los países del sur global
aplauden sin contestaciones porque las significan como progreso.
Así pues, los programas de implementación de las IER son estructura-
dos desde lógicas capitalistas neoliberales, caracterizadas por fomentar una
posición apolítica/acrítica (Batel & Devine-Wright, 2017; Swyngedouw,
2010; Walker, 2009). Con lo cual, en nombre de la mitigación del cam-
bio climático o de la reserva energética mundial, tecnologías renovables
procedentes de multinacionales son implementadas en localidades que,
muchas veces, por el sistema centralizado de la red eléctrica, no van a ser
los beneficiarios directos de aquella energía y, en su gran mayoría, con
una mera participación de espectadores. Sin mencionar la ausencia de

206
Energías Renovables en América del Sur: Injusticias energéticas y colonización tecnológica

conocimiento social sobre las políticas energéticas nacionales y locales. Esta


situación social es denominada de injusticia energética por algunos autores
(Cowell et al., 2011; Groves, 2015; Walker, 2012), término derivado del
concepto de justicia ambiental.
Un ejemplo de injusticia energética y perpetuación del poder hegemó-
nico es el primer parque eólico de Brasil (Parque eólico de Rio do Fogo),
construido y gestionado por una multinacional española. La población
más cercana a este parque eólico vivía extremamente cerca de sus molinos
(a menos de 1 km): los veían todos los días cuando abrían sus ventanas.
No obstante, en sus calles no había iluminación pública, aunque algu-
nos entrevistados tenían la esperanza de que esa situación cambiaría con
la construcción del parque eólico. Igualmente, no han tenido ninguna
compensación financiera o participación en la toma de decisiones sobre el
proyecto y el futuro de la región. Mismo así, sorprendentemente la gran
mayoría de los entrevistados han aceptado positivamente el nuevo vecino
porque no significaba para ellos un símbolo de modernidad (Lenoir-Im-
prota & Pinheiro, 2011).
Aunque un análisis crítico de las políticas neo-liberales de imple-
mentación de las IER haya sido desarrollado en el intento de ilustrar los
mecanismos y los elementos que alimentan la retórica del colonialismo
energético, hasta el momento pocos estudios en esta línea han explorado
críticamente la respuesta social a las IER desde el sur global, consideran-
do los efectos de la relación de poder norte-sur Global (para excepciones
ver Farias, 2017, Felix-Silva et al., 2020; Finley-Brook & Thomas, 2011;
Howe, 2014).
Para ilustrar empíricamente este escenario se presentan algunos de los
resultados de un estudio que exploró cómo el imaginario cultural actúa a
través de materiales oriundos del vínculo persona-lugar para crear discursos
sociales evaluativos sobre la implementación del primer parque eólico del
extremo sur de Brasil (Parque Eólico de Cerro Chato). Para ello, el análisis
de concentra en los usos de las construcciones discursivas elaboradas por
los habitantes locales y por el periódico más leído de la región. Partiendo
del principio de que las relaciones de poder van más allá de las estructuras

207
Relações pessoa-ambiente na América Latina

cognitivas, circulando en el imaginario cultural y constituyendo las rela-


ciones de poder, se ha utilizado la aproximación discursiva para explorar
cómo estos discursos embebidos de elementos culturales y políticos son
construidos y negociados para evaluar la implementación del primer par-
que eólico del extremo sur de Brasil. Igualmente, se ha explorado cómo
el colonialismo energético moldea el imaginario cultural y conforma los
discursos evaluativos sobre las IER.

Estudio ilustrativo

El campo de estudio ha sido desarrollado en la localidad de Cerro


Chato, distrito rural de la ciudad de Santana do Livramento que recibe el
Parque Eólico de Cerro Chato (PECC), ubicado en el límite entre Uruguay
y Brasil. Por causa de su localización, el área ha sido marcada durante ciclos
por muchas luchas por demarcación territorial. La población local tiene
un fuerte vínculo identitario y cultural con las tradiciones gauchas. Una
de las grandes características de esta cultura es reconocerse a sí mismos
como un pueblo guerrero, guardianes de sus tierras y tradiciones (Che-
lotti & Pessôa, 2006). La vida dura, las guerras por defensa del territorio
conforman el gaucho y sus costumbres como personaje romantizado que,
a su vez, constituyen la identidad gaucha.
Como en prácticamente todas las exacerbaciones identitarias, se en-
cuentra también una función política para esa retomada de la cultura
regionalista gaucha. De acuerdo con Haesbaert (1988) y Kaiser, (1999), la
clase media en descenso ha utilizado la cultura regionalista relativamente
arraigada para tratar de homogeneizar a los complejos y emergentes sec-
tores medios urbanos y tranquilizar a la vieja oligarquía. Esta, revigorizada
por su fuerza cultural logra mantener el monopolio del campo. Es decir,
al construir una identidad basada en un pasado supuestamente glorioso
del hombre del campo, el regionalismo se impone ideológicamente, al
tornar homogéneo lo que internamente es heterogéneo, haciendo uso de
este estereotipo para imponer externamente su diferencia en relación a los
demás (Kaiser, 1999).

208
Energías Renovables en América del Sur: Injusticias energéticas y colonización tecnológica

Sin embargo, la identidad de esta región también se estructura a través


de significados poco positivos. La economía de Santana do Livramento está
basada desde hace décadas en la agricultura y la ganadería. Entre 1930 y
1970 la ciudad ha vivido un ferviente apogeo económico con un intenso
desarrollo de la industria ganadera (Ferreira, 1959). Sin embargo, después
de aquel periodo una crisis afectó la región, desencadenando una recesión
económica en el sector industrial y agrícola debido a la competencia con
los sectores ganaderos más próximos a las grandes capitales brasileñas
(p.ej.: São Paulo y Rio de Janeiro). Como resultado, contemporáneamente,
hasta por lo menos el periodo del desarrollo de la investigación, la ciudad
se encontraba entre las diez ciudades brasileñas con el mayor nivel de
decrecimiento poblacional (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
[IBGE], 2010).
Igualmente, así como la ciudad Santana do Livramento, su distrito
rural Cerro Chato, donde el PECC ha sido implementado, también ha
sufrido por la recesión económica. Durante el apogeo económico de la
ciudad el número de habitantes era mayor, había pequeños mercados, una
escuela y celebraciones tradicionales. Actualmente, no hay ningún servicio
público y solo algunos ganaderos viven en la región.
Metodológicamente, los resultados del estudio que se ilustran en
este capítulo se han estructurado en la perspectiva psico-discursiva, lo
que ha permitido explorar a fondo la naturaleza cultural y política de los
constructos psicológicos y cómo estos son usados estratégicamente para
“garantizar y legitimar o desafiar y debilitar organización específicas de
relaciones sociales que están impulsados por relaciones de poder y que son
relativamente centrales para el orden social” (Di Masso et al., 2017, p. 95).
Para explorar el proceso de aceptación social del PECC se han analizado
las noticias publicadas sobre su implementación (Totalizando 230) en el
periódico más leído de la región (A Plateia). El objetivo ha sido explorar el
proceso de construcción de significado del parque eólico y cómo los argu-
mentos construidos respecto a los significados del lugar y de la identidad
de lugar eran articulados para construir un posicionamiento discursivo
sobre la construcción del PECC. Las noticias de prensa se examinaron

209
Relações pessoa-ambiente na América Latina

mediante la utilización de técnicas de análisis temático (Braun & Clarke,


2006), argumentativo (Billig, 1987) y discursivo (Di Masso et al., 2017;
Edwards & Potter, 1992; Potter & Wetherell, 1987).

Parque eólico: tradición, modernidad, vinculo persona-


lugar y colonización energética.

Como introducido en el apartado anterior, Santana do Livramento está


permeada por dos elementos opuestos: la identidad positiva de ser gaucho
y el descredito en encontrar una salida para la crisis que ha arrollado la
región. En los fragmentos a continuación se observa cómo el significado
del parque eólico se conforma y se enlaza a la identidad del lugar a partir
de ambos elementos.

Fragmento 1

O santanense que ainda não foi ao Cerro Chato, não sabe o que as
obras realizam no local. Uma transformação. (...) Claro, aqueles que, como
a maioria, são leigos em engenharia, não fazem ideia do que está sendo
formatado. Mais do que o investimento financeiro, que é importante, fica
o investimento físico, que perdurará; e a moral, que servirá para resgatar a
autoestima santanense. (“Aprendendo com o Vento”, 20/01/2011)

Fragmento 2

Vem da natureza a riqueza da esperança e de melhores dias para


todos (as) através dos ventos da Metade Sul do Rio Grande. Nos campos
da Fronteira, junto com a nossa tradicional produção – criação de gado
e ovelha, levantam- -se e se ampliam os gigantes da modernidade e da
tecnologia – os Aerogeradores da Energia Eólica. (“Livramento conquista
mais 5 parques”, 21/08/2011)

210
Energías Renovables en América del Sur: Injusticias energéticas y colonización tecnológica

Fragmento 3

O engenheiro santanense Ronaldo dos Santos Custódio está faceiro,


como se diz na Fronteira. Está vendo o sonho de, por meios próprios, agir
para transformar a terra onde nasceu, tornar-se realidade. O guri fronteiriço
que gostava de levantar pandorga e tirava dali a lição e a fascinação pelos
ventos, especialmente o Minuano gaúcho, aquele que vem dos Andes galo-
peando solto. (“Custódio: O sonho real do empinador de pipa”, 18/06/2010)

Fragmento 4

Minuano vem galopando solto movendo o desenvolvimento do Rio


Grande e do Brasil”

En el fragmento 1, el rescate de la autoestima se suma a la cons-


trucción representativa del parque eólico. Sin embargo, esta construcción
argumentativa, indirectamente denota una auto-representación social
desvalorizada de la población local. De la misma forma que, al incluirse
en el rescate de la autoestima, el parque eólico surge argumentativamente
como un elemento de relevancia social y, por lo tanto, como parte de la
comunidad. Con lo cual, se inviabiliza la construcción representativa de
esta obra como común o, inclusive, ajena aquella ciudad.
Por otra parte, también se identifica en el fragmento 1 una clara
relación de poder entre el conocimiento científico y el desconocimiento
social sobre el tema energía y sus políticas energéticas. El desconocimiento
social muchas veces se debe a la falta de incentivo para la participación
pública en los debates y en las decisiones sobre energía. A su vez, la falta
de conocimiento sobre las políticas energéticas también es estratégica para
perpetuar el poder político pues, sin conocimiento no hay crítica, repro-
duciendo las relaciones de poder tanto a nivel del conocimiento científico
como a nivel político (Bermann, 2001; Cowell, Bristow, & Munday, 2011;
Wüstenhagen, Wolsink & Bürer, 2007; Zografos & Martinez-Alier, 2009).

211
Relações pessoa-ambiente na América Latina

Igualmente, uno de los contenidos más utilizados en las noticias ha


sido la representación del parque eólico como marca de un “nuevo mo-
mento”, de una “nueva era” para la ciudad, como ilustrado en todos los
fragmentos. El presente decadente se desvanece, abriendo camino a un
futuro prometedor en el que el parque eólico cumple el papel principal.
Esta construcción se establece al asociar el parque eólico a elementos que
constituyen las tradiciones económicas y culturales de la región. Sin embar-
go, a diferencia de los elementos tradicionales, el parque eólico se inscribe
como uno de los elementos que conforma la identidad de la región como
una salvación no solamente económica sino también como un símbolo
identitario de modernidad, que conduce la región a la contemporaneidad.
En el fragmento 3 la identidad gaucha se ve reflejada en la figura del
ingeniero director del PECC, Ronaldo Custódio, que nació en Livramento. El
uso de expresiones que marcan la identidad gaucha de la región como “guri”
y “faceiro”, refuerza aún más la aproximación positiva del parque eólico a
la identidad local. De esta manera, el parque eólico se adhiere a la herencia
histórico-cultural como figura que también representa la identidad local,
adquiriendo confiabilidad y admiración. Igualmente, se observa el uso de
otros elementos culturales que se asocian positivamente a la implementación
del PECC, como es el caso del Viento Minuano (fragmentos 3 y 4), un viento
típico e identitario de la cultura gaucha, que es representado como alguien
que viene “galopeando” (otra actividad identitaria de la cultura gaucha). Y,
conjuntamente con el PECC, tiene como responsabilidad hacer mover los
aerogeneradores, trayendo con ello el progreso.
Con ello, a la ciudad se le suma un nuevo significado que se diferencia
de los demás elementos identitarios, establecidos a priori. A diferencia de
los anteriores, que son tradicionales y algunas veces significados como
viejos/ultrapasados, el parque eólico es moderno, innovador. El uso de la
personificación “gigantes de la modernidad y de la tecnología” (Fragmento
2), los objetiviza no solamente como símbolo de contemporaneidad local,
sino que también los equipara a grandes centros, colocándolosen el grupo
de ciudades en la vanguardia, además de reforzar el aspecto de grandiosidad
del parque eólico.

212
Energías Renovables en América del Sur: Injusticias energéticas y colonización tecnológica

Igualmente, existe una necesidad reiterada de no restar, sino que de


sumar la nueva identidad moderna con la tradicional. En esta estrategia
retórica, el parque eólico es visto como la marca de un nuevo tiempo de
progreso contemporáneo, que se suma a los anteriores para crear una
identificación positiva y renovada de la ciudad. De esta manera, el parque
eólico es el responsable por dotar movimiento a la ciudad estancada, in-
troduciéndole, además, en el mundo actual.
No obstante, se verifica un tercero significado más implícito en estos
fragmentos, el de perpetuar relaciones de poder entre Norte-Sur Global,
promoviendo dependencia tecnológica y, lo que algunos autores denominan
de colonización energética (Batel & Devine-Wright, 2017). Los fragmentos
presentados en esta sección demuestran claramente la perpetuación del
imaginario del progreso norte-sur Global, donde la tecnología que viene de
afuera es considerada como contemporaneidad, como progreso, siendo prác-
ticamente la única posibilidad de salvación del estancamiento de la ciudad.
Perpetuar estas relaciones de poder norte-sur Global es conservar,
como defendido por Quijano (2000) y Sousa Santos (2010), solo una
única posibilidad de sentido y dirección conocida, forjada a lo largo de
la historia, que es aquella donde los elementos considerados modernos,
vistos como progreso, son los oriundos del norte Global. Con lo cual, el
conocimiento, el desarrollo, las innovaciones, la globalización, es decir, los
elementos positivos son materia de los países desarrollados. Estos elemen-
tos, constituyentes de la contemporaneidad, son dictados por los países
desarrollados, a su vez, lo tradicional y fuera del eje del norte Global es
considerado como anticuado. Esta lógica declara como atrasado a todo lo
no es oriundo de la perspectiva eurocéntrica de conocimiento, incluyendo
las identidades no eurocéntricas (Quijano, 2000), mismo coexistiendo
y desarrollándose en la contemporaneidad. Por lo tanto, la modernidad
occidental ha producido la “no contemporaneidad de lo contemporáneo”
(Sousa Santos, 2010). Lo que no se asemeja a lo que es dictado por las
grandes potencias, inclusive viviendo en la contemporaneidad, es designado
como obsoleto, primitivo o tradicional. De este modo, el parque eólico
cumple un papel que las tradiciones culturales y económicas gauchas no

213
Relações pessoa-ambiente na América Latina

podrían ocupar en este “mundo moderno”. Lo interesante a destacar aquí


es que para crear el argumento de aceptación del PECC el tradicional
no es devaluado, sino que se refuerza con la llegada del nuevo elemento
identitario de modernidad.

Relaciones de poder y Des-estigmatización

Los fragmentos presentados han ilustrado cómo elementos culturales que


componen la identidad de lugar son utilizados por el periódico más leído de la
región para construir discursos evaluativos sobre las IER, los que, premedita-
damente o no, perpetúan relaciones de poder tanto a nivel local como global.
Entre los elementos culturales utilizados, se ha encontrado que, para la
construcción de los discursos evaluativos sobre PECC, la prensa hace uso de
elementos relacionados al vínculo con el lugar, tanto positivos (la tradición
gaucha) como negativos (la ciudad decadente, estancada) a fin de legitimar
la construcción del PE. Al mismo tiempo, a nivel micropolítico se evidencia
que a través de esa construcción discursiva también se perpetúan relaciones
de poder tanto a nivel micro como macro. A nivel local, la identidad de
lugar perpetua su potencial poder en (des)legitimar-rechazar cambios en
el ambiente. Por otra parte, el poder empresarial local se ve fortalecido al
utilizar la identidad de lugar para convencer a la población que construir
un parque eólico era una buena idea, y así garantizar su posición de auto-
ridad tanto a nivel de los medios de comunicación como para dar lugar a
la construcción de nuevos parques eólicos. A nivel macro, las relaciones de
poder norte-sur Global se perpetúan con la importación de tecnologías y
modelos de política energética oriundos de países “desarrollados”.
Otro concepto disponible para explorar el tema de la aceptación es la
estigmatización social. En este sentido, la estigmatización territorial puede
ser coproducida y movilizada para convencer poblaciones de bajos recursos
a aceptar la construcción de parques eólicos con la promesa de mejoría
económica y la construcción de un significado más positivo para la ciudad.
No obstante, en algunos casos el territorio se ve aún más estigmatizado
por el hecho de tener un parque eólico (Rudolph & Kirkegaard, 2018).

214
Energías Renovables en América del Sur: Injusticias energéticas y colonización tecnológica

Trasladando esta perspectiva para el caso del PECC, aunque la prensa


haya utilizado la estigmatización de la ciudad como argumento para con-
vencer a la población sobre los beneficios de la construcción del parque
eólico, a esta también se suma otros elementos identitarios positivos de
la ciudad. Con lo cual, el PECC cumple el papel des-estigmatizador al
sumarse a la identidad gaucha, juntamente con los elementos tradicionales
que caracterizan a la región, sirviendo como puente identitario para el
progreso, para la modernidad, para el retorno de la ciudad a la contem-
poraneidad, retomando los tiempos memorables del apogeo económico
de la región. En consecuencia, el significado del parque eólico demuestra
el poder simbólico de la des-estigmatización sumada a la incorporación
del parque eólico en la identidad de lugar. El PECC ha transformado el
significado de la ciudad porque la diferencia positivamente de las demás,
dotándole un carácter especial por haber sido la elegida para albergarlo.
En esta dirección, Batel (2018) propone analizar la relación entre las
IER y las necesidades sociales locales. En este sentido, el PECC ha rellenado
lagunas de necesidades históricas tanto en el sentido identitario como en
el económico. Al contrario del caso del estudio de Rudolph y Kirkegaard
(2018), el significado del parque eólico ha empoderado a la ciudad y a su
población, aunque tal vez solo simbólica y temporalmente. Más allá de
las necesidades económicas e infraestructurales que fueron cubiertas con
la construcción, hay algo más que se suma en el discurso de aceptación.
Se trata dela retórica de haber traído a la ciudad a la contemporaneidad, a
la par de las ciudades del “primer mundo”. Lo que hace que la autoestima
y la identidad de lugar local se vean reforzados.

Participación social:
Empoderamiento y Democratización

Muchas veces, el intento de creación de compromiso local con el


proyecto, ocurre a través de las compensaciones financieras, sea a través de
una sociedad en los lucros del proyecto (Devine-Wright, 2005), mejorías
en los servicios sociales (Pol et al., 2006), promoción de empleo (Devine-

215
Relações pessoa-ambiente na América Latina

-Wright & Howes, 2010), de los impuestos (Devine-Wright, 2011) o del


impacto económico positivo para la ciudad de manera general (Carlisle et
al., 2014). Ciertamente, comunidades económicamente precarias (Carro
et al., 2006, Devine-Wright, 2005; Devine-Wright & Howes, 2010) o
aquellas en que el balance entre costo y beneficio sea evaluado como po-
sitivo (Haggett & Toke, 2006; Zoellner et al., 2008), pueden aceptar con
mayor facilidad las IER con estas condiciones.
Sin embargo, más que los beneficios económicos, la participación
social debería ser entendida y puesta en marcha desde una comprensión
más compleja de su papel. En primer lugar, la participación social no
debería venir de manera vertical, ofreciendo a la población solo el poder
deliberativo en reglas establecidas por la institución (Cowell, et. al, 2011),
en las que muchas veces participan sólo los técnicos y los stakeholders de
alto nivel (Cotton & Devine-Wright, 2012) sin darles la oportunidad de
participación en la construcción de las mismas (Zografos y Martínez-Alier,
2009). La participación debería ser organizada desde el diálogo, utilizando
un lenguaje que fuese comprensible para el conjunto de la población, a
fin de proveerles sus reales necesidades, en el que todos los grupos sociales
deberían tener voz igualitaria en las decisiones (Aitken et al., 2008; Cowell,
et. al, 2011; Lorig, 2007), y no solo aquellos que sostienen el discurso
hegemónico (Späth, 2012). Además, a la participación ciudadana en el
al proceso de toma de decisiones debería incluirse el conocimiento local,
como herramienta para el empoderamiento social (Aitken, et al., 2008).
De esta manera, la participación social puede ser un instrumento
para la justicia ambiental entendida no solamente como promotora de
distribución de bienes de manera equitativa y participativa entre todos
los grupos y niveles sociales (Cowell et al., 2011), como también una
manera de ofrecer una oportunidad de participación real y critica en el
proceso de desarrollo de ideas y toma de decisiones (Bell et al., 2005;
Grooves, 2015; Hagget, 2011; Wolsink, 2007). Para ello, la participación
ciudadana no puede ser entendida como un aporte solo de la población
sino como un amplio proceso de dialogo en el cual están involucrados
horizontalmente diferentes actores (la población, los desarrolladores/

216
Energías Renovables en América del Sur: Injusticias energéticas y colonización tecnológica

empresarios, los políticos, entre otros) desde diferentes contextos con


distintas perspectivas y anhelos hacia un mismo escenario (Batel, 2018).
El proceso de implementación de las IER puede ser un recurso para
incentivar la participación social, no solamente en un proyecto en concreto
sino que en otros debates sobre el futuro de lugar, contribuyendo para la
promoción de una toma de decisión más justa social y ambientalmente,
transformándose en un instrumento para la democratización social (Batel,
2018). No obstante, para una real participación crítica en la toma de decisio-
nes, y para que las IER sean un instrumento crítico para la democratización
social es necesario una comprensión popular sobre el sector energético y
las políticas públicas. Como ilustrando por el fragmento 1, la ausencia de
promoción de conocimiento social sobre cuestiones energéticas muchas
veces es encubierta por el argumento de la dificultad de comprensión de-
bido a su naturaleza técnico-científica (Bergman, 2001), la que también
es utilizada como razón para justificar la falta de diseminación de infor-
mación y participación social en los debates sobre la política energética.
No obstante, el ejercicio de participación social en temas relacionados a
las políticas energéticas, en sí mismo, ayuda a componer una base social
más atenta e informada y capaz de participar activamente en los debates
públicos sobre generación y uso de energía (Bergman, 2001; Cowell et.
al, 2011; Devine-Wright, 2005; Hagget, 2011). Con lo cual, para llegar
a la democratización energética, las leyes no deberían ser impuestas a la
población. La sociedad debería tener voz activa en el debate y en el proceso
de toma de decisiones sobre el sector energético (Bergman, 2001; Cowell,
et. al, 2011; Scheer, 2009).
Sin embargo, la ‘ignorancia energética’ de cierta forma puede ser
estratégica para la implementación de medidas gubernamentales respecto
a la energía. La falta de conocimiento social sobre temas relacionados a
la gestión energética genera sujeción, que propicia la manipulación social
(Bergman, 2001; Cotton & Devine-Wright, 2012; Zografos & Martine-
z-Allier, 2009). Igualmente, los intereses de instituciones privadas disfra-
zadas de estatales (Pol et al., 2006) también pueden estar por detrás de
las medidas en el sector energético. Con lo cual, la ignorancia energética

217
Relações pessoa-ambiente na América Latina

también se hace estratégica para su cumplimiento (p. ej.: privatizaciones


del sector eléctrico, beneficio a determinadas empresas en el momento
de proponer nuevos emprendimientos) (Bergman, 2001; Scheer, 2009).

Infraestructuras energéticas renovables como


instrumento de justicia energética y democratización
del sector energético

Solamente la participación social crítica en el debate sobre la energía


no garantizará la democratización y la justicia energética. A este conoci-
miento amplio es necesario sumarse el escenario energético macro, el que
abarca las políticas energéticas nacionales y locales, y que hace hincapié a
la colonización energética del norte global hacia los países del sur global,
o los llamados países “desarrollados” y “subdesarrollados”.
Según Quijano (2000) y Sousa Santos (2010), el imaginario de pro-
greso norte-sur nos hace pensar que para conseguir permanecer en la
contemporaneidad es necesario someterse a las tecnologías que vienen
de afuera porque son mejores que las desarrolladas localmente, pues en
el imaginario cultural del hemisferio sur lo moderno es lo que viene del
conocimiento eurocéntrico, lo que perpetua la relación colonizador-co-
lonizado. En términos de políticas públicas para el sector energético, en
nombre de la seguridad energética, de la igualdad de distribución y de la
mitigación del cambio climático, se perpetúan relaciones de poder entre
norte-sur global forjadas desde hace siglos, siendo el sur Global terreno
normalizado e incontestable para experimentos y venta de nuevas tec-
nologías por grandes multinacionales y gobiernos. Esta realidad sostiene
y estructura una imperceptible y normalizada maniobra neoliberal de
exportación (y colonización) de conocimiento y tecnología, perpetuando
relaciones históricas de poder.
Por lo tanto, para una real democratización social es necesaria la des-
colonización energética, que primero debe partir de la consciencia de esta
colonización velada. En segundo lugar, es necesario valorizar el conocimiento
local, al mismo tiempo que se debe tener cuidado de no dicotomizar sino

218
Energías Renovables en América del Sur: Injusticias energéticas y colonización tecnológica

pluralizar el conocimiento (Mouffe, 2013). Las infraestructuras y políticas


energéticas han sido desarrolladas perpetuando y produciendo formas de
inequidad y vulnerabilidad (Batel & Devine-Wright, 2017; Scheer, 2005;
Swygedouw, 2010; Walker, 2012). Consecuentemente, para una verdadera
justicia ambiental y energética es necesario tener en cuenta la necesidad de
descolonización energética a través de la valoración de los saberes locales y
de la pluralidad de existencia entre lo de afuera y lo de adentro. Por ello,
el debate energético y la participación ciudadana en la toma de decisiones
son fundamentales, cuando estructurados desde la consciencia sobre las
relaciones de poder entre eje Norte-Sur Global, ofreciendo apertura para
la integración de saberes locales (incluyendo conocimiento y tecnologías)
en este proceso. Esta consciencia también debería estar presente en los
debates sobre las políticas energéticas a nivel gubernamental. Repoliti-
zando el debate energético, desde la promoción de la participación social
en el debate crítico sobre las toma de decisiones energéticas, se puede
promocionar no solo democratización como también justicia energética
(Swyngedouw, 2010; Walker, 2009).
En definitiva, el hecho de tener que convivir con un parque eólico
también es una cuestión de justicia ambiental. Con lo cual, las IER podrían
servir como instrumento para la justicia ambiental cuando abarcasen las
siguientes dimensiones: (a) la distribución igualitaria de los impactos,
responsabilidades y espacialidades; (b) el reconocimiento de la de la va-
loración/devaluación de ciertas poblaciones y sus identidades de lugar en
comparación a otras, buscando alternativas para contrarrestar esa realidad;
(c) la participación ciudadana horizontal, igualitaria y justa en las discu-
siones y toma de decisiones, donde se incluyera la voz de todos los grupos
sociales, conteniendo a los más marginalizados; (d) la consciencia de la
existencia de una colonización tecnológica y hegemónica del norte hacia
el sur global, valorando y fomentando el saber y la tecnología local (Batel
y Devine-Wright, 2017; Groves, 2015; Walker, 2009).
Por lo tanto, desde una perspectiva crítica, la democratización y la
justicia energética seria aquella que a un nivel micro promueva la mejoría
económica, la valoración de la identidad de lugar y el empoderamiento

219
Relações pessoa-ambiente na América Latina

social, no solo a través de mejorías económicas (empleo, impuestos, me-


joría en la estructura), sino que también a través de la participación social
activa y crítica en la toma de decisiones, donde todos los grupos sociales
tengan participación y escucha igualitaria. A un nivel macro, frente a
la descolonización energética, es necesario que, a la participación social
justa, crítica y activa en la toma de decisiones, se sume la promoción de
la valoración de los saberes locales. Abarcando estas dimensiones las IER
podrían llegar a ser instrumentos para el empoderamiento social, justicia
energética, democratización y descolonización energética.

Consideraciones finales

Un enfoque crítico y contextualizado de las IER implica que la demo-


cratización y la justicia energética deben promover el desarrollo económico
local a la vez que socavan las lógicas poscoloniales globales. Al hacerlo, es
necesario basar las acciones relacionadas al sector energético en el valor
local y en las resonancias políticas de contenidos relativos a la identidad de
lugar, fomentando el empoderamiento social a través de mejoras económicas
impulsadas localmente y promoviendo la participación ciudadana activa y
crítica en la toma de decisiones, asegurando a todos los grupos sociales un
igual nivel de participación y expresión. Un punto clave en este proceso
es poner en primer plano el conocimiento y las tecnologías locales de una
manera que aumente la conciencia crítica de las dinámicas coloniales que
dan forma al territorio y a las relaciones persona/ciudadanía y lugar, lo
que lleva a formas de empoderamiento comunitario arraigadas localmente,
orientadas hacia la emancipación energética fuera de la subordinación de
la explotación energética del norte Global.

220
Energías Renovables en América del Sur: Injusticias energéticas y colonización tecnológica

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224
Capítulo XI

Comunidades tradicionais
pesqueiras do Delta do Parnaíba
Antônio Vladimir Félix-Silva
Camila Batista Silva Gomes
Maylla Maria Souza de Oliveira
Alessandra Sávia da Costa Masullo
Francinalda Maria Rodrigues da Rocha

Aqui, onde os ventos, literalmente,


fazem a curva na coreografia da vida
E onde as águas doces e salgadas
se encontram e caminham lado a lado,
nada acontece e tudo acontece.
Quem tiver pele para sentir que sinta.
A vida, aqui, é navegar
na dança dos ventos e
nas ondas dos rios e no balanço do mar.
A voz das águas diz:
Vem navegar-me!
Vladimir Félix

Da dimensão política do luto pela perda de um território de


existência à luta pelo comum como dimensão política da vida

N o Dia internacional da Mãe Terra1, 22 de abril de 2020, o Grupo


Observatório dos Impactos do Coronavírus nas Comunidades Pesquei-
ras (ObCovid-19/Pesca, 2020) divulgou uma nota de pesar, emitida pela

1  A partir da publicação da Carta da Terra, no ano 2000, e depois de muita pressão internacional, com
a participação de mais de 4.500 organizações da sociedade civil e organismos governamentais, no ano
2009, a Organização das Nações Unidas declarou o dia 22 de abril como Dia Internacional da Mãe Terra
(Conselho Indigenista Missionário [CIMI], 2020).

225
Relações pessoa-ambiente na América Latina

Comissão Nacional de Fortalecimento das Reservas Extrativistas e Povos


Tradicionais Extrativistas Costeiros e Marinhos (Confrem), que dizia: “Sr.
Pedro Sírio construiu sua vida na Praia de Parnuaçu, no Cajueiro, um dos
territórios da Resex Tauá Mirim, e, juntamente com D. Ana, sua esposa,
e toda sua família, lutou como um guerreiro na defesa de seu território
tão ameaçado”. Seu Pedro, vitimado pela Covid-19, no dia 22 de abril de
2020, continuará na memória de 80 famílias de Parnuaçu, dentre as 350
que vivem da pesca artesanal e de outros extrativismos, na comunidade
do Cajueiro/Zona Rural de São Luís – MA (Alves, Amorim, Mota, &
Lindoso, 2018), onde, em agosto de 2019, por meio de uma ação violen-
ta, 200 policiais militares cumpriram ordem de despejo em 21 povoados
para reintegração de posse a uma empresa cujo empreendimento portuário
conta com capital chinês.
Tuxati Jonkahynti Jakankrati Parkatêjê, após a morte de sua tia, Ai-
krekatati Parkatejê (66 anos), fala que dói enterrar os parentes sem poder
velar o corpo e dói mais ainda nem ter saído de um luto e já ter de entrar
em outro. A jovem, coordenadora da Federação dos Povos Indígenas do
Pará (Fepipa), alerta: “Nossos parente tão sofrendo, nós não pode abraçar.
Nós não queremo ser dizimado, nenhum povo nosso. Nós queremo viver.
Mesmo com dor, mesmo chorando. Mesmo com dor no coração, mas nós
vamos continuar; resistir; gritar Sim!” (Apib, 2020).
No presente texto, não temos a pretensão de falar das mais de qui-
nhentas mil mortes das pessoas vitimadas pela Covid-19, no Brasil. Mas
não podemos deixar de reconhecer que a pandemia causada pelo novo
coronavírus, Sars-Cov-2, colocou, novamente, em evidência o genocídio
contra os povos originários. Nossa intenção é compartilhar bricolagens
de cartografias de movimentos sociais pesqueiros a partir de nossa expe-
riência com pesquisas realizadas, entre 2017 e 2020, na Planície Lito-
rânea do Piauí (que faz parte da Área de Proteção Ambiental Delta do
Parnaíba – APA Delta), e nas redes sociais, durante os primeiros meses
de pandemia, momento no qual a Articulação Nacional de Pescadoras
(ANP), o Movimento de Pescadores e Pescadoras (MPP) e o Conselho
Pastoral dos Pescadores (CPP) deslocaram seus espaços de visibilidade e

226
Comunidades tradicionais pesqueiras do Delta do Parnaíba

dizibilidade para os dispositivos: Facebook e Websites, plataformas Zoom


e Google Meet, com reuniões, encontros, seminários e lives, além de
produção de vídeos, boletins e podcastes.
O genocídio contra os povos originários, genealogicamente, atravessa
nossa história desde a colonização e, ainda hoje, caracteriza a produção de
subjetividade colonial-capitalística (Rolnik, 2018). Na contemporaneidade,
essa produção de subjetividade é feito e efeito de agenciamentos de pro-
cessos de subjetivação e enunciação segmentados à lógica do capitalismo
global, à cultura do consumo, aos dogmas religiosos, à sujeição social e à
servidão inconsciente (Rolnik, 2018). Esses processos coexistem com o
agenciamento coletivo do desejo de um outro mundo possível e com a luta
coletiva de grupos minoritários, movimentos sociais e microinsurgências que
produzem fissuras no sistema hegemônico, com a reinvenção de protestos,
reivindicações e com a invenção de modos de vida solidários, linhas de fuga
que apontam para resistência à corrupção ambiental do desenvolvimento
econômico insustentável e para a produção de novas suavidades por meio
de processos de subjetivação singulares.
Como esses processos de subjetivação emergem da enunciação dos
territórios existências e dos saberes das comunidades tradicionais pesqueiras?
Para quais regimes de governabilidade os povos e as comunidades tradi-
cionais são considerados descartáveis? Quais vidas e mortes são passíveis
de luto e de luta para as próprias comunidades tradicionais pesqueiras?
Essa problematização parte do que apresentamos, neste relato, e está
relacionada à luta política e à dimensão política do luto, “quando somos
despossuídos de um lugar, ou de uma comunidade” (Butler, 2018, p. 42).
Para iniciá-la, citamos uma noção de política implícita nos versos do poeta
Patativa de Assaré/A. G. Silva (1988, p. 128). Trata-se de uma parte do
diálogo entre dois personagens do poema homônimo, Curioso e Miudinho:

– Quem é você, que alegre se apresenta com essa altura de dois metros
e oitenta?
– Onde eu ando me chamam Miudinho, tudo vejo e decifro em meu ca-
minho.

227
Relações pessoa-ambiente na América Latina

– Miudinho, me diga o que é política?


– É um dilema de onde nasce a crítica.
– E este argumento para onde se lança?
– Para os dois pratos de uma só balança.
– E na campanha quem vitória alcança?
– Quem mais mentira sobre o prato lança.

Com a consolidação das fake news nas sociedades de controle, o


dilema político em torno do que está em jogo nos territórios das águas,
se vida e morte (Foucault, 2010) ou os modos de vida e sua dimensão
política (Agamben, 2016, 2017a, 2017b), não se resolve só com a crítica
à devastação da Amazônia, à privatização da água e à concessão para ex-
ploração comercial-turística e econômica das áreas de proteção ambiental
e de reservas extrativistas, tampouco com uma ilusão de que entre povos e
comunidades tradicionais não existem também subjetividades agenciadas
pelo capitalismo. Não obstante, nesses contextos, o território existencial
é o tempo todo ameaçado por grandes empreendimentos econômicos e
pelas políticas de um Estado que omite o trabalho escravo e, além de não
efetivar uma reforma agrária, ainda negligencia a demarcação de terras
indígenas e quilombolas, tratando de reduzir cada vez mais o comum. O
comum é o que nos resta de dimensão política da vida (Agamben, 2016)
não só contra a distopia, mas também como um projeto político em defesa
de uma zona de vida comunitária de que alguns povos tradicionais ainda
fazem uso não como donos, mas como pertencentes à natureza e como
testemunhos e sobreviventes desse território existencial.
Portanto, o dilema político é o dilema de uma vida que se torna cada
vez mais complexo, quando pensamos com Guattari (1989/2012) que
concebe a subjetividade como socius, sendo esta produzida pelas inter-
relações entre as ecologias ambiental, social e subjetiva. Na perspectiva
ético-estético-política da análise dessas ecologias e das linhas de força da
vida que pede passagem para mais potência de vida e menos políticas de
morte anunciadas pelo Estado e pelas instituições do capitalismo global, o
que está em jogo nos territórios das águas é a vida humana e não humana,

228
Comunidades tradicionais pesqueiras do Delta do Parnaíba

é a vida e a morte dos ecossistemas e sua biodiversidade, é a vida e a mor-


te das comunidades rurbanas ou periurbanas, quilombolas, vazanteiras,
ribeirinhas, caiçaras e indígenas.

Caminhos das águas de dunas móveis e areia movediça

O desenvolvimento econômico predatório desrespeita e agride am-


bientalmente, socialmente e psicologicamente a história do território de
existência e deixa implicações psicossociais na subjetividade dos povos do
mar e das comunidades tradicionais pesqueiras. Diante dessa situação-pro-
blema, no seminário de abertura da 6ª Semana Social Brasileira, realizado
no dia 27 de junho de 2020, a marisqueira Eliete Paraguassú, do MPP,
expressa o campo de disputas que se configura a partir dessa produção de
subjetividade colonial-capitalística:

Que desenvolvimento é esse que mata? Que desenvolvimento é


esse que tem assassinado as comunidades tradicionais, que tem
matado, que tem excluído, que tem trazido a fome e a morte pra
este lugar que sempre foi sagrado que sempre foi espaço não só de
trabalho mas de uma relação muito profunda com a natureza. Essa
relação onde quem determina é os ventos, é os mares, quem de-
termina são as florestas. Então, a gente de comunidade tradicional
tem enfrentado isso há 520 anos. ...A gente precisa se reinventar a
cada dia ... Mas, também a cada dia a perversidade ela se reinventa,
a cada dia o modelo ele vem se reinventando de exploração de uma
tamanha perversidade e que tem assassinado os corpos das pesso-
as, mas também tem assassinado o ambiente. (CPP, 2020)

Na quinta edição de Diálogos de Maré, realizada em 29 de junho


de 2020 (CPP, 2020), assistimos à Marly, pescadora artesanal e militante
da Confrem, falar da perda e achatamento de direitos, licenciamentos e
privatizações das áreas de rios, manguezais, dunas e igarapés que ameaçam
às Áreas de Proteção Ambiental (APA) e às Reservas Extrativistas (Resex).
Ela falava também de como as mulheres, diante de tudo isso, são desres-
peitadas no seu território.

229
Relações pessoa-ambiente na América Latina

Gênero e racismo ambiental são dispositivos que emergem da análise


dos processos de subjetivação e enunciação dos territórios e dos saberes
tradicionais da comunidade pesqueira. À semelhança de outras pescadoras
do litoral nordestino, as marisqueiras dos Tatus, do Cal, do Labino, do
Baixão e dos Morros da Mariana e de outras localidades também ficaram
seis meses sem mariscar e sem obter renda por meio de seu trabalho arte-
sanal, devido ao derramamento de petróleo cru que atingiu, no segundo
semestre de 2019, o litoral, principalmente, da região Nordeste, inclusive
praias, rios e mangues da APA Delta, afetando também a Resex Delta do
Parnaíba e a biodiversidade de seus ecossistemas. O transtorno psicossocial
provocado por essa tragédia socioambiental acabou se repetindo durante a
pandemia, haja vista o desaparecimento de quem comercializa o produto
das marisqueiras, ora pela questão do derramamento de petróleo cru, ora
por conta do distanciamento social relacionado com a Covid-19.

Meu nome é Maria Luiza, vice-presidente das Marisqueiras (Associação


de Marisqueiros de Ilha Grande - PI). Eu queria falar pra vocês dessa epi-
demia que apareceu aqui, na nossa comunidade. Tá acabando com nós
todas porque nós não tamo trabalhando. ... A gente trabalhava, [mas]
... . Desde o tempo do petróleo [derramamento de petróleo cru]que nós
num trabalha, diretamente [com a coleta de mariscos]. Nós tinha um
homi que comprava nosso marisco, um atravessador. Agora, ninguém
não tá tendo mais. Nós não sabe nem o que é que faça; porque, daqui a
pouco, nós num têm nenhum centavo pá pagar nem a água, nem a luz da
nossa associação. E aí é só descendo, só descendo. Nossa condição é essa.
... . É uma tristeza pra gente, porque é tudo uma família. As marisquei-
ras tudo é uma família da gente, aí a gente fica preocupada com umas ...
Aí acontece uma coisa dessas.

Na APA Delta do Parnaíba, o Plano de Manejo das Atividades Eco-


nômicas foi elaborado, entre 2018 e 2019, vinte e dois anos depois da
criação da APA e só foi assinado, em 2020, por conta de muita pressão
da Confrem e do Conselho Deliberativo da Reserva Extrativista Delta do
Parnaíba (Resex Delta). Nesse período, mapeamos os modos de reinvenção
da comunidade e seu permanente estado de mal estar, em um estudo que
realizamos sobre a luta e resistência das comunidades pesqueiras da Pedra

230
Comunidades tradicionais pesqueiras do Delta do Parnaíba

do Sal/Parnaíba (PI) e Ilha Grande (PI) diante dos empreendimentos


econômicos de grande porte e da iminência da ampliação de uma usina
eólica, cujos parques já existentes foram instalados em 2014 (Delta I) e
2016 (Delta II) e a licença ambiental a favor do novo parque (Delta X)
saiu no final de 2019 (Félix-Silva, Oliveira, & Bezerra, 2020).
Maria, neta de pescador e filha de pescadora e pescador é uma das
mulheres que se reinventa com o luto pela perda do acesso ao território e
com a luta pela vida desse território de existência. Depois de participar de
audiências públicas, reuniões, encontros, manifestações e protestos, como
testemunha e sobrevivente da comunidade pesqueira da Pedra do Sal, e
de ter militado contra a instalação de parques eólicos, empreendimentos
turísticos e outros empreendimentos de grande porte na área da praia, ela
se pergunta:

É impossível olhar os kitesurf assim como para um aerogerador e


achar bonito e não sentir nada, sem deixar de questionar: por que
aqui? Assim como é impossível achar certo o aumento da passa-
gem, da conta de luz e a falta de água potável. Como pode uma co-
munidade tão pequena ser tão visada por grandes empreendimen-
tos e tão esquecida pelos governantes? (Maria. Diário Cartográfico,
setembro de 2017)

Além da falta de saneamento ambiental e de direito à saúde ambiental,


a precarização da vida da comunidade pesqueira se amplia com o racismo
ambiental, tal como denuncia Maria:

[Em criança], nós pegávamos as pranchas de carretear, botávamos


nas costas dali descíamos em direção aos morros, na nossa frente
apenas os matos, as lagoas, os animais pastando, a gente passava
no cemitério, roubava uma vela, para a prancha descer melhor nas
dunas, ali ficávamos no restante da tarde. Hoje em dia, eu saio de
casa sigo por uma pista de piçarra que dividiu e aterrou as lagoas
e traçou caminho rumo às dunas, mas logo ali eu cruzo com um
portão grande, de gradeado e um Homem vem me pedir para eu me
identificar e vem me dizer que não posso passar. Naquele instante,
pensei quem era aquele cidadão que me falava tão imponente que

231
Relações pessoa-ambiente na América Latina

eu, filha desta terra, não posso andar nela, que enquanto moradora
sou obrigada a me identificar. O estranho aqui não sou eu, quem
chegou e mudou tudo não fui eu, mas como eu preciso de uma au-
torização, sabe-se lá de quem para circular na terra? (Maria. Diário
Cartográfico, setembro de 2017)

Corroboram processos de luto pela perda do território e de luta pelo


pertencimento ao território as políticas de vida e morte agenciadas pelo
Estado e pelo capitalismo, ora reproduzidas por seus agentes e microfas-
cismos, ora anunciadas como desenvolvimento econômico por meio de
decretos, normas, leis, regulamentações e instituições de controle da Justiça,
da Economia e do Meio Ambiente. Políticas, muitas vezes, manipuladas
por meio de Estudos de Impactos Socioambientais e camufladas por meio
de Planos de Manejo das Atividades Econômicas em Áreas de Proteção
Ambiental. Uma biopolítica que expõe a comunidade a processos de
sujeição “não apenas pelo Estado, mas também pelos próprios sujeitos”
(Agamben, 2016, p. 6). Essas políticas constituem o que se concebe como
racismo ambiental (Bullard, 2005 citado por Jesus, 2020), pois afetam,
institucionalmente, não só o saneamento ambiental e a saúde ambiental,
mas também as ecologias social e subjetiva, ampliando a precarização da
vida dos povos e comunidades tradicionais; assim, prejudicam, no âmbito
das relações étnico-raciais, as condições de acesso ao território das águas,
ao trabalho da pesca artesanal e à produção econômica de base familiar.

A realidade... está evidenciando que os impactos ambientais que


levam a conflitos territoriais de grandes empresas com os povos
tradicionais, especialmente no litoral, degradação dos meios de
subsistência e demandas públicas de respostas políticas em curto
prazo, contradizem os discursos da sustentabilidade do desenvolvi-
mento da energia eólica. (Brannstrom, Gorayeb, Loureiro, & Men-
des, 2019, p. 45)

Nesse cenário, o racismo ambiental emerge dos processos de subjetivação


como expressão e dispositivo da biopolítica, ou seja, dos poderes de gestão da
vida e morte que expõem a vida humana e não humana à condição de vida

232
Comunidades tradicionais pesqueiras do Delta do Parnaíba

descartável, de vidas que não importam como parte dos processos políticos
de inclusão e exclusão “de uma administração maior das populações por
meios governamentais e não governamentais” (Butler, 2018, p. 216). Assim
mesmo como nos fez lembrar Mila, do CPP/Ceará, durante o VI Encontro
Nacional de Educação Popular em Saúde, realizado na Universidade Federal
do Delta do Parnaíba, entre 6 e 9 de fevereiro de 2020:

A lógica do capital é uma lógica que pra nós tem se mostrado falida,
você pode ver que o capital faz exploração dos recursos naturais e
isso não tem sustentabilidade. A gente pode lembrar os desastres
ambientais que a gente tem testemunhado em todos os territórios,
a gente pode lembrar-se do desastre do petróleo, dos impactos so-
cioambientais com a instalação de parques eólicos e a destruição
dos manguezais que são os berçários da pesca. A gente tem visto
tantos e tantos desastres a gente pode lembrar-se de Brumadinho,
como está devastada a vida nesses territórios. (Diário Cartográfico,
9 de fevereiro de 2020)

A corrupção ambiental alimenta a máquina capitalista e é alimentada


pelo Estado e seus regimes de verdade que não suportam a verdade verdadeira
da comunidade pesqueira. Na poesia “A verdade e a Mentira”, de Patativa
de Assaré/A.G. Silva (1988), Verdade e Mentira são duas personagens que
disputam espaços de poder. Quando a Mentira percebe que está perdendo
espaço político para a Verdade, ela chama depressa o dinheiro para sua
companhia que leva com ele “a inveja, a hipocrisia, a ambição, a calúnia,
o orgulho, o crime e a ironia, a soberba e a vaidade que são da mesma
famia...” (Silva, 1988, p. 233). Depois de formar esta grande quadrilha,
o dinheiro tem uma filha com a anarquia e dizem que “essa menina se
chama democracia” (Silva, 1988, p. 234). Trata-se de uma sátira escrita
em um momento no qual o país transitava do regime civil-militar para
a realização das primeiras eleições diretas para presidência da república,
pós-ditadura. Com a leitura completa da poesia, não se faz necessário muito
esforço para que possamos inferir: a produção da verdade tem o sentido de
verdade verdadeira e a produção da mentira é um processo de enunciação
de regimes de verdade que compõem a democracia como um eufemismo.

233
Relações pessoa-ambiente na América Latina

Metáfora que traduz bem a conjuntura política atual e o estágio em que


se encontra a frágil democracia no Brasil.
Nessa conjuntura política, o desenho democrático de audiências pú-
blicas para licenciamento de projetos de desenvolvimento na APA Delta
chega a ser perverso e marcado pelo racismo ambiental. Lado a lado dos
representantes de grandes empreendimentos econômicos, organismos
governamentais e organizações da sociedade civil parceiras, a comunidade
participa dessas audiências e não se cansa de argumentar e se posicionar
majoritariamente contra instalação de parques eólicos, realização de even-
tos de kitesurf e construção de resorts e hotéis luxuosos, mesmo sabendo
que, raramente, será surpreendida com uma decisão jurídico-política a seu
favor, pois a vontade dos governos federal, estaduais e municipais sempre
converge com a força do capital.
Podemos cartografar isso, quando participamos das audiências relacio-
nadas com a ampliação dos parques eólicos mencionados anteriormente.
Na audiência pública realizada no dia 15 de agosto de 2019, na Pedra do
Sal, e coordenada pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Recursos
Hídricos do Piauí – Semar (PI), acompanhamos Seu Zé Boreta denunciar
as violências institucionais e, ao mesmo tempo, anunciar que a comunidade
pesqueira continuará resistindo como testemunha e sobrevivente:

Sou filiado à Colônia Z-7, tenho 60 anos de vida. Nasci e me criei


nessa Ilha. Conheço cada lagoa, cada igarapé que existe nessa ilha,
eu conheço. Companheiros da Pedra do Sal e da Ilha Grande, aqui,
nesta noite, nós presenciamos mais um discurso da Ômega. Um dis-
curso cansativo que nós já estamos acostumados a ouvir. Agora, eu
quero perguntar para os representantes da Ômega e para todas as
autoridades que estão aqui, como vai ficar a nossa situação depois
da complementação desses 52 aerogeradores? Vocês já imaginaram
como vai ficar nossa situação? Imaginaram não, porque vocês não
convivem aqui. Fala-se muito de lei. Quer dizer que existem leis para
se poluir as lagoas com óleo? O meu genro foi pegar uns carazinhos
para comer com minha filha e seu filho, não se achou com coragem
porque a lagoa estava cheia de óleo. Isso é lei? O meu ambiente apro-
va essa lei? ... E os [pequenos] criadores que criam seu gado vão cam-
pear o seu gado e os vigilantes da Ômega vão botar eles para baixo?
Eles não podem campear o gado deles. Eles estão cuidando do que é

234
Comunidades tradicionais pesqueiras do Delta do Parnaíba

deles. Eles também são nascidos e criados nessa Ilha. Agora, chega
uma empresa dessa acabando com a privacidade, acabando com as
nossas vidas. Estão cercando nós na Ilha. Você quer saber se é verda-
de? Venha conviver um mês com a comunidade, venha saber o que
a comunidade passa para sobreviver. Vocês nunca passaram por isso
não. Mas, venham passar um mês, só um mês. Eu chamo vocês para
passar só um mês, para conviver 60 anos em um mês; 60 anos que
eu já convivi. Nós vamos continuar aqui para ver como vai terminar
isso daí. Eles estão dizendo que vai ser melhor. Vai ser pior. Vai des-
truir mais lagoas, mais dunas, mais vegetação... Que os cajueiros, os
muricizeiros, guajiruzeiros já morreram 80%. Vocês dizem que não é
verdade. É verdade, é verdade...

Pensando com Seu Zé Boreta, podemos afirmar que esse mal-estar


é provocado pelas políticas de eliminação étnico-racial no território das
águas, ou seja, políticas que produzem “la muerte lenta de poblaciones …
medinte acciones e inacciones que comprometen su vida y salud” (Moreno
Parra, 2019, p. 89). Assim, “las formas de muerte lenta se refieren a los efectos
nocivos que tienen a corto y largo plazo las acciones cotidianas en ambientes
tóxicos o afectados por amenazas ambientales de las que los habitantes tienen
poco control (como la contaminación de los ríos)” (Moreno Parra, 2019, p.
99). Como ressalta Achille Mbembe (2018), essa necropolítica caracteriza
uma versão do capitalismo contemporâneo. Trata-se, como explica Butler
(2018), de políticas que ora “buscam explicitamente a morte de determi-
nadas populações e políticas que [ora] produzem condições de negligência
sistemática que na realidade permitem que as pessoas morram” (p. 17).
Coexistem com os agenciamentos modos de resistência, efeitos do
campo de disputas e dos conflitos gerados pelo que estamos denominan-
do corrupção ambiental e territorialização de capitanias contemporâneas
arrendadas a investidores internacionais pelo Estado, por grileiros ou
mesmo por alguma associação ou alguém da comunidade que se autode-
clara dono e consegue um Cadastro Ambiental Rural – CAR. Em geral,
as comunidades pesqueiras estão em território que fazem parte do patri-
mônio da União; isso também faz com que, às vezes, a documentação de
propriedade possa ser forjada ou se forje uma doação a uma associação
comunitária para que o território seja arrendado em seu nome a terceiros

235
Relações pessoa-ambiente na América Latina

como capitanias “hereditárias” à época da colonização. Ao se referir a es-


ses complexos agenciamentos e à articulação de dispositivos econômicos,
jurídicos, sociais e políticos para implementação de um empreendimento
de morte ao território das águas, conceituamos a complexidade desses
processos como corrupção ambiental, haja vista que deles podem emergir
como analisadores: adulteração de processos, deterioração do território e
precarização da vida.

Considerações da luta pelo comum como dimensão


política da vida

Não só na APA Delta, mas também em outros territórios e comu-


nidades tradicionais, os movimentos sociais pesqueiros, como MPP e
ANP, – com o apoio de organizações de outros movimentos sociais e de
conselhos, principalmente do CPP que caminha junto com os pescadores
e as pescadoras artesanais há mais de cinquenta anos, – permanecem nos
processos de luta pelo reconhecimento do território tradicional pesqueiro.
A militância dos movimentos sociais pesqueiros acredita não só em outra
perspectiva de turismo nos territórios pesqueiros, por exemplo, de turismo
comunitário. Aposta, também, em uma perspectiva ecofeminista de convívio
com a natureza e com as pessoas que podem se harmonizar; aposta, portanto,
na existência de outros modelos de vida para apresentar a sociedade com
experiências de desenvolvimento sustentável não na lógica dos empreendi-
mentos econômicos outorgados pelo Estado a partir de Estudos de Impactos
Ambientais e medidas de mitigação, mas de alternativas de desenvolvimento
que são sustentáveis a partir da própria vivência dos povos originários.
Portanto, a luta é pelo fortalecimento de conexões com o bem viver e
que potencializem essas alternativas aos modelos de desenvolvimento que
só ampliam injustiças sociais, desigualdades econômicas e iniquidades, pois
o modelo de produção de subjetividade colonial-capitalística é um modelo
com muitas barreiras e fronteiras ideológicas, físicas e concorrenciais.
O Bem Viver deve ser considerado parte de uma longa busca de alter-
nativas de vida forjadas no calor das lutas populares, particularmente dos

236
Comunidades tradicionais pesqueiras do Delta do Parnaíba

povos e nacionalidades indígenas. São ideias surgidas de grupos tradicio-


nalmente marginalizados, excluídos, explorados e até mesmo dizimados.

São propostas invisibilizadas por muito tempo, que agora convidam


a romper radicalmente com conceitos assumidos como indiscutíveis.
Estas visões pós-desenvolvimentistas superam as correntes hetero-
doxas, que na realidade miravam a “desenvolvimentos alternativos”,
quando é cada vez mais necessário criar “alternativas de desenvolvi-
mento”. É disso que se trata o Bem Viver. (Acosta, 2016, p. 71)

Para os movimentos sociais do campo, da floresta e das águas do


Equador, da Bolívia e do Brasil e de outros países, o bem viver é uma
perspectiva antissistema. Os pescadores e, principalmente, as pescadoras
artesanais, têm debatido essa perspectiva em algumas mesas e feito alguns
questionamentos. Para explicar essa proposta antissistêmica, as mulheres
começam dizendo que quem determina seus horários de trabalho é a própria
natureza, as mulheres dizem muito isso: “nosso horário de trabalho quem
determina é a maré; não temos patrões, nem temos que todo dia bater
cartão de ponto”. Ou seja, as comunidades pesqueiras têm seu próprio
modo de se organizar e de fazer a vida acontecer em seus territórios. Então,
os movimentos têm propostas palpáveis, que já existem, só precisam de
reconhecimento e ampliação para que as pessoas conheçam e saibam que
são viáveis. São propostas possíveis de que um outro mundo é possível.
Nos territórios pesqueiros a promoção de territórios saudáveis nos
convida a pensar numa nova sociedade onde somos chamados e chamadas
a viver também a espiritualidade, a relação com a Mãe-Terra e o Pai-Uni-
verso. O Bem Viver é isso, é o bem estar da saúde do corpo, mas também
da mente, da espiritualidade e da saúde ambiental sanitária que faz essa
relação, essa ligação do corpo com vida humana e não humana. O Bem
Viver é uma aposta nisso, virtualidade de outros mundos possíveis.
Viveiros de Castro (2015) não nos deixar esquecer que “o Mercado
serve ao Estado [e que] o Estado serve ao Mercado [portanto,] não há por
que ‘escolher’ entre os dois” (p. 100). Quem insiste na aposta de que um
outro mundo é possível sabe que “a propagação da peste neoliberal e a

237
Relações pessoa-ambiente na América Latina

consolidação tecnopolítica das sociedades de controle ... só poderão ser


enfrentadas se continuarmos capazes de conectar com os fluxos de desejo
que” (Viveiros de Castro, 2015, pp. 99-100) sobem à superfície por fu-
gazes momentos de insurgência uma ética da alteridade-solidariedade dos
povos originários.
Povos de comunidades indígenas que, mesmo isolados e, muitas
vezes, perseguidos por instituições políticas e religiosas durante séculos,
não tratam de vencer nem de convencer o outro a acreditar na aldeia de
seus mortos e de nossos ancestrais, nos espíritos da floresta e das águas,
das pedras e dos animas; simplesmente, a convivência com eles e os não
brancos como parentes faz parte do perspectivismo ameríndio e de seus
modos de viver e morrer. Viveiros de Castro traduz esse fenômeno pelo
conceito de afinidade virtual: “afinidade virtual é o esquematismo carac-
terístico do que Deleuze chamaria a ‘estrutura Outrem’” (Deleuze, 1969,
citado por Viveiros de Castro, 2015, p. 34).
Um território indígena não segue, necessariamente, a área circuns-
crita, geograficamente, de um único Estado, ele pode se situar entre mais
de um Estado e ser ocupado por diferentes grupos étnicos e comunidades
indígenas. Em nossas andanças à Comunidade Quilombola de Itaperinha,
em Tutóia Velha, no município de Tutóia – MA, chama atenção uma placa
com o nome Povoado Comum. À semelhança de um território indígena,
contextos de outras comunidades tradicionais são divididos em povoados
e também ocupados por outros povos do campo, da floresta e das águas.
Esgotados os nomes dados a esses povoados; às vezes, o nome dado à
encruzilhada que resta entre uma comunidade e outra pode ser Povoado
Comum. Existem vários Comuns no Brasil. Mas o comum ao qual estamos
nos referindo, aqui, é outro, como já explicitamos.

Nós os “brancos” que aqui estamos, bem como diversos outros


povos indígenas que vivem no Brasil: camponeses, ribeirinhos,
pescadores, caiçaras, quilombolas, sertanejos, caboclos, curibocas,
negros e “pardos” moradores das favelas que cobrem este país. To-
dos esses são indígenas, porque se sentem ligados a um lugar, a um
pedaço de terra – por menor ou pior que seja essa terra, do tama-

238
Comunidades tradicionais pesqueiras do Delta do Parnaíba

nho do chão de um barraco ou de uma horta de fundo de quintal


– e a comunidade, muito mais que cidadãos de um Brasil Grande
que só engrandece o tamanho das contas bancárias dos donos do
poder. (p. 17) [Portanto,] ser indígena é ter como referência pri-
mordial a relação com a terra em que nasceu ou onde se estabeleceu
para fazer sua vida, seja ela uma aldeia na floresta, um vilarejo no
sertão, uma comunidade de beira-rio ou uma favela nas periferias
metropolitanas. É ser parte de uma comunidade ligada a um lugar
específico, ou seja, é integrar um povo. Ser cidadão, ao contrário, é
ser parte de uma população controlada (ao mesmo tempo “defendi-
da” e atacada) por um Estado. (Viveiros de Castro, 2016, pp. 10-11)

Seu Buchudo (55 anos), pescador artesanal da Pedra do Sal, ao se


referir à liberdade de ir e vir da comunidade pesqueira, no território das
águas, recorda-se que, antes da instalação dos parques eólicos, tratava-se
de um território comum; “agora, é viver ou morrer!” A partir da teorização
apresentada por Seu Buchudo e da concepção de povos indígenas – povos
no plural mesmo, tal como defende Viveiros de Castro (2016, 2019) para
referir-se à produção de subjetividades indígenas e sua multiplicidade de
etnias e devires –, pensamos o conceito de povoado comum para nos refe-
rirmos não só à comunidade por vir (Agamben, 2016) como experiência de
um desejo de mundo comum e de comunismo (Negri & Guattari, 2017),
mas também ao devir indígena, ao devir comum minoritário (Guattari,
1981). Trata-se de devir comunidade com os povos do mar e dos territórios
das águas doces e salgadas, tradicionalmente ocupados por pescadoras e
pescadores artesanais cujas relações étnico-raciais e diversidade étnica são
constituídas por indígenas e pela diáspora e nossas africanidades e ocupantes
mais recentes de outros grupos sociais.
Os vestígios encontrados em vinte e três sítios arqueológicos do litoral
do Piauí, dos quais quinze foram considerados sítios sobre dunas, mostram,
de acordo com Jóina Freitas (2016), “a complexidade do povoamento
costeiro que possui datações de oito mil anos até datas contemporâneas à
chagada dos europeus ao Brasil” (p. 453). Não obstante, não é pela existência
de um passado com vestígios arqueológicos que, desde 2012, existe uma
Campanha Nacional pela Regularização do Território das Comunidades
Tradicionais Pesqueiras, mas pelo presente de ocupação de um território

239
Relações pessoa-ambiente na América Latina

vivo (Santos & Silveira, 2010). As comunidades pesqueiras, tais como


outras comunidades, quando se autoafirmam tradicionais, se definem a
partir desse território de existência, local de produção de subjetividades, de
vida e morte, no presente, portanto, a campanha pelo reconhecimento do
território pesqueiro não passa pela nostalgia de uma identidade tradicional
(Agamben, 2016), tampouco “passa pelo resíduo, pela sobra ou ‘pelo que
foi e não é mais’, senão pelo que de fato é, pelo que efetivamente é vivido”
(Marques, 2018, p. 135).
Nessa perspectiva, comunidades são como mulheres não só porque
estão sujeitas às violências institucionais e aos microfascismos, como afirma
Butler (2019), mas também porque as comunidades estão sempre grávidas
de um outro mundo possível.
Concluímos este relato tal como iniciamos, afirmando que os processos
de subjetivação que emergem dos enunciados compartilhados, aqui, têm a
ver com a dimensão política do luto pela perda de territórios existenciais
e com a composição da luta de Pedros e Anas, expressão material não só
da ampliação da precarização da vida, mas também do grito de Tuxatis,
cuja ressonância traduz vozes que dizem Sim à vida humana e não huma-
na nos territórios das águas, tradicionalmente ocupados por pescadoras e
pescadores artesanais. Esses territórios vivos, com ecossistemas ricos em
biodiversidade, são habitados, literalmente, pela pele preta e “parda” dos
povos do campo, da floreta e das águas; povos cujos modos de vida são,
historicamente, marcados por violências institucionais e constituem uma
comunidade de sobreviventes que, muitas vezes, teimam em apostar na
produção de um comum como o que resta da dimensão política da vida.

240
Comunidades tradicionais pesqueiras do Delta do Parnaíba

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243
Relações pessoa-ambiente na América Latina

244
Eixo II

Territorialidades
e práxis de resistência no
campo e na cidade
Capítulo I

Participación y Protagonismos
para un desarrollo sostenible
en Cuba:
Apuntes desde la Psicología Ambiental
María Milagros Febles Elejalde
Silvia Miriam Pell del Río

Introducción

E n el transcurso del proceso sociohistórico, el ser humano ha logrado


romper el equilibrio ecológico con el fin de satisfacer sus necesidades.
Un enfoque histórico cultural y psicológico a la relación hombre-entorno
demuestra que el ser humano no solo es capaz de cambiar su relación con
el ambiente, sino además, de transformarse a sí mismo, si esto deviene
objetivo de su quehacer. Esta problemática debe convertirse en una cues-
tión central para los estudiosos de la psicología ambiental, la cual, en su
propósito de formar conciencia ambiental, brinda herramientas poderosas
para revertir el impacto que el ser humano ha provocado en el ambiente.
Cuba contribuye en la arena internacional con la puesta en marcha
de instrumentos de la política ambiental dentro de la cual la participaci-
ón es imprescindible. Es importante significar que nuestro país, a pesar
del bloqueo y el poco desarrollo económico, ha ratificado los principales
Convenios Ambientales Internacionales y ha expresado la voluntad política
de contribuir a la mejora del medio ambiente nacional, regional y global,
lo que se ha traducido en el cabal cumplimiento de los compromisos
contraídos internacionalmente en el ámbito nacional.
Asimismo, participa de manera efectiva en las actividades del Programa
de las Naciones Unidas para el Medio Ambiente (PNUMA) y las de otras
organizaciones de las Naciones Unidas que desarrollan actividades en esta

247
Relações pessoa-ambiente na América Latina

esfera. Desde la Conferencia de Guadalajara en 1992 se estableció que la


educación ambiental es un instrumento indispensable para lograr la parti-
cipación de los ciudadanos y las transformaciones sociales que garanticen
la óptima calidad de vida y el autodesarrollo de la persona.
Más tarde, en la Conferencia Internacional de Medio Ambiente y
Sociedad efectuada en Tsalónica en 1997 se afirma que la participación
sobre un plano de igualdad y diálogo permanente, es indispensable para
elevar la conciencia, buscar soluciones y modificar los comportamientos
y modos de vida, incluidos los hábitos de producción y consumo, en el
sentido de la sostenibilidad. Por lo que se aprecia cómo a nivel internacio-
nal se supera la visión reduccionista del medio ambiente en sus aspectos
biológicos y físicos, tomándose en cuenta las interdependencias entre las
condiciones naturales y las socio-culturales, económicas y psicológicas de
los individuos que integran ese ambiente. También se considera que solo
el hombre con su papel activo, participativo, transformador es capaz de
revertir la situación actual. En la Conferencia de Naciones Unidas sobre
Medio Ambiente y Desarrollo, Castro (1992) plantea:

Si se quiere salvar a la humanidad de esa autodestrucción, hay que


distribuir mejor las riquezas y tecnologías disponibles en el plane-
ta. Menos lujo y menos despilfarro en unos pocos países para que
haya menos pobreza y menos hambre en gran parte de la Tierra.
No más transferencias al Tercer Mundo de estilos de vida y hábitos
de consumo que arruinan el medio ambiente. Hágase más racional
la vida humana. Aplíquese un orden económico internacional jus-
to..... Páguese la deuda ecológica y no la deuda externa. Desaparez-
ca el hambre y no el hombre. (p. 1)

Es así que la necesidad de lograr cambios de conducta, creando posicio-


nes éticas de cuidado, protección y equilibrio con el medio ambiente natural
y sociocultural necesita del nacimiento de la Educación Ambiental, para
así obtener la armonía entre los factores hombre, ambiente y desarrollo. La
participación se ha reconocido a través del principio 10 en la Declaración
de Río de 1992 durante la Conferencia Mundial sobre Medio Ambiente
y Desarrollo organizada por la ONU (1992), donde se plantea: “El mejor

248
Participación y Protagonismos para un desarrollo sostenible en Cuba: Apuntes..

modo de tratar las cuestiones ambientales es con la participación de todos


los ciudadanos interesados en el nivel que corresponda…” (p. 1).
La participación ha sido vista como principio del desarrollo local, a
través de la gestión democrática de la información y comunicación educativa
de manera que sea posible una participación informada y educada (Araujo,
2018). También en la Asamblea Nacional del Poder Popular (ANPP) se
reconoce en la Constitución cubana como “el derecho de la población
del municipio a proponerle a la Asamblea Municipal el análisis de temas
de su competencia” (Ministerio de Justicia, 2019, p. 14). De ahí que el
objetivo de este trabajo sea demostrar las formas que han tomado y
pueden tomar la participación y el protagonismo en Cuba.

Avatares de la participación y el protagonismo en Cuba

El triunfo de la Revolución fue el resultado de la participación de un


grupo de jóvenes revolucionarios cubanos de todas las provincias del país
a los que se sumaron otros de todos los sectores (campesinos, obreros,
estudiantes, mujeres y de la clase media). Ellos, con su protagonismo,
derrocaron el régimen de opresión que existía en el país.
En el proceso de institucionalización de 1976, en la ANPP (1976) se
declara que “Cuba es un Estado socialista de trabajadores, independiente y
soberano” (p. 6). Fueron muchas las tareas que el pueblo cubano acometió
en respuesta al llamado del nuevo Gobierno Revolucionario. Por mencionar
algunas de esas tareas tenemos la Campaña de Alfabetización en 1961, las
movilizaciones para recoger café en las montañas orientales y otras entre
los años 1962-65, las diferentes Zafras del Pueblo, que, hasta el año 1970,
se realizaban con el apoyo popular, campesino, obrero y estudiantil, el
movimiento de las micro brigadas de construcción de viviendas, el Cordón
de la Habana (la siembra de posturas de café al Oeste de la Habana), etc.
En nuestro país, las comunidades han desempeñado un importante
rol en la realización de diversos programas, campañas, movilizaciones y
tareas sociales que, con la participación de grupos sociales (organizaciones
de masas creadas al inicio de la Revolución), se formó una infraestructura

249
Relações pessoa-ambiente na América Latina

con un mínimo de recursos financieros para fines propios, que empren-


dieron tareas de importancia económica y social.
Organizaciones de masas como los Comités de Defensa de la Revolu-
ción (CDR) en 1961 y la Federación de Mujeres Cubanas (FMC) en 1960,
fueron ejemplos de participación masiva del pueblo en la construcción de la
nueva sociedad que empoderaron a los ciudadanos del país, con particular
importancia a la mujer como verdaderos protagonistas de transformación
social. Sin embargo, una complejidad de circunstancias externas e internas
golpeó duramente el desarrollo económico del país en los años 80, que
trajo consecuencias importantes en la satisfacción de las necesidades más
apremiantes de la población y su entusiasmo popular.
Este golpe que incidió en el proceso participativo, comenzó por los
efectos del bloqueo económico de los Estados Unidos de Norteamérica
que reforzó el aislamiento de Cuba de muchos países latinoamericanos,
continuó con la inesperada desaparición del campo socialista que termi-
nó con la ayuda económica de los países del Consejo de Ayuda Mutua
Económica (CAME).
Todo ello trajo consigo un desbalance de importaciones en relación
con las exportaciones, poco desarrollo de la industria y la esfera de la agri-
cultura, con pérdidas significativas de esta última, la cual ocupaba, junto
a la zafra azucarera, una línea importante de la economía agrícola cubana
imperante antes y en los primeros años de la Revolución.
Otro hecho importante es la centralización administrativa, que im-
pidió visualizar más claramente los procesos y problemas más locales,
lo cual favoreció la ruptura de la continuidad del proceso participativo
iniciado con el triunfo de la Revolución ya que se vieron disminuidos los
recursos económicos disponibles, dirigidos a fortalecer acciones colectivas.
En compensación a esta situación se toman acciones en el sentido de la
colaboración, la ayuda externa y la solidaridad.
Han sido numerosas las iniciativas de trabajo comunitario para la
atención integral a sectores de la población con condiciones socioeco-
nómicas desfavorables, las que han tenido en su base las ventajas de la
infraestructura social y, más que participación, han tenido el apoyo de los

250
Participación y Protagonismos para un desarrollo sostenible en Cuba: Apuntes..

órganos e instituciones locales. O sea, siguen resultando insuficientes los


logros alcanzados en la dirección de participación.
En este contexto, Cuba lucha por ser un referente de construcción y
permanente búsqueda de la justicia social, de participación y de bienestar
humano afectado por la situación económica, por lo que, en este sentido, se
vive permanentemente en la búsqueda de la eficiencia y eficacia de sus insti-
tuciones y organización socio-económica, de revalorización del trabajo como
alternativa legítima para el desarrollo económico, social, cultural y personal.
Esto conlleva cambios constantes y urgentes que demandan nuevos estilos
de dirección y de participación. Véase que en los últimos meses, a partir de
la actual pandemia, los sacrificios y esfuerzos desplegados para enfrentar el
desastre que ha ocasionado y que ha dado lugar a asombrosas experiencias
de participación nacional e internacional que constatan que para participar
es necesario: conseguir que los ciudadanos actúen positivamente sobre su
entorno; lograr un compromiso individual y social; ser parte de un proceso
real y honesto que se experimenta como un derecho de las personas a decidir;
acompañar un saber, una ética y capacidades (Cultura de participación).
En todas las localidades de Cuba no se ha mantenido por igual el
proceso participativo. Existen comunidades, sobre todo rurales, en las
que se ha creado una cultura de participación. Pensamos que, a pesar de
las afectaciones, la existencia de organizaciones de masas y los esfuerzos
de líderes locales, no permitieron que la actividad de acercamiento a la
población se perdiera, manteniendo su propósito.
En las zonas agrícolas, pobladas fundamentalmente por campesinos, se
mantiene en lo esencial la continuidad participativa de los acontecimientos
de los primeros años de la Revolución. Nuevamente vuelve a ser la partici-
pación y el protagonismo del pueblo y sus organizaciones imprescindibles
para mantener ya no solo los logros de la Revolución sino también para
las investigaciones sociales y para impulsar tareas sociales como las que ha
implicado el enfrentamiento a la COVID-19.
Consideramos que donde ha habido un debilitamiento de la partici-
pación se han puesto de manifiesto aspectos como: déficit de información
relevante, clara y transparente de los órganos de gobierno locales, pues la

251
Relações pessoa-ambiente na América Latina

comunicación ha sido deficiente y no clara; incumplimiento de las expec-


tativas de la población que en relación con el poder popular se tuvieron al
no tener este suficientes recursos materiales ni económicos; poco vínculo
entre profesionales y población; crisis económica permanente creada por
el bloqueo que lleva al conformismo y apatía. Pese a la voluntad política
que existe en el país y la integración de esfuerzos de todos los actores in-
volucrados se hace necesario un protagonismo mayor de la comunidad.
Así, por ejemplo, ha habido poca iniciativa en otras tareas comunitarias
en las que lo económico no fuese determinante, como las de carácter
artístico cultural o deportivo; ausencia de órganos de gestión que junto
al delegado de circunscripción abogaran por la solución de los problemas
de la comunidad; existencia de centralización administrativa y burocracia
que aleja la legitimad de la gestión local y obstaculiza el desarrollo de la
iniciativa y la innovación (Iglesias, 2018).
Es importante decir que con los cambios que se gestan a partir de la
aprobación de los documentos programáticos: los Lineamientos de la Polí-
tica Económica y Social del Partido y la Revolución, la Conceptualización
del Modelo de Desarrollo Económico y Social del país, las Bases del Plan
Nacional de Desarrollo Económico y Social para el 2030 y la reciente Cons-
titución de la República del 2019, se emprende y se permite vislumbrar el
fortalecimiento de la participación real, para lo que pensamos sea necesario:

• Trabajar en la descentralización administrativa que potencie el


desarrollo local;
• Adoptar nuevas formas de trabajo de sensibilización y
responsabilidad de la población, de manera que se contribuya con
la recuperación de la memoria histórica de las primeras décadas del
triunfo de la Revolución;
• Acceder a la información relevante, clara y transparente del
problema a resolver, su gestión y ángulo económico. Conocer las
vías y dificultades que confronta;
• Lograr que la participación de los individuos y grupos tenga un
sentido para ellos;

252
Participación y Protagonismos para un desarrollo sostenible en Cuba: Apuntes..

• Confiar en que los órganos de gobierno local y las instituciones


que participan, apoyen el proyecto o gestión;
• Existencia de una corresponsabilidad de los órganos de gestión
que garantice retroalimentación, apoyo y comunicación con los
individuos y profesionales de la población;
• Continuar con el desarrollo de una cultura de participación.

