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VOZES EMERGENTES :

EDUCAÇÃO E QUESTÕES ÉTNICO-RACIAIS


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VOZES
EMERGENTES
EDUCAÇÃO E QUESTÕES
ÉTNICO-RACIAIS

Neide Cristina da Silva


Telma Cezar S. Martins
Cláudia Cristina de Oliveira
(org.)

EDITORA
CASA FLUTUANTE
© 2016 by Organizadores

Organização
Neide Cristina da Silva
Telma Cezar S. Martins
Cláudia Cristina de Oliveira

Editor
EDITORA CASA FLUTUANTE
Rua João de Castilho Pinto, 79
São Paulo - SP
Fone: (11) 2567-6904 / 95497-4044
www.editoraflutuante.com.br

Capa | Diagramação
Israel Dias de Oliveira

eBook

Catalogação na Publicação: Editora Casa Flutuante

Vozes emergentes: educação e questões étnico-raciais / Organização Neide Cristina


da Silva, Telma Cezar S. Martins e Cláudia Cristina de Oliveira. (eBook) — São Paulo:
Editora Casa Flutuante, 2016.

ISBN 978-85-5869-004-1

1. Educação 2. Escola e sociedade 3. Educação étnico-racial I. Título

CDU 37.06
CDD 306.43
370

Nota: dado o caráter interdisciplinar da coletânea, os textos publicados respeitam


normas, revisão e técnicas bibliográficas utilizadas por cada autor/autora.
Há tema do negro e há vida do negro. Como tema, o negro tem sido, entre
nós, objeto de escalpelação perpetrada por literatos e pelos chamados
‘antropólogos’ e ‘sociólogos’. Como vida ou realidade afetiva, o negro vem
assumindo o seu destino, vem se fazendo a si próprio, segundo lhe tem
permitido as condições particulares da sociedade brasileira. Mais uma coisa
é o negro-tema; outra, o negro-vida. O negro-tema é uma coisa examinada,
olhada vista, ora como ser mumificado, ora como ser curioso, ou de qualquer
modo com um risco, um traço da realidade nacional que chama atenção. O
negro-vida é, entretanto, algo que não se deixa imobilizar; é despistador,
protéico, multiforme, do qual, na verdade, não se pode dar versão definitiva,
pois é hoje o que não era ontem e será amanhã o que não é hoje.

Guerreiro Ramos
SUMÁRIO

PREFÁCIO........................................................................................9

YLÊ EDUCARE: GÊNESE................................................................13


Nascimento do Ylê-Educare: resistência na Academia................................................. 15
Telma Cezar S. Martins, Neide Cristina da Silva, Estevão André da Silva

ARTE E LITERATURA....................................................................35
Literatura infanto-juvenil brasileira no Ensino Básico do
Estado de São Paulo: uma abordagem das relações étnico-raciais............................... 37
Maurício Silva, Sandra Rosa Gomes dos Santos

Literatura infanto-juvenil africana e afro-brasileira: possibilidade


de reparar injustiças, eliminar discriminações e promover a inclusão cidadã............ 53
Mônica Abud Perez de Cerqueira Luz, Vanda Aparecida de Araújo

EDUCAÇÃO BÁSICA E PEDAGOGIAS ALTERNATIVAS............69


A efetivação da história e cultura afro-brasileiras e
africanas no ensino público e privado na cidade de São Paulo.................................... 71
Antonio Germano, Manuel Tavares

A educação para as relações étnico-raciais


e o currículo a partir da lei 10.639/2003. ....................................................................... 91
Djalma Lopes Góes, Jason Mafra

Moradores de ruas em São Paulo: uma vida marginal.................................................. 111


Fernando Leonel Henrique Simões de Paula, Neide Cristina da Silva
A aproximação da filosofia com a temática étnica negra.. ............................................ 129
Jorge Alves de Oliveira

EDUCAÇÃO E ENSINO SUPERIOR...............................................141


A expansão universitária brasileira: um processo de recolonização?.. ......................... 143
Cláudia Cristina de Oliveira, Francisca Mônica R. de Lima, Maria Lúcia da Silva

Da reprodução cultural à inclusão social do negro na universidade:


o caso da UNILAB.......................................................................................................... 165
Daniel Bocchini, Manuel Tavares

Políticas públicas inclusivas: justiça social na implantação de


políticas de ações afirmativas......................................................................................... 193
Evangelita Carvalho da Nóbrega, Maurício Silva
PREFÁCIO

