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CRIATURAS AÉREAS

de Camilo Pellegrini

CABINE DE UM BOEING.
PILOTO,
CO-PILOTO,
JULIANA, A DESTEMIDA COMISSÁRIA DE BORDO.

COMANDANTE - Que baderna é essa lá atrás, comissária Juliana?

JULIANA - Um pequeno contratempo, comandante.

CO-PILOTO - Xi! Lá vem bomba.

COMANDANTE - Atenção à latitude, rapaz! Deixa que da Juliana cuido eu.

CO-PILOTO - Que ranzinza.

COMANDANTE - Desembucha, Juliana! O que foi? O que é esse quebra-quebra lá atrás?

JULIANA - Não sei por onde começar, comandante.

CO-PILOTO - (RINDO) Ai, ai! Você é uma figurinha, Juliana!

COMANDANTE - Cale-se! Deixe a moça falar! Então?! Explique essa balburdia!

JULIANA - O barulho, comandante, é porque houve uma ligeira despressurização da cabi-


ne.

COMANDANTE - Ligeira despressurização?! Juliana, você está tirando uma com a minha
cara? Está me achando com pinta de palhaço?! Ou despressuriza-se uma cabine, ou não,
caracoles!

CO-PILOTO - Bem que eu desconfiava deste ponteirinho.

COMANDANTE - O quê???!!! Seu grandessíssimo palerma! Você é pago pra quê, infe-
liz!!! Olha os marcadores, os cronômetros, os medidores, os botões coloridos! Tudo indica
que estamos no auge da despressurização!!! Como não percebi isso antes?!

CO-PILOTO - (P/ SI) Quem não tem competência, não se estabelece.

PILOTO dá um tapão na cabeça do CO-PILOTO.

COMANDANTE - cale essa bocarra cheia de dentes, seu co-piloto de meia tigela! Que
barulhada lá atrás que não pára!

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JULIANA - São as bagagens de mão voando pro espaço, os talheres, os refrigerantes.
(MUITO TRISTE) Marinildes e Jéssica também foram chupadas pra fora da nave.

COMANDANTE - É pior do que eu pensava! Mas por quê?! Por quê?!

JULIANA - Ao que parece, a culpa é do presunto.

CO-PILOTO - Essa é nova!

COMANDANTE - Como assim, mulher?!

JULIANA - Primeiro foi uma senhora gorda. Entre os sanduichinhos de presunto e de


queijo ela escolheu o primeiro. Após umas poucas mastigadas, a louca abriu a porta da
aeronave e pulou pra fora. Máscaras de oxigênio caíram como tentáculos enredando a tri-
pulação. Me agarrei com força numa das máscaras colocando primeiro em mim pra depois
auxiliar o menininho que estava por perto. Mas o pequenino arrancou a máscara da face
com um sorriso de louco, um brilho no olhar daqueles que já se perderam, e se atirou pra
fora do avião numa felicidade constrangedora.

(SILÊNCIO... ouve-se apenas a balburdia esparsa ao fundo...)

COMANDANTE - Você está me dizendo que aquele garotinho de cinco anos se suicidou?

JULIANA - Tanto ele quanto todos os outros cinqüenta e sete tripulantes que comeram o
sanduíche de presunto.

CO-PILOTO - Quem comeu o presunto está querendo virar presunto também? (RI DA
PRÓPRIA PIADA)

COMANDANTE - Cale-se, iditota!!!

JULIANA - O que eu faço, Comandante?

COMANDANTE - Sabia que nossas refeições eram uma porcaria, mas isso é demais.

JULIANA - E agora?

COMANDANTE - Traga dois sanduichinhos pra gente, Juliana. Eu e esse inútil vamos
experimentar.

(MUSICA DE SUSPENSE. JULIANA E CO-PILOTO ASSUSTADOS)

JULIANA - Dois sanduíches, Comandante?

CO-PILOTO - Como assim?!

COMANDANTE - Ficou surda, mulher!!! Anda com isso!!!

JULIANA - O senhor vai querer de queijo ou...


COMANDANTE - Presunto, Juliana!!! Não estou te reconhecendo!!! Dessa besta aqui do
meu lado eu espero qualquer coisa, mas de você?!

JULIANA - Aqui estão. Sobraram dois de presunto no meu bolso.

JULIANA ENTREGA DOIS SANDUÍCHES DE PRESUNTO PARA ELES. PILOTO


DÁ UMA BOA MORDIDA. CO-PILOTO MORDE UMA LASQUINHA.

COMANDANTE - Morde isso direito, seu monte de esterco! Temos que descobrir o que
está se passando nesta aeronave!

TEMPINHO NA TENSÃO, ELES COMEM OS SANDUIÍCHES.

JULIANA - Comandante?! O senhor está se sentindo bem?

COMANDANTE - Bem...? Ótimo... Estou muito bem...

CO-PILOTO - Minhas mãos estão formigando.

JULIANA - Suas mãos?

COMANDANTE - As minhas também. Parece que algo está nascendo bem debaixo das
minhas unhas. Olha só?! Está vendo Juliana?

JULIANA - Não estou vendo nada.

CO-PILOTO - Nas minhas também! Olha aqui!

JULIANA - Não vejo...

CO-PILOTO - São... penas!!!

JULIANA - Não pode ser!!!

COMANDANTE - Pela primeira vez este jegue da aviação está certo! São penas sim se-
nhor!

JULIANA - Não pode ser, não vejo nada!

CO-PILOTO - Penas pelo braço inteiro! Entre os meus dedos! Estou livrem, finalmente!
Quero voar!!!

JULIANA - Não, co-piloto! Você está enganado! É uma ilusão, um delírio!

CO-PILOTO - Me larga, Juliana! Eu quero voar!!! Voar!!!

CO-PILOTO SAI DALI APESAR DA TENTATIVA DE JULIANA EM SEGURÁ-LO.

COMANDANTE - Também vou! Me espera! Minhas asas estão abertas! Quero mergulhar
no céu!
JULIANA - Comandante! Por favor, não faça isso!!!

COMANDANTE - Adeus!!!!!

COMANDANTE SAI DALI. JULIANA ASSUME O BANCO DE PILOTO. OUVIMOS


O SOM COMO SE O AVIÃO ESTIVESSE CAINDO. JULIANA SE ESFORÇA PARA
GANHAR ALTITUDE.

JULIANA - Por favor... Por favor... sobe...

O AVIÃO VOLTA AO NORMAL, JULIANA CONSEGUIU MANTER O CONTROLE.

JULIANA - Graças a Deus.

JULIANA PERCEBE ALGUMA COISA Á SUA FRENTE. ELA ACENA.

JULIANA - Comandante?! É o senhor?! Conseguiu! O senhor está voando! O senhor con-


seguiu!

NA FELICIDADE DE JULIANA ACENANDO PARA FRENTE.

FIM

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