En lo que sigue, la educación de las masas en conciencia ambiental,


valores y actitudes, ubicará a la población en un lugar diferente en relación
con su entorno. Se deberá responsabilizar y sensibilizar a aquellos que con
su comportamiento inadecuado no hayan alcanzado suficiente conciencia
ambiental, pero siempre teniendo en cuenta, no solo los criterios, intereses
y saberes de todos los involucrados, sino además las pautas que aparecen
en la nueva Constitución.

La participación y protagonismo del pueblo en la nueva


Constitución cubana y la organización territorial del Estado

El 10 de abril del 2019, en la Gaceta Oficial de la República de Cuba Nº5


Extraordinaria, fue proclamada la “Constitución de la República de Cuba”,
adoptada por voto libre y secreto, mediante referendo popular, a 150 años de
la primera Constitución mambisa, aprobada en Guáimaro el 10 de abril de
1869. En su artículo 3 se plantea que “En la República de Cuba la soberanía
reside intransferiblemente en el pueblo, del cual dimana todo el poder del
Estado”. El pueblo la ejerce directamente o por medio de las asambleas del
Poder Popular y demás órganos del Estado que de ellas se derivan, en la forma
y según las normas fijadas por la Constitución y las leyes. Este documento “Ley
de leyes” destaca la participación como un derecho en diferentes momentos.
En la ANPP (2019), en el Artículo 4, se plantea “Los ciudadanos tienen
el derecho de combatir por todos los medios, incluyendo la lucha armada,
cuando no fuera posible otro recurso, contra cualquiera que intente derribar
el orden político, social y económico establecido por esta Constitución” (p.
70), en el Artículo 6, la participación de los jóvenes, en el inciso d, artículo

253
Relações pessoa-ambiente na América Latina

32 la participación ciudadana en la realización de su política educacional,


científica y cultural, en el Artículo 71, la participación de las entidades y
de la población en políticas públicas, normas de ordenamiento territorial
y urbano y las leyes, en el Artículo 75, el derecho a disfrutar de un medio
ambiente sano y equilibrado y, en el Artículo 80, el derecho a participar
en la conformación, ejercicio y control del Poder del Estado.
La Organización territorial del estado aparece en el Título VII de la
Constitución. El Artículo 166 decreta que el territorio nacional se divide
en provincias y municipios para fines políticos administrativos, pudiendo
establecerse otras subdivisiones atendiendo a su ubicación geográfica o im-
portancia económica social. En todos los casos se garantiza la representación
del pueblo por medio de los órganos del Poder Popular. El municipio es
la sociedad local, unidad político-administrativa primaria y fundamental,
con autonomía y personalidad jurídica propia a efectos legales y tiene el
propósito de satisfacer las necesidades locales y el desarrollo económico
y social de su territorio. Cuenta con ingresos propios y asignaciones que
recibe del Gobierno de la República y funciona bajo la dirección de la
Asamblea Municipal del Poder Popular (Artículo 168) (ANPP, 2019).
La Asamblea Municipal del Poder Popular, para el ejercicio de sus fun-
ciones, se apoya en sus comisiones de trabajo, en los Consejos Populares, en la
iniciativa y amplia participación de la población y actúa en estrecha coordinación
con las organizaciones de masas y sociales (Artículo 192). En el Artículo 193
se habla de la figura del delegado, quien es elegido en la comunidad, cumple
el mandato que le han conferido sus electores y en su vínculo directo con las
masas, gestiona y eleva las demandas de la población (ANPP, 2019).
El delegado en el deber ser, es el dirigente principal de la base de
todos los procesos políticos que involucran a la comunidad, cuya activi-
dad política prevé resolver los problemas del barrio y de los ciudadanos,
hacer cumplir las leyes y ayudar al perfeccionamiento de la democracia
participativa socialista. Es un gestor de la política ambiental. Entre sus
funciones está informar, rendir cuenta a sus electores de su gestión, dar
a conocer a la instancia superior las opiniones, necesidades y dificultades
que le transmiten sus electores. También debe comunicar a sus electores

254
Participación y Protagonismos para un desarrollo sostenible en Cuba: Apuntes..

sobre la política que sigue la Asamblea Municipal y el Consejo Popular


y las medidas adoptadas en atención a las opiniones planteadas por la
población y las dificultades para resolverlas.
Todo se realiza sistemáticamente en asambleas de rendición de cuentas
donde los ciudadanos se convierten en verdaderos protagonistas de este
espacio, pues tienen en este, además de otros espacios, la oportunidad
de opinar, demandar y exigir sus intereses y necesidades. En el Artículo
199 se estipula el Consejo Popular como órgano local del Poder Popular
representativo del pueblo de la demarcación donde actúa y de la Asamblea
Municipal del Poder Popular. Esta asamblea debe garantizar los derechos
de petición y de participación ciudadana, para ello en su Artículo 200
convoca a consulta popular asuntos de interés local, garantiza la correcta
atención a los planteamientos, quejas y peticiones de la población, el
derecho a proponer análisis de temas de su competencia, mantiene un
adecuado nivel de información a la población, analiza a petición de los
ciudadanos, acuerdos y disposiciones propias o de autoridades municipales
que competen a la población (ANPP, 2019).
El Poder Popular se organiza en los Consejos Populares, Asambleas
municipales, provinciales y la Asamblea Nacional o Parlamento. Cada nivel
tiene una estructura participativa bidireccional concebida para la acción
y el protagonismo del pueblo, que se sostiene a partir de los derechos de
la población, de petición y participación ciudadanas. Instancias como la
consulta popular y el despacho con los delegados, son espacios donde la
población individual y colectivamente puede hacer uso de su derecho de
participación para canalizar sus inquietudes, necesidades, deseos e intereses;
expresados desde la base hacia la dirección municipal, provincial y nacional
y viceversa; con un acentuado énfasis en el desarrollo local.

La participación y protagonismo individual y colectivo


en las investigaciones comunitarias.

El ser humano como sujeto educable de la sociedad, mediante su


actividad es capaz no solo de construir y producir conocimientos, sino

255
Relações pessoa-ambiente na América Latina

además de desarrollar, formar y reorientar valores; de manera que pueda


contribuir como sujeto individual para la transformación de la realidad
en que vive, dada su condición de sujeto social. Este proceso empieza y
transcurre desde las más tempranas edades, bajo la influencia de la familia,
la escuela y llegado el momento es capaz de solucionar las fundamentales
contradicciones antagónicas que caracterizan las relaciones individuo-so-
ciedad-naturaleza, por medio de una participación social activa. Esto se
explica porque en los procesos de crecimiento se adquieren recursos psi-
cológicos necesarios para el dominio y control de los actos por el propio
individuo, apropiación que se alcanza en la madurez como etapa vital de
su desarrollo personal y social.
Lo ético y sociocultural de la crisis actual evidencia los enormes
esfuerzos que en materia de cambios subjetivos deben ocurrir en la huma-
nidad. Crisis que solo se rebasa con procesos que transformen el modo de
producción y permitan la permanente y continúa apertura de la conciencia
humana a la sensibilización ambiental, con el cultivo de una mentalidad
previsora y acorde al gran desarrollo humano alcanzado en otros órdenes.
Todo esto responsabiliza al hombre moderno con la salida de la crisis
y para ello la acción y esfuerzos nacionales e internacionales deben ser
coordinados. La meta: la transformación de un pensamiento y quehacer
culturales que han sido engendrados y estimulados por siglos de prácticas
antropocentristas y que han llevado al pensamiento capitalista más recalci-
trante, retrógrado y destructor que ha conocido la historia de la humanidad
hasta llegar a la situación actual.
La humanidad debe recuperar su esencia y esto solo se logra a través de
aquellos procesos revolucionarios locales, regionales y mundiales que deben
ir junto a la información, la divulgación y la educación ambiental de las
masas. La ciencia psicológica ambiental puede contribuir al desarrollo de
la participación de grupos y comunidades potenciando su protagonismo
en proyectos y programas emanados de sus necesidades. La educación
ambiental puede enfocarse desde la creación y conformación de estrategias
o metodologías de intervención (grupal e individual) en consonancia con
sus intereses.

256
Participación y Protagonismos para un desarrollo sostenible en Cuba: Apuntes..

Por lo general, la potenciación la necesitan las personas, grupos y co-


munidades más vulnerables, más amenazadas por la pobreza para las cuales
habría que adecuar metodologías de intervención por medio de talleres y
otras formas, que propicien, mediante la información, la sensibilización
y educación sobre la importancia de su quehacer, despertando la iniciativa
local para elevar la calidad de vida de las personas de esas comunidades ante
las contingencias y en concordancia con el principio de la sustentabilidad.
La comunidad constituye un grupo social clave en la contribución
a las soluciones que demanda la problemática ambiental, en particular.
El ser humano como parte de ese medio ambiente requiere tener sus
necesidades básicas satisfechas para poder seguir trabajando por la satis-
facción del resto, entre las que están las necesidades espirituales como las
culturales, artísticas, deportivas, recreativas etc. Necesidades que con su
satisfacción enriquecen a su vez el patrimonio histórico cultural propio y
de su contexto comunitario.
Se ha expresado que el éxito del trabajo comunitario radica en la
participación, en su más amplia y cabal acepción. ¿Pero, a qué llamamos
participación?
En el Diccionario Básico se señala que “del latín participatĭo, participa-
ción es la acción y efecto de participar, o recibir parte de algo, compartir”
(Miyares 2016, p. 882).
El término puede utilizarse para nombrar a la capacidad de la ciu-
dadanía de involucrarse en las decisiones políticas de un país o región.
Participación es toda acción colectiva de individuos orientada a la satis-
facción de necesidades, que se cimienta en la existencia de una identidad
colectiva, enmarcada en valores, intereses y motivaciones compartidas
que dan sustento a la existencia del grupo. Este concepto lleva implícito
la acción de ser parte de algo, de intervenir o compartir en un proceso.
Por su parte, Miyares (2016) señala que protagonismo “es un vocablo
que remite en su etimología al griego. Proviene de protos que significa pri-
mero y agonistis que quiere decir combatientes. Haciendo referencia a aquel
que actúa la primera parte o que es actor jefe” (p. 977). El protagonista
por lo tanto lleva a cabo las acciones más importantes de la historia, sin

257
Relações pessoa-ambiente na América Latina

su participación la obra no tiene sentido, es la persona que tiene la parte


principal en un o un hecho o un acontecimiento.
El protagonismo es la condición o cualidad de protagonista. No
necesariamente implica conducirse de forma involuntaria y no delibe-
rada, sin importar el ámbito de desenvolvimiento. Muy al contrario, el
protagonismo necesita impulso, pero consciente y dirigido a una meta
a alcanzar. Son necesarias habilidades sociales, intelectuales, artísticas o
deportivas de los individuos. Quienes lo manifiestan se convierten en cen-
tro de interés o referencia con connotación positiva o negativa en el seno
familiar, educativo, laboral y social. El protagonismo ha sido visto como
una participación destacada que involucra la subjetividad del individuo o
del grupo y propicia la transformación, alcanzándose niveles de expresión
no manifestados con anterioridad.
Los conceptos de participación y protagonismo se han visto en dimensiones
muy amplias, con connotaciones populistas y masivas o conservando en su
significado el carácter histórico, procesal y dinámico de ambos. Estos concep-
tos han evolucionado y responden a contextos sociohistóricos determinados.
Según Pretty y Guijt (1995), estos tipos y variantes se relacionan di-
rectamente con los fines del proceso participativo y, además, Díaz plantea
que “en general, puede considerarse la existencia de un gradiente que va de
la manipulación a una facilitación no comprometida, hasta la participación
en la perspectiva de concientizar y aumentar el poder que las personas tie-
nen sobre sus vidas y sus recursos” (Díaz, 1998, p. 63). La autora coincide
con Selener (1997), quien propone una clasificación de la participación
basada en: “masificación, asistencialismo o paternalismo, cooperación y
‘empoderamiento”, siendo esta última la que alcanza “cambios estructurales
políticos y sociales” (Díaz, 1998, p. 64).
Participar es formar parte, tener parte y ser parte con la finalidad
de mejorar la calidad de las decisiones y formalizarlas, a través de tres
etapas: información, comunicación y decisión. La información es uno
de los flujos que requiere confiabilidad, sistematización y accesibilidad
para que genere cambios en la conciencia individual y social. La partici-
pación requiere de la comunicación, la cual posibilita el intercambio de

258
Participación y Protagonismos para un desarrollo sostenible en Cuba: Apuntes..

información y la interacción e influencia mutua en el comportamiento


de los actores y contribuye además a su capacitación y a su educación
(Bernazza, 2009).
En el trabajo comunitario son importantes los elementos más subje-
tivos de la vida cotidiana, entendidos a partir del sentido que le otorgan
las personas. La psicóloga social Tovar (2001) ha alertado sobre algunas
estrategias de concientización de las comunidades latinoamericanas en las
que se estandarizan códigos culturales en los grupos sociales más débiles,
siendo amenazadas sus identidades (Tovar, 2001).
Se coincide con esta autora en que la comunidad es un grupo social
con una historia y un desarrollo atravesado por las determinaciones de una
formación histórica y social dentro de la cual existe. Este grupo es portador
de una subjetividad específica, la que contiene una diversidad de formas
y niveles de expresión, es emergente de esta interacción y se configura en
torno al sentido que la misma reviste para sus miembros (Tovar, 2001).
Para la transformación y desarrollo es necesario aproximarse a la
comunidad desde sus características históricas y culturales. Se hace im-
prescindible el conocimiento, aceptación y aprendizaje de la historia e
identidad de las comunidades. Es necesario construir nuevos caminos
alternativos y propios de desarrollo; caminos basados en el conocimiento,
la cooperación y el respeto a las diferencias, unidos por el amor a la vida,
a la naturaleza, a la paz y al orgullo de las singularidades, en el encuentro
y diálogo con culturas diversas. (Tovar, 2001).
La subjetividad grupal se conforma como protagonista y forma sentidos
y nuevas necesidades de los individuos que la componen. La comunidad
debe tener acceso a la información pertinente, profesional y transparente
de la solución a los problemas provenientes de todos los ámbitos, guber-
namentales y sectoriales. Entre los que se encuentran las universidades,
los cuentapropistas, las cooperativas, entre otras, quienes, articulados con
el gobierno local, gestionan la solución de los problemas.
Una manera viable para compulsar la participación popular es mediante
el apoyo de los órganos de gobierno a proyectos de diversas génesis, in-
cluyendo el económico, de manera que se rompa la inercia de conformismo

259
Relações pessoa-ambiente na América Latina

y apatía que predomina en la población por la crisis económica, activando


las potencialidades de las grandes masas.
El intercambio de opiniones y experiencias entre los actores (institu-
ciones, organizaciones de masas y población en general) es la dimensión
fundamental de la participación como enfoque de la gestión de los pro-
blemas en las diversas esferas de actuación. La temprana acción sobre la
identificación de las diferentes problemáticas y la búsqueda de soluciones
a nivel local, donde se involucren la comunidad y otros sectores, hará
posible que los problemas sean tratados y resueltos con la participación
de todos. En la actualidad la participación de los actores se reconoce por
muchos autores como una herramienta para generar ideas, mejorar el
clima motivacional, atenuar la resistencia al cambio, fomentar el control
colectivo, potenciar el liderazgo, facilitar la mediación en la solución de
conflictos y proporcionar las acciones formativas.
Tanto la metodología de participación como la intervención social son
procesos de cambio social comunitario que se realizan en escenarios específicos,
dirigidos fundamentalmente a la transformación de la vida de sus pobladores
(Zabala, 2001). La participación deberá ser concebida como el paso de las
personas a un rol de sujetos y no simples objetos de prácticas externas, lo
que determina su participación activa en la concepción y conducción de
procesos, a partir de experiencias colectivas y solidarias que alimenten estas
prácticas e influyan directamente en la toma de decisiones (CITMA, 2016).
El continente latinoamericano ha sido campo de múltiples intervencio-
nes: desde aquellas versiones generadoras de tecnología y formas de control
social, hasta aquellas acciones que sostienen un compromiso explícito con
estrategias de concientización de los grupos sociales más débiles. En eso las
comunidades han demostrado ser el escenario idóneo para la participación,
transformación y preparación de las grandes masas (Tovar, 2001).
La participación constituirá un fin en sí misma en tanto fortalezca la
democracia, profundice la convivencia ciudadana, ayude al tránsito de sujeto
a actor y, en ese sentido, se convierte en herramienta necesaria en cualquier
proceso de intervención social, cuestiones intangibles incluidas como por
ejemplo el sentimiento de pertenencia, que contiene el germen del compro-

260
Participación y Protagonismos para un desarrollo sostenible en Cuba: Apuntes..

miso político. Para algunos investigadores la participación es una vía para


salir de la exclusión, opresión, pobreza y discriminación de los sujetos de esa
condición histórico-social. También ha sido vista como estrategia, principio
para alcanzar escenarios de aprendizaje para la creación de nuevos niveles de
vida, de desarrollo un camino para que los niños y jóvenes se posicionen en
situaciones futuras, lo cual es armónico entre los hombres, de solidaridad y
respeto al medio ambiente a nivel local (Araujo, 2018).
La cultura de la participación se desarrolla actuando en proyectos
donde se masifiquen mecanismos de los órganos de gobierno, donde se
retroalimente, apoye y se comunique con las masas y sus profesionales, de
manera que estén al alcance de todos. La cultura no acaba, se construye
cada día y la participación se desarrolla con ella, si se superan las distancias
que la recuperación económica ha alejado. De la Torre (2001) plantea que

desde las primeras edades las personas se apropian de la cultura


de la sociedad en la que nace, crece, se desarrolla y participa, en la
medida en que se forma la conciencia de ser una persona única e
independiente y los sentimientos de pertenencia a determinados
grupos, así como de identificación con los valores y patrones cul-
turales. (p. 111)

Es decir, los valores ambientales se forman desde las más tempranas


edades y deben influir en la identidad barrial como un proceso social
que se va forjando progresivamente en las personas. Esto significa que los
niveles de razonamiento moral se construyen y pasan por etapas.
Para algunos investigadores la participación es una vía para salir de la
exclusión, opresión, pobreza y discriminación de los sujetos de esa condi-
ción histórico-social. También ha sido vista como un camino para que los
niños y jóvenes se posicionen en situaciones futuras, lo cual es estrategia,
principio para alcanzar escenarios de aprendizaje para la creación de nuevos
niveles de vida, de desarrollo armónico entre los hombres, de solidaridad
y respeto al medio ambiente a nivel local (Araujo, 2018).
Para crear una cultura de participación es necesario que haya posi-
bilidad real de participación, debe haber iniciativa de la población. En

261
Relações pessoa-ambiente na América Latina

lo cultural hemos sido víctimas de la tendencia homogeneizadora de la


cultura occidental y de la política neoliberal que amenaza con debilitar
nuestras ricas culturas (Roque, 2007). La autora alerta sobre el peligro
que amenaza con estilos de vida y patrones de producción, distribución y
consumo insostenibles, característicos de las sociedades económicamente
desarrolladas, que, si la cultura local o nacional no desarrolla, no llegará
a nuestros niños y seguiremos siendo víctimas de otras culturas o de la
beligerancia de los medios de difusión masiva.
Alcanzar el necesario desarrollo sostenible puede implicar inexorable-
mente, como expresa esta autora, cambios en el modelo económico que
implican profundas transformaciones estructurales y socioeconómicas y
nuevos paradigmas en la explotación de los recursos, la dirección de las
inversiones, la orientación del cambio tecnológico y en las transformaciones
institucionales, así como cambios en los principios éticos que sustentan
las relaciones individuo-sociedad-naturaleza, expresados en los estilos de
vida y los patrones de producción, distribución y consumo.
Entre los principios éticos que sustentan la relación hombre-sociedad,
hombre-medio ambiente, si se hablara de desarrollo local, se ubicaría la
participación ciudadana, pero también la descentralización, la financiación
y objetividad, que devienen de la caracterización de la población (Araujo,
2018) no solo demográfica, sino también histórico y cultural. La parti-
cipación junto al protagonismo de los diferentes actores es condición de
éxito en la transformación de las comunidades cubanas.

Ejemplos de prácticas de participación ciudadana en los


espacios comunitarios, proyectos y programas

En el marco de la actualización del modelo económico de nuestro


país se ha comenzado a trabajar en la elaboración e implementación de
estrategias de desarrollo local a escala municipal (Iglesias, 2018). Son
diferentes las instituciones y organismos del país que en su accionar
transversalizan la participación como una estrategia para este desar-
rollo: “Los programas de desarrollo local necesitan dirección colegiada,

262
Participación y Protagonismos para un desarrollo sostenible en Cuba: Apuntes..

participación de la población, cuadros con conocimientos necesarios, la


comunicación social, la informatización y la innovación” (Díaz-Canel,
2019, p. 4). Estas palabras del actual presidente de la República de Cuba
legitiman la importancia que se le debe seguir brindando al trabajo de
desarrollo local en nuestro país.
En Cuba se han gestado experiencias desde la gestión universitaria del
conocimiento y la innovación para el desarrollo. Estas se realizan a partir
de los Centros Universitarios Municipales (CUM), en articulación con
otros centros de investigación y producción. La existencia de los CUM, en
la mayoría de los municipios del país, constituye una fortaleza y puede ser
decisiva en la capacitación, formación y asistencia técnica de las localidades
e instituciones. Estos centros podrían contribuir con el fortalecimiento
de la identidad y sentido de pertenencia de las comunidades, a partir de
relaciones horizontales.
A continuación esbozaremos algunas experiencias desarrolladas que
demuestran la gestión universitaria del conocimiento en varias comunidades
donde se incentiva el desarrollo local desde la universidad.

1. El Centro de Investigaciones Marinas (CIM-UH) de la Universidad


de La Habana contribuye a la conservación del ambiente y al
desarrollo sostenible a través de la integración de la investigación
científica y la formación continua de los profesionales en
Biología Marina, Acuicultura y Manejo Costero, con enfoque
multidisciplinario y de excelencia. Para ello, la formación de
capacidades en temáticas marinas, ha sido una constante en la labor
docente del centro, más allá de las aulas universitarias desde hace más
de 10 años. Se ha promovido la participación de las comunidades
en la toma de datos ecológicos, en la identificación de los bienes y
servicios que les aportan los ecosistemas con los que conviven, así
es el estudio y conservación de las tortugas marinas que anidan en
la reserva de la biosfera de la Península de Guanahacabibes en la
provincia de Pinar del Río. Allí, desde 1998 se contribuye con la
conservación de las tortugas marinas en Cuba ya que como especie

263
Relações pessoa-ambiente na América Latina

en peligro, se encontraban expuestas a un fuerte impacto humano,


fundamentalmente por la pesca ilegal e ilícita. Se desarrolló un
trabajo educativo y de comunicación en la comunidad del área
de anidación de tortugas marinas y su hábitat crítico, así como
en las escuelas de las áreas de estudio, para incentivar en todos los
habitantes del área el interés por la protección de las especies con las
que conviven y su uso racional (González, 2012).

2. En las comunidades de los municipios de Aguada, Florencia


y Palma Soriano, la gestión universitaria del conocimiento
direccionada al desarrollo local, desde el extensionismo, está
concebida para la producción local de alimentos, biofertilizantes,
frutales y leche, caracterizada por la entrega de tierras, compost,
arroz popular, en la que la capacitación a productores, dirigentes
y cuadros, además de acciones con intervenciones psicológicas y
culturales, permiten mostrar estos resultados con la participación
de sus pobladores en cada una de estas actividades.

Lo mismo se ha desarrollado en los municipios Calixto García y


Placetas, donde a partir de la situación inicial diagnosticada en ellos, la
aplicación de un modelo sistémico participativo fue factible. En las cir-
cunscripciones de Jiguaní, Florencia y Florida se han realizado proyectos de
transformación social que han incidido en la disminución del alcoholismo
e incorporación de jóvenes al estudio. Un mayor acceso de la población a
los procesos productivos ha propiciado el incremento de la producción de
alimentos, el mejoramiento de la masa ganadera, el ahorro de energía y la
disminución de la carga contaminante, proveniente de la crianza porcina
en el sector residencial. Para ello se han construido biodigestores, que
funcionan eficientemente.
Por otra parte, en el municipio Palma Soriano se ha aplicado el
electromagnetismo a las áreas de salud y la industria de lácteos y se
potencian tecnologías participativas en la construcción de viviendas,

264
Participación y Protagonismos para un desarrollo sostenible en Cuba: Apuntes..

con énfasis en la construcción y producción de bloques. Ello hace sig-


nificativo un mayor acceso de la población a los beneficios devenidos de
la gestión del conocimiento y a su vez se ha impulsado su participación
en la incorporación en nuevas fuentes de empleo (Orrantía, Batista,
Castillo, & Ibañez, 2011).

1. En el municipio Camajuaní la incorporación de la mujer a las


labores agrícolas ha producido un incremento de la repoblación
forestal, incorporando nuevas especies de diversas variedades de
bambú, las cuales pueden ser utilizadas en obras constructivas y en
la fabricación de muebles y útiles para el hogar, la ampliación de
infraestructuras y el mejoramiento de las existentes, su diversificación
y producción, así como la producción de insumos como abonos
naturales y materia orgánica para lograr mayor fertilidad de los
suelos y productos más saludables (Hernández, 2011).

3. En el territorio avileño, desde la Sede Universitaria Municipal de Ciro


Redondo, se realizaron sistemas tecnológicos para la ceba ovina con
la participación de un grupo importante de pobladores. El desarrollo
de la Energía Renovable desde el Proyecto de CUBASOLAR en la
Comunidad “Las Pozas”, Ciro Redondo propició la electrificación
(Paneles Solares) de 30 viviendas de la comunidad, la construcción
de un acueducto solar y tres centros (escuela, sala de video y
bodega) y un área de organológico. Además la existencia de la Red
de información y conocimientos territorial de agricultura sostenible
para pequeños productores, permitió una organización y acceso de
sus productores para socializar la información convirtiéndose en
protagonistas de su propio proceso, como expresión genuina de
participación. También, en el Consejo Popular Cacahual mediante
una Estrategia de Educación Ambiental, se aglutinaron esfuerzos de
los gestores, educadores, políticos, ciudadanos y asociaciones para
mejorar la realidad socioambiental a mediano plazo (Delgado, de la
Paz, Carballo, & Broche, 2011).

265
Relações pessoa-ambiente na América Latina

Nuevos tiempos, nuevas expresiones de participación

En el año 2020 se ha demostrado la cultura participativa alcanzada por la


ciudadanía en Cuba. Abundantes son las muestras de participación de mujeres,
hombres y jóvenes durante la epidemia de la Covid-19, que han puesto muy en
alto el principio de solidaridad, participación activa y voluntaria de la población.
Las mujeres en diversos lugares del país se organizaron a través de la
Federación de Mujeres Cubanas para la confección de nasobucos, así como
su distribución en centros de trabajo, personas vulnerables, hospitales y en
sus propias comunidades. Se ofrecieron como mensajeras de los alimentos
y medicinas de personas vulnerables. Por su parte, los jóvenes convoca-
dos por la Unión de Jóvenes Comunistas y la Federación de Estudiantes
Universitarios se incorporaron de forma masiva y voluntaria a las labores
de pesquisaje, trabajo en los centros de aislamiento, mensajería, apoyo al
transporte, envase de hipoclorito de sodio, entre otros.
Otra muestra son las artísticas-culturales convocadas por la Asociación
de jóvenes creadores “Hermanos Sainz” y la Casa Productora de la Música
EGREM con incontables muestras de artes plásticas, audiovisules, concier-
tos on line, musicales, escenificaciones, poemas, minicuentos, historietas,
entre otras. Los artistas pertenecientes a la Asociación Cubana de Artesanos
y Artistas de Cuba (ACAA), confeccionaron y distribuyeron nasobucos,
camas y mobiliario para el descanso de los médicos y personal de salud.
Trabajadores por cuenta propia y cooperativas de diseño confecciona-
ron y distribuyeron pantallas para el personal de salud, además de poner a la
disposición del país equipos de baño podálico para la desinfección. Todas las
personas han encontrado en los diferentes medios de comunicación, diversas
formas de expresar sus criterios, como lo son los médicos, artistas, deportistas,
personal activo en la televisión, voceros, chefs de cocina, quienes, de una forma
u otra, han expresado su aporte para lidiar con la situación de la pandemia.
Los Comités de Defensa de la Revolución, organización de masas más
grande del país, convocó a sus miembros al combate de las personas que
dominaban el control de la distribución de los productos en los comercios,
dando en muy poco tiempo una respuesta contundente a la situación. Es-

266
Participación y Protagonismos para un desarrollo sostenible en Cuba: Apuntes..

pecial connotación se le atribuye a la participación masiva de la población


en los espacios oficiales de información donde preguntan dudas y expresan
sus criterios y propuestas acerca de la situación actual en el país.
No obstante, ante los nuevos tiempos y las nuevas formas de expresar
la participación cabe cuestionarse ¿Cuáles son los retos del ejercicio de la
participación en Cuba?

Consideraciones finales

La Revolución cubana, desde sus inicios, se caracterizó por conferirle


al pueblo una amplia participación, la cual se expresó en campañas, movi-
lizaciones, trabajos voluntarios, incorporación a la producción y la defensa,
de hombres, mujeres y jóvenes con entusiasmo y espíritu revolucionario.
Aunque la dirección histórica de la Revolución reconoció los errores co-
metidos respecto a la centralización de la economía, se cumplieron planes
muy ambiciosos que proporcionaron avances como país subdesarrollado.
La limitada conciencia económica de los cuadros ocasionó despreocupación
respecto a los costos y a la eficiencia productiva.
El papel de las organizaciones de masas que encarnaron la entusiasta
participación del pueblo se debilitó, pese a la voluntad política, entre otros
aspectos por la ausencia de una gestión económica eficiente, marcada por
la centralización administrativa y burocracia, incumplimiento de las expec-
tativas de la población en relación con el poder popular y una deficiente
información relevante.
En los momentos actuales existen nuevos retos para la participación,
desafíos que permiten vislumbrar el fortalecimiento de una participación real,
que contemple trabajar en la descentralización administrativa, en un trabajo
educativo de sensibilización y responsabilidad en grupos e individuos que
encuentren un sentido personal grupal con el desarrollo de una cultura de
participación. Los nuevos gobiernos locales deberán asumir su papel de corres-
ponsabilidad, retroalimentando, apoyando y comunicándose con la población.
La participación resulta indispensable y afín con la complejidad de los
problemas y soluciones de la comunidad, que debe conducir a transitar hacia

267
Relações pessoa-ambiente na América Latina

un futuro sustentable. La participación constituye un principio fundamental


para la protección social y la definición de modelos de conducta armónicos
en todos los niveles. Sus dos componentes: información-comunicación y la
informatización, permiten un mejor desempeño en la gestión del desarrollo
local, puesto que cuando se accede a la información abierta para todos, se
alcanzan mejores resultados (Araujo, 2018). La participación, como proceso
de interacción popular, alcanza su autenticidad en la toma de decisiones,
al tener como prioridad la construcción de capacidades para analizar y
priorizar sus necesidades, así como formular y negociar sus propuestas.
Nuestro país emprende el desarrollo sostenible fundado en los princi-
pios refrendados en la Constitución. En particular, las experiencias presen-
tadas, demuestran cómo a través de diferentes formas de participación se
potencian líneas del desarrollo local sostenible como la protección al medio
ambiente marino, la sostenibilidad y soberanía alimentaria y nutricional,
acceso a la vivienda saludable, reforestación, energías renovables, equidad
de género, empleo, entre otros. Estos se exhiben como concepción inicial
de las trasformaciones revolucionarias y se desarrollan como actuales
conquistas, a pesar del persistente cruel bloqueo norteamericano a la que
ha estado sometida, desde los inicios, la revolución.
La psicología ambiental no solo brinda el marco teórico necesario
para estudiar la subjetividad grupal, sino también propone metodologías
de diagnóstico e intervención en temas sociales comunitarios. La psicología
incorporada a las políticas medioambientales brinda un enorme trabajo
educativo que se multiplica en la relación hombre-medio-ambiente
ante los peligros de los fenómenos medioambientales que amenazan. Sin
embargo, la vida ha demostrado que “la conciencia ambiental debe ser
objeto de la gestión misma y que la implicación de la comunidad en la
proambientalidad, exige también cambiar las maneras de pensar y sentir
sobre el medio ambiente para cambiar las estrategias de acción” (Corraliza,
Berenguer, Moreno y Martín,2005, p. 118).
El perfeccionamiento de la sociedad cubana y sus comunidades pasa
por darle el lugar merecido a la psicología ambiental.

268
Participación y Protagonismos para un desarrollo sostenible en Cuba: Apuntes..

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270
Participación y Protagonismos para un desarrollo sostenible en Cuba: Apuntes..

271
Capítulo II

Participación comunitaria en la
defensa del territorio:
Mapeo Colectivo como herramienta de trabajo de
Movimientos Sociales
René Squella Soto

El contexto global de la conflictividad territorial

E n las últimas dos décadas, han aumentado los conflictos de tipo ambiental
en distintos lugares del mundo (Muñiz, 2012). Se ha exacerbado la depre-
dación de los procesos vivos en niveles que ponen en crisis las bases mismas
de la civilización tal como la conocemos, siendo América Latina, “uno de los
destinos más codiciados por el avance de un extractivismo renovado y recru-
decido en su capacidad de dejar a su paso sólo tierra arrasada” (Composto,
2012, p. 342). Se implementan en el subcontinente, según Svampa (2019):
“modelos de desarrollo incompatibles con los ciclos de la naturaleza” (p. 45).
La mayoría de estas conflictividades, son consecuencia de las proble-
máticas generadas a partir de la extracción de recursos naturales que, para
Altomonte y Sánchez (2016), representan situaciones de desacuerdo con
respecto al uso, goce, propiedad y acceso a los recursos, como también
desacuerdo de los efectos en el medio ambiente y sus repercusiones en la salud,
calidad de vida y posibilidades de desarrollo de las comunidades afectadas.
La idea de crecimiento constante para la acumulación de riqueza material
como motor de proceso social, nos lleva de acuerdo a Ornelas (2013), a una
pérdida ecológica grave, irreversible y con riesgo de colapso.
En la actualidad, el modo de habitar y producir de un gran número de
comunidades genera tensiones entre los requerimientos globales y las reali-
dades y pretensiones locales, presiones que van multiplicando la aparición
de conflictos que toman características socioambientales, pues involucran

273
Relações pessoa-ambiente na América Latina

a varios actores en la disputa por el uso y el significado que se le entrega


al territorio y a los bienes comunes que se encuentran en este (Bowen,
Fábrega, & Medel, 2012; Latchinian, 2009).
Para Gudynas (2007), los conflictos ambientales serían “las con-
frontaciones que ocurren en el espacio público, entre actores colectivos
organizados, que mantienen diferentes percepciones, valores o perspectivas
sobre el ambiente” (p. 3). El Instituto Nacional de Derechos Humanos
de Chile (2012, 2016) complementa la definición, considerando que las
confrontaciones se vinculan a las afectaciones (o potencial afectación) de
los derechos humanos, debido al acceso y al uso de los recursos naturales
de algunos de los actores que participan de la situación. Finalmente, la
asimetría de poder entre los actores de un conflicto, es una característica
que resalta Svampa (2011) en sus investigaciones sobre Movimientos
Sociales y Extractivismos en disputas territoriales.
Ejemplificando la asimetría aseverada por Svampa, por un lado, se en-
cuentran quienes desde una identidad colectiva asociada al territorio (Bowen
et al., 2012), quieren continuar con los procesos productivos que se realizan
por generaciones y que permiten el equilibrio de los servicios ecosistémicos.
Por otro lado, están las industrias nacionales y transnacionales que llegan
apropiándose del espacio por medio de procesos productivos tecnológicos
(Vallejos, 2008), generando así, riqueza económica junto a una serie de ex-
ternalidades que merman la calidad de vida de la población al desestabilizar
la armonía con la naturaleza y la limitada sostenibilidad de los recursos.

Territorios, la disputa de usos y representaciones

Un territorio, en la actualidad, es un espacio construido socialmente,


espacio en disputa de su vocación y representación entre actividades locales
equilibradas con su entorno, o iniciativas productivas extractivas a gran escala;
un lugar estructurado en su espacialidad a través de relaciones entre los seres
humanos y componentes físicos, ecológicos, políticos, culturales y socio histó-
ricos (Silva, 2017; Sosa, 2012). No es un continente en el cual se encuentran
identidades acabadas u homogéneas, sino que estas se redefinen constantemente

274
Participación comunitaria en la defensa del territorio: Mapeo Colectivo como ...

desde perspectivas socioconstruccionistas, siendo las territorialidades una ten-


sión constante de dichos procesos (Raffestin, 1980, citado en Conti, 2016).
Así, la mirada socioconstruccionista de la geografía, plantea que los
territorios son espacios culturales transformados por el trabajo, la acción y las
contradicciones humanas (Sosa, 2012). Se deja atrás el entendimiento más
objetivo del territorio entregado por la geografía clásica, el cual es definido
principalmente por su materialidad y localización geográfica (Campos,
Illesca, & Neira, 2016); por su complejidad biofísica (Sosa, 2012); y por
su descripción “que se comporta conforme a regularidades que pueden ser
expresadas en leyes de funcionamiento universal y con independencia de
cualquier voluntad exterior” (Ángel, 2015, p. 259).
Un territorio no solo responde a intereses económicos o de subsisten-
cia, sino que también suceden en él operaciones simbólicas a través de las
cuales los actores sociales dan cuenta de sus representaciones de mundo.
Esta concepción relacional, es lo que marcaría el giro en la definición de un
territorio, adquiriendo una dimensión temporal y dinámica, que permite
la generación de territorialidades móviles y de procesos (Conti, 2016).
Hoy en día la globalización como escenario de un macroproceso
político, económico y cultural, entrega evidencias de superposición de
territorialidades que se disputan las concepciones de los escenarios locales.
Disputas que no necesariamente serán cara a cara y que plantean desafíos
analíticos y metodológicos que deben ser reflexionados para responder a la
complejidad en la construcción y entendimiento del mismo (Conti, 2016).
Para Santos (1982), ante las preocupaciones por los modelos territo-
riales globalizadores y depredadores que construyen el espacio, se necesitan
fortalecer orientaciones que generen vínculos de horizontalidad en la defensa
y resistencia de los territorios por parte de las comunidades que viven el
avance de proyectos verticales que alimentan relaciones de subordinación.
Se entiende en este sentido, que las diversas modalidades de extractivismos
“conducen a procesos de transformación territorial que desembocan en un
reordenamiento de paisajes, constelaciones sociales y relaciones laborales
que fragmentan el espacio” (Acosta & Ulrich, 2017, p. 164). Así, en esta
reconfiguración territorial a propósito de la instalación de megaproyectos

275
Relações pessoa-ambiente na América Latina

extractivos, se subsumen las relaciones sociales, productivas, ecológicas y


políticas a la lógica instrumental que trae consigo, ruptura de lazos co-
munitarios, destrucción de economías regionales, pérdida de diversidad
cultural y degradación de las condiciones ambientales (Composto, 2012).
Todo lo anterior incentiva una reflexión necesaria sobre el lugar de las
comunidades en el marco de una globalización hegemónica y desigual que
tensiona y conflictúa. Escenario que necesitará una población fuerte y arti-
culada para ser un actor clave en la producción de los espacios y territorios
(Conti, 2016), los que se conciben desde los movimientos territoriales, de-
safiando la lógica que guía a los emprendimientos megaextractivistas (Ángel,
2015). Se responde de ese modo, desde un proceso de construcción de un
sistema político de carácter democrático y de desarrollo humano y sostenible,
sistema en donde los movimientos socioterritoriales se van conformando a
partir de procesos de territorialización y desterritorialización (Soares, 2016).
El incentivo de la participación y de la búsqueda de una mayor autono-
mía, se transforma también en una queja política, apelación que busca prin-
cipalmente el control político del territorio por sobre la propiedad de la tierra
(Cabello & Torres, 2015), desarrollando, de ese modo, procesos socioespaciales
en el que destacan conceptos como poder, actores, conflicto y territorialidad
(Conti, 2016). Ejemplo de lo anterior, son los pueblos indígenas, quienes, a
diferencia de la mirada modernizadora occidental de ver los recursos naturales
como valor de cambio, los consideran elementos vitales para la producción y
reproducción de su comunidad, de sus maneras de habitar los espacios (Soa-
res, 2016). Razón por la cual, es primordial para las comunidades originarias,
avanzar en el dominio de sus propios espacios y ser actores con la capacidad
de determinar sus usos y relaciones que se establecen con el mismo.

Participación comunitaria, la clave de territorios


sostenibles

Considerando, entonces, la frecuencia de problemáticas territoriales existentes


y la conflictividad ambiental incentivada principalmente por el rol exportador
de materias primas que consolidan los países de la región sean progresistas o

276
Participación comunitaria en la defensa del territorio: Mapeo Colectivo como ...

neoliberales, se han ido arraigando también los procesos de participación co-


munitaria como elementos claves en la solución, mitigación o remediación de
las dificultades socioambientales planteadas a partir del modelo de desarrollo.
De ese modo, favorecer procesos de participación social en interven-
ciones urbanas, discrepancias territoriales y planes de desarrollo, fortalecerá
“procesos de concientización y desnaturalización de los sistemas de pro-
ducción humana que sustentan el deterioro ambiental” (Berroeta, 2007,
p. 282); lo que permite, entre otros fenómenos, el fomento del control
sobre el propio entorno por parte de la población, la alimentación de la
identificación como comunidad y el fortalecimiento de la cohesión social
(Ramos-Vidal & Maya-Jariego, 2014).
Unido a lo anterior, la participación de la población estimula pro-
cesos de transformación social que mejora las condiciones de vida de las
comunidades en relación a las problemáticas de opresión y desigualdad
que, desde sus inicios, han sido abordadas por la psicología comunitaria
en Latinoamérica (Montero, 2008, citado en Conti, 2016).
El trabajo participativo, organizado y colectivo en defensa del territorio,
tenderá al fortalecimiento de sus protagonistas a través del aumento de confianzas
(Briceño-León, 1998; Valdivieso, 2012), de las autonomías, poder y control
sobre sus experiencias vitales, reforzando sentidos de comunidad, identidad
y apego con lugares. También, la participación comunitaria facilitará que se
tornen activos en las alternativas de resolución de los problemas más prioritarios
para sus vidas, opciones de miradas críticas y acciones orientadas a mejorar las
condiciones presentes y asegurar las del futuro próximo. Se establece así, lo que
Montero (2004) llamaría el efecto político de la participación: forma ciudadanía
fortaleciendo a la sociedad civil, a la vez que aumenta la responsabilidad social
en las temáticas que le incumben a la comunidad.

Movimientos socioambientales, responsabilidad


participativa en defensa de la tierra

Para Nadir y Vieira (2015), la necesaria conciencia de la preservación


ambiental requeriría la organización comunitaria por medio de movimien-

277
Relações pessoa-ambiente na América Latina

tos sociales y ecológicos, quienes, como actores claves en la actualidad,


son fundamentales en la transformación de pensamientos, sentimientos y
actitudes individuales que sumadas y multiplicadas, posibilitan una cons-
ciencia y fuerza colectiva que propende a mejores y mayores perspectivas
de cambio, como a relaciones más integrales con nuestros entornos tanto
naturales como artificiales.
Acosta y Ulrich (2017), citando a Svampa (2017), al referirse a los
movimientos sociales en América Latina vinculados a la defensa de los
territorios, plantean un giro ecoterritorial a sus demandas, enfrentando
de manera colectiva, la marginación y destrucción del medioambiente
que reproducen la mayoría de los estados latinoamericanos; y que se han
intensificado en el nuevo siglo multiplicando también los movimientos
del ecologismo popular en todo el continente (Composto, 2012).
Enrique Leff (2004, citado en Composto, 2012) define a los movi-
mientos vinculados a temáticas socioambientales como esfuerzos colectivos
de reapropiación de la naturaleza y reexistencia del ser, pues luchan por
recuperar la propia identidad cultural que está enlazada al territorio y por
la construcción colectiva autónoma basada en la racionalidad ambiental. Se
significa el espacio en el que se vive, como un lugar más allá de un interés
económico, un interés de vida, de historia.
Para Zibechi (2010, citado en Petropoulou, Vitopoulou, & Tsavdaro-
glou, 2016), las principales características de los movimientos modernos
en América Latina son: territorialización, autonomía respecto a partidos
políticos y Estado, revalorización de la cultura e identidad propia, papel
decisivo de las mujeres, promoción de la autoorganización evitando grandes
estructuras impersonales e incentivo de una relación significativa con el
medio ambiente. No se trata de rechazar la política según Da Sousa (2001),
al contrario, es necesario ampliarla hasta más allá de los marcos liberales.
Dentro del repertorio de labores que realizan los movimientos, Zibechi
(2008) destaca la intencionalidad pedagógica que tienen los espacios, ac-
ciones y reflexiones que se desarrollan dentro de su radio de acción, cuyas
propuestas implican colocar en lugar central, la reflexión y evaluación
permanente de lo que sucede. De ese modo, se propende a iniciativas

278
Participación comunitaria en la defensa del territorio: Mapeo Colectivo como ...

contextualizadas a los pensares y sentires de quienes defienden intereses


de sus territorios y de las personas que los habitan históricamente.
Ese potencial estratégico de los movimientos, que posibilita los pro-
cesos de participación ciudadana de la comunidad organizada, da cuenta
de agrupaciones que, oponiéndose al significado de una estructura espacial
determinada por el contexto neoliberal extractivista, propone opciones que
construyen territorios desde los intereses expresados por la comunidad y
su propia historia. Estas preocupaciones pueden abordarse metodológi-
camente a través de múltiples técnicas de investigación-acción, siendo el
Mapeo Colectivo una de las posibilidades colectivas, dialógicas, visuales
y empoderadoras más idóneas a la hora de aportar para la labor de los
movimientos que defienden sus territorios.

Mapeo colectivo, (re)conocimiento y poder sobre los


territorios

Los mapas son uno de los principales instrumentos que ha utilizado


el poder dominante para la apropiación de los territorios y la reproducción
de representaciones hegemónicas que serían funcionales al desarrollo de
la ideología capitalista imperante (Barragán, 2016). Históricamente, la
cartografía ha sido utilizada como herramienta exclusiva del Estado y otras
autoridades externas para ampliar su control y alcance sobre territorios
y recursos: “El territorio es más que los límites que lo definen; se trata
de un espacio de relaciones sociales que los poderes del país necesitaban
conocer para ejercer el dominio y el poder sobre su población, así como
para gestionar recursos e impuestos” (Braceras, 2012, p. 5).
Desde la década de 1970 se viene replanteando la geografía tradicional
en concordancia con una serie de transformaciones en la episteme de las
ciencias sociales y de las humanidades. Se despliega el giro geográfico que
propone toma de distancia del positivismo y del racionalismo geográfico
(Ganter-Solís, Sandoval-Nazal, García-Letelier y De la Fuente-Contreras,
2015). Dicho giro, buscaría la “construcción subjetiva de los mapas con
sentido político, en tanto que otorgan la posibilidad de que las cartografías

279
Relações pessoa-ambiente na América Latina

estén al servicio de las mismas comunidades que habitan los territorios,


tomando partido de lo que en sus espacios acontece” (López, 2017, p. 148).
El mapeo colectivo es una técnica de investigación de carácter cualita-
tivo con elementos dialógicos. Método comprometido con la participación
activa de quienes son parte del estudio, los que construyen procesos y
productos de investigación que contribuyen al fortalecimiento de las
organizaciones y movimientos sociales, produciendo instrumentos de
saber-poder que se ponen a disposición de la gestión y defensa del territorio
(Habegger, 2008; Vélez, Rativa, & Varela, 2012).
La técnica utiliza los mapas como elemento visual para cartografiar los
territorios y reflexionar sobre las variadas preguntas que se pueden hacer
a los mapas. Cuestionamientos cuya contestación es un diálogo entre los
participantes que va elaborando colectivamente sentidos, percepciones
y representaciones en torno a las principales respuestas que se quisieran
obtener a través de éstos dispositivos. Estos se transforman en “materiales
pedagógicos e investigativos con alta densidad de información” (Vélez et
al., 2012, p. 65), que en términos educativos y organizacionales, podrán
aportar tanto en funciones internas de los grupos como en la reafirmación
de sus identidades culturales (Sletto et al., 2013).
Para Iconoclasistas, la ocupación crítica de mapas como instrumen-
tos y técnicas de investigación permite, por medio de prácticas reflexivas,
interactivas y colectivas, sobreponer a los elementos institucionales infor-
mación y saberes populares invisibilizados por los relatos dominantes. En
América Latina, el mapeo participativo comenzó como medio de lucha
de comunidades con el cual, podían enfrentar los reclamos al Estado de
terrenos denominados como públicos (Sletto et al., 2013). Junto a ello,
se utiliza como herramienta ideal para una planificación participativa que
defina líneas y estrategias para conseguir los objetivos planteados como
comunidad (Ganter-Solís et al. 2015).
Para Habegger (2008), “la construcción de conocimiento desde mapeos
participativos (codificación), así como el acceso a la lectura crítica de la
información geográfica y social acerca de los efectos (decodificación), pueden
generar espacios políticos emergentes que refuercen prácticas contrahege-

280
Participación comunitaria en la defensa del territorio: Mapeo Colectivo como ...

mónicas” (p. 276). Así, más que trabajar con una mirada exclusivamente
experta, se persigue sostener diálogos y sinergias constantes entre saberes
diversos para producir datos y conocimiento no oficial a partir de mapas
convertidos en dispositivos visuales de pronunciado carácter político.
Se busca, concordando con metodologías de educación popular, dar valor
al saber individual y comunitario para generar procesos de co-construcción
de conocimiento territorial (López, 2017). Esta experiencia cartográfica desde
los movimientos sociales, documenta y cimienta otros territorios invitando
a participar en nuevos espacios de posibilidad y de transformación desde la
colectividad (Habegger, 2008). Una “Herramienta ética-política” (p. 27)
diría Zambra-Álvarez et al. (2016); miradas del territorio y del desarrollo que
ayudan a comprender las relaciones de poder existentes, los impactos que trae
la modernidad sobre el entorno, los modos de vida a pequeña escala y la nece-
sidad de participar activamente en la constitución del territorio siguiendo los
intereses que plantea la comunidad en interacción equilibrada con su entorno.
Ares y Risler (2015) y Ganter-Solís et al. (2015) consideran que los
mapeos tienen múltiples funcionalidades para comunidades y agrupaciones,
entre ellas, socialización de saberes y prácticas, impulso a la participación
colectiva (Amsden & VanWynsberghe, 2005; Braceras, 2012), trabajo
con personas desconocidas, disputa de espacios hegemónicos, impulso a la
creación e imaginación, problematización de nudos clave (López, 2017),
visualización de las resistencias y el señalamiento de las relaciones de poder.
López (2017), Zambra-Álvarez et al. (2016) y Sletto et al. (2013)
agregan la función de apoyo a los objetivos comunitarios y de aumentar el
control sobre territorios y recursos, elementos empoderadores que generan
capacidades locales de gobernación local y representación ante el Estado.
Además, la construcción cartográfica es considerada un trabajo educativo a
nivel endógeno en la reflexión de los participantes sobre la evolución de su
propia praxis; como a nivel exógeno y los caminos concretos de interven-
ción que van generando cambios y transformaciones en los territorios: “Se
parte de la premisa que quien vive en el territorio es quien más lo conoce,
por lo que hay que recurrir al habitante para comprenderlo en todas sus
dimensiones” (Ganter-Solís et al., 2015. p. 450).

281
Relações pessoa-ambiente na América Latina

Ejemplos de lo anterior son el caso de tres comunidades de la cuenca


alta del Río Cauca, con quienes se indagó las percepciones ligadas a la
historia y geografía de los conflictos socioambientales asociados a procesos
económicos extractivos, elementos de utilidad en las acciones de resistencia
que realiza la comunidad en la defensa de sus territorios (Vélez et al., 2012).
También el mapeo participativo usado en proyectos del sur de África con
la comunidad Khwe, metodología para empoderar a pueblos locales en su
identidad y tomar decisiones sobre la gestión de recursos naturales de forma
sustentable, controlar la propiedad de la tierra, la implementación de proyectos
y resolver conflictos sobre los bienes comunes existentes en sus territorios
impugnando la desigualdad que se vive (Taylor, & Murphy, 2006); o bien las
experiencias cartográficas producidas por los Kichwa de Pastaza en Ecuador
junto a Alfredo Vitery, y los significados culturales que han servido para las
luchas por los derechos a sus territorios (Sletto et al., 2013).
De acuerdo con los ejemplos mencionados, como establece Habegger
(2008), se presenta la oportunidad de convertirse en catalizador de procesos
de cambio a través del empoderamiento de individuos y del fortalecimien-
to de las comunidades que permite la liberación de voces no escuchadas
cotidianamente. Voces que facilitan entender de forma más compleja e
integra, los procesos de desterritorialización a partir de la globalización y
sus dinámicas desidentificadoras de los habitantes con sus espacios. Ten-
dencia que refuerza la segregación y fragmentación que están en la base
de nuestra desintegración social (Ganter-Solís et al., 2015).
Si poder significa control, empoderar entonces es el proceso de ganar
control (López, 2017), evolución que va entregando al dominio comu-
nitario y su trabajo participativo, parte de la responsabilidad en la cons-
trucción de los territorios y sus devenires. Se trata de un compromiso que
no puede pensarse de otra forma que no sea con activa participación de la
comunidad organizada que, de manera libre y consciente, busca cimentar
modelos de desarrollo integrados armónicamente con la naturaleza en la
cual viven en sociedad.
Un mapa construido por la misma comunidad del propio espacio que
habitan, podrá ser un catalizador fundamental en el camino participativo

282
Participación comunitaria en la defensa del territorio: Mapeo Colectivo como ...

de equilibrar las asimetrías de poder existentes en la definición de usos,


sentidos y valoraciones de los territorios y las acciones que desde allí se
desarrollan.

283
Relações pessoa-ambiente na América Latina

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287
Capítulo III

O uso coletivo de
espaços citadinos:
lugares de eloquência popular em Porto Velho-RO
Lílian Caroline Urnau
Matheus Mendonça de Vasconcelos

Introdução

A s cidades simbolizam e sincretizam as contradições históricas e culturais


das sociedades nas quais são produzidas, já que nelas estão delimitados
espaços de acesso público e privado, de inclusão e exclusão, de ricos e pobres.
Assim, configuram-se como locus de passagem e permanência, de expressão e
fruição, de exuberância ostentativa da riqueza e de revelação da miséria, que
não se esconde, de encontros, desencontros e disputas. Enfim, configuram-se
como locus no qual os indivíduos se relacionam e, portanto, se constituem.
Centrada sem habitar, trabalhar, consumir e transitar, as cidades cons-
tituem-se também como campos de expressão e de fruição individual e
coletiva, nos quais as pessoas realizam atividades de lazer e esporte, ex-
pressam-se cultural e esteticamente, reúnem-se motivadas por interesses
comuns, manifestam-se exigindo direitos, resistem e agem politicamente
contra processos de exclusão.
Um exemplo dessa mobilização é a chamada luta pelo direito à cidade,
conceito historicizado por Tavolari (2016), focada em movimentos pela
habitação, em coletivos políticos, artísticos e culturais, entre outros. Tais
campos são demarcados territorial e simbolicamente pelas relações de classe
social (Carlos, 2014; Guimarães, 2015; Harvey, 2012; Trindade, 2012),
etnia-raça, gênero, sexualidade e de gerações.
Nesse sentido, tensões, contradições e dissonâncias manifestam-se e
produzem as cidades, mesmo que não estejamos olhando atentamente para
elas. Por outro lado, contemporaneamente, indivíduos, grupos e coletivos,

289
Relações pessoa-ambiente na América Latina

deliberadamente mobilizando a cena urbana e nossas experiências na e com


a cidade, criam novos usos, novas significações e formas de habitar, de sentir
e de pensar a cidade e as relações nela estabelecidas, e, consequentemente,
quem somos e como nela vivemos individual e coletivamente.
Entendemos que as teorizações e os estudos da psicologia, com pers-
pectivas não subjetivistas ou psicologizantes, têm muito a contribuir para a
análise da constituição de sujeitos, de coletividades e de suas relações no e
com o espaço, especificamente nas e com as cidades e suas formas de rein-
venção e de usos solidários e equitativos. Investigar os usos e a configuração
de espaços de encontro com o outro e de vivências contra-hegemônicas na
cidade implica analisar os espaços de como com o outro somos afetados,
nos comunicamos, aprendemos, pensamos etc.
Na perspectiva da Psicologia Histórico-Cultural, nosso pensamento,
nossa afetividade e os demais processos conscientes que constituem nossa
singularidade e subjetividade, são social e culturalmente constituídos, tanto
em forma/estrutura quanto em conteúdo. Por meio das relações que estabele-
cemos com as outras pessoas nos variados contextos dos quais participamos,
apropriamo-nos ativamente de códigos/signos, significações, conceituações,
modos de agir e ser vigentes e, ao mesmo tempo, transformamos e (re)criamos
a nós mesmos, nosso psiquismo, e o contexto em que vivemos.
Na análise, baseamo-nos em Vygotski (2015), que destaca o conceito
de vivência (perejivanie), palavra sem uma tradução precisa em português
(Prestes, 2012; Toassa, 2018), ao se referir à relação entre o indivíduo e o
meio, e ao papel ativo do primeiro na apropriação do segundo. As vivên-
cias (perejivanie) constituem a dinâmica integrativa entre todos os nossos
processos conscientes – linguagem, pensamento, afetividade, memória,
imaginação, atenção, vontade, nossas características pessoais etc. Tal di-
nâmica é produzida pelas relações interpessoais em um dado contexto
social, as quais compõem um processo que envolve tanto a consciência
sobre quem somos (autoconsciência) quanto a consciência social. São as
vivências, portanto, que definem o caráter não determinista do meio e uma
certa capacidade (re)inventiva que detemos individual e coletivamente,
ainda que com limites e possibilidades estabelecidos socialmente.

290
O uso coletivo de espaços citadinos: lugares de eloquência popular em Porto Velho-RO

Stetsenko (2005, 2017) refere-se a esse papel ativo e dialético de cada


indivíduo na construção de si e do mundo, em um trabalho colaborativo
coletivo de transformação social. Para a autora, “O mundo está totalmente
enredado com nossos esforços coletivos e projetos colaborativos, em uma
espiral de vir a ser mútuo e histórico, no qual cada ato individual de ser,
conhecer e fazer – único, autoral e insubstituível – importa” (Stetsenko,
2017, s/n, tradução nossa)1. Em tal dialética, indivíduo-coletividade, inter-
no-externo, eu-outro, não apenas nos adaptamos à realidade, mas podemos
recriá-la, construindo o futuro no presente à luz do passado. Obviamente,
a autora está se referindo à defesa de uma transformação específica, pautada
necessariamente no combate a qualquer forma de opressão e desigualdade.
Fundamentados em tais conceituações, chamamos a atenção para o fato
de que os usos e os encontros coletivos nas cidades são promotores de outras
lógicas e formas de sentir, pensar, imaginar, ser, conhecer e fazer. Pautadas na
solidariedade, no compartilhamento do comum, nas diferentes e múltiplas
formas de expressão e luta contra a opressão e a desigualdade que se manifestam
nas ruas, paredes, muros, praças e parques citadinos, nos movimentos pela
moradia e direito à cidade, essas formas também nos apontam os limites e as
possibilidades de invenção e de transformação social/individual, bem como
suas projeções de futuro, especialmente no sentido do alcance, da abrangência
e da amplitude de uma efetiva equidade social entre os habitantes do lugar.
Desses entendimentos, brevemente apresentados, surgiu nosso interesse
por analisar a produção de espaços de encontro coletivo, de participação
social e de expressão popular em cidades na Amazônia, mais especifica-
mente por investigar a cena mobilizada por coletivos artísticos/culturais e
políticos em Porto Velho-RO e suas implicações intersubjetivas. As carac-
terísticas de constituição territorial e de participação social local também
nos impulsionaram a fazê-lo, conforme buscaremos sucintamente apontar.
A história da capital do estado de Rondônia é marcada pelas con-
tradições do desenvolvimentismo e do suposto “progresso” capitalista de

1  “The world is fully enmeshed with our collective strivings and collaborative projects, in a spiral
of mutual historical becoming, wherein each individual act of being, knowing, and doing – unique,
authorial, and irreplaceable as it is – matters.”

291
Relações pessoa-ambiente na América Latina

uma forma específica. Sua construção, fundada nos ciclos de exploração


de recursos naturais da Amazônia, causou grande fluxo migratório para
todo o estado em busca de oportunidades de trabalho em garimpos, se-
ringais e madeireiras, bem como na agricultura e nas usinas hidrelétricas
(Cim, 2003). O maior desses fluxos ocorreu na década de 1980, durante
o regime militar, quando os projetos de expansão agrária e de coloniza-
ção eram mobilizados por campanhas publicitárias do Governo Federal
nas quais o estado recebia a conotação de novo “eldorado” (Valadão &
Backes, 2018). Esse processo histórico dizimou as populações indígenas
locais e acirrou a exclusão das populações ribeirinhas e das florestas que
já habitavam o local. Além disso, o poderio da grilagem e do latifúndio
impulsionou brutais conflitos pela terra.
Atualmente, Porto Velho tem lidado com as consequências do mais
recente ciclo de exploração amazônica: o da construção de usinas hidrelé-
tricas no Rio Madeira, fruto do Plano de Aceleração e Crescimento (PAC).
Esses empreendimentos, cujas obras foram executadas entre os anos de 2008
e 2016, causaram um novo fluxo migratório, que, segundo Nascimento,
Santos e Silva (2012), trouxe novas características à cidade, promovendo
o “boom” imobiliário e a expansão verticalizada do perímetro urbano. As
usinas, além disso, afetaram negativamente, de forma direta e imediata,
mais de 10.000 pessoas que viviam à beira do rio e sobreviviam com ati-
vidades de pesca, extrativismo e agricultura familiar. Com o represamento
do Rio Madeira e o consequente alagamento de uma importante extensão
de terra, essas pessoas foram retiradas de suas habitações e perderam sua
fonte de renda (Relatório da Plataforma Dhesca, 2011).
A narrativa desenvolvimentista de que os ciclos de exploração são
benéficos para a economia local, envolvendo desde a geração de empregos,
os lucros com a especulação imobiliária e a oferta ampliada e diversificada
de serviços para empresas de pequeno e médio porte e assim por diante,
parece contribuir para escamotear, principalmente entre a população local,
os significados da exploração e do sofrimento gerado pelas perdas humanas,
culturais, patrimoniais, ambientais que o processo sempre envolve. Dores
e traumas evidenciados por Nóbrega, Carvalho e Vasconcelos (2019).

292
O uso coletivo de espaços citadinos: lugares de eloquência popular em Porto Velho-RO

Também é evidente que tais ciclos não resultaram na melhoria efetiva e


qualitativa das condições de vida e de urbanidade para a maioria dos habitan-
tes. Em Porto Velho, cuja população estimada é de 519.531 pessoas (Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2017), em sua maioria concentrada
no perímetro urbano, para citar alguns dados, apenas 21,5% das vias têm
bueiro, calçada, pavimentação e meio-fio (IBGE, 2010). A cidade não conta
com tratamento de esgoto, tampouco com destino adequado para os resíduos
sólidos e coleta seletiva. Apenas 40% da população conta com abastecimento
de água por rede geral (IBGE, 2017). O transporte público é insuficiente e
ruim, com inúmeras greves de trabalhadores deflagradas nos últimos anos.
A essas precariedades, conforme pesquisas que realizamos em escolas e
outros serviços públicos de três bairros da periferia pobre da cidade, ao longo
dos anos de 2014 a 2017 (Urnau et al., 2018, 2019), junta-se a limitação
da eloquência popular em canais institucionalizados de participação social,
tanto em políticas públicas quanto em organizações da sociedade civil, como
associações de bairro.
Nesse contexto, destaca-se a emergência, nos últimos cinco anos, de
outras formas coletivas de participação política, artística e cultural, prin-
cipalmente em espaços públicos da região central da cidade. Além dos
movimentos sociais nacionais, de longa data atuantes na região, agrupamen-
tos, identificados como coletivos, passaram a se constituir, se encontrar, se
expressar e se mobilizar na/com a cidade. Com diferentes formas e pautas
de manifestação/reivindicação, encontros, reuniões, rodas de conversa, sa-
raus, batalhas de rap, colagens de lambe-lambe, intervenções artísticas em
habitações e patrimônios abandonados passaram a configurar novas cenas e
resistências na cidade de Porto Velho.
Observações cotidianas dessas ações, considerando as discussões e con-
ceituações que brevemente apresentamos nesta introdução, deram origem
aos seguintes questionamentos: Quais coletivos manifestam-se/intervêm na
cidade? Como são esses encontros coletivos no espaço urbano? Com que pautas
e de que maneira os coletivos mobilizam outras formas de vivenciar, sentir,
pensar, imaginar, ser, conhecer e fazer na e com a cidade de Porto Velho? Tais
foram as questões orientadoras de nossa pesquisa, as quais constituem o foco

293
Relações pessoa-ambiente na América Latina

da análise que aqui realizamos. Iniciaremos com a descrição metodológica e


seguimos com a discussão e a análise dos resultados construídos na pesquisa.

A pesquisa, seus procedimentos e participantes

O primeiro momento da pesquisa consistiu no levantamento dos


coletivos atuantes na cidade de Porto Velho. Para isso, observamos locais
públicos da cidade, como praças e parques da região central, perfis públi-
cos, fanpages e postagens em redes sociais (Facebook, Twitter e Instagram)
e sítios eletrônicos públicos.
Nessa etapa, realizada entre agosto de 2018 e fevereiro de 2019, consi-
deramos as contribuições de Hine (2000) sobre a pesquisa em sítios virtuais
e seguimos os mesmos procedimentos éticos e humanos necessários em
estudos de locais físicos. Utilizamos também a metodologia bola de neve,
pautada em cadeias de referência (Vinuto, 2014). Desse modo, em cada
fanpage ou sítio eletrônico analisado, buscamos as próprias referências ofe-
recidas ou as próprias sugestões das redes sociais e sítios eletrônicos em que
a página se encontrava. A consolidação dessa etapa foi imprescindível para
fazermos o primeiro contato com os coletivos posteriormente entrevistados.
Paralelamente, por meio de levantamento na internet, realizamos obser-
vações participantes nos espaços em que usualmente ocorriam os eventos. Para
André (2010, p. 28), “A observação é chamada de participante porque parte
do princípio de que o pesquisador tem sempre um grau de interação com a
situação estudada, afetando-a e sendo por ela afetado”. Ou seja, o pesquisador
não se mantém distante ou dissociado do contexto que estuda e busca se inse-
rir ao máximo nos espaços, interagindo com as pessoas, refletindo sobre seus
sentimentos em campo e permitindo assim que o pesquisar se (re)construa no
decorrer do estudo. Sato e Souza (2001) apontam que, na pesquisa participante,
é possível observar as microrrelações e relacioná-las com os marcadores culturais
e sociais que as perpassam. Portanto, esse pesquisador se distancia de formas
tradicionais de pesquisa, pois sua proposta é analisar as relações cotidianas em
seus pormenores e, ao mesmo tempo, relacioná-las com os atravessamentos
macrossociais, evitando possíveis reducionismos ou generalizações.

294
O uso coletivo de espaços citadinos: lugares de eloquência popular em Porto Velho-RO

Com base nesses procedimentos e entendimentos, identificamos seis


coletivos atuantes no recorte temporal da referida e realizamos observa-
ções participantes de sete intervenções promovidas por alguns deles, as
quais foram registradas em diário de campo. Cinco dessas observações
envolveram a elaboração do Plano Diretor Municipal e o trabalho de
mobilização de reuniões e assembleias em bairros por parte de um dos
coletivos; outras duas observações tiveram como alvo as batalhas de Rap
em praças de Porto Velho.
O último momento da pesquisa foi constituído de entrevistas se-
miestruturadas com representantes de quatro coletivos políticos e artís-
ticos-culturais. Tendo concordado com o convite, foram entrevistados:
(a) Joeser, representante do Coletivo Madeirista, formado por 12 artistas
de variadas idades e integrante do Circuito Grude (circuito nacional de
lambe-lambe); (b) Alisson, um dos organizadores das primeiras Batalhas
de Rap na cidade, hoje integrante do coletivo Pshyco, composto por três
jovens Mc`s; (c) Rafaela, do Filhas do Boto Nunca Mais, um coletivo
em processo de transformação para uma associação, composta por 37
mulheres de várias idades e com formação universitária; (d) Valdirene e
Emanuel, representantes do Coletivo de Direito à Cidade, que conta com
aproximadamente 20 participantes, em sua maioria funcionários públicos
com formação universitária.
É importante ressaltar que essa pesquisa seguiu os preceitos éticos da
pesquisa com seres humanos (o projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética
em Pesquisa pelo parecer n° 2.750.476). Apresentamos detalhadamente a
proposta da pesquisa para todos os entrevistados, com os quais discutimos
também o uso de nomes reais ou fictícios para os coletivos, seus integrantes
e entrevistados. Todos consideraram desnecessária a identificação fictícia
porque realizam ações públicas, muitas delas divulgadas nas redes sociais
em seus perfis individuais ou coletivos.
As entrevistas seguiram um roteiro semiestruturado de perguntas, de
forma que as temáticas surgidas no momento das entrevistas pudessem ser
contempladas, favorecendo o aprofundamento da análise. Todas as entre-
vistas foram gravadas e seus arquivos de áudio, utilizados para transcrição

295
Relações pessoa-ambiente na América Latina

e depois deletados. Os entrevistados puderam também rever a transcrição


e efetuar as modificações que considerassem necessárias.
As informações produzidas pelos distintos procedimentos metodoló-
gicos foram trianguladas (Minayo, 2004) para a elaboração de indicadores
que auxiliassem na descrição e na discussão dos resultados. De acordo com
González-Rey (2002), indicadores são categorias analíticas construídas ao
longo do processo interpretativo do pesquisador, que, assim, conectando
os sentidos e os significados produzidos durante o trabalho de campo com
os recursos teóricos, pode avançar na produção dos conhecimentos sobre
o objeto estudado. Tais indicadores não são diretamente evidentes no mo-
mento da experiência, nem são reduzidos a categorias teóricas estabelecidas
a priori, mas produzidos no decorrer da análise.