Maurício Silva

F
alar sobre a interface entre a educação e as relações étnico-raciais
no Brasil é tratar não apenas de um dos temas mais complexos
que existem, mas também de um dos mais polêmicos e instigan-
tes. Não sem razão, tem-se optado, ultimamente, pela conjunção desses
dois conceitos, resultando no que se convencionou chamar, com muita
propriedade, de educação para as relações étnico-raciais, uma “vertente”
dos estudos da educação que privilegia esse amplo universo das relações
inter-raciais e interétnicas no contexto social brasileiro.
Não é outro o assunto destas Vozes emergentes: educação e questões
étnico-raciais, que têm como principal objetivo discutir, o mais amplo
e profundo possível, os possíveis enlaces - e, evidentemente, as tensões
deles resultantes - entre o vasto universo da educação e o não menos
dilatado mundo das relações étnico-raciais. Por isso mesmo, optou-se
por publicar este livro, que ora se apresenta ao público leitor, no âmbito
do grupo de pesquisa Educação para as relações étnico-raciais (EDUCA-
RE), sediado, há alguns anos, na Universidade Nove de Julho e congre-
gando vários pesquisadores, entre professores e alunos de doutorado,
mestrado e iniciação científica.

9
A história do grupo, por si só, merece uma consideração à parte: com
a aprovação da lei 10.639, de 2003, que tornou obrigatório o estudo de his-
tória e cultura africana e afro-brasileira no ensino fundamental e médio,
o interesse pelas relações étnico-raciais no âmbito da educação aumentou
exponencialmente, dando origem a diversas pesquisas, publicações e gru-
pos de estudos, entre os quais situa-se o referido EDUCARE, cujo objeti-
vo, na ocasião de sua constituição, foi relacionar temas próprios do uni-
verso cultural africano e afro-brasileiro à realidade do alunado do ensino
básico e superior, dentro da perspectiva de uma educação multicultural.
Hoje, esse objetivo permanece mais vivo do que nunca, mas enriquecido
de outras abordagens, diretrizes, atos e intenções...
Este livro é, portanto, mais um de seus vários resultados, entre teses
e dissertações, encontros e simpósios, palestras e artigos. Ele é testemu-
nha, além disso, de um projeto que, embora tímido em seu nascedouro,
deu e continua dando certo! Com certeza, é o primeiro de uma série de
publicações que deverá resultar do trabalho em conjunto que tem sido
feito no âmbito do referido grupo de pesquisa.
Como se poderá constatar, embora unidos por um mesmo princípio
norteador - a educação para as relações étnico-raciais - os temas são va-
riados, indo das questões relacionadas à literatura infantil e juvenil ao
ensino de cultura e história africana e afro-brasileira nas escolas pau-
listas, dos vínculos entre a educação para as relações étnico-raciais e o
currículo à abordagem dos moradores de ruas na cidade de São Paulo,
da filosofia de temática étnica e africana à inclusão do negro na univer-
sidade brasileira e muitos outros.
Trata-se, em resumo, de artigos que procuram refletir, de uma pers-
pectiva acadêmica, mas não sem fundamentá-la na experiência cotidiana
de cada autor, acerca do lugar que o negro ocupa na sociedade brasilei-
ra contemporânea, sobretudo num contexto em que as relações sociais
são mediadas por práticas educativas diversas, muitas delas excludentes.
Colocada nestes termos, tal perspectiva não prescinde, portanto, da con-
sideração de toda uma simbologia afro-brasileira, de um imaginário afri-
cano, de um aparato normativo baseado na equidade, de um conjunto de
valores herdados de uma tradição cultural afrocentrada, de um percurso
histórico marcado pela chaga do sistema escravagista... e tudo isso esta-

10
belece relação direta com uma espécie de estrutura mental afro-brasileira,
que Allan da Rosa – em seu livro sugestivamente intitulado Pedagoginga –
define como sendo “integrativa e não excludente, humanista e não tecni-
cista, polivalente, [que] visa à unidade dos elementos em sua diversidade
e não a sua fragmentação, abre espaço ao inesperado e ao desconhecido
que trazem novos arranjos e formas de entrosamento, caules novos de-
senvolvidos de raízes ancestrais” (ROSA, 2013, p. 60).
Talvez seja mesmo uma questão de arranjos e raízes, de caules e de
ancestralidade! Isso nos faz lembrar uma passagem do magistral texto
do angolano José Luandino Vieira, que, ao narrar um dos episódios de
seus celebrados contos, relembra-nos a necessidade de resistência – e,
certamente, de resiliência também! – diante dos infinitos percalços da
vida, na metáfora do cajueiro que morre e renasce:

“Sentem perto do fogo da fogueira ou na mesa de tábua de cai-


xote, em frente do candeeiro; deixem cair a cabeça no balcão da
quitanda, cheia do peso do vinho ou encham o peito de sal do mar
que vem no vento; pensem só uma vez, um momento, um pequeno
bocado, no cajueiro. Então, em vez de continuar descer no caminho
da raiz à procura do princípio, deixem o pensamento correr no fim,
no fruto, que é outro princípio e vão dar encontro aí com a casta-
nha, ela já rasgou a pele seca e escura e as metades verdes abrem
como um feijão e um pequeno pau está nascer debaixo da terra
com beijos da chuva. O fio da vida não foi partido. Mais ainda: se
querem outra vez voltar no fundo da terra pelo caminho da raiz, na
vossa cabeça vai aparecer a castanha antiga, mãe escondida desse
pau de cajus que derrubaram mas filha enterrada doutro pau. Nes-
sa hora o trabalho tem de ser o mesmo: derrubar outro cajueiro e
outro e outro... É assim o fio da vida. Mas as pessoas que lhe vivem
não podem ainda fugir sempre para trás, derrubando os cajueiros
todos; nem correr sempre muito já na frente, fazendo nascer mais
paus de cajus. É preciso dizer um princípio que se escolhe: costuma
se começar, para ser mais fácil, na raiz dos paus, na raiz das coisas,
na raiz dos casos, das conversas” (VIEIRA, 1982, p. 54).

Acreditamos ser a educação para as relações étnico-raciais não o úni-


co, mas com certeza um dos mais importantes meios de transformação da
sociedade, com vista a uma convivência pluriétnica que respeite valores

11
coletivos, mas principalmente que favoreça o empoderamento do negro e
incentive a agência afrodescendente. Faz-se necessário, portanto, realizar
escolhas, definir valores, estabelecer prioridades, pois – como afirma o
economista e sociólogo africano Célestin Monga, em seu Negritude e Nii-
lismo – “as prioridades que temos determinam a ordem dos valores que
escolhemos” (MONGA, 2010, p. 111).

Referências

MONGA, Célestin. Negritude e Niilismo. São Paulo, Martins Fontes, 2010.

ROSA, Allan da. Pedagoginga, autonomia e mocambagem. Rio de Janeiro,


Aeroplano, 2013.

VIEIRA, José Luandino. Luuanda. São Paulo, Ática, 1982.

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YLÊ EDUCARE: GÊNESE
NASCIMENTO DO YLÊ-EDUCARE:
RESISTÊNCIA NA ACADEMIA

Telma Cezar S. Martins1


Neide Cristina da Silva2
Estevão André da Silva3

Introdução

Este texto é resultado dos registros e relatórios apresentados ao


grupo de pesquisa YLÊ EDUCARE, do Programa de Pós-Graduação
em Educação da Universidade Nove de Julho - UNINOVE, no final de
2015. Nossa intenção, além de documentar os encaminhamentos iniciais
do grupo, é dar visibilidade ao tema Educação para as Relações Étnico-
raciais que, por ainda ser extremamente dispendioso para a sociedade
brasileira, propõe novos desafios para a academia. Um desses desafios é
o acolhimento de pesquisadores/as que dedicam seus estudos e pesquisas

1  Doutoranda em Educação pela UNINOVE, pesquisadora sobre o branqueamento na infância


da criança negra. Pedagoga, Mestre em Educação pela UMESP. telma.cezar@uol.com.br

2  Doutoranda em Educação pela UNINOVE, Profa. de História. Pesquisadora sobre questões


étnico-raciais e educação. neidesilva87@hotmail.com

3 Advogado, formado em direito pela UNESP-Franca, Membro da Comissão da Igualdade


Racial da OAB/SP, Presidente do Clã da Negritude, Consultor  Jurídico  em Crimes Raciais.
estevaoas@hotmail.com