A cidade como palco/tela de expressão, fruição e


conscientização estético-política

Dos coletivos que passamos a observar na cidade, os agrupamentos


que utilizavam a arte de rua como expressão chamaram nossa atenção,
entre os quais um coletivo organizador de Batalhas de rimas de Rap e
outro de lambe-lambe (colagem de pôsteres). Embora essas estéticas
urbanas, originárias respectivamente dos Estados Unidos e de países
europeus, estejam globalmente disseminadas por inúmeras cidades do
mundo, sua presença em Porto Velho demarca uma cena recente de
resistência e de expressão popular, até então tímida ou inviabilizada na
cidade, com todas as contradições a ela inerentes.
Precisamos considerar que tais coletivos artísticos emergiram na
capital amazônica, na qual são restritos os espaços institucionalizados de
produção, exposição e fruição artística e que pouco prestigia ou evidencia as
práticas artísticas e culturais dos povos originários, da floresta e das águas.
Trata-se de uma cidade e um estado nos quais a exaltação dos “bravos”
e “destemidos pioneiros”2 brancos vindos do Sul e do Sudeste do país,

2  Palavras presentes nos hinos de Porto Velho e do estado de Rondônia.

296
O uso coletivo de espaços citadinos: lugares de eloquência popular em Porto Velho-RO

responsáveis pelo suposto “desenvolvimento” e “progresso”, decorrente


da exploração dos recursos naturais e do agronegócio, devastadores das
populações indígenas, de seus modos de vida, da fauna e flora, configura
as narrativas prevalentes.
Nesse contexto, os coletivos artísticos de lambe-lambe, ainda que sob
linguagens forasteiras e globalizadas, demarcam algum lugar da alteridade,
da eloquência estético-política popular contra-hegemônica, problemati-
zadora das relações étnico-raciais, de gênero, classe social etc. Isso não se
manifesta apenas nos conteúdos que as diferentes artes de rua mobilizam,
mas também na forma, na proposta contraventora de uso e usufruto dos
espaços públicos urbanos, marcados pela comercialização publicitária e
pelo movimento frenético do ir e vir. Os coletivos de arte nos propõem o
encontro com o outro, com o olhar e a escuta atenta, portanto, com novas
formas de sentir, pensar e vivenciar quem somos, quem são os outros e
nossas relações na e com a cidade. Nessa direção, Gonçalves (2010) faz
uma análise pertinente sobre coletivos artísticos na cidade de São Paulo.
Agora vejamos o que Joeser, do Coletivo Madeirista/Circuito Grude
de lambe-lambe, explica:

Se você produz um cartaz sobre alguma coisa e chama isso de denúncia


política, isso é uma coisa, isso é uma parte. A outra é você mexer com
isso. Acho que isso é o mais importante, é isso, é você mexer com isso; é
você se dar o desafio de tocar na questão política, né? Ah, ninguém quer
mexer com a política porque é chato, é ruim, o escambau, mas existem
questões – principalmente as questões de direitos humanos – que você
tem que lidar com isso. Você tem um amigo, uma amiga que sofreu, ou
mesmo você sofreu um tipo de preconceito, ou você viu alguém sofrer,
ou você viu todos os dias e o que é que você faz? Então o Circuito Grude
dá essa oportunidade de a gente extravasar essas ideias, de colocar isso
na rua, né. E eu diria que, mais do que denúncia política, é uma ação
política. (Joeser)

Joeser aponta para o processo de conscientização tanto do público, dos


passantes, diante do que ele chama de denúncia, quanto do próprio artista
em sua produção e destaca os temas dos direitos humanos e do preconceito.

297
Relações pessoa-ambiente na América Latina

Também observamos essa dimensão em uma Batalha de Mc`s que


acompanhamos e registramos em diário de campo.

O que achei mais interessante das batalhas foi a diversidade de temáti-


cas presentes nos Raps – e estas dependiam muito de marcadores sociais
presentes nos MCs de cada batalha. Pude observar temáticas como pre-
conceito racial, o cotidiano da periferia, relações de gênero, alienação
através da mídia, política etc. 

O tema do preconceito racial ficou evidente em uma batalha entre um


MC branco e outro MC negro. Enquanto o MC branco fazia seu rap acer-
ca de seu cotidiano na periferia, o outro MC evidenciava em suas rimas
como as suas vivências – apesar de parecidas – eram marcadas por acon-
tecimentos diferentes por conta de sua raça. Ele fazia as rimas de forma
bem enfática, claramente incomodado pelo fato do MC que era branco e
não reconhecia o privilégio de – mesmo morando na periferia – não ter
que passar pelo que jovens negros passam.

Já a temática de gênero esteve presente em duas batalhas – ambas entre


um homem e uma mulher. Primeiramente era perceptível que a Batalha
do Jambera era majoritariamente masculina – tanto em público quan-
to em MCs participando. Sendo assim, quando os MCs homens faziam
suas rimas, eles faziam rimas de cunho misógino apelando para aspec-
tos da aparência das MCs rivais. O interessante foi uma MC – que es-
tava estreando na batalha – que utilizou as rimas do rival para enfren-
tar suas rimas e o venceu. No final dessa batalha em questão, parte do
público ficou zoando o MC, pois ele havia perdido para uma mulher (na
batalha anterior entre um MC e uma MC a menina não havia ganhado).
A MC vencedora nesse momento pegou o microfone e falou com a plateia
para ter respeito com as meninas fazendo rap, pois perder pra mulher
não significava que o MC era ruim. (Diário de Campo, registrado pelo
pesquisador Matheus, no dia 09 de dezembro de 2018)

Embora o entrevistado Alisson, participante do coletivo organizador


das primeiras batalhas de rimas que ocorrem em Porto Velho, no Parque da
Cidade, a partir de 2015, tenha afirmado que não faz e tampouco goste de
política, possivelmente se referindo à especificidade da política institucional
partidária, entendemos que as batalhas mobilizam temas políticos, relativos
às relações e instituições sociais. É o que depreendemos da consciência e da

298
O uso coletivo de espaços citadinos: lugares de eloquência popular em Porto Velho-RO

vivência pessoal apresentada no diálogo de embate e crítica com outro MC.


Além disso, trata-se de jovens pobres de periferia urbana, majoritariamente
negros (pretos e pardos) lutando por espaços de expressão e existência na
cidade.
Durante a observação da batalha e dos cartazes do lambe-lambe, a
vivência de preconceitos ficou evidenciada também nos conteúdos das letras
de Rap e na análise crítica dos marcadores sociais de classe social, raça/etnia
e gênero. Tais vivências estéticas, como concebe Vigotski (2001a, 2001b),
mobilizam o sentir e o pensar de artistas e apreciadores.
Quanto às formas da expressão artística e de usos da cidade como palco
ou tela, ficou evidente a luta de ambos os coletivos pelo livre exercício de
suas atividades nas ruas, parques e paredes da cidade. No caso do lam-
be-lambe, a colagem de cartazes, já produzidos e impressos previamente,
precisa ser rápida e ágil para evitar coerções e proibições por agentes de
segurança pública. Além disso, as colagens geralmente sofrem interferência
e/ou vandalismo por parte dos passantes ou do poder público, tornando-se
mais efêmeras. Em uma tentativa de manter as colagens por mais tempo,
o coletivo, em sua mais recente ação, ocorrida no ano 2018, optou por
uma parede do campus da Fundação Universidade Federal de Rondônia
(UNIR): o mural foi completamente retirado e apagado pela pintura da
parede ainda no final do mesmo ano.
As batalhas de rimas, por sua vez, foram realizadas ao longo de todo
o ano de 2015, até meados de 2016, envolvendo uma grande audiência
jovem, que, segundo Alisson, chegou a alcançar 1.000 pessoas em algumas
ocasiões. Tudo foi realizado sem qualquer apoio financeiro da iniciativa
pública ou privada, com equipamentos pessoais, emprestados ou alugados
com dinheiro próprio dos organizadores.

E aí a gente foi fazendo, pegamos esse balde de água fria do cara [coor-
denador do parque] falando que não queria mais nada lá. A gente tentou
brigar com o cara, tentou ir lá na FunCultural [Fundação de Apoio à Cul-
tura], tentamos ir no governo conseguir autorização e nada, entendeu?
Porque muitas das vezes é alguém lá de dentro que te ajuda, e como a gente
não tinha ninguém lá dentro pra ajudar a gente. (Alisson)

299
Relações pessoa-ambiente na América Latina

Posteriormente, no ano de 2017, as batalhas foram retomadas por


outros grupos e em outros locais da cidade, contando por vezes com algum
apoio, mas majoritariamente sem ajuda ou autorização oficial, a despeito
do grande interesse que despertam entre os jovens, o que deveria ser objeto
de incentivo pelo poder público municipal.
Segundo Lefebvre (2001), as cidades são planejadas de uma perspectiva
capitalista, mercadológica e industrial. Isso contribui para que a arte, seja a visual,
corporal ou sonora, tal como apontam Furtado e Zanella (2007), esteja restrita
a espaços privados, geralmente em museus e teatros. Logo, as manifestações
artísticas em locais públicos, principalmente as que denunciam o cotidiano da
periferia e as dinâmicas de desigualdade da cidade, são vistas com menosprezo.
No entanto, é nesses espaços de exclusão e de inviabilização de narra-
tivas periféricas que os artistas decidem fazer suas batalhas no cotidiano da
cidade. Trata-se de reXistência: de resistir para existir, tal como conceituam
Zanella, Levitan, Almeida e Furtado (2012), ou seja, a inscrição dos corpos
dessas pessoas na cidade é a exposição de realidades/identidades negligen-
ciadas que parte da população e especialmente o poder público se recusam
a enxergar. Com esta breve análise procuramos evidenciar a relevância de
tais espaços de expressão, fruição e participação na cidade de Porto Velho.
Para ampliar a discussão, passemos à análise de dois outros coletivos.

Espaços de informação e cuidado com as mulheres e o lugar

Uma forma distinta de ocupação dos espaços públicos é a utilizada


pelo Filhas do Boto Nunca Mais, que atua no combate à violência contra
mulheres e ao abuso sexual infantil. Suas ações são divulgadas publicamente
nas redes sociais e geralmente ocorrem em espaços públicos instituciona-
lizados, como escolas, bibliotecas e hospitais, sendo dirigidas a públicos
específicos, como crianças e mulheres. Espaços públicos abertos, como
praças e parques, não aparecem como foco de intervenção, apesar de serem
utilizados algumas vezes para debates.
As reuniões do Filhas do Boto Nunca Mais ocorrem em um espaço
privado que, embora não esteja completamente estruturado, serve como a

300
O uso coletivo de espaços citadinos: lugares de eloquência popular em Porto Velho-RO

sede da associação. O coletivo é formado por 17 mulheres, graduadas (ou


graduandas) em diversas áreas do conhecimento, como psicologia, direito,
pedagogia etc., as quais procuram prestar atendimento psicossocial a crian-
ças vítimas de abuso sexual e a mulheres vítimas de violência doméstica
no âmbito psicossocial. No momento atual do coletivo, suas ações e seu
formato passam por uma transição, configurando-a como uma associação
legalmente constituída. Diante das demandas surgidas nas intervenções,
as ações, inicialmente centradas em palestras, debates e rodas de conversa
para a prevenção da violência, estão sendo reestruturadas para prestar um
atendimento específico às mulheres vítimas de violência. O novo formato
de associação permitirá ao grupo atuar mais efetivamente na rede de pro-
teção às mulheres, inclusive captando recursos públicos e privados para o
desenvolvimento da proposta. Rafaela, integrante do Filhas do Boto Nunca
Mais, explica essa transição.

A gente vai para comunidade, faz intervenção sobre vários tipos de


temas: violência contra a mulher, depressão e suicídio, a questão de
afeto, autoestima e limites, e por aí vai. Só que, quando a gente tiver
a nossa sede, a gente vai fazer o atendimento prático, que é desde a
questão de ter um profissional do serviço social, um profissional que
vai atender no setor jurídico, então quando a mulher vem vítima de
algum tipo de violência a gente vai fazer todo o atendimento dela na
nossa sede e a gente vai começar a ajudar na prática essas mulheres
que a gente ajuda hoje no social. (Rafaela)

Observamos que, nesse caso, ocorre o processo descrito por Lapassade


(1982) ao se referir à dialética do movimento de burocratização e formaliza-
ção do grupo para uma organização, com regras escritas de funcionamento.
Tal característica também está relacionada aos espaços mais institucionais
ocupados pelo grupo na cidade e à pauta de sua luta, que conta com uma
rede institucionalizada de serviços para a prevenção, a denúncia e o atendi-
mento dos casos, o que envolve aparatos judiciários, de segurança pública,
de assistência social, de saúde e de educação. Possivelmente, a permanência
e a ampliação da circulação por tais espaços demandaram do coletivo o
novo formato

301
Relações pessoa-ambiente na América Latina

De acordo com Scherer-Warren (2002), o associativismo, juntamente


com os movimentos sociais, constitui uma importante forma de partici-
pação política cidadã. Operando nos limites entre a defesa da cidadania
e o assistencialismo, a associação implementada por esse coletivo parece
aproximar-se do que a autora conceitua como ajuda-mútua.
O coletivo composto por mulheres tem como foco principal representar,
informar e atender mulheres e crianças, o que justifica sua busca por espaços
públicos e não governamentais mais fechados ou que garantam algum sigilo. A
rua, como um lugar de passagem, de ir e vir, de pressa para se chegar em outro
lugar, ou as praças e os parques, do esporte e do lazer, parecem mais limitados
para tais ações. Rafaela destaca que o Filhas do Boto Nunca Mais, ao cuidar
das mulheres de Porto Velho e de Rondônia, cuida também do próprio lugar.

A minha questão é: me formar aqui, trabalhar na minha área aqui, para


mudar a realidade daqui. Então, assim, eu acho que as pessoas que têm
esse pensamento, também dentro da associação, que a maioria tem esse
pensamento, muitas delas chegaram por ciclos migratórios, por questão
de empresas, por questão de ensino, então, assim, elas vieram e chegaram
aqui, e formaram o lugarzinho delas, conseguiram conquistar o lugarzinho
delas, então elas agradecem muito a oportunidade de ter chegado aqui e
não ter sido vítima de xenofobia. Então, assim, dentro da nossa associação
o nosso vínculo com o estado de Rondônia é assim: é como se fosse digamos
que igual ao afeto, o afeto que a gente tem de cuidar, de cuidar da imagem,
de cuidar do nosso lugar e principalmente cuidar das nossas mulheres, não
tem como medir isso porque é muito lindo de se falar. Então, assim, se você
perguntar de qualquer mana3 [integrante] dentro da associação, elas fa-
lam da questão da importância do lugar que a gente vive, da importância
de cuidarmos daqui, de cuidarmos das nossas mulheres. (Rafaela)

Essa fala demonstra que a maioria das integrantes da associação é mi-


grante, assim como parte da população da cidade e do estado tem origem
nos diferentes ciclos de exploração da Amazônia. O sentimento de acolhida e
de pertencimento ao lugar as faz atuar e lutar por mudanças. Considerando
a condição de desigualdade e violência de gênero prevalente em todo o país

3  Gíria muito utilizada no Norte do país como vocativo informal para mulheres.

302
O uso coletivo de espaços citadinos: lugares de eloquência popular em Porto Velho-RO

(conforme dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Fórum


Brasileiro de Segurança Pública, 2019), luta-se por educar, por informar
e por acolher outras mulheres do lugar em situação de opressão, coerção
e vulnerabilidade social, física e psíquica.

A mobilização em comunidades ribeirinhas e bairros


periféricos pelo direito à cidade

O Coletivo Popular Direito à Cidade promove ações que se expan-


dem de espaços públicos a comunitários. Sua pauta principal, como o
nome indica, envolve debates e ações sobre a cidade, seu uso e o direito a
uma cidade acessível, segura, com lazer e com identidade amazônica. Os
encontros do grupo são realizados em locais privados porque os membros
do Coletivo sentem-se ameaçados para se reunir em locais públicos em
razão da onda crescente de violência e da tentativa de criminalização dos
movimentos sociais. As ações ocorrem majoritariamente em comunidades
e bairros periféricos, por meio de rodas de conversa com os moradores
locais, nas quais se discutem condições de habitação, a expansão da cidade,
urbanidade, modos de vida na Amazônia etc.

A experiência que a gente teve em Maravilha [comunidade ribeirinha]


foi a experiência que tornou conhecida a ação do coletivo, porque até en-
tão era essa ação nos bairros por meio de rodas de conversa que fomen-
tava esse debate do direito à cidade, mas ali era algo mais concreto, né?
Então já havia uma discussão sendo em realizada em processo via UNIR
[por professores do Departamento de Ciências Sociais] e a comunidade
Maravilha é uma comunidade que esteve e está nessa visão de expan-
são urbana e é uma área que é uma área tradicional, uma comunidade
ribeirinha e a expansão urbana ela tende a mudar a configuração da co-
munidade, quer dizer, a comunidade perde sua essência cultural... Então
foi uma experiência bastante interessante... Como o Emanuel falou, nós
íamos toda as semanas nos reunir com a comunidade. Foi assim... Final
de 2016 até meados de 2017 realizando esse acompanhamento, então a
gente ia, dialogava com eles, debatia e o cume de tudo foi uma audiência
que promovemos em parceria com a Universidade que foi uma audiência
popular. Popular porque a gente queria que o povo falasse e não o poder
público. (Emanuel)

303
Relações pessoa-ambiente na América Latina

Ao longo do ano de 2018, o Coletivo participou diretamente da


elaboração do Plano Diretor Municipal e das reuniões com moradores de
várias regiões da cidade, identificando demandas relacionadas à segurança
das mulheres, às comunidades e aos povos tradicionais, aos espaços de lazer
para crianças e idosos, à moradia popular em locais acessíveis, à melhoria
no transporte público e no saneamento básico, ao uso social de terrenos e
prédios subutilizados ou não utilizados, entre outras.
O tema do uso público e privado da cidade foi abordado de forma
enfática na entrevista, pois são estes poderes que causam grande tensão
no cotidiano da cidade. A construção, a utilização e a acessibilidade dos
espaços públicos estão ligadas ao uso comercial da cidade, à mercanti-
lização do urbano e das políticas, que marginalizam a população pobre
e adentram o espaço das populações ribeirinhas próximas à cidade. Na
área que compreende a Avenida Rio Madeira, a Avenida Rio de Janeiro,
a Avenida Guaporé e o Rio Madeira, há 1.000.000 m2 de vazios urba-
nos, ou seja, de construções e terrenos que não cumprem o uso social.
Esses espaços seriam ideais para a construção de moradias populares, de
espaços de lazer, de creches municipais; no entanto, não é de interesse
do poder público trazer o pobre para o centro da cidade. Porto Velho se
encontra em um processo crescente de expansão periférica, de forma que
os conjuntos habitacionais populares têm sido construídos em locais de
difícil acesso, aos quais o transporte público não chega e, se chega, é de
forma incipiente. Até os espaços que dão acesso aos pontos históricos
porto-velhenses têm sido privatizados, como é o caso dos mirantes à
beira do Rio Madeira.

Esses questionamentos desses espaços subutilizados num perímetro onde


estão grande parte dos equipamentos públicos, porque enquanto não se
pensa em utilizar para a população esses espaços eles atendem aos inte-
resses dos empresários e imobiliárias e constroem habitações de interesse
popular longe do centro, como se criasse uma divisão e coloca os pobres pra
lá. Eu sei que aqui é um espaço desocupado, mas é um lugar onde não vai
ter pobre. (Valdirene)

Uma espécie de apartheid urbano. (Emanuel)

304
O uso coletivo de espaços citadinos: lugares de eloquência popular em Porto Velho-RO

A utilização do espaço público como moeda de troca, já discutida


por Lefebvre (2001), é retomada por Trindade (2012), que afirma que
o processo histórico que constituiu muitas cidades brasileiras com base
na especulação mobiliária fez com que os espaços centrais se tornassem
inacessíveis às pessoas de classes sociais baixas. Assim, obrigou-as a se
retirar para as margens da cidade, muitas vezes sem segurança e causando
degradação ambiental:

Grande parte das moradias informais da população pobre é edifica-


da em beiras de córregos, margens de mananciais de abastecimento
público e encostas de morros, contribuindo para a ocorrência de
desastres que ceifam centenas ou até milhares de vidas periodica-
mente. (Trindade, 2012, p. 149)

Tal reflexão é importante, pois Porto Velho é a capital de um estado


localizado na Amazônia e todo o seu ecossistema tem sido progressivamente
deteriorado em nome do “desenvolvimento”, que destrói a mata e a beira
dos rios e desloca para longe a população que ali vive e sobrevive.
Todas essas pautas foram apresentadas como demandas para o Plano
Diretor Municipal por meio da atuação do Coletivo Popular Direito à Cidade
no Conselho Municipal da Cidade (CONCIDADE). No entanto, os entre-
vistados ainda sentem dificuldade para mobilizar a população, garantindo
que essas propostas do Plano Diretor sejam consolidadas. Eles apontam
que um número reduzido de pessoas da sociedade civil esteve presente nos
encontros e reuniões realizadas em vários bairros da cidade, fato que também
observamos nas que pudemos acompanhar. Gohn (2011) aponta que, no
Brasil, a participação social em questões institucionais compõe um movimento
contraditório: embora haja mais oportunidade para que a sociedade civil
reivindique suas pautas, participe de eventos, exerça de fato a democracia,
há também a falta de autonomia, de informação e de efetiva participação
nas decisões que afetam as agendas e o orçamento público.
Enfim, podemos destacar que o Coletivo Popular de Direito à Cidade
propõe formas de repensar a cidade, seja configurando espaços de formação

305
Relações pessoa-ambiente na América Latina

política e de discussão coletiva dos problemas relativos à precariedade


das condições de urbanidade e desigual distribuição e uso dos serviços
e bens públicos, seja colocando no centro do debate a privatização dos
espaços e o olhar sobre as populações pobres e tradicionais da Amazônia.
Trata-se de uma educação para a participação sociopolítica popular na
cidade via canais institucionalizados, como o Conselho Municipal da
Cidade e o Plano Diretor.

Considerações provisórias

Porto Velho agrega os fluxos plurais e caóticos de relações humanas na


urbe. Em seus muros, patrimônios, ruas e avenidas, é possível ver a con-
tradição de uma identidade amazônica: ora reafirmada, ora negligenciada.
É possível também ver as contradições da dinâmica de inclusão/exclusão,
cujo resultado é a marginalização da população pobre, mesmo que haja
espaço suficiente para abrigá-la em partes centrais da cidade. Convive-se
rotineiramente com a precariedade, a ausência, a feiura da equivocada
(in)ação, pública.
Ao mesmo tempo, evidencia-se a efervescência de agrupamentos cole-
tivos que colocam sob tensão a ordem estabelecida na cidade, produzindo
sons, imagens e existências que, na rotina cotidiana urbana, não são, ou não
podem ser ditos, olhados, sentidos. São as vozes, os olhares e os corpos da
periferia, dos pobres, das comunidades locais, das mulheres, dos artistas da
Amazônia que buscam, no encontro com o outro na pólis, fortalecerem-se
a si mesmos e aos demais. Pela expressão e resistência buscam existir e com
o outro dialogar e promover espaços de aprendizagens mútuas.
Precisamos destacar que os coletivos não operam isolada ou corpora-
tivamente, mas estabelecem conexão com outros tantos coletivos, que se
articulam em redes mais amplas, interconectadas, de organização e solida-
riedade. Nas ações dos indivíduos coletivamente organizados, encontramos
a esperança da mudança do contexto desgovernado em que vivemos, de
inúmeros retrocessos, em que precisamos novamente lutar pelo que já
havíamos conquistado.

306
O uso coletivo de espaços citadinos: lugares de eloquência popular em Porto Velho-RO

No entanto, historicamente, e mais do que nunca, o medo e a ameaça


às vidas assombram tais encontros e não apenas a existência de alguns seres
humanos, mas de toda nossa humanidade. Nossa capacidade inventiva para
com o outro estar, pensar, expressar, ser e amar, em espaços multifacetados,
mas não desiguais nas cidades, tem se demonstrado ainda mais necessária.
Possivelmente, para existir, precisamos resistir ainda mais.

307
Relações pessoa-ambiente na América Latina

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310
Capítulo IV

El lugar como escenario y


objeto de la lucha social:
La zona cero de la revuelta social en Chile
Héctor Berroeta
Marcelo Rodríguez
Andrés Di Masso Tarditti

Introducción

E n términos generales, el estudio de los movimientos sociales se ha


centrado en el dilema de la explicación de la acción colectiva y su ca-
pacidad de incidencia en las instituciones y en los proyectos democráticos
de la sociedad (Almeida, 2020). En el ámbito internacional se ha concebido
a los movimientos sociales como teoría de la movilización de recursos, en
tanto dinámica de la contienda política (Tarrow, 1997), como plataforma
de acción política en todo el planeta (Tilly & Wood, 2009), como decisión
racional en donde los individuos se agrupan a partir de sus intereses en
mejorar sus vidas (Paramio, 2005) y como paradigma de las identidades de
los nuevos movimientos sociales (Touraine, 2006).
En América Latina el amplio debate sobre movimientos sociales ha
destacado el papel del neoliberalismo y de la acumulación por despojo que
ha intensificado el extractivismo y la conflictividad territorial (Rodríguez,
Scarpacci, & Panez, 2019). Por ello es que se ha venido dando mayor impor-
tancia al tema de la territorialidad, las formas de organización asamblearia,
las nuevas formas de hacer política y su carácter autonomista (Svampa,
2010). Esto ha conducido a caracterizar una nueva gramática de las luchas,
como lucha por la dignidad, la vida y los territorios (Porto-Gonçalves, 2015).
En este marco, los estudios urbanos críticos han puesto su acento
en el análisis de las diversas formas y sujetos que disputan el espacio

311
Relações pessoa-ambiente na América Latina

urbano en el marco de la estructuración de las sociedades neoliberales


contemporáneas. Variadas corrientes han sustentado la idea de que la
apropiación de los espacios urbanos es un tema fundamental, parte del
amplio y profuso debate sobre el derecho a la ciudad (Carrión & Erazo,
2016; Harvey, 2013; Lefebvre, 1973).
Asimismo, los estudios persona-ambiente, que analizan las transacciones
entre los individuos y el entorno natural y construido, no han investiga-
do en profundidad la disputa espacial en la protesta social. La literatura
psicosocial sobre el modo en que se despliega la contestación espacial que
se produce en entorno a lugares urbanos es escasa (Di Masso & Dixon,
2015). Tradicionalmente el modo en que este campo de conocimiento
se ha aproximado a explorar el vínculo entre las personas y los lugares es
del tipo individual, con un fuerte énfasis en dimensiones subjetivas tanto
afectivas como cognitivas, en un tipo de investigación descriptiva, en el
contexto de barrios urbanos y con una concepción positiva del vínculo.
Como bien señala Lewicka (2011) es un tipo de investigación que ha
estado más centrada en describir la experiencia individual con el entorno
que en analizar la producción socioespacial de este.
En consecuencia, este tipo de aproximación clásica, es engañosa,
incompleta e inadecuada para analizar la acción colectiva que disputa polí-
ticamente el espacio público (Tarrow, 2004). Es engañosa porque describe
lo colectivo a partir de la suma de experiencias individuales, es incompleta
porque se centra en la experiencia subjetiva con cierta independencia de los
cambios espaciales, e inadecuada porque no reconoce los repertorios nor-
mativos que se imponen al lugar en la dialéctica dominación-contestación,
poder y resistencia, orden-transgresión que domina el espacio público (Di
Masso, 2009).1 Ensayamos aquí una lectura psicoambiental crítica, desde
la cual planteamos que las experiencias de los lugares están fuertemente
producidas por procesos políticos e ideológicos asociados a las cualidades
de los espacios y a las condiciones sociales, materiales y legales de estos

1  Di Masso, A (2009), Public space in conflict: place meaning as contested interaction and ideological
action. Tesis doctoral no publicada.

312
El lugar como escenario y objeto de la lucha social: La zona cero de la revuelta social en Chile

(Berroeta, Pinto-de-Carvalho, & Castillo‐Sepúlveda, en prensa)2. Por tanto,


asumimos que el modo en que se materializa en el espacio el conflicto entre
ciudadanía y Estado es una disputa entre públicos y contra-públicos en
situación de desigualdad, la sociedad movilizada como poder constituyente
y el Estado y sus instituciones como poder constituido.
En este texto describimos, con el apoyo de fotografías, cómo se mate-
rializa la disputa de la plaza Baquedano, un espacio público emblemático
de la sociedad chilena que fue denominado la zona cero de las recientes
movilizaciones sociales iniciadas en octubre de 2019.
El 18 octubre, en Santiago de Chile, tras el alza en el valor del transporte
público, comenzó un proceso de revuelta social que se extendió rápidamente
a todo el país. Multitudinarias marchas, que tuvieron un registro histórico
de más de 1,2 millones de personas en las calles de la ciudad metropolitana
durante el 26 de octubre. Los ejes centrales que llevaron a estos hechos son
los efectos del neoliberalismo en las diferentes esferas de la vida pública y
privada, la desigualdad económica, social y política (Araujo, 2019), junto
a una profunda deslegitimación de la clase política. La acumulación de un
intenso malestar expresado en irritación, desgaste y percepción compartida
de niveles inaceptables de desigualdad entre las mismas clases sociales de-
sencadenó este movimiento (Araujo, 2019; Matus, 2019).

La plaza Baquedano, un sitio conmemorativo y residual

La Plaza Baquedano, comúnmente conocida como Plaza Italia, fue


construida por iniciativa del intendente Benjamín Vicuña Mackenna,
entre 1872 y 1875, como parte del plan de modernización de la ciudad
de Santiago. Este plan urbano y, como muchos en América Latina, fue
influido por el ideal civilizatorio del urbanismo europeo y el modelo parisino
de Haussmann. El intendente sostenía que tanto los problemas sociales

2  Berroeta, H., Pinto de Carvalho, L., & Castillo‐Sepúlveda, J. (en prensa). Place-subjectivity conti-
nuum after a disaster: inquiring into the production of sense of place as an assemblage. In Christopher
M. Raymond, Daniel Williams, Andres Di Masso, Lynne Manzo and Timo von Wirth.
Changing Senses of Place: Navigating Global Challenges Cambridge University Press, UK

313
Relações pessoa-ambiente na América Latina

y morales de los sectores populares, como las respuestas adecuadas a las


amenazas de enfermedades y patologías, podían cambiarse a partir de las
transformaciones de los espacios de la ciudad. Su aspiración era construir
“el París de América” (Museo Nacional, 2020).
La plaza es parte de una rotonda que conecta vías estructurantes en la
ciudad de Santiago. Simbólicamente, la plaza divide la ciudad de Santiago
en dos. Al poniente se encuentra el sector acomodado y al oriente las clases
populares de la ciudad. En su centro se emplaza el monumento al general
Baquedano, que representa la victoria de Chile contra Bolivia y Perú en la
guerra del pacífico, que tuvo lugar entre los años 1879 y 1884.
La plaza y lugares aledaños, desde 1990, se ha venido consolidan-
do como escenario de manifestaciones sociales diversas, que van desde
celebraciones de triunfos deportivos, elecciones presidenciales, hasta la
concentración multitudinaria que ocurrió el 18 de octubre del 2019 en el
contexto de la revuelta social.

Figura 1. Plaza Baquedano. Tomado de Tripadvisor (2018).

314
El lugar como escenario y objeto de la lucha social: La zona cero de la revuelta social en Chile

Como se observa en el momento en que la imagen es capturada (Figura


1), la plaza Baquedano está emplazada en una rotonda que soporta elementos
escultóricos. El monumento ecuestre simboliza la reafirmación de valores
patrios y la memoria de la victoria del Estado-nacional en la guerra del pa-
cífico. La plaza, al estar en una circunvalación de una autopista de alto flujo
vehicular, no es un espacio diseñado para la sociabilidad o el encuentro. Es
una estructura propia de un urbanismo funcional al servicio de la conexión
urbana. Su simbología es prescriptiva, en donde la relación social con el lugar
no construye singularidad. Lo que se crea es un mensaje, un texto del poder
estatal en un lugar de recorrido por donde transitan individualidades. En este
sentido, podemos entender la plaza como un “no lugar” (Augé, 1993), resultante
de las políticas de representación que operan sobre el espacio urbano y que,
como señalan Barker y Galasinski (2001) definen los contornos normativos
de su significado, legitimando las acciones materiales que se dan en el lugar.
Aquí hay una movilización simbólica y material que instituye el
espacio como un escenario para la contemplación del relato hegemónico
del Estado-nación y del orden urbano. El Estado genera un espacio del
anonimato, revestido de limpios jardines que expulsan las prácticas de
apropiación espacial. En definitiva, la plaza Baquedano es la expresión
de un conjunto de discursos y prácticas que instituyen las condiciones
geográficas del orden social (Di Masso, Berroeta, & Vidal, 2017).

El Lugar como escenario del conflicto: Los Cuerpos significan el espacio

En la revuelta social de octubre, la plaza pasa a ser un escenario de


conflicto (Burte, 2003), pues se constituye en el epicentro de un proceso
de lucha social que es el más intenso, amplio y profundo que ha tenido
Chile en toda su historia. Se abre un ciclo de movilizaciones que marca
un nuevo punto de inflexión, al desnudar las principales contradicciones
del modelo neoliberal que se expresan en la crisis de legitimidad y con-
fianza en el Estado y en la clase política (Garcés, 2019; Salazar, 2019), en
el malestar social generalizado por el predominio de la lógica de mercado
y mercantilización de derechos sociales (Mayol, 2012), la desigualdad

315
Relações pessoa-ambiente na América Latina

social creciente (Matus, 2019), la democracia restringida (Grez, 2019) y


la precarización general de la vida y del trabajo de las mayorías sociales.

Figura 2. Monumento del General Baquedano en Plaza Baquedano. Tomado de Radio


Latin-Amerika (2019).

316
El lugar como escenario y objeto de la lucha social: La zona cero de la revuelta social en Chile

El 25 de octubre en la Plaza Italia y sus alrededores se concentran


1.200.000 personas para manifestar su malestar y reivindicar sus demandas
(Figura 2). La plaza pasa a ser lo que Burte (2003) denomina un escenario
de conflicto, un auténtico espacio público diría Don Mitchell (2016), en
donde los cuerpos emplazados coreografían un nuevo texto que denuncia la
ideología neoliberal e interpela al Estado. La ocupación masiva de la plaza
subvierte el orden normativo del lugar, el control espacial es disputado a
las fuerzas de orden policial, la voluntad popular se impone y rompe con
todas las formas de uso previamente establecidas. Así, el espacio público
es liberado de las demandas de seguridad y de los imperativos culturales
de orden y decoro morales (Dixon, Levine & McAuley, 2006). La plaza
se transforma en una plataforma de manifestación legitimada por el sentir
popular. La consigna ¡Chile despertó! representa esa conciencia popular
de visibilización. En este escenario se disloca la primacía del extraño, que
Jane Jacobs (1961) y Lyn Lofland (1998) asocian al espacio público. Por
el contrario, el despertar cargado de conflictividad y de acción colectiva,
activa el reconocimiento mutuo.
En la resistencia se actualiza el sujeto subalterno que construye una
ética basada en la relación con su comunidad oprimida. En la zona cero
no se admiten banderas de partidos políticos tradicionales. En el lugar
se enarbolan otras banderas, como la del pueblo mapuche, de equipos
de fútbol, de movimientos feministas, movimientos urbano-populares,
entre otras. De esta forma, al son de la música, performances artísticas,
cánticos, gritos, movimientos corporales, miradas, encuentros inter-
generacionales; se va construyendo la apropiación espacial. La plaza
adquiere el sentido antropológico de “lugar”, como diría Gustafson
(2001), ya que la experiencia en el lugar con otros significa el espacio,
en donde se comparte un conjunto de emociones contenidas, como el
miedo, la inseguridad, la rabia, la incertidumbre y también la esperanza
(Mac-Clure, et. al, 2020).
En suma, lo que significa social y psicológicamente un espacio requiere
implicar los cuerpos de formas particulares en esa zona, ya que los estos
ejecutan acciones congruentes con el espacio que es ocupado a partir de

317
Relações pessoa-ambiente na América Latina

un repertorio de prácticas (contra)normativas que producen el sentido y


la forma misma de ese lugar concreto (Dixon & Durrheim, 2004).

El Lugar como objeto del conflicto: La protesta se indexa en el lugar

Figura 3. Monumento General Baquedano renombrado como Plaza de la Dignidad.


Tomado de Soy Chile y Plaza de la Dignidad

La plaza pasa también a ser objeto de disputa (Burte, 2003): es transformada


materialmente a partir de los designios y deseos de sus propios participantes
(Figura 3), sin prerrogativas institucionales ni guiones normativos previos.
Esta característica es muy cercana a la concepción materialista del “derecho a
la ciudad” desarrollada por Henri Lefebvre (1968) y reelaborada por Mitchell
(1995, 2003), a propósito de las luchas por el espacio público. El control terri-
torial del espacio es una forma de instituir el propio espacio (Di Masso, Dixon,

318
El lugar como escenario y objeto de la lucha social: La zona cero de la revuelta social en Chile

& Durrheim, 2014), es decir, realizando transformaciones físicas materiales


que cambian el espacio se generan nuevos discursos sobre él. En este proceso
juega un papel importante la geo-indexicalidad de lugar (Di Masso & Dixon,
2015), esto es el sentido que adquieren los signos (incluyendo las palabras)
dependiendo del lugar concreto en que están emplazados.
Es así como cada espacio del monumento es aprovechado para subrayar
mensajes provenientes de la diversidad de formas en que se imprime el
discurso subalterno: ¡Fuera Piñera!, el gobierno asesino mata, No + AFP
(administradora de fondos de pensiones), contra la dictadura, no al lucro,
ACAB (todos los policías son bastardos). El mensaje contra la violencia
policial tiene un lugar protagónico, ya que el mismo día 18 de octubre
Piñera declara Estado de emergencia en el país. De acuerdo con el informe,
entregado el 18 de febrero de 2020, del Instituto Nacional de Derechos
Humanos-INDH, las consecuencias de la violencia policial fueron: 3.765
personas heridas, 2.122 con impactos de bala, 271 con disparos de bombas
lacrimógenas, 445 con daños y pérdidas oculares y 34 personas muertas.
La conflictividad en la disputa estuvo cargada de violaciones a los derechos
humanos. Por tanto, los mensajes en diversos soportes ubicados en torno
a la plaza adquieren, por el lugar en que están emplazados (zona cero),
una visibilidad mediática y un significado político contundente que no
se logra en otro lugar: “Nos quieren sacar los ojos porque saben que los
abrimos”, “Chile despertó y le dispararon en los ojos”, “el pueblo sale con
cacerolas, el gobierno responde con balas”.
El nuevo marco discursivo que produce la revuelta social, hace apa-
recer, como lógicas, ciertas intervenciones materiales que cambian el
espacio, buscando que este cambio genere nuevos discursos (Di Masso,
Berroeta, & Vidal, 2017). Es así como se renombra el lugar como Plaza
de la Dignidad. Desde una posición subalternizada, se busca construir un
relato de legitimación que proyecta tanto el profundo cuestionamiento a la
sociedad desigual del Chile actual, como la valoración del sujeto colectivo
que se moviliza y disputa el orden hegemónico. El nombre Plaza Dignidad
comienza a generalizarse en la ciudad, es reconocido por la sociedad y
legitimado por los medios de comunicación masiva.

319
Relações pessoa-ambiente na América Latina

El lugar como precipitador del conflicto: No es cualquier cuerpo, no es


cualquier lugar

Figura 4. Presidente Piñera sobre Plaza Dignidad y Monumento General Baquedano


pintado. Tomado de El Universal y El desconcierto (2020)

Luego de un intenso, creativo, creciente y violento proceso de apro-


piación política de la plaza, la propagación acelerada del coronavirus
confinó a la población en sus casas. La prohibición de manifestarse en el
espacio público por parte del gobierno, no se hizo esperar. En este contexto
es que se producen dos acciones desde la autoridad gubernamental que
ilustran cómo la plaza se transforma en un espacio público precipitador
de conflictos (Burte, 2003). El valor simbólico de la memoria colectiva
condensa significados y valores de la lucha social ocurrida en el espacio,
que pasan a formar parte de la identidad del lugar para un sector de la
población identificados con esta lucha y que demandan su reconocimiento.
Una primera acción ocurre el 3 de abril del año 2020, cuando el presi-
dente de la República Sebastián Piñera, en medio de la cuarentena, decide
descender de su vehículo, acompañado de su comitiva de seguridad, para
tomarse una fotografía a los pies del monumento central de la plaza (Figura
4). Piñera explicaría que este hecho se trataría de una decisión espontanea, al
pasar a saludar a carabineros y militares que custodiaban la plaza, y lamenta
“si esta acción pudo malinterpretarse”. La ciudadanía reacciona escéptica y
desmiente con imágenes en redes sociales la justificación del presidente. Esta

320
El lugar como escenario y objeto de la lucha social: La zona cero de la revuelta social en Chile

acción es entendida como un desafío y una burla al movimiento social. Hay


una producción performática en este acto, se conjugan tiempo, espacio y
cuerpo para producir un texto no lingüístico que instituye un significado.
En este momento, ese cuerpo, haciendo eso, en ese lugar, nos provoca.
Una segunda acción gubernamental, que se realiza en el contexto de
las restricciones de movilidad producto de la crisis sanitaria global, es la
del gobierno local que aprovecha el momento para intervenir la plaza bor-
rando todo vestigio de las movilizaciones. El 19 de abril de 2020, la plaza
es cerrada, pintada y custodiada, el monumento vuelve a su gris original.
La autoridad argumenta que se busca resguardar el interés general de la
población y recomponer el orden público.
La plaza, en tanto objeto de conflicto, es reocupada por el gobierno
como un lugar que requiere ser readecuado a su norma, a partir de lo cual se
decide controlarlo, higienizarlo, limpiarlo, para retomar su uso bajo el sentido
de lo admisible y lo aceptable. Henri Lefebvre (2013) nos ayuda a clarificar
esto, en el sentido de que, cuando un espacio social es copado de lo político,
exige, por parte del orden institucional, acciones de ocupación en términos de
despolitización. Es la fuerza de contención social, en el orden de los símbolos.
Retomando a Augé (1993), vemos la necesidad de resituar la funcionalidad de
ese espacio, como un espacio del anonimato, un no lugar, esto es: la negación
de la memoria colectiva y de la historicidad reciente de la lucha social.
Como ya señalamos (Di Masso, Berroeta, & Vidal, 2017), la tipología
de Burte (2003) nos resulta útil para comprender que el espacio público es
un lugar cuyo control y usos territoriales suelen expresar relaciones sociales
conflictivas, convirtiendo el espacio tanto en un recurso para ejercer poder
y ofrecer resistencia, como en una plataforma necesaria para que ese poder
y esa resistencia sean públicamente visibles.

A modo de conclusión: un par de reflexiones sobre los


estudios persona/ambiente

La revuelta social del octubre chileno marca un indiscutible hito en


la historia de las luchas sociales en Chile que abrió la posibilidad cierta de

321
Relações pessoa-ambiente na América Latina

un plebiscito para aprobar, o no, un proceso constituyente. De aprobarse,


sería la primera vez que se construiría un nuevo contrato social de convi-
vencia con vocación democrática. Sin duda esto es el resultado de la lucha,
que tuvo elementos novedosos, como lo fue: su alcance local-nacional, su
intensidad, diversidad y duración, la capacidad de articulación de la lucha
y la identificación más clara del enemigo común: el modelo neoliberal.
El análisis que aquí hemos hecho de la plaza la dignidad, un espacio
público en disputa, permite ilustrar y confirmar que si bien los espacios
son fundamentales en la experiencia psicológica y las relaciones sociales,
estas experiencias y relaciones están articuladas y posibilitadas por lógicas
sociales no armónicas. Por tanto, los vínculos con el espacio no son neutrales,
tienen intensas implicaciones políticas e ideológicas, que tradicionalmente
han sido ignoradas por la Psicología Ambiental hegemónica.
Esta Psicología Ambiental no sitúa históricamente los procesos de
vinculación con los lugares. Tampoco considera su dimensión colectiva
ni el rol que juega la praxis material en la vinculación psicológica con los
espacios, los procesos de conflicto estructurales en que se inscriben muchos
vínculos con los lugares y que son el origen de muchas formas de experi-
mentar el lugar, el carácter históricamente situado de nuestras formas de
interpretar y sentir los lugares y las implicaciones políticas e ideológicas de
las prácticas espaciales y sus consecuentes experiencias subjetivas asociadas
al modo en que se implementa el orden social.
Todo ello ha contribuido a desarrollar una Psicología Ambiental
socialmente conservadora y poco comprometida con la transformación
social, en la medida que no se proponen análisis críticos que cuestionen el
modo en que las formas de entender, sentir y practicar el espacio legitiman
determinadas relaciones de opresión, ni se proponen estrategias de acción
que desarrollen procesos de liberación mediante la intervención espacial.
En este sentido, como ha sido evidente en el análisis que hacemos
de la Plaza de la Dignidad, es fundamental incorporar el espacio físico,
tangible y el papel del movimiento de los cuerpos y de los objetos en el
espacio en el análisis de las relaciones persona-entorno. Esto demanda
explorar nuevos enfoques teóricos y perspectivas analíticas que amplíen

322
El lugar como escenario y objeto de la lucha social: La zona cero de la revuelta social en Chile

y problematicen las aproximaciones fenomenológicas, sociocognitivas y


discursivas que dominan este tipo de estudios.
Como una de las múltiples alternativas posibles, recientemente hemos
propuesto un enfoque semiótico-material, desde el cual sugerimos repen-
sar el sentido de lugar como un ensamblaje, es decir, como un conjunto
entrelazado de prácticas afectivas, discursivas, materiales, corporales e
institucionales y sus rearticulaciones dinámicas y situadas (Berroeta, Pinto
de Carvalho & Castillo‐Sepúlveda, en prensa).

323
Relações pessoa-ambiente na América Latina

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326
Capítulo V

Coletivo Sarau do Binho:


poesia, articulação territorial e direito à cidade
Tatiana Minchoni
Katia Maheirie
Robinson de Oliveira Padial
Suzi de Aguiar Soares

Campo Limpo Taboão


Quando nasci tinha seis anos.
No lugar em que nasci,
Sonhava que era tudo nosso.
Tinha os campinhos e os terrenos baldios.
Era meu território.
Já foi interior,
Hoje periferia com as casas cruas.
As vacas com tetas gruas
Não existem mais.
A cerca virou muro. Óbvio.
A cidade cresce.
O muro cresce.
Vieram os prédios, as delegacias, os puteiros
E as Casas Bahia.
Também cresci,
Fiquei grande.
Já não caibo dentro de mim
E de tão solitário
Sou meu próprio vizinho.
E de tão solitário
Sou meu próprio vizinho

O poema do Binho, intitulado “Campo Limpo Taboão”, anuncia algu-


mas pistas possíveis para compreensão das transformações das cidades,

327
Relações pessoa-ambiente na América Latina

especialmente do território periférico em que vive e constitui, o distrito


do Campo Limpo na zona sul da cidade de São Paulo/SP. Os supostos
avanços advindos do desenvolvimento desenfreado como cidade-mercadoria
(Harvey, 2012) desconsideram em grande parte a vida que moveu/move a
cidade e erigiu as bases de seu próprio desenvolvimento. Sua arquitetura,
velocidade e hipermercantilização do solo urbano não foram elaboradas
a partir das necessidades reais das pessoas viventes no cotidiano citadino,
e sim em prol de um desenvolvimento econômico industrial que atraiu
milhões de pessoas de distintos lugares para a capital paulista.
Em relação ao distrito do Campo Limpo, o crescimento vertiginoso
da população na área se deu principalmente na década de 1970, momento
em que indústrias nacionais e estrangeiras se instalaram em diversos espaços
da Grande São Paulo, inclusive na região de Santo Amaro situada na zona
sul, que viveu “um processo acelerado de mudança urbana e social, algo
que os especialistas chamam de modernização produtiva” (Silva, 2018, p.
114). É também nessa época que São Paulo passou a ser considerada por
pessoas dos muitos rincões desse Brasil como possibilidade de melhoria de
vida: “atraídos por supostas oportunidades de trabalho e fugindo às regras
não tão residuais da escravidão que imperavam no campo, muita gente
correu pra cá” (Silva, 2018, p. 115).
A maior parte dessas pessoas migrantes (vindas de Alagoas, Ceará,
Minas Gerais, Mato Grosso, Sergipe, Goiás, Bahia, Paraíba, Pernam-
buco etc.) se instalou nas periferias. No Campo Limpo se alojaram
em loteamentos irregulares, que eram antes chácaras e fazendas, em
sua maioria de imigrantes, os quais foram parte do projeto político de
embranquecimento da população (Schucman, 2014). De acordo com
Marco Pézão, jornalista e poeta histórico dos saraus nas periferias, “a
colonização veio e cobriu tudo e começa a vender, tudo grilado. Não
foram bairros projetados, não houve urbanização consciente daquilo
que deve ser feito, precisa de ônibus, escola” (RogersOQ, 2018). Esse
relato de Marco Pézão, produzido para o documentário Meu Campo
Limpo, de 2012, converge com de outras pessoas antigas do bairro,
que viram o verdejante desaparecer e, simultaneamente, as formas de

328
Coletivo Sarau do Binho: poesia, articulação territorial e direito à cidade

viver se modificarem, tal como relata Binho (RogersOQ, 2018) no


documentário: “tem um sofrimento nisso, é quase uma invasão, você
ver chegar tantas coisas e isso não necessariamente reflete em melhorias.
Então, uma parte é nostalgia desses espaços e, ao mesmo tempo, muita
gente confinada num lugar só”.

Figura 1: Distritos mais populosos de acordo com o Mapa de Exclusão/Inclusão Social


da cidade de São Paulo (Sposati et al., 2013).

Esse confinamento que Binho mencionou está relacionado à quantidade


de pessoas que vivem/habitam o território, o que pode ser visualizado na
Figura 1, que indica os distritos mais populosos do município, com seus
respectivos habitantes indicados em número e porcentagem, conforme
o Mapa da Exclusão/Inclusão Social da cidade de São Paulo (Sposati et

329
Relações pessoa-ambiente na América Latina

al., 2013). Em destaque estão os distritos de Capão Redondo e Campo


Limpo (da Subprefeitura do Campo Limpo), e Jardim Ângela e Jardim
São Luís (ambos da Subprefeitura de M’Boi Mirim), lugares em que o
Coletivo Sarau do Binho realiza/realizou atividades. Nessas localidades, a
concentração de pessoas autodeclaradas negras (que inclui pretas e pardas)
é 49,1% (Subprefeitura do Campo Limpo) e 56% (Subprefeitura de M’Boi
Mirim). A renda salarial mensal domiciliar nessas mesmas áreas é, em sua
maioria, de até 3 salários mínimos.
Há que se considerar que a formação das periferias nos grandes centros
urbanos guarda relação direta com o desenvolvimento sociometabólico do
capital. Se, por um lado, as cidades funcionam como motores do capita-
lismo por concentrar a população, as atividades, os meios de reprodução
do capital, da força de trabalho e do consumo, por outro lado, essas são
determinadas por esse próprio funcionamento. Isso significa que a produção
social do espaço e, consequentemente, a qualidade de vida das pessoas,
obedecem à lógica da mercadoria, ou seja, qualquer pedaço de terra da
cidade é uma oportunidade de negócio, e a política urbana se configura
como relação de mercado (Maricato, 2015; Rolnik, 2015).
Uma das consequências disso é a segregação socioespacial e racial
que, em uma de suas primeiras manifestações aparece como o binômio
centro-periferia, em que populações pobres e predominantemente ne-
gras são expulsas/deslocadas das áreas centrais, onde se concentram os
excedentes, os serviços, os equipamentos de cultura e afins, ou seja, a
parte mais rica da cidade.
Em contraste, as periferias são áreas intencionalmente precárias,
onde há alta densidade demográfica e a parca presença do Estado no
que tange a garantir as condições mínimas para as populações locais
viverem e, ao mesmo tempo, uma presença militarizada, repressiva e
criminalizante no trato às mazelas da “questão social”, um conjunto
de problemas políticos, sociais e econômicos oriundos da contradição
entre capital e trabalho, que se expressa na aparência com a pobreza,
a fome, a violência, o desemprego etc. (Netto, 2001). Tais mazelas
ganham contornos específicos em um país erigido sob as bases da co-

330
Coletivo Sarau do Binho: poesia, articulação territorial e direito à cidade

lonização genocida dos povos originários e da escravização de pessoas


afrodescendentes1 (e também de indígenas), que se perpetuam até os
dias de hoje com discursos, práticas e ações racistas, discriminatórias e,
muitas vezes, genocidas.
Assim, o solo urbano hipermercantilizado determina a organização
das cidades, de forma que quem detém mais capital tem mais possi-
bilidades de escolhas, acessos e circulação nos espaços. Sob tal lógica,
os padrões de diferenciação social e separação que organizam o espaço
urbano repetem, via segregação social e espacial, a dialética inclusão/
exclusão (Sawaia, 2009).
Para além do binômio centro-periferia que estruturou a reorganização
da cidade de São Paulo ao final do século XIX e início do século XX, a
segregação socioespacial se atualiza em processos de dominação que es-
tão estreitamente relacionados com a desigual distribuição de vantagens
e desvantagens na produção social do espaço urbano. Em São Paulo, o
quadrante sudoeste foi a região escolhida e construída para a elite branca
se autossegregar, reunindo distritos mais ricos da cidade e onde há maior
concentração de pessoas brancas e pouca presença de pessoas negras na
condição de moradoras (Oliveira, 2016). Precisamente, nas palavras de
Pablo Villaça (2011, p. 13), “essas vantagens e desvantagens dizem respeito
especialmente à manipulação, pela classe dominante, dos tempos gastos
nos deslocamentos espaciais dos habitantes da cidade”, de forma que, ao
concentrarem locais de emprego, diversão, comércio e serviços próximo

1  A escravização foi empreendida nas terras tropicais pelos colonizadores portugueses inicialmente
com indígenas (nossos povos originários), que foram utilizados como mão de obra na construção dos
engenhos de cana de açúcar. Com o início do tráfico transatlântico empreendido também pelos por-
tugueses, iniciou-se um longo período de escravização de pessoas negras no Brasil, o qual durou mais
de 300 anos (1550-1888). O Brasil foi o maior destino do tráfico de pessoas oriundas do continente
africano do mundo, para o qual foram comercializadas aproximadamente cinco milhões de pessoas
negras para serem escravizadas no país, sendo este o último das Américas a abolir a escravização. Houve
muita resistência nesse período, a exemplo da formação de quilombos em diferentes lugares do país e
a Revolta dos Malês na Bahia (Marquese, 2006). Vale salientar que, segundo a historiadora Ana Flávia
Magalhães Pinto (2018), nas últimas décadas de vigência do longo período escravagista, havia uma
presença marcante de pessoas negras livres em São Paulo e no Rio de Janeiro, e algumas delas jogaram
um importante papel nos processos e movimentos históricos pró-abolicionismo.

331
Relações pessoa-ambiente na América Latina

dos locais onde habitam, os mais ricos conseguem minimizar o tempo


gasto com deslocamento.
Ao mesmo tempo, a concentração de empregos nas regiões mais ricas da
cidade impõe a necessidade diária de deslocamento para a maioria das pessoas,
o que gera impacto direto em suas vidas. O tempo é capturado em longos e
demorados trajetos para realização de atividades cotidianas básicas, como ir
ao trabalho/local de estudo. Em média, as pessoas das periferias gastam quase
3 horas nos deslocamentos com transporte público, meio de transporte mais
utilizado pelas pessoas que vivem em tais regiões (Rede Nossa São Paulo &
Ibope Inteligência, 2018), o que também acarreta cansaço e redução de horas
de sono, por exemplo. Além de demorado, o transporte público é caro e insufi-
ciente para atender a quantidade de pessoas que circula diariamente na cidade,
de forma que há uma constante disputa para entrar no metrô/trem em horas
de pico, para conseguir sentar no ônibus, gerando diversos tensionamentos e
conflitos entre as pessoas.
A cidade, no entanto, não se faz apenas pelas determinações socioeco-
nômicas; ela é constituída por e constitutiva dos sujeitos. A cidade habita em
nós. É onde a vida acontece (Flores & Campos, 2007), onde há a constante
reinvenção da existência a partir do encontro com a alteridade. Nesse sentido,
a cidade é

lócus de poder, cujos espaços tornaram-se coerentes e completos à


imagem do próprio homem. Mas também nelas que essas imagens
se estilhaçaram, no contexto de agrupamento de pessoas diferen-
tes – fator de intensificação da complexidade do social – e que se
apresentam umas às outras como estranhas. Todos esses aspectos
da experiência urbana – diferença, complexidade, estranheza, sus-
tentam a resistência à dominação. (Sennett, 2008, p. 24)

É a partir dessas compreensões que miramos o olhar sobre o Sarau do


Binho, compreendendo que o espaço que vivemos define nossa possibilidade
de existência e a produção das condições materiais para a mesma. É pelo
que há disponível no mundo material que inventamos formas de ser e
re-existir. Portanto, como ensina Milton Santos (2013), é necessário olhar

332
Coletivo Sarau do Binho: poesia, articulação territorial e direito à cidade

para o território para compreender onde a vida cotidiana acontece, como o


espaço é apropriado e usado pelas pessoas, fazendo-as pertencerem àquilo
que as pertence.
Se já destacamos anteriormente que o trato do Estado direcionado às
periferias é sobretudo operacionalizado pelo seu braço armado ou por meio
de “políticas pobres para os pobres”, quando miramos para o acesso à cultura
via equipamentos públicos (bibliotecas, teatros, casas de cultura, casas de
show, espaços de exposições), as desigualdades se repetem. E, justamente
pela ínfima presença de equipamentos públicos de lazer e cultura que Suzi
e Binho, moradores do bairro Campo Limpo e construtores desse território
subjetivo desde os tempos de criança, criaram as primeiras ações em torno
da arte nos bares. Suas experiências, como sujeitos que cresceram na peri-
feria, foi de um acesso restrito aos livros, principalmente no que tange às
bibliotecas públicas, sendo muitas vezes necessário atravessar a ponte2 para
ter acesso a alguma delas.
Assim, com a intenção de realizar ações culturais na periferia, criaram
o Sarau do Binho no Bar do Binho, há 16 anos atrás, como um espaço de
encontros para a livre expressão humana por meio da linguagem artística,
em que a poesia tem papel central, mas onde há também apresentações
teatrais, musicais, circenses, de dança, mostras audiovisuais, entre outras.
No Bar do Binho o sarau acontecia todas as segundas-feiras, dia escolhido
“por ser um dia da preguiça, um dia que as pessoas estão com outro... até
organicamente, tão de ressacas, ne? É um dia pra se começar. E pra se
começar bem, ne, pra se começar com poesia” (djextrofe, 2006).
O Sarau do Binho é, então, um espaço auto-organizado, criado por
pessoas do território e destinado às mesmas, que aposta na potência dos
povos das periferias e no desenvolvimento humano mediado pelas artes.
Por meio da apropriação do espaço, Suzi e Binho, criadores do Sarau,
enxergaram possibilidades outras para seus bares, transformando-os em

2  A ponte a que nos referimos é a Ponte João Dias, que separa as periferias da zona sul das regiões
centrais, onde há a concentração de equipamentos públicos e acesso aos bens culturais. A referência a
essa ponte é recorrente nas produções artísticas e no cotidiano da população, fazendo menção a algo que
une e, ao mesmo tempo, separa em expressões como “da ponte pra cá”, “da ponte pra lá”.

333
Relações pessoa-ambiente na América Latina

verdadeiros centros culturais ao realizarem saraus semanalmente, além


de ações outras, como por exemplo shows com artistas do território e
exposição de artes visuais.
Essa proposta de reinvenção do espaço provoca mudanças na forma
de se relacionar entre as pessoas e com o próprio ambiente. Tal reinvenção
foi possível pela apropriação das circunstâncias já existentes, bem como
das possibilidades objetivas e subjetivas das pessoas para então poder trans-
formá-las a partir das próprias necessidades e finalidades. A apropriação
se deu por meio da atividade humana, transformando o espaço para que
pudesse servir mais adequadamente às novas funções que adquiriu ao ser
inserido na realidade social (Duarte, 2013; Marx & Engels, 2009).
Ora, os bares são espaços de sociabilidade bastante comuns em todas as
regiões da cidade, entretanto, nos territórios periféricos geralmente são uma
das poucas opções de entretenimento disponível. Portanto, Suzi e Binho, ao
se apropriarem do bar para reconstruí-lo como um ponto cultural, enxer-
garam possibilidades outras nessa objetivação humana que foram além das
funções sociais que os bares realizavam naquele contexto. Em conjunto viram
potências nesse objeto e agiram sobre o mesmo, efetivando essas possibili-
dades e propiciando funções sociais qualitativamente novas para o espaço e,
ao mesmo tempo, aumentando a experiência subjetiva individual e coletiva.
Nesse sentido, a ação de transformação do bar do Binho em um ponto
de cultura3 a partir da realização do sarau adquire contornos interessantes,
principalmente nesse contexto de escassez de equipamentos culturais. Isso
possibilitou a conversão desse espaço em local de atuação política, com a
discussão de temas pertinentes à realidade do território, como a letalidade
juvenil, o preconceito vivido por pessoas negras e nordestinas, a violência
contra a mulher, questões relativas à moradia, dentre outras (Rodrigues,

3  Os Pontos de Cultura foram criados no âmbito do Política Nacional de Cultura Viva implementada
pelo governo federal, via Ministério da Cultura, a partir do ano de 2005, com o propósito de reconhecer e
apoiar financeiramente atividades culturais já desenvolvidas em distintos lugares do país. Tal apoio também
visava a continuidade da realização de ações e articulações socioculturais entre o ponto de cultura e escolas,
associações de bairro, movimentos territoriais e afins. O Sarau do Binho em articulação com o Movimento
de Moradia do território foi reconhecido como Ponto de Cultura dada a relevância de suas ações no terri-
tório da zona sul da cidade.

334
Coletivo Sarau do Binho: poesia, articulação territorial e direito à cidade

2014; Silva, 2012). O sarau atua, então, como espaço de insubordinação


pelo seu caráter de denúncia, reivindicação, articulação entre agentes cul-
turais, movimentos sociais e demais coletividades. Mas, principalmente,
produz um espaço de experiência de transgressão das hierarquias, de
subversão à imposição das servidões e embaralhamento dos lugares sociais
(Rancière, 2010).
Ainda, foi relevante para o fortalecimento da produção cultural local e
a construção de uma rede de fortalecimento e reconhecimento das pessoas
que fazem diferença onde moram (Duarte, 2016). Isso porque, além do
Sarau do Binho e da Cooperifa, os primeiros saraus nas periferias de São
Paulo, diversos outros saraus emergiram de forma exponencial nas periferias
da cidade ao longo dos últimos vinte anos. Poetas que frequentavam espa-
ços já consolidados, em um processo de reelaboração criativa, articularam
elementos de suas experiências e criaram saraus em outros territórios, cada
qual com sua singularidade, concretizando-se no mundo e passando a ser
palco, também, de múltiplas experiências (Vigotski, 2009).
É o caso dos inúmeros saraus que pulularam nas últimas duas décadas
nas diferentes regiões da cidade: Sarau da Brasa, Sarau Elo da Corrente,
Sarau Verso em Versos, Sarauê, Sarau A Voz do Povo, Sarau do Vinil, Sarau
do Kintal, Sarau Da Ponte Pra Cá, Sarau Sobrenome Liberdade, Sarau do
Grajaú, Sarau Preto no Branco, Sarau das Mina, Sarau dos Mesquiteiros,
Sarau Perifatividade, Sarau Filhos de Ururaí, para mencionar alguns. A di-
namicidade da cena é tamanha que é difícil precisar quantos e quais existem
atualmente.
O que vemos, então, é uma São Paulo ocupada por essa cena poética
efervescente. As proporções megalomaníacas da cidade não são totalmente
impeditivas para que pessoas de diferentes lugares circulem pelos territórios
periféricos para frequentar os saraus, sendo possível “pensar a periferia já
não como um espaço delimitado a partir de valores econômicos e socio-
estruturantes, mas como um mapa afetivo traçado a partir do circuito de
saraus e seus frequentadores” (Tennina, 2013, p. 13).
Esse circuito afetivo de saraus possibilitou a articulação em torno de
lutas políticas com foco na cultura, propiciando a criação de coletivos e redes

335
Relações pessoa-ambiente na América Latina

de agentes culturais que se mostram disponíveis ao diálogo e construção


com pares de outras regiões e que pressionou e segue pressionando o poder
público para o financiamento de projetos culturais voltados à realidade de
tais territórios, como por exemplo o Movimento Cultural das Periferias e,
especificamente na Zona Sul onde acontece do Sarau do Binho, a Rede de
Cultura M’Boi e Campo Limpo (Tavanti, 2018).
Inúmeros foram os encontros nas segundas-feiras de Sarau do Binho.
Entre os anos de 2004 e 2012, o Sarau cresce e ganha fama e notoriedade,
recebendo a visita de artistas consagrados nacionalmente, além de pes-
quisadores do Brasil e de outros países, contribuindo para expandir para
além do território periférico as reverberações de tal prática. Inevitavelmente
atraiu a atenção de pessoas que não estavam necessariamente interessadas
nas transformações que o Sarau do Binho vinha provocando no território
e/ou que tinham interesses escusos nesse espaço congregador de pessoas e
iniciativas culturais.
No ano de 2012, sob a gestão de Gilberto Kassab do Partido Social
Democrático (PSD) na Prefeitura Municipal de São Paulo, o Bar do Bi-
nho é fechado com o argumento da falta de alvará de funcionamento e a
consequente aplicação de multas que acumularam o valor de oito mil reais.
Há algumas suspeitas em torno do fechamento do bar sob tal alegação, já
que o pedido de um político para fazer algumas propagandas foi negado,
pois Binho disse que “não acreditava na política do cara” (Felizs - Feira
Literária da Zona Sul, 2017). Suzi também comentou em entrevista ao
Ferréz “a gente incomodou muita gente, mas eu acho que foi bom, senão
hoje a gente não estava fazendo sarau em tantos lugares” (TV 247, 2018).
Ironicamente, no mesmo local hoje funciona um bar novamente.
Houve uma série de mobilizações para evitar o fechamento do bar, além
da arrecadação de fundos por meio de uma campanha de financiamento
coletivo para custear as dívidas das multas, com o mote O Sarau do Binho
Vive! O fechamento do Bar do Binho, entretanto, não foi impeditivo para
a continuidade das iniciativas culturais promovidas pelo Coletivo Sarau
do Binho. Ao contrário disso, possibilitou a expansão de tais ações para
outros espaços do território. Suzi comenta sobre o fechamento do bar:

336
Coletivo Sarau do Binho: poesia, articulação territorial e direito à cidade

“eu costumo dizer que há malas que vão para o trem, né? Então às vezes é
preciso alguma coisa acontecer pra tirar a gente da zona de conforto, que
talvez eu estivesse lá até hoje fazendo pastel” (TV 247, 2018).
Nesse momento de fechamento do bar, Suzi passa a buscar formas de
financiamento e parcerias para a continuidade do Sarau do Binho, momento
que passou a ser reconhecida como produtora cultural do Sarau do Binho,
algo que ainda nem sabia que era. Com a cena dos saraus em alta, passou
a criar produtos e construir projetos para sobreviverem disso “porque tem
muitas pessoas que estão envolvidas com esse sarau que estão dependendo
um pouco desse trabalho, né. E eu comecei a criar outras alternativas pra essas
pessoas também terem uma fonte de renda” (TV 247, 2018). Nesse processo,
criaram projetos para o Sarau do Binho, concorreram e ganharam editais de
financiamento, tanto públicos como privados, o que possibilitou a artistas
mostrarem seus trabalhos em bibliotecas públicas, escolas, eventos culturais
municipais e estaduais, unidades do SESC em várias partes do estado de São
Paulo, possibilitando também a circulação de tais pessoas muito além dos
territórios periféricos.
No ano de 2017, Suzi foi homenageada na Balada Literária e recebeu
o Prêmio Donizete Galvão como reconhecimento público por seu trabalho
como produtora cultural. Nessa ocasião, Suzi estendeu a homenagem “às
mulheres que estão nos bastidores fazendo coisas e não têm o trabalho re-
conhecido, né, às mães, às donas de casa, às minhas parceiras da FELIZS”
(trecho de discurso registrado em diário de campo). Esse discurso é de extrema
relevância, pois demarca e reconhece a ação das mulheres na movimentação
cultural, na produção literária, e em tantos outros âmbitos da vida cotidiana.
Além disso, reitera o protagonismo histórico das mulheres do território,
que empreendem lutas coletivas que pressionaram o poder público em prol
de melhorias para as pessoas viventes nas periferias da zona sul, a exemplo
dos Clubes de Mães e da União Popular de Mulheres do Campo Limpo e
Adjacências (UPM).
Para além das ações no próprio bar, Suzi e Binho ensejaram outras
intervenções no território, por meio do Coletivo Sarau do Binho, envol-
vendo pessoas do território nas ações de fomento à leitura que vão além do

337
Relações pessoa-ambiente na América Latina

sarau. É o caso do Livro no ponto, em que são disponibilizados, desde o ano


de 2009, em média 100 livros em pontos de ônibus do Campo Limpo; a
Bicicloteca4, uma bicicleta equipada com uma cesta grande para o transporte
dos livros que são colocados nos pontos de ônibus e em outros lugares do
bairro, com a intenção de levar os livros até as pessoas, para que tenham
acesso, que possam trocar informações. Diana Sales, moradora do Campo
Limpo, educadora no Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos
(CIEJA Campo Limpo), integrante da Coletiva Brincantes Urbanas, além
de participante frequente do sarau, comenta o projeto Livro no Ponto: “o
que eu acho mais legal, assim, é um morador do bairro oferecendo algo
pro bairro, cuidando do bairro” (Felizs, 2016).

Anualmente, no dia 27 de novembro, data em que Binho completa


seu ciclo ao redor do sol, o poeta realiza uma ação de distribuição de livros

4  O projeto da Bicicloteca foi iniciado em 2008 para a arrecadação e distribuição de livros pelas
cidades durante a segunda expedição Donde Miras. As expedições Donde Miras, por sua vez, foram
caminhadas culturais realizadas em diferentes cidades nas quais foram realizados saraus, com a intenção
de promover a cultura e a memória. Para maiores informações sobre o Donde Miras, indicamos a leitu-
ra da dissertação de Diego Elias Santa Duarte (2016) ou o acesso ao site http://expediciondondemiras.
blogspot.com/.

338
Coletivo Sarau do Binho: poesia, articulação territorial e direito à cidade

no terminal de ônibus do Campo Limpo. Essa ação se iniciou em 2004,


com o pedido de aniversário não matarás nenhum brasileiro, o qual segue
sendo o mote dessa ação de fomento à leitura. Mais que as pessoas perma-
necerem vivas, há a defesa de que a existência vá além da sobrevivência,
reconhecendo o nosso “direito de ter necessidades elevadas – a necessidade
do belo, de dignidade – que são essenciais, apesar das exigências da luta pela
sobrevivência, à cidadania e aos direitos humanos” (Sawaia, 2006, p. 91).

Figura 2. Binho e Suzi na distribuição de livros no terminal do Campo Limpo em 2013.


Fotografia de João Cláudio de Sena (arquivo pessoal, gentilmente cedida pelo autor).

Ao espalharem livros pelo território em que cresceram e construíram, Binho


e Suzi, em parceria e colaboração com outras pessoas do Coletivo, estimulam
aberturas ao campo imaginativo ao fomentarem a leitura e viabilizarem o acesso
ao livro, uma provocação à experiência estética com obras de arte (Maheirie
et al., 2007; Vigotski, 2010), uma forma de afetar outras pessoas. É o inves-
timento no desenvolvimento humano, com vistas à expansão das pessoas nos
encontros com a literatura. E, tal como nos ensina Bartolomeu Campos de
Queirós (Paiol Literário, 2011, p. 2), “a literatura é esse espaço onde o que
sonhamos encontra o diálogo”, ela “pode ser um espaço bonito de reencontro,
da conversa, do deslanchar para outras coisas, para outras confidências”.
Ainda mais, ao despertar o interesse pela produção literária, destacando
a importância da leitura, muitas pessoas foram afetadas e se mobilizaram
pelo desejo de se alfabetizarem e/ou de voltarem a estudar em espaços for-
mais de educação. Crianças, adolescentes e jovens passaram a experimentar
com maior frequência o hábito da leitura, a partir dos encontros com o
Sarau do Binho, como relata a cantora e integrante do Coletivo Sarau do
Binho, Fernanda Coimbra, “você vê a galera muito nova cuidando mais
dessa leitura, exercitando mais”, e complementa acerca dos efeitos em
sua própria filha, “lá em casa mesmo, hoje a Lorena ela não dorme... Se
eu não contar história, ela vai ler. Eu sempre gostei de ler, mas isso ficou
mais assíduo depois da presença nos saraus e isso impactou” (trechos de
discursos retirados de entrevista concedida em 25/02/2017).

339
Relações pessoa-ambiente na América Latina

Desde sua criação, o Sarau do Binho ganhou notoriedade no território


por fomentar a leitura e a criação artística, por viabilizar o acesso democrá-
tico às artes e, ainda, por possibilitar um espaço para a expressão de povos
historicamente subalternizados. Tal processo de subalternização é experi-
mentado cotidianamente pelas pessoas viventes nas periferias e sustentado
em discursos produzidos sobre a periferia somente como lugar da falta, do
crime, da violência, nos quais as pessoas são tratadas como anônimas e/ou
uma massa homogênea.
Muito além dos bares, o Sarau do Binho passou a ser realizado men-
salmente no Espaço Clariô de Teatro, na Praça do Campo Limpo, bem
como em escolas e bibliotecas públicas e/ou comunitárias do território,
espaços culturais independentes, fortalecendo a cultural local, investindo
na educação não formal e propiciando a formação e visibilização de artistas
do território, o que implica processos de identificação e reconhecimento
pela população local com as obras de artes produzidas.
Em uma noite de Sarau do Binho no Espaço Clariô de Teatro, Binho
faz colocações provocativas e convidativas à ação: “a gente quer prosperidade
para a periferia, a gente não quer miséria não... e a gente vai buscar caminhos pra
isso”. É a concretização em palavras do desejo de expansão da potência, não só
de sujeitos singulares, mas também para o contexto periférico. Neste afã, os
discursos, práticas e ações ensejadas pelo Coletivo Sarau do Binho colocam
em movimento um processo de fortalecimento comunitário com vistas ao
desenvolvimento em conjunto de “capacidades e recursos para controlar sua
situação de vida, atuando de forma comprometida, consciente e crítica, para
conseguir a transformação de seu ambiente de acordo com suas necessidades
e aspirações, transformando-se ao mesmo tempo” (Montero, 2004, p. 7).
Nesse sentido, estes sujeitos criam possibilidades de se alegrar nos en-
contros, de resistir e produzir vida. Esse desejo de expansão que estremece
as franjas da cidade é alimentado nos espaços coletivos como os saraus,
nos quais, por meio da linguagem artística, subvertem e não aceitam a
tentativa de colocação no lugar da precariedade da vida, das vidas com as
quais não se importam, vidas que não são passíveis de luto (Butler, 2015).
Tal como afirmam Eduardo Tomazine Teixeira e Timo Bartholl (2015),

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Coletivo Sarau do Binho: poesia, articulação territorial e direito à cidade

“as periferias urbanas são a negação dessa negação à vida, mantendo uma
face humana em cidades cada vez mais desumanizadoras, criando ‘lugares
vivos e vividos’, nos seus ‘territórios de resistência’” (p. 14).
Considerando que a cidade é a obra de uma história, das pessoas/
coletivos que a realizam em determinadas condições históricas (Lefebvre,
2001) e que as experiências nas cidades são múltiplas e plurais, “é possível
ativar essa sua potência diversa, incompleta e imaginar a cidade” também
a partir de nossos anseios (Nogueira, Hissa, & Silva, 2015, p. 358). Ima-
ginar a cidade que queremos e modificar nossa relação com esta implica
necessariamente imaginar quem queremos ser, “que tipo de relações sociais
buscamos, que relações com a natureza nos satisfazem mais, que estilo de vida
desejamos levar, quais são nossos valores estéticos” (Harvey, 2014, p. 28).
Compreendemos, portanto, que ações realizadas pelo Coletivo Sarau do
Binho estão situadas nas horizontalidades do território do Campo Limpo,
ou seja, nas relações intersubjetivas e afetos que movimentam o território,
onde são criadas e recriadas cotidianamente formas de vida não hegemô-
nicas e onde habita a heterogeneidade criadora (Santos, 2013). Portanto,
pelo que é ofertado no espaço geográfico local é criada uma solidariedade
orgânica, viabilizada pela experiência comum em um território partilhado,
de forma que possibilitam a criação de um corpo coletivo que sustenta o
orgulho de ser “da quebrada”5, de querer intencionalmente existir e agir
para transformar o contexto periférico.
Por fim, o Coletivo Sarau do Binho, com distintas ações, se apropria
subversivamente do espaço, de forma que este deixa de ser apenas um
meio de produção para o capital e para o Estado e passa a ser uma criação
político-cultural que viabiliza formas outras de experimentar os espaços
públicos da cidade, tornando-os vivos e propiciando o exercício do direito
à cidade. Para um acabamento parcial das reflexões aqui elaboradas, con-
vidamos leitoras e leitores a imergir no poema de Mara Esteves (Sarau do
Binho, 2013, p. 167), publicado na primeira antologia do Sarau do Binho.

5  O termo quebrada está vinculado à noção de território periférico e subjaz, implicitamente, à per-
tença a um nós que compartilha códigos, conhecimentos, experiências (Reyes, 2013).

341
Relações pessoa-ambiente na América Latina

A hora do levante!
O exército da quebrada são os poetas,
Os músicos e os amantes da arte,
A palavra é o armamento pesado.
O alvo, a des-educação alienada.
Empunham as armas, munição feita de poesia.
Da arte que abre ferida,
Latejando a força propulsora de lutar
Contra a corrupção da nossa cultura popular.
Estão de prontidão para defender,
Os imorais, os de mau costume,
Mal compreendidos,
Nessa sociedade egoísta-capitalista de vendidos.
Seu armamento não mata,
Pelo contrário, os ressucita.
São tiros vitais com objetivos definidos,
Trazer suspiro de vida, no coração dessa gente
Sofrida.

342
Coletivo Sarau do Binho: poesia, articulação territorial e direito à cidade

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345
Capítulo VI

Os significados da violência
urbana para jovens periféricos:
constituindo teias de sociabilidade em territórios
apartados1
Thaís Fabiana Faria Machado
Eunice Nakamura

E m uma sociedade complexa, a vivência e a percepção da violência nas


regiões metropolitanas estão associadas ao contexto ou o território onde
se mora. Essas condições são ainda atravessadas por marcadores sociais da
diferença, principalmente os de classe, raça e gênero, que implicam diferenças
sociais, na medida em que “organizam a experiência ao identificar certos
indivíduos com determinadas categorias sociais” (Zamboni, 2014, p. 13).
Na sociedade contemporânea, essas diferenças influenciam as formas de
habitar as cidades e as maneiras como a violência afeta os diversos grupos
sociais, principalmente mulheres, pessoas pobres, jovens e/ou negros(as),
tidos como vítimas ou suspeitos.
As iniquidades socioeconômicas demarcam, assim, os territórios habita-
dos ou habitáveis das cidades configurando-os como espaços heterogêneos.
No processo de desenvolvimento de muitas cidades latino-americanas, em
particular as brasileiras, urbanização e pobreza parecem estar intimamente
associadas, ao mesmo tempo agravadas pelas condições de disparidade e de
exclusão social em que se encontram parcelas da população (Santos et al., 2017).
Dessa perspectiva, assim como o meio urbano se transforma continuamente,

1  Este texto apresenta uma análise de parte dos resultados de dissertação de mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências da Saúde, com bolsa da CAPES (Machado, T.F.F.
Territórios, sociabilidades e jovens da Zona Noroeste de Santos – SP: significados e experiências em con-
textos de violência urbana. Mestrado Interdisciplinar em Ciências da Saúde. São Paulo, Unifesp, 2017).

347
Relações pessoa-ambiente na América Latina

as formas de vivenciá-lo também se modificam, principalmente em função


da diversidade socioeconômica, que caracteriza e delimita os territórios.
Se, de um lado, as desigualdades estabelecem fronteiras nas cidades,
visíveis ou não, entre os vários grupos sociais, de outro lado, podem originar
formas de resistência a determinadas delimitações de fronteiras, tanto as que
dividem o centro e as periferias como as que definem os espaços públicos e
privados. Podem, ainda, reforçar fronteiras, como observado no fenômeno
de condominização, ocorrido no Brasil na última década do século XX, o
qual circunscreve os espaços privados, principalmente os das classes mais
altas. Toda uma blindagem surgida como proteção, por meio da segurança
privada de uma determinada classe social, avançará no país estimulada pelo
medo da violência, ao mesmo tempo em que se aprofunda o empobreci-
mento de parte da população e seu consequente afastamento para as bordas
dos grandes centros urbanos, principalmente devido ao recrudescimento da
especulação imobiliária. Seguindo esta lógica de blindagem, a pobreza passa
a ser encarada como uma potencial ameaça, em que os suspeitos têm um
perfil definido no imaginário social, qual seja, jovens negros e periféricos.
Dentro desse contexto, não é de se surpreender que, nas estatísticas
anuais divulgadas nos Mapas da Violência, se denunciem a elevada taxa
de mortes de jovens por armas de fogo, segundo sexo (Fig. 1) e raça/cor
(Fig. 2) (Waiselfisz, 2015), assim como o suicídio e as mortes ocasiona-
das por fatores externos, como acidentes, por exemplo. As figuras abaixo
reproduzem tabelas retiradas dos dados do Sistema de Informação sobre
Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde do ano de 2012, as quais
constam no Mapa da Violência de 2015.
Em relação aos óbitos por raça/cor, Waiselfisz (2015, p.9) explica
que definiu uma nova categoria estatística unindo as categorias “preta” e
“parda” utilizadas pelo IBGE.
Diante deste cenário, há que se considerar quais as perspectivas de vida
desses jovens, muitas vezes confundidos com bandidos, invertendo essa
imagem que lhes é atribuída, buscando compreender o que eles pensam
sobre a violência urbana enquanto vítimas e/ou testemunhas desse tipo
de violência.

348
Os significados da violência urbana para jovens periféricos: constituindo teias...

Figura 1: Tabela com o número de óbitos por arma de fogo segundo sexo (2012)

Fonte: Waiselfisz, 2015, p. 74

Fig. 2: Tabela com o número de óbitos por arma de fogo segundo raça/cor (2012)

Fonte: Waiselfisz, 2015, p. 80

349
Relações pessoa-ambiente na América Latina

Os dados que serão aqui apresentados buscam responder a essas questões,


com base em pesquisa realizada na cidade de Santos/SP, reconhecida por com-
portar o maior porto da América Latina e pouco conhecida por abrigar uma
das maiores favelas sobre palafitas do Brasil. Realizar um estudo antropológico
sobre “territórios apartados”, termo utilizado por Ferreira (2006) para descrever
os locais segregados nas metrópoles, abre a possibilidade de compreender como
o medo e a insegurança associados à violência podem, também, produzir um
imaginário social da existência de classes perigosas (Bauman, 2009). O território
apartado deste estudo, portanto, localiza-se na Zona Noroeste da cidade, o qual
foi escolhido como campo de pesquisa, tendo como elemento central para o
encontro com jovens residentes da região a Organização Não Governamental
(ONG) Instituto Arte no Dique. A presença de uma ONG há pouco mais
de 15 anos no local tem alterado a rotina dos seus moradores, pela oferta de
oficinas socioculturais nas quais as crianças e os jovens são seu público mais
cativo, além de promover atrações musicais de grande porte as quais atraem
pessoas de outras regiões da cidade para esse território tido como perigoso.
As vivências e percepções dos jovens participantes da pesquisa possi-
bilitaram revelar os significados que atribuem à violência nesse território
periférico, apartado, ao mesmo tempo em que constituem suas subjetivi-
dades nesse contexto de diferenças e desigualdades, também nas relações
que estabelecem com outros jovens.

A violência como uma produção social

Discorrer sobre a violência implica uma definição dos tipos de mani-


festação e dos contextos em que ocorre, uma vez que a violência apresenta
formas e significados diversos. Enquanto produção social, a violência surge
em sociedades e em culturas particulares. Fazendo uma distinção com a
criminalidade, por essa estar prevista em lei, Baierl (2013) reforça que a
violência é um fenômeno presente em qualquer sociedade e em qualquer
período histórico, mas com especificidades próprias da cultura onde é pro-
duzida, afirmando que “o chão de construção é a própria sociedade, ou seja,
é resultante da forma como se organiza e estrutura suas relações” (p. 360).

350
Os significados da violência urbana para jovens periféricos: constituindo teias...

Na atualidade, particularmente na sociedade brasileira, a violência


é muitas vezes relacionada a condições desiguais de acesso aos direitos
básicos de sobrevivência, de um exacerbado modo de vida individualista e
da privatização da vida – três diferentes condições que se correlacionam,
uma vez que expõem o abismo que separa as classes sociais ricas e pobres
(moradia, alimentação, educação, saúde e segurança intermediados pelo
poder de compra mais do que um direito a todos os cidadãos). Nas
grandes cidades, a especulação imobiliária atua de modo semelhante à
reafirmação das fronteiras socioeconômicas, afastando parte da população
empobrecida para as periferias ou para outras regiões menos valorizadas
e sem infraestrutura adequada. Essas formas desiguais de se habitar as
grandes cidades têm uma estreita relação com as fronteiras entre de-
terminados aglomerados humanos, mas as diferenças são anteriores à
construção dessas e não o contrário, pois, segundo Bauman (2009, p. 75)
“vamos em busca de diferenças justamente para legitimar as fronteiras”,
naturalizando tanto as desigualdades que separam os territórios urbanos
como as diferenças entre as pessoas que os habitam.
Não é, portanto, difícil observar um caminho da segregação para a
criminalização da pobreza ao medo da violência como justificativa para
o processo de segurança privada. Caldeira (1997, p. 158) intitula esse
processo de “enclaves fortificados”, como espaços privatizados que têm
também como justificativa a retórica do medo da violência para realçar as
diferenças sociais. A autora descreve o processo sócio-histórico da segre-
gação espacial da cidade de São Paulo durante o século XX, apontando
a consolidação de barreiras com sistema de segurança privada, conforme
uma tendência mundial verificada a partir dos anos 1990. O aumento e a
modificação no padrão da criminalidade, a partir dos anos 1980, somado
à crise econômica nesse período, reforçaram essas mudanças espaciais em
dois aspectos principais: a separação dos territórios (territórios apartados)
e a perda da noção de espaço público. Portanto, em nome da segurança,
parte da população urbana tem se isolado do meio público, blindando-se
do contato com o espaço coletivo, em razão do medo da “violência”. Assim,
como exemplifica Souza (2005, p. 13), “acuados pelo risco de assaltos, de

351
Relações pessoa-ambiente na América Latina

balas perdidas, de cenas inusitadas de violências, os habitantes das cidades


perderam seu direito às urbes ... trancafiam-se em suas casas-celas e evitam
os espaços públicos com medo de serem as próximas vítimas”.
Essa parcela da sociedade que cerca os muros de suas casas para se
proteger das ameaças externas constrói aquilo que Bauman (2009, p. 40)
definiu como “guetos voluntários”, os quais fazem referência aos “guetos
involuntários” daqueles que se encontram do outro lado desses muros,
reforçando assim a ideia de segregação e determinando a esses outros um
espaço delimitado, ao mesmo tempo em que seus habitantes se encontram
apartados da cidade.
A banalização da violência, aqui entendida como fenômeno social, tende
a corroborar a discriminação e a indiferença social. Nesses termos, a violência
se apresenta como uma ruptura do pacto coletivo de convivência, ou seja,
rompe com a ordem simbólica, ou os laços amorosos e identificatórios entre
os cidadãos (Souza, 2005, p. 38), que mantêm a integração de uma sociedade.

Violência associada e impetrada à juventude periférica

Estatísticas das mais diferentes fontes e períodos têm permitido traçar


o perfil das mortes violentas no país desde que se regulamentaram as no-
tificações de óbito no fim dos anos 1970 (Waiselfisz, 2014, p. 7). Zaluar
e Leal (2001, p. 145), através dos dados do SIM, revelam “uma tendência
de alta acentuada de mortes violentas (homicídios, suicídios e acidentes)
de jovens a partir de meados dos anos 80, especialmente nas regiões me-
tropolitanas do Rio de Janeiro e São Paulo”. A esse respeito, Baierl (2013,
p. 374) evidencia que “os homicídios e as tentativas de homicídios se
espraiam ao longo de territórios onde as desigualdades sociais são visíveis,
onde a ausência ou a precariedade da presença do Estado permite que ou-
tros poderes lá se constituam ... em conivência direta com ele”. Waiselfisz
(2014, p. 55), através de dados do SIM de 2012, demonstra em gráfico
(Fig. 3) o número acentuado de homicídios entre jovens no Brasil a partir
dos 13 anos, atingindo a sua maior concentração aos 20 anos, fenômeno
que ele denomina como “estrutura etária dos homicídios”.

352
Os significados da violência urbana para jovens periféricos: constituindo teias...

Fig. 3: Gráfico com o número de homicídios por idade (2012)

Fonte: Waiselfilsz, 2014, p. 55

Todas as informações sobre homicídios evidenciam, em sua maioria,


uma tendência, um perfil predominante e a relação com as condições
desiguais de habitar a cidade, principalmente nas grandes metrópoles. Os
“guetos involuntários” das periferias são, assim, definidos por meio das
condições de desigualdade associados a marcadores sociais da diferença,
os quais definem e diferenciam seus habitantes de outros, os dos “guetos
voluntários”. Essas diferenças caracterizam principalmente jovens negros
como “perigosos” e “suspeitos”, justificando assim a construção social de
fronteiras, as quais definem os territórios periféricos como lugares associados
à violência e a mortes.
Sendo a juventude periférica a principal vítima tanto dos homicídios
quanto das demais causas externas, em geral, envolvendo circunstân-
cias violentas, torna-se premente, como anteriormente ressaltado, o
conhecimento sobre os significados que os próprios jovens atribuem à
violência, como vivenciam e organizam suas vidas apesar dela, cons-
tituem sua relação com outros, ao mesmo tempo em que constituem
suas subjetividades.

353
Relações pessoa-ambiente na América Latina

Aproximação do campo de pesquisa e dos jovens


pesquisados

Distante da orla da praia e do centro da cidade, a Zona Noroeste é


composta por 12 bairros com diferentes aspectos geográficos e habitacionais
e é desta região periférica que se desloca grande parte da massa trabalhadora
para os bairros nobres e de classe média. Subvertendo essa condição, jovens
músicos da ONG Arte no Dique têm mostrado que outras subjetividades
são possíveis nesse território apartado, marcado pelas desigualdades e pela
violência. Por meio da arte, os jovens assumiram não só uma identidade
profissional através da educação oferecida pela ONG, mas também tiveram
a possibilidade de se deslocarem para outras regiões da cidade, do Estado,
do país e do mundo, como artistas.
Os jovens que participaram da pesquisa foram três garotos de 18, 19
e 20 anos (respectivamente, Simpatia, Molecão e Sorriso) e uma garota de
23 anos (aqui denominada Garota), que foram contatados nas oficinas de
percussão, todos negros. A única menina entrevistada já havia sido aluna
da ONG, e no momento da pesquisa era funcionária. A dificuldade em
encontrar meninas de 15 a 29 anos na ONG passou de um percalço a
um dado de pesquisa, indicando uma diferença de gênero entre os jovens.
Segundo os entrevistados, no geral as meninas são tímidas, estão ocupa-
das com estudo e trabalho ou ajudando a mãe com as tarefas domésticas
e cuidados com os irmãos mais novos. Dos quatro entrevistados, apenas
Molecão não concluiu o Ensino Médio, Sorriso e Garota iniciaram o Ensino
Superior. Com relação ao trabalho, apenas Garota tinha um vínculo de
trabalho formal; dentre os garotos, Sorriso trabalhava nos finais de semana
em um restaurante, Simpatia havia saído recentemente de uma padaria e
estava recebendo seguro-desemprego e Molecão recebia uma pensão pelo
falecimento do pai. Todos moravam na região com seus familiares, com
exceção de Sorriso, que morava sozinho fazia pouco tempo. A maioria deles
disse já ter morado em “barraco” ou casa de palafitas, mas com apoio de
familiares e/ou de determinados programas do governo federal da primeira
década do ano 2000 reformaram ou mudaram-se para uma casa de alvenaria.

354
Os significados da violência urbana para jovens periféricos: constituindo teias...

Os pais de Garota e Simpatia são migrantes do Nordeste, mas todos os


entrevistados se disseram “nascidos e criados na Zona Noroeste de Santos”.
Neste estudo privilegiou-se o método etnográfico, com a realização de
entrevistas em profundidade, com roteiro semiestruturado, e observação parti-
cipante dos espaços em que os jovens circulam no território. Nos passeios feitos
com Simpatia e Sorriso foi possível adentrar nesses espaços, onde ocorrem en-
contros com outros jovens, principalmente em atividades de lazer. As entrevistas
transcritas e os diários de campo com os registros das observações foram lidos
exaustivamente, buscando-se identificar “categorias nativas”, por meio das quais
esses jovens se referiam a situações de violência, como percebiam, vivenciavam
e lidavam com elas. A análise, baseada na perspectiva interpretativa (Geertz,
2013), possibilitou identificar alguns significados sobre violência, agrupados
em dois temas principais que se interconectam às vivências nesse território
periférico, quais sejam “a relação entre espaços e formas de sociabilidade” e
“aspectos subjetivos dos jovens entrevistados”.

Significados de violência para os jovens: A relação entre espaços e for-


mas de sociabilidade

A história da ONG Arte no Dique se entrelaça com a própria história


da maioria dos jovens entrevistados, que frequentam esse espaço desde
crianças, passando de alunos a monitores e integrantes da banda de per-
cussão. A presença da ONG em um território de extrema vulnerabilidade
impacta diretamente no dia a dia de seus moradores e na dinâmica dos
bairros no seu entorno. Em diversos momentos da pesquisa, os entrevista-
dos se referiam à ONG por meio da categoria “aqui dentro” para indicar
um local seguro, de proteção e apoio, para além de uma instituição que
desenvolve habilidades artísticas e promove encontros, fazendo oposição
à rua - ou “lá fora” - e tudo o que ela representa de negativo.
Para Sorriso, estar na ONG significa “ocupar a mente”, “se abrindo
para coisas novas”, “eles ensinam você a ser educado”, “a como tratar os
outros” e “abrir a sua mente”, em oposição ao que ocorre na rua – “você
só aprende o que não presta lá fora”. Da mesma forma, Molecão compara

355
Relações pessoa-ambiente na América Latina

os espaços de dentro e de fora quando se refere a diferentes formas de


aprendizagens. Para ele, ao frequentar a ONG “tu fica mais formal”, “não
fala gíria”, “aprende uma palavra formal”, “tu tá fazendo por onde”, “mente
focada [na aula de percussão] melhor do que focada na rua”.
Os entrevistados revelam dualidades destes espaços por meio de
expressões antagônicas, porém complementares, ao se referirem a
aprendizagens que se refletem nas relações sociais e nos modos de agir.
Essas frases evidenciam não só oposições entre os espaços, dentro da
ONG ou fora nas ruas, mas ressaltam, principalmente, os significados
de “estar nas ruas” da favela, “perdendo tempo” ou não buscando no-
vas oportunidades, segundo Molecão. Nesse sentido, os entrevistados
demonstram reconhecer o principal objetivo de um projeto social em
um território marcado pela extrema vulnerabilidade socioeconômica,
a julgar pela expressão “tirar os meninos da rua”, que aparece de forma
preponderante em seus relatos.
A rede de sociabilidade no território é bastante ampla e complexa,
envolvendo diferentes atores sociais, instituições e ONGs, além do Arte no
Dique. Alguns entrevistados citaram outros grupos, como a “família” e os
“traficantes”, como partes da rede local de sociabilidade, apoio e proteção
em algumas situações de violência. Simpatia indicou alguns projetos sociais
na região como instância de proteção para os jovens, “que aí as assistentes
sociais vão nas casas, conversam com os moleques, né? A molecadinha que
já tá ‘daquele jeito’, né?”.
As diferentes instituições concorrem enquanto apelos a caminhos
pelos quais os jovens poderiam se enveredar. Ao atrair os jovens, fazem
com que eles prefiram estar em um local “de proteção”, como o Arte
no Dique, cuja função é, segundo Simpatia, “tirar da rua”, evitando as
influências negativas presentes nas ruas. Portanto, ao contrário do espaço
seguro da ONG, a proximidade dos locais de moradia a espaços como
o “beco que era a boca”, como aponta Simpatia, pode levar os jovens à
criminalidade pela proximidade com traficantes, como alguns de seus
amigos de infância com quem ele “encostava”, no passado. Segundo o
entrevistado, se estivesse naquele local, “tinha rodado” (quando a polí-

356
Os significados da violência urbana para jovens periféricos: constituindo teias...

cia entrava no beco atirando e eles tinham que fugir) ou poderia “ter se
arrastado” para o crime.
O papel de “tirar da rua” os jovens da periferia parece ser um objetivo
comum a outras instituições atuantes no território, como fica evidente
também na fala de Garota. Ela menciona outro projeto social enfatizando
seus objetivos em relação ao público atendido:

Lá é um lugar que atende só meninos que as mães não têm também onde
deixar, só que é meninos [sic] que têm a mãe presa, o pai preso, com
irmão na droga, meninos que já tão no meio da droga, então eles tentam
tirar eles da rua. (Garota)

A “rua” da qual se pretende tirar crianças e adolescentes através de pro-


jetos sociais é, segundo os entrevistados, aquela associada à comercialização,
à circulação e ao uso de drogas ilícitas, assim como aquela relacionada aos
traficantes. É, segundo Simpatia, a rua que dá “medo” porque a polícia
pode “chegar atirando” a qualquer momento e você pode “rodar”.
Novaes (2006) problematiza o emblema de tirar os jovens da crimina-
lidade, geralmente veiculado por certas instituições, como algo que pode
produzir um efeito contrário, reafirmando um preconceito em relação aos
jovens da periferia. Os riscos presentes nas ruas e aos quais os moradores
estão expostos são inegáveis, mas o que a autora enfatiza é a sutil associação
que pode ser feita dos jovens moradores à criminalidade:

falar em “políticas públicas para a juventude” é também falar em


combate à violência e à corrupção policial e em respeito à cidadania
e aos direitos humanos. Mas é muito restritivo (e chega a ser pre-
conceituoso) fazer uma equação juventude = risco de criminalida-
de... (Novaes, 2006, p. 115)

Em se tratando dos territórios periféricos, como na Zona Noroeste de


Santos, é preciso refletir sobre a associação imediata entre jovens e criminalida-
de, também entre rua e perigo. Garota, por exemplo, expõe que nem mesmo
o espaço privado de sua casa garantia proteção ou isolamento dos espaços
públicos, em situações nas quais a rua era disputada por traficantes e policiais:

357
Relações pessoa-ambiente na América Latina

eu morava no beco de biqueira, então, era os meninos vendendo droga


lá dentro, e eles escondiam droga dentro do seu telhado, dentro da sua
casa; quando os policiais invadiam, você tinha que abrir a porta pros
cara [sic] entrar. (Garota)

Morar num “beco de biqueira”, para ela, é conviver com a transposição


constante dos limites entre os espaços público e privado, uma vez que os
riscos da rua invadiam literalmente a sua casa. No entanto, havia outros
riscos em se viver ali: “as condições pra quem mora em palafitas é [sic]
bem pior, porque quem mora em beco corre risco ... por causa que é casa
feita de madeira, né. Corre risco de pegar fogo, de ter uma enchente ...”,
evidenciando outros significados relacionados à falta de segurança. Viver em
uma casa no beco, portanto, significa correr o risco de perder a casa, mas
também de se expor ao risco de não ter proteção nem privacidade diante
dos perigos da rua, pois parece haver uma indistinção entre a rua e a casa.
Exposto à mesma desproteção, Sorriso também relata um dos episódios
recorrentes e constrangedores de sua vida na periferia, quando a polícia
invadiu sua casa, motivada pela desconfiança de que ele fosse traficante:

eu não moro pra cá, né, na favela, moro lá no Morro do Ilhéu; aí, eu tava
saindo de casa [e] veio dois carros de polícia subindo a rua [e] ele come-
çou a entrar na minha casa ... Aí eu entrei e ele falou “você mora aqui?”;
“você tem passagem?” “você mora aqui sozinho?”; “você é traficante?”
(Sorriso)

As relações que se estabelecem nos becos e nas ruas da favela são


permeadas pelo medo, pela desconfiança e pelo risco, ou, como diz Mo-
lecão, “é que eu moro na favela, aí tem que ficar mais ligeiro”. Nas ruas
da favela há, também, regras de convívio, ou seja, condutas e normas que
regulam o tipo de relação entre as pessoas as quais devem ser seguidas para
se evitar conflito, pois, como aponta Molecão: “na favela, tem que ver o
que tu fala, tem que saber como chegar certinho, saber chegar, saber sair”,
evitando o risco de ser mal interpretado e sofrer consequências violentas,
como alguém “querer me bater”, “querer me arrastar”. A confiança depo-
sitada nos traficantes deve-se não só a uma atitude imediata para casos

358
Os significados da violência urbana para jovens periféricos: constituindo teias...

emergenciais por parte deles, mas, principalmente, por sua proximidade


com a comunidade e a vigilância constante em uma mesma lógica de
regras de conduta, que também significa algo que os serviços públicos
e a aplicação da lei não alcançam justamente pela distância na relação
cotidiana com as pessoas dos bairros atendidos: “porque eles [traficantes]
não aceita [sic] homem que bate em mulher, então, já é um lugar seguro,
né, que a gente pode contar”, como afirma Sorriso.
Sorriso apresenta outra perspectiva da favela, das relações sociais e de
apoio que ali se constituem: “Quem é da favela não conta com o pessoal
da polícia federal, da polícia militar, a gente não conta; então, a gente
conta mais com os traficantes, a maioria do pessoal; acho que é um lugar
seguro”. Na fala de Simpatia também identificamos a rua como um espaço
ocupado por amigos, alguns deles traficantes, os quais constituem outras
redes de sociabilidade, pois é “mó legal estar com os cara”.
No relato de suas vivências nos diferentes espaços por onde circulam
na Zona Noroeste, os jovens entrevistados evidenciam os significados
que as várias formas de violência têm para eles, ao mesmo tempo em que
revelam as redes de sociabilidade local para lidar com o medo, o perigo, a
desconfiança e o risco a elas associados.

Aspectos subjetivos dos jovens entrevistados

A entrada de um jovem morador da periferia na criminalidade pode


ocorrer por motivos que ultrapassam a simples e estigmatizante associação
entre pobreza e bandidagem. Os entrevistados expõem diferentes impressões
sobre esse fenômeno. Simpatia revela, a partir do próprio universo mascu-
lino, as dinâmicas que impelem para os apelos da criminalidade, abarcando
atitudes e estéticas: “esse negócio de tu roubar, vender droga, num tá uma
coisa ‘Num tenho mais nada, só isso que eu tenho’; parece que agora é: se
tu faz isso, tu é o cara, né, tu é o top”. O entrevistado destaca que existe
um estilo vinculado à imagem de “bandido” (“É influência; também tem
o funk que ajuda, né?... ‘Ah, você tem que fazer isso, você tem que ser
assim e tal, usar bonezinho, camisa da Oakley e arma na cintura’”), o qual,

359
Relações pessoa-ambiente na América Latina

junto com certas práticas criminosas, oferece um status para os meninos


que moram no território.
No entanto, esse mesmo estilo alimenta o olhar acusatório para os
que a ele aderem. Garota se aproxima desse universo masculino quando se
refere às abordagens policiais abusivas pelas quais seus irmãos costumam
passar na rua sem estarem envolvidos com nenhuma criminalidade, apenas
pela sua aparência:

meu irmão de 17 anos tava em cima do Dique ... quando ele desceu, os
policial [sic] já enquadraram ele; ...aí o policial falou assim que enqua-
drou ele, porque ele parece um bandido porque ele tava sem camisa, tava
só de chapéu com o celular na mão. (Garota)

O irmão mais novo de Garota costuma ser abordado da mesma forma:


“o meu irmão de 14 anos foi parado uma vez, os cara [sic] tiraram foto
dele, falaram assim que ele parecia o bandido que tava roubando ali na
outra quebrada”.
Garota também revela o universo feminino da periferia nos cuidados
com os meninos, seja enquanto mãe, irmã ou vizinha. Ela conta que tanto ela
quanto os irmãos mais novos têm medo de sair sozinhos à noite na rua, mas por
motivos diferentes: ela por medo de assalto, “eu tenho medo de sair sozinha à
noite na rua. Quando eu saio, ou eu saio com o meu irmão ou eu saio com o
meu namorado”, e eles de serem abordados pela polícia como suspeitos. Essa
situação revela uma estratégia simbólica de lidar com formas diferentes de
violência, de acordo com os diferentes gêneros, ou seja, os homens protegem
as mulheres de assaltantes e as mulheres protegem os homens de policiais.
Os entrevistados expõem que uma mesma região apartada da cidade
comporta também pequenos territórios apartados que podem exercer
influência ou resistência aos jovens rapazes no tocante à normatividade
masculina. No entanto, uma mesma forma de se vestir que indica que um
rapaz entrou para o crime organizado torna os demais rapazes igualmente
suspeitos e, portanto, propensos aos abusos policiais.
Ferreira (2006) atribui a este estigma sobre os moradores de regiões
empobrecidas, cujas identidades carregam uma indefinição no olhar

360
Os significados da violência urbana para jovens periféricos: constituindo teias...

de quem não faz parte daquela realidade, o conceito de “clivagens


simbólicas” que

diferenciam o “trabalhador honesto” e os que optam pelo “ganho


fácil”, essas histórias sugerem a impossibilidade dessas clivagens
se fixarem em fronteiras definidas. Essas personagens moram no
mesmo bairro, frequentam os mesmos [lugares] e ... podem ser pa-
rentes ou colegas próximos. (Ferreira, 2006, p. 97)

Molecão exalta o descrédito na figura do “trabalhador”, como é iden-


tificado por outros, diferenciando-o daqueles associados à bandidagem (“os
cara”). Essa diferenciação expressa a “clivagem simbólica”, como definido
por Ferreira (2006), na medida em que é valorizado, tem direito à voz e
respeito quem “mexe com porcaria”, em contraposição ao “trabalhador”.
Sorriso, por outro lado, ressalta as consequências das más influências,
ou das “más companhias”, que acabam interferindo na trajetória de vida de
alguns jovens, que podem “ir pra vida errada”. Segundo ele, as influências
da “bandidagem” são um problema não apenas para os jovens, mas um
mau exemplo para crianças que convivem com “coisa errada”:

como a gente é de comunidade, então aprende muita coisa errada. Então,


é daí que você encontra seus amigos lá dentro e faz coisa pior ... só porque
ele tá fazendo que eles devem fazer também. Esses acham isso, porque,
muitas crianças hoje em dia pequena que já tá no meio da bandidagem.
(Sorriso)

Enquanto para os meninos entrevistados a “bandidagem” é algo


identitário, com valores tanto positivos como negativos, nas relações
masculinas, Garota, por outro lado, fala de uma bandidagem mais gene-
ralizada, compartilhando a sua insegurança e de sua família em transitar
pelas ruas do bairro à noite sem companhia, afirmando que a região sempre
foi perigosa: “aqui é muito fácil de ser assaltado!”. Contrapondo-se à fala
de Garota, Simpatia demonstra confiança e defende que não há assaltos
na região, afirmando que os meninos dali que roubam atuam em outros
bairros da cidade. Ele revela, portanto, duas diferentes formas de bandida-

361
Relações pessoa-ambiente na América Latina

gem para dois diferentes lugares: a “dos cara” que tem uma atuação local,
é vinculada ao tráfico, é valorizada e influencia outros meninos; e a dos
meninos da região que, ao contrário da percepção de Garota, “saem daqui
e vão roubar lá [perto da praia]”.
Essa assertiva de que o pessoal que rouba o faz em outras localidades
mostra certa ética territorial em relação às pessoas com as quais os ladrões
convivem, mas esbarra na delicada clivagem simbólica a respeito da concep-
ção de classes sociais perigosas em regiões centrais da cidade, que enquadra,
como já foi mencionado, o jovem periférico como suspeito:

As clivagens simbólicas são operantes na construção das identida-


des e papéis sociais, mas estão longe de definirem fronteiras, ter-
ritórios apartados de uns e outros, até porque as ações do bandido
podem ser bárbaras fora da região onde mora e, na sua área, ele
pode agir como um indivíduo honrado, observador das regras mo-
rais de seu grupo de referência. (Ferreira, 2006, p. 97)

É nesse sentido que a bandidagem (“os cara”) influencia atitudes,


estéticas e comportamentos (valorizados ou criticados), definindo iden-
tidades entre os jovens moradores do território pesquisado, ao mesmo
tempo em que são definidos pelos de fora, de outros territórios, como
perigosos. Sorriso, por sua vez, não diferencia os locais “da criminalidade,
da bandidagem, de violência”, pois afirma que estão disseminadas por toda
a cidade de Santos e “em qualquer lugar vai ter, isso não muda, em país
nenhum, a não ser em país lá fora que são rígidos”.
Pelos relatos dos entrevistados há uma confluência entre as formas de
ser jovem nessa periferia, que envolvem trabalho, educação, criminalidade
(ou bandidagem) e escolha pessoal (ou influência de amigos e possibilidade
de escolha pessoal para alguns), as quais expressam formas de ser e de existir,
segundo clivagens simbólicas e fronteiras territoriais de classes próprias à lógica
do capitalismo. Para Ferreira (2006), a presença do tráfico nessas regiões po-
bres altera, dessa maneira, as estratégias de sobrevivência dos moradores e, em
especial, desses jovens:

362
Os significados da violência urbana para jovens periféricos: constituindo teias...

São os princípios mercantis levados ao paroxismo: o desejo de ga-


nho, dinheiro e mercadorias, competição desmedida e o interesse
individual acima de qualquer consideração, da lei e das vidas. A pre-
sença do tráfico dessas regiões termina por solapar as bases sobre
as quais se organizam as estratégias para lidar com a vulnerabilida-
de, o universo popular: as regras das reciprocidades esperadas e os
princípios da solidariedade. (Ferreira, 2006, p. 147)

O tráfico e o roubo, como as principais formas de bandidagem elen-


cadas pelos entrevistados, têm como finalidade, portanto, o destaque
pelo poder afirmativo da masculinidade, um maior poder de consumo e,
sobretudo, um papel social reconhecido e respeitado, numa clara desvalori-
zação do estudo (“acabou os estudos por causa das más companhias”) e do
trabalho (“pra eles não é nada, né, pra eles é trabalhador”). Nesse sentido,
em um contexto mais amplo de análise da situação dos jovens no Brasil,
Novaes (2006, p. 109) indica que, para as gerações atuais, sobrepõem-se
o “medo de sobrar” e o “medo de morrer”, com relação às perspectivas de
emprego e de sobrevivência à violência urbana, respectivamente. Enquanto
alguns jovens demonstram esses receios, outros creditam e protagonizam
tristemente seus poucos anos de vida na personificação do “estilo bandido”
como um caminho mais interessante diante de um mesmo panorama de
incertezas quanto ao futuro.
É preciso destacar, no entanto, que as subjetividades e perspectivas
dos jovens entrevistados estão fortemente demarcadas pelas vivências ter-
ritoriais, principalmente nas ruas e favelas da periferia onde moram, mas
não se restringem a esses espaços. A ONG Arte no Dique, por exemplo,
se mostrou como um espaço intermediário para os jovens entrevistados
entre suas famílias e a rua e entre a rotina e a festa, além de proporcionar
a eles a identidade de artista a qual promove deslocamentos destes para
apresentações da banda de percussão da qual fazem parte para locais além do
seu “pedaço”, como define Magnani (2002), e vivências com “outros tipos
de pessoa” (Garota) e culturas, demonstrando que a teia de sociabilidade
dos entrevistados não se limita às fronteiras da região, sugerindo que seus
trajetos ultrapassam, inclusive, ao recorte etnográfico da pesquisa (p. 19).

363
Relações pessoa-ambiente na América Latina

Considerações finais

Através de histórias e vivências comuns, os entrevistados revelam con-


trastes e contradições na relação com os espaços de um mesmo território
que, apartado da cidade, também comporta locais apartados, qual seja, os
becos e as vielas situados entre os barracos nas palafitas. Enquanto a referida
ONG é um espaço que oferece além de convivência, aprendizado e opor-
tunidades de trabalho e de deslocamento para outros territórios, também é
considerado um local de proteção e formalidade (o “dentro”) com relação à
rua (o “fora”) como um local perigoso, que causa medo, expondo-os ao risco
e as crianças à influência negativa, por ser próprio da contravenção (uso de
drogas, gírias) e da bandidagem (tráfico e assaltos) com regras e condutas de
convivência. Da mesma forma, as casas situadas nos “becos de biqueira” não
oferecem proteção e privacidade pela constante invasão de traficantes e de
policiais, demonstrando um borramento na fronteira entre os espaços público
e privado. Diferentemente de moradores de regiões nobres da cidade que se
entrincheiram em seus condomínios, para os jovens entrevistados da Zona
Noroeste não há trincheira que os proteja da violência, mas há uma rede de
proteção constituída por familiares, vizinhos, traficantes que muitas vezes
são amigos de infância (“os cara”) e serviços públicos de assistência social.
Assim sendo, a privacidade e a segurança denunciam um privilégio de classe.
Diante desse cenário, os próprios entrevistados reproduzem a ideia co-
mum de tirar as crianças e os jovens das ruas e parecem se orgulhar de serem
“meninos de projeto”, mas ficamos com a reflexão sobre o papel delicado e
ambíguo que as ONGs assumem de salvadoras dessas jovens vidas que, assim
como os demais serviços públicos, parecem apenas gerir as consequências
da profunda desigualdade social e não as suas causas, em suma, oferecem
oportunidades, mas as precariedades permanecem. Portanto, é de extrema
importância que as políticas públicas para a juventude considerem as questões
que os próprios jovens apontam de acordo com a sua realidade no território,
quais sejam, os riscos e os estigmas que vivenciam cotidianamente. Assim
exposto, suas lutas são diárias: para sobreviver, para resistir aos apelos, para
não ser assaltado, para não virar assaltante ou ser confundido com um deles.

364
Os significados da violência urbana para jovens periféricos: constituindo teias...

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Relações pessoa-ambiente na América Latina

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366
Capítulo VII

(In)visíveis e loucos pela cidade:


encontros entre saúde mental e população em
situação de rua
Ana Karenina de Melo Arraes Amorim
Maria Teresa Nobre
Lais Barreto Barbosa
Breno Lincoln Pereira de Souza Diniz

Introdução

O Sistema Único de Saúde no Brasil foi construído no contexto histórico


de redemocratização do país, após os duros anos da ditadura militar,
alicerçado em princípios que podem ser resumidos na afirmação da saúde
como direito de todos e dever do estado. A Lei Orgânica da Saúde (Lei n.
8.080, 1990) expressa a incorporação desse discurso, ao definir como fatores
determinantes e condicionantes da saúde: alimentação, moradia, saneamento
básico, meio ambiente, trabalho, educação, transporte, lazer, acesso aos bens
e serviços essenciais etc. Produto de dois grandes movimentos sociais - o
movimento sanitário e o movimento da luta antimanicomial que se institu-
cionalizaram como reformas (a Reforma Sanitária e a Reforma Psiquiátrica)
-, sua implantação e implementação foram resultados da luta e militância
de muitos atores sociais no Brasil, que garantiram indiscutíveis avanços em
relação ao modelo anterior de saúde pública, ao tempo em que permanecem
grandes desafios no combate a velhos problemas sanitários e ao enfrentamento
de novas questões sociais e políticas (Campos, 2007; Rollo, 2007).
No início da década de 2000, no âmbito das políticas públicas culturais
houve a inclusão da pauta da diversidade e da participação ativa na vida cultural
também como um direito, abrindo novos debates e parcerias entre os campos
da cultura e da saúde. Instituída como política pública por ações da então
Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural (SID), criada em 2003

367
Relações pessoa-ambiente na América Latina

e ligada ao Ministério da Cultura (MinC), essas ações convocam o Estado


como um agente potencializador das relações entre esses campos, fomen-
tando a criação de um amplo leque de potencialidades para a emergência da
força criativa de grupos e comunidades, especialmente, nas áreas de maior
vulnerabilidade e risco social (Lima & Perlbart, 2007).. Em 2009, os Minis-
térios da Cultura e da Saúde criaram o prêmio “Loucos pela Diversidade”,
de incentivo financeiro a projetos culturais realizados por pessoas e grupos
em sofrimento psíquico. O programa objetivou construir políticas públicas
culturais junto aos sujeitos em sofrimento psíquico e aos programas que
atuavam na interface saúde mental e cultura (Amarante & Campos, 2012).
Essas iniciativas apontam a cultura como um lugar estratégico para
a transformação social, sendo essa função exercida na luta política e nas
relações de poder que têm lugar no movimento complexo da dimensão
sociocultural da Reforma Psiquiátrica brasileira (Amarante & Lima, 2008).
Elas tensionam as relações entre o campo da saúde mental e a sociedade, no
sentido da construção de um novo imaginário social sobre a loucura e sobre
os sujeitos em sofrimento psíquico, que não apenas supere a rejeição e a
tolerância, mas instaure a reciprocidade e a solidariedade (Amarante, 2008).
Destacam-se, nesse cenário, as necessárias iniciativas que garantam a
esses sujeitos o exercício da cidadania nos serviços de saúde e de assistência
social, mas, sobretudo, na vida social em sentido amplo, como, por exemplo,
as iniciativas intersetoriais que produzem hoje uma série de desafios e são
consideradas estratégicas, dentre elas: o Programa De Volta Pra Casa, os
Centros de Convivência e Cultura e os Programas de Economia Solidária
e Geração de Renda, com suas iniciativas de inclusão social pelo trabalho.
Fazemos esse breve recuo histórico para ressaltar a importância da
arte e da cultura nas suas relações com a cidade, para a produção de vida
e saúde de pessoas em situação de vulnerabilidade social e sanitária. A
vulnerabilidade aqui é considerada como a condição de pessoas ou grupos
que são expostas a riscos evitáveis ou controláveis, mas sobre os quais não
podem deles escapar sem que isso lhes traga perdas imensuráveis (Serra &
Volpini, 2016). Assim, as pessoas em situação de rua e ou portadoras de
transtornos mentais são consideradas mais vulneráveis às violências e aos

368
(In)visíveis e loucos pela cidade: encontros entre saúde mental e população em ...

diversos problemas de saúde quando comparadas à população em geral,


com moradia e acesso aos bens e serviços na cidade e/ou sem perdas das
contratualidades sociais dadas as barreiras dos preconceitos.
Nessa perspectiva, a identificação, aproximação e promoção de expres-
sões artísticas e culturais que integrem a pluralidade cultural de pessoas em
sofrimento psíquico e em situação de rua, tema deste capítulo, abrem um
novo campo de visibilidade e reflexão sobre a loucura, a exclusão social e
a criminalização da pobreza.
Isso porque as pessoas em situação de rua e aquelas portadoras de
transtornos mentais graves em condição de pobreza constituem grupos
sociais cuja visibilidade tem estado muito associada às violências, ao esta-
tuto da periculosidade e aos problemas relativos ao uso de álcool e outras
drogas que configuram um círculo perverso de exclusão próprio dos espaços
urbanos. Assim, a produção da cidadania e, mais especificamente, do di-
reito à cidade, exigem ações de fortalecimento desses grupos como atores
políticos na cidade e de afirmação da diversidade cultural com consequente
ocupação dos espaços públicos.
Em Natal, capital do Rio Grande do Norte, no nordeste do Brasil,
onde realizamos a experiência que aqui narramos, há poucas iniciativas
que articulem a organização política e o fortalecimento desses grupos em
ações voltadas para arte e cultura. Até hoje não há nenhuma iniciativa de
geração de renda fruto da parceria saúde mental/economia solidária e não
havia Centros de Convivência e Cultura, até recentemente. A lacuna dessas
experiências diz respeito não só ao vazio das políticas públicas nessa área,
mas também de outras iniciativas que considerem o direito à cidade dessas
pessoas a partir da multiplicidade e diversidade de seus modos de vida.
A experiência foi desenvolvida através de um projeto de extensão
universitária e estágio curricular do Curso de Graduação em Psicologia
desenvolvidos por docentes e discentes da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, em 2016, que agregou outros parceiros. Sua realização
buscou criar e ocupar espaços da cidade em efetivos processos de formação
de discentes e membros de coletivos e movimento sociais, através da orga-
nização político-cultural e participação nos contextos políticos, culturais e

369
Relações pessoa-ambiente na América Latina

de controle social de pessoas com transtornos mentais e/ou em situação de


rua. Nela, buscou-se não apenas a reabilitação e/ou a prevenção de doenças
e agravos, mas a ressignificação de modos de existência produtores de saúde
na “vida ordinária” e na ocupação de espaços da cidade, através dos quais
as pessoas constroem a vida do dia a dia, com suas astúcias e artimanhas
de sobrevivência, como táticas de resistência (Certeau, 2004).
Fruto de trabalhos anteriores junto a esses grupos, o projeto foi proposto
a partir de questionamentos que nos acompanham. Assim, do trabalho com
pessoas institucionalizadas pela psiquiatria e, também, na Rede de Atenção
Psicossocial (RAPS), indagamos: como produzir desinstitucionalização
ocupando a cidade em suas possibilidades de cuidado? Do trabalho com a
população de rua, nos perguntamos: como produzir o acesso às instituições
no sentido da garantia dos direitos humanos, afirmando a cidade como
espaço de vida? Como agir nos labirintos da cidade e nos seus desafios como
territórios existenciais e concretos, na afirmação das vidas dessas pessoas?
Com base nessas questões, o projeto intitulado “(In) visíveis e loucos
pela cidade: oficinas e encontros libertários entre saúde mental e a população
em situação de rua” foi realizado em parceria com a Associação Potiguar
Plural de usuários e familiares da saúde mental e com o Movimento
Nacional da População de Rua do Rio Grande do Norte (MNPR/RN).
A criação de novas iniciativas que pudessem intervir no espaço urbano
e inventar a vida na cidade se deu através da proposição de oficinas de
expressões artísticas (envolvendo teatro e práticas corporais) e oficinas de
comunicação (construção de zines, pinturas, fotografias, poesias, entre
outras práticas comunicacionais), com vistas a incentivar a prática artísti-
ca e cultural dos usuários e os projetos de vida dos participantes em seus
interesses individuais e coletivos.
Essas oficinas foram propostas a partir do anseio dos próprios usuá-
rios, participantes ou não dos movimentos sociais envolvidos. A partir de
encontros semanais entre a associação e o movimento social e encontros
nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) do município, foram escu-
tadas as principais demandas e desejos dos usuários e familiares e, assim,
coletivamente, foram propostas as oficinas. Essas buscaram também pos-

370
(In)visíveis e loucos pela cidade: encontros entre saúde mental e população em ...

sibilitar aos participantes a desconstrução sociocultural do estigma que


exclui e segrega os loucos e pessoas em situação de rua, nas várias formas
de manicômios que habitam o imaginário social acerca do “louco” e do
“andarilho”, na afirmação da diversidade cultural nas mais diversas relações
de convívio social e alteridade com o mundo. Além disso, procuramos
dar visibilidade aos trabalhos das produções das oficinas como forma de
promover a participação dessas pessoas no cenário político e cultural da
região, não mais como expectadores, “pacientes” ou “moradores de rua”,
mas como protagonistas, músicos, escritores, artistas, atores.

A construção da experiência e seus desafios na cidade

Com base na educação popular e na análise institucional como perspec-


tivas teórico-metodológicas, o trabalho promoveu: Oficinas de teatro onde
as biografias dos participantes foram reinventadas, promovendo expressão
e cuidado; Oficinas de comunicação que promoveram discussão política
de temas atuais sugeridos pelo participantes, com produção de textos e
peças visuais compondo zines (jornais artesanais) para distribuição na ci-
dade; Acompanhamento semanal dos coletivos de usuários, fomentando a
organização política e participação no controle social e acompanhamento
individual das demandas das pessoas em suas relações com as políticas
públicas. As ações foram continuamente analisadas e registradas em diários
de campo, fotografias e filmagens.
As oficinas aconteceram no antigo Palácio Potengi, localizado no
centro histórico da cidade: a Pinacoteca Potiguar. O prédio, um casarão
construído em 1873 e onde funcionou a sede do governo estadual entre
1905 e 1995, abriga hoje o maior acervo de artes visuais do estado, com
salas para exposições de artistas locais, nacionais e internacionais, entre
outros núcleos de atividades culturais. O conjunto arquitetônico do qual a
Pinacoteca Potiguar faz parte é também composto pelos prédios da Assem-
bleia Legislativa, do Fórum Municipal e da Prefeitura Municipal, situado
numa praça (conhecida como “Praça dos Três Poderes”). Nela permane-
cem por longos períodos de tempo, durante o dia, pessoas em situação de

371
Relações pessoa-ambiente na América Latina

rua que exercem o oficio de “flanelinhas” ou “pastoradores de carro” e de


muitas outras pessoas que a ocupam como vendedores ambulantes, nos
intervalos dos seus trabalhos, enquanto aguardam transportes públicos,
como transeuntes, por aqueles que a utilizam como espaço para o nada
fazer ou como cena de uso de drogas1, em dias e horários sem movimento.
Trata-se de um espaço urbano marcado por muitas “misturas” (Barreira,
2016): é sede do poder municipal, no mais das vezes enclausurado em
si mesmo e paradoxalmente distante do povo, mas também um espaço
“vivo” da cidade, onde a vida pulsa nas margens, protagonizada por prati-
cantes da cidade que a metamorfoseiam em muitos usos (Certeau, 2004)
e contra-usos, aqueles que alteram a paisagem e ressignificam os lugares
através de novas ações e sentidos que se desviam dos usos esperados pelas
políticas urbanas (Leite, 2007).
Pareceu-nos evidente que um projeto que tinha como objetivos a in-
clusão social, a apropriação da cidade e a ressignificação de modos de vida
não poderia se desenvolver dentro dos muros institucionais dos serviços de
saúde mental e arriscamos executá-lo naquele antigo prédio, em larga medida
ocioso. O espaço era ideal, limpo e colorido, arborizado, bem arejado, com
amplas salas e janelas e boa acústica. Feitas as negociações com a direção do
estabelecimento, as oficinas passaram a acontecer semanalmente, durante
quatro horas, nesse lugar, por dez meses. A presença semanal de pessoas com
transtornos mentais e em situação de rua, usuários e usuárias tão diferentes do
público que normalmente frequentava aquele espaço asséptico, fazia reverbe-
rar o direito à cidade, não apenas como direito à circulação, à mobilidade ou
ao acesso a bens e serviços, mas como um direito à “rebeldia urbana”, como
diria Harvey (2013). O direito à ocupação de espaços públicos é o direito a

1  Optamos pelo uso do termo drogas (sem aspas) ao invés também de “substâncias psicoativas” (SPA)
ao nos referirmos ao seu consumo por múltiplos e diversos usuários e atores socais. Com isso pretende-
mos escapar dos julgamentos morais que levam à criminalização do usuário e do uso de drogas ilícitas,
enquanto se tolera o uso/abuso de drogas lícitas (como álcool, tabaco e psicotrópicos). Entendemos que
a questão que implica o uso problemático das drogas diz respeito, antes, aos seus usos e não, necessa-
riamente, às substâncias em si. Esse é um debate amplo e complexo, que foge ao escopo deste capítulo.
Julgamos, contudo, importante essa demarcação política a fim de evitar interpretações dúbias quanto
aos aspectos moralizantes e/ou patologizantes que a questão pode comportar.

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(In)visíveis e loucos pela cidade: encontros entre saúde mental e população em ...

mudar e reinventar a cidade de acordo com nossos desejos, diz ele, e por isso,
trata-se de um direito muito mais coletivo que individual, de construirmos a
nós mesmos e as nossas cidades.
Para participar da experiência foram visitados e convidados os se-
guintes serviços da RAPS: Centro de Atenção Psicossocial III, Residência
Terapêutica do Distrito Oeste, Centro de Atenção Psicossocial II AD
e Ambulatório de Saúde Mental, além do projeto de desinstitucionali-
zação do hospital psiquiátrico público da cidade. O convite também se
estendeu aos membros do MNPR/RN, em suas reuniões semanais e foi
extensivo a pessoas em situação de rua que se encontravam próximas à
praça, defronte da Pinacoteca, de modo que as configurações do grupo
mudavam a cada semana. A cada oficina novas pessoas apareciam para
participar e outras voltavam, tanto usuários da rede de saúde mental
quanto pessoas em situação de rua. Esse caráter de “grupo aberto” foi
muito importante para o acolhimento das pessoas, de suas demandas,
necessidades e desejos no decorrer da experiência.
A equipe de trabalho foi formada por oito estagiários, dois extensio-
nistas, uma psicóloga facilitadora das oficinas e um diretor/ator voluntá-
rio e contava com a participação pontual de alguns técnicos do hospital
psiquiátrico que acompanhavam “os internos” e de familiares, além de
pessoas convidadas para apresentar técnicas e recursos artísticos que pu-
dessem enriquecer as oficinas. Os estagiários eram responsáveis por levar
os usuários dos serviços de saúde mental até a Pinacoteca, tendo como
ponto de encontro o CAPS III, todas as quartas-feiras à tarde. Reiteravam
os convites e acompanhavam os usuários às Oficinas, atuando também
como acompanhantes terapêuticos (AT). Participaram do planejamento,
execução e avaliação de cada oficina e também como atores, propositores
e experimentadores das práticas em todos os encontros.
Nos itinerários até a Pinacoteca muitas foram as experiências,
tensões, descobertas e invenções vividas nos encontros entre pessoas,
instituições e a cidade. Dentre as tensões, destacamos aquela que se
deu no encontro com o CAPS III em torno da decisão de “quem iria
com os estagiários para a oficina”. A decisão por parte da equipe do

373
Relações pessoa-ambiente na América Latina

serviço levava em consideração as condições físicas e psicológicas dos


usuários para participarem, atravessada pelo “medo” do que poderia
acontecer no caminho. Muitas eram as condições de participação e
de não participação, constituindo grupalidades heterogêneas e com
uma quantidade variável de participantes. Alguns usuários deixaram
de participar das oficinas por estarem frequentemente “dopados” no
horário (após o almoço) em que os estagiários passavam no serviço
para buscá-los. Outros porque a equipe não tinha segurança sobre sua
condição para participar da experiência. Outros foram sob a condição
de estarem acompanhados por um familiar, mas aos poucos foram dei-
xando de estar “sob tutela” e passaram a ir sozinhos no trajeto com os
estagiários e a facilitadora do grupo de teatro ou os próprios familiares
tornaram-se participantes integrais da experiência. Outros começaram
a participar da experiência quando estavam internados no CAPS III ou
no Hospital Psiquiátrico e continuaram a ir mesmo depois de saírem
dessa condição. Outros ainda eram “achados pelo caminho”, como é
o caso das pessoas em situação de rua que habitavam o território por
onde os itinerários eram traçados, estavam nas praças, estacionamentos,
esquinas. Fomos, então, no caminhar, dialogando com eles e assim
construindo a possibilidade de participarem das oficinas, mesmo com
as dificuldades relativas à busca por recursos para se alimentar, dormir,
etc., que, não raro, as impediam de participar.
Movidos pelas inspirações das proposições de Lancetti (2005) em
torno da “clínica peripatética”, apostamos nesses trajetos como momentos
de encontro com as pessoas, com suas histórias, com a cidade e com as
experiências que ela poderia produzir, disparar, suscitar nas pessoas, como
matéria-prima fundamental para as oficinas. Assim, as oficinas puderam
funcionar como dispositivo na atuação “entre muros” institucionais e como
espaço de “respiro”, descobertas, histórias e invenções.
O “entre muros” constituía-se nas oficinas e nos itinerários, trajetos
no caminhar pela cidade, suas ruas e praças até a Pinacoteca, espaços-
-tempo de conversas dos integrantes do grupo. Nele, acompanhamentos
terapêuticos foram sendo esboçados, ideias para as oficinas surgiram e

374
(In)visíveis e loucos pela cidade: encontros entre saúde mental e população em ...

também discussões em torno de questões dos próprios encontros, críticas


às oficinas e conflitos entre as pessoas foram sendo escutados e “trabalha-
dos” no caminho. Também aí se exercitou um novo (re) conhecimento
da cidade como espaço-tempo de produção de vida no e com o espaço
urbano. Dessa forma, muitos usuários revelaram que sua vida era restrita
ao circuito casa-serviço de saúde e por isso não conheciam o percurso, o
bairro, apesar de serem atendidos num serviço que fica na mesma região
da cidade. Nas caminhadas descobriram uma cidade a ocupar e explorar
em seus projetos de vida. Outros, pela condição de pessoas em situação
de rua, conheciam bem o percurso e suas histórias, mas desconheciam
a rede de saúde e outras instituições. Assim, nos encontros entre eles, as
trocas de saberes sobre a cidade e as instituições foram se produzindo,
numa rede de solidariedades, apesar da nossa insegurança nas aprendi-
zagens relativas ao cuidado, como relata uma das estagiárias:

Sobre o meu contato com a Rede de Atenção Psicossocial, um sentimen-


to que me marcou foi a insegurança, no sentido de que, para entrar no
CAPS temos de vestir nossa face mais alegre, compreensiva e acolhedora
e nem sempre estava disponível ... Me inquietava também ser uma para
cuidar de tantos, até que me dei conta das redes de solidariedade cons-
truídas por eles. Presenciei muito cuidado e afeto entre eles, borrando
barreiras que eu tinha. Até que me vi sendo cuidada por eles, acolhida,
como companheira de conversas, lembranças de alguéns que já não par-
ticipavam da vida deles, de momentos e histórias de vidas. (Fragmento
de diário de campo)

Essas redes de cuidado foram construídas nesses momentos na relação


com os usuários, enquanto outras foram sendo tecidas no processo. Redes
que se fizeram também na amizade como exercício ético no processo de
acompanhamento terapêutico, como afirma Palombini (2009):

É como diferença, distância, assimetria − sem recusa à solidão


imanente à incomensurabilidade entre o eu e o outro − que a
amizade faz-se presente à dinâmica do acompanhamento, numa
agonística que, pondo em questão certezas e crenças, incita à trans-
formação e inventa formas não prescritas de existência. (p. 302)

375
Relações pessoa-ambiente na América Latina

A amizade, como exercício ético político, foi acontecendo nas bordas


institucionais e nos espaços da cidade por onde foi possível circular, seja no
trajeto até a Pinacoteca, seja nos passeios em busca de “material” para ser
trabalhado nas oficinas (memórias de infância na cidade, espaços possíveis
de ocupação etc.), ou ainda nos trajetos que alguns dos participantes de-
mandavam no acompanhamento terapêutico, em sentido estrito. E nesse
exercício da amizade, percebemos que o fato de não estarmos “dentro” da
RAPS, mas experimentando com os usuários outros espaços da cidade,
permitiu outras práticas de cuidado, que apontavam à desconstrução das
relações de tutela que observávamos nas relações entre usuários e as equipes
de saúde. Nesse sentido, como afirma outro estagiário:

Aproveitávamos o percurso para conversar espontaneamente, perceber


como a sociedade nos encarava, perceber como encaramos a sociedade,
experimentarmos as diferentes modalidades de locomoção pela cidade:
o manejo da ansiedade da agorafobia numa avenida cheia de ônibus,
esbarrar com as limitações impostas pelo calçamento precário, parar
numa lanchonete e pedir um café, ser esquisito e “atrapalhar a ordem
pública”… e todas estas ações que enfim nos caracterizariam como cida-
dãos. (Fragmento de diário de campo)

Assim, percebemos como não eram apenas as relações de tutela e os


manicômios que secularmente ocupam cidades e as mentalidades que
poderiam ser descontruídas, mas também formas de relação nossa com
a cidade e da cidade com os diferentes, dos quais, na ação de caminhar,
impúnhamos a presença. Presença que consiste no fundamento primeiro
do direito à cidade, não como um simples retorno às cidades tradicionais,
mas como criação de obras, de espaços que subvertam a lógica comercial
da sociedade urbana e que proponham trocas não comerciais, encontros
que encham os vazios mercadológicos do capital, como nos propõe Henri
Lefebvre (2001). Assim, fomos exercitando nossa produção no alargamento
da cidade e a transformação dessas relações, como efeitos possíveis. Efeitos
evidentes quando, ao voltarmos da primeira oficina de teatro junto com os
agora “atores-usuários”, pudemos perceber olhares curiosos e entusiasma-
dos, alguns sorrisos desconfiados de pessoas nas ruas ao ouvirem o grupo,

376
(In)visíveis e loucos pela cidade: encontros entre saúde mental e população em ...

por exemplo, cantarolar: “Tire seu sorriso do caminho que quero passar
com a minha dor. Se hoje pra você eu sou espinho, espinho não machuca
a flor...” (da música A Flor e o Espinho, de autoria de Nelson Rodrigues).
A transformação das relações com a cidade passa então pela transfor-
mação da própria cidade através da desconstrução de preconceitos e estere-
ótipos em torno da loucura e do “morador de rua”, o que se deu primeiro
em nós e nos próprios profissionais das equipes que foram percebendo
mudanças nos “modos de estar” dos usuários, como conta uma estagiária:

Logo no primeiro dia de oficina muitos usuários mostraram interesse em


participar, contudo quando fomos negociar com a equipe técnica surgiram
muitos entraves, como por exemplo: “Não, ‘F’ não pode ir, ele está em crise e
internado em tempo integral”; “Sicrano não pode ir, tem pensamentos deli-
rantes, a qualquer momento pode fugir, se ele for vocês devem ficar de olho
nele”. Apesar do peso colocado em nossas costas, da responsabilidade pela
vida daquelas pessoas, conseguimos negociar com as técnicas. Foi curioso
perceber o quanto a instituição tem uma imagem diferente da que temos
quando entramos em contato com os usuários. Caminhamos com eles na ci-
dade, participamos inteiramente da oficina. Não, eles não “deram trabalho”;
não precisamos ir atrás deles e tentar prendê-los na oficina. Quando faze-
mos com desejo, cuidado e propósito, os sentidos se desvelam, e a vontade
de vida reluz. Os sujeitos aparecem, os corpos ganham vida. (Fragmento de
Diário de Campo)

A experiência de produção e condução das oficinas usou o recurso da


observação participante e da participação observante (Favret-Saad, 2005)
vivenciando os processos e os efeitos do trabalho sobre nossos próprios
corpos, sentimento e emoções, o que nos ajudou a superar a dicotomia
entre sujeito-objeto, técnico-usuário e cuidador-cuidado, tão comum nas
práticas dos serviços de saúde, que hierarquiza saberes, restringe afetos
e reproduz relações de poder cristalizadas. Um exercício que apontou a
produção da transversalidade (Guattari, 1987; Simonini & Romagnoli,
2018) como recurso e possibilidade para se pensar novas configurações no
trabalho corporal, artístico e cultural com grupos vulneráveis no campo
da saúde. Trabalhamos, assim, orientados pela noção de que, aqui, o que
se passa com um indivíduo ou grupo no encontro com a cidade e suas

377
Relações pessoa-ambiente na América Latina

nuances e seus desafios, é transversalizado pelas diferentes dimensões da


subjetivação em jogo, ou seja, pelos aspectos do desejo, do campo social, da
política, da economia e das instituições em geral. Dessa forma, o trabalho
envolveu sempre o plano coletivo de análise e ação.

A produção do coletivo de trabalho como processo


clínico-político na cidade

Partimos da compreensão de coletivo como certo modo de relação que


se dá pelas práticas dos sujeitos envolvidos, em função das circunstâncias,
paixões, ações, entre outras coisas e sem dicotomizar individual e coleti-
vo, na produção de novas potências num plano de forças comum que é
construído nessa relação, como afirma Escóssia (2009). Segundo a autora:

o plano do coletivo não se dá por oposição ao indivíduo, nem se


confunde com um social totalizado, nem com a interação entre
seres já individuados. Trata-se de um coletivo a ser apreendido a
partir de dois planos distintos, porém, inseparáveis. Planos que se
cruzam desfazendo as binarieades: o plano das formas e o plano
das forças. (Escóssia, 2009, p. 690)

Procuramos acionar e produzir esses dois planos, indissociados. O


plano das formas que seria o plano da proposição organizativa das oficinas
e dos trajetos, seu planejamento, a sua estruturação, os instituídos (Lourau,
2004) das relações que ali se afirmaram e atravessaram a experiência, tanto
no coletivo (agenda, horário, funções de cada um etc.) como nas pessoas
individualmente (família, uso de medicações, diagnósticos etc.). O plano
das intensidades, das forças, da criação das formas se deu entre as pessoas
e seus desejos que ali também foram afirmados a cada encontro. Sempre
em tensão, esses planos foram se apresentando na experiência, gerando
movimento, rupturas, criação. Com isso, levamos o campo de práticas
para a cidade, nos encontros, nos prédios públicos, nas ruas e avenidas,
nas esquinas, praças e calçadas, apostando no alargamento dos espaços
percorridos que também significava o alargamento de possibilidades de vida.

378
(In)visíveis e loucos pela cidade: encontros entre saúde mental e população em ...

Procuramos produzir deslocamentos nas vidas “institucionalizadas” e


marcadas pelo estigma da loucura e ou do “morador (a) de rua” e transitamos
pelos espaços da cidade, buscando memórias das vidas e descobertas como
elementos para a construção dos exercícios teatrais e expressões de comu-
nicação que permitiram o deslocamento das subjetividades. Trabalhamos
com as pistas e as possibilidades de alguns trajetos da existência que foram
bloqueados, desvalorizados, constrangidos. Naqueles espaços-tempos das
ruas da cidade e da Pinacoteca elas podiam emergir, através do movimento,
da dança, do canto, do desenho, da poesia, da escrita, produzindo alguma
alegria, alguma leveza, alguma liberdade. O cuidado em saúde mental
produziu-se dessa forma, ao contrário dos moldes institucionalizados
baseados no diagnóstico da doença ou da condição social. Produziram-se
na criação outras relações e encontros entre as pessoas e suas histórias,
sua cidade (aquela que ali foi sendo reconhecida por todos e cada um) e
o mundo que as circunda. Essas relações e encontros mostraram-se como
importantes intercessores na produção de novas subjetividades, onde não
é a doença ou a vulnerabilidade que ocupa o centro da atenção e do cui-
dado, mas as possibilidades de resistência que esses corpos já produziram
e ainda poderiam produzir na vida. Aí tiveram lugar também a tristeza,
o silenciamento, as marcas das opressões nos corpos, as inibições, os des-
sabores da vida que, em muitos momentos, puderam ganhar, na força do
testemunho e na potência dos encontros, outros sentidos e serem vertidos
em alegria, coragem e esperança.
Foi preciso muitas histórias de vidas ceifadas pelo silenciamento sus-
tentado por uma epistemologia médico-psiquiátrica que reconhece práticas
de aprisionamento e tortura enquanto ferramentas ditas de cuidado para
pensar uma nova proposta de assistência do cuidado no campo da saúde.
E ainda há um longo caminho na direção de uma cidade capaz de acolher
essas vozes, essas diferenças. Por conseguinte, há necessidade da invenção
na construção de práticas de cuidado que dialoguem intimamente com
as trajetórias de vida das pessoas, com as ruas da cidade, ou seja, com a
“vida em ato”. Que a loucura e as precariedades das vidas perambulem pelo
cotidiano citadino, fazendo transver as lógicas do mundo, dos cidadãos e

379
Relações pessoa-ambiente na América Latina

cidadãs que nele habitam! Deparamo-nos com as linhas intangíveis da vida,


sustentando-as na potência do cotidiano, enquanto ferramenta, e acredi-
tando em uma proposta epistemológica que dialogue com as vicissitudes
do viver, sem perder de vista o processo histórico social e político do capi-
talismo, como modo de produção econômica e como produção de modos
de vida, que conduz a este estado de coisas que é necessário transformar.

Figura 1: Imagem da Oficina de Teatro

Fonte: Arquivo do Projeto (In)Visíveis e Loucos pela Cidade

Outro ponto importante que podemos afirmar com a experiência diz da


aposta na construção inseparável do saber-fazer, da teoria-e-prática, ou seja,
foi possível na construção de cada oficina elaborar um caminho que afirmava
a liberdade enquanto exercício de cuidado nos dias de caos da cidade, da
casa, das relações e enquanto análise das instituições que nos atravessavam,
colocando-as em questão. Como nos disse Deleuze (1972) numa instigante
conversa com Foucault, publicada sob o título “Os Intelectuais e o Poder”:

As relações entre teoria e prática são muito parciais e fragmentá-


rias. A prática é um conjunto de revezamentos de uma teoria a ou-
tra e a teoria um revezamento de uma prática a outra. Nenhuma
teoria pode se desenvolver sem encontrar uma espécie de muro e é
preciso prática para atravessar o muro. (pp. 69-70)

380
(In)visíveis e loucos pela cidade: encontros entre saúde mental e população em ...

A nossa experiência, então, foi se constituindo como prática em


diálogo com as teorias sobre vida, cotidiano, saúde, cuidado e cidade,
procurando fazer as conexões capazes de ir nos conduzindo. Por isso,
apostamos em relações que se constituíssem de elos, pois a vida se faz
nas conexões construídas nos encontros e na produção de autonomia no
sentido da multiplicação das redes afetivas e institucionais, que entenda
saúde como a capacidade de gerar vida, de criar redes que atam vidas
e autonomia, no sentido de multiplicação de redes de dependências
(Merhy, 2004).
Os espaços coletivos das oficinas promoveram vínculos entre os
integrantes e não integrantes dos movimentos sociais e envolveram
expressão artística, formação política e pensamento crítico, através da
partilha de histórias de vida. Nas oficinas de teatro, com pesquisa cê-
nica/performática, foi possível que as biografias dos envolvidos fossem
reinventadas a cada encontro e modificadas subjetivamente, promovendo
espaço de expressão e cuidado grupal. Dessa forma, podemos afirmar
que se tratou de um trabalho clínico-político, no sentido proposto por
Passos e Benevides (2009).

Figura 2: Imagem da Oficina de Comunicação

Fonte: Arquivo do Projeto (In)Visíveis e Loucos pela Cidade

381
Relações pessoa-ambiente na América Latina

As oficinas de comunicação, por sua vez, promoveram espaços de


discussão política de temas atuais sugeridos pelos participantes, motivando
a produção de textos (poesias, narrativas etc.) e peças visuais (desenhos,
fotografias, pinturas) que compuseram zines (jornais artesanais). Os zines
foram distribuídos pela cidade e assim deram visibilidade às pautas dos
coletivos e movimentos sociais, aos eventos promovidos pelos partici-
pantes e suas expressões artísticas. Além disso, o acompanhamento dos
coletivos organizados de usuários permitiu o incentivo à participação em
instâncias de controle social com a conquista de assentos nos Conselhos
Municiais de Saúde e de Políticas sobre Drogas (CMS e COMUD),
num exercício de ir ocupando os espaços de “governo” da cidade e ir
se fazendo ver e ouvir as vozes e vidas daqueles histórica e socialmente
silenciados e invisibilizados.