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TELMA CEZAR S. MARTINS, NEIDE CRISTINA DA SILVA, ESTEVÃO ANDRÉ DA SILVA

a temas relacionados à população negra, o que tem gerado a necessidade


de abertura, por parte da academia, para a implementação de grupos de
pesquisa para esse fim. Nesse sentido, apresentamos um breve histórico
do YLÊ EDUCARE.
No início de 2014, estudantes do curso de Mestrado e Doutorado
do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Nove
de Julho (UNINOVE), ao perceberem o grande número de pesquisa-
dores/as ingressantes no Programa de Pós-Graduação em Educação
(PPGE) e no Programa de Mestrado em Gestão e Práticas Educacio-
nais (PROGEPE), com estudos relacionados à temática da população
negra e à Lei 10.639/03, manifestaram interesse em organizar um gru-
po de estudos e pesquisas que tivesse como eixo principal as questões
étnico-raciais.
Em abril deste mesmo ano, pesquisadores/as4 da UNINOVE e con-
vidados de outras instituições, coordenados pelo Prof. Dr. Mauricio Sil-
va, organizaram o primeiro encontro, motivados pela leitura e discussão
do livro: Ações Afirmativas e combate ao racismo nas Américas. 5 Desse
encontro, surgiu a proposta do V Encontro de Pesquisa Discente dos
Programas de Pós-Graduação em Educação UNINOVE & I Encontro de
Pesquisa em Educação, Relações Étnico-raciais e Culturas. Em Novem-
bro de 2014, iniciaram-se os preparativos e, nos dias 13 e 14 de Maio
de 2015, foram realizados os dois encontros concomitantes. A avaliação
final desses encontros foi positiva.
Registrou-se a presença de 360 participantes, com 63 apresentações
de pôsteres, 33 comunicações orais, 07 Oficinas e 03 Mesas de Debate
sobre temáticas voltadas para a Educação e Diversidade desde a Educa-
ção Básica ao Ensino Superior.

4 Andreia Fernandes (UMESP/FAZP), Antonio Germano (UNINOVE), Cláudia Oliveira


(UNINOVE), Cláudio Reginato (USP), Daniel Bocchini (UNINOVE), Evangelita Nóbrega
(UNINOVE), José Ademaques (UESC), Maria Lúcia Silva (UNINOVE), Maurício Silva
(UNINOVE), Neide Silva (UNINOVE), Telma Martins (UNINOVE), Wendel Chirstal
(UNINOVE/MACKENZIE).

5  SANTOS, Sales Augusto dos (org.). Ações Afirmativas e combate ao racismo nas Américas.
Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade, 2005. 400 p. (Coleção Educação para Todos).

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NASCIMENTO DO YLÊ-EDUCARE: RESISTÊNCIA NA ACADEMIA

A partir desse movimento acadêmico no espaço da UNINOVE, provo-


cado pelo I Encontro de Pesquisa em Educação, Relações étnico-raciais e
Culturas, ficou reforçada a importância da oficialização do Grupo de Estu-
do e Pesquisa: Educação para as Relações Étnico-raciais – YLÊ EDUCARE.
Em meio aos processos de organização do YLÊ EDUCARE, foi criado
um site6, onde encontramos o texto referente à apresentação do grupo:

YLÊ EDUCARE nasceu do esforço colaborativo entre pesquisado-


res e pesquisadoras dos Programas de Pós-Graduação em Educação
da UNINOVE, engajados/as com a discussão acerca das relações
étnicas e raciais que permeiam a formação do povo brasileiro, as-
sim como sua relação com os povos da diáspora africana. Trata-se
de grupo sem fins lucrativos, cuja força motriz é a busca de novos
caminhos pedagógicos, a fim de compreender as complexas matri-
zes étnicas de que somos tributários.

O passo seguinte foi propor que, na programação dos Seminários de


Pesquisa da linha Educação Popular e Culturas (LIPEPCULT), fosse rea-
lizada uma atividade relacionada ao Dia da Consciência Negra (20 de no-
vembro). A sugestão foi aprovada pelo grupo de estudantes e professores
responsáveis pelos Seminários e ficou agendado para o dia 12 de novembro
2015 o I Encontro YLÊ EDUCARE, com o tema: A estética afro-brasileira
na construção da cidadania.
Por entender a relevância de a academia oferecer espaço, incentivo e
acolhimento de pesquisadores/as na referida temática, propusemo-nos,
neste artigo, apresentar o histórico da formação do grupo de estudo e pes-
quisa, uma de suas propostas e resultados observados. No entanto, conside-
ramos importante explicitar a razão de a primeira programação do grupo
ocorrer em comemoração ao Dia da Consciência Negra.

O porquê de comemorar o Dia da Consciência Negra

A essência do Dia da Consciência Negra está longe de ser uma data


para festas e celebrações. Esse dia é um marco para representar a resistência

6  yle-educare.wix.com/educare

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TELMA CEZAR S. MARTINS, NEIDE CRISTINA DA SILVA, ESTEVÃO ANDRÉ DA SILVA

de um povo que vem trazendo na sua história as consequências de uma


sociedade excludente, que afirmou, abertamente, durante a Colônia e
Império, que o povo negro era inferior ao outro, que se julgava branco e
superior, consolidando o conceito de superioridade racial, dando origem a
formulações ideológicas raciais sem base científica.
No período da República, apesar de o negro7 não ser mais consi-
derado um bem semovente8, o racismo persistiu e institucionalizou-se
com operações anônimas de discriminação em organizações, profis-
sões e sociedades inteiras, que atuam na linha racista sem admiti-lo
(CASHMORE, 2000). No início da República, no primeiro período pós-
-abolição da escravidão, houve um recuo nas condições socioeconômi-
ca dos negros livres e recém-libertos, que só conseguiam trabalho em
ocupações humildes e mal remuneradas, não podendo competir com o
imigrante europeu que recebia a atenção do Estado e da sociedade que
queriam branquear a população.
O século XX foi marcado por grandes lutas da população negra,
que se organizou, fundando jornais como Clarim da Alvorada e o Ge-
tulino; movimentos negros de resistência como Frente Negra, o Teatro
Experimental do Negro, o Centro de Estudos da Cultura e Arte Negra,
Federação das Entidades Afro-brasileiras do Estado de São Paulo entre
outros; mobilizando a sociedade e aprovando leis.
O primeiro diploma legal a cuidar dos crimes resultantes de discri-
minação e preconceito racial foi a Lei 1.390/51, mais conhecida como
Lei Afonso Arinos. Malgrado tenha sido a primeira lei em combate ao

7  Negro: Denominação genérica do indivíduo de pele escura e cabelo encarapinhado e, em


especial, dos habitantes da África profunda e seus descendentes; descendentes de africano em
qualquer grau de mestiçagem, desde que essa origem possa ser identificada pela aparência
ou assumida pelo próprio individuo (LOPES, 2006, p. 119). Na época colonial, “negro” era
sinônimo de escravo [...] Hoje, no Brasil, as pessoas usam a expressão “negro” para se referirem
aos descendentes de africanos em qualquer grau de mestiçagem. Apenas para fins de estatística é
que usamos as classificações “preto”, “pardo” etc. Mas o termo que nos engloba a todos é “negro”
(LOPES, 2007, p. 84). Comumente observa-se o uso dos termos afro-brasileiro e afrodescendente
para designar o negro no Brasil; no entanto, optamos pela utilização do termo “negro”, por ser
o mais utilizado nos movimentos de resistência ao racismo e de valorização da cultura negra.

8  Bens móveis que possuem movimento próprio, tal como animais selvagens, domésticos ou
domesticados. In: Dicionário Jurídico Direito Net (2015).

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NASCIMENTO DO YLÊ-EDUCARE: RESISTÊNCIA NA ACADEMIA

racismo e a discriminação, o texto deixou a desejar por descrever as


práticas de racismo apenas como contravenção penal.
Ocorre que os crimes raciais, na referida lei, eram enquadrados
como simples contravenções penais e suas penas eram apenas simbó-
licas, penas brandas que não chegavam sequer a um ano de prisão, na
maioria das vezes, sendo estipulada apenas uma multa.
Apesar de sua importante contribuição social e jurídica naquele ce-
nário de muito racismo e discriminação, vale ressaltar que na época
estava em destaque a ideia da “democracia racial brasileira”, que teve, no
Brasil, como um de seus principais idealizadores, Gilberto Freyre. Neste
contexto, a Lei Afonso Arinos ajudou a solapar o famoso mito.
A Lei 7.437/85 incluiu no antigo texto da Lei 1.390/51, que prescre-
via a prática do crime de racismo apenas ao preconceito de raça ou cor,
o elemento sexo e estado civil; contudo, continuou pecando ao deixar a
prática de atos resultantes de preconceitos de raça ou de cor, de sexo ou
de estado civil, apenas como contravenção penal.
No ano de 1989, foi promulgada a Lei 7.716/89. Diferente das ante-
riores, esta lei previa a prática de atos discriminatórios e racistas como
crime. Mesmo com as deficiências que esta lei apresentava, houve im-
portantes avanços conceituais em comparação às legislações anteriores.
A partir da Lei 7.716/89, a prática de racismo deixou de ser uma
mera contravenção penal para ser crime; a pena, que até então se ba-
seava apenas em multa e prisão simples, na nova lei, passou a ser mais
dura, de dois a cinco anos de prisão e multa.
A nova lei incluiu aos textos anteriores novos tipos penais, isto é,
passou a abranger, no rol de atos discriminatórios, as práticas de atos
resultantes de preconceitos de raça ou de cor - da Lei 1.390/51 – e os
atos discriminatórios por motivo de sexo ou de estado civil - da Lei
7.437/85. Dessa forma, a Lei 7.716/89 teve por principal finalidade ele-
var as condutas discriminatórias e racistas ao patamar de crimes, sujei-
tos à pena de reclusão.
Mesmo com todas essas evoluções legais do crime de racismo, po-
demos perceber uma aplicação mitigada da lei, pois apesar de ocorrer
crimes de racismo e discriminação, a lei deixava diversas brechas para
que autores e autoras dos crimes possam se safar de punição.

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TELMA CEZAR S. MARTINS, NEIDE CRISTINA DA SILVA, ESTEVÃO ANDRÉ DA SILVA

Primeiro, pela dificuldade em chegar a uma definição concreta do


conceito de raça e cor. Segundo, para se tipificar o crime de racismo é
necessário que o/a autor/a cometa o tipo descrito na lei: “impedir, obs-
tar o acesso, negar e recusar”; e nesse sentido, as condutas descritas pelo
legislador são bem limitadas (GUIMARÃES, 2004).
Onde pode-se notar o Brasil copiou o texto estadunidense, pois nos
E.U.A, mais precisamente nas cidades onde ocorreu a segregação dos
negros, era muito comum a prática de racismo na forma de impedir,
obstar acesso, negar e recusar. Entretanto, o Brasil sempre vivenciou
outra forma de discriminação, o racismo cordial, os brasileiros sempre
tiveram muita destreza em dissimular seu racismo com brincadeiras e
elogios. Por essas razões, a Lei 7.716/89 não logrou êxito em seu deside-
rato (GUIMARÃES, 2004).
Nesse diapasão, foi vista a necessidade de aperfeiçoar a lei de com-
bate ao racismo; porém, sempre com muita timidez, o legislador, pres-
sionado pelos movimentos sociais, resolveu por meio da Lei 9.459/97
alterar o artigo 1º e 20º, da lei nº 7.716/89. O artigo 1º, além dos
crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, acres-
centou a “etnia, religião ou procedência nacional”. O artigo 20º passou
a ter a seguinte redação: “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou
preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Pena:
reclusão de um a três anos e multa”.
Além disso, o legislador acrescentou o parágrafo 3º ao art. 140 do
Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal Brasilei-
ro), que prevê o crime de injúria racial motivada por raça, cor, etnia,
religião ou origem9: “Art. 140(...) “§ 3º Se a injúria consiste na utilização
de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião ou origem: Pena: re-
clusão de um a três anos e multa”.
Com essa alteração, tornou-se possível a punibilidade do crime de
racismo na figura da injúria racial, haja vista que o crime de injúria não

9  Em 2003 foi acrescentada nova redação nesse parágrafo pela Lei 10.741, ampliando para
população idosa e para deficientes, assim, a nova redação ficou: “[...] se a injúria consiste na
utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa
idosa ou portadora de deficiência. ”

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NASCIMENTO DO YLÊ-EDUCARE: RESISTÊNCIA NA ACADEMIA

pode ser caracterizado na forma dolosa, mas, sobretudo, porque não


mais se utiliza as velhas condutas de impedir, obstar o acesso, negar e
recusar, quase nunca ocorrida no Brasil e passou a punir a intenção de
ofender, frequentemente usada nas piadas e falsos elogios.
A prática do racismo prejudica não apenas o Brasil, mas o mundo todo;
assim, diversos órgãos internacionais, por meio de tratados e convenções
têm-se posicionado no sentido de extirpar esta prática das sociedades.
A saber, o Brasil assinou diversos tratados internacionais não somente
de combate ao racismo, mas fundamentalmente de promoção de políticas de
incentivo à população vítima da discriminação, também conhecidas como
políticas de discriminação positiva ou ações afirmativas.
Nessa esteira, foram implantadas: a Lei nº. 3.708, no âmbito estadual e,
posteriormente, a Lei 12.711, de âmbito federal, a favor das políticas afirma-
tivas nas universidades; a Lei 12.990/14, que destinou um quinto das vagas
de concursos públicos para negros e pardos; a Lei 10.639/03 que estabeleceu
a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Africana e Afro-Brasileira
na Educação Básica; a Lei 9.125/95 que, no artigo 1.º, instituiu o ano de 1995
como o “Ano Zumbi dos Palmares”, destinado a homenagear o tricentenário
da morte do líder quilombola; e o artigo 2.º, estabeleceu o dia 20 de novem-
bro como data nacional, oficializando-a como o Dia da Consciência Negra.
Quanto ao dia 20 de novembro, embora se trate de uma data comemo-
rativa, compreende-se que as ações de conscientização não podem se esta-
belecer apenas neste dia, mas firmar-se no cotidiano de homens e mulheres
negros/as e não negros/as.
Um dos caminhos para o desenvolvimento de uma consciência negra
é possibilitar a reflexão de estudantes e pesquisadores/as sobre o por-
quê de, após 128 anos da abolição, ainda vivenciarmos um alto índice
de violência, de exclusão educacional e, consequentemente, do mercado
de trabalho da população negra, comparado aos índices relacionados à
população não negra10.
Conscientizar, portanto, é compreender que o Brasil precisa de políti-
cas públicas com recorte racial, visto que, a cada dia, a sociedade brasileira

10 Índices relacionados à população negra http://www.ipea.gov.br/igualdaderacial/index.


php?option=com_content&view=article&id=711 <30/04/2016>

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TELMA CEZAR S. MARTINS, NEIDE CRISTINA DA SILVA, ESTEVÃO ANDRÉ DA SILVA

é alimentada pelo mito da democracia racial e por reproduções de atos


racistas. É criar oportunidades para que a população negra tenha sua iden-
tidade valorizada a partir do seu corpo, que traz características específicas
da sua raça/etnia.
Conscientizar é ter profissionais da educação sensibilizados e com-
prometidos com a temática do racismo na escola, não se silenciando
diante de ações preconceituosas e racistas. É sair do espaço comum do
evento organizado no dia 20 de novembro, que apresenta um estereóti-
po do povo negro - como aquele que apenas samba, joga capoeira e se
alimenta de feijoada - e ir para o espaço mais amplo da valorização da
Cultura Africana e Afro-Brasileira, que têm importantes contribuições no
campo da Literatura, da Arte, da Religião e outras áreas do conhecimento.
E, como afirma Freire, conscientização é a superação da esfera espon-
tânea de abordagem da realidade, chegando-se a uma postura crítica. É um
teste de realidade, no qual esta se des-vela e não pode existir fora da práxis. O
autor afirma “que por isso mesmo, a conscientização é um compromisso his-
tórico e [...] implica que os homens assumam o papel de sujeitos que fazem e
refazem o mundo” (2008, p. 30).
Esse tempo de conscientização requer, no mínimo, dois movimentos, um
para o interior da academia, por meio de estudos e pesquisas sobre os temas
relacionados à população negra, e outro, em direção aos sujeitos negros e
negras, oportunizando que sejam, de fato, protagonistas da sua história, para
que, simultaneamente, os resultados destas ações afirmativas atinjam o cerne
da sociedade e contribuam com a humanização das relações étnico-raciais.
Com base neste percurso histórico, o I Encontro promovido pelo Grupo
de Estudos e Pesquisas YLÊ EDUCARE, oportunizou a reflexão e o debate
sobre as condições de exclusão que a população negra brasileira ainda vi-
vencia e suas conquistas a partir das políticas públicas de recorte racial, bem
como, contribuiu, por meio das apresentações culturais, para a visibilidade e
valorização da Cultura Afro-Brasileira.

O I Encontro YLÊ EDUCARE

A intenção do grupo de Estudos e Pesquisa das Relações Étnico-


-racial da UNINOVE - YLÊ EDUCARE - não foi promover apenas um

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NASCIMENTO DO YLÊ-EDUCARE: RESISTÊNCIA NA ACADEMIA

evento que celebre o Dia da Consciência Negra e sim criar mais um


espaço para reflexão e debate sobre as condições excludentes vivencia-
das pela população negra brasileira; condições estas ligadas ao acesso e
permanência na educação e ao mercado de trabalho, bem como, o alto
índice de violência e incontáveis experiências preconceituosas e racistas
que negros e negras vêm vivenciando ao longo da história.
Nesse sentido, para co-memorar o Dia da Consciência Negra, o gru-
po propôs o I Encontro YLÊ EDUCARE11, que constou da seguinte
programação:

Quadro1: Cronograma

09h00 Credenciamento
09h30 Palavra de Abertura: Prof. Dr. Manuel Tavares - Docente
do programa de pós-graduação em Educação da UNINO-
VE – PPGE/PROGEPE
09h45 Apresentação Cultural: O negro e sua influência cultural
no universo chamado Brasil
Convidados: Alunos/as da Escola Estadual Salvador Liga-
bue.
10h00- Mesa-redonda 1: Cinedebate sobre a representação do
-12h00 negro no cinema
Convidados: Renato Candido de Lima (cineasta, professor
de direção, roteiro e fotografia); Luis Navarro (ator).
Ementa: O debate tem como objetivo abordar a produção
de imagens cinematográficas do negro, com ênfase no
Brasil, ao longo da sua história, refletindo sobre o caráter
ideológico deste processo e as consequências do mesmo
nos processos identitários.
Mediador: Antonio Germano (mestrando do PPGE -
UNINOVE)
14h00 Apresentação Cultural: Nascimento de um Guerreiro
Grupo de Dança UNINOVE

11  Realizado em 12 de novembro de 2015, no Auditório da UNINOVE, Prédio da Graduação,


Campus Barra Funda - SP.

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TELMA CEZAR S. MARTINS, NEIDE CRISTINA DA SILVA, ESTEVÃO ANDRÉ DA SILVA

14h10- Mesa-Redonda 2: Estética Afro-Brasileira na construção


-16h30 da cidadania
Convidados: Vanderlei Victorino (coreógrafo, militante
da entidade Palmarino, foi vinculado a Seppir de Jundiaí);
Janaina Leslão (psicóloga, escritora, discute questões de
gênero e raça); Oswaldo Faustino (jornalista, escritor, 
locutor do programa sociocultural de web-rádio intitulado
Rádio Tambor).

Ementa: Abordar as questões étnico-raciais e de gêne-


ro por meio de produções literárias e políticas públicas,
buscando melhor compreensão dos sujeitos a questões de
gênero e raça permeiam suas histórias e sua atuação na
sociedade.
Mediadora: Francisca Mônica Rodrigues de Lima (mes-
tranda do PPGE -UNINOVE)
17h Apresentação Cultural:
- Fórum Hip-Hop
- Afrodancehall – Camila Cezar Martins
- Performace – Intolerância Religiosa – Sirlene Santos

Fonte: autores, 2015.

Após a programação, ao verificarmos os resultados, avaliamos posi-


tivamente o I Encontro do YLÊ EDUCARE, por promover e valorizar a
cultura afro-brasileira por meio das apresentações artísticas, e também
por trazer um debate conceitual e aprofundado sobre a presença negra
na mídia e outras discussões sobre gênero, raça e políticas públicas para
a implementação de ações afirmativas.

Destacamos da Palavra de Abertura 12, proferida pelo prof. Dr. Ma-


noel Tavares, a denúncia em relação à produção e reprodução do conhe-
cimento hegemônico e a não valorização das estéticas afro-brasileiras

12  Palestra de Abertura do I Encontro YLÊ EDUCARE, proferida pelo professor Dr. Manoel
Tavares, em 12 de novembro de 2015, às 9h30, no Auditório da UNINOVE, Prédio da Graduação,
Campus Barra Funda - SP.

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NASCIMENTO DO YLÊ-EDUCARE: RESISTÊNCIA NA ACADEMIA

como consequência da história da população negra brasileira e os pro-


cessos colonizadores. Assim, Tavares afirma:

A dificuldade de reconhecimento acadêmico e social de outras pro-


postas epistemológicas, axiológicas e estéticas em conflito com as
propostas de carácter eurocêntrico, continua a ser uma realidade, o
que é paradoxal, tendo em consideração que a sociedade brasileira
é constituída por diferentes grupos étnico-raciais que a caracte-
rizam em termos culturais, como uma das mais ricas do mundo.
Todavia, a sua história é marcada por desigualdades e discrimina-
ções, especificamente contra negros e indígenas, impedindo, desta