Considerações finais

A constituição de espaços coletivos de expressão cultural e polí-


tica na cidade, com pessoas em situação de rua e/ou com transtornos
mentais, familiares, trabalhadores e acadêmicos, permitiu a análise e
discussão nos coletivos acerca dos determinantes das violências e das
relações de sujeição sofridas, das potenciais transformações da reali-
dade e dos destinos das pessoas e das políticas públicas, fortalecendo
os direitos humanos.
Além disso, através da expressão cultural e participação social, temos
a arte como intercessora na produção instituinte de vida, de cidadania e
do direito à cidade. De tal modo que na nossa experiência foi possível
experimentar a afirmação de Luiz Fuganti (1990):

Espíritos desprendidos e ousados nos quais reinam as forças ati-


vas e criadoras, isto é, potências artísticas que amam ... o des-
conhecido, o imprevisível, as misteriosas surpresas do estranho.
Assim, o pensamento, em vez de reprimir, negar ou acusar a vida,
potencializa-a. (p. 43)

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(In)visíveis e loucos pela cidade: encontros entre saúde mental e população em ...

Figura 3: Imagem da Mostra “Amor é uma arma quente” na praça em frente a Pinaco-
teca Potiguar

Fonte: Arquivo do Projeto (In)Visíveis e Loucos pela Cidade

Figura 4: Imagem da Mostra “Amor é uma arma quente” – Exposição de fotografias e


fanzines

Fonte: Arquivo do Projeto (In)Visíveis e Loucos pela Cidade

No entanto, a experiência não foi apenas de potência e afirmação


das vidas. É preciso reconhecer que o ano em que se realizou foi intenso,

383
Relações pessoa-ambiente na América Latina

com muitas lutas travadas, como têm sido os anos subsequentes, até a
presente escrita. O ano de 2016, marcado por um golpe de estado no
Brasil, representa o início do desmonte de inúmeras conquistas e direitos
sociais e nos convocou a uma finalização do projeto de modo a fazer valer
certos compromissos éticos e políticos. As consequências desse desmonte
já foram sendo evidenciadas ao longo do trabalho. Por isso, resolvermos
concluir com uma mostra de trabalhos fruto das oficinas e memória de
todo o processo, afirmando nossa indignação e denunciando a situação
de criminalização da pobreza e dos movimentos sociais desencadeada pela
nova conjuntura política e econômica, que, infelizmente, se estende e se
agrava nos dias atuais. A Mostra chamada de “Amor é uma arma quente”
teve lugar em dezembro de 2016, nos salões da própria Pinacoteca e nas
praças ao redor. Ela teve como objetivo discutir esses temas e, ao mesmo
tempo, dar visibilidade às pautas políticas dos movimentos e aos trabalhos
das pessoas construídos ao longo do ano. Dentre as atividades, ocorreu a
primeira mostra cênica dos trabalhos fruto do coletivo “Vento dos Avoados”
que se constituiu no projeto, exposição das fotografias e vídeos produzidos
que contaram a história da experiência das oficinas, dos pequenos eventos
e manifestações que tiveram lugar ao longo do processo. As andanças, os
protestos em frente aos “Três Poderes” promovidos pelo MNPR, as rodas
de capoeira nessa mesma praça em alusão ao Dia Nacional da População
de Rua, as apresentações, dentro e fora da Pinacoteca, na Semana da Luta
Antimanicomial, promovidos pela Associação Potiguar Plural, entre outros
momentos registrados. Nos debates ao final de cada apresentação, as vozes
circulavam e tiveram espaço e tempo para expressão, enquanto

Um pensar que está no plano dos acontecimentos e evidencia-se


nos movimentos e grupalidades que possibilitam a inauguração
de outras formas de existência, expressando sensações e criações
diversas daquelas impostas e reproduzidas. Por isso, afirmamos
ser possível experimentar um mundo sem assujeitamentos, um
mundo auto-regulável, apesar das constantes capturas e constran-
gimentos a que estamos sujeitos e expostos a cada momento de
nossas vidas. (Coimbra & Leitão, 2007, p. 169)

384
(In)visíveis e loucos pela cidade: encontros entre saúde mental e população em ...

Concluímos, assim, com a afirmação desse mundo que experimenta-


mos no enfrentamento concreto e cotidiano a este outro, historicamente
excludente e genocida, que quer nos capturar. Mundo e cidade que segui-
mos fazendo acontecer nos agenciamentos dos nossos corpos e dos nossos
desejos de que as diferenças tenham lugar, cor, cheiro, pele e voz e de que
toda e qualquer vida tem direito a existir e pode mais.

385
Relações pessoa-ambiente na América Latina

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387
Capítulo VIII

“Além das cercas, o meu lugar”:


resistência, agroecologia e transformações
socioespaciais no contexto rural
Leonardo Victor de Sá Pinheiro
Fernanda Fernandes Gurgel
José Queiroz Pinheiro

Introdução

O estudo aqui apresentado faz parte de uma pesquisa mais ampla que
investigou a natureza da relação com o lugar, a partir das vivências de
produtores agroecológicos de um assentamento rural. Compreender a relação
com o lugar na perspectiva dos agricultores agroecológicos, bem como os
reflexos em relação ao contexto sociopolítico, econômico e ambiental cons-
titui um cenário paradoxal e complexo, principalmente se considerarmos
a agroecologia como um movimento contra-hegemônico ao imperialismo
do capitalismo contemporâneo.
Ao pensar a agroecologia além das fronteiras da produção e consumo,
este estudo colabora com aspectos de construção e contribuição teórica do
fenômeno investigado, reconhecendo a relevância para o desenvolvimento
de incentivos que possam estimular a permanência do agricultor no campo,
especialmente em contexto de profunda vulnerabilidade social, como é o
caso do assentamento analisado.
No decorrer da pesquisa surgiram elementos da história da comunidade
que remetem a um processo de luta pela propriedade da terra, permeada por
violências, disputas, bem como protagonismo e resistência comunitária. Tais
lutas não ficaram apenas no passado do local. Elas permanecem, embora
enfrentem diferentes opositores, mais difusos, materializados por meio do
turismo e da energia eólica, mas que fazem parte de uma mesma estrutura
que obedece às formas de produção e perpetuação do capital, que subjugam

389
Relações pessoa-ambiente na América Latina

as memórias locais e as características do território. O assentamento Canto


da Ilha de Cima, local onde a pesquisa foi realizada, pode ser entendido
como uma expressão das diferentes faces do problema agrário no Brasil e
suas contradições. São estes processos de resistência no campo, com con-
tornos agroecológicos, que vão compor o nosso capítulo.
Ao compreender o território como reflexo das ações de seus habitantes,
o assentamento foi escolhido tendo em vista as particularidades e mudanças
ocorridas nos últimos anos, o que possibilitou analisar diferentes aspectos da
experiência agroecológica integrada a um lugar em contínua transformação.
Localizado no litoral leste potiguar, São Miguel do Gostoso é uma
pequena cidade do interior do estado do Rio Grande do Norte, pertencen-
te à região conhecida como Mato Grande. Por estar em região litorânea,
a aproximadamente 102 km de distância da cidade do Natal (capital do
estado), o município vem recebendo grande influência do turismo e da
especulação imobiliária nos últimos anos. A prestação de serviços, por meio
de bares, pousadas, restaurantes e passeios turísticos, atualmente é uma das
principais fontes de renda da região, empregando moradores tanto da zona
urbana como rural.
Além do lazer junto à natureza, os novos usos e funcionalidades atri-
buídos aos ventos fazem com que São Miguel do Gostoso seja referência
também como lugar propício para a geração de energia renovável. Ao possuir
uma posição geográfica que favorece a presença constante dos ventos alísios,
a instalação de parques eólicos extrapola os limites da cidade, atraindo
investimentos nacionais e estrangeiros no litoral nordestino e, de forma
substancial, no litoral potiguar, considerado um dos estados com maior
potencial de produção desse tipo de energia do país (Centro de Estratégias
em Recursos Naturais & Energia [CERNE], 2014).
Como pode ser observado, o vento, o mar e a terra possuem funções
importantes na construção social de São Miguel do Gostoso, influenciando
fatores relacionados ao desenvolvimento econômico, socioambiental e à
construção da identidade cultural da cidade. Nesse sentido, diante das
novas configurações que foram se formando ao longo dos últimos anos, os
moradores das zonas urbanas e rurais tiveram que se adaptar a contextos

390
“Além das cercas, o meu lugar”: resistência, agroecologia e transformaçõe...

moldados pelo processo de turistificação e instalação de usinas eólicas,


bem como, por práticas de cultivo de alimentos de forma convencional,
que pudessem atender à demanda cada vez mais crescente acarretada pela
expansão da cidade.
Apresentando uma diversidade natural sob o domínio do clima ári-
do e semiárido, as atividades agrícolas e agropecuárias desenvolvidas na
região são altamente dependentes do irregular regime pluviométrico e da
porosidade do solo. A agricultura predominante de perfil familiar, que,
nos últimos anos, passou a ganhar cada vez mais relevância com a criação
dos assentamentos, destaca-se pelos aspectos sociais e econômicos desen-
volvidos (Araújo, 2009).
Caminhando na contramão da produção agrícola com o uso de veneno
químico, alguns assentamentos de São Miguel do Gostoso encontraram no
cultivo de forma agroecológica uma maneira de permanecer e sobreviver
diante do modelo hegemônico de produção. Localizado na zona rural de
São Miguel do Gostoso, o assentamento Canto da Ilha de Cima fica a
aproximadamente 25 km de distância da sede municipal, perto do litoral.
O acesso ao lugar é precário e difícil, de estrada carroçal, formada por barro
e areia proveniente das dunas. Com uma história marcada por muitos
conflitos e ameaças, o assentamento teve início oficialmente em 1995,
quando algumas famílias de trabalhadores e trabalhadoras rurais lutaram,
ocuparam e conquistaram o seu pedaço de terra, em uma fazenda sem uso.
Formada inicialmente por uma comunidade de 89 famílias que re-
sidem em duas Agrovilas (Canto da Ilha de Cima I e Canto da Ilha de
Cima II), atualmente, mesmo com a saída de muitos moradores, o assen-
tamento conta com quantitativo bem maior de pessoas, tendo em vista o
crescimento das famílias que já ocupavam e a chegada de novos habitantes
no lugar. Não há posto de saúde, escola, igreja e nem tampouco sinal de
celular no lugar. As ruas de terra batida e seca deixam o ambiente com
uma tonalidade amarronzada, o que contrasta com o verde que surge nos
espaços de plantação dedicados às hortas agroecológicas. Estas, por sua
vez, ficam frequentemente localizadas próximas às casas dos agricultores,
facilitando o controle e a manutenção.

391
Relações pessoa-ambiente na América Latina

A agropecuária é uma das principais atividades econômicas das famí-


lias que moram no lugar, predominando a criação de ovinos e caprinos.
De forma paralela, a agricultura convencional, que durante muito tempo
foi a atividade predominante entre os moradores, também faz parte da
produção de culturas tradicionais.
Por estar localizada na região do semiárido potiguar, os agricultores en-
contraram muitas dificuldades para continuar produzindo no assentamento,
principalmente devido à escassez de água decorrente da irregularidade das
chuvas nos últimos anos, o empobrecimento do solo com a utilização de
substâncias químicas e a competitividade do cultivo em larga escala com
o uso de agrotóxicos realizada nos municípios vizinhos. Tais dificuldades
fizeram com que alguns moradores procurassem novas fontes de renda e/
ou se mudassem para a cidade em busca de trabalho e melhores condições
de vida, deixando o lugar e abandonando a atividade agrícola.
Percebe-se que a história do assentamento sinaliza a existência de
uma classe de trabalhadores rurais que foi excluída do mercado formal e
sofreu os efeitos causados pela modernização e reestruturação produtiva da
agricultura convencional. O enfraquecimento do solo, a dependência dos
atravessadores, o clientelismo nas agências do capital e a angústia frente
à ameaça espectral do uso de agrotóxicos fizeram com que um grupo de
moradores se unisse para discutir e organizar uma experiência alternativa
de cultivo que possibilitasse continuar com o trabalho agrícola na região.
Dava-se início, portanto, ao cultivo de alimentos na forma agroecológica,
alternativa encontrada para tentar superar as contradições advindas do modo
hegemônico de produção, além de proporcionar melhorias na qualidade
de vida com uma alimentação mais farta e saudável, e uma renda extra
para as famílias assentadas.
Diante da pouca experiência com a produção agroecológica, o pequeno
retorno financeiro inicialmente gerado e a costumeira utilização de subs-
tâncias químicas na plantação, alguns integrantes deixaram o grupo, que
passou a ser constituído, desde então, principalmente por pessoas com fortes
vínculos familiares (esposas, filhos, irmãos e tios). Após alguns anos, com a
experiência adquirida pelo grupo, a área plantada aumentou e, com isso, a

392
“Além das cercas, o meu lugar”: resistência, agroecologia e transformaçõe...

diversificação das culturas. Atualmente, o grupo encontra-se consolidado,


sendo responsável pela produção de diversos cultivos de frutas e hortaliças.
O assentamento analisado foi escolhido devido às suas particularida-
des, já que, diante das inúmeras dificuldades enfrentadas, foi por meio do
cultivo sem a utilização de agrotóxicos que algumas famílias rurais encon-
traram novas alternativas de permanecer no lugar. A mudança da forma
de produção foi refletida também na transformação do modo de vida da
comunidade rural, influenciando em aspectos socioespaciais dos moradores.
Neste estudo, o caso foi constituído pelo conjunto de agricultores
do assentamento rural que realizaram a transição do cultivo convencional
para o agroecológico. O estudo adotou um posicionamento com ênfase no
paradigma interpretativista (Daft & Weick, 2005), ancorado em princípios
da abordagem qualitativa, de inspiração etnográfica e caráter exploratório
(Chamaz, 2009). Em termos de estruturação, o estudo utilizou uma abor-
dagem multimétodos (Günther, Elali, & Pinheiro, 2008).
Durante os seis meses que se seguiram ao longo do processo de aproxi-
mação do contexto investigado, um dos pesquisadores permaneceu durante
uma semana morando na residência de um dos agricultores do lugar. A per-
manência direta na comunidade possibilitou compreender melhor o entorno
dos agricultores, observar as relações individuais e coletivas entre eles e a
comunidade, bem como a interação com o assentamento de modo geral. Tal
escolha foi realizada por possibilitar, segundo Yin (2005), uma investigação
de um fenômeno contemporâneo em seu contexto natural, preservando
características dos acontecimentos da vida real. As primeiras visitas ao lugar e
conversas com os assentados foram fundamentais para estabelecer o processo
de confiança e conhecimento sobre as intenções do estudo.
Visando a auxiliar na aproximação com os agricultores do assentamento,
a observação participante foi realizada, permitindo um melhor acesso do pes-
quisador a aspectos importantes da “inter-ação” das pessoas com o ambiente.
O diário de campo foi adotado como instrumento de pesquisa, possibilitando
o registro das informações produzidas no contexto investigado, ao serem
descritos acontecimentos e também as impressões percebidas. Também foram
realizadas entrevistas, o que se mostrou uma técnica adequada, por meio da qual

393
Relações pessoa-ambiente na América Latina

foram realizadas perguntas disparadoras que versaram sobre histórias de vida, a


conquista pela terra, o começo do trabalho com a agricultura e o processo de
transição do cultivo convencional para o agroecológico e relação com o lugar,
adaptadas dos estudos de Raymond, Brown e Weber (2010). Tais perguntas
abordavam aspectos relacionados à identidade e dependência do lugar, a relação
do agricultor com a natureza, com a comunidade e também com a família.
O corpus construído com as entrevistas e o diário de campo foi explo-
rado com base na análise de conteúdo temática, de lógica interpretativista
(Braun & Clarke, 2006). A análise das primeiras entrevistas ocorreu de
forma concomitante à coleta, o que possibilitou que algumas questões fossem
aprofundadas e elucidadas em entrevistas subsequentes (Creswell, 2007).
Os participantes, contemplados no estudo por meio de nomes fictícios,
foram escolhidos intencionalmente e por acessibilidade, sendo pesquisados
dez agricultores (incluindo marido, esposa e filhos), oriundos de quatro
famílias que estão vinculadas diretamente ao cultivo agroecológico. O
critério de escolha dos entrevistados ocorreu também conforme a faixa
etária dos sujeitos, uma vez que foram escolhidos, no mínimo, dois de
cada família, sendo um mais velho e outro mais jovem. O critério etário
teve como finalidade perceber as percepções, vivências e mudanças no
modo de vida, o que poderia acrescentar novos significados e relações ao
ambiente investigado.
Além de ser adotado o critério de saturação teórica (Chamaz, 2009), a
definição da amostra também está fundamentada na representatividade das
entrevistas por meio da profundidade da análise, do fenômeno investigado e
do rigor metodológico, ao invés da quantidade de sujeitos pesquisados (Mi-
nayo, 2002). A amostra foi composta por cinco pessoas mais velhas, sendo
dois homens e três mulheres com idades que variaram entre 44 e 55 anos.
Todos eram casados e em plena atividade com o trabalho agroecológico. Em
relação ao nível de escolaridade, somente os homens haviam finalizado o ensino
fundamental, tendo as mulheres cursado, no máximo, até a 7ª série do antigo
regime fundamental. Quanto aos jovens, a distribuição em relação ao gênero
também foi semelhante, participando das entrevistas dois homens e três mu-
lheres com idades entre 18 e 30 anos. Dois deles (um homem e uma mulher)

394
“Além das cercas, o meu lugar”: resistência, agroecologia e transformaçõe...

possuíam o ensino fundamental completo, dois (um homem e uma mulher)


o ensino médio completo e uma participante apresentou curso universitário e
especialização. Em relação à ocupação profissional, todos ajudavam exclusiva-
mente a família na agricultura, com exceção da entrevistada que apresentou o
maior nível de escolaridade, que também dividia seu tempo como professora
do ensino fundamental em uma escola pública municipal.

Rompendo cercas: a disputa pela terra

Antes mesmo de ser um assentamento, o local onde hoje se localiza o


Canto da Ilha era uma fazenda pouco utilizada pelo antigo proprietário.
Segundo o relato dos atuais moradores, a antiga fazenda traz as lembranças
do tempo de infância, das brincadeiras com os amigos e do trabalho
no roçado junto à família. Nascidos e criados “dentro da agricultura”,
consideravam a fazenda e suas comunidades “tudo uma coisa só”.
As experiências vividas e resgatadas nas falas dos moradores estão ligadas
à influência que as recordações do tempo de criança podem exercer nas
histórias do passado ambiental do lugar. Desse modo, a dimensão temporal
passa a ocupar importante significado na estruturação da identidade social
e de lugar (Medeiros, 2005). A esse respeito, Bailey, Devine-Wright e Batel
(2016) também enfatizam que as relações sociais estabelecidas, juntamente
com as memórias de infância, são costumeiramente negligenciadas nos
estudos que investigam a relação das pessoas com os ambientes.
Diante da necessidade de terras para o cultivo e sobrevivência, os
moradores das cidades vizinhas utilizavam partes da antiga fazenda para
suas plantações. Com o avanço das áreas ocupadas para a agricultura,
não demorou muito para que coações e constantes ameaças começassem
a acontecer para a desocupação do lugar. Nesse período, a união entre as
pessoas das comunidades vizinhas iniciou um movimento de resistência e
luta pela terra, como relata Tião:

Nós se reunimos um dia aqui, homem, mulher e criança e fomo pra den-
tro do mato, acho que nós tinha aproximadamente umas 200 pessoas,
entre grande e pequeno, e derrubamo essa cerca na foice, estaca cortada

395
Relações pessoa-ambiente na América Latina

de três pedaço, sabe? (Tião, 55 anos)

Os desafios enfrentados na época são lembrados nos discursos de vários


assentados e transmitidos através das gerações mais jovens de familiares, que
também passaram a transformar o lugar com o trabalho no roçado, ganhan-
do cada vez mais importância e significado. Nesse contexto, foi possível
perceber a existência de distintas relações de disputa da terra, por um lado a
intensificação da propriedade privada da fazenda - própria do capitalismo -
e, por outro, os agricultores e a luta que tem como base a sobrevivência do
indivíduo por um lugar para plantar. A esse respeito, Tião continua:

Eu uso bem essa terra, eu uso bem porque eu planto, eu colho, eu crio ....
A gente sente que a gente tá aqui pela uma causa justa, né. A gente tá
aqui porque queremos a terra, queremos trabalhar, isso aí faz com o que
a gente fique, a gente se apegue mais, né? (Tião, 55 anos)

Os moradores já realizavam formas de apropriação do espaço onde


posteriormente viria a ser o assentamento, sendo esse apropriado tanto
pelo coletivo quanto pelo sujeito em sua singularidade. Nesse aspecto, Pol
(1996) elucida que o processo de apropriação ocorre não somente da pessoa
para o espaço, mas também ao contrário. Ou seja, assim como a pessoa
transforma o espaço, este também a transforma, refletindo sua identidade
e estilo de vida que estão ligados aos modos de ser e fazer.
As vivências relatadas também remetem a Tuan (1983), ao ressaltar
que o lugar pode possuir diferentes significados dependendo de quem
dele se apropria. Ao envolver uma complexidade de interações entre o ser
humano e o ambiente, entende-se que a apropriação da antiga fazenda para
o lazer e o trabalho foi um aspecto importante na relação dos assentados
com o lugar. Assim, as experiências de vida e os conflitos de acesso à terra
contribuíram para formação de relações históricas, sociais e culturais no
Canto da Ilha, que possibilitaram o desenvolvimento de diferentes formas
de se relacionar e significar o ambiente.
Nessa perspectiva, diante da variedade de cenários e emoções que foram
construídas por meio das experiências, sentimentos ambivalentes foram

396
“Além das cercas, o meu lugar”: resistência, agroecologia e transformaçõe...

constatados em relação ao Assentamento como, por exemplo, amor, orgulho


e gratidão da conquista do lugar para produzir no que agora é “seu”, bem
como sentimentos de medo e tristeza relacionados aos momentos difíceis
de resistência, coação e luta pela terra. As memórias demonstraram um
sentimento nostálgico vivido pelos moradores, o que, conforme Flemsæter
(2009), “são aspectos-chave nos sentimentos de lar e na forma como as
propriedades rurais são promulgadas” (p. 206).

Agroecologia como (re)sistência e modo de vida

Constitutiva do modo de vida de muitos assentados, a organização em


torno da agricultura confere forma e significado à relação dos moradores
com o lugar. O trabalho no roçado e o processo de conquista do assenta-
mento muitas vezes se confundem nas histórias relatadas, ocupando a terra
determinada centralidade na forma de uso e ocupação do lugar.
A agricultura convencional durante muito tempo fez parte da
atividade predominante entre os moradores. Entretanto, com o passar
dos anos, o enfraquecimento do solo e a dependência dos atravessa-
dores fez com que um grupo de moradores iniciasse uma experiência
agroecológica de cultivo, que possibilitasse continuar com o trabalho
agrícola no lugar. Tal mudança da forma de produção foi refletida
também na transformação do modo de vida da comunidade rural,
influenciando em aspectos socioespaciais dos moradores, o que pro-
porcionou diferentes usos e transformações dos espaços conquistados,
como relata Elizete:

Eu fico felicíssima porque a nossa vida antes é muito diferente do que a


gente tem hoje. Muito! E hoje, a gente assim… é de lá que a gente tira
nosso sustento. Mas não é só a questão do dinheiro, pode ter uma fruta,
uma verdura. A gente tira dali o que a gente pode usar em casa, sem
precisar comprar… isso é gratificante. (Elizete, 30 anos)

Além da subsistência, as famílias dos agricultores conseguem manter


um ganho financeiro mais previsível com a venda dos produtos na feira

397
Relações pessoa-ambiente na América Latina

que acontece semanalmente na cidade de São Miguel do Gostoso. Além


do local para venda dos alimentos cultivados no Assentamento, a feira
também funciona como um meio de aproximação e comunicação direta
com os consumidores, o que possibilitou reconhecer a importância dos
seus trabalhos, firmando laços de amizades, confiança e fidelidade com
os clientes. Nesse aspecto, a feira também permitiu que a identidade dos
agricultores ganhasse um novo significado, havendo uma nova compre-
ensão do trabalho.
A esse respeito, Bow e Buys (2003) acreditam que o atendimento
aos objetivos e necessidades físicas e psicológicas proporcionados pelo
lugar pode funcionar como uma forma de dependência em relação a esse
ambiente. Tal aspecto possibilita analisar como o Assentamento se torna
um lugar importante por proporcionar o cultivo na terra tanto para o
consumo próprio como para renda familiar, além de ser o endereço fixo
para moradia, trabalho e lazer.
O trabalho nas hortas também possibilitou que os produtores dei-
xassem de trabalhar com os chamados “bicos”, e - como eles mesmos se
consideram - se tornassem “donos do próprio negócio”. Ao ganhar relativa
autonomia e independência de trabalho e renda, as unidades de produção
proporcionaram consumo e mudança nas relações sociais de trabalho,
passando alguns produtores da condição de se verem como empregados
para uma percepção como empregador, conforme relata João:

Eu digo aos meninos que eu já sou um proprietário, é... como é que cha-
ma? Um empresário... que já tenho minha própria renda, né. ... as coisas
que a gente quer adiantar, a gente bota até algumas pessoa pra traba-
lhar, né? Já aumenta as coisa, né? (João, 44 anos)

Nesse contexto, ainda que a Agroecologia procure se contrapor ao


sistema capitalista hegemônico de produção, percebe-se nos relatos dos
agricultores aspectos relevantes pelos quais o capital também se dissemina.
Conforme os relatos, é possível verificar uma reprodução das estratificações
de uma sociedade de classes que, em alguma medida, os assentados conti-
nuam refletindo diante da força do capital nos modos de vida rural. Nesse

398
“Além das cercas, o meu lugar”: resistência, agroecologia e transformaçõe...

sentido, características ligadas à propriedade privada, formas de exploração


agrária e concentração de excedentes foram alguns dos elementos identifica-
dos. A apropriação dos espaços naturais ao se considerarem “proprietários”
ou “empresários” garante a mercantilização do que é cultivado, possibili-
tando submeter outros moradores a um regime de trabalho remunerado.
Apesar da importância local, a pluriatividade caracterizada pelo “novo
rural” brasileiro também pode ser observada no Assentamento, principal-
mente entre os produtores mais jovens. Esses, por sua vez, procuram nas
cidades mais próximas alguma forma de qualificação que permita uma
segunda opção de trabalho e renda. Se por um lado alguns produtores
mais velhos consideram a atividade rentável o bastante, outros relatam que
preferem que seus filhos estudem para garantir outro tipo de ocupação no
futuro. Sobre isso, Dona Luíza e João relatam o desejo de que seus filhos
procurem outras ocupações e fontes de renda:

Esse outro aí [aponta para um dos seus filhos], quando arruma um tra-
balho, assim, fora, ele vai. “Vai ganhar seu dinheiro, deixe que a horta
eu cuido”, né? Porque a horta, ela dá, mas não dá essa quantia... então
se ele tiver trabalhando fora já é mais uma ajuda, da horta eu resolvo.
(Dona Luíza, 44 anos)

Apesar de que eu gostaria que minha filha um dia fizesse um curso, al-
guma coisa que não ficasse só aqui, mas ela num quer, sabe? Porque ela
ainda é nova e talvez, num sei se isso aqui seria o próprio futuro dela,
num sei... Se tivesse assim, uma, tivesse uma profissão que ela pudesse
ganhar o dinheiro dela independente disso. Isso aí só deixar pra mim e a
velha, que tamo já velho, já mesmo. Mas ela num... parece que ela é mais
apegada do que eu. (João, 55 anos)

Ao englobar tanto atividades agrícolas tradicionais como as atividades


não agrícolas, tal pluriatividade é marcada pela multifuncionalidade rea-
lizada (Calegare, 2015), não significando, necessariamente, o abandono
do rural e da agricultura, mas uma estratégia familiar que pode garantir
a permanência no lugar (Wanderley, 2001). Desse modo, considerando a
própria dificuldade dos agricultores de encontrar sucessores para as suas

399
Relações pessoa-ambiente na América Latina

atividades, os jovens são justamente os mais vulneráveis à mudança de ramo,


optando por atividades que, em alguns casos, oferecem melhores condições
salariais e são, simbolicamente, mais valorizadas do que o trabalho agrícola
(Carneiro, 2012). Venâncio é um dos jovens que ajuda a família na horta
e também realiza outras atividades que proporcionam o complemento da
renda familiar. Sobre isso, desabafa:

Um negócio que dá pra manter, mas não é aquele negócio fixo, que dá
pra sobrar… aquele negócio. Pra nós tudinho fica mais difícil, sabe? Aí
eu penso assim: trabalhando noutro canto, fica mais fácil de eu ganhar
lá, chegar em casa e ajudar. Fica até mais pra eles, economiza em várias
coisas. A pessoa tirar o sustento dali, pagar água, pagar luz. Tem um
filho, né? Pra comprar roupa, fica, se torna muito difícil esperar só por
aqui. (Venâncio, 26 anos)

Como decorrência, observa-se a existência de agricultores cada vez mais


pluriativos, que procuram conciliar, simultaneamente, o trabalho agropecuário
com o exercício de atividades não agrícolas (Anjos & Caldas, 2008, 2014).
Essa pluriatividade do campo passa a ser consequência também da pouca
atratividade da população mais jovem para o trabalho no roçado, tendo em
vista que a ausência de férias, horários irregulares de trabalhos, falta de fins
de semana livres, baixos rendimentos e o trabalho penoso são alguns dos
aspectos que afastam os filhos dos agricultores do campo (Brumer, 2004).

“Velhas-novas” cercas e a desapropriação do lugar

Ao apresentar uma geomorfologia peculiar, com grandes dunas e morros


de areia que cercam boa parte do Assentamento, houve a instalação recente
de uma expressiva quantidade de parques eólicos na região, o que trouxe
uma dinâmica econômica e socioambiental diferente para os assentados.
O processo de instalação das eólicas ocorreu, segundo os moradores, de
forma tranquila e, como de praxe, marcado por muitas promessas à comu-
nidade. Empregos, cursos profissionalizantes e melhorias na infraestrutura

400
“Além das cercas, o meu lugar”: resistência, agroecologia e transformaçõe...

do lugar foram alguns dos discursos mais ressaltados pelos moradores que
acompanharam a chegada do parque eólico no lugar.
Dentre as promessas realizadas, a de que o empreendimento iria in-
terferir o mínimo possível na vida da comunidade foi mais uma das que
não foram cumpridas. Como exemplo, o cercamento do espaço com arame
farpado trouxe uma série de transtornos aos moradores, especialmente
aqueles que criavam animais, plantavam no terreno, moravam próximo ou
utilizavam o lugar para lazer. Com a delimitação do espaço, foi comum o
relato de insatisfação devido à proibição de acessar a área que há gerações
era utilizada por eles, como desabafam Elizete e Francisca:

E hoje ninguém pode ter mais acesso, porque tá tomado pelo parque eó-
lico, então ali foi uma história que foi desfeita assim, tá só na memória,
né? (Elizete, 30 anos)

Isso aí tá tomando tudo. O povo não pode mais criar, né? O povo não
pode mais... Aí se entrar: “aqui – praqui”, pronto! Vai findar o povo pa-
rando até de comer porque depois da energia eólica, ninguém planta,
ninguém faz mais nada. Não quer que ninguém entre. (Francisca, 55
anos)

Assim como a história de luta e conquista do Assentamento se confunde


com as histórias de vida dos moradores, o cercamento do parque eólico
também impactou diretamente no modo de vida dos agricultores. Além
das dificuldades ligadas à plantação e criação dos animais, a delimitação
do terreno também provocou problemas de acesso da população às áreas
de lazer utilizadas, como por exemplo, à praia local.
Nota-se que a instalação do empreendimento aponta para problemas
ligados às transformações socioespaciais e desapropriação, que se manifes-
tam como elementos importantes das relações dos moradores com o lugar.
Nesse contexto, um conjunto de representações e significados são produ-
zidos e articulados a partir da instalação do parque eólico, influenciando
a dinâmica local e a vida social no Canto da Ilha. Apesar da proximidade

401
Relações pessoa-ambiente na América Latina

física, a tecnologia dos aerogeradores parece distante do Assentamento e


de sua gente.
Outra forma de cercamento também acontece na praia local. Com
a proximidade das festas de final de ano - período em que esta pesquisa
foi realizada - parte da praia utilizada pelos moradores é cercada para o
famoso e nacionalmente conhecido “Revéillon do Gostoso”. Conhecido
por atrair turistas de alto poder aquisitivo e pessoas famosas de todo o
país, os moradores do Assentamento relatam que acontece um processo
de quase “privatização” da praia, já que tapumes são colocados para isolar
o espaço onde a festa será realizada.
Cenário de um dos principais conflitos socioculturais promovidos
pela dinâmica do turismo local litorâneo, Taveira (2015, p. 127) afirma
que “existe uma separação camuflada, uma linha tênue entre os residentes
(população nativa) e os ‘gringos’ (empresários e moradores de fora)”, sejam
eles brasileiros ou não. Para o autor, a apropriação do espaço litorâneo
pelo empresariado do turismo, assim como as construções irregulares
ao longo da faixa litorânea e a circulação dos veículos na orla marítima
são alguns dos fatores que ocasionam os impactos ambientais em São
Miguel do Gostoso.
Ao demonstrar a influência das relações de poder e de classes diante
da apropriação do espaço, Marx (1867/1998) aborda a acumulação pri-
mitiva do capital, que pode ser caracterizada pelo cercamento de terras e
também a perda de sustento dos trabalhadores. A exploração das terras
destinadas ao parque eólico e ao turismo litorâneo se encontram inscritas
entre a disputa de interesses do capital, a retórica hegemônica da produção
de energia renovável e o processo de turistificação do rural, apropriando-se
da natureza conforme os interesses e objetivos do capital.
Percebe-se que embora a instalação do parque eólico e a exploração
do turismo local possam servir como resposta às pressões ambientais, po-
líticas e econômicas, no Assentamento – e certamente em muitas outras
localidades – são visíveis os conflitos oriundos dessas apropriações. A área
ocupada pelo parque possui um valor histórico-social importante na vida
dos assentados, influenciando tanto o sustento como o lazer. Não obstante

402
“Além das cercas, o meu lugar”: resistência, agroecologia e transformaçõe...

a destruição visual da paisagem litorânea, bem como a proibição do acesso


à praia, também ressaltam a interferência no modo de vida da comunidade
local, que é tolerada, apesar de sofrida, afetando vidas e paisagens.

Considerações finais

Nas últimas décadas, ainda que diversos estudos tragam à tona a


relação da pessoa com o lugar nos mais variados contextos, poucos se
propuseram a investigar suas transformações ao longo da vida e como a
forma de trabalho pode interferir nessa inter-relação.
O Assentamento Canto da Ilha de Cima está situado em um ambiente
de profunda vulnerabilidade social, sendo atravessado por diversos conflitos
socioespaciais, processos territoriais, formas de trabalho e a influência do
capital no lugar, por exemplo. Ao possuir espaços carregados de marcas e
significados, as relações com o lugar no contexto analisado ultrapassam o
entendimento do local unicamente como espaço de produção, denotando
a relação com o Assentamento como um ambiente de referenciais identi-
tários, caracterizados pelos usos, significados e transformações dos espaços
apropriados.
O conflito existente entre a prática da agroecologia e o capital pode
ser compreendido pelo caráter expansivo e dominador do próprio capitalis-
mo, sendo evidenciados nesse contexto por meio de aspectos no tocante à:
propriedade privada das hortas, exploração agrária e exploração de outros
assentados em um regime de trabalho remunerado. Apesar de tais constata-
ções, a agroecologia ainda pode ser considerada uma forma de resistência,
uma vez que confronta a subordinação de determinados elementos impostos
pelo capitalismo.
Por diversas maneiras, se percebe que a dominação do capital atravessa
as relações estabelecidas no lugar, mediando as vivências e as significações
em diferentes contextos e etapas da vida do indivíduo. Nesse âmbito, no-
ta-se que os conflitos evidenciados mostram semelhanças nas relações de
apropriação e desapropriação, apesar das distintas motivações: o processo
de luta e conquista da terra, a transição agroecológica, a apropriação do

403
Relações pessoa-ambiente na América Latina

litoral pelo turismo e o cercamento do parque eólico para a geração de


energia “limpa” e renovável.
A chegada do parque eólico e a exploração do turismo litorâneo ca-
talisam o processo de exploração e tensões de classe, reforçando em larga
medida as formas propriamente capitalistas de relações sociais a partir da
apropriação privada e desarticulação dos meios de vida no lugar. Diante da
ruptura social e ambiental promovida, a perda do lugar motivou a consti-
tuição de novas dinâmicas sociais e (re)apropriações territoriais, traçando-se
elementos que influenciaram o modo de vida e sobrevivência no lugar em
termos de mudanças de hábitos, fontes de renda e relação com o ambiente.
Alheia à realidade e à história local, a instalação do empreendimento eólico
gerou a desapropriação de alguns moradores, tendo em vista a desocupação
necessária para dar lugar aos aerogeradores.
Além das cercas, há força. Apesar das dificuldades enfrentadas pelo
contexto rural em relação ao poder avassalador do capital, entende-se
que esses produtores estão implicados em complexos processos de apro-
priação e reapropriação, que são vivenciados desde a infância até a vida
adulta. Constituídas por relações dinâmicas, tais (re)apropriações vão se
estabelecendo por meio de um processo contínuo de relação territorial e
identificação simbólica com o lugar, sendo melhor compreendidas ao se
explorar o contexto sociopolítico e as particularidades inerentes ao estilo
de vida no Assentamento.

404
“Além das cercas, o meu lugar”: resistência, agroecologia e transformaçõe...

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406
Capítulo IX

Terra para morar, água para


plantar:
mulheres agricultoras e a luta por
direito à cidade e à moradia
Maria da Graça Costa
Magda Dimenstein
Jáder leite

Introdução

A questão urbana é hoje central na agenda política e social no Brasil.


Entretanto, a despeito das suas cidades enfrentarem, historicamente,
sérios problemas estruturais e sociais que se agravam com o implemento
das políticas neoliberais e com a forte migração das áreas rurais na segunda
metade do século XX, e do Estatuto das Cidades – lei promulgada em 2001
que estabelece normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso
da propriedade urbana no país –, o tema o Direito à Cidade e à moradia
ganha força nos debates públicos apenas recentemente, especialmente a
partir das jornadas de luta1 de junho de 2013.
Não à toa, esse debate ganha notoriedade com a articulação dos movi-
mentos sociais urbanos nas duas maiores metrópoles brasileiras: São Paulo,
que possui o maior déficit habitacional absoluto do país, e Rio de Janeiro,
que conta com a maior população de residentes em favelas e ocupações in-
formais (cerca de 22% da população total do município), além de conviver

1  Uma das maiores ondas de protestos da história do país. Iniciada pelo Movimento Passe Livre, em
protesto contra o aumento do preço da passagem de ônibus na cidade de São Paulo, a mobilização ga-
nhou força e tomou várias cidades do país que tiveram suas ruas ocupadas por diversos segmentos sociais
que demonstravam sua insatisfação com diversos aspectos e problemas sociais no país, ampliando suas
pautas de reinvindicação que iam desde protesto contra a realização da Copa do Mundo de Futebol no
país no ano seguinte até denúncias de violência policial e reivindicação pelos “direitos urbanos”.

407
Relações pessoa-ambiente na América Latina

há anos com processos de militarização do cotidiano da cidade (Fundação


João Pinheiro, 2018).
As grandes metrópoles, “cidades-globais” dos países periféricos, fo-
ram e continuam sendo dominadas pela colonialidade do saber urbano,
conceito utilizado pelo geógrafo Carlos Vainer (2014) para se referir aos
modelos hegemônicos universais de urbanização e territorialização, tendo
as cidades da Europa e, posteriormente, dos Estados Unidos, enquanto
polos exportadores de concepções, conceitos, planos e práticas de produção
e uso dos espaços.
A colonialidade diz respeito ao processo de estruturação hierárquica
desigual que instaura o mundo moderno em termos raciais e de gênero, e
de uma geopolítica do poder que tem a Europa como centro, processo esse
que reproduz o aparato econômico, político, administrativo e subjetivo
colonial na contemporaneidade (Lugones, 2008; Quijano, 2005).
Segundo Arthuro Escobar (2007), a colonialidade tem como um dos
seus pilares a ideia de desenvolvimento como uma política de gestão que
cria as condições necessárias para a reprodução ao redor do mundo das
características das sociedades consideradas avançadas: altos níveis de in-
dustrialização e urbanização, tecnologia da agricultura, rápido crescimento
da produção e dos padrões de vida dos materiais e adoção generalizada da
educação e dos valores culturais modernos.
Conhecida como “cidade maravilhosa”, a história do Rio de Janeiro é
um exemplo desses processos. A ação de higienização social e remodelação
urbana no Centro da cidade empreendida pelo prefeito Pereira Passos no
início do século XX, tal qual a cidade francesa de Paris, com a retirada
dos cortiços e a abertura de grandes avenidas, impactou sobremaneira na
organização geográfica e nas dinâmicas sociais da cidade até os dias de hoje.
Localizada entre duas cadeias de montanhas e pelo mar, a cidade do
Rio de Janeiro divide-se em 4 zonas: Norte, onde está localizada boa parte
das favelas da cidade; Oeste, região menos adensada demograficamente e
que conta com uma significativa área de preservação ambiental; Centro,
primeiro território de ocupação da cidade, onde estão localizados prédios
históricos, com poucas construções voltadas para a moradia; e Sul, sendo

408
Terra para morar, água para plantar: mulheres agricultoras e a luta por direito à cida-

de...

esta última mais adensada demograficamente e a que tem maior valori-


zação no mercado de imóveis, é nela onde se encontram os mais famosos
pontos turísticos da cidade, como as praias de Copacabana, o morro do
Corcovado e o monumento Cristo Redentor.
A partir de uma de reestruturação urbana de princípios neoliberais, a
zona Oeste carioca, particularmente os bairros que compreendem a região
administrativa da Barra da Tijuca e da Baixada de Jacarepaguá, vem se
tornando o novo centro financeiro e imobiliário do Rio de Janeiro, au-
mentando exponencialmente o valor dessa área no mercado da especulação
imobiliária (Consentino, 2015).
A realização de megaeventos como a Copa do Mundo de Futebol e os
Jogos Olímpicos, e os processos de remoções decorrentes de tais eventos,
por exemplo, o caso de Vila Autódromo2, são talvez a parte mais emble-
mática desse processo. Trata-se de uma disputa sobre os usos e sentidos de
ocupação de uma cidade que vem sendo constantemente moldada para a
especulação, produção industrial e o turismo.
Assim, os conflitos territoriais, a gentrificação e as remoções continuam a
marcar a história da cidade, e agravam desigualdades sociais e grandes proble-
mas urbanos como a ineficaz distribuição e oferta de serviços públicos básicos,
a dificuldade em relação à mobilidade urbana, segurança pública, formação
de grupos paramilitares, entre outras questões, que atingem fortemente a
população que habita as favelas, ocupações urbanas, bairros periféricos e con-
juntos habitacionais gigantescos que têm no Programa Minha Casa, Minha
Vida3, uma nova face do paradigma neoliberal de financeirização global da
moradia, apontando para o impacto do complexo imobiliário-financeiro

2  Comunidade que teve a maior parte das suas famílias removidas para dar lugar à construção do
Parque Olímpico na Zona Oeste do Rio de Janeiro. A resistência dos seus moradores que construíram
um projeto popular e autônomo de urbanização para o território tem grande importância na história
da luta pela moradia no Brasil.
3  Programa de habitação federal lançado em março de 2009 durante o mandato do presidente Lula.
O programa subsidia a aquisição da casa ou apartamento próprio para famílias com renda até 1,8 mil
reais e facilita as condições de acesso ao imóvel para famílias com renda até de 9 mil. No dia 25 de
Agosto de 2020, O presidente Jair Bolsonaro assinou medida provisória instituindo o programa Casa
Verde e Amarela, que tem como objetivo reformular o Minha Casa Minha Vida.

409
Relações pessoa-ambiente na América Latina

sobre as políticas urbanas e habitacionais que escancaram os vínculos entre


o Estado, o mercado e a regulação urbanística (Rolnik, 2015).
Os processos históricos de segregação que levaram as populações mais
empobrecidas a ocuparem as periferias e favelas cariocas, reconhecidas
como os lugares permitidos às pessoas negras, indígenas e imigrantes na
cidade, trouxeram grandes consequências, entre elas o aumento do narco-
tráfico enquanto possibilidade de ascensão social e econômica para essas
populações, aliado ao aumento do poder repressivo e de militarização da
vida cotidiana nesses territórios.
Carolina Santana (2019) argumenta que, no Rio de Janeiro, os ins-
trumentos de gestão do espaço urbano, tais como o Plano Diretor, têm
historicamente servido como tecnologias de poder, por parte do Estado, em
articulação com o Capital, para manter silenciosamente uma conflagração
contra a população negra e pobre, em uma necropolítica racial do ordena-
mento urbano. No mesmo sentido, Denílson Oliveira (2014) aponta que
o racismo se dimensiona espacialmente numa pluralidade de experiências
que revelam tensões nos projetos de cidade e de nação.
Dessa forma, para esses autores, o ordenamento urbano historicamente
tem servido como um poder disciplinar, ou, nos termos propostos por Oli-
veira (2017, p. 77) em diálogo com Foucault, “uma inscrição espacial do
imaginário colonial biopolítico racista nas políticas urbanas”, que servem
para controlar populações e, em última instância, controlar o direito (ou
as condições de existência) à vida e à morte a partir de fronteiras raciais.
A literatura aponta que tais desigualdades impactam particularmente
as mulheres no seu exercício do direito humano à cidade e à moradia (Sa-
raiva, 2017). O relatório da ONU sobre mulheres e habitação mostra que,
em todo o mundo, uma série de problemas que afetam a capacidade das
mulheres de desfrutar de seu direito à moradia adequada e mostram que,
como políticas racistas e neoliberais têm efeitos de gênero desproporcionais:

los efectos de los desastres naturales o provocados por el hombre, los


conflictos y los desplazamientos internos, las guerras y ocupaciones, la
falta de una vivienda asequible y de bajo costo, los desalojos forzosos, la
falta de vivienda, la violencia doméstica, la ausencia de la participación

410
Terra para morar, água para plantar: mulheres agricultoras e a luta por direito à cida-

de...

de la mujer en la formulación de leyes y políticas, la falta de acceso a


los recursos, las leyes inadecuadas y discriminatorias, y la aplicación del
derecho consuetudinario discriminatorio, son cuestiones que han apare-
cido como importantes barreras que obstaculizan el derecho de la mujer
a una vivienda adecuada. (ONU, 2012, p. 5)

Como aponta Rossana Tavares (2015), as mulheres também sofrem


mais com os processos de remoções e com a violação do direito à moradia,
pois, em geral, constroem vínculos mais fortes com seus territórios, já que em
sua maioria cabe a elas o trabalho reprodutivo. E, não obstante comporem
a maior parte dos quadros dos movimentos de luta pela moradia, estão em
menor número em espaços de poder e decisão sobre as políticas urbanas e de
habitação e têm menos acesso à titulação de terras e moradias (Tavares, 2015).
Entretanto, se por um lado a cidade possui um longo histórico de
expropriação territorial, por outro, sempre conviveu com práticas insur-
gentes de construção do seu território. As favelas e periferias são exemplos
de cidades que se constituem à margem do planejamento urbano.
Nas últimas décadas, as lutas pelo direito à cidade e à moradia digna
no Rio de Janeiro ganham outros contornos ao terem como convergência
a agricultura de base agroecológica4 em territórios periféricos e a luta das
mulheres. São principalmente as mulheres negras e periféricas as responsá-
veis por trazer à tona esse debate nos movimentos sociais. Essas mulheres
articulam as violências a que seus territórios estão submetidos como parte
das violências de gênero que atingem os seus corpos, assinalando a relação
indissociável entre essas dimensões.
A presente proposta tem como objetivo apresentar a luta pelo direito
à cidade e à moradia construída por mulheres na zona Oeste do Rio de
Janeiro através da organização em torno da agricultura urbana.

4  O conceito de agroecologia é bastante amplo. Neste trabalho utilizo a ideia de agroecologia como
um “enfoque científico, teórico, prático e metodológico, com base em diversas áreas do conhecimento,
que se propõe a estudar processos de desenvolvimento sob uma perspectiva ecológica e sociocultural
e, a partir de um enfoque sistêmico – adotando o agroecossistema como unidade de análise – apoiar
a transição dos modelos convencionais de agricultura e de desenvolvimento rural para estilos de agri-
cultura e de desenvolvimento rural sustentável” (Associação Brasileira de Agroecologia [ABA], 2017).
Recuperado de https://aba-agroecologia.org.br.

411
Relações pessoa-ambiente na América Latina

Este trabalho é fruto da minha pesquisa para doutoramento sobre o


tema das mulheres na agroecologia e contou com a colaboração do coletivo
de militância investigativa da zona Oeste (Militiva) e da Rede Carioca de
Agricultura Urbana (Rede Cau), rede que fomenta e reúne experiências
de agricultura urbana na cidade.
Tomo como ponto de partida uma etnografia realizada entre os anos
de 2016 e 2018 junto a agricultoras urbanas da cidade do Rio de Janeiro
e a análise do Plano Popular das Vargens, projeto de planejamento urbano
popular construído de forma horizontal e participativa por moradores da
região das Vargens, zona Oeste carioca.
Meu argumento é que, ao reivindicarem a ancestralidade, a memória,
os afetos, a esfera do cuidado, as lutas antirracistas e feministas para pensar
o planejamento urbano, as mulheres organizadas em torno da defesa da
agricultura urbana no Rio de Janeiro constroem estratégias que questio-
nam os padrões urbanísticos hegemônicos e coloniais de pensar e habitar
as cidades e trazem importantes discussões e ações que contribuem para a
efetivação do direito a uma cidade plural que considere a diversidade de
formas de experiência urbana e a vida das populações que foram histori-
camente subalternizadas.

As cidades-empresa e o Estado de exceção como regra: o


caso do Rio de Janeiro

O trabalho do geógrafo David Harvey (2014) nos mostra como o


capitalismo organiza os territórios e as formas de habitar e experienciar as
cidades a partir da lógica da maior rentabilidade do uso dos solos enquan-
to mercadorias. De acordo com Vainer (2014), esse processo constitui o
modelo colonial e racista de ordenamento dos territórios que se reeditam
no século XXI sob a bandeira neoliberal do planejamento estratégico.
Se no Rio de Janeiro moderno-colonial no início do século XX o
Estado usava das heranças coloniais na medicina social e da higiene pú-
blica como definidores de práticas espaciais que serviam aos interesses da
burguesia moderno-colonial, no atual contexto se expressam novas formas

412
Terra para morar, água para plantar: mulheres agricultoras e a luta por direito à cida-

de...

de gerir racialmente a cidade através da mercantilização do espaço urbano,


da especulação imobiliária e obras de renovação e revitalização de pontos
estratégicos no Rio de Janeiro para atrair o consumido mais-que-perfeito
(o turismo internacional de alto poder aquisitivo) (Oliveira, 2017).
Para Vainer (2013), no urbanismo contemporâneo se baseia no modelo
da cidade-empresa; a partir da ideia de competitividade e lucro, a cidade
é vista como uma mercadoria, um artigo de luxo, de forma que vender os
territórios da cidade tornou-se uma das principais funções dos governos
locais. Cada vez mais a ideia do prefeito gestor e empresário é valorizada,
como caminho para solução dos problemas urbanos. No mesmo sentido
Rolnik (2015) argumenta que o discurso da eficiência da cidade do em-
preendedorismo foi um dos fatores que contribuiu com a mudança de um
discurso sobre direitos sociais e da cidadania para um discurso de inclusão
social pelo consumo.
A instauração da cidade-empresa constitui, em tudo e por tudo, uma
negação radical da cidade enquanto espaço político – enquanto polis: “na
empresa reina o pragmatismo, o realismo, o sentido prático; e a produti-
vização é a única lei” (Vainer, 2002, p. 91).
Nesse regime, “as cidades em competição buscam por todos os meios
aumentar seu poder de atração para manter ou desenvolver sua capacidade
de inovação e difusão” (Borja & Forn, 1996, p. 33). Os regimes de exceção
gradativamente se tornam novas formas de ordenamento urbano: não
obstante o funcionamento (formal) dos mecanismos e instituições típicas
da república democrática representativa, os aparatos institucionais formais
progressivamente abdicam de parcela de suas atribuições e poderes.
À medida em que a lei se torna mais flexível, parcelas crescentes de
funções públicas do Estado são transferidas às agências livres de burocracia
e controle político, ou seja, para o setor privado. No Brasil, esse processo,
ao que Vainer (2013) nomeia de “democracia direta do capital”, efetiva
os regimes de exceção através de parcerias público-privadas (PPP) e uma
série de dispositivos jurídicos.
Segundo Ronik (2015), as comunidades em situação fundiária irre-
gular, excluídas das categorias hegemônicas de posse do território, são as

413
Relações pessoa-ambiente na América Latina

mais vulneráveis a esses processos de usurpação e de expulsão pelo capital


financeiro na guerra por terras. Tais procedimentos são levados a cabo por
meio da construção de um aparato jurídico-legal em que os ocupantes
de certas áreas seriam percebidos como transgressores da lei e da ordem,
quando, na verdade, ocupam um espaço composto de camadas de legalidade
permeadas de tensões de toda a ordem (Rolnik, 2015).
Dessa forma, segundo Adrelino Campos (2012), o ordenamento
urbano tem como prioridade a propriedade entendida, historicamente,
como privilégio de brancos, com a implementação de políticas urbanísticas
enraizadas em padrões eugenistas e higienistas intrínsecos às racionalidades
da ideologia do branqueamento (Rolnik, 1989).

Disputas a partir da agricultura urbana na zona Oeste

Os dados do Censo Agropecuário do Instituto Brasileiro de Geografia e


Estatística (IBGE, 2017) apontam para a existência de 1044 estabelecimentos
agrícolas de base familiar no município do Rio de Janeiro. Boa parte deles
estão situados na zona Oeste da cidade. Essa região é cortada por um grande
maciço florestal, o Maciço da Pedra Branca, que atravessa 17 bairros da cidade.
Considerada a maior reserva florestal urbana do mundo, é no territó-
rio do Maciço da Pedra Branca – área que já foi conhecida como o Sertão
Carioca, por contar com um grande número de agricultores familiares, se
constituindo historicamente como a área rural do município – que está
concentrada boa parte da produção da agricultura familiar da região.
É no Maciço da Pedra Branca que agricultores e agricultoras têm se
mobilizado na busca por reconhecimento da prática agrícola realizada
em espaços da cidade e sua inserção em políticas públicas voltadas para a
agricultura familiar. Além da natureza exuberante, guarda parte da história e
da memória do Rio de Janeiro. Ali vivem descendentes de populações vindas
de países africanos e foram escravizadas trabalhando em antigas fazendas da
região, contando com dois quilombos reconhecidos: o quilombo Cafundá
Astrogilda e o Quilombo do Camorim. Também estão presentes descen-
dentes de migrantes europeus que se instalaram na região no século XIX.

414
Terra para morar, água para plantar: mulheres agricultoras e a luta por direito à cida-

de...

As atividades agrícolas do maciço estão concentradas, especialmente,


nas localidades de Rio da Prata no bairro de Campo Grande, Taquara, Ilha
de Guaratiba e Vargem Grande, região conhecida como Vargens (Fernan-
dez, 2014). Estima-se que existam cerca de 120 pequenos produtores no
Maciço da Pedra Branca, os quais, ainda que em condições extremamente
desfavoráveis e sendo quase desconhecidos pela população, abastecem de
alimentos boa parte da cidade (Prado, Mattos, & Fernandez, 2012). A base
da produção da região é de bananas, caquis, macaxeira/aipim e hortaliças,
além de plantas nativas como a taioba e a bertalha.
Com a instituição do Plano Diretor de Desenvolvimento Sustentável
do Município do Rio de Janeiro (Lei Complementar n° 111 de 2011), a
cidade passou a ser considerada como integralmente urbana, dificultando
o reconhecimento das atividades agrícolas no território e a inserção dos
agricultores às políticas de fomento rural, a exemplo da obtenção da De-
claração de Aptidão ao Pronaf (DAP), o que inviabiliza a inclusão desses
produtores em programas de fortalecimento da agricultura familiar como
o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de
Alimentação Escolar (PNAE).
A invisibilidade dos povos tradicionais e agricultores que habitam o
território é evidenciada pela relação com o Parque Estadual da Pedra Branca
(PEPB). Por tratar-se de uma unidade de conservação, a área não permiti-
ria a moradia e a atividade agrícola em seu território. Annelize Fernandez
(2014) aponta que a implementação desse parque pelo regime militar em
1974 foi feita de forma arbitrária, sem considerar as populações que já
habitavam o local e tinham como seus meios de reprodução e existência
o trabalho com a terra:

Pode-se entender a criação desta unidade de conservação como


uma interferência do Estado sobre as disputas entre os usos rurais
e urbanos que ali se estabeleceram desde a década de 1930 e que,
na década de 60 e 70, se tornam marcantes, com a integração viária
da cidade, a expansão e consolidação das relações capitalistas no
país as quais se refletem no plano da cidade e alteram o lugar e a
importância desta pequena agricultura no conjunto das atividades
econômicas desenvolvidas. (Fernandez, 2014, pp. 1-2)

415
Relações pessoa-ambiente na América Latina

Uma série de argumentos ambientais e legais são mobilizados prin-


cipalmente por agentes estatais no sentindo remoção das famílias que
habitam o território. Um dos argumentos é de que o cultivo de caqui e
banana – plantas exóticas ao bioma nativo – prejudicariam a preservação
do meio ambiente na região. Outro argumento diz respeito ao limite da
cota 100, que seria ultrapassada pelos moradores que habitam as monta-
nhas do Maciço, visto que todas as áreas acima dessa altitude na cidade
são consideras como unidades de conservação.
De acordo com Rinaldo Arruda (1999), a pretensa oposição entre po-
pulações tradicionais, as necessidades de conservação dos recursos naturais
e as políticas de preservação ambiental centrada na criação de Unidades de
Conservação de caráter restritivo à ocupação humana são um equívoco,
sendo as comunidades tradicionais as maiores responsáveis pela manutenção
e proteção do meio ambiente em áreas de preservação no Brasil.
O não reconhecimento da legitimidade desses moradores implica
descaso, por parte do Estado, em relação ao fornecimento de políticas e
infraestrutura básica. Esses processos apontam para um projeto de pre-
carização por parte do Estado que criminalizam e inviabilizam os modos
de existência e a reprodução das vidas desses moradores. Dessa forma, os
instrumentos de regulamentação urbana apresentam-se como desafios ao
acesso às políticas públicas, programas e projetos sociais e permanência
das famílias tradicionais, em sua maioria agricultores e remanescentes
quilombolas (Santana, 2019).

A construção de um projeto urbanístico feminista,


antirracista e agroecológico

Silvia Batista5, mulher negra, quilombola, nascida e criada na região


de Vargem Grande, militante da Rede Cau, agricultora urbana e pesquisa-
dora aponta, em entrevista, para as contradições dos discursos ambientais
“preservacionistas” no território. Para ela, a politização das práticas ances-

5  O uso dos nomes reais foi solicitado pelas entrevistadas.

416
Terra para morar, água para plantar: mulheres agricultoras e a luta por direito à cida-

de...

trais de agricultura ajudou a “deslocar o sentido do preservacionismo para


uma conservação de caráter socioambiental e com maior honestidade” (Silvia,
entrevista concedida em 2018).
A Rede Cau e o debate agroecológico têm grande importância nesse
sentido. Desde o seu início em 2009, a Rede tem sido fundamental para
o reconhecimento das práticas dos agricultores, pela ampliação das inicia-
tivas de produção, pela articulação política e social e pela disseminação do
conceito de agroecologia como base para suas ações e da intrínseca relação
entre o direito ao plantio e o direito à moradia digna.
Para Silvia:

Na Rede Cau a gente foi assumindo essa luta da moradia como intrinse-
camente ligada à agroecologia. De modo que surgiu essa síntese “terra e
água pra morar e plantar”, né? Isso tem uma implicação enorme! E hoje a
gente tá discutindo o quê? A gente tá discutindo que o conceito de moradia
popular tem que se modificar a partir do perfil de que as pessoas precisam
de espaço pra ter suas plantinhas, seus jardins, seu cachorro, sua galinha,
seu sei lá o quê, sua criação, sua agricultura. Né? Mais e mais as pessoas
mostram que têm esse vínculo com a terra. Seja porque nasceram em con-
texto de roça ou que tiveram essa migração, vieram disso, né? Isso tem
implicação no próprio conceito de moradia. (Silvia, entrevista concedida
em 2018)

Esse ponto faz frente às políticas de remoção e reassentamento proposto


pelo Estado em diferentes momentos para moradores de áreas consideradas
irregulares, em modelos de conjuntos habitacionais do Programa “Minha
Casa, Minha vida” que, como a literatura tem apontado, em muitos casos,
não consideram as especificidades das comunidades e os modos de vida
dos moradores, além de serem construídos em localidades com pouca ou
nenhuma oferta de transporte público e equipamentos sociais, promovendo
a segregação social dessa população (Moura, 2014).
Diante desse cenário, a pauta da agricultura urbana representa uma
demanda pelo direito ao trabalho agrícola, à soberania alimentar, à memória
e à tradição nesse território, mas também se configura como uma estratégia
de mobilização e uma tecnologia geradora para onde convergem várias

417
Relações pessoa-ambiente na América Latina

pautas na construção de um outro paradigma de planejamento urbano e


da luta por moradia.
Um exemplo disso é o processo que se construiu a partir da mobilização
de mulheres agricultoras frente ao projeto de reurbanização pela prefeitura
municipal para o território. Em 2015, no último dia de atividades da Câ-
mara Municipal, duas decisões abriram caminho para profundas mudanças
no território conhecido como Vargens que integram a Subprefeitura da
Barra da Tijuca. A aprovação da Lei Complementar 160/15, que flexibiliza
exigências para a regularização dos condomínios; e o envio, pela prefeitura,
do Projeto de Lei 140, que trata dos parâmetros para a Operação Urbana
Consorciada6 (OUC) no local – modelo de investimento em infraestrutura
urbana através de PPP semelhante ao utilizado nas obras do Porto Maravilha
iniciadas em 2011 – e define uma nova versão ao projeto suspenso desde
2009, do Plano de Estruturação Urbana (PEU) das Vargens que também
ficaria conhecido como Vargens Maravilha em alusão ao Porto Maravilha.
O PEU não apenas trouxe uma série de questionamentos sobre os
impactos que poderia trazer, mas também levantou suspeitas sobre sua
legalidade com o estudo de viabilidade da PPP sendo realizado pelas em-
preiteiras Odebrecht e Queiroz Galvão. A operação seria viabilizada através
da comercialização de Certificados de Potencial Adicional de Construção
(CEPACS), meios com os quais as construtoras se comprometem com o
pagamento de contrapartidas em troca do direito de construir edifícios
acima do controle de uso de solo previsto pelo plano diretor para a área
específica. Na prática, esse projeto permitiria a construção de edificações
muito mais altas do que as previstas para essa região que resguarda a maior
área verde da cidade e possui uma forte cultura de agricultura familiar
Representações de grupos de moradores ao Ministério Público do Rio
de Janeiro questionaram a falta de participação popular na construção do

6  Conjunto de intervenções e medidas coordenadas pelo Poder Público municipal, com a parti-
cipação dos proprietários, moradores, usuários permanentes e investidores privados, cujo objetivo é
alcançar, em uma área, transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e a valorização am-
biental. Trata-se de um dos instrumentos de viabilização da política urbana a serem realizados com a
participação de particulares (Parágrafo 1º do artigo 32, Estatuto da Cidade, 2001).

418
Terra para morar, água para plantar: mulheres agricultoras e a luta por direito à cida-

de...

projeto e a ausência de estudo ambiental e de impacto de vizinhança e a


ausência de plano detalhado de desenvolvimento.
Inspirados na mobilização pelo plano urbanístico popular da Vila
Autódromo7, um grupo de moradoras das Vargens criaram a Articulação
Popular das Vargens, articulando diversos movimentos sociais para cons-
truírem uma contraproposta ao PEU pautada na participação popular
e num projeto de urbanização que contemplasse as culturas e tradições
da região, com especial ênfase na questão da agroecologia. Participaram
diretamente dessa construção a Agrovargem, a Associação dos Moradores
e Remanescentes do Quilombo de Vargem Grande (Quilombo Vargem),
o Quilombo Astrogilda, a Rede CAU, Rede Ecológica, Coletiva Hortelã,
a Associação de Moradores e Amigos de Vargem Grande – AMAVAG, o
Conselho Consultivo do Parque Estadual da Pedra Branca, além de ins-
tâncias de assessoria técnica do IPUR/UFRJ e UFF.
O Plano Popular das Vargens foi construído em um ano e meio
de encontros, estudos e mobilizações populares em quase todas das 29
comunidades que seriam atingidas pelo projeto da prefeitura. Assim, se
constitui em um instrumento de luta política contra a “mercantilização
da cidade”, a partir de um trabalho de identificação dos problemas e
demandas dos moradores. Se, por um lado, ele convoca uma denúncia e
embate na esfera judicial, por outro apresenta uma ferramenta institucional
alternativa construída através do protagonismo popular. Para as questões
aqui discutidas, me interessa chamar atenção para os principais eixos de
articulação destacados no texto do Plano:

O direito inalienável à moradia e ao plantar; o direito à cidade em


termos de infraestrutura e mobilidade urbana; o direito à água e à
agroecologia; e o direito de participar das decisões sobre o nosso des-
tino. Atravessando todos esses eixos se estrutura também o direito
das mulheres e a luta antirracista porque compreendemos que no rol

7  O Plano Popular de Vila Autódromo foi um plano de desenvolvimento urbano, econômico, social
e cultural elaborado pela comunidade em conjunto com pesquisadores e entidades de direitos humanos
como uma contraproposta ao plano de remoção feito pela Prefeitura para remoção da comunidade e a
construção de obras para as Olimpíadas.

419
Relações pessoa-ambiente na América Latina

de todas as opressões as quais somos submetidos, é preciso priorizar


os setores mais vulneráveis a partir de um recorte de gênero, raça e
classe. O resultado desse primeiro documento é apenas o ponto de
partida para alçarmos nossos voos no sentido de construirmos um
outro mundo possível. (Articulação Popular das Vargens, 2017, p. 7)

De acordo com o Plano os projetos urbanísticos propostos pela prefei-


tura “devem ser reconhecidos como parte de uma política racista, que atua
no sentido de promover o branqueamento da região, não reconhecendo
seus moradores, suas origens e ancestralidade, e sua identidade cultural”
(Articulação Popular das Vargens, 2017, p. 10).
Assim, distante da ideia de uma pretensa neutralidade propagada
pelo urbanismo hegemônico, o Plano Popular das Vargens nos convoca à
urgência de pensar um projeto de cidade a partir das margens, dos sujeitos
que são subalternizados e sobre quem os efeitos da segregação da cidade
capitalista recaem com mais força e violência.
Em meados de 2017 o PEU das Vargens perdeu força e passou a
não ser visto como projeto prioritário pela prefeitura, mas continua
como uma ameaça constante aos moradores da região. Ao conversar
com Maraci Soares, agricultora urbana, mulher quilombola e uma das
lideranças da APP Vargens, sobre com o projeto da prefeitura “esta-
cionou”, ela me relata que:

Gostaria de pensar que essa foi uma vitória nossa, mas a verdade é que
eles ficaram é sem dinheiro mesmo [em referência à crise no setor imo-
biliário deflagrada após escândalos políticos envolvendo as emprei-
teiras Odebrecht e Andrade Gutierrez]. Na verdade, a nossa maior
vitória foi conseguir construir essa articulação comunitária de mulheres.
Antes éramos só eu e outra companheira, hoje já somos um grupo que não
tem mais medo de homem nenhum. (Maraci, 2018, diário de campo)

De fato, todo o processo de construção do Plano passou pelo prota-


gonismo quase total das mulheres, que eram a grande, particularmente das
mulheres negras. De acordo com Mariana, mulher branca, pesquisadora e
militante da articulação, isso fez toda a diferença no processo de construção

420
Terra para morar, água para plantar: mulheres agricultoras e a luta por direito à cida-

de...

dos debates, desde pensar a metodologia à escrita do Plano, passando pelas


questões trazidas no texto.
As tensões colocadas não dizem respeito apenas aos projetos urbanos,
mas também tencionam internamente os coletivos, grupos e militantes
do movimento ao escararem as desigualdades de gênero, sexualidade, os
racismos, entre outras questões, que também os afetam, principalmente a
partir das contribuições que as mulheres negras vêm trazendo ao pautarem
a necessidade de considerar a multiplicidade das opressões em relação ao
direito à cidade e à moradia digna.
Um acontecimento ocorrido no início do processo de organização da
articulação é bastante representativo desse processo. Um dos militantes da
articulação começou a relacionar-se com uma menor de idade. Ao ser questio-
nado por algumas mulheres da articulação acerca dessa postura, ele recusou-se
a dialogar sobre o tema. Nesse momento houve um evidente “racha” entre
os homens e as mulheres do grupo. Para Mariana, questionar essas posturas
é essencial na construção da mobilização popular. Segundo ela: “não possível
construir é um projeto de cidade sem machismo se a gente não consegue pautar essas
questões dentro dos nossos próprios coletivos” (Mariana, 2016, caderno de campo).
Em uma das oficinas para a construção do Plano, Maraci argumentou
sobre a importância do olhar das mulheres para pensar o direito à cidade
e à moradia. Para ela, o pensamento das mulheres seria “agroecológico”
e foram elas, as mulheres, as responsáveis por trazer o debate sobre a im-
portância da agricultura praticada nos quintais e terreiros para ampliar a
ideia de moradia digna.
Ela lembra de seus dois casamentos para explicar como os homens
não entendiam a relação entre moraria e agricultura:

Os homens insistiam comigo que pra eu tinha que botar cimento porque
tinha muito mato [no quintal], e eu brigava e dizia “não, eu preciso do
mato”, mas nunca tinha de fato uma horta, uma coisa estruturada, era
bem bagunçado, então você olhava e realmente parecia mato, mas na
minha cabeça não é mato... Hoje eu tenho uma horta que me alimenta
todos os dias, né, que eu vou lá, eu converso com elas, aquele cheiro me
dá saúde e ânimo pra continuar e junto com isso fui descobrindo o movi-
mento da agroecologia. (Maraci, 2016, diário de campo)

421
Relações pessoa-ambiente na América Latina

Maria, mulher negra, passou a se identificar enquanto trabalhadora


rural depois desses processos de discussão, apesar de produzir alimentos
em seu quintal há quase quatro décadas, o que aponta para a importância
do fortalecimento do debate sobre a agricultura urbana de pequena escala.
Ela é uma das moradoras que afirmava de forma mais veemente o desejo de
permanecer no território. Quando questionada sobre a possibilidade de ne-
gociar com a prefeitura para inserir-se no Programa Minha Casa Minha Vida:

Deus me livre de apartamento. É uma gaiola! Como vou levar meus bichos
e minhas plantas para um apartamento? Não é natural, nem para eles,
nem para mim. Como eu ia sobreviver sem minhas plantas? Morei quase
minha vida toda nessa casa, graças a Deus! Eu preciso de um quintal. São
minhas plantas que protegem a minha casa. (Maria, diário de campo,
2016)

Silvia brinca ao dizer que a agroecologia, entretanto, não é só plantar mu-


dinhas no quintal. Para ela, trata-se, sobretudo, de uma síntese de um projeto
político de uma cidade voltado a “todes”, ou seja, um projeto verdadeiramente
inclusivo que permite as condições de existência de populações subalternizadas.
Na agricultura urbana os quintais têm grande importância, pois são
os principais espaços de plantio, criação de animais de pequeno porte e
cultivo de árvores frutíferas. Em texto de autoria coletiva da Rede Cau, é
possível perceber a dimensão dessa importância:

Para nós que integramos a Rede Carioca de Agricultura Urbana,


ter um quintal produtivo é possibilitar a resiliência futura ao ter-
ritório. O valor da terra nua, não impermeabilizada por asfalto,
cimento, grama diz respeito à capacidade futura da cidade reagir
a acidentes ambientais extremos. Grande parte do impacto das
enchentes urbanas é resultado da impermeabilização do solo. E,
sem terra agricultável a cidade ficará mais e mais dependente do
fornecimento externo de alimento e água. Relembramos o provér-
bio indígena: “afinal dinheiro não se come.” (Rede Cau, blog Sertão
Carioca8, 2014, n.p.)

8  Recuperado de https://ecomuseusertaocarioca.blogspot.com/.

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Terra para morar, água para plantar: mulheres agricultoras e a luta por direito à cida-

de...

Nesse sentido, um dos eixos sobre os quais o Plano Popular se


estrutura é o “Morar e Plantar” e “Agroecologia”, que têm como algu-
mas propostas:

(a) garantir área suficiente para urbanização com qualidade de vida


nas comunidades, garantindo sempre que necessária a incorporação
de áreas vazias à área da comunidade para desadensamento habita-
cional, com reassentamento o local, e para espaços e equipamentos
públicos associados à moradia.; (b) realizar a urbanização e regulari-
zação fundiária com base em Planos Populares Locais: com o reco-
nhecimento da realidade local e do direito das pessoas de decidirem
sobre como querem morar e como querem viver; a garantia da fun-
ção social e ambiental (considerando diretrizes agroecológicas) de
terrenos vazios ou subutilizados, em dívida com o poder público, ou
de origem ilegal, destinando-os para moradia social, uso público e
para a produção – coletiva e comunitária – de alimentos; (c) normas
urbanísticas que respeitem e incentivem as formas de vida tradicio-
nais da região, reconhecendo a agricultura no urbano, nas áreas de
moradia, em espaços coletivos, comunitários e públicos; o fortaleci-
mento da produção de alimentos em comunidades e bairros popula-
res, buscando soluções adequadas para cada realidade local através
dos Planos Locais, tais como quintais produtivos e espaços coletivos
de plantio; (d) fortalecimento as feiras e produtores locais; e identi-
ficar e disseminar experiências agroecológicas em favelas, fortalecer
práticas existentes e disseminar formas de produção em espaços físi-
cos restritos. (Articulação Popular das Vargens, 2017, p. 10)

Essas propostas vão, portanto, na contramão da ideia de que as


cidades são apenas espaços de consumo e produção industrial nas quais
se baseiam as grandes metrópoles brasileiras e se propõem a modificar o
modelo padrão de moradia popular que vem sendo utilizado no Brasil,
trazendo como elementos centrais o direito à terra, ao plantio, às rela-
ções de pertencimento locais afetando diretamente na qualidade do uso
habitacional, além de propor uma metodologia de governança local e
formulação de projetos urbanos constituídos de forma colaborativa com
ênfase para os projetos elaborados pelos moradores e moradoras, com
ênfase nas demandas dos grupos mais vulnerabilizados, quais sejam, as
mulheres e os jovens.

423
Relações pessoa-ambiente na América Latina

Considerações finais: mulheres e direito à cidade e à


moradia digna

“Viemos disputar essa cidade”! É com essa frase que Ana Santos, mulher
negra, 35 anos, articuladora social, cozinheira e agricultora urbana me relata
uma oficina sobre educação, racismo e juventude construída junto com
os adolescentes da Escola Estadual Teófilo Fernandes em Vargem Grande.
Nascida e criada em São Gonçalo, Baixada Fluminense, Ana mudou-se
para a capital para fazer faculdade de administração. Com o tempo começou
a trabalhar na área de produção cultural chegando a “faturar alto”, como diz,
mas se encantou com o movimento agroecológico e largou seu emprego e a
faculdade para se dedicar à agricultura, à culinária e à educação ambiental.
Ana construiu de promoção da agroecologia e da soberania alimentar no
Complexo de Favelas da Penha, onde morou por quase 10 anos. Ana é
responsável pela organização e manutenção de uma das poucas feiras de
produtos orgânicos e agroecológicos em favelas da cidade.
Para ela, a partir do diálogo com quem sente na pele as contradições
da cidade capitalista e da ocupação dos espaços institucionalizados pode
poder é possível construir outras possibilidades de cidadania urbana a partir
das margens e da experiência dos sujeitos subalternizados:

Você começa a entender que a cidade é partida mas que você não é você
se retraindo, se colocando pra, que isso é o contrário, né? É você se po-
sicionando e se colocando cada vez mais na sua cidade. Né? Tem que
me engolir! Não é eu que tenho que sair porque tô te incomodando. Isso
pode ser muito simples mas isso é do caralho, isso é do caralho, assim.
Você entender que vai ter que dividir aqui comigo, tá entendendo? (Ana
Santos, entrevista concedida em 2018)

A partir da sua experiência enquanto um corpo de mulher favelada,


um corpo negro na cidade, Ana apresenta o sentido de uma cidade parti-
da, mas também de uma cidade que está sendo o tempo todo disputada.
Ao tratar sobre direito à cidade Henri Lefebvre (1968/2001) se refere
a pelo menos duas dimensões. Uma primeira dimensão se refere à reprodu-

424
Terra para morar, água para plantar: mulheres agricultoras e a luta por direito à cida-

de...

ção social digna expressa no acesso universal aos direitos sociais básicos à
educação, saúde, moradia, saneamento e mobilidade; a segunda dimensão
diz respeito ao direito de decidir sobre o ordenamento e funcionamento da
cidade, o direito universal dos cidadãos participarem de forma democrática
dos processos decisórios sobre seus territórios. As desigualdades de gênero
em suas intersecções entre raça, classe, geração, sexualidade e capacidade
física interferem diretamente nessas duas dimensões, efetuando-se tanto
em desigualdades estruturais quanto em desigualdades nas experiências de
habitar, circular e opinar sobre organização das cidades.
Frente à uma cidade partida e orientada pelos moldes do capital, da
colonialidade e seus atravessamentos sexistas e racistas, entendo que as
articulações que vêm sendo tecidas através da agroecologia a partir da ótica
das mulheres escapam aos projetos urbanísticos hegemônicos orientados
pela loja empresarial, do desempenho estratégico que enxerga os territórios
e os bens-comuns (terras, montanhas, águas) como commodities, ou seja,
produtos a serem privatizados e/ou rentabilizados.
Assim, elas questionam tanto a segregação socioespacial generificada
quanto a exploração desse meio ambiente e da geografia dos racismos na
cidade. Disputam não apenas o direito viver em espaços apropriados para as
tarefas relacionadas à reprodução da vida, mas também lutam pelo direito
e aos usos das moradias e dos espaços relacionados a ela (Helene, 2019).
Através dessas lutas as mulheres desvelam dimensões fundamentais da luta
pelo direito à cidade e à moradia.

425
Relações pessoa-ambiente na América Latina

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428
Capítulo X

Estratégias psicossociais de
enfrentamento à pobreza rural
no nordeste e no sul do Brasil
Elívia Camurça Cidade
Verônica Morais Ximenes

Introdução

Recorrentemente, os textos que abordam a temática do enfrentamento à


pobreza o fazem atrelando-a a uma perspectiva de superação ou minimização
dos efeitos da privação monetária. Sob este ponto de vista, o enfrentamento
é entendido como um conjunto de ações econômicas direcionadas para a
alteração das condições objetivas de vida dos sujeitos. Tal compreensão se
dá de modo indistinto tanto no contexto urbano como no contexto rural,
como pode ser observado na fala de Maluf e Mattei (2011) ao afirmarem que
“as estratégias para enfrentamento da pobreza rural requerem o reconheci-
mento do papel central do estado e sua capacitação com vistas à adoção de
políticas públicas em diversas áreas” (p. 23). Contudo, é preciso distinguir
enfrentamento da pobreza e enfrentamento em condições de pobreza.
O enfrentamento da pobreza remete à noção de combate (Alves & Esco-
rel, 2012), alívio e superação da pobreza (Espínola & Zimmermann, 2018).
Diz respeito às estratégias econômicas e políticas de enfrentamento à pobreza,
que envolvem o reconhecimento de que são necessárias ações governamentais
pautadas na redistribuição de renda e acesso às políticas públicas. Foi no final do
século XX, mais especificamente a partir da década de 1990, que as discussões
sobre o enfrentamento da pobreza ganharam destaque junto às agências inter-
nacionais, pois as experiências de privação passaram a ser debatidas como uma
problemática inaceitável e resultante do modo de produção capitalista (Alves
& Escorel, 2012). Estão alinhadas a essa perspectiva medidas que destacam

429
Relações pessoa-ambiente na América Latina

o papel do Estado na formulação e implementação de políticas públicas que


tenham como alvo a transposição da condição de pobreza.
Uma crítica que repousa sobre o debate do enfrentamento da pobreza é se,
efetivamente, diz respeito a uma situação que pode ser superada estritamente
por meio de ações estatais, dado seu enraizamento estrutural e a crescente
precarização e vulnerabilidade da classe trabalhadora composta por sujeitos
desfiliados (Castel, 2008), sobrantes e inúteis ao mundo (Alves & Escorel,
2012). Espínola e Zimmermann (2018) apontam que, por si sós, as políti-
cas de transferência condicionada de renda, no contexto latino-americano,
ainda não conseguiram assegurar o enfrentamento da pobreza estrutural,
promovendo alívio das más condições de vida, mas sem superá-las.
A ênfase no enfrentamento da pobreza conduz aos pensamentos de
que seria a aquisição de bens financeiros a força propulsora para uma efetiva
mudança social. Ater-se a esta proposta gera uma expectativa grandiosa, per-
tinente e necessária, porém que pode reforçar a ideia da pobreza como conte-
údo atrelado à renda e unidimensional, quando o desafio é entendê-la sobre
o prisma multidimensional de sua reprodução histórica e ideológica. Além
disso, a propagação dessa forma de conceber a pobreza ratifica pensamentos
de culpabilização do pobre por sua situação (Accorssi & Scarparo, 2016), já
que abre as possibilidades de que se debata a pobreza sob o ponto de vista
individualizado como esforço individual para transpor a condição de privação.
Nesse sentido, a questão central não é somente distribuir recursos entre
os que não os possuem, pois essa distribuição ameniza temporariamente o
sofrimento da pobreza, mas não interfere nas raízes de sua reprodução ao
não tensionar os modos com que o próprio sistema capitalista expropria
certos grupos humanos de bens e poder em detrimento de outros (com
cada vez maior concentração de riqueza). Montaño (2012) reforça este
pensamento, pois compreende que as estratégias de enfrentamento da
pobreza, ao enfocarem políticas compensatórias, não alteram a fonte da
desigualdade social, que está amparada na contradição capital-trabalho,
na acumulação de capital e na exploração da força de trabalho.
Manter as contradições sociais e assegurar seus impactos nos modos
com que os sujeitos vivem, pensam, sentem, interagem, creem e padecem é

430
Estratégias psicossociais de enfrentamento à pobreza rural no nordeste e no sul do Brasil

condição para a reprodução do capitalismo. Segundo Guzzo, Tizzei e Alves


(2013), o modo de produção capitalista impõe condições de desigualdade
ao fazer com que os trabalhadores não usufruam da riqueza que ajudaram a
produzir, ao mesmo tempo em que a classe dominante, detentora dos bens
de produção, se beneficia do que foi produzido coletivamente. Os impactos
desse processo de expropriação financeira repercutem na ruptura entre o
sentido da ação humana e seu significado (Duarte, 2004). O sentido da
ação liga, na consciência do sujeito, o objeto de sua ação (seu conteúdo) ao
motivo dessa ação. Já o significado assinala a significação social das ações
e sua decodificação pelos grupos sociais aos quais o sujeito pertence. Esta
cisão distancia o núcleo da personalidade da atividade de trabalho e conduz
à alienação, pois a ação de trabalhar deixa de representar para o sujeito algo
que o impulsione a adquirir conhecimentos, habilidades e valores que o
enriqueceriam como ser humano.
O enfrentamento em condições de pobreza seria aquele apto a refletir
sobre as condições ofertadas ou negadas aos grupos sociais para que façam
frente à pobreza e aos demais fenômenos que com ela estabelecem relações
interseccionais. A discussão do enfrentamento em condições de pobreza
abre caminho para o debate a respeito das estratégias psicossociais de en-
frentamento à pobreza, que estão amparadas no reconhecimento de que suas
implicações para a constituição do psiquismo humano incidem sobre as redes
de significados e de sentidos que elaboram como consequência dos esforços
cognitivos, afetivos e comportamentais para lidar com as adversidades.
Disponibilizar uma rede de cuidado em saúde, por exemplo, constitui-
-se como uma adequada estratégia de enfrentamento econômico e político,
já que a precariedade de acesso a este tipo de serviço é um problema real
vivido por pessoas em condições de pobreza (Wadsworth, 2012). Tem-se
como desafio privilegiar os sentidos sobre a pobreza desenvolvidos pelos
sujeitos a partir de suas experiências e que permitem o estabelecimento de
modos de vida específicos, bem como diferentes formas de aceitar ou lidar
com a situação (Accorssi, 2011; Cidade, Moura Júnior, & Ximenes, 2012).
O presente estudo tem como objetivo descrever estratégias psicosso-
ciais de enfrentamento à pobreza expressas por moradores da área rural do

431
Relações pessoa-ambiente na América Latina

nordeste e do sul do Brasil. Para tanto, parte-se do reconhecimento de que


cada estratégia utilizada possui uma referência dentro do contexto de onde
ascende, sendo resultado das possibilidades disponíveis aos sujeitos e aos
grupos sociais para a intervenção na realidade, assim como de sua vivên-
cia, percepção e interpretação da situação de desafio. No contexto rural, a
análise dos processos de enfrentamento deve considerar a heterogeneidade
dos modos de ser e viver no campo (Leite, Macedo, Dimenstein, & Dantas
et al., 2013), assim como a maior vulnerabilidade psicossocial aos agravos
decorrentes da pobreza vivida pelas populações rurais (Dantas, Dimenstein,
Leite, Macedo, & Belarmino, 2020; Dimenstein, Macedo, Leite, Dantas, &
Silva, 2017). Estudar o enfrentamento em contexto rural solicita, portanto,
o entendimento de que é a pobreza fenômeno multidimensional que incide
sobre os tipos de adversidades vividas pelos sujeitos, assim como sobre a
oferta de recursos para que os sujeitos possam conduzir o curso de suas vidas.
Nepomuceno, Silva e Ximenes (2016) definem modos de enfrenta-
mento como derivados “de uma interação sujeito-entorno, de maneira
múltipla, dinâmica e contextualizada, de acordo com as condições sociais,
culturais e simbólicas disponíveis” (p. 338). Isso significa dizer que as for-
mas de enfrentamento nos contextos rurais apresentam especificidades que
merecem ser consideradas, pois tanto o impacto da pobreza como as raízes
para sua perpetuação encontram singularidades em cada contexto. Dessa
forma, as estratégias psicossociais de enfrentamento à pobreza devem ser
entendidas desde o ponto de vista dos sujeitos, do conjunto de percepções
e significações que elaboram sobre a realidade e que refletem os recursos
disponíveis para a controlabilidade da situação.

Procedimentos Metodológicos

Por possuir natureza qualitativa, o estudo1 está fundamentado na


compreensão de que os sujeitos da pesquisa são capazes de desenvolver

1  Pesquisa aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Ceará com pare-
cer nº 1.233.648 e código CAAE na Plataforma Brasil 46474715.5.1001.5054.

432
Estratégias psicossociais de enfrentamento à pobreza rural no nordeste e no sul do Brasil

modos específicos de percepção e interpretação do mundo (Bosi & Mer-


cado, 2007). Participaram 79 sujeitos, 39 (trinta e nove) moradores da
área rural de Cascavel (Paraná) e 40 (quarenta) moradores de Pentecoste
(Ceará). Cascavel está localizada na região oeste do Estado do Paraná,
distante 491 quilômetros da capital do estado, Curitiba. Possui 328.454
habitantes (IBGE, 2019a), sendo considerada uma cidade de grande porte
nacionalmente conhecida pela prevalência do agronegócio e a da produ-
ção agropecuária para a exportação. O IBGE (2011) apontou redução no
número de pessoas residentes na área rural de Cascavel na primeira déca-
da dos anos 2000, alcançando 5,64% do número total de habitantes do
município. Esse dado está diretamente ligado à mecanização da atividade
agrícola, que, sob influência do modo de produção do setor industrial,
progressivamente substituiu a força de trabalho humana e animal por
técnicas complexificadas de plantio e colheita.
Pentecoste está distante 89 km de Fortaleza, capital do Ceará. É
considerada uma cidade de pequeno porte com população estimada em
37.751 habitantes (IBGE, 2019b). Dados do IBGE (2011) apontaram
que 21.394 sujeitos (60,44%) residiam na área urbana e 14.006 sujeitos
(39,56%) na zona rural do município. O número expressivo de pessoas
residentes na área rural de Pentecoste se deve ao estímulo, através de canais
do projeto de irrigação do Departamento Nacional de Obras Contra a Seca
(DNOCS)2, às atividades agrícolas na região, em grande parte lavouras
tradicionais de subsistência (Oliveira, 2009). A viabilidade da investigação
nos dois territórios rurais foi possível em virtude de parcerias institucionais
que atuaram mediando a inserção nos campos de pesquisa por meio da
indicação de profissionais de políticas públicas locais e, até mesmo, ofe-
recendo apoio logístico para a chegada às comunidades investigadas, em
sua maioria distantes dos centros urbanos.

2  O DNCOS é uma instituição federal brasileira criada em 1909 com o objetivo desenvolver ações
para amenizar os impactos das adversidades climáticas na região nordeste do país através do investimen-
to em infraestrutura hídrica. Entretanto, ao longo de sua existência, o DNOCS e sua forma de gestão
têm sido alvos de duras críticas, sobretudo por terem beneficiado diretamente, durante longos períodos,
grandes proprietários de terra da região.

433
Relações pessoa-ambiente na América Latina

Entre os participantes de Cascavel, 77,21% eram mulheres e 22,79%


eram homens. Em Pentecoste, 65% das participantes eram mulheres e
35% homens. Embora a pesquisa não apontasse um recorte de gênero,
a maior representatividade da população feminina pode estar associada
a uma maior participação deste público nos serviços públicos de saúde e
assistência social locais, que atuaram como mediadores para inserção nos
campos. O tempo médio de residência na comunidade rural de Cascavel
era de aproximadamente 24 anos. No Ceará, este indicador alcançou a
média aproximada de 33 anos.
Foram realizados 07 (sete) grupos focais, sendo 03 (três) em Cascavel e
4 (quatro) em Pentecoste. A facilitação de grupos focais como instrumento
de obtenção de dados em pesquisa qualitativa é potente, pois, além de
se configurar como um tipo de entrevista grupal, sua condução permite
ultrapassar os limites das respostas individuais, rememorar acontecimentos
e estimular a elaboração de conteúdos (Flick, 2009). Os grupos foram
conduzidos a partir de um Guia de Tópicos constituído por indagações,
afirmações e histórias breves que contemplavam modos de vida da popu-
lação rural, percepções sobre a pobreza e expressões do enfrentamento aos
contextos adversos.
Os critérios de seleção dos participantes dos grupos foram: residir
nas áreas rurais pesquisadas; possuir idade igual ou superior a 18 anos
e expressar anuência quanto às condições da pesquisa após ler o Termo
de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). As informações gera-
das nos grupos foram transcritas e categorizadas a partir da Análise de
Conteúdo Temática de Laurence Bardin, com auxílio do software de
análise qualitativa Atlas Ti 8.4. Neste capítulo, as falas derivadas dos
momentos grupais serão apresentadas através da sigla GF seguida da
inicial do nome do município e de sua sequência de realização. Assim,
GFC2 deverá ser entendido como o segundo grupo focal realizado em
Cascavel. Da mesma forma, GFP1 representará os conteúdos derivados
do primeiro grupo focal facilitado em Pentecoste. Os nomes utilizados
para se referir aos participantes são fictícios.

434
Estratégias psicossociais de enfrentamento à pobreza rural no nordeste e no sul do Brasil

Resultados e Discussões

A tematização dos conteúdos analisados permitiu destacar três ca-


tegorias basilares organizadoras do que se propôs nomear como Modelo
Representativo das Estratégias Psicossociais de Enfrentamento (Figura 1):
a compreensão de como os moradores entendem que os sujeitos devem se
colocar diante das adversidades; os fatores que contribuem para a superação
das adversidades e os empecilhos para o enfrentamento.
A compreensão de como deve ser o posicionamento adotado diante
das adversidades está composta por cinco subcategorias. A aceitação da
realidade imediata é causa da simplificação analítica dos fatos pelos sujeitos
ao mesmo tempo em que é impulsionada pela compreensão do enfren-
tamento como capacidade de sanar as necessidades imediatas. Há, ainda,
a interpretação do enfrentamento como esforço individual e como busca
por melhores condições de vida, assim como o entendimento de que a
superação depende do próprio esforço aliado à proteção divina.

Figura 1. Modelo representativo das Estratégias Psicossociais de Enfrentamento

Fonte: Elaborado pelas autoras.

435
Relações pessoa-ambiente na América Latina

Os fatores que acreditam ser necessários para a superação das adversidades


estão associados ao modo com que compreendem que devem se portar. Os
moradores apontaram que o acesso às políticas públicas se vincula ao enfren-
tamento como capacidade de sanar as necessidades básicas. A dedicação ao
trabalho aparece como conteúdo associado ao enfrentamento como esforço
individual, o que os conduz em uma lógica argumentativa de que é preciso
se dedicar com afinco às atividades produtivas caso almejem sair da pobreza.
Igualmente, os outros dois fatores que contribuem para transpor as adver-
sidades são o acesso à rede de suporte social e o investimento em processos
de escolarização como possibilidade de transformação da condição vivida
no presente. Uma vez que esses conteúdos não estão presentes, acreditam
os moradores, ocorrerão empecilhos para o enfrentamento às adversidades.
A ideia de que o enfrentamento requer dos sujeitos a aceitação da realidade
tal como ela se apresenta imediatamente à experiência apareceu nas falas dos
moradores remetendo-se à noção de que necessitam se adequar a uma condição
de vida que está posta e que apresenta demandas urgentes de serem sanadas.
Durante a narrativa do caso de Manuel, estória fictícia apresentada aos parti-
cipantes com intuito de mobilizar a fala, procedeu-se a seguinte conversação:

Facilitadora: O Manuel está desempregado tem um ano e aí ele traba-


lha como diarista pra sustentar a mulher dele e o filho que ainda é peque-
no. E aí recentemente ele foi chamado pra trabalhar ganhando mais ou
menos uns seiscentos reais por mês. Era isso que disseram que podiam
pagar pra ele. E aí o Manuel disse que vai aceitar porque ele acredita que
só depende dele se esforçar pra ter uma vida melhor. O que vocês acham
dessa estória?
Eleonora (GFC2): Eu acho que se a pessoa tiver com fome ele vai, de-
pendendo da situação que tá em casa ele vai.
Catarina (GFC2): E do esforço... Ele já tava desempregado, né?! Então...
Zelda (GFC2): É melhor isso do que nada né.
Facilitadora: É melhor isso do que nada?
Eleonora (GFC2): Com certeza né, é melhor um passarinho na mão do
que dois voando né, tentar pegar lá por uma certeza né.
Catarina (GFC2): Se ele não encarar isso é porque ele gostou da miséria.

436
Estratégias psicossociais de enfrentamento à pobreza rural no nordeste e no sul do Brasil

Para os participantes, se o conteúdo é urgente, resta ao sujeito acatar


o que a realidade lhe impõe e buscar sanar as necessidades imediatas.
Chama a atenção, nesse discurso, que vai sendo construída uma lógica
explicativa de que o enfrentamento é uma estratégia, pois remete à noção
de exploração de uma situação de maneira vantajosa. Porém, nesse pro-
cesso, o executor do ato de enfrentar é um sujeito, que está sozinho, deve
assegurar o mínimo para sua subsistência e ser reconhecedor dos limites
que possui, mas capaz de permanecer em sua luta, que, embora comum
aos demais, é de sua estrita responsabilidade vencer ou perder. Simone
(GFP2) reitera essa ideia: “Aí, com meio salário, né? Ele economizando, dá
pra pagar água, luz, né? Comprar algum alimento. Aí, quem sabe, o futuro
dele melhorar, conseguir trabalhar e atingir o salário mínimo, futuramente”.
Uma vez que se adéque ao que as necessidades urgentes demandam,
na compreensão dos moradores, as mudanças nas condições vividas poderá
ocorrer. Entretanto, percebe-se que se trata de um tipo de enfrentamento cor-
respondente a um conteúdo de reação à adversidade, limitado na capacidade
de fomentar análise crítica da situação e em proferir uma mudança nos fatores
que a perpetuam. A associação entre enfrentamento e esforço foi expressa por
moradores das duas regiões. Eles compreendem que cabe aos sujeitos se dedi-
car, fazer frente às adversidades e buscar melhores condições de vida. Alberta
(GFC1) narra sua crença de que esforço vinculado à paciência resultaria na
culminância dos êxitos imaginados: “fazer de tudo pros filho estudar lá, também
tinha que fazer uma força, né. É, se a pessoa não tem uma opinião de dizer ‘Vamo
conseguir, vamo enfrentar’ né?! Uma hora você consegue!”.
Na fala de Karla, chama atenção que até mesmo as ações governamen-
tais são colocadas em um segundo plano de influências para a aquisição
do que se deseja. Segundo ela, “pois é, mas muitos dos nossos planos que a
gente almeja, a gente tem que batalhar por isso, né? Num depende só de go-
vernantes, mas muito tem que vir da gente. Nós temos que batalhar por isso”
(GFP4). Se, por um lado, essa fala aponta a percepção de si como alguém
capaz de intervir na realidade, por outro, pode recair no risco de culpar
o sujeito por sua situação, já que é seu esforço individual sua estratégia
de enfrentamento. Essa compreensão demonstra como a perpetuação da

437
Relações pessoa-ambiente na América Latina

experiência da pobreza e os muitos desafios enfrentados para transplantá-la


contribuem para que os sujeitos pensem fenômenos coletivos a partir de
um processo crescente de individualização.
Wadsworth (2012) compreende que resolver ativamente um problema
e planejar o futuro auxilia no enfrentamento positivo das situações adver-
sas ao contribuir para que os sujeitos foquem na expressão e na regulação
emocional, que dizem respeito à forma com que os sujeitos manifestam e
controlam as reações emocionais diante do contexto estressor. Nesses casos,
seria desencadeado um melhor funcionamento psicológico, pois estaria
sendo alterada diretamente a fonte de mal-estar ou seus desdobramentos
emocionais. Em contextos de pobreza, os resultados permitem questionar
se essa alteração dos elementos causadores de mal-estar está efetivamente
ocorrendo, pois o que se percebe é o distanciamento analítico-emocional
e certo conformismo diante da resolução de questões imediatas e urgentes,
cujas respostas têm efeito resolutivo em um período de curto e médio prazo.
Ressalta-se, entretanto, que desinvestir na mudança direta da situação
não quer dizer uma anulação total das transformações por ela desencadeadas,
mas sim na abertura de novas possibilidades. Sawaia (2009) compreende que
o ser humano é “um esforço de resistência” (p. 366). Dessa forma, mesmo
quando a situação é intensamente adversa e incontrolável, o sujeito não re-
cairá em uma apatia plena. Ao contrário, irá se valer dos artifícios objetivos e
subjetivos disponíveis para elaboração de novas estratégias de enfrentamento,
que apresentarão coerência dentro do universo de vida que lhe é específico.
Moura Júnior (2015) destaca que há um duplo efeito no conformismo,
pois pode servir tanto como estratégia para manutenção dos estigmas da
pobreza, quando, por exemplo, fortalece ideias de que o sujeito é pobre
por não ter se esforçado suficientemente, como também de reação a uma
situação adversa. Diante das sobrepostas e cumulativas restrições imputadas
ao seu potencial de escolhas, os sujeitos perduram dedicados a sobreviver e
a pautar suas vidas no que lhes é concretamente apresentado. Quanto a isto,
em dos grupos focais de Juvinópolis (Paraná), os moradores construíram
uma narrativa na qual interconectam pobreza, enfrentamento, invenção
e trabalho, como pode ser observado no relato:

438
Estratégias psicossociais de enfrentamento à pobreza rural no nordeste e no sul do Brasil

Erondina (GFC3): [É pobre] quem não enfrenta.

Ivete (GFC3): Quem não corre atrás.

Facilitadora: Então é pobre quem não enfrenta. E o que é enfrentar?

Ivete (GFC3): É inventar o que fazer.

Erondina (GFC3): É inventar qualquer coisa pra fazer.

Estevão (GFC3): Enfrentar... ó, se eu não tenho nada dentro da minha


casa, aí eu vou pra rua, que lá vão mandar eu fazer um recado, fazer
uma coisa e outra.

Quirina (GFC3): É, tem que enfrentar mesmo, tem que trabalhar.

A vinculação direta e unicausal entre enfrentamento e esforço aponta dois


pontos interessantes. O primeiro é a visão compartilhada pelos moradores de
que o ato de enfrentar quer dizer o enfrentamento da pobreza, retomando
parte do debate de que se trata da noção de privação como algo que tem que
ser combatido individualmente e que se refere à ausência de posse de bens
financeiros. O segundo ponto é simplificação analítica dos fatos, conteúdo
similar ao que já foi encontrado quando se discutiram as manifestações
do fatalismo. O sentimento do desamparo e a pouca oferta de condições
concretas para mudança da realidade potencializam crenças de que há uma
força sobrenatural que lhes assegura transpor o conteúdo adverso. Com isso,
a noção de superação é entendida como derivada do próprio esforço aliado
à proteção divina. O relato a seguir ilustra esse processo:

Facilitadora: Então deixa eu entender? Sonho pra gente realizar só de-


pende da gente?

Estevão (GFP3): Com certeza!

Josefa (GFP3): De Deus e da gente.

Estevão (GFP3): É, primeiramente é Deus, né.

Em certo sentido, a simplificação nos modos de analisar os acontecimentos


se associa às estratégias de enfrentamento vinculadas ao desengajamento ou

439
Relações pessoa-ambiente na América Latina

desligamento da realidade. Estes consistem em mecanismos que permitem o


afastamento do indivíduo do evento estressante em si ou das reações emocionais
que ele incita (Wadsworth, 2012). Nelas estão inclusas a evitação, a negação
e o pensamento ilusório. Por não abordarem o problema ou favorecerem sua
resolução, evitar e negar apenas fornece fugas temporárias, sem que haja pro-
moção de saúde psicológica com o passar do tempo. A evitação, tanto no plano
cognitivo como comportamental, pode favorecer certo alívio momentâneo da
situação de desconforto. Entretanto, acarreta implicações a longo prazo com
consequências psicológicas negativas, pois não suspende totalmente o contato
do sujeito com a situação de mal-estar, que permanece e retornará a incomodar
brevemente. A fonte de incômodo apenas foi retirada do campo de percepção
imediata, mas continuará a existir. Dessa forma, afirma Wadsworth (2012, p.
21) que, ao tentar esquecer, ignorar ou negar, ocasionalmente, a pessoa poderá
se recordar do problema e se sentir ainda mais incomodada.
Gojová, Gojová e Špiláčková (2014) descrevem o ato de escapar da
realidade como uma estratégia defensiva que pode gerar, junto aos senti-
mentos de incompetência e de vergonha descritos por Wadsworth (2012),
também sentimento de culpa. Todavia, em contextos marcados pela rigidez
estrutural e pela cristalização das problemáticas sociais ao longo do tempo,
o desinteresse, a apatia e a diminuição da ação aparecem como formas de
defesa que permitem evitar a desilusão e novos fracassos (Montero, 2006).
Isso quer dizer que o sujeito não consegue evitar plenamente o contato
com o conteúdo incômodo, pois ele é transversal à sua existência, mas
pode conseguir borrar ou burlar seu contato imediato.
Na tentativa de ponderar sobre quais seriam os efeitos emocionais mais
danosos, se entrar em contato com a realidade (e se perceber impotente
frente a ela) ou evitá-la, negá-la e distorcê-la (minimizando a gravidade de
seus efeitos através da ilusão de que nada ocorre), parece que os sujeitos por
vezes optam pela segunda opção como dívida emocional de menor valor se
comparada à primeira alternativa. Os estudos de Cidade, Silva e Ximenes
(2016) e Moura Júnior (2015) advogam em favor desta ideia. Cidade,
Silva e Ximenes (2016) observaram que, entre jovens em condições de
pobreza, o distanciamento emocional dos fatos cotidianos desagradáveis,

440
Estratégias psicossociais de enfrentamento à pobreza rural no nordeste e no sul do Brasil

como conflitos familiares e carga de trabalho excessiva, aparecia como


importante alternativa que garantia dar prosseguimento às ações diárias.
Em seu estudo comparativo sobre os impactos da pobreza no bem estar
de moradores das regiões Nordeste e Sul do país, Moura Júnior(2015) iden-
tificou que a própria condição de privação pode desencadear o aparecimento
de mecanismos de manejo da frustração proporcionada pela realidade social.
Outro aspecto que pode ser considerado é se, em casos como estes, os su-
jeitos não estariam em verdade reconhecendo os conteúdos de contradição
existentes no próprio cotidiano e adotando uma estratégia de enfrentamento
de não valorização da negatividade. Nazaré (GFC2), ao tentar explicar o que
distingue a vida nos contextos rural e urbano, busca enfatizar a positividade
da moradia no campo “porque aquela pessoa [que vive na cidade] precisa de
tanta coisa pra viver, sendo que nós veve (sic) com muito pouquinho sabia?! Com
muito pouco nós veve (sic).”
Os moradores demonstraram dificuldade de explicar os fatores cau-
sadores dos fenômenos e de avançar em sua análise crítica. Trata-se de
um conteúdo vinculado à simplificação analítica dos fatos e que permite
retomar as contribuições de Martín-Baró (2015) sobre o tipo de inteligên-
cia intuitiva. Nesse tipo de inteligência, que tem a alienação como uma
de suas características, opera-se a centralização deformadora e o sujeito
tende a focar atenção em uma única característica marcante do objeto
ou do fenômeno sem que consiga alcançar outros aspectos importantes e
exercer seu raciocínio crítico. O diálogo estabelecido entre a Facilitadora
e Ernesto (GFP2) exemplifica esta proposição:

Edna (GFP2): Porque com a seca não tem plantação, né? As coisa tudo
ficam mais cara. Os animal morre por falta d`água.

Ernesto (GFP2): E tudo isso é gerado pela poluição.

Facilitadora: É gerado pelo quê?

Ernesto (GFP2): Poluição.

Facilitadora: Poluição?

Ernesto (GFP2): Consigo explicar não.

441
Relações pessoa-ambiente na América Latina

Os participantes reconhecem que, para que consigam enfrentar a re-


alidade cotidiana, necessitam de acesso às políticas públicas, acesso à rede
de suporte social, dedicação ao trabalho e estar vinculados aos processos
de escolarização. São políticas públicas fundamentais, na interpretação dos
moradores, as que asseguram acesso aos serviços de saúde, educação e à
alimentação. Segundo Joana, “o mais importante é a saúde. A saúde, tendo o
que comer, né? Mas, saúde, porque não comer...” (GFP1). A vulnerabilidade
no acesso às políticas públicas reforça pensamentos de controle divino.
Diante da indagação sobre como agem diante das dificuldades narradas
de acesso às políticas de saúde, Jane respondeu: “Deus dá o jeito” (GFP4).
O apoio social tem sido descrito (Nepomuceno, Silva, & Ximenes,
2016; Wadsworth, 2012) como um recurso positivo para o enfrentamento
à pobreza, pois auxilia os sujeitos a lidar com condições de privação e a agir
com resolutividade diante de situações adversas. Há, na concessão de apoio
social, uma relação de troca e de se perceber valorizado no grupo social.
Dessa forma, esse recurso atua protegendo o sujeito contra os impactos
negativos da pobreza, pois, como afirma Valla (1999), permite que os su-
jeitos experimentem uma maior sensação de controle sobre a própria vida.
A interferência do apoio social pode ser através do fornecimento de ajuda
e recursos materiais ou da oferta de espaços de expressão de emoções e de
verbalização sobre problemas específicos, que pode contribuir para que os
sujeitos encontrem uma solução ou identifiquem que se trata de questões
comuns (Wadsworth, 2012). Nepomuceno, Silva e Ximenes (2016) iden-
tificaram, junto aos usuários de um serviço de saúde mental e às mulheres
em situação de prostituição, que o acesso às redes de apoio social familiares,
comunitárias, religiosas, institucionais, de amigos e colegas de trabalho se
apresentou “como possibilidade de enfrentamento à violência, à fome, à falta
de moradia, a aspectos financeiros, às dificuldades de acesso a um serviço
de saúde” (p. 360).
Identifica-se que o apoio social está próximo da definição de rede
de suporte social que foi debatida como um dos fatores que contribuem
para a expressão da resiliência em contextos comunitários rurais. Desfru-
tar de suporte social e, portanto, de apoio social, dinamiza a elaboração

442
Estratégias psicossociais de enfrentamento à pobreza rural no nordeste e no sul do Brasil

de estratégias psicossociais de enfrentamento ao oferecer condições para


que os sujeitos vislumbrem os acontecimentos sobre outro ponto de vista
e estabeleçam redes de cooperação e suporte necessárias no processo de
intervir sobre a realidade. Além disso, ao impulsionar relações de solida-
riedade e trocas entre os membros de uma coletividade, estes passam a
se reconhecer como partícipes de uma realidade comum, o que em certo
sentido resgata a noção de estar vinculado a um grupo social, poder se
apoiar no respeito e no desejo da alteridade. Uma das participantes ilustra
o conteúdo acalentador derivado do suporte social ao relatar que, mesmo
sem ter recebido a cesta básica distribuída na vizinhança, os moradores se
reuniram e dividiram com ela os mantimentos: “Não adianta a gente tá
numa dificuldade e chorar, se lamentar... Às vezes a gente tá numa dificuldade
que você imagina que ninguém vai ajudar e acolher, né? É onde a gente se
engana” (Letice, GFP1).
Todavia, assim como já debatido neste estudo, a diminuição da oferta
da rede de suporte social é uma problemática associada às implicações
psicossociais da pobreza e à expressão da resiliência em contextos comu-
nitários rurais. Ao integrar em torno de si diversas problemáticas sociais,
a pobreza acaba por fragilizar a oferta da rede de apoio, dificultando ainda
mais para que os grupos sociais consigam formular estratégias ativas de
enfrentamento. Além disso, Wadsworth (2012) entende que o apoio social
não é capaz de, sozinho, resolver todos os problemas ocasionados pela
pobreza. Entretanto, a ausência de seu reconhecimento como um recurso
psicossocial disponível será crucial para que as estratégias psicossociais de
enfrentamento sejam manifestas pelos sujeitos.
Outro fator que os moradores creem ser condição para o enfrentamento
em condições de pobreza foi a disponibilização de processos de escolari-
zação. Eles creem ser este o caminho para a transformação da condição
vivida no presente. Por meio do acesso ao ensino formal, as novas gerações
poderiam ampliar suas possibilidades de ocupação laboral, como pode ser
observado na fala de Eudalina: “Não só você pensar no comer, tem que pensar
no futuro, né ... Quanto mais estudo menos faz força e ganha mais, tem mais
conhecimento” (GFC3).

443
Relações pessoa-ambiente na América Latina

Entretanto, Vera reconhece que existem ocasiões nas quais, mesmo


possuindo escolarização, não há postos de trabalho para acolher os sujei-
tos, o que os faz retornar à condição inicial: “Às vezes pelo sacrifício que
fez ou que que se formou, que não consegue ter um emprego à altura, né. Às
vezes tem que ganhar um pouco menos, nunca pode desistir” (GFC3). O que
prevalece na fala dos participantes é a ideia de que, não importa o nível
da adversidade, o fundamental é não desistir. A desistência significaria,
nesse contexto, ter sucumbido à adversidade. Adotar uma visão de si como
alguém dotado da capacidade de agir sobre a própria vida é algo positivo.
Contudo, um ponto importante é analisar em que medida essa não seria
uma expressão da dificuldade identificada por Moura Júnior (2015) de
os sujeitos reconhecerem atos de dominação e discriminação enfrentados
na situação de pobreza.
Os participantes compreendem que os empecilhos para o enfrentamento
se expressam quando as políticas públicas, a rede de suporte social e o poten-
cial emancipatório do processo de escolarização não se efetivam. Além disso,
compreendem que há um constante tensionamento entre a busca cotidiana
pela sobrevivência e a burocracia na concessão de benefícios sociais. Durante
grupo focal em Rio do Santo (Cascavel), procedeu-se o relato:

Facilitadora: E assinar a carteira não é bom?

Várias mulheres: Pra nós que tá aqui, não é bom!

Zelda (GFC2): Pra nós que tá aqui não é viável [assinar a carteira de
trabalho]. Não é viável porque, tipo assim, a gente já viu comentário de
pré-assentamento que tá tendo de pessoas que tão trabalhando fora de
carteira assinada e que tem o lote. Então é sujeito a perder o lote. Então,
você vai jogar sua família às vezes lá na periferia, na cidade, morando
numa favela, pagando aluguel, né?! Porque tem gente que olha e “Porque
vocês não vão pra cidade trabalhar?”. Acha que a gente é um bando de
vagabundo, sabe?!

Costa (2017) afirma que a demanda pela ampliação na prestação de


serviços nas áreas sociais no contexto brasileiro, sobretudo nos anos de 1995-

444
Estratégias psicossociais de enfrentamento à pobreza rural no nordeste e no sul do Brasil

2016, impulsionou o crescimento da burocracia estatal com a concessão dos


direitos sociais prevista na Constituição Federal Brasileira de 1998. Nesses
casos, afirma o autor, a burocracia pública, que media a relação institucional
com o Estado, impacta a vida do cidadão comum ao determinar a elegibi-
lidade a benefícios sociais pois “os usuários de serviços públicos brasileiros
não podem escolher, na maioria das vezes, os serviços a que se vinculam”
(Costa, 2017, p. 3507). Ao cidadão resta aceitar o que lhe é oferecido como
consequência dos arranjos governamentais estabelecidos na assistência à
saúde, nos programas de moradia, na transferência de renda e nos outros
programas sociais. Com isso, a própria burocracia estatal, distanciada de uma
análise sobre as condições de vida da população, acaba por contribuir com
a vulnerabilidade dos sujeitos ao se colocar, como expresso na fala de Zelda
(GFC2), como uma condição de impedimento ao acesso ao trabalho e à terra.

Considerações finais

A análise sobre as estratégias psicossociais de enfrentamento à pobreza


rural permite apontar que existem desafios relevantes para seu debate e
que repercutem na incidência com que são abordadas pelos sujeitos. Um
aspecto que se sobressai é como o significado do termo enfrentamento
entre os participantes acaba por se remeter à noção de combate ou saída
da condição de pobreza. Quando enfrentar passa a ser associado a este
critério definidor, os sujeitos constroem argumentações discursivas que
os posicionam em um lugar de permanente luta contra a pobreza, o que
remonta ao entendimento de que o êxito no processo de enfrentamento
seria o alcance de seu oposto, ou seja, a riqueza. Contrapor riqueza e po-
breza no debate sobre enfrentamento fragiliza a apreensão e a valorização
positiva, pelos próprios moradores, das estratégias de enfrentamento que
desenvolvem no curso de suas vidas e que são expressão das condições
socioideológicas com as quais convivem.
Em contextos de pobreza, os recorrentes investimentos frustrados em
modificar a realidade reverberam no descrédito de que certas ações irão gerar
mudanças positivas, podendo ocasionar distanciamento cognitivo e afetivo.

445
Relações pessoa-ambiente na América Latina

É importante destacar que um menor investimento para a mudança não é


fruto de uma inata apatia dos sujeitos, mas sim produção de circunstâncias
socioeconômicas e ideológicas que não asseguram o controle da relação entre
esforço e produto, fazendo com que se sobressaiam “sentimentos de perda da
confiança na própria capacidade de ação e a desesperança” (Montero, 2006,
p.129).
Os recursos disponíveis para a controlabilidade da situação falam
sobre aqueles que asseguram aos sujeitos se posicionar objetivamente
diante das adversidades, dentre os quais podemos citar as fontes de apoio
social que concedem. Trata-se das condições básicas e fundamentais para
que os sujeitos tenham possibilidade de intervir sobre a realidade. No
estudo, este mínimo necessário ao enfrentamento dispôs sobre a oferta
de condições básicas de acesso à renda, às políticas públicas de saúde,
educação, assistência social e à rede de apoio social. Uma vez assegurados
estes conteúdos mínimos, poderá ocorrer a expressão mais substancial de
conteúdos de enfrentamento para além da busca pela auto sobrevivência.
Quando não estão presentes, os sujeitos dedicarão seus esforços a manter
suas necessidades mais elementares e seu potencial criativo estará dedica-
do a isso. Em linhas gerais, as estratégias psicossociais de enfrentamento
possuem caráter inventivo e de resistência, fazendo com que elas possam
se constituir como importante instrumento de fortalecimento simultâneo
dos sujeitos e de sua comunidade, geradores de processos de ampliação da
consciência crítica sobre o mundo.

446
Estratégias psicossociais de enfrentamento à pobreza rural no nordeste e no sul do Brasil

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449
Capítulo XI

Dignidade e apego ao lugar:


disputa pelo direito à moradia na recuperação
pós-desastre
Laís Pinto de Carvalho

V iolações ao direito à moradia digna e adequada são conflitos importantes


na América Latina atual. Casos como a ausência de direitos formais
sobre a moradia, remoções forçadas produto de construção de projetos de
infraestrutura e especulação imobiliária, populações habitando áreas de
risco de desastres e a compreensão da moradia como um bem financeiro
mais que um direito são exemplos que colocam em destaque o contexto
de produção do habitar a partir de políticas sociais e econômicas que não
priorizam a dignidade. As diversas violações ao direito à moradia digna e
adequada frequentemente são problematizadas e intervindas desde sua di-
mensão material, invisibilizando os afetos, significados, discursos e práticas
em torno ao habitar, tal como nos recentes casos brasileiros das remoções
forçadas pela construção da usina Belo Monte, ou nos desastres de Mariana
e Brumadinho.
Neste trabalho, com a proposta de dialogar sobre a dimensão subjetiva
do habitar a partir da psicologia ambiental, se apresentarão reflexões de
uma pesquisa realizada no Chile sobre os modos em que as pessoas fazem
e desfazem seus lares, em um contexto de recuperação após um desastre.
Especificamente, se trabalhou a partir do caso da erupção do vulcão Chaitén,
na patagônia chilena, e as diversas histórias de vida que foram surpreendidas
com a expulsão dos seus lares, qualificados como inabitáveis por processos
de intervenção e política habitacional errática, produto do desastre e durante
mais de dez anos depois da sua ocorrência.

451
Relações pessoa-ambiente na América Latina

Perguntamos pela dimensão subjetiva do habitar a partir das vivências de


apego ao lugar (Altman & Low, 1992), em diferentes momentos de pesquisa
e intervenção, onde conhecemos os atravessamentos da política neoliberal na
produção destas subjetividades no território, atravessamentos configurados
como sofrimento e melancolia. Ao mesmo tempo, identificamos a emergência
de práticas de disputa e resistência, em luta por um habitar digno. Neste
capítulo, trazemos algumas reflexões para discutir os desafios que se abrem
na prática, especificamente na dimensão do diálogo com a política pública, e
como a experiência deste caso nos permite pensar o direito à moradia digna
e adequada, e suas interfaces com a psicologia ambiental crítica.

A dimensão subjetiva do habitar e a política neoliberal


chilena

Partimos pelo entendimento de que a dimensão subjetiva do habitar


implica a compreensão de que o território “é o chão mais a identidade. A
identidade é o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. O território
é o fundamento do trabalho; o lugar da residência, das trocas materiais e
espirituais e do exercício da vida” (Santos, 2007, p.14). Considerando essa
definição, nos situamos desde uma psicologia ambiental crítica, por uma
abordagem não hegemônica do apego ao lugar, isto é, da pressuposição
das bases políticas da produção do espaço e de processos de subjetivação
que ocorrem de forma sempre espacializada e situada. Dessa intersecção,
se conformam vínculos atravessados por múltiplas geometrias de poder
(Massey, 2005): forças econômicas, históricas, culturais e políticas que
regulam afetos, discursos e práticas.
O apego ao lugar é um processo dinâmico, que implica não somente
experiências de bem-estar pelo contato com o lugar de apego, mas tam-
bém vivências ambivalentes e negativas (Manzo, 2003). Independente
do anterior, este conceito geralmente é abordado de forma fragmentada,
com ênfase na experiência individual positiva com relação à moradia de
residência em contextos urbanos, e sem dialogar com tomadores de decisão
nem participar do planejamento das cidades (Manzo & Perkins, 2006).

452
Dignidade e apego ao lugar: disputa pelo direito à moradia na recuperação pós-desastre

Tradicionalmente, a psicologia ambiental buscou ajustar as pessoas ao seu


meio, isto é, às cidades capitalistas (Farias & Diniz, 2018; Farias et al., 2020),
desconsiderando as determinações históricas, econômicas, culturais e políticas.
Esta abordagem acrítica normaliza a experiência de apego ao lugar como um
processo unicamente positivo, deixando de problematizar sua ambivalência, o
atravessamento de relações de poder, as lutas pelo direito à moradia e à cidade
e o lugar dos movimentos sociais na sua configuração e disputa.
Esta ausência de problematização se soma à invisibilização da dimensão
subjetiva e comunitária nos processos de recuperação após um desastre. Por
exemplo, as estratégias estatais observadas após os últimos desastres no Chile
propuseram principalmente a construção e autoconstrução de moradias no
mesmo lugar de origem, e subsídios individuais para a aquisição de novas
casas. São soluções reativas aos desastres, e cujo paradigma dominante prioriza
reconstruir infraestruturas a partir de estratégias individuais, e invisibiliza a
necessidade de recuperar vínculos a um nível coletivo. Entendendo que os
desastres somente chegam a ocorrer quando as ameaças naturais se relacionam
com a exposição de comunidades e processos de vulnerabilidade, existem cau-
sas subjacentes que produzem condições de desastre, implicando a necessária
problematização de aspectos ideológicos e estruturas de poder cristalizadas,
explicitando as desigualdades próprias da realidade latino-americana e seu
modelo de vida antropocêntrico, patriarcal, colonial, classista e racista, em
que sua ciência e tecnologia geralmente contribuem a aprofundar a crise,
replicando lógicas desiguais (Lander, 2019).
Nesse sentido, e seguindo a crítica realizada por Fernández, Wald-
muller e Vega (2020), consideramos que a crise gerada pelos desastres se
sobrepõe às configurações territoriais extrativistas que criam condições
de vidas precárias, expondo as populações a maiores riscos e vulnerações
de direitos. As atuais abordagens hegemônicas às crises se dão a partir de
aproximações tecnocráticas, que neutralizam o político e os movimentos
sociais, se reduzindo a cálculos, a lógicas positivistas e das engenharias,
que buscam promover o desenvolvimento econômico das áreas mais afe-
tadas, o que acaba por configurar e reproduzir condições de desigualdade
e violações de direitos.

453
Relações pessoa-ambiente na América Latina

Na América Latina prevalece há décadas a doutrina da segurança ao


abordar crises e desastres, utilizando estratégias de defesa, forças armadas
e aplicando violências diversas. A partir de uma crítica a essas abordagens,
devemos priorizar os processos de recuperação encabeçados pelas comu-
nidades afetadas para garantir a reprodução da vida, desde um enfoque
crítico e reflexivo, que busca problematizar as estratégias centradas em
capitalizar economicamente as crises. Nesse sentido, e em consonância
com abordagens da economia feminista (Pérez-Orozco, 2012), explorar a
relação pessoa-ambiente no contexto da recuperação após uma crise deveria
colocar no centro do debate o cuidado, aspecto geralmente invisibilizado,
buscando entender as iniciativas e reacomodações que emergem da crise e
o papel das coletividades para pensar e configurar os territórios. Ao mes-
mo tempo, existe uma imaginação fetichista sobre as pessoas afetadas por
desastres, as quais são geralmente despolitizadas, representadas de forma
homogeneizada e sem histórias (Fernández et al., 2020).
A abordagem aos territórios e ao risco a partir de uma política neoli-
beral produz violações ao direito à cidade e à moradia digna e adequada.
Segundo analisam Berroeta, Reyes, Olivares, Winkler e Prilleltensky (2019),
o desenvolvimento da política social neoliberal chilena funciona a partir
de lógicas de beneficência e assistencialismo, de forma compensatória e
estabilizadora da ordem social e econômica, em que se produzem e re-
produzem sujeitas/os sociais individualizados, empresários de si e que se
posicionam passivamente e agradecidos ao sistema. Por um lado, estão o
discurso e as exigências da resiliência, centradas na responsabilidade que
devem possuir as pessoas para viver com o perigo, mais que a responsabili-
dade do Estado em garantir dignidade (Evans & Reid, 2014) e, por outro,
a restrição da autodeterminação dos povos em deliberar sobre seu projeto
histórico territorial (Segato, 2013). A experiencia de precariedade obriga
as pessoas a buscar soluções biográficas para problemas que são sistêmicos
e estruturais (Beck, 1992). Como observamos nos últimos desastres no
Chile, são soluções ancoradas em discursos da liberdade do consumo que
valorizam imaginários de esforço e sacrifício na conquista da casa própria.
É uma ideologia estruturada na mercantilização e financeirização do habi-

454
Dignidade e apego ao lugar: disputa pelo direito à moradia na recuperação pós-desastre

tar (Rolnik, 2015) que constrói subjetividades tensionadas na alienação,


no medo, na obediência, e na vigilância de si mesmas/os. Nesse sentido,
as políticas neoliberais para governar o território e a precariedade (Lorey,
2012) estão baseadas na incitação da melancolia e do desamparo. São po-
líticas de melancolização, em que as pessoas se culpabilizam, depositando
o conflito social na esfera individual.

A erupção vulcânica em Chaitén e os caminhos da


inabitabilidade

A cidade de Chaitén se localiza no sul do Chile, na entrada da Patagô-


nia. É um território costeiro continental de condições climáticas adversas,
intensas chuvas e frio, rios tormentosos e selva patagônica, assim como uma
localização isolada. Seu povoamento começou de forma tardia, no século
XX, quando famílias habitantes da ilha chilena de Chiloé, localizada em
frente a Chaitén, assim como famílias argentinas vizinhas do território,
começaram a realizar viagens de reconhecimento, estabelecendo-se ali a
partir de 1920, no setor que hoje é conhecido como setor norte e onde se
localizam as primeiras casas consolidadas, o comércio e serviços. A história
de Chaitén está marcada por uma geografia perigosa, de uma paisagem
e natureza extremas como principais conformadores da identidade local
(Rodriguez, Reyes, & Mandujano, 2016).
Em maio de 2008, o vulcão Chaitén entrou inesperadamente em
erupção. Mais de 4 mil habitantes que residiam na cidade de mesmo
nome, localizada a aproximadamente 10 km do vulcão, foram evacuados.
O Rio Blanco, que bordeava a cidade, transbordou como resultado da
acumulação de cinzas vulcânicas, inundando e gerando um novo leito
que atualmente atravessa a cidade, dividindo-a em dois setores: norte e
sul. Pela incerta evolução da ameaça vulcânica, o Estado declarou zona
de catástrofe, determinando a condição de inabitabilidade para toda a
Chaitén urbana. Diversas decisões governamentais e ações comunitárias
aconteceram nos anos seguintes: pagamento de auxílios para que as pes-
soas habitantes encontrassem uma nova solução habitacional longe da

455
Relações pessoa-ambiente na América Latina

zona afetada, um plano para a construção de uma nova Chaitén em outra


localização, manifestações e ações coletivas para a reconquista da cidade
pela comunidade, o congelamento do plano de uma nova Chaitén, e fi-
nalmente a autorização da habitabilidade. Em 2011 a cidade foi refundada
na mesma localização, permitindo somente a habitação do setor norte da
divisão gerada pelo novo leito do Rio Blanco, onde, segundo o discurso
oficial, o risco vulcânico poderia ser menor. Para o setor sul da cidade, no
entanto, a restrição residencial se manteve1. Desafiando as determinações
anteriormente mencionadas, se estima que aproximadamente 500 pessoas
retornaram para esse setor, em moradias que, por sua condição de inabi-
tabilidade, não têm sistema de esgoto, e os serviços básicos de água, luz,
transporte público e manutenção estão presentes de maneira precária e
informal. No setor também se localizam dois estabelecimentos educacionais
abandonados e sem uso.
Esta inabitabilidade posterior ao período em que se declarou zona
de catástrofe não apresenta um marco legal para sustentá-la. Estudos
realizados confirmam que toda a cidade está exposta ao perigo vulcânico,
sem diferenças entre o setor norte e sul. Isso indicaria que a decisão de
inabitabilidade em somente um setor da cidade foi política e higienista,
afetando a periferia do centro histórico onde predominavam habitações
de interesse social.
O plano de relocalização da nova Chaitén é emblemático na história
recente do Chile, já que implicou a planificação de uma cidade modelo
e sustentável, desenhada de forma proativa para a gestão do risco. Uma
das hipóteses utilizada para interpretar sua falência foi a assincronia entre
Estado, academia e comunidade (Rodriguez et al., 2016), deixando em
evidência a verticalidade das decisões territoriais. Logo, desse processo
errático por parte do Estado (Tapia, 2015), não foram todas as pessoas
habitantes do Chaitén de antes da erupção que retornaram. Diversas
pessoas se reassentaram em outros territórios. Segundo dados do último

1  No dia 18 de outubro de 2019 as autoridades locais declararam que o setor sul seria habitável, no
entanto, até a data da escrita deste capítulo, as precárias condições de vida no setor não se alteraram.

456
Dignidade e apego ao lugar: disputa pelo direito à moradia na recuperação pós-desastre

censo, a população diminuiu em 29,4%. Nos destinos de reassentamento


escolhidos individualmente por cada família, o Estado realizou estratégias
para a adaptação das pessoas habitantes, tais como programas de apoio
que incluíam bolsas de estudo, programas de capacitação e reconversão
laboral. No entanto, Berroeta, Pinto de Carvalho, Di Masso e Ossul
(2017) identificam que, ao avaliar os níveis de apego, identidade de lugar,
sentido de comunidade e satisfação residencial das pessoas deslocadas de
Chaitén, seus níveis são muito inferiores atualmente em comparação aos
níveis informados com relação ao Chaitén do passado.
O processo pós erupção que viveram as pessoas habitantes de Chaitén
setor sul é complexo. O aparente contrassenso de retornar a viver em uma
localidade em risco após experimentar um desastre desafia a racionalidade
pela busca de seguridade, demonstrando a existência de determinações es-
truturais e experiências subjetivas com o território que são invisibilizadas nos
processos de planejamento das cidades (Pinto Carvalho & Cornejo, 2018).
Partindo do pressuposto de que os Estados devem garantir o direito
à moradia digna e adequada, o processo vivido por habitantes de Chaitén
Sul tensiona diversos critérios que compõem esse direito, já que ao retornar
estão em situação de incerteza frente à seguridade de posse, à disponibilidade
de serviços, às condições de habitabilidade, e sua localização está em uma
área de risco. A partir desses critérios emerge uma relação complexa, já
que as pessoas retornadas experimentam apego a um lugar materialmente
inadequado. Nesse caso, não basta a solução de um teto seguro, é necessário
entender que o habitar é um processo tanto físico-espacial como social,
cultural, histórico, econômico e subjetivo, que corresponde à fundação
de um lugar, de uma comunidade e de um habitar com sentido de lar
(Chardon, 2010).

Habitando o inabitável

Estudamos o caso da inabitabilidade do setor sul de Chaitén em di-


ferentes momentos. Entre os anos 2015 e 2018, realizamos uma primeira
pesquisa para explorar os modos como pessoas que optaram por retornar a

457
Relações pessoa-ambiente na América Latina

viver em Chaitén Sul experimentavam apego ao lugar, mesmo que o terri-


tório seja considerado inabitável, não tenha sistema de esgoto, e os serviços
de água, luz e transporte público estejam presentes de maneira precária
e informal. Realizou-se uma pesquisa de desenho analítico-relacional, de
lógica exploratória e compreensiva, a partir de uma metodologia qualitativa.
O estudo se realizou com o método biográfico e foram utilizadas histórias
de vida, entrevistas caminhando e fotografias participativas. Trabalhamos
com 18 habitantes, e perguntamos sobre sua história de vida em Chaitén
Sul. Analisamos cada caso em profundidade a partir do método biográfi-
co-narrativo-crítico.
Durante todo o processo analítico nos situamos a partir de um com-
promisso com a reflexividade e a escuta polifônica (Pinto Carvalho, 2018).
Os principais resultados nos permitem refletir que essas pessoas que opta-
ram por retornar parecem não ter conseguido “desfazer” seu lar e refazê-lo
em outro território, estando em uma situação de sofrimento por um lar
suspenso no espaço-tempo. Identificou-se que a decisão dessas famílias de
retornar ao território em risco e inabitável provocou um mal-estar político,
de ambivalências entre o desejo de obedecer a si mesmos/as, confrontado
ao desejo de obedecer ao Estado. Mais que uma cidadania insurgente, ou
o surgimento de um sujeito político, a emergência é de sentimentos de
culpa e melancolia. É uma disputa pela cidade que se situa desde uma
obediência neoliberal, melancólica e romântica, de pessoas que foram obri-
gadas a desfazer seu lar, mas se negaram. Nesse sentido, a impossibilidade
de desfazer o lar e a insistência de refazê-lo na mesma localização traduz
também imaginários de amor sacrificial ao território, expressando um
inalcançável imperativo de felicidade (Ahmed, 2010) que desvela estruturas
de opressão. Nessa disputa, os afetos, práticas discursivas e materiais vão
construindo um lar em suspensão.

Desfazendo um lar

458
Dignidade e apego ao lugar: disputa pelo direito à moradia na recuperação pós-desastre

Durante os anos 2019 e 2020 realizou-se uma segunda pesquisa em que


se perguntou por aquelas pessoas que foram deslocadas e que atualmente
habitam outro território – Alerce – distante em mais de 200 km de Chaitén.
Trabalhamos a partir do conceito de desfazer lar, processo que ocorre
quando “os componentes materiais ou imaginativos do lar são involuntária ou
deliberadamente, temporária ou permanentemente, dissolvidos, danificados
ou mesmo destruídos” (Baxter & Brickell, 2014, p. 134). Se desfaz um lar
não somente em situações de desastres ou deslocamentos. Este é um processo
simbólico e subjetivo que está presente nas trajetórias biográficas de todas as
histórias com o lar, podendo representar características liberadoras, como em
contextos de violência e opressão no espaço doméstico. No entanto, consi-
derando que as políticas de moradia desde lógicas capitalistas e neoliberais
ameaçam com forças estruturais a segurança do lar e sua posse, os processos
de desfazer um lar nesses contextos não se destacam por sua libertação, mas
sim pelo atravessamento de disputas e violências, de ordem material, subjetiva
e simbólica, violando ainda mais o direito à moradia digna e adequada.
Hipotetizou-se que as pessoas que não retornaram a Chaitén realizaram
distintas estratégias com as quais desfizeram seus lares. O estudo se realizou
com o método biográfico e se utilizaram histórias de vida e entrevistas
narrativas com espacialização. Trabalhamos com 16 habitantes que foram
deslocados de Chaitén, perguntando sobre sua história de lar e como foi
desfazê-lo. Os principais resultados nos permitem refletir sobre a reprodução
das lógicas de ambivalência entre a obediência neoliberal e o mal-estar que
se apresentam também nestes habitantes. A experiência emergente não é
a do lar que se conseguiu desfazer, mas sim de uma melancolia social. Os
relatos demonstram pessoas retiradas do mundo, que vivem afetos de uma
experiência traumática que nunca termina, presos na culpa e recriminação
individual de não terem conseguido superar o luto pelo habitar perdido.
A experiência de ambos os grupos - retornados e deslocados - responde
a lógicas neoliberais de individualização da experiência, de um sofrimento
que atravessa trajetórias de vida e vai cotidianamente rompendo com projetos
e autonomias. Aquelas pessoas que se deslocaram parecem não conseguir
realizar nem a reconstituição do novo lar, nem a autodeterminação de

459
Relações pessoa-ambiente na América Latina

desobedecer e habitar o território desejado, como aquelas que retornaram.


Nesse sentido, apesar de que ambas as experiências estão atravessadas pelo
sofrimento, existe uma disputa pelo território de quem retornou, indicando
que, apesar da experiência melancólica, de culpa e obediência, suas práticas
cotidianas disputam e negociam estratégias de reinvindicação da cidade,
em processos de negociação, ainda que não intencionada, entre distintos
agentes, a nível íntimo, doméstico e público.

Desafios que se abrem na prática: disputa e resistência na


luta por um habitar digno

No ano de 2018, dez anos após a erupção vulcânica, o Estado chileno


licitou um estudo para avaliar os usos de solo recomendáveis para o setor
sul de Chaitén, buscando analisar de modo quantitativo estratégias da
engenharia para decidir o futuro deste território ameaçado pelo perigo
vulcânico. Conjuntamente a uma equipe de professionais da geografia e
da psicologia, desenhamos uma proposta que questionou este paradigma
estrutural, e argumentamos pela necessidade de incluir um diagnóstico
participativo da percepção de risco e das problemáticas e usos do setor
sul de Chaitén. Realizamos este estudo entre 2018 e 2019, explorando os
sentidos da dignidade quando as comunidades realizam apego a um lugar
em risco e inadequado. A população de Chaitén nesse momento era de
1618 habitantes, 519 habitando o inabitável território de Chaitén Sul.
Para dialogar com as autoridades com relação à arbitrariedade da
restrição residencial de um só setor, aplicamos questionários para avaliar
a percepção de risco de 311 habitantes de toda a cidade de Chaitén. Os
dados foram analisados de forma descritiva e realizaram-se comparações
entre as amostras de habitantes do setor norte e sul. Como principais re-
sultados identificamos que a percepção de risco vulcânico era similar em
ambos os grupos, ambos minimizando o risco e desconhecendo aspectos
importantes do seu comportamento (por exemplo: tempo disponível e
lugar para evacuação). A avaliação da própria situação habitacional segundo
critérios do direito a uma moradia adequada, apontou que habitantes do

460
Dignidade e apego ao lugar: disputa pelo direito à moradia na recuperação pós-desastre

setor sul identificam maiores violações de direitos, especialmente sobre a


posse da moradia, o acesso a oportunidades de trabalho, saúde e escolas.
Estes resultados fundamentam a necessidade de abordar o risco na cidade
como um todo, e de resolver a situação de violação de direitos vivida por
habitantes do setor sul.
Ao mesmo tempo, realizaram-se encontros participativos com habi-
tantes do setor sul para dialogar sobre o que desejam para o seu território,
quais os seus principais problemas e, a partir de cartografias coletivas,
desenhar propostas para os usos de solo em Chaitén Sul. Nesses encontros,
se destacam discursos de que a inabitabilidade de um só setor aumentou
a desigualdade social, o estigma negativo e a injustiça socioambiental
experimentada.
Destacam-se as consequências negativas de um enfoque de intervenção
e tomada de decisão política vertical de cima para baixo, desconsiderando
aspectos subjetivos da relação das comunidades com seus territórios. Desa-
fiando a proibição, a experiência da habitabilidade é vivencial, foi e é através
da ocupação do setor sul que essas pessoas o vão legitimando e vivendo a
partir de seu projeto histórico e coletivo de um território habitável: é um
território usado (Santos, 2007).
Durante os encontros realizados com a população do setor, foi frequente
o uso da palavra “dignidade”, expressando como consenso a necessidade
de permitir a habitabilidade e garantir a presença de serviços básicos. A
dignidade expressada por necessidades materiais adquire sentidos subjeti-
vos que fundamentam a impossibilidade de desfazer os vínculos com este
território. Vínculos que se narram como a insuportável dor de se afastar
do lugar em que estão enterrados seus familiares falecidos, da casa que
foi construída com as próprias mãos, das paisagens que viram crescer as
crianças, do modo de vida de reciprocidade e trocas. Vínculos que são
narrados a partir da dor vivida durante o deslocamento: o sofrimento de
não poder se adaptar à vida urbana, à necessidade de uso de transporte
público, ao mundo do trabalho formal que requer diplomas, currículos,
competências. E o atual sofrimento ético-político de ser tratado como
inferior e subalterno (Sawaia, 1999), de voltar a habitar este território

461
Relações pessoa-ambiente na América Latina

em que por mais de dez anos os serviços básicos de água, luz, transporte
público e manutenção estão presentes de maneira precária e informal. A
dignidade aqui adquire os sentidos do cuidado dos vínculos socioespaciais,
e das diversas atividades familiares e coletivas que constroem e reproduzem
as redes de cuidado em atividades não só de manutenção do sustento ma-
terial e emocional dos corpos na cotidianidade, mas também as condições
do entorno que permitem esse sustento (água, moradia, sistema de esgoto
etc.) (Collectiu Punt 6, 2019; Fernández et al., 2020).
Construir propostas a partir da experiência cotidiana, dos problemas,
necessidades e usos que a comunidade realiza dos espaços do setor requer
criticar soluções baseadas unicamente na proteção de vidas sem respeitar
e fortalecer a dignidade das comunidades e seus modos de vida. Partindo
desse pressuposto, nossa aproximação foi construir, a partir de uma expe-
riência de escuta e participação, formas de reparar os impactos subjetivos
e comunitários da incerteza habitacional e injustiça socioambiental que
essas pessoas viveram por mais de uma década.
Considerando o anterior, propusemos para Chaitén setor sul uma
habitabilidade condicionada. Isso significou desenhar um conjunto de
medidas estruturais, legais e psicossociais que permitam conviver com o
risco de forma digna, por exemplo, propondo a reconstrução de todos os
equipamentos críticos da cidade em zonas seguras, limitando o crescimento
da cidade para controlar a exposição, propondo a construção de um plano
de educação participativo para conviver com o risco vulcânico e fortalecer
o poder das comunidades na sua relação com o Estado, e propondo a re-
paração do trauma psicossocial da população, buscando reestabelecer redes
comunitárias e dar sentido à experiência vivida. Consideramos que não se
deve instalar o apagamento da história da erupção vulcânica, e menos ainda,
do período de violação de direitos com a inabitabilidade do setor sul da
cidade, sendo necessária a reparação da experiência de injustiça que essas
pessoas viveram a partir da incorporação da sua memória de resistência.
Transversalmente, e considerando o caráter social e institucional do
mal-estar da comunidade, se propôs um novo trato entre Estado, autori-
dades locais e habitantes de Chaitén, explicitando o necessário respeito e

462
Dignidade e apego ao lugar: disputa pelo direito à moradia na recuperação pós-desastre

dignidade dos modos de vida das comunidades, como coletivos ativos na


construção do território. Ainda que o estudo tenha tido como objetivo
entregar insumos às autoridades, durante o período de sua realização
buscaram-se estratégias de conscientização da comunidade (Martín-Baró,
1996), com o fim último da desalienação da situação de injustiça que
viveram e vivem.
Finalmente, no dia 18 de outubro de 2019 apresentaram-se os re-
sultados do estudo para as autoridades e a comunidade local, em um ato
em que o Estado se responsabilizou em reparar os danos causados a este
território e comunidade. Nesse mesmo dia, a mais de 1200 km de distância,
na capital Santiago do Chile, as manifestações do “estallido social” mobi-
lizaram o país, manifestações pelo mal-estar produzido pelas profundas
desigualdades econômicas do modelo neoliberal chileno. Esse momento
chave na história chilena deslocou a atenção dos compromissos assumidos
com Chaitén, e as demandas de seus habitantes se mantêm sem solução2.
Assim como emergem discursos que pedem dignidade em Chaitén,
essa também é a palavra-chave do “estallido social” chileno, indicando o
caráter estrutural de este mal-estar:

Quando na rua se pede dignidade, se está pedindo cuidado. Se as


imagens mais dolorosas dos últimos meses foram os cartazes de
aposentadas e aposentados contando como, após uma vida inteira
de trabalho, têm aposentadorias de fome; profissionais de educa-
ção infantil sendo reprimidos durante seus protestos; e mulheres
trabalhadoras da saúde desesperadas devido à falta de recursos em
seus locais de trabalho; podemos reconhecer no protesto um apelo
a um “cuidado incondicional3.” (Cabaña, pp. 20-21)

Diversas perguntas se abrem a partir desta experiência de pesquisa e


intervenção. A proposta de habitabilidade condicionada teve como prin-

2  Em janeiro de 2020, três meses após o compromisso das autoridades em garantir a habitabilidade e
resolver a ausência de serviços públicos, habitantes de Chaitén sul se mantêm em situação de incerteza,
e se manifestaram com barricadas e cartazes que diziam: “se meteram no setor equivocado, que nos falta
cartaz para tanta raiva que temos #Chaitén sul” (a tradução é nossa).
3  A tradução é nossa.

463
Relações pessoa-ambiente na América Latina

cipal sentido a reparação de mais de dez anos de violações de direitos que


esta população viveu, em um ato de justiça socioambiental; no entanto,
como se poderia evitar o desastre e a afetação dessas comunidades? Ou,
se ocorrido o desastre, como construir soluções de recuperação com base
na dignidade e no cuidado? Além disso, o cenário atual da habitabilidade
condicionada implica abordar diversos desafios, por exemplo, para quem
será a habitabilidade? Aquelas pessoas que não retornaram a Chaitén Sul,
mas desejam fazê-lo, poderiam? Aquelas pessoas que retornaram, mas
não contam com a posse da moradia que ocupam há dez anos, poderão
solucionar sua situação? Como evitar que as demandas populares sejam
cooptadas pelas autoridades?

Reflexões finais: horizontes de transformação

Os vínculos das pessoas com os territórios são elementos fundamen-


tais para abordar processos de recuperação pós-desastre. O caso Chaitén
permite discutir não somente a importância desses vínculos, mas também
seu caráter ambivalente e complexo. Experimentar apego a um território
em risco e, produto de decisões políticas, em condição de precariedade,
abre perguntas que somente podem ser respondidas de maneira situada:
qual dignidade é possível? Quais as possibilidades de diálogo com a política
pública? Qual é o horizonte de transformação? Qual o lugar do quefazer
da psicologia ambiental crítica nesses contextos?
Consideramos que a orientação à dignidade, à transformação social
e à justiça socioambiental devem ser situadas e construídas com cada co-
munidade a partir da escuta, da articulação pela conscientização e desna-
turalização das experiências de opressão que vivem as pessoas. Apostamos
na construção de processos de recuperação pós-desastres que se baseiem
nas redes e estratégias coletivas de cuidado das e pelas pessoas habitantes,
como partícipes ativas de sua própria recuperação e libertação.
Consideramos que fazer psicologia ambiental crítica nestes contextos
implicaria um compromisso ético-político (Wiesenfeld, 2001) de visibilizar
as relações históricas de poder nos territórios e os vínculos que se produzem

464
Dignidade e apego ao lugar: disputa pelo direito à moradia na recuperação pós-desastre

nesse lugar, de maneira situada e reflexiva. Nesse sentido, finalizamos este


texto abrindo algumas simples perguntas com as quais fomos refletindo
sobre nossas práticas orientadas a um horizonte de transformação social:
qual a possibilidade libertadora da pesquisa e intervenção que realizamos
para as pessoas habitantes que reproduzem sua vida cotidiana nesses ter-
ritórios? O desenho da nossa pesquisa e intervenção reproduz ou desafia
as lógicas de poder que organizam os territórios? Como nossas próprias
experiências e vínculos com o território cruzam nossa compreensão do
fenômeno? E, finalmente, a partir de nosso quefazer, que tipo de território
estamos produzindo?

465
Relações pessoa-ambiente na América Latina

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467
Capítulo XII

No es solo escapar. Resistencias


cotidianas del comercio
ambulante hortalicero en
Temuco, Chile
Jorge B. Ulloa-Martínez

E n 2011, en la ciudad de Temuco, se puso en marcha la que fue la prin-


cipal regulación del comercio ambulante hasta esa fecha. Esta trata,
principalmente, de prohibir el ejercicio de esta actividad en un cuadrante
que comprende la mayoría del sector céntrico de la ciudad, y en donde se
localizan los principales espacios de símbolo del poder, como lo son edi-
ficios gubernamentales (municipio, intendencia), la catedral de la ciudad,
plazas y otros espacios públicos así como también una serie de servicios
e instituciones propias del funcionamiento de una ciudad, como lo son
los comercios de retail, bancos, restoranes, cafés entre otros. En suma, el
perímetro de exclusión del comercio ambulante comprende entre las calles
Andrés Bello, Lautaro, Vicuña Mackenna y General Mackenna, sumando
un total de 324.000 metros cuadrados de superficie (ver imagen 1), esta
regulación se presenta como la más grande y restrictiva de este tipo en Chile.
Asimismo, en Latinoamérica las regulaciones y prohibiciones de ejercicio
del comercio ambulante han sido acotadas a espacios más reducidos y con
otros intereses (Donovan, 2008; Mackie, Bromley, & Brown, 2014; Vargas
& Valencia, 2019)
Esto significó una serie de medidas de resistencia de parte de quienes
vieron su principal fuente laboral afectada, haciendo uso de estrategias legales
de denuncia y otras acciones de protesta, tales como una huelga de hambre
de ocho mujeres, comerciantes ambulantes, en marzo de 2011 (Cooperativa.
cl, 2011); enfrentamientos con Fuerzas Especiales de Carabineros e, inclu-
so, intervenciones en dependencias de la Municipalidad con intentos de

469
Relações pessoa-ambiente na América Latina

inmolación. Estos actos han tenido un amplio impacto mediático, siendo


replicados por los medios de información en todo el país y el mundo,
como noticieros y medios escritos de prensa, entre otros.

Figura 1 Perímetro de exclusión del comercio ambulante de Temuco. Calle Lautaro por
el norte, calle Bello por el Sur, calle General Mackenna por el oriente y calle Vicuña
Mackenna por el Poniente

Estas políticas son comunes como parte de estrategias de control y,


en algunos casos, de eliminación del comercio ambulante. En ocasiones,
están acompañadas de fuerte represión, desplazamiento y persecución de
los ambulantes para el logro de los fines de la administración (Anjaria,

470
No es solo escapar. Resistencias cotidianas del comercio ambulante hortalicero en Temuco, Chile

2006; Boonjubun, 2017; Crossa, 2009; Desheng & Gengzhi, 2015; Hays-
-Mitchell, 1994). Estas forman parte del discurso neoliberal de reformas
urbanas (Harvey, 1989) e incluyen una serie de fenómenos de privatiza-
ción y segmentación (Janoschka, 2002), gentrificación (Díaz & Salinas,
2016; Insulza & Galleguillos, 2014), tematización de las ciudades (Sorkin,
1992) o el uso de estrategias de image-making (Crossa, 2001, 2009). En
definitiva, hacer las ciudades accesibles y atractivas principalmente para
la clase media, para la elite y para el turismo con el fin de tornar la ciudad
exclusivamente para el uso comercial, lúdico y estético, dejando de lado
problemas fundamentales como la superación de la pobreza, la desigualdad,
el desempleo u otras formas de injusticia social (Mitchell, 2003).
Bajo estos preceptos, presento los hallazgos acerca de las diversas
tácticas de resistencia de los y las comerciantes ambulantes mapuches
que han surgido como respuesta al despliegue de estrategias de control y
vigilancia de parte del municipio de la ciudad de Temuco en Chile. Estos
procedimientos reflejan toda una serie de políticas del espacio público que
proveen una capacidad de actuar de los y las trabajadoras ambulantes en
sus estrategias cotidianas de sobrevivencia y que permitirían socavar las
relaciones de dominación (Lilja & Vinthagen, 2018) transformando las
prácticas cotidianas en prácticas políticas.

La resistencia de los ambulantes a las políticas


neoliberales

Las estrategias gubernamentales de control y desplazamiento de los


ambulantes han desencadenado diversas respuestas relacionadas con mo-
vimientos sociales urbanos u otros tipos de resistencias locales que buscan,
de una u otra manera, evidenciar el impacto negativo de las políticas ne-
oliberales (Carman & Janoschka, 2014; Crossa, 2009, 2013; Duhau &
Giglia, 2004; Jaramillo, 2007). Bayat (2000) argumenta que la resistencia
a estas políticas se da, en mayor medida, en los países del “sur global”, a
través de una “invasión silenciosa”, que surge como una acción directa no
colectiva pero prolongada de los individuos. En el caso de los ambulantes,

471
Relações pessoa-ambiente na América Latina

se los ha destacado por poseer cierta acción y organización (Crossa, 2009;


Jones & Varley, 1994; Mackie et al., 2014; Muñoz, 2018), pero que, sin
embargo, en contextos en donde la organización se ve impedida o no
existen los incentivos necesarios para esta, los grupos más vulnerables y
con menos recursos tenderían a participar menos de movimientos sociales
u otras formas de organización colectiva (Ostrom, 2007; Tarrow, 2004).
Por lo tanto, existen casos en que la organización colectiva no es
posible, dando paso a nuevas formas de resistencia (DeVerteuil, Marr, &
Snow, 2009; Forkuor, Akuoko, & Yeboah, 2017; Hall, 2015; Hummel,
2016; Kerkvliet, 2009; Lamotte, 2014; Lata, Walters, & Roitman, 2018;
Lilja & Vinthagen, 2018; Polese, Rekhviashvili, & Morris, 2016; Turner
& Schoenberger, 2012) caracterizadas por ser “silenciosas, dispersas, dis-
frazadas o aparentemente invisibles” (Vinthagen & Johansson, 2013, p.
4) y que serían las estrategias utilizadas por grupos “flotantes”, migrantes,
refugiados, desempleados, ocupantes ilegales, vendedores ambulantes y
otros grupos marginados o subalternos (Bayat, 1997) que Scott (1987,
1989, 2004) denomina como “resistencias cotidianas”.
En este sentido, la literatura en torno a las resistencias o conflictos de
los comerciantes ambulantes frente a las políticas de control, desplazamiento
y eliminación se ha centrado principalmente en analizar las relaciones que
existen entre los propios trabajadores y las relaciones que establecen con el
Estado (Aghaegbunam, Ezeadichie, Onwuneme, & Ebere, 2016; Batréau
& Bonnet, 2016; Cross, 1997, 1998; Crossa, 2009; Desheng & Gengzhi,
2015; Roever, 2014). En el caso de Latinoamérica, se han concentrado
principalmente en ciudades metropolitanas o de carácter patrimonial (Do-
novan, 2008; Hays-Mitchell, 1994; Hummel, 2016; Mackie et al., 2014;
Middleton, 2003; Peña, 1999; Stillerman, 2006; Vargas & Urinboyev,
2015), mientras que las ciudades intermedias se van alzando como localida-
des que poseen las mismas complejidades que las ciudades de mayor escala
(Hidalgo, Mattos, & Arenas, 2009; Rojo-Mendoza, Alvarado-Peterson,
Olea-Peñaloza, & Salazar-Burrows, 2020) y, por tanto, el comercio callejero
cobra relevancia en estas ciudades, en donde las regulaciones en torno a
este tipo de actividad se han ido recrudeciendo año tras año.

472
No es solo escapar. Resistencias cotidianas del comercio ambulante hortalicero en Temuco, Chile

Hacia una comprensión de las políticas de resistencia

Si bien las resistencias de los ambulantes en general no corresponden a


grandes acciones colectivas de protesta; se visibilizan diversas estrategias de
resistencia que sirven para mitigar los efectos negativos que estas prácticas
tienen sobre las experiencias cotidianas. A estas estrategias informales y
no organizadas Scott (1985, 2004) las denomina “resistencias cotidianas”
que proveerían a aquellos que resisten de una capacidad de acción dirigida
hacia alguna forma de poder.
Estas resistencias están situadas en un tiempo, espacio y relaciones
específicas y se relacionan con actores, técnicas y discursos (Johansson
& Vinthagen, 2014) que permitirían comprender el carácter político
de las acciones cotidianas de quienes usualmente son reprimidos o coer-
cionados, siendo, muchas veces, invisibilizados por no tener un carácter
contestatario o confrontativo al estilo de una acción colectiva de protesta
(Nardacchione, 2005).
En esta misma línea, para Kerkvliet (2009), las resistencias se carac-
terizarían por:

lo que hacen las personas a través de disgusto, enojo, indignación


u oposición a lo que consideran reclamos injustos e ilegales sobre
ellos por parte de personas en posiciones o instituciones de clase y
estatus más altos y más poderosos. Expresado a través de su resis-
tencia, las personas subordinadas luchan por afirmar sus reclamos
de lo que creen que les corresponde en base a valores y derechos
reconocidos por una proporción significativa de otras personas si-
milares a ellos. (Kerkvliet, 2009, p. 233)

Con esto, sostengo que los comerciantes callejeros, al ser fuertemente


reprimidos y constantemente amenazados, desarrollan diversas estrate-
gias de resistencia a las prácticas regulatorias y de control, en forma de
micropolíticas de resistencia que se insertan en sus estrategias cotidianas
de supervivencia en el espacio público. Desde esta perspectiva posiciono
a estas estrategias como activas y con fines claros: orientadas a la acción y
en oposición a algo (Hollander & Einwohner, 2004). Por ende, poseen un

473
Relações pessoa-ambiente na América Latina

fuerte carácter político, tanto a través de las prácticas individuales como


las que se dan en el espacio público.

Las “ñañitas” u hortaliceras mapuches: repensando la


ocupación del espacio público.

Las denominadas “hortaliceras” mapuches (o “ñañitas” como las lla-


man en general sus clientes) ocupan, en su gran mayoría, la calle Manuel
Montt, entre General Mackenna y Manuel Bulnes. Estas se encuentran
organizadas en dos grandes agrupaciones que reúnen cerca de 50 comer-
ciantes ambulantes mapuches provenientes de las comunas de Temuco,
Padre Las Casas, Vilcún y Chol Chol, principalmente en comunidades
rurales en donde producen sus propios productos.
Las hortalizas que ofrecen son producidas de acuerdo a la estación del
año y, por tanto, se diferencian de los otros ambulantes de frutas y verduras
ya que ellos comercializan lo que posee más demanda. En este sentido,
las hortaliceras venden productos provenientes directamente de sus tierras
como lechugas, espinacas, acelgas, entre otros; productos derivados de la
cosecha de vainas como arvejas y porotos; legumbres; pan producido por
ellas; miel y flores, entre otros.
Los puestos que utilizan son principalmente estacionados, es decir, tienen
un lugar fijo y no se trasladan del lugar hasta que acaba su jornada laboral.
Usualmente, usan cajones de madera, sillas plásticas o las mismas cajas de
cartón en las que transportan sus productos que traen directamente desde
sus comunidades. Sus trayectos son extensos y abarcan caminatas desde sus
casas hacia la parada más cercana de buses (a veces hasta media hora con las
cargas), entre 30 y 45 minutos de viaje en bus para luego caminar cerca de
400 metros hacia la calle en la que ofertan sus productos, otras, en tanto,
se asocian y llevan sus productos en algún vehículo familiar o comunitario.
Es común verlas con sus vestimentas típicas, sus joyas u otros distintivos
mapuches. También, en tiempos donde el frío y la lluvia se hacen presentes,
disponen de artefactos para calefaccionarse (braseros con carbón), comparten
mate entre ellas y usan mantas u otro tipo de vestimentas para abrigarse.

474
No es solo escapar. Resistencias cotidianas del comercio ambulante hortalicero en Temuco, Chile

En términos de la regulación, este grupo representa la mayoría de las


intervenciones y acciones de violencia de parte de carabineros y los pro-
cesos de desalojo ocasionando, muchas veces, personas heridas y un gran
tumulto de gente que se involucra en el procedimiento, principalmente
apoyando a las ñañitas (ver figura 2).

Figura 2 Resistencia de las hortaliceras mapuches a la intervención de carabineros

Estas acciones se han encontrado con el rechazo de numerosas orga-


nizaciones sociales, las que apoyan la causa de las hortaliceras y colaboran
en la generación de redes de apoyo al comercio ambulante. También se
han realizado denuncias en los tribunales correspondientes aludiendo a
la vulneración del convenio 169 de la OIT, en específico, al mandato de
proteger el trabajo indígena de pertenencia cultural (OIT, 1989)

475
Relações pessoa-ambiente na América Latina

Tácticas de resistencia

A continuación presento parte de los hallazgos encontrados durante


mi proceso de trabajo de campo etnográfico realizado durante mi inves-
tigación doctoral con los y las comerciantes ambulantes del perímetro de
exclusión. En este caso, presento dos tácticas de resistencia de las traba-
jadoras mapuches a las políticas de regulación del comercio ambulante
de la ciudad. Estas se obtuvieron mediante observación participante y no
participante, asimismo, coloco pequeños extractos para ejemplificar las
descripciones expuestas.
Particularmente, las ñañitas presentan las estrategias de resistencia más con-
frontacionales de todos los ambulantes de Temuco, habilidades que adquieren
notoriedad por su impacto y por lo mediático de sus acciones, reflejando, más
allá de una reivindicación por el espacio, una forma de visibilizar su demanda
por el derecho al trabajo y el respeto por su cultura, como mujeres y mapuches
que venden sus productos producidos por ellas mismas.

Defensa del espacio

Cuando se llevan años trabajando en la calle, usualmente, el puesto


de trabajo es fijo, adquirido por antigüedad y porque quienes trabajan
en el lugar adoptan un código de respeto y colaboración. Por lo tanto,
es muy común encontrar puestos “fijos” o estables de comercio callejero
y que no se desplazan ante el control gubernamental. Lo que caracteriza
principalmente a estos trabajadores, entonces, es que tienen un espacio usu-
almente fijo, con unas dimensiones determinadas y, por lo general, ofertan
vegetales frescos según la temporada (dentro del perímetro de exclusión).
No obstante, también hay quienes venden otros tipos de artículos, como
de bazar, productos de temporada, artesanías y hierbas medicinales, entre
otros tipos de mercancías.
La defensa del espacio se torna activa cuando, ante la amenaza de
fiscalizaciones, los comerciantes mantienen sus puestos, resisten el hosti-
gamiento, se defienden e, incluso, toman la iniciativa de “hacerse notar”:

476
No es solo escapar. Resistencias cotidianas del comercio ambulante hortalicero en Temuco, Chile

llegan ahí … sacarte de trabajar po, fome1 po… porque tenis que an-
dar esperando que se vayan los pacos pa poder trabajar y después llegan
ellos ahí (inspectores municipales), y se quedan ahí, y… y como la gente
a veces no aguanta, los días que uno puede trabajar lo hace en un.. no se
po, un “córrete de aquí viejo” antes que te agarremos a charchazo2, le dijo
una amiga (risas). (Erna, 25 años)

El relato de E se refiere a una acción tras la fiscalización y disuasión de los


comerciantes callejeros de una de las principales calles del perímetro de exclu-
sión, donde, tras la ausencia de carabineros (quienes tienen el poder de arrestar
y portar armas) dejan paso a los fiscalizadores (quienes entre sus atribuciones
tienen el de velar por el cumplimiento de la ordenanza y multar a quienes la
incumplan, pero no de portar armas ni hacer detenciones). Por lo tanto, una
acción común es la de “ahuyentarlos” ya que, en términos fácticos, el poder
ejercido es menor sin presencia de los carabineros. Así, la disputa en términos de
poder se traduce en quién tiene el dominio del espacio público y la recuperación
y reivindicación del “territorio” de trabajo es esencial para la resistencia. Ante
esto, “Claudio” dice: “porque todos tenemos nuestros puestos establecidos, que
son adquiridos por el tiempo, su antigüedad trabajando en la calle”.
Una característica que se ha dado en las calles del perímetro de ex-
clusión de Temuco es que los lugares más críticos de control y, a veces, de
“cese” al control es en donde, precisamente, se encuentran los ambulan-
tes estacionados. Principalmente, en la calle Manuel Montt (ver imagen
1 del perímetro de exclusión) la cual es una de las principales calles de
tránsito peatonal que conecta con el transporte público; este último vin-
cula el centro de la ciudad con el sector poniente y sur poniente, sectores
donde se concentra una gran cantidad de la población total. Esta calle se
encuentra ocupada principalmente por hortaliceras de origen mapuche y
otros integrantes mapuches reconocidos por CONADI3. Por tanto, ellos

1  Es una expresión para expresar aburrimiento, aunque en esta situación denota la incomodidad de
la situación.
2  Golpe en la cabeza con la palma de la mano.
3  La Corporación Nacional de Desarrollo Indígena (CONADI) es una institución chilena, creada en 1993
por medio de la Ley Indígena 19.253, que tiene como objetivos la promoción, la coordinación y la ejecución
de la acción estatal de los planes de desarrollo de las personas pertenecientes a los pueblos indígenas de Chile.

477
Relações pessoa-ambiente na América Latina

como representantes indígenas tienen una serie de demandas y disputas


que validan su trabajo en las calles y son quienes más han reivindicado el
derecho a trabajar en ellas, amparados en el convenio 169 de la OIT (OIT,
1989), específicamente sobre el artículo 4 de este4. Al respecto, Carmen (30
años) dice “nosotros la cultura mapuche siempre fue comerciante, entonces
tú al sacarle al comerciante de la calle, estay sacando parte de la cultura
de nuestro pueblo, aparte ya todo lo que han hecho ya con nuestra gente,
ya siguen quitándole parte de la cultura …”. Por tanto, el componente
cultura y de arraigo al territorio se mantiene sobre su actividad laboral,
defendiéndolo y exigiendo su permanencia en el lugar.

Aglomeración

Responder a las fiscalizaciones y hostigamiento por parte de carabineros


e inspectores municipales es una forma activa de contestar a las políticas de
exclusión del trabajo en el espacio público y que, entre otros fines, permite
visibilizar sus demandas a través de actos directos de contestación, interpelando
directamente al cliente o peatón de la calle y confundiendo/ralentizando las
detenciones o fiscalizaciones que se dan. La aglomeración es una táctica que
se da tras la focalización o intento de detención de un trabajador callejero y
que cuenta con el apoyo colectivo de los demás trabajadores. De esta manera,
acercarse y confundir a quienes están realizando los procedimientos es una
estrategia de hacer participar a más a los transeúntes así como de visibilizar
las prácticas, muchas veces, violentas que se dan en este tipo de acciones:

generalmente se hacen células, células donde cada cual se va adhiriendo


a cierto grupo o cierta célula y vemos que si dentro de esa célula hay un
compañero que está siendo agredido o está siendo violentado, para po-
der quitar la mercadería, nosotros vamos, hacemos fuerza, psicológica…
en el sentido que el apoyo moral que se requiere, también si es necesario
recuperar la mercadería… se hace o se hacía (Joana, 37 años)

4  Específicamente el artículo 4 menciona: “Deberán adoptarse las medidas especiales que se precisen
para salvaguardar las personas, las instituciones, los bienes, el trabajo, las culturas y el medio ambiente
de los pueblos interesados”

478
No es solo escapar. Resistencias cotidianas del comercio ambulante hortalicero en Temuco, Chile

La aglomeración permite apoyar a una compañera ambulante, así


como también posibilita participar a los mismos transeúntes formando una
fuerza homogénea que reduce la posibilidad de individuación. Es decir, a
través de la aglomeración se elimina la acción individual y, por tanto, la
posibilidad de identificación, a la vez que el colectivo sobrepasa a quienes
están llevando a cabo las acciones de fiscalización o de multas.
Es habitual encontrar hoy en día una gran cantidad de videos recopi-
lados a través de teléfonos celulares y depositados en redes sociales, multi-
media donde se evidencian los distintos procedimientos que se ejecutan.
Estos ejemplifican cómo esta táctica de resistencia resulta útil para disuadir,
confundir y recuperar, ya sea mercancía o, incluso, a los mismos compañeros
de trabajo. Esto se logra en conjunto con el gran apoyo que logran de parte
de los transeúntes, quienes muchas veces claman por la liberación, el cambio
de procedimiento e, incluso, por el mismo abuso de poder que observan ya
sea de parte de los inspectores municipales o de carabineros.
Sin embargo, esta táctica tiene una repercusión directa en los argu-
mentos que el municipio utiliza para seguir reprimiendo y llevando a cabo
estas políticas de prohibición. Al hacer una revisión de estos argumentos
que sostienen el proceso, uno de los más utilizados es precisamente la
aglomeración y la dificultad de transitar por la vía pública, lo que, para
quienes inciden en estas políticas, favorece actos delictivos en contra de
los ciudadanos:

El fundamento del programa denominado “ordenamiento y relocaliza-


ción del comercio estacionado del sector centro de la ciudad de Temuco
consiste en … evitar aglomeraciones que facilitan la comisión de actos
delictuales, lo que se logra materializando la reubicación de los permisos
ya referidos (Municipalidad de Temuco, 2011, Decreto 92)

Por tanto, la aglomeración como táctica de resistencia también favorece


la afirmación de los discursos prohibitivos que la apuntan como potenciador
o favorecedor de actos delictivos, hecho que, de manera indirecta también
es un acto que afectaría a las pretensiones de validación como práctica del
comercio ambulante.

479
Relações pessoa-ambiente na América Latina

Conclusiones

En los últimos 50 años se observa una serie de cambios en las ciudades


latinoamericanas, principalmente en los procesos de metropolización y creci-
miento exponencial de estas. Estos cambios han sido destacados por Mattos
(2002) donde el principal impacto en la transformación de las sociedades
pasa por una reestructuración socioeconómica, espacial y de difusión y de
adopción de nuevas tecnologías de información, los que aparecen como rasgos
destacados de una “nueva geografía urbana” (de Mattos, 2002: 2), o en lo
que Ascher (2004) llama una nueva “revolución urbana”. Estas implican el
tránsito hacia la construcción de ciudades “más modernas” en donde la escala
de la ciudad no tiene distinción. En Temuco, las estrategias de control del
comercio callejero se asemejan al de grandes urbes, a través de la zonificación,
regulación mediante decretos y desplazamientos entre otros (Aghaegbunam
et al., 2016; Batréau & Bonnet, 2016; Young, 2017).
Estas nuevas formas de comprender las ciudades han llevado a generar
ciertos cambios sobre prácticas culturales fuertemente asentadas y que, al
intentar erradicarlas o regularlas de manera agresiva, suceden conflictos
que desatan resistencias sobre aquellos que se ven afectados. Este grupo
está compuesto, principalmente, por sujetos oprimidos y, muchas veces,
excluidos, como es el caso de los comerciantes callejeros (Roever, 2014)
o mujeres indígenas, quienes, al poseer principalmente condiciones pre-
carias de trabajo, son sujetos de persecución y erradicación del espacio
público. Se niega, de esta manera, el trabajo ambulante como una opción
culturalmente arraigada y como una fuerte importante de generación de
empleos (ILO, 2016; Rosenbluth, 1994; Tokman, 2001; Veleda, 2001).
El objetivo de este trabajo fue evidenciar las tácticas de resistencia de
las comerciantes ambulantes mapuches que han surgido como respuesta
al despliegue de estrategias de control y vigilancia de parte del municipio
de la ciudad de Temuco como parte de la relación constante entre el poder
y resistencia (Crossa, 2015).
En este sentido, este trabajo contribuye al desarrollo y comprensión de
las resistencias locales en los estudios sobre la informalidad urbana y los usos y

480
No es solo escapar. Resistencias cotidianas del comercio ambulante hortalicero en Temuco, Chile

apropiaciones del espacio público, en específico acerca del comercio callejero y


los conflictos que devienen en las ciudades en tres aspectos, explicados a seguir.
En primer lugar, las resistencias transitan continuamente entre lo que se
podría comprender como estrategias y tácticas de visibilización o de acción
directa – o resistencias contra represivas (Lilja & Vinthagen, 2018) – que
actúan en función de un “otro” u “otros” que imposibilitan sus capacida-
des de ejercer el trabajo en el espacio público. Esto da pie a comprender
todo el entramado de posibilidades estratégicas de organización de un
grupo que en el papel (desde una matriz de arriba hacia abajo), no tiene
ninguna posibilidad de acción, ni de toma de decisiones, y que ha debido
enfrentar un fuerte proceso de expulsión y desplazamiento, dificultando
sus posibilidades de ingreso así como también el de tener un trabajo con
condiciones dignas. En este sentido, la acción colectiva entendida desde
“Abajo hacia arriba” destaca su capacidad activa de acción y con objetivos
orientados a mantener sus condiciones de trabajo, resistiéndose a estas
políticas urbanas excluyentes (Bayat, 2000; Swanson, 2007)
Estas formas de operar en el espacio público son muchas veces invisi-
bilizadas por muchos motivos, entre ellos, por ejemplo, no se los considera
como agentes políticos ni tampoco sus acciones de resistencia son organi-
zadas o responden a lo que serían acciones colectivas de protesta (Tarrow,
2004). Estas formas de expresión de la resistencia es lo que Scott (1985,
1989, 2004) denomina como “formas cotidianas de resistencias” y que
se caracterizan precisamente por ser micro formas de contestación frente
a la dominación. De esta manera, las personas que se mantienen en una
posición de subordinación adquieren el poder de tomar decisiones y de
tener agencia (Turner & Schoenberger, 2012) y por ende son políticamente
significantes (Kerkvliet, 2009), tal como sucede con las ñañitas hortaliceras.
En tercer lugar, las tácticas y la resistencia, como estrategia, evidencian
una capacidad de adaptación a los cambios que se relaciona con la mejora
de los dispositivos de control, estas actúan en la medida que emergen nuevas
prácticas de opresión, se evidencia que las tácticas tienen mayor efectividad
cuando actúan de manera conjunta (Swanlund & Schuurman, 2019). Estas
corroboran, además, una forma de lectura de las estructuras de poder que

481
Relações pessoa-ambiente na América Latina

hacen necesaria su comprensión, así como también denotan la importancia


de la espacialidad en sus estrategias de resistencia (Ojeda & Pino, 2019).
Finalmente, este trabajo se posiciona como una posibilidad de lectura
de estas estructuras de poder a partir del estudio profundo de las tácticas de
resistencia, a través de la comprensión y el posicionamiento de las “políticas
del espacio público” (Low & Smith, 2006) mediante intervenciones de
“abajo hacia arriba” e implican la valorización de los procesos de contes-
tación de las políticas neoliberales del espacio público. Uno de los valores
esenciales que está en juego no es sólo lo relacionado con el tipo de trabajo
(informal ambulante) o el no pago de contribuciones, sino que en vista del
modelo de ciudad que se plantea hay una directa relación con los usos y
apropiaciones del espacio público (quién o quiénes pueden y cómo pue-
de ser usado el espacio público) y el emergente derecho a “excluir” de los
administradores (Staeheli & Mitchell, 2008). Estas cualidades del espacio
público potencian el carácter ideológico que tiene el espacio público para
llevar a cabo las racionalidades neoliberales acerca de las relaciones sociales
y los tipos de intercambio que en este debieran darse, lo que desencadena
una serie de “tensiones” en torno a sus significados (como por ejemplo el
ideal de accesibilidad universal a este) (Fernandez & Di Masso, 2018).
Por tanto, las tácticas, dentro de la resistencia, sirven de hilo conductor de
respuesta a esta racionalidad neoliberal de conducción del espacio público,
en términos más amplios, el de la reivindicación del derecho a la ciudad.

482
No es solo escapar. Resistencias cotidianas del comercio ambulante hortalicero en Temuco, Chile

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Capítulo XIII

Etnoeducación y resistencias
en la diáspora de mujeres
mapuche en Chile:
El Nütram y Kimün
Alicia Rain

Introducción

El pueblo mapuche presenta una larga historia de resistencias. Una de


las más destacadas es la resistencia militar y política para afrontar la invasión
española, con lo cual consigue el reconocimiento de su autonomía territorial
y política por parte de la Corona Española en el siglo XVII (Boccara, 2007).
No obstante, el Estado chileno, tras su independencia de la Corona Española,
genera una violenta campaña militar para despojar al pueblo mapuche de su
“Autonomía Territorial” y “Autodeterminación” política, por considerarlos
como un peligro para la configuración de un proyecto capitalista, donde la
integración de los pueblos originarios era esencial para alcanzar estos fines.
El Estado Chileno ha operado desde una lógica desarrollista occidental
y de blanqueamiento (Marimán, 2006). Para alcanzar estos propósitos, la
campaña militar genocida logra arrebatar al pueblo mapuche más del 90%
de sus tierras y los derechos colectivos alcanzados en la época de conquista
española (Ancán y Calfío, 1999). Esta herida colonial que no cesa es la que
define el horizonte colonial que oprime al pueblo mapuche hasta nuestros
días (Alvarado, 2016), ya que el empobrecimiento material, la escasez de
tierras y la falta de reconocimiento como pueblo, lo llevan a vivir la diáspora.
Habitar las ciudades por el empobrecimiento masivo y la falta de tierras
para la subsistencia (Ancán y Calfío, 1999).
La ciudad representa un lugar visible para el dominio de los pueblos
originarios, porque fue en ella donde los conquistadores españoles sentaron

489
Relações pessoa-ambiente na América Latina

las bases para el dominio político, religioso y económico (Guerra, 2014).


Es allí donde se forjaron las rutas de comercio y explotación material
y humana en contra de los territorios de los pueblos originarios. Así se
forjaron las rutas para los procesos de extractivismo en América Latina y,
en particular, en Chile (Guerra, 2014). La lógica ha sido la de sostener el
enriquecimiento de las potencias mundiales europeas y norteamericanas a
través de las riquezas naturales de América Latina, pero también de la mano
de la obra de los pueblos originarios y afrodescendientes (Zavala, 2008).
Las zonas urbanas han sido representativas del poder físico y simbólico
de las empresas extractivistas españolas (Guerra, 2014) pero, de forma
dialéctica, han sido, a la vez, las principales fuentes de financiamiento
material y subsistencia del pueblo mapuche (Abarca, 2002; Bello, 2002).
Es en estos lugares donde las personas de nuestro pueblo ha forjado sus
resistencias cotidianas para hacer frente a procesos sostenidos de violencia
material y simbólica (Alvarado, 2016). Ahora bien, la presencia masiva del
pueblo mapuche en las grandes ciudades, principalmente en la ciudad de
Santiago, que es la capital de Chile, deja ver que más del 50,8% son mujeres
(Instituto Nacional de Estadística [INE], 2017). Las mujeres mapuche en la
ciudad han sido víctimas de racismo y han ocupado lugares inferiorizados,
pero desde esos lugares han generado estrategias para resistir y orientarse
hacia una vida digna (Alvarado, 2016; Nahuelpán, 2013).
El saber mapuche ha sido revitalizado en diferentes generaciones para
hacer frente al racismo y a las exclusiones sociales. Esto se demuestra en
la forma particular en la cual se ocupan los espacios físicos y simbólicos
(Bello, 2002). Las prácticas mapuche se han expresado en las organiza-
ciones sociales para la lucha por los derechos laborales (Alvarado, 2017),
pero también para el alcance de fondos Estatales para la subsistencia y
la revitalización identitaria (Bello, 2002). Estas prácticas de apropiación
constituyen actos de resistencia en las ciudades y conforman una alianza
entre el conocimiento propio mapuche y los territorios de procedencia.
No obstante, la resistencia de las mujeres mapuche ha sido silenciada o
encapsulada en la historiografía mapuche y en los propios movimientos
políticos mapuche (Nahuelpán, 2013).

490
Etnoeducación y resistencias en la diáspora de mujeres mapuches en Chile: ...

Este trabajo se centra en las experiencias diaspóricas de las mujeres


mapuche en Chile y aborda las vivencias de aquellas asentadas en la füta
warria de Santiago y de aquellas que han retornado al Wallmapu, territorio
histórico mapuche, que fue definido como autónomo tras los tratados de paz
entre el pueblo mapuche y la Corona Española en el siglo XVII (Boccara,
2007; Zavala, 2008). Nos focalizamos en las mujeres, dada la invisibilización
histórica, política y social de la que anteriormente hemos hecho mención,
pero también porque en ellas se expresa la interseccionalidad por raza, clase
y género (Alvarado, 2016; Cumes, 2009; Millaleo, 2011; Nahuelpan, 2013).
Así, el propósito de este trabajo es dar cuenta de las agencias de mujeres ma-
puche en el marco de una formación identitaria propia, a través del nütram,
consejo de personas mayores y el kimün, conocimiento mapuche, los cuales
han sido centrales para afrontar las adversidades de la ciudad colonial.
Este capítulo se compone de tres apartados. El primero examina los
efectos psicosociales y colectivos que ha generado la vivencia diaspórica en
las mujeres mapuche. En este apartado analizamos un momento histórico
crucial de nuestro pueblo mapuche, en donde el despojo da paso a una
herida colonial que nos afecta hasta la actualidad (Alvarado, 2016). Aquí
reafirmamos la necesidad de visibilizar las actorías de las mujeres mapuche
y sus resistencias cotidianas. En el segundo apartado damos cuenta del
marco metodológico del estudio realizado entre los años 2017 y 2018. La
tercera parte está compuesta por los hallazgos investigativos en cuanto a dos
principios valóricos mapuche, el nütram – consejos de personas mayores
a personas jóvenes, con fines de valores morales colectivos mapuche – y el
kimün – conocimiento mapuche de creencias, prácticas e historicidad –
como estrategias de resistencia situada mapuche que conforman nuestra
propuesta central para este trabajo. Estos conocimientos mapuche se basan
en las ideas, creencias y prácticas basadas en la relación focalizada en lo
colectivo, en coexistencia con la naturaleza y en las fuerzas ancestrales
espirituales. De esta forma, los conocimientos mapuche forman parte
central de una propuesta de Etnoeducación y una puesta en escena de las
prácticas cotidianas de resistencia de las mujeres en las zonas urbanas y en
el propio territorio ancestral, Wallmapu.

491
Relações pessoa-ambiente na América Latina

El despojo de tierra y territorio: La herida colonial


mapuche

Nuestro pueblo mapuche desde la época de la conquista española ha


debido afrontar cotidianamente la lógica colonial y defender su territorio
y autonomía política. En dicha resistencia alcanza el reconocimiento de
su ‘Autonomía Territorial’ que comprende desde el sur del Río Bíobio al
sur de Chile en el siglo XVII (Boccara, 2007; Zavala, 2008). Sin embargo,
el Estado de Chile, tras su conformación e independencia de la Corona
Española da continuidad al colonialismo imperante en dicha empresa de
conquista. De esta manera, desde su conformación inicia una serie de
estrategias de integración territorial y cultural (Boccara, 2007; Marimán,
2006; Zavala, 2008). Es así que en la segunda mitad del siglo XIX se
implementa la mal llamada campaña militar ‘Pacificación de La Arauca-
nía’, la cual tuvo como propósito conquistar y dominar a nuestro pueblo
Mapuche por medio de la violencia y el despojo (Alvarado, 2016). Desde
allí en adelante nuestro pueblo se ha visto forzado a buscar en las zonas
urbanas las formas de sobrevivencia (Nahuelpán, 2013).
A partir de los procesos de desplazamiento forzado, nuestro pueblo
se ha visto afectado por la pérdida de su territorio, pero también ha visto
afectados sus sistemas y formas de vida históricos y la conformación de
su identidad cultural (Ancán y Calfío, 1999). Así mismo, las experiencias
de vida en la ciudad han estado marcadas por el racismo, el maltrato y las
vulneración de derechos laborales (Alvarado, 2017, 2016; Millaleo, 2011;
Nahuelpán, 2013). Si bien el despojo territorial y el desplazamiento forzado
de nuestro pueblo afecta a hombres y mujeres, en este trabajo nos focali-
zamos en la experiencia particular de las mujeres, porque su historicidad
y el reconocimiento de sus formas propias han sufrido múltiples olvidos
en la literatura chilena, pero también en nuestra propia memoria colectiva
y de lucha mapuche (Nahuelpán, 2013).
Reconocemos, entonces, que las opresiones han operado de forma
persistente y sistemática en nuestras historias como pueblo y como
mujeres, pero también observamos que donde han existido opresiones,

492
Etnoeducación y resistencias en la diáspora de mujeres mapuches en Chile: ...

existen también resistencias (Alvarado, 2017, 2016; Nahuelpán, 2013).


Se trata de resistencias basadas en el conocimiento mapuche, en las
enseñanzas y en la memoria colectiva que se revitaliza de generación
en generación.

Marco Metodológico

Perspectiva metodológica

Para esta investigación utilizamos una metodología cualitativa con


aportes del Etnodesarrollo (Bonfil, 1990), ya que el proyecto colonizador
se conforma como una continuidad a nivel ontológico, epistemológico,
político y material. Este enfoque problematiza la autonomía, autogestión
e identidad de nuestro pueblo mapuche. Así como el lugar subalterno y
minorizado que ocupa en relación a la sociedad chilena y el Estado de
Chile, lo cual da cuenta de un contexto colonial persistente. También,
las acciones de resistencias mapuche remiten necesariamente a procesos
de innovación y apropiación cultural (Bonfil, 1990; Pérez, 2013). La
tierra y el territorio son fundamentales para el desarrollo de la vida y la
vivencia identitaria de nuestro pueblo. De ahí, la lucha por recuperar
nuestra “Autonomía Territorial” y “Autodeterminación política”, en tanto
nación. Dada la persistencia de nuestros valores, prácticas y sistemas de
creencias, aún en un escenario occidental colonial (Alarcón & Nahuel-
cheo, 2008). Bajo este marco, la Etnoeducación nos permite proponer
las estrategias de enseñanza-aprendizaje como el nütram y el kimün como
formas situadas de reconstruir un pueblo, aún en contextos de dispersión
socio-demográfica.
Reconocemos la heterogeneidad de la diáspora mapuche y las situacio-
nes actuales de las mujeres por razones de sexualidad, raza, clase y género
(Cumes, 2009). En este sentido, adoptamos la perspectiva interseccional
(McCall, 2005; Yuval-Davis 2006, 2017), para abordar opresiones múltiples
que viven las mujeres mapuche tanto en su relación con la sociedad chilena
como dentro de nuestro propio Pueblo Nación Mapuche.

493
Relações pessoa-ambiente na América Latina

Material y método

Realizamos este trabajo de tipo etnográfico entre los meses de noviembre


de 2017 y abril de 2018. Los lugares en los cuales construimos el trabajo
de campo fue en la füta warria de Santiago, región Metropolitana, en las
regiones del Bíobio, La Araucanía y Los Ríos, pertenecientes al Wallmapu.
Fueron actrices de nuestro estudio 39 mujeres y 2 hombres, que hablan
de diferentes lugares sociales, económicos y políticos.
Realizamos diversos viajes y acompañamiento de las mujeres en los
espacios laborales, sociales y sus hogares. Para resguardos éticos, hicimos
uso de las orientaciones propias de la Universidad Autónoma de Barcelo-
na y los protocolos de nuestro Pueblo Mapuche como el pentukün, que
involucra establecer conversaciones para crear confianza, conocerse desde
las raíces familiares, küpal y características geográficas, tüwun.
Tras la revisión del material, hicimos análisis del mismo en conjunto
con los referentes teóricos para alcanzar un proceso reflexivo de los hallazgos.
Así, construimos dimensiones de análisis y categorizaciones por medio de
la observación del contenido.

Los conocimientos mapuche como prácticas cotidianas


de resistencia

Una de las dimensiones que encontramos en nuestro estudio, se


denomina ‘Mapuche Kimün’, la cual constituye un conocimiento propio
del Pueblo Mapuche y requiere comprenderse en el contexto de resisten-
cias colectivas y desde las particularidades de las familias y personas. En
esta dimensión encontramos dos categorías, la primera de ellas referida a
‘Creencias y prácticas mapuche’ y la segunda referida al ‘Nütram’.

Mapuche kimün

El mapuche kimün o también denominado kim (base del conocer y del


saber) pone en relación a las actrices y actores dentro de una familia y un

494
Etnoeducación y resistencias en la diáspora de mujeres mapuches en Chile: ...

lof, diferenciados por las condiciones que vivencian y los fines que consti-
tuyen el aprendizaje (Catriquir, 2014). El conocimiento propio mapuche
surge de las memorias colectivas que van anclándose en la oralidad de las
familias pero que, a la vez, se han visto nutridas por los conocimientos
occidentales, producto de los intercambios culturales.

Creencias y prácticas mapuche

Las creencias remiten a formas de comprensión de mundo en ámbi-


tos como el origen del Pueblo Mapuche, el inicio de un nuevo año, wetri
pantü, que es diferente a las creencias occidentales. Así también las formas
de comprender la vida y la muerte y las ceremonias particulares para su
festejo y despedida, respectivamente. Las prácticas mapuche tienen como
fin la construcción de valores de vida, como son el sentido de hermandad
entre mapuche, denominado en lengua mapuche reymagnen, los trafkintü,
que son los intercambios materiales, pero también al apoyo mutuo entre
personas mapuche, a través de los alimentos. Así es el caso de las prácticas
de la familia de Rosa (38 años, Región del Bíobio):

Así que, nos alimentaban y nos vestían con lo poco y na’ [nada] que
ellos tenían, porque la mayoría, era alimentación lo que se buscaba,
porque ellos, mi papá salían a comerciar con lo que salían antes, con el
cochayuyo [alga marina]. Así que…”.

En el decir de Rosa, una de las prácticas que su padre implementaba


era comercializar el cochayuyo, un alga marina que se acostumbra a extraer
en las zonas costeras de Chile. Cuando ella habla de ‘comercializar’, no se
trata de un comercio en el entendido occidental, en donde el intercambio es
monetario, sino que se trata de un intercambio de productos, un trafkintü.
Esta práctica involucra que las personas que habitan en las zonas costeras,
se desplacen a las zonas cordilleranas donde el acceso a este producto sólo
es posible por la vía del intercambio. El intercambio material reviste, a
su vez, un intercambio simbólico de relación, dado que no sólo se espera
obtener un producto sino establecer o afianzar una relación de hermandad.

495
Relações pessoa-ambiente na América Latina

Otro de los espacios propicios para el aprendizaje de valores mapuche


ha sido a través de las ceremonias, en este caso los Ngillatün, en los cuales
todas las familias de un lof, – unidad sociopolítica compuesta por tres o
más troncos familiares comunes – forman parte de un espacio colectivo
que es para agradecer a Ngenechen, una de las fuerzas espirituales más im-
portantes para nuestro Pueblo Mapuche. Los ngen son seres espirituales
que cuidan el agua, la tierra y otros elementos de la naturaleza. El sentido
de los Ngillatün es pedir abundancia en las cosechas, equilibrio en la natu-
raleza y armonía para todas las personas, no sólo mapuche. De este modo,
las normas a veces suelen ser estrictas, a fin de cautelar la participación
colectiva y sostener las normas mapuche. De este modo recuerda Marisol
(69 años, Santiago):

Me acuerdo que en ese tiempo la gente era muy estricta, no lo dejaban


entrar con eh, que la gente bailara cuando andan bailando, me acuerdo
que andaba ¡no sé! Si el capitán ¡ese!, que anda con una garrocha [palo
largo que se utiliza para indicar a la gente e instruir de los momentos de
participación en la ceremonia], la persona que no estaba bailando ‘vamos
pinchazo ¡así lo hacían!’, o los hacían salirse y a patita pelá [descalzos].

Como se puede apreciar en la cita, el conocimiento que Marisol tiene


acerca de una de las ceremonias más importantes de nuestros lof, ha sido
por medio de la práctica y su propia participación. Evidencia también
que existe una alta necesidad de implicación colectiva para que la rogativa
alcance su fin. Marisol da cuenta de las normas que operan dentro de las
ceremonias mapuche y de cómo el respeto por ellas implica una serie de
sanciones. Se trata de una práctica que ha subsistido por varios siglos. De
hecho, el protocolo de estas ceremonias se encuentra documentado por
los cronistas españoles en el período de la conquista hacia nuestro Pue-
blo Mapuche y da cuenta de cómo esta organización formó parte de los
acuerdos políticos entre representantes de la Corona Española y nuestro
Pueblo (Zavala, 2008).
Si bien las estrategias por parte del Estado y la sociedad chilena para
alcanzar nuestra homogeneización han sido diversas y sistemáticas, en

496
Etnoeducación y resistencias en la diáspora de mujeres mapuches en Chile: ...

muchas familias mapuche permanece la idea de mantener nuestras creencias


y prácticas. Se trata de hacer frente, de forma colectiva, a los engaños, al
monoculturalismo y al fortalecimiento del orgullo mapuche. Así, Mar-
celina (69 años, Región de La Araucanía) recuerda los relatos y prácticas
de su padre:

Entonces, él colocó ese colegio, siempre lo tenía en su mente y cuando fue


a Argentina, a trabajar, lo primero que voy a hacer, se dijo, si el Chaw
Ngenechen me da suerte, voy a hacer un colegio, para que todos los peñi
[hermanos] aprendan y sepan defenderse y aprendan a cuidar y todo y
del ngillatün, que ese era, un lugar santo y mirando siempre el sol, por-
que había que respetar el sol, porque el sol, le daba toda la vida, a todos
esos lugares. Y por eso, se hacía ahí el ngillatün.

El período en el cual se enmarca este relato es la época del despojo


territorial mapuche, en la segunda mitad del siglo XIX. Una de las estra-
tegias que utilizaron ampliamente los colonos europeos traídos a Chile
por el Estado fue de buscar integración de nuestro Pueblo por medio del
mestizaje cultural y material con personas procedentes de países Europeos.
Es así que los colonos y personas de la élite chilena, hicieron uso de diversas
prácticas de violencia y políticas de engaño para despojar a nuestra gente
de sus tierras (Alvarado, 2016). Esa fue la experiencia que vivió el padre
de Marisol. Tras dicha vivencia, él piensa, como consecuencia, en ayudar
a su gente y prevenir futuras experiencias de engaño y desposesión por
medio de la educación. Si bien esta se basa en una instrucción occidental,
también se focaliza en los saberes mapuche y en el conocimiento de nuestras
creencias y ceremonias, como lo es el ngillatün. El pensamiento refleja una
clara necesidad de generar procesos etnoeducativos que busquen tomar
en préstamo herramientas que han sido utilizadas para el dominio y el
despojo, como lo es la escritura, pero también relevar los propios saberes
mapuche como forma de resistencia.
Las acciones de apoyo en los ámbitos colectivos han sido parte de las
preocupaciones de las personas mapuche, como hemos mostrado en la cita
anterior. Esto también acontece en las instancias de participación política,

497
Relações pessoa-ambiente na América Latina

en donde poco a poco van surgiendo nuevas propuestas para afrontar el


colonialismo, pero también el patriarcado, del cual nuestro pueblo no ha
estado ajeno. Así, la lucha colectiva que continúa nuestro Pueblo Mapuche
se ve enfrentada, a la vez, por los propios cambios que como organizaciones
se deben propiciar, esto es el abordaje de asuntos de género. Es así que una
de las mujeres actrices de este estudio declara:

Yo siempre digo ‘cuando hablamos de la Autonomía, la Autodetermi-


nación, esa construcción no se puede percibir sin la participación de las
mujeres mapuche que pertenecemos a este pueblo’. De lo contrario, yo
digo, no se va a lograr, no se va a lograr. (Isolina, 32 años, Región de La
Araucanía)

Como se refleja en la cita, Isolina interpela al propio movimiento po-


lítico mapuche y demanda tener más presente la participación política de
nosotras, las mujeres mapuche. Pese a que el movimiento político mapuche
presenta una clara agenda que interpela el colonialismo y al neoliberalismo
que impera en Chile, desde la conformación del Estado Nación, no queda
clara la visibilización de las mujeres en dichos procesos de lucha colectiva
(Nahuelpán, 2013). De allí que este sea un tema pendiente de abordar y
el cual es muy bien confrontado por Isolina.

4.1.2 Nütram

Las formas en las cuales el conocimiento mapuche se traspasa a las


siguientes generaciones, ha sido primordialmente por medio de la obser-
vación cotidiana de niñas y niños en las actividades de las familias y de los
lof. Asimismo, la oralidad es otra fuente de conocimiento, por medio de los
nütram que remiten a los consejos para vivir dignamente y en coherencia
con nuestros principios valóricos mapuche. Estos consejos son entregados
principalmente por personas mayores, padres, abuelas, abuelos, tías, tíos,
u otros miembros de los lugares de asentamiento de las familias mapuche
(Caro y Tereucán, 2006). Cabe señalar que existen muchas otras estrategias
de enseñanza-aprendizaje utilizadas en el mundo mapuche para trasmisión

498
Etnoeducación y resistencias en la diáspora de mujeres mapuches en Chile: ...

de conocimientos y ésta es una particular. Algunas de las ocasiones en las


cuales los nütram han tenido lugar han sido las situaciones de violencia
intrafamiliar, en donde las personas mayores son por excelencia quienes
han mediado para frenar estas transgresiones, ya que atentan contra los
principios de coexistencia y respeto por las otras personas, espíritus y na-
turaleza. Al respecto Marisella (32 años, Santiago) menciona:

Recuerdo que, que por ejemplo cuando, alrededor de dos veces, mi abueli-
ta materna, mi abuelita LUXX, después de que ellos peleaban, llegaba a
la casa a conversar. Yo solamente sabía que llegaba a conversar con ellos
y, pero no podía estar presente en la conversación.

De esta forma, muchas de las familias mapuche hicieron frente a las


situaciones de abordaje de la violencia intrafamiliar, sin necesidad de que
en ellas mediara la institucionalidad estatal. En nuestro Pueblo existen
diferentes instituciones tales como la justicia colectiva, los nütram para
la enseñanza-aprendizaje (Marimán, 2006) y también formas propias de
concebir y abordar el cuidado en el embarazo, parto y puerperio (Alarcón
& Nahuelcheo, 2008), entre otras. Sin embargo, el despojo territorial y
político afectó a nuestras institucionalidades imponiendo un modelo mo-
nocultural por parte del Estado de Chile, que ha impactado profundamente
en nuestras prácticas y creencias (Marimán, 2006). Sin embargo, tanto
en el relato de Marisella como en el relato de Marisol (69 años, Santiago)
estas prácticas han sido reproducidas en el interior de nuestras familias y lof
como formas de reivindicar un saber propio y revitalizar los conocimientos
enseñados de generación en generación:

Yo seguía al pie de la letra todo lo que me decían. El marido de ella ¡mire!,


que no venía a ser nada de mi mamá, pero él era muy buena persona,
se llamaba PXX PXX él ¡me enseñó hartas cosas!, él me decía ‘no tenga
mala voluntad donde trabaje, porque así uno se gana el cariño de los
patrones’, me decía. (Marisol, 69 años, Santiago)

Marisol comenta cómo las familias mapuche, una vez llegadas a la


ciudad, debieron resistir obedeciendo a las diversas normas e instrucciones

499
Relações pessoa-ambiente na América Latina

que eran propiciadas por los empleadores. Estos son ejemplos de las políticas
de domesticación y colonialismo creadas por las sociedades occidentales para
socializarnos en la servidumbre. Estas relaciones coloniales expuso a mujeres
y hombres a diversas vulneraciones de derechos (Nahuelpán, 2013). Pero
también estos hechos han sido los que propiciaron estrategias de resistencia
en las ciudades. Es así que en el caso de los hombres panificadores en la
füta warria, – ciudad – de Santiago de Chile, se generaron organizaciones
sindicales para exigir el resguardo de los derechos y afrontar al racismo
imperante en los espacios laborales (Alvarado, 2017). No obstante, la
obediencia fue, asimismo, una forma de asegurar la sobrevivencia material,
el aprendizaje de los entornos y la forma de construir una vida digna en
el marco de los sucesivos despojos de los cuales ha sido víctima nuestro
Pueblo Mapuche (Alvarado, 2016). Frente a los cuales no se conforma,
de allí sus movilizaciones sociopolíticas.
Las mujeres mapuche, sin embargo, fueron las que vivieron la inter-
seccionalidad de opresiones por raza, clase y género, que fue ampliamente
experimentada por ellas en los espacios socio-ocupacionales de trabajo do-
méstico en las ciudades (Millaleo, 2011; Nahuelpán, 2013). No obstante,
algunas de las actrices mapuche han creado formas de afrontar los actos
coloniales, machistas y clasistas basándose en el orgullo mapuche, tal es el
caso de Elizabeth (40 años, Santiago):

Yo creo que el hecho del orgullo de ser mapuche hace que uno no se rebaje
ante el resto, entonces las personas, mis jefes, me trataban de tú a tú,
de repente me decían ‘qué vas a estar comiendo en la cocina, ven a comer
acá’, siempre me relacioné así y con la gente alrededor también”.

Este orgullo de ser una mujer mapuche, como lo relata Elizabeth


en su propia experiencia, lo aprende al alero de la enseñanza y consejos,
nütram que su abuela y abuelo le entregaron durante su socialización. Este
orgullo, que es un kim, un conocimiento, entonces se transforma en una
herramienta de lucha que Elizabeth implementa de forma cotidiana para
afrontar a las diversas opresiones que le toca sortear en su asentamiento en

500
Etnoeducación y resistencias en la diáspora de mujeres mapuches en Chile: ...

la ciudad. He aquí la importancia de una enseñanza mapuche situada en


la resistencia, esa que ha propiciado nuestra existencia hasta nuestros días.

Discusión y Conclusiones

Nuestro propósito en este estudio, ha sido comprender la articulaci-


ón del nütram y kimün, en tanto formas de enseñanza mapuche, con los
procesos de resistencia de mujeres en la diáspora en la ciudad de Santiago
(Chile). El nütram y kimün pueden comprenderse como anclajes de una
etnoeducación que propicia la búsqueda de ‘Autonomía’ y ‘Autodetermina-
ción Territorial’ de nuestro Pueblo Mapuche. Los testimonios de las actrices
de este estudio, nos muestran como las creencias y prácticas mapuche han
estado presentes en sus propias familias, ya sea por la propia observación
y participación de ellas, o bien por los relatos de una memoria familiar.
Lo cual se manifiesta a modo de consejo, nütram y que ha tenido como
propósito mantener viva una memoria colectiva a respecto de los valores
que han fortalecido el desarrollo de un orgullo cultural y que acuña un
cúmulo de conocimiento y saberes propios, kimün.
Las estructuras coloniales, patriarcales y clasistas que existen en el
Chile actual han contribuido al desarrollo de un colonialismo interno,
el cual afecta la ‘Autonomía’ de nuestro Pueblo Mapuche que, a la fecha,
no ha logrado ser reconocido en cuanto a sus derechos colectivos y en su
jerarquía de Pueblo. En los espacios cotidianos ha dado paso al extractivismo
material, a través de los engaños y la violencia para apropiarse de nuestras
tierras y territorio. Otras formas de apropiación han sido la de explotación
laboral, en donde las relaciones de servidumbre se presentan en los espa-
cios laborales racializados. Ahora bien, se problematiza como necesidad,
que al interior de las organizaciones colectivas, los asuntos de género sean
también aspectos a deconstruir y hacer frente para trabajar conjuntamente
por apuestas colectivas de “Autonomía” y “Autodeterminación”, tal como
lo relevaron algunas de las actrices de este estudio.
No obstante, el escenario colonial, neoliberal y patriarcal que afecta
a las mujeres mapuche en Chile no ha logrado socavar nuestros saberes,

501
Relações pessoa-ambiente na América Latina

creencias y prácticas. Estas acciones de resistencia cotidianas, constituyen


los espacios de agenciamiento familiar, que sirven a las mujeres mapuche
para la construcción de un sentido de colectividad, de pertenencia y de
un devenir como Pueblo.

Agradecimientos: La autora agradece a CONICYT, Chile, por la Beca de Doctorado en el


Extranjero, perteneciente al “Programa de Formación de Capital Humano Avanzado”.
De forma especial, agradece a las actoras del estudio por sus conocimientos y confianza.
Finalmente, la autora agradece al equipo editor de este libro por sus aportes y sugeren-
cias para mejorar el trabajo.

502
Etnoeducación y resistencias en la diáspora de mujeres mapuches en Chile: ...

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Zavala, J. (2008). Los Mapuche del Siglo XVIII. Dinámica Interétnica y Estrategias de
Resistencia. Santiago de Chile: Ediciones Universidad Bolivariana.

504
Capítulo XIV

“Un violador en tu camiño”


Corpo e cidade, resistência e luta feminista
Adriana Barbosa Ribeiro
Andrea Vieira Zanella

O meu corpo não é objeto, sou revolução


Éle Semog, 1998

D iante da Praça XV de Novembro, no centro histórico de Florianópolis,


está a Catedral Metropolitana, um dos pontos de referência da capital
de Santa Catarina. No Dia Internacional dos Direitos Humanos, 10 de
dezembro de 2019, cerca de 400 mulheres1 de várias idades e diferentes
bairros ocuparam as escadarias da igreja. Elas respondiam ao convite
aberto nas mídias sociais para participar da performance colaborativa
“Un violador en tu camiño”, elaborada pelo colectivo chileno LasTesis.2 A
performance organizada por coletivos feministas seria replicada ali, logo
após as badaladas das 18h do sino do campanário, assim como aconteceu
em várias outras localidades.
Florianópolis foi uma entre as dezenas de cidades do mundo em que
mulheres se reuniram em espaço público para formar um coro de vozes
denunciando a contínua violação de corpos femininos e a culpabilização
das vítimas de violência. Saíram da instância do privado para ir a público,

1  Dados levantados por Carolina Marasco (2019) na matéria jornalística “Ato feminista lota as es-
cadarias da catedral de Florianópolis”, publicada no Jornal NSC Total. [https://www.nsctotal.com.br/
noticias/ato-feminista-lota-escadarias-da-catedral-em-florianopolis]
2  O colectivo chileno LasTesis foi formado em 2018, em Valparaíso. Fundado e composto por
quatro mulheres de formação interdisciplinar: Daffne Valdés, Lea Cáceres, Paula Cometa e Sibila
Sotomayor.

505
Relações pessoa-ambiente na América Latina

ocupar a cidade e denunciar que a culpa pela violência não é das mulheres:
seus corpos não são passíveis de uso como objetos, assim como nos lembra
o poema de Éle Semog3 apresentado em epígrafe.
Ao redor do mundo, os movimentos feministas têm realizado ações
artísticas como essa, além de diálogos e debates que buscam visibilizar
pautas reivindicadas pelos mais diversos grupos sociais. Essas pautas
interseccionam a discussão de gênero com outros marcadores sociais,
como raça, classe, sexualidade, gênero, nação, deficiência, entre outros.
São diversos os movimentos implicados com essas lutas: os feminismos
das mulheres com deficiência, negras, indígenas, quilombolas, brancas,
o transfeminismo, o putafeminismo e outras tantas nomeações que nos
chamam atenção para a diversidade que marca, e desestabiliza, a cate-
goria mulher. Esses movimentos visibilizam que o feminismo precisa ser
compreendido em sua pluralidade e diversidade, assim como as mulheres
em suas diferenças.
Donna Haraway (2019, p. 165) ressalta que “depois do reconheci-
mento, arduamente conquistado, de que gênero, raça e classe são social
e historicamente constituídos, esses elementos não podem mais formar a
base da crença em uma unidade essencial”. Assim, tanto o essencialismo
quanto a unicidade da visão sobre as mulheres são questionados para que a
pluralidade seja reconhecida e o debate ampliado. Do contrário, “recusar-se
a reconhecer a diferença torna impossível enxergar os diferentes problemas
e armadilhas que nós, mulheres, enfrentamos” (Lourde, 2019, p. 243),
principalmente quando relacionados aos modos como os diferentes corpos
experienciam a vida social e urbana.
Considerando a amplitude das pautas feministas, algumas es-
tratégias têm sido usadas para visibilizá-las, entre as quais a arte e a
ocupação da cidade. A performance “Un violador en tu camiño” é um

3  Luiz Carlos Amaral Gomes, pseudônimo Éle Semog, nasceu em Nova Iguaçu, Rio de Janeiro,
em 1952. Militante do movimento social negro, integrou várias organizações de combate ao ra-
cismo, lutou contra ditadura militar e pela promoção da democracia. Fundou os grupos artísticos
Garra Suburbana de Poesia e Teatro; Bate- Boca de Poesia e Negrícia Poesia e Arte de Crioulo. Em
1980, recebeu da União de Escritores Brasileiros moção especial do Prêmio Fernando Chinaglia
(Literafro, 2020).

506
“Un violador en tu camiño”: Corpo e cidade, resistência e luta feminista

exemplo, e seus efeitos se expandem para direções variadas. Como nos


lembra David Harvey (2014), ocupar o espaço público é torná-lo vivo,
é poder reinventar a cidade a partir de nossos desejos. Mas o que pode
provocar uma performance como “Un violador en tu camiño” no corpo
da cidade? Partindo dessa questão, é objetivo deste texto analisar as
relações entre corpos de mulheres e o corpo-território em diálogo com
a performance “O estuprador és tu”, realizada por mulheres no centro
histórico de Florianópolis/SC.

Sobre cidade, lutas feministas e ativismo: breves


considerações

Toda cidade é obra de pessoas/coletivos que a realizam em de-


terminadas condições históricas (Lefebvre, 2001). Pluralidade que se
apresenta por vias “materiais, imateriais, mas, sobretudo, ‘encarnadas’,
feitas, portanto, de subjetividades, percepções, expectativas, alianças,
conflitos que elaboram a própria tessitura social, política e cultural”
(Britto & Jacques, 2009, p. 345). A cidade é, por conseguinte, um lugar
de múltiplas e controversas experiências, por vezes perigosas para alguns
corpos, especialmente por aqueles feminizados, segundo os indicadores
de violência contra mulheres/transgêneros.4
Mas se a rua pode ser lugar de perigo, ali também é possível o pro-
testo, a manifestação, o desvio, o sair do cotidiano. As vias da cidade se
apresentam como lócus em que é possível criar formas de expressão coletiva
dissidentes. Em decorrência, há que se considerar que as experiências
nas cidades são plurais; sendo possível, a partir de nossos anseios, “ativar
essa sua potência diversa, incompleta e imaginar a cidade” (Nogueira,
Hissa, & Silva, 2015, p. 358).
Imaginar a cidade que queremos e modificar nossas relações com
ela implica necessariamente imaginar quem queremos ser, “que tipo de

4  Dados do Atlas da Violência 2019 (IPEA, 2019) demonstram que o ano de 2017 registrou aumen-
to dos homicídios femininos no Brasil, alcançando 13 casos por dia. Ao todo, 4.936 mulheres foram
mortas, o maior número registrado desde 2007 - 66% delas eram negras.

507
Relações pessoa-ambiente na América Latina

relações sociais buscamos, que relações com a natureza nos satisfazem


mais, que estilo de vida desejamos levar, quais são nossos valores estéticos”
(Harvey, 2014, p. 28).
Pautados na possibilidade de uma cidade outra, inclusiva, participativa,
o direito à cidade (Harvey, 2014; Lefebvre, 2001) tem sido reivindicado
por diversos grupos, entre os quais os movimentos feministas. Importante
compreender que “o direito à cidade não se refere ao direito a uma vida
melhor e mais digna na cidade capitalista, mas sim a uma vida muito
diferente, em uma sociedade, por sua vez, muito diferente, onde a lógica
de produção do espaço urbano esteja subordinada ao valor de uso e não
ao valor de troca” (Trindade, 2012, pp. 140-141).
A história de mobilização e luta dos movimentos sociais pode não ter
propriamente como horizonte essa cidade não capitalista, mas demonstra
que várias estratégias vêm sendo agregadas e muitas outras precisam ser
criadas para confrontar os antagonismos e desigualdades que vêm se
acirrando com o neoliberalismo no Brasil e no mundo. Além do ativis-
mo face a face, desde a década de 1990, os movimentos de mulheres,
seguindo a trajetória de outros movimentos sociais, têm a sua articulação
favorecida pela World Wide Web (Rede de Alcance Mundial), levando-os
a organizarem-se em redes virtuais, provocando mudanças no cenário de
participação política bem como na capacidade de inserção na opinião e
na cena pública (Gasparetto, 2019).
Ao serem transpostas para os espaços públicos, as manifestações que
apresentam um caráter on line fazem um duplo movimento: tornam-se
off line, ocupando as ruas de diferentes cidades, e depois retornam
para o espaço virtual por meio da inserção de imagens, da transmis-
são ao vivo e de vídeos gravados que podem ser compartilhados por
dispositivos como computadores e celulares. Transformam-se, com
esses deslocamentos, em um movimento viral na internet que pode
alcançar milhares de pessoas e vir a provocar uma grande mobilização,
demonstrando o potencial das redes sociais de conectar pessoas em
diferentes espaços geográficos. Esse processo tem sido denominado de
ciberativismo (Couto, Velloso, & Santos, 2020).

508
“Un violador en tu camiño”: Corpo e cidade, resistência e luta feminista

O uso de hashtags5 tem múltiplas funções no ciberativismo, pois

elas ora contribuem para fazer pressão junto ao poder público nos
processos de tomada de decisões; ora servem para dar visibilidade
às causas da militância; ora se traduzem em campanhas de cons-
cientização no campo das relações de gênero; ora ajudam a sistema-
tizar dados que referendem políticas públicas; e, não menos impor-
tante, servem para promover encontros, partilhas de experiências
e facilitar a solidariedade. (Reis, 2017, pp. 3-4)

Algumas hashtags que afirmam lutas feministas tiveram grande reper-


cussão nos últimos anos, como por exemplo: #PrimeiroAssedio (2014)6,
#NiUnaAMenos7 (2015), #Elenao8 (2018). Símbolos do ciberativismo,
algumas dessas hashtags saíram das redes sociais para compor o tecido
social levando milhares de pessoas a se manifestarem nos centros urba-
nos, via ações educativas, informativas, manifestações ou performances.
É o caso das mobilizações realizadas em 2015 e que ficaram conhecidas
como “Primavera das Mulheres”. Assim, é possível refletir sobre como
as mídias sociais vêm borrando fronteiras, alargando territórios e contri-
buindo para difundir pautas de luta, para conectar corpos e tensionar
o próprio corpo da cidade.
Entre as ações que se espraiam para além do mundo virtual, temos
ações político-artísticas, também chamadas de artivismo, um neologismo

5  A hashtag (do inglês hash # e tag: etiqueta) é uma palavra ou uma frase prefi-
xada, precedida pelo símbolo #, o que permite tanto identificar quanto agrupar
conteúdos, facilitando pesquisas correlatas (Reis, 2017).
6  #MeuPrimeiroAssedio é criado em outubro de 2015 devido aos comentários sexuais publicados no
Twitter destinados à participante de 12 anos do programa de TV “MasterChef Jr.”. O movimento vai
contra a naturalização do assédio sexual sofrido por mulheres desde a infância.
7  O slogan “Ni Una a Menos” (traduzida no Brasil para “Nem uma a Menos) surgiu na Argentina,
em junho de 2015, como protesto contra a violência machista e feminicídio, em virtude do assassinato
de uma jovem grávida de catorze anos, Chiara Páez, por seu namorado de dezesseis anos, em Santa Fé.
A expressão é inspirada em um verso “Nem uma mulher a menos, nem uma morta a mais”, da poeta
mexicana Susana Chávez, vítima de feminicídio na cidade de Juarez, 2011 (Gago, 2020).
8  Movimento contra a candidatura do presidenciável Jair Bolsonaro, que levou milhares de mulheres
para as ruas no Brasil.

509
Relações pessoa-ambiente na América Latina

que reúne arte-ativismo em referência a ações que visibilizam pautas da


militância política em uma linguagem estético-artística (Raposo, 2015).
Considerando que as relações estéticas permitem “produzir outros sentidos
para o que é visto, ouvido, (re)conhecido, assim como reconstruir o olhar
sobre o mundo” (Furtado & Zanella, 2007, p. 316), as linguagens esté-
tico-artísticas permitem a problematização do contexto em que vivemos
e a fabulação de outros mundos possíveis. Contribuem, por conseguinte,
com a luta em defesa do direito à cidade.

Percursos metodológicos

A partir da concepção de pesquisar como um “processo dialógico e ide-


ológico, em que a pesquisa e o(a) pesquisador(a) se constituem mutuamente
na relação com autoria/alteridade” (Groff, Maheirie, & Zanella, 2010, p. 97),
compreendemos que as relações com os/as sujeitos/as e contextos com os quais
se pesquisa se constituem por meio de escolhas éticas, estéticas e políticas.
Partindo desse pressuposto, a investigação aqui apresentada foi con-
cebida como participação-observante (Wacquant, 2002): a inserção como
participante-atuante no Grupo de Teatro das Oprimidas Madalenas na
Luta Santa Catarina (SC) permitiu-me acompanhar e registrar, em diário
de campo, tanto a preparação da manifestação, realizada no dia 05 de
dezembro, quanto o ato-performance que ocorreu no dia 10 de dezembro
de 2019. Essa participação engendrou a implicação da pesquisadora-par-
ticipante-atuante em todo o processo de planejamento e ação, o que se
estendeu para as análises das informações e a escrita da pesquisa.
Em Florianópolis, a performance “Un violador en tu camiño”, traduzida
como “Um estuprador no teu caminho”, foi convocada pela frente feminista
8M de Santa Catarina. Contou com a colaboração artística das Madalenas
na Luta SC, além de vários coletivos feministas da cidade e a participação
espontânea de pessoas que tiveram acesso ao convite via internet.
Registros da performance feitos pelos grupos feministas durante a
apresentação, principalmente da Frente Feminista 8M e do Grupo de Te-
atro das Oprimidas Madalenas na Luta SC, são apresentados e analisados,

510
“Un violador en tu camiño”: Corpo e cidade, resistência e luta feminista

juntamente com as anotações do diário de campo e filmagens realizadas no


dia do evento. Completam os materiais da pesquisa matérias jornalísticas
sobre o ato-performance divulgadas em portais de notícias da internet.

Relações corpo-território, violência e poder

Durante a semana do dia 25 de novembro de 2019, dia Internacio-


nal pela Eliminação da Violência Contra a Mulher9, movimentos sociais
se reuniram no Chile para realizar ações referentes ao enfrentamento da
violência machista. Como parte da programação, o colectivo LasTesis
apresentou a performance “Un Violador en tu camiño”.
A primeira performance, realizada em Valparaíso, contou apenas com
algumas dezenas de mulheres. Após ser divulgada na internet, o que era
inicialmente uma ação local foi se espraiando pelo país. Chegou a levar
cerca de 10 mil mulheres para a frente do Estádio Nacional do Chile, em
Santiago, um lugar que ficou marcado por ser usado como centro de de-
tenção e tortura durante a ditadura de Augusto Pinochet, sendo chamado
de “Estádio da Morte” (Camargo & Alves, 2011).
A performance passou então a ser realizada em diversos continentes,
sendo apresentada em cidades como: Paris, Londres, Istambul, Nova Déli,
Buenos Aires, São Paulo, Belém, Rio de Janeiro, entre outras. Segundo
notícias jornalísticas (Arango, 2020), mulheres em 33 países, dos quais
14 da América Latina e Caribe, realizaram a performance erguendo suas
vozes para cantar contra a estrutura patriarcal. A capacidade de ultrapassar
as fronteiras territoriais das ações, a partir do uso da internet e das mídias
sociais, ampliou a repercussão da performance-protesto.

9  O Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra a Mulher foi estabelecido no Primeiro
Encontro Feminista da América Latina e Caribe, ocorrido em Bogotá, em 1981 em memória das
irmãs Mirabal, três ativistas políticas assassinadas pelo ditador Rafael Leónidas Trujillo, em 1960, na
República Dominicana (Silva, 2018).

511
Relações pessoa-ambiente na América Latina

Letra de “Un violador en tu camino”


(Um estuprador no seu caminho)

El patriarcado es un juez,
(O patriarcado é um juiz)
que nos juzga por nacer
(que nos julga ao nascer)
y nuestro castigo es
(e nosso castigo é)
la violencia que no ves.
(a violência que não se vê)
El patriarcado es un juez,
(O patriarcado é um juiz)
que nos juzga por nacer
(que nos julga ao nascer)
y nuestro castigo es
(e nosso castigo é)
la violencia que ya ves.
(a violência que já se vê)
Es feminicidio
(É o feminicídio)
Impunidad para el asesino
(Impunidade para o assassino)
Es la desaparición
(É o desaparecimento)
Es la violación
(É a violação)
Y la culpa no era mía, ni dónde estaba, ni
cómo vestía (4x) 
(E a culpa não era minha, nem onde estava,
nem como me vestia)
El violador eras tú (2x)
(O estuprador é você)
Son los pacos (policías)
(São os policiais)

512
“Un violador en tu camiño”: Corpo e cidade, resistência e luta feminista

Los jueces
(Os juízes)
El estado
(O estado)
El presidente
(O presidente)
El estado opresor es un macho violador (2x)
(O estado opressor é um macho violador)
El violador eras tú (2x)
(O estuprador é você)
Duerme tranquila niña inocente,
(Dorme tranquila, menina inocente)
sin preocuparte del bandolero,
(sem se preocupar com o bandido)
que por tus sueños dulce y sonriente
(que os seus sonhos, doce e sorridente)
vela tu amante carabinero.
(cuida seu querido carabinero (policial)
El violador eres tú (4x)
(O estuprador é você)

Inspiradas em teses de autoras feministas, o colectivo LasTesis buscou


transpor para a arte fundamentos teóricos de pensadoras como Silvia
Federici e Rita Segato, sintetizando as ideias das autoras sobre a relação
entre o patriarcado, o Estado e a violência político-sexual nos versos da
música “Un violador en tu camino”. Segundo Segato (2003), o estupro não
é um ato sexual praticado por um homem que não consegue controlar seus
impulsos, mas uma forma de punição, em que a dominação e submissão
do corpo se evidencia. É um ato que, além de sexual, se apresenta como
moralizador. Uma sociedade que considera elementos como a roupa usada
pela mulher ou o lugar em que está como determinantes da violência, é
confrontada com o refrão que enfatiza “E a culpa não era minha, nem de
onde estava, nem como me vestia / O estuprador é você”.

513
Relações pessoa-ambiente na América Latina

Com a música entoada por mulheres em espaços públicos o colectivo


apresenta uma crítica ao patriarcado, destacando que o Estado e a sociedade
mantêm a lógica da violência patriarcal que se apresenta como violência
político-sexual. Na versão original, apresentada anteriormente, os quatro
últimos versos trazem um trecho do hino da polícia chilena, inserido
como forma de ironizar a letra da canção dos carabineiros. Pois, ao invés
de proteger a população, como expresso na música, usaram da força para
reprimir as mobilizações que ocuparam as ruas do Chile em outubro de
201910, nas quais relatos de violência e até abuso sexual pela força policial
foram frequentes.
Concomitantemente à canção, as participantes se apresentam com
vendas pretas sobre os olhos, uma referência tanto à violência da polícia
chilena, que cegou manifestantes durante a repressão às mobilizações de
outubro de 2019, quanto ao símbolo da própria justiça, que se apresenta com
os olhos vendados. Como um corpo coletivo, as mulheres ficam alinhadas
em fileiras e juntas repetem movimentos ritmados que, acompanhando
a letra, apontam para os lugares de poder, tanto do legislativo quanto do
judiciário, simbolizando, no corpo da cidade, as instituições que buscam
intervir sobre corpos feminizados (Haraway, 2019).
Segundo uma das integrantes do coletivo chileno, Paula Cometa (Pais,
2019, s/p.), “a performance também tem a ver com a forma como o corpo
se posiciona politicamente na rua, que é o lugar mais perigoso para o corpo
de uma mulher. É esse transitar do nosso corpo na violência.”
Ao refletir sobre as relações entre corpo e cidade no ato-performance,
evocamos a noção de território. Para Rita Segato (2005), o território “é
espaço apropriado, traçado, percorrido, delimitado. É um âmbito sob o
controle de um sujeito individual ou coletivo, marcado pela identidade
de sua presença e, portanto, indissociável das categorias de domínio e de
poder” (p. 196). A cidade, por conseguinte, é lugar onde a vida acontece,
e está diretamente relacionada ao corpo e à história do corpo (Santos,

10  Manifestações levaram milhares de pessoas às ruas do Chile em outubro de 2019 contra os ajustes
econômicos do presidente Sebastian Piñera. Segundo as ativistas chilenas, a violência contra essa popu-
lação aumentou consideravelmente após a ebulição das ruas, especialmente pelas polícias.

514
“Un violador en tu camiño”: Corpo e cidade, resistência e luta feminista

1999). A própria cidade é um corpo - um corpo-território, assim como os


corpos femininos o são: corpos-território em que atuam forças visando a
colonizá-los e dominá-los (Gago, 2020). Mas esses corpos respondem, de
variados modos e com diferentes intensidades, a essas forças: e resistem a
elas. Essas respostas podem, por sua vez, tensionar o próprio corpo-cidade,
o que temos visto acontecer com a performance em foco.

“Estuprador és tu”: a Performance em Florianópolis

Figura 1- Início da Performance “um estuprador no seu caminho” em Florianópolis/SC.


Fonte: Frente Feminista 8M-SC

A performance que ficou conhecida na mídia por “O estuprador és


tu” foi planejada em Florianópolis para ocorrer em dois atos: primeiro foi
realizada em frente à Catedral Metropolitana (Figura 1); em seguida, as
mulheres reunidas e cantando deslocaram-se pela rua lateral à praça XV
de Novembro em direção ao Terminal de Integração do Centro (TICEN),
local de grande afluxo de pessoas que utilizam transporte coletivo para
sua condução.
A performance inicia com aproximadamente 400 mulheres posicio-
nadas em pé nas escadarias da Catedral Metropolitana. O lugar escolhido
é importante, pois traz as marcas de tempos-espaços que remontam aos
primórdios da Vila do Desterro, no século XVII. Próximos à Catedral si-

515
Relações pessoa-ambiente na América Latina

tuam-se o antigo palácio do governo, atual Museu Cruz e Souza; a Câmara


Municipal de Vereadores; órgãos públicos e agências bancárias. De olhos
vendados e em coro, as mulheres entoam a tradução da música “Um estu-
prador no seu caminho” enquanto executam movimentos coreografados. À
medida em que citam os versos, com gestos vigorosos apontam para lugares
socialmente instituídos como de saber-poder, os quais legislam sobre seus
corpos, subjugando-os a uma lógica patriarcal: “O estuprador é você; são
os policiais; os juízes; o Estado; o presidente; o Estado opressor é um macho
violador”. Entoam, denunciando que legislativo, executivo e judiciário
comungam em suas práticas a violentar corpos de mulheres.
Ao entoarem os versos, constituem com suas vozes e gestos um corpo
coletivo que faz ecoar a força de sua indignação e a vontade de luta por uma
realidade outra. Denunciam violências reiteradas ao afirmar, em coro, que
“a culpa não era minha, nem de onde estava, nem como me vestia”. Fazem
assim uma torção nos discursos hegemônicos que tendem a culpabilizar a
própria vítima pela violência sofrida.
O ato-performance se traduz assim como ação política ao tensionar o
silenciamento da cidade em relação aos altos indicadores de violência contra
mulheres e ao número crescente de feminicídios. Tanto os espaços públicos
quanto os espaços privados são locais de violência contra mulheres: segundo
dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2019), uma
média de 13 mulheres são assassinadas por dia no Brasil. Em Santa Catarina,
houve um aumento de 55,7% de feminicídios no intervalo de 2007 a 2017.
Ao descolar as violências das estatísticas para o espaço público, o ato-
-performance contribui para produzir a “composição de um corpo comum:
uma política que faz do corpo de uma o corpo de todas” (Gago, 2020,
p. 30). Esse movimento contribui para tensionar a partilha do sensível
homologada (Rancière, 2010), ou seja, aquela pactuada que faz da lógica
patriarcal a diretriz que justifica e imputa às mulheres o silenciamento
sobre a violência sofrida.
Essa partilha é tensionada com a atividade artística em foco uma vez
que, às visibilidades, dizibilidades e pensabilidades dominantes, se contra-
põem vozes: (a) que denunciam o patriarcado como social e historicamente

516
“Un violador en tu camiño”: Corpo e cidade, resistência e luta feminista

construído, portanto passível de ser modificado; (b) que contrapõem os


altos índices de violência contra mulheres à máxima de que a vítima não
pode ser culpabilizada pela violência sofrida; (c) vozes que problematizam
as subjugações socialmente normatizadas; (d) e vozes que coletivamente
afirmam o direito das mulheres, independentemente de cor, credo, condição
social, geração, sobre seus próprios corpos e suas próprias vidas.

Figura 2- Mulheres executando a performance em frente ao Terminal de Integração


(TICEN). Fonte: Frente Feminista 8M-SC

Essas vozes circularam com os corpos das mulheres participantes do


ato-performance tensionando o corpo da cidade. Entoando em conjunto
palavras de ordem e questionamentos sobre o quanto a ação ou omissão
do Estado gera interferências no corpo feminino, se fizeram porta-vozes
de mulheres silenciadas pela violência, transformadas em meros números
de estatísticas pouco difundidos e problematizados.
Outros elementos agregam mensagens expressivas ao ato. Faixas e
cartazes de reivindicações pelo fim do feminicídio e da violência contra as

517
Relações pessoa-ambiente na América Latina

mulheres podem ser vistos nas imagens que registraram a manifestação,


assim como as inscrições de símbolos do feminismo no próprio corpo
das participantes. Slogans como “não é não”, a “revolução é feminista”
e “meu corpo, minhas regras” foram escritos com tinta vermelha, e em
vermelho também foi “carimbada” uma mão em parte dos rosto das
mulheres, fazendo referência à agressão física sofrida nos lares e nas
ruas. Compondo o vestuário das protagonistas do ato-performance,
camisetas de diversos coletivos e com frases de luta somaram-se a peças
de roupas consideradas, para os mais conservadores, inadequadas para
se andar nas ruas.
Foi possível perceber, no decorrer da performance, que o movimento
agregou várias lutas, simbolizadas em palavras de ordem, inscrições nos
corpos e peças de vestimenta, como os lenços verdes ao pescoço que sim-
bolizavam o direito à descriminalização e legalização do aborto seguro e
gratuito. O lenço verde foi o principal símbolo da onda verde em prol do
aborto na Argentina e espraiou-se pela América Latina. Tema tabu em nosso
país, o aborto é somente aceito em casos excepcionais como: a gravidez
oriunda de estupro, o risco comprovado de morte para a gestante ou em
gravidez de feto anencéfalo. Todos as demais formas de aborto são ilegais e
consideradas crimes. Embora exista a proibição, o aborto não deixa de ser
realizado, sendo um dos maiores problemas para a saúde pública do país,
principalmente entre as mulheres pobres e negras. A luta pelos direitos
reprodutivos e pelo domínio sobre seus corpos, sob o qual o Estado e a
religião buscam intervir, tem, por conseguinte, se convertido em bandeira
de luta de movimentos feministas.
Em Florianópolis, a organização do evento sugeriu a mudança das últimas
estrofes do hino, os quais faziam referência à polícia chilena, adaptando-os
para a realidade brasileira. Assim, aos versos “O Estado é racista, estuprador
e feminicida (3x) / Estuprador és tu (4x)” foram acrescentadas as palavras
de ordem: “se cuida, se cuida, se cuida seu machista, a América Latina vai
ser toda feminista”; o questionamento “Quem mandou matar Marielle?”;
e a afirmação “Marielle presente”. Em um país que a necropolítica tem se
apresentado em relação à classe, raça e gênero, com altos índices de violência

518
“Un violador en tu camiño”: Corpo e cidade, resistência e luta feminista

policial e de Estado, a alteração da letra responde a essa realidade social es-


cancarando a pergunta que até hoje não foi respondida pelo poder público11.
Durante o percurso entre os dois pontos do ato, a Catedral e o TICEN,
as mulheres transitaram por vias com lojas comerciais e pontos históricos
da cidade. Nesse percurso, ocuparam as ruas e foram envolvendo as pes-
soas, provocando afetações nos transeuntes. Essas pessoas responderam ao
ato-performance com seus corpos demonstrando emoção; outras canta-
ram juntas de seus lugares em frente aos seus postos de trabalho; alguns
homens acompanhavam o deslocamento das mulheres, demonstrando
simpatia à causa.
Mas, como toda polifonia comporta variadas vozes - e as cidades são
polifônicas (Canevacci, 2004) -, dissonâncias também estavam ali presen-
tes e manifestaram-se. Em um momento, ainda na Catedral, um homem
passou e gritou: “Lula na Cadeia”. A resposta das mulheres participantes do
ato-performance foi imediata: de braços estendidos, entoaram: “o estuprador
és tu”. Vozes em tensão, tal como é possível visibilizar na cena descrita,
revelam a dialogia que conota as relações sociais, sendo o espaço público
lugar privilegiado para a explicitação e problematização das diferenças em
prol da construção de um espaço em comum.
A performance escancarou, de certo modo, tensões entre diferentes
vozes sociais que compõem a complexa tessitura da cidade e os corpos-
-territórios que a habitam. Visibilizou as violências contra mulheres e
apresentou reivindicações durante o protesto, com potencial para ações
pós-manifestação, considerando-se as repercussões dessas pautas junto à
sociedade e possíveis respostas aos agentes públicos do Estado.
Dentre essas respostas, ocorreu a inserção de novas participantes nos
coletivos. Outras mulheres buscaram informações sobre grupos que pro-
movem encontros para debates e ações sobre as questões da violência na
cidade. A repercussão do ato nas mídias sociais também pode ser registrada

11  A pergunta “Quem mandou matar Marielle?” está em aberto desde o assassinato, em 18 de março
de 2018, da vereadora Marielle Franco, do PSOL, que lutava contra as milícias do Rio de Janeiro. Já se
vão mais de 900 dias sem resposta.

519
Relações pessoa-ambiente na América Latina

como resposta, o que contribuiu para a difusão das pautas feministas. Mas,
considerando a dialogia que conota as relações sociais, também assistimos
à emergência de respostas indesejadas, de ações que reforçaram o discurso
patriarcal da violência contra a mulher. Chama a atenção o fato de uma
dessas respostas ter vindo de um agente público, deputado estadual, que fez
críticas às participantes da ação publicando em rede social recomendações
irônicas de como evitar estupros: “deixar os pelos do corpo crescerem, pintar
e cortar o cabelo todo errado, vestir-se mal, não ir à academia. Resolvido,
agora nem mendigo te olha”, escreveu. Trata-se de uma manifestação a ser
execrada, uma vez que imputa às mulheres a responsabilidade por evitar
ou promover agressões que podem vir a sofrer. É um desserviço às lutas
históricas que vêm sendo travadas por homens e mulheres, por pessoas de
variadas condições de classe, gênero, raça, etnia em prol de uma sociedade
sem discriminações e desigualdades.
É possível perceber, com o ato-performance em questão e as respostas
que provocou, que o percurso no enfrentamento das questões sociais e
da opressão de gênero que recaem sobre os corpos feminizados ainda são
diversos e complexos. Mas, apesar dos percalços, registra-se serem pautas
que podem unir grupos em lutas comuns no enfrentamento ao patriarcado.

Considerações finais

Começamos esta escrita nos perguntando: o que pode provocar uma


performance no corpo da cidade? Inicialmente, podemos dizer que preci-
samos estar abertos ao imprevisível, principalmente em tempos de conec-
tividade em que ações off line tornam-se on line em um clique, podendo
se interligar por meio das redes sociais com o mundo, visibilizando uma
ação local e tornando-a mundial. Investigando um pouco mais, podemos
pensar qual é a capacidade que uma performance como a apresentada tem
de afetar a sensibilidade daqueles que participam e de quem acompanha.
Percebemos, quando o Colectivo Las Tesis convidou as mulheres a afirmarem
que “o estuprador és tu”, que as participantes conseguiram afetar e ser afe-
tadas por outros corpos. O que potencializou encontros que ultrapassaram

520
“Un violador en tu camiño”: Corpo e cidade, resistência e luta feminista

fronteiras, compondo, mesmo que momentaneamente, um corpo coletivo


que pôde erguer sua voz contra um sistema que busca regular suas vidas.
Não podemos mensurar o alcance dos efeitos sociais e subjetivos que
esse tipo de ação pode ter. O que podemos afirmar é que intervenções
estéticas na cidade podem explicitar as tensões que ali se encontram e
fazer ecoar, em alto e bom som, vozes que reivindicam o direito sobre seus
próprios corpos e o direito à própria cidade.
O ato-performance “O Estuprador em teu caminho”, como vimos,
provocou isso ao tensionar as vozes sociais que predominam em territórios
instituídos sob a égide da lógica patriarcal e capitalista. E tensionar o que
está posto é condição para a reinvenção da própria cidade, dos corpos que
a habitam, para a invenção de outros possíveis.

521
Relações pessoa-ambiente na América Latina

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524
Capítulo XV

El trabajo sexual como un


intersticio
Discursos estatales y agencia desde la
cotidianeidad de las profesionales del sexo en el
Norte de Chile
Jacqueline Espinoza-Ibacache
Lupicinio Íñiguez-Rueda

Esto es un trabajo porque es por plata, me cuido y mucho más que las muje-
res que están afuera porque uso siempre condón. Por ejemplo, yo antes era
pela’a [como popularmente se le dice a una persona promiscua], me iba con
cualquiera, no me cuidaba y tampoco cobraba. En cambio, aquí es más lim-
pio que en cualquiera parte y cobro por lo que hago. (Entrevista individual)

A l preguntarle a Valentina, trabajadora sexual de 28 años procedente


de Perú, sobre cómo definía la actividad que realizaba para subsistir,
nos refiere una explicación detallada de su modo de hacer, lo que Garfinkel
(1967) llamó accountability, es decir, las acciones que son susceptibles de
ser descriptibles, inteligibles y analizables, que esta actora social realiza
competentemente sobre su trabajo. Específicamente, lo plantea como un
intercambio económico sexual con procedimientos e infraestructura para
su implementación. Esta explicación sobre la gestión de su sexualidad,
nos recuerda a los planteamientos de Paola Tabet (2012) sobre la crítica a
la división ficticia de las prácticas sexuales en el matrimonio o relaciones
amorosas por un lado y la prostitución por otro.
Esta autora señala que no existe tal división, sino que hay un continuo
intercambio económico sexual regido por un contrato formal o no formal y
una retribución que varía desde el apellido, prestigio social o dinero, sólo que
en las relaciones de pareja formales se incluyen otras prácticas, mientras que

525
Relações pessoa-ambiente na América Latina

en este trabajo se supedita a lo sexual. Valentina transita este continuo al


concretar modos de hacer que mercantilizan sus prácticas sexuales, dándoles
un valor de uso. En esta línea, no es una práctica sólo de las mujeres que
mercantilizan sus prácticas sexuales, sino que es una más de las labores que
desempeñamos en el ámbito doméstico, como nos señala Federici (2017).
Solo que no lo problematizamos como tal.
En este artículo argumentamos que el trabajo sexual actúa como
un intersticio porque permite problematizar prácticas que se han crista-
lizado en la performance de sexo/género1, los efectos ontológicos que se
han sedimentado en el binarismo de sexo/género y en la producción de
la categoría “mujeres”. Se entiende a la performatividad como un hacer
continuo, contingente y contextual (Butler, 2002; Kitzinger, 2000; Stokoe,
2006; West & Zimmerman, 1987) A la vez, plantea la posibilidad de
agencia, una agencia que está circunscrita a un entramado de fuerzas que
presentan al sexo/género como una categoría fija y esencial, además, estas
disimulan que es un efecto de una condición histórica y situada regulada
por el sistema patriarcal.
Estos argumentos se basan en la revisión de las leyes y normativas
sobre las prácticas profesionales del sexo promulgados a lo largo de la
historia por el Estado chileno, fundadas en los estudios del discurso desde
una perspectiva pragmática (Austin, 1971; Butler, 2009; Grice, 1975).
Complementada, por la etnografía de los escenarios del trabajo sexual
en el Norte de Chile, desde una perspectiva etnometodológica feminista
(Kitzinger, 2000; Stokoe, 2006) que nos permite definir el trabajo sexual
a través del “hacer” de las actoras competentes.
A lo largo de este artículo, planteamos este proceso de investigación,
primero abordamos brevemente el debate feminista sobre la prostitución y el
trabajo sexual; en segundo lugar, detallamos las prácticas discursivas utilizadas

1  Este artículo se basa en los resultados y conclusiones de la tesis doctoral titulada “Del cono-
cimiento a la reivindicación del trabajo sexual: discursos estatales y saberes de las trabajadoras
sexuales del Norte de Chile”, realizada en el Programa de Doctorado Persona y Sociedad en el
Mundo Contemporáneo de la Universidad Autónoma de Barcelona. Para más información, dirigir-
se a: https://ddd.uab.cat/record/207896

526
El trabajo sexual como un intersticio. Discursos estatales y agencia desde la cotidianeidad...

por el Estado chileno para regular la prostitución o, también denominada,


comercio sexual o trabajo sexual. Tercero, expondremos la cotidianeidad
de las trabajadoras sexuales en sus distintos escenarios laborales; para, así,
en cuarto lugar, finalizar con nuestras argumentaciones sobre la definición
del trabajo sexual como un intersticio. Nuestro objetivo no es invisibilizar
la precariedad de este trabajo, sino que planteamos que la agencia de las
trabajadoras sexuales nos brinda un punto de vista privilegiado sobre cómo
desafiar los límites de patrones hegemónicos que definen lo femenino.

Alianzas, tensiones y debates respecto a la prostitución y


el trabajo sexual

La literatura sobre la prostitución y el trabajo sexual en las últimas


cuatro décadas se ha centrado en la problematización de las prácticas pro-
fesionales del sexo en relación con el sistema patriarcal y capitalista. Sin
embargo, se han producido diferencias importantes dentro del movimiento
sobre su definición a partir de la segunda ola feminista (Lamas, 2016),
marcadas por confrontaciones teóricas, éticas y políticas. Si bien hay una
heterogeneidad de posiciones al respecto, éstas se mueven entre dos polos:
las abolicionistas de la prostitución y las pro-derechos del trabajo sexual.
La perspectiva abolicionista fue fundada por Josephine Butler en protesta
al excesivo control sanitario al que las prostitutas eran sometidas por parte del
Estado, a la doble moral y a la forma más clara de dominación sexual en In-
glaterra en el último cuarto del siglo XIX (de Miguel, 2015). Se constituyó en
una de las primeras expresiones del feminismo anglosajón, incluyéndose como
parte del movimiento sufragista y la primera ola feminista (Walkowitz, 1991).
Esta perspectiva plantea a la prostitución como “parte integral del
capitalismo patriarcal” (Pateman, 1995, p. 260), definiéndola como una
explotación de tipo sexual que ha sido determinante en la reproducción y
mantenimiento de las jerarquías de género (Barry, 1988; Gimeno, 2012;
Jeffreys, 2011). Señalan como culpables a los clientes, los intermediarios
y al Estado, quienes han naturalizado este privilegio patriarcal (Miguel &
Palomo, 2011). Por ello, esta perspectiva demanda la implementación de un

527
Relações pessoa-ambiente na América Latina

modelo jurídico que suprima la industria del sexo, que condene la vulnera-
ción de los derechos de la persona prostituida y sancione penalmente a los
que se benefician de la prostitución de otra persona, independientemente
que medie o no su consentimiento (Cobo, 2016). En este sentido, estab-
lece una relación estrecha entre la prostitución y la trata de personas con
fines de explotación sexual, señalando que el efecto de la dominación en
el orden del género la imposibilita de definirla como actividad consentida
y menos aún como un trabajo (Gimeno, 2012).
Además y actualizando sus argumentos, advierte que la ideología del
libre mercado ha disfrazado la libertad sexual para situar a la prostitución
como un trabajo legítimo y le ha proporcionado a la industria del sexo un
estatus como el de cualquier otro mercado (Jeffreys, 2011). Así, problematiza
la cultura que conforma la industria del sexo sobre los prostituidores – como
se llama a los demandantes de sexo comercial – para satisfacer sus deseos
sexuales a través de la compra “de cuerpos desnudos, en fila, sin nombre,
a disposición de quien tenga dinero para pagarlos” (Miguel, 2015, p. 58).
La retórica utilizada por las feministas abolicionistas facilita el estí-
mulo de imágenes y refuerza la concepción de las “mujeres prostituidas”.
Sin embargo, en esta tarea les resta agencia y autonomía a las mujeres que
ejercen esta actividad y encasilla a la prostitución sólo en función del acto
sexual. Asimismo, refuerza patrones genéricos, tales como hombres potentes,
mujeres sumisas, en lugar de transformarlos. Una homogeneización que
potencia una visión esencialista de la sexualidad (Sanders et al., 2009).
Por su parte, las perspectivas feministas pro-derechos del trabajo sexual
critican que las abolicionistas no reconozcan los matices y complejidades
de esta actividad. Como plantea Marta Lamas, “más que un claro contraste
entre trabajo libre y trabajo forzado, lo que existe es un continuum de
relativa libertad y relativa coerción” (Lamas, 2016, p. 24). En este sentido,
las investigaciones no desconocen las características y las posibilidades del
contexto de desigualdades en el que estas mujeres viven ni cómo condi-
cionan sus opciones laborales (Juliano, 2005; Pheterson, 2000). Tampoco
desconoce la existencia de redes de trata y tráfico de mujeres con fines de
explotación sexual, entre otras formas. Sin embargo, del mismo modo que

528
El trabajo sexual como un intersticio. Discursos estatales y agencia desde la cotidianeidad...

se consideran estos elementos, arguyen que se debe incluir la agencia de


las trabajadoras sexuales en el análisis.
En pos de esta agencia, es importante especificar que las trabajadoras
sexuales confrontaron a las feministas en los años setenta y ochenta para
reprocharles que definían a la prostitución únicamente como una forma
de opresión, a las prostitutas como víctimas y por excluir sus voces en la
invención de la nueva mujer (Leigh, 1997). Estos hechos generaron alianzas
entre un sector del feminismo y organizaciones de trabajadoras sexuales2,
facilitando la definición de estas prácticas, como “un asunto público, materia
de empleo y lucha por la emancipación, lo que marca una separación radical
de las ideologías dominantes que establecen que la prostitución es un tema de
justicia criminal, salud pública y/o reforma social” (Pheterson, 2000, p. 13).
En relación con estos procesos de deconstrucción, se presenta la litera-
tura producida por activistas y trabajadoras sexuales que han refrescado el
debate. Cansadas de que su voz esté ausente o poco visibilizada en el debate
han interpelado a las abolicionistas por imponer su moral sexual, burguesa y
colonialista y han abogado por un feminismo más inclusivo (Corso & Landi,
2000; Dentone & Escribano, 2008; Despentes, 2011; Merteuil, 2017).

Discursos jurídicos de la prostitución, el comercio sexual


y el trabajo sexual del Estado chileno

El trabajo sexual no es ilegal en Chile. Las personas mayores de 18 años


pueden ejercerlo de manera voluntaria y se persigue a los/as intermediarios/
as (Ley n. 19.927, 2004, art.1) y desde el año 2007 que las trabajadoras
sexuales pueden realizarse controles sanitarios voluntariamente (Decreto

2  En 1974 se creó COYOTE para reivindicar los derechos de las trabajadoras sexuales en San Fran-
cisco, les siguió, con un objetivo similar, Prostitutes of New York (PONY). En 1975, un grupo de
150 prostitutas ocuparon una iglesia en Lyon, para protestar por la inacción de la policía francesa ante
asesinatos de sus compañeras. En 1985 se desarrolló el primer Congreso Mundial para el Derecho de
las Prostitutas. Hetaira se creó 1995 para defender los derechos de las trabajadoras sexuales de Madrid.
Fue en 1997 que se fundó la Red de Trabajadoras Sexuales de Latinoamérica y el Caribe, compuesta por
organizaciones de 14 países que sigue la línea de reivindicación de derechos laborales. En Chile, nace la
Asociación Pro-Derechos de la Mujer (APRODEM) en 1993, que derivó en la Fundación Margen en el
año 1998 y que continúa promocionando los derechos de las trabajadoras sexuales hasta la actualidad.

529
Relações pessoa-ambiente na América Latina

n. 206, 2007). Sin embargo, existen restricciones en el Código Sanitario


sobre los espacios dónde ejercerlo al estar prohibido, desde 1931, que las
personas que ejerzan el comercio sexual, se reúnan en prostíbulos (Decreto
con fuerza de ley n. 226, art. 73) y, desde 1955, que alquilen un inmueble
con este objetivo (Decreto n. 891, art. 15).
Sin embargo, el Estado ha promulgado en su historia legislativa diversas
normas y leyes para regular la prostitución, denominándola también como
comercio sexual y trabajo sexual. Desde los estudios del discurso (Austin,
1971; Butler, 2009; Íñiguez, 2006), la denominación utilizada para regular
esta actividad tendrá distintos efectos, pues cada una representará distintas
prácticas sociales lo que da de facto un carácter constituyente.
El Estado chileno, por primera vez en el Código Penal en el año 1874,
denominó como “mujeres públicas a aquellas que tenían intercambio eco-
nómico sexual. Estas aparecen en la historia en un período de continua
migración interna de mujeres producto de la descomposición de la economía
campesina y de las incesantes guerras. Madres solteras, viudas o abando-
nadas incursionaron en el entretenimiento como fuente de subsistencia al
instalarse en los márgenes de las urbes con tabernas para ofrecer alimentos,
bebidas diversión, hospedaje y, no únicamente, servicios sexuales (Salazar
& Pinto, 2002). En su transcurso, sobre estas prácticas recayó la disciplina
gubernamental y eclesiástica basada en la premisa de que el rol de las mujeres
era “servir a Dios, a su marido y a sus hijos” (Zárate, 1995, p. 152). El yugo
moral contribuyó a que optaran por labores como el servicio doméstico,
lavandería y costura, sometiéndose a la precariedad que implicaba este
tipo de trabajos: sin contrato, sueldos bajos, impagos o con pago a través
de fichas que se utilizaban en el almacén del mismo empleador, sumado al
riesgo a ser agredidas física y sexualmente por sus patrones (Salazar & Pinto,
2002). Y las mujeres que se integraron al sector manufacturero igualmente
fueron señaladas como poseedoras de una dudosa moral, pues transgredían
los límites del modelo femenino al vender su trabajo fuera de casa y en estas
tareas no necesariamente obedecían al ámbito doméstico (Hutchison, 1998).
En este contexto, se entrega un estatus legal y de servicio público a la
prostitución mediante las ordenanzas municipales llamadas “Reglamentos

530
El trabajo sexual como un intersticio. Discursos estatales y agencia desde la cotidianeidad...

de Casas de Tolerancia” en distintas ciudades latinoamericanas a finales


del siglo XIX (Gálvez, 2017). Eran normativas exportadas desde Europa y
basadas en fundamentos epidemiológicos del higienista francés Parent-Du-
châtelet, que buscaba un burdel profiláctico dirigido al control sexual de
los hombres pero evitando las consecuencias respecto a las enfermedades
venéreas (Corbin, 1988). Sin embargo, estas regulaciones implicaron
la constitución de la prostituta como objeto de estudio, susceptible de
registro, tratamiento e incluso internamiento sanitario (Morcillo, 2015).
Así, el discurso masculino de la ciencia definió a la prostitución como
una actividad para el servicio de los hombres, específicamente, como
“una válvula de seguridad por donde se escapa el valor deletéreo de ciertas
necesidades, de ciertas pasiones, de ciertos delirios pasajeros, que ni el
Estado ni la relijion [sic] han podido dominar” (Dávila Boza, 1875, p.
241). Discursos que el Estado acogió, adjudicándosele la característica
de función social a través de su regulación al igual como lo señalaba el
higienista Parent-Duchâtelet.
Cuando el Estado establece enunciados tales como: “Toda mujer que
ejerza el libertinaje como oficio3, se considera prostituta” en una Ordenanza
Municipal en el año 1914, o “Prohíbese [sic] el ejercicio de la prostitución
y de cualquiera práctica que conduzca a la esposición [sic] pública de una
mujer a todo jénero [sic] de torpeza y sensualidad” en el artículo 167 del
Decreto Ley n. 362, promulgado por el Estado chileno en 1925; estas acciones
ya no serán significadas de igual forma. Son palabras que acompañadas de
ciertos infinitivos y dichas con las condiciones para que sus enunciados sean
afortunados en el sentido de Austin (1971), constituyendo cierta realidad
sobre sus destinatarias. El habla estatal no sólo proscribe estas acciones, sino
que, en su carácter pragmático, modifica su estatus y regula estos comporta-
mientos. No, no les hablan a las prostitutas – o no solo a ellas – sino que nos
hablan a nosotras, nos dicen que si no actuamos de acuerdo con la norma
nos violentará la normatividad de género, tal como lo hacen con ellas y con

3  Las cursivas son utilizadas de ahora en adelante para enfatizar las frases e incluidas por
los autores.

531
Relações pessoa-ambiente na América Latina

cualquiera que la transgreda. Violentará la normatividad de género a las que


transgreden las fronteras sociales debido a que sus prácticas sexuales, uso de
cuerpos y deseo se han establecido como ilegítimas.
Si bien las leyes y normas han mutado, el discurso jurídico del comercio
sexual continuó la senda establecida en el período de la prostitución. Se
actualiza en la relación metonímica que define a estas mujeres como vector
de contagio de enfermedades venéreas y causante del desorden público,
materializados en la identificación, registros, rehabilitación de sus cuerpos y
vigilancia de sus comportamientos. Ellas son visibilizadas constantemente,
nunca los clientes u hombres que ejercen esta actividad. El Estado patriarcal
mantiene una doble moral, de la misma manera que fragua y constituye
una y otra vez la división ficticia entre “esa clase de mujeres” y nosotras.
(Espinoza-Ibacache & Íñiguez-Rueda, 2018b).
En los primeros años del siglo XXI, la regulación estatal utiliza el
término trabajadoras/es sexuales, omitiendo la denominación trabajo
sexual para referirse a esta actividad. En esta línea, constituye una nueva
personificación para estas actrices sociales y les brindan agencia al cambiar
la voluntariedad de los controles sanitarios impuestos en el siglo XIX. Sin
embargo, no lo utiliza para reconocer sus derechos laborales, tampoco
para plantear la posibilidad de un contrato laboral en los cabarés o emitir
facturas por los servicios profesionales prestados, ni mucho menos para
otorgar atención sanitaria integral, previsión social o la opción de un
subsidio habitacional estatal como trabajadora, etc. La definición de estas
“nuevas” actrices sociales al no estar asociada a leyes que legitimarían su
inclusión como trabajadoras, se establece sólo como una estrategia retórica.
El Estado adorna con retórica la ininteligibilidad de sus prácticas y
complejiza la relación que establece con estas mujeres. Y ello no sólo porque
no están asociadas a mecanismos estatales que le darían soporte como un
medio productivo legítimo, sino porque es el mismo Estado que perver-
samente constituye, reproduce y mantiene la precarización de las prácticas
profesionales del sexo: criminalizándolas, coartando espacios laborales y
sólo distinguiéndolas como trabajadoras para supervisar únicamente la
parte de su cuerpo que el Estado define como su herramienta de trabajo.

532
El trabajo sexual como un intersticio. Discursos estatales y agencia desde la cotidianeidad...

En definitiva, su propósito es cuidar a su ciudadanía y no a ellas o, siendo


más atrevidas, a su modelo hegemónico heteropatriarcal.
Así, las prácticas discursivas del Estado a través de las normas y leyes
de la prostitución, el comercio sexual y el trabajo sexual han constituido
una performatividad de género que cristaliza y materializa un uso de
nuestros cuerpos, de nuestras prácticas sexuales ya sean profesionales o
no. Las palabras no sólo describen, constatan hechos, sino que definen,
categorizan, encasillan, agrupan o separan, produciendo efectos. Pero son
usos y sentidos que se han producido, promovido, aunque afortunadamente,
pueden ser resistidos o reapropiados.

La cotidianeidad de las trabajadoras sexuales en el Norte


de Chile

Los discursos jurídicos, tal como el discurso masculino de la ciencia,


han creado categorías sobre las prácticas profesionales del sexo cuyos
efectos son la esencialización de sus características e invisibilización de
su constitución relacional, así como de su contexto social, contingente
e histórico.
A partir de allí, se produjo la necesidad de comprender el trabajo sexual
desde otros lugares, otros discursos, otros sentidos. La búsqueda de estos
sentidos se basó en la etnografía los escenarios laborales en Iquique, desde
una perspectiva etnometodológica feminista (Kitzinger, 2000; Stokoe, 2006)
para definir el trabajo sexual a través del “hacer” de las actoras competentes.
Un “hacer” incuestionado porque se repite día tras día.
Iquique es una ciudad-puerto que se sitúa en la región fronteriza de
Tarapacá en el Norte de Chile, se ha distinguido por ser un territorio de
tránsito constante, lo que ha repercutido en que la población migrante
residente sea mayor en términos proporcionales respecto al porcentaje
nacional (Tapia Ladino, 2012). Olvidándose de que la migración y el tra-
bajo sexual han sido una constante en la historia de esta ciudad puerto, se
responsabilizó a la migrantes afroamericanas de un aumento del mercado
de las prácticas sexuales. Son procesos raciales conocidos pues no solo

533
Relações pessoa-ambiente na América Latina

son parte de la coyuntura migratoria, sino que constituyentes del Estado


chileno y están anclados en su historia colonial (Tijoux & Rivera, 2015).
Lo sabe Juana, colombiana de 20 años, que ha trabajado en cabarés y en
las calles del trabajo sexual en esta ciudad nortina:

Siempre hay discriminación, pues. Y uno soporta esto por la necesidad


pues. También hay riesgo, harto riesgo. Porque algunas personas nos
llevan a una parte a una y no a lo que vamos, sino que hay algunos que
no les gustan las negras, otros no le gustan por la forma en que hacemos
el trabajo, entonces intentan hacerle daño. (Entrevista individual)

Junto a otras trabajadoras sexuales, viven diversas dificultades que obedecen


a la interseccionalidad del género, sexualidad, raza y nación, que operan en la
producción y reproducción de desigualdades sociales en la experiencia laboral y
migratoria de estas mujeres. Y que se materializan en las posibilidades laborales
y relaciones sociales que se producen en sus espacios cotidianos.
Considerando estos espacios cotidianos, estas mujeres definen su
quehacer como un trabajo, tal como nos señaló Valentina en la introduc-
ción. Sin embargo, es un trabajo abundante en significados, prácticas y
sentidos que variarán, tensionarán o complementarán su definición. Tal
como nos plantea Gabriela, chilena de 56 años, que durante 28 años ha
trabajado en casas de citas, cabarés y calles en esta ciudad nortina, cuando
le preguntamos sobre su definición

E: Lo primero que le quiero preguntar es ¿cómo usted define la actividad


que ejerce?

G. Para mí en lo personal... es un trabajo, ehhhhh a pesar de que veces


yo mismo pienso que es un trabajo denigrante y humillante, porque a
veces uno claro la ven parada ahí y le gritan cosas de los autos, garabatos
[insultos] y cuestiones (Entrevista individual).

Complejiza la definición al plantearnos su perspectiva respecto al tra-


bajo sexual. Si bien lo define como una opción laboral, en su enunciación
agrega las consecuencias sociales de su deslegitimación. La estigmatización

534
El trabajo sexual como un intersticio. Discursos estatales y agencia desde la cotidianeidad...

que proviene de la condena moral por rebelarse ante modelos que sostienen
que las mujeres deben brindan gratuitamente su sexualidad a los hombres.
Esta estigmatización se agrava si al campo del trabajo sexual, se agre-
gan normativas que agudizan su marginalización y criminalización. En los
primeros meses del año 2013, un grupo de residentes de las calles donde
tradicionalmente se desarrolla esta actividad en Iquique, protestaron por la
llegada de profesionales del sexo afrocolombianas, responsabilizándolas de
estimular el desorden público y la violencia en el sector (Oñate Rojas, 2013).
Como consecuencia, el gobierno local promulgó una ordenanza municipal
que estipuló una zona en la periferia para esta actividad, cercana al barrio
industrial de la ciudad; una norma amparada en una ley del siglo XIX que
le entrega facultades a las municipalidad para velar por la moral y las buenas
costumbres (Ministerio del Interior, 1891). Tal como nos dijo una trabaja-
dora municipal en una conversación4 registrada en el cuaderno de campo:

Dice que no está de acuerdo por la inseguridad del lugar, que el sector
elegido está rodeado de drogadictos y que pueden asaltar a las mujeres.
Pero, que cuando se discutió la normativa no fueron invitadas las orga-
nizaciones de trabajadoras sexuales para que dieran su opinión sobre la
ordenanza, solo fueron escuchados los vecinos que reclamaban por las
colombianas que hacían mucho ruido.

La ordenanza no prohibió su actividad, pero sí restringió el uso del


espacio público para estas actoras sociales y las expulsó a un sitio eriazo en
los límites de la urbe, como una medida para resguardar a la ciudadanía de
su falta de moral y buenas costumbres. En ello, no consideró los discursos de
estas mujeres en su diseño, como tampoco estipuló mínimos para su bienes-
tar. Y como no sería de otra forma, asignó a las distintas fuerzas del orden:
policía uniformada, civil y cuerpo de seguridad de la administración local
para el resguardo el espacio público de estas actrices sociales y sus prácticas
– inoportunas y prohibidas – en este caso, mediante la higienización social.

4  No permitió grabar la entrevista debido al temor de ser expuesta y perder su trabajo como
funcionaria municipal.

535
Relações pessoa-ambiente na América Latina

A pesar de la ordenanza municipal, estas mujeres de diversas edades


y provenientes de Colombia, Paraguay y Chile, vestidas con camisetas y
pantalones ajustados o faldas cortas, continúan ocupando sus “oficinas”
– como llaman a sus esquinas – para ofrecer su trabajo luego que ano-
chece. Es un sector a pocas cuadras del centro comercial que aún cuenta
con casas con fachadas de pino de oregón, una infraestructura propia del
desarrollo urbano de la minería del salitre en la segunda mitad del siglo
XIX. Permanecen a la espera de clientes, justo frente a los portones de las
únicas empresas instaladas en esta zona.
Se ubican allí entre el ir y venir de las distintas patrullas policiales y
cuerpos de seguridad que fiscalizan la normativa, como nos detalla, Eloísa,
de 23 años, proveniente de Colombia: “los carabineros [policía uniformada]
y la PDI [Policía de Investigaciones] que a cada ratito nos corretean a uno, a
cada ratito nos corretean a uno, uno tiene que salir corriendo...” (Entrevista
individual). Este vaivén es una condicionante del contexto de las trabaja-
doras afrodescendientes, pues las chilenas no relatan corridas o arrestos,
son menos las que están en las calles y le es más fácil librarse de las fuerzas
del orden por su conocimiento del territorio.
En el “correteo” han ganado experiencia pues reconocen los distintos
dispositivos de las fuerzas del orden y sus facultades, lo observamos al ad-
vertirles sobre una patrulla de la seguridad local que apareció de improviso
y que no causó ninguna alteración de su rutina, pues saben que solo la
policía uniformada y civil pueden multarlas y encarcelarlas. No obstante,
la mayoría está sancionada y más de alguna está con reclusión nocturna
porque no podía pagar de otra forma. En efecto, las normas morales y
jurídicas interfieren en sus escenarios laborales al materializarse en restric-
ciones asociadas al género, raza, clase y nación. Estas clasificaciones sociales
producen interseccionalmente peores formas de opresión y condiciones
de desigualdad social.
Sin embargo, su transgresión constante y sus efectos son parte de las
normas en uso. Estas actrices sociales se adaptan, racionalizan y se ajustan
a ellas, porque las normas no hablan por sí mismas sino que sólo lo hacen
en conexión con su contexto (Wolf, 1982). En este sentido, las normas

536
El trabajo sexual como un intersticio. Discursos estatales y agencia desde la cotidianeidad...

jurídicas y las acciones moralizadoras contribuyen a que las trabajadoras


definan esta práctica como deslegitimada, del mismo modo que se invisi-
bilice las condiciones socioeconómicas, migratorias y raciales que influyen
en que continúen “yendo a la oficina” a pesar de las consecuencias (Espi-
noza-Ibacache & Íñiguez-Rueda, 2018a).
Además, que se resuma su definición a la relación sexual, invisibiliza los
conocimientos, métodos y estrategias que organizan las prácticas profesionales
del sexo. Conocimientos asociados a la competencia interaccional con los
clientes, un lenguaje que adorna sus acciones y el manejo de procedimientos
propios. Tal como observamos en las calles de Iquique, los conductores de-
saceleran al pasar por las “oficinas”, a veces llaman a alguna por su nombre
– especialmente cuando es cliente habitual – o se detienen para ser abordados
por una trabajadora. Ellas se acercan a los automóviles una vez que han hecho
contacto visual, ellos hablan, ellas escuchan y se acercan a pocos centímetros
de distancia, sin dejar de mirarlos y con una sonrisa pactan el precio de su
trabajo, el uso de preservativos y el lugar del encuentro.
Un saber hacer que les permite actuar de manera estratégica en un am-
biente complejo. Especialmente, respecto a la relación que establecen con los
clientes, como nos señala Gabriela, “será que una está acostumbrada a trabajar
con los hombres, queeee aprende a conocerlo, uno sabe al tiro [inmediato] cuando
el hombre está con la mala intención o no está con la mala intención, o te quiere
intimidar, solamente”. Este saber le ha servido para establecer límites en su
quehacer respecto a sus prácticas profesionales y evitar riesgos:

yo soy la que escojo con quién voy a entrar… yo no soy capaz de estar
más de 10 o 15 minutos en la pieza… yo cobro mi plata y yo les digo al
tiro [inmediato] en la puerta, ehhh (tose) tanto tiempo, un momento
no más, para que después no estén “bueno, una hora”, le digo al tiro [de
inmediato] las cosas como son, también les digo “si vas a pedirme algo
raro, yo no trabajo así”, entonces siempre se los digo en la puerta… yo no
trabajo con gente con trago.

Las prácticas profesionales están lejos de actuar de manera uniforme y


estática sino que operan conforme a las actrices sociales y a sus escenarios de

537
Relações pessoa-ambiente na América Latina

trabajo. Proceden de manera diferente si trabajan en un burdel, cabaré o en


la calle y condicionan las competencias que se deben desplegar, el lenguaje a
utilizar y los procedimientos seleccionados a la hora de ejercer esta ocupación
laboral. Sin embargo, inventan estrategias y procedimientos situados que les
permiten resistir cotidianamente a pesar del contexto adverso.
Las trabajadoras sexuales muestran una manera distinta de actuar en
torno a los patrones hegemónicos impuestos. Esos que señalan que las
mujeres deben cuidar su hogar, postergar sus intereses por los demás y
mantener estrictamente controlada su sexualidad. No obstante, en lugar
de dar cuenta de estos saberes y otras formas de vida, hemos omitido este
conocimiento práctico, también sus modos de hacer o las reapropiaciones
de los imaginarios que las marginan.

Trabajo sexual como un intersticio

Definimos al trabajo sexual como un intersticio porque permite


desnaturalizar prácticas que se han cristalizado en la performance de
sexo/género y la producción de la categoría “mujeres” establecido por los
discursos jurídicos, también por el discurso masculino de la ciencia, de
la Iglesia y una parte del movimiento feminista. Es importante señalar
que con esto no queremos invisibilizar la precariedad de este trabajo sino
plantear que la agencia de las trabajadoras sexuales nos brinda un punto de
vista privilegiado sobre cómo desafiar los límites de patrones hegemónicos
que definen lo femenino.
Las prácticas discursivas estatales se establecieron en un contexto so-
cial de constitución y desarrollo del Estado-nación chileno; emulando el
modelo europeo colonial e ilustrado impulsaron su reproducción cultural
heterosexual: la libertad sexual de los varones, el sistema matrimonial y la
fidelidad de las mujeres. Entonces, a las prostitutas se le objetivaron rasgos
problemáticos por transgredir los límites de lo que se había categorizado
como femenino, al vivenciar su sexualidad traspasando el ámbito repro-
ductivo, vender su trabajo sexual/doméstico fuera de casa y más allá del
ámbito conyugal. Ellas, a través de su quehacer, traspasan ámbitos que han

538
El trabajo sexual como un intersticio. Discursos estatales y agencia desde la cotidianeidad...

sido históricamente divididos en privados y públicos, o reproductivos y


productivos, dándoles continuidad.
Así, las prácticas discursivas del Estado, a través de las normas y leyes
de la prostitución, comercio sexual y trabajo sexual han constituido una
performatividad de género que cristaliza y materializa un uso de nuestros
cuerpos, de nuestras prácticas sexuales ya sean profesionales o no. Por eso
hemos repetido incansablemente, las palabras no sólo describen, consta-
tan hechos, sino que definen, categorizan, encasillan, agrupan o separan,
produciendo efectos. Pero son usos y sentidos que se han producido, pro-
movido, aunque afortunadamente, pueden ser resistidos o reapropiados.
Han sido exitosas en la medida que en su reiteración a lo largo del tiempo
instauran un efecto de frontera, una materialidad que se naturaliza o que solo
es vista como parte de esa cadena de reiteraciones. Fronteras que hacen inin-
teligibles las prácticas profesionales del sexo y de la misma forma, invisibilizan
la transgresión de estas mujeres a la performatividad heteronormativa.
No obstante, continúa la pregunta, ¿En qué medida estas prácticas
discursivas son exitosas si se han producido discursos disidentes al estatal
que han constituido otros usos y sentidos del trabajo sexual?, ¿Para quiénes
son ininteligibles estas prácticas?, lo que invita a preguntarnos ¿Actuarán de
la misma forma en los distintos contextos y en las distintas actrices sociales?
Así, nos acercamos a los escenarios laborales cotidianos con la premisa
de responder estos cuestionamientos. Las trabajadoras sexuales resisten
constantemente a las regulaciones, pero no escapan de sus efectos, sino que
estos mismos forman parte de las normas en uso e integran los procedi-
mientos propios de su actividad. Es decir, y como en un doble sentido, los
discursos jurídicos, sociales y morales intervienen en su cotidiano – como
también intervienen en el nuestro – y, al mismo tiempo, estas actrices
sociales adaptan, racionalizan, ajustan estos discursos a su realidad social.
Justamente porque las normas no hablan por sí mismas, sino que actúan
en relación con su contexto (Wolf, 1982).
Así, en ese contexto, estas mujeres definen su quehacer como un
trabajo. Un trabajo deslegitimado e ininteligible para otros actores y ac-
trices sociales. Un trabajo que cuenta con conocimientos, convenciones

539
Relações pessoa-ambiente na América Latina

normativas, métodos y estrategias que organizan sus prácticas profesionales


y que, ciertamente, van más allá de la relación sexual. Sin embargo, a las
trabajadoras no se les reconoce este conocimiento, sino que son apunta-
das y perseguidas a través de la punición y criminalización por saltarse el
acuerdo implícito que situaban a las prácticas sexuales en el ámbito de lo
privado y no remunerado, por transformarlas en fuerza de trabajo y darles
un valor de uso. Las prácticas sexuales de la categoría mujeres – la tuya y la
de nosotras – son supeditadas únicamente al ámbito privado y doméstico,
produciéndose un tabú respecto al intercambio sexo-dinero en lo público.
Es en este sentido que además planteamos la agencia de estas mujeres,
pues nos enseñan que el trabajo sexual actúa como un intersticio, a pro-
pósito de la agencia de Butler: una que se produce allí “dónde la soberanía
declina” (Butler, 2009, p. 37). Es esta indeterminación en las condiciones
contextuales que esta autora plantea la agencia como una posibilidad de
reconfigurar enunciados y sus efectos performativos. Y, si bien la repetici-
ón ritual de los actos logra que sus efectos se naturalicen y materialicen,
omitiendo su carácter social e históricamente situado que lo constituye,
en esta misma iterabilidad –utilizando los conceptos de Derrida – es que
emerge un campo de posibilidades de reapropiación de los actos. En este
sentido, definimos que el trabajo sexual actúa como intersticio al permitir
problematizar la categoría “mujeres” como un efecto sostenido y mate-
rializado y desnaturalizar prácticas discursivas y materialidades que han
“domesticado” y privatizado nuestras prácticas sexuales, sacralizado nuestros
órganos sexuales y que, al situar a las trabajadoras como figuras abyectas,
han establecido una guía de comportamiento para el resto de las mujeres.
Asimismo, definir el trabajo sexual como un intersticio permite confi-
gurarlo como un espacio compartido, un espacio social, histórico, político
y situado. Sin embargo, se ha invisibilizado nuestro papel en esta relación
y los efectos en nuestra performatividad sexo/género. Del mismo modo,
se invisibiliza que, al situar a las trabajadoras sexuales como una figura
abyecta del modelo femenino, el Estado las violenta con políticas punitivas
que precarizan esta opción laboral, las abandona ante violencias machistas
y racistas y las degrada con su determinismo moral.

540
El trabajo sexual como un intersticio. Discursos estatales y agencia desde la cotidianeidad...

Finalmente, ampliar la mirada que se ha constituido de la prostitución


y trabajo sexual desde una perspectiva que articula el contexto jurídico,
histórico y social con el saber hacer de las profesionales del sexo, aporta
en la configuración constructiva de estas prácticas, en la descolonización
epistémica y complejiza un debate que se distingue por subestimar la
agencia de estas profesionales.

541
Relações pessoa-ambiente na América Latina

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544
El trabajo sexual como un intersticio. Discursos estatales y agencia desde la cotidianeidad...

545
Sobre as autoras e autores

Adriana Barbosa Ribeiro


Psicóloga do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amapá (IFAP) e
doutoranda no Programa de Pós-graduação de Psicologia da Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC), com mestrado e graduação na Universidade Federal do Rio Grande do
Norte (UFRN)
E-mail: ianaribeiro@gmail.com

Alessandra Sávia da Costa Masullo


Mestra em Educação Brasileira pela Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará,
graduada em Serviço Social/UEC, com pós-graduação em História e Cultura Africana e dos
Afrodescendentes/UFC e em Serviço Social, Políticas Públicas e Direitos Sociais/UEC. É
professora tutora do curso de especialização em Saúde da Família e Comunidade da Uni-
versidade Federal do Piauí. É Educadora Popular em Saúde pela Fundação Oswaldo Cruz.
Pesquisadora colaboradora dos núcleos: Núcleo de Africanidades Cearenses/UFC, Núcleo
de Estudos e Pesquisa em Juventudes/UFPI/CMRV, pesquisadora colaboradora do Núcleo
de estudos sobre Gênero, Raça, Classe e Trabalho da Universidade Federal do Piauí/CMRV.
E-mail: alessandramasullo@gmail.com

Alexandra Cleopatre Tsallis


Doutora em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro em associação
com a École des Mines/Paris. Professora Adjunta do Departamento de Psicologia Social e
Institucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
E-mail: atsallis@gmail.com

Alicia Rain
Magíster en Psicología por la Universidad de la Frontera, Chile. Doctoranda del programa
Persona y Sociedad en el Mundo Contemporáneo de la Universidad Autónoma de Barcelona.
Fue Académica del Departamento de Trabajo Social de la Universidad Católica de Temuco,
Chile, entre los años 2006 y 2017. Miembro del comité científico de la revista Lenguas y
Literaturas Indoamericanas del Departamento de Lenguas, Literatura y Comunicación de
la Universidad de La Frontera, Chile.
E-mail: aliciarain@gmail.com

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Violência, Ditadura e Memória: expressões políticas e institucionais

Ana Karenina de Melo Arraes Amorim


Psicóloga, com Mestrado em Psicologia Clínica e Doutorado em Psicologia Social. Profa. do
Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte. Membro do Conselho Consultivo do Centro de Referência
em Direitos Humanos Marcos Dionísio da UFRN (CRDH-MD). Coordenadora do Grupo
de Estudos em Política, Produção de Subjetividades e Práticas de Resistência (GPPR/UFRN)
E-mail: akarraes@gmail.comv

Ana Paula Soares da Silva


Psicóloga, Professora do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP), Brasil. Coordena o
Laboratório de Psicologia Socioambiental e Práticas Educativas (LAPSAPE/FFCLRP-USP).
E-mail: apsoares.silva@usp.br

Andrea Vieira Zanella


Docente permanente do PPGP/UFSC, professora titular aposentada, doutora em Psicologia
da Educação pela PUC/SP, pós-doutorado na Università Degli Studi di Roma La Sapienza
e na New School for Social Research, de bolsista em produtividade do CNPq.
E-mail: a.zanella@ufsc.br

Andrés Di Masso
Doctor en Psicología por la Universidad de Barcelona. Actualmente es profesor titular en
el Departamento de Psicología Social de la UB y Director del Grupo de Investigación en
Interacción y Cambio Social GRICS – (2017 SGR 1500).
E-mail: adimasso@ub.edu

Antônio Vladimir Félix-Silva


Doutor em Ciências Psicológicas pela Universidade de Havana (Cuba). Professor do Curso
de Medicina e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Piauí
(UFPI), vinculado à linha de pesquisa Psicologia, Saúde Coletiva e Processos de Subjetivação.
E-mail: wladyfelix@hotmail.com

Bianca Oliveira de Macedo


Psicóloga, mestranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filoso-
fia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP-USP), Universidade de São Paulo, Brasil.
Membro do Laboratório de Psicologia Socioambiental e Práticas Educativas (LAPSAPE/
FFCLRP-USP).
E-mail: bianca_macedo_@hotmail.com

548
Sobre as autoras e autores

Breno Lincoln Pereira de Souza Diniz


Psicólogo graduado pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2016). Foi estagiário
do Centro de Referência em Direitos Humanos da UFRN, desenvolvendo o trabalho de
articulação entre usuários da rede de saúde mental e população de rua. Especialista em saúde
mental pelo Programa de Residência Multiprofissional da Faculdade de Ciências Médicas
(FCM) da Universidade de Pernambuco (UPE). Atua como referência técnica regional de
saúde mental na Prefeitura de Belo Horizonte.
E-mail: brenolincolndiniz@gmail.com

Camila Batista Silva Gomes


Licenciada em História pela Universidade Estadual Vale do Acaraú. Especializações em
Direito Agrário/Universidade de Goiás e em Promoção e Vigilância em Saúde, Ambiente e
Trabalho, da Escola Fiocruz de Governo – EFG, Cursando Mestrado Profissional em Políticas
Públicas em Saúde - Turma Especial: Promoção e Vigilância em Saúde, Ambiente e Trabalho,
ministrado pela Escola Fiocruz de Governo - EFG/GEREB/ Fiocruz/Brasília. Assessora da
Articulação Nacional das Pescadoras na temática da Saúde do Trabalhador e Trabalhadora.
Educadora Popular do Conselho Pastoral dos Pescadores.
E-mail: camilabatistagomes18@gmail.com

Catalina Ramírez Vega


Licenciada en Psicología (2004) por la Universidad de Costa Rica, Máster en Psicología
mención Psicología Comunitaria (2014) por la Universidad de Chile, Doctoranda en Psi-
cología Social en la Universidad de Barcelona. (2017 - actualmente), Docente de la Escuela
de Psicología y del Posgrado de Psicología de la Universidad de Costa Rica.
E-mail: catalina.ramirez@ucr.ac.cr

Elívia Camurça Cidade


Professora adjunta do curso de graduação em Psicologia da Faculdade Ari de Sá. Possui
doutorado em psicologia pela Universidade Federal do Ceará, Brasil, com estágio doutoral
sanduíche na Universidad Autónoma de Yucatán, México (Bolsa CAPES / PDSE). É mes-
tre em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará e Especialista em Gestão em Saúde
Pública (Universidade Estadual do Ceará). Membro do Núcleo de Psicologia Comunitária
da Universidade Federal do Ceará (NUCOM/ UFC).
E-mail: eliviacidade@yahoo.com.br

Eunice Nakamura
Doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo, com pós-doutorado junto
ao Centre de Recherche Médicine, Santé, Santé Mentale et Société (CERMES 3) da Univer-
sidade Paris Descartes. Atualmente é Professora Associada da Universidade Federal de São
Paulo - Campus Baixada Santista, com atividade docente na graduação e na pós-graduação
(Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências da Saúde). É líder do grupo de

549
Violência, Ditadura e Memória: expressões políticas e institucionais

pesquisa Laboratório Interdisciplinar Ciências Humanas, Sociais e Saúde e integrante do


Observatório de Saúde Mental da Unifesp - Campus Baixada Santista. É Editora Científica
da Revista Saúde e Sociedade.
E-mail: e.nakamura@unifesp.br

Fernanda Fernandes Gurgel


Graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Doutorado em Psicologia Social pela UFRN / UFPB. Professora Adjunta da Faculdade de
Ciências da Saúde do Trairí (FACISA/UFRN).
E-mail: fernandafgurgel@hotmail.com

Fernanda Graña Kraft


Psicóloga, mestranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP-USP), Universidade de São Paulo, Brasil. Membro
do Laboratório de Psicologia Socioambiental e Práticas Educativas (LAPSAPE/FFCLRP-USP).
E-mail: fernanda.kraft@usp.br

Fracinalda Maria Rodrigues da Rocha


Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente (UFPI). Atua nos campos da biologia, peda-
gogia junto aos movimentos sociais desenvolvendo ações de luta, formação e fortalecimento
das mulheres Marisqueiras, produtoras familiares e juventudes do campo nos estados do PI
e CE. Atuou como professora substituta na UESPI e na UFDPar.
E-mail: francinalda.rocha@gmail.com

Gabriela Milaré
Formada em Psicologia (2015) e mestra em Psicologia Social (2019) pelo Instituto de Psico-
logia da Universidade de São Paulo, é atualmente mestranda do programa Erasmus Mundus
Social Work with Family and Children (2019-2021) - consórcio entre as universidades
ISCTE- Lisboa (Portugal), University of Stavanger (Noruega), University of Gothenburg
(Suécia) e University of Makerere (Uganda). Integrante da Rede Brasileira de Pesquisadores
da População de Rua (2018-).
E-mail: gabrielamilarec@gmail.com

Guilherme Paim Mascarenhas


Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia (2015) e é mestre pelo
Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFRN (2017). Atualmente é doutorando e
trabalha como professor substituto no curso de Psicologia da UFRN.
E-mail: guipaimm@gmail.com

550
Sobre as autoras e autores

Gustavo Martineli Masssola


Formado em Psicologia (1997), mestrado em Psicologia Social (2001) e Doutorado em
Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (2005). Atual-
mente, é professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e é orientador
de mestrado e doutorado no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social do Instituto
de Psicologia. Atualmente, é vice-diretor do Instituto de Psicologia da USP.
E-mail: gustavomassola@usp.br

Héctor Berroeta
Doctor por la Universidad de Barcelona, profesor titular y director del departamento de
psicología social de la Universidad de Valparaíso. Director alterno del Centro de Investiga-
ciones en Vulnerabilidades e Informalidades territoriales CINVIT-UV. Actualmente dirije
el proyecto de Investigación Fondecyt 118429.
E-mail: Hector.berroeta@uv.cl

Jáder Ferreira Leite


Doutor em Psicologia Social - UFRN. Professor Associado do Departamento de Psicologia - UFRN.
jaderfleite@gmail.com

Jacqueline Espinoza-Ibacache
Investigadora postdoctoral del Departamento de Psicología de la Universidad de Chile. Docto-
rado en Psicología Social y Máster en Investigación e Intervención Psicosocial en la Universidad
Autónoma de Barcelona, Magíster en Psicología Comunitaria en la Universidad de Chile.
E-mail: jacqueline.espinoza.ibacache@gmail.com

Jorge Bernabé Ulloa Martínez


Académico de la Escuela de Psicología de la Universidad Santo Tomás, Los Ángeles. Psicó-
logo y Dr. en ciencias sociales de la Universidad de La Frontera e investigador en el núcleo
científico y tecnológico de ciencias sociales y humanidades de la Universidad de La Frontera.
E-mail: jorgeulloama@santotomas.cl

José de Queiroz Pinheiro


Doutor em Psicologia Ambiental pela Universidade do Arizona (Tucson, EUA). Mestre em
Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (USP). Professor titular na Universidade
Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e coordenador do Grupo de Estudos Inter-Ações
Pessoa-Ambiente (GEPA).
E-mail: pinheirojq@gmail.com

551
Violência, Ditadura e Memória: expressões políticas e institucionais

Juliana Bezzon da Silva


Psicóloga, doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP-USP), Universidade de São Paulo, Brasil. Membro
do Laboratório de Psicologia Socioambiental e Práticas Educativas (LAPSAPE/FFCLRP-USP).
E-mail: jbezzon@usp.br

Karine Regina Jurado


Psicóloga, mestranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP-USP), Universidade de São Paulo, Brasil. Membro
do Laboratório de Psicologia Socioambiental e Práticas Educativas (LAPSAPE/FFCLRP-USP).
E-mail: karinejurado@gmail.com

Kátia Maheirie
Graduação em Psicologia pela UFSC, com mestrado e doutorado em Psicologia Social pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Fez estágio pós doutoral em Educação na
UNICAMP e em Psicologia Social na Universitat Autónoma de Barcelona (ES) e na PUC/
SP. Pesquisadora e professora Titular da Universidade Federal de Santa Catarina, no Programa
de Pós-Graduação em Psicologia, onde integra o NUPRA- Núcleo de Pesquisa em Práticas
Sociais, Estética e Política. É editora geral da Revista de Psicologia Política.
Email: maheirie@gmail.com

Laís Barreto Barbosa


Psicóloga, Doutoranda em psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Pesquisadora participante do Grupo de estudos em Política, Produção de Subjetividade e
Práticas de Resistência (GPPR/UFRN).
E-mail: lais.barreto08@gmail.com

Laís Pinto de Carvalho


Graduada em psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2014) e doutora
em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Chile (2018). Atualmente é docente
e pesquisadora pós-doutoral na Universidad de Valparaíso, Chile.
E-mail: lais.pinto@uv.cl

Leonardo Victor de Sá Pinheiro


Doutor em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Mestre
e graduado em Administração de Empresas pela Universidade Estadual do Ceará (UECE).
Professor Adjunto da Universidade Federal do Piauí (UFPI/CAFS).
E-mail: leonardopinheiro@hotmail.com

552
Sobre as autoras e autores

Lílian Caroline Urnau


Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano
do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (2013). Mestre (2008) e graduada (2006)
em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professora da graduação e pós-gra-
duação em Psicologia da Fundação Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Pesquisadora
integrante do GAEPPE: Grupo Amazônico de estudos e pesquisas em Psicologia e Educação.
E-mail: lilian.urnau@unir.br

Lupicinio Íñiguez-Rueda
Doctor en Filosofía y Letras (Psicología) por la Universitat Autónoma de Barcelona (1986).
Catedrático de Psicología Social (2003) en el Departament de Psicología Social (UAB).
Miembro del Barcelona Science and Technology Studies Group (STS-b) y del Grupo de
Investigación en Metodologías Cualitativas (GIMC).
E-mail: lupicinio.iniguez@uab.cat

Magda Dimenstein
Professora Titular do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte, bolsista de produtividade 1A/CNPq
E-mail: magda@ufrnet.br

Marcelo Rodríguez-Mancilla
Profesor Asociado del Departamento de Psicología Universidad de Playa Ancha, Chile. Psi-
cólogo por la Universidad de Valparaíso, Chile. Doctor en Planificación Urbana y Regional
por la Universidad Federal de Río de Janeiro, Brasil. Actualmente integra el Observatorio
de Participación Social y Territorio de la Universidad de Playa Ancha.
E-mail: hector.rodriguez@upla.cl

Maria da Graça Silveira Gomes da Costa


Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), atual-
mente é pós-doutoranda em Psicologia pela mesma instituição. É militante da agroecologia
e do Coletivo Nacional de Agricultura Urbana. Tem experiência na área de Psicologia Social,
Saúde Coletiva e Educação Popular.
E-mail: mariaggomes@gmail.com

María Milagros Febles Elejalde


Licenciada en Psicología en 1971, Universidad de la Habana; Máster en Psicología educativa
en 1998, Universidad de la Habana; Dra. en Ciencias Psicológicas en 1977, Universidad de
Moscú; Master en Psicodrama y procesos grupales en 2009, Facultad Psicología Universidad

553
Violência, Ditadura e Memória: expressões políticas e institucionais

de la Habana; Especialista en Psicología ambiental; Profesora Titular y Consultante Facultad de


Psicología, Universidad de la Habana.
E-mail: mafebles@gmail.com

Maria Teresa Lisboa Nobre Pereira


Psicóloga, com doutorado e pós-doutorado em Sociologia. Profa do Programa de Pós-Gra-
duação em Psicologia da UFRN. Membro do Conselho Consultivo do Centro de Referência
em Direitos Humanos Marcos Dionísio da UFRN (CRDH-MD). Membro do Grupo de
Estudos em Política, Produção de Subjetividades e Práticas de Resistência (GPPR/UFRN)
E-mail: tlnobre@hotmail.com

Matheus Mendonça de Vasconcelos


Aluno do 9º período da graduação em Psicologia da Fundação Universidade Federal de
Rondônia (UNIR) e estagiário de Psicologia do Instituto Federal de Ciência, Educação e
Tecnologia de Rondônia (IFRO).
E-mail: matheusmdv10@gmail.com

Maylla Maria Souza de Oliveira


Bacharel em psicologia pela Universidade Federal do Piauí (UFPI), psicóloga na instituição
APAE Ilha Grande –PI, atua no campo da psicologia coletiva desenvolvendo pesquisas na
comunidade Pedra do Sal/Parnaíba- PI e localidades vizinhas no âmbito da cartografia e dos
processos de resistência dos povos e comunidades tradicionais pesqueiras.
E-mail: mayllamariaphb@hotmail.com

Monique Araújo de Medeiros Brito


Graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), resi-
dência em saúde coletiva com área de concentração em saúde mental e mestrado em Saúde
Comunitária pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Atualmente cursando doutorado
em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e docente no
Centro de Ciências da Saúde (CCS) na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).
E-mail: moniqueambrito@gmail.com

Nikolas Olekszechen
Doutorando no Programa de Psicologia Social do Instituto de Psicologia da Universidade de São
Paulo. Mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade
Federal de Santa Catarina. Graduado em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá.
E-mail: nikolas.oleks@gmail.com

554
Sobre as autoras e autores

Pedro Fernando da Silva


Professor do Instituto de Psicologia da USP e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia
Escolar e do Desenvolvimento Humano; Mestre e Doutor em Psicologia Social pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP; Psicólogo pela Universidade de Mogi das
Cruzes – UMC; e Coordenador do Laboratório de Estudos sobre o Preconceito – LaEP.
E-mail: pedrofernando.silva@usp.br

Rafaella Lenoir-Improta
Doutora em Psicologia Social e Ambiental pelo programa Intervenção Psicossocial da
Universidade de Barcelona, mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal do Rio
Grande do Norte e bacharel em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina.
E-mail: rafaellalenoir@gmail.com

Raquel Farias Diniz


Doutora em Psicologia, é professora adjunta do Departamento de Psicologia e colaboradora do
Programa de Pós-Graduação em Psicologia na Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
E-mail: raqueldiniz.ufrn@gmail.com

René Fernando Squella Soto


Licenciado en Psicología, Pontificia Universidad Católica de Valparaíso; Diplomado en Po-
líticas Sociales: Desarrollo y Pobreza; Doctor en Psicología, Pontificia Universidad Católica
de Valparaíso; Integrante del Colectivo Notros: Comunidad, Acción y Reflexión. Actual-
mente, Docente del área de Psicología Comunitaria de la Pontificia Universidad Católica
de Valparaíso y de la Universidad Viña del Mar
E-mail: renesquellasoto@gmail.com

Robinson de Oliveira Padial


Robinson Padial, o Binho, é poeta e articulador cultural. Criador do Sarau do Binho, um
dos precursores do chamado Movimento de Literatura Marginal e Periférica. Organizou,
junto com Serginho Poeta, a “Expedicion Donde Miras- Caminhada Cultural pela América
Latina”. Autor do livro “Postesia” e co-autor do livro “Donde Miras- dois poetas e um cami-
nho”. Criador de vários projetos de incentivo à leitura, dentre eles, a Brechoteca-Biblioteca
Popular, a Bicicloteca, o Projeto Pra-ti-ler, a Distribuição de livros no Terminal de Ônibus
Campo Limpo e mais recentemente o Projeto Livros no Ponto. Binho é formado pela Escola
Paulista de Biodança e atualmente estuda Homeopatia.
E-mail: abcbinho2@gmail.com

Silvia Miriam Pell del Río


Ingeniera química, CUJAE (1988). Máster en Actividad Física Comunitaria, Doctora
en Ciencias de la Educación, Educadora Popular, UCFD; Máster en Gestión Ambiental,

555
Violência, Ditadura e Memória: expressões políticas e institucionais

InSTEC; Profesora e Investigadora Titular de la Universidad de la Habana. Especialista de


Posgrado en Docencia Universitaria, CUJAE; Delegada del capítulo cubano de la Acade-
mia Internacional de Ciencia, Tecnología, Educación y Humanidades (AICTEH-Cuba);
Presidenta de la Sección de Medio Ambiente de la Sociedad Económica de Amigos del País.
E-mail: persistenciasiempre@gmail.com • silvia.pell@rect.uh.cu

Suzi de Aguiar Soares


Graduada em Letras, Articuladora cultural e produtora de coletivos culturais da zona sul de São
Paulo. Formada em letras pela Universidade Bandeirantes. Organiza o Sarau do Binho desde
a sua formação há 15 anos. Participou da “Expedición Donde Miras - Caminhada Cultural
pela América Latina”; Participa dos projetos de incentivo à Leitura como a Bicicloteca, a
distribuição de livros no terminal Campo Limpo e o “Livro no ponto”. Produtora executiva
da “Felizs - Feira Literária da Zona Sul”, São Paulo, desde a sua primeira edição em 2015.
E-mail: suzisoares@gmail.com

Tadeu Mattos Farias


Doutorado e pós-doutorado em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do
Norte (UFRN), Pós-doutorado em Psicologia pela Universidade Federal de Goiás (UFG).
É professor adjunto do Departamento de Psicologia da UFRN e colaborador do Programa
de Pós-Graduação em Psicologia da UFG.
E-mail: tadeumattos@gmail.com

Tatiana Minchoni
Poeta em construção, doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina
(PPGP/UFSC) na área de Práticas Culturais e Processos de Subjetivação com estágio-san-
duíche na Universitat Autónoma de Barcelona (ES), mestre em Psicologia (PPGP/UFRN) e
especialista em Práticas Pedagógicas no Ensino Superior, pela Universidade Potiguar (UnP).
Integra o Coletivo Sarau do Binho e é produtora executiva da “Felizs - Feira Literária da
Zona Sul”, São Paulo, desde a segunda edição em 2016.
Email: minchoni.tatiana@gmail.com

Thaís Fabiana Faria Machado


Graduada em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP)
com especialização em Psicopatologia e Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública (FSP/
USP) e com mestrado em Ciências pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP/
Baixada Santista). É membro do grupo de pesquisa do Laboratório Interdisciplinar Ciências
Humanas, Sociais e Saúde (LICHSS) da Universidade Federal de São Paulo.
E-mail: tfariamachado@gmail.com

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Sobre as autoras e autores

Tomeu Vidal
Licenciado en Psicología (1990), Màster en Intervención y Gestión Ambiental (1994) y
Doctor en Psicología (2002) (Universidad de Barcelona), Miembro del GRICS - Grupo de
Investigación en Interacción y Cambio Social; Profesor titular de universidad en el Depar-
tamento de Psicología Social y Psicología Cuantitativa. Universidad de Barcelona.
E-mail: tvidal@ub.edu

Veronica Morais Ximenes


Professora titular do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará e vice-
-coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Coordenadora do Núcleo de
Psicologia Comunitária (NUCOM). Possui Doutorado em Psicologia pela Universidade de
Barcelona e pós-doutorado em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Possui bolsa de produtividade do CNPq -nível 2.
E-mail: vemorais@yahoo.com.br

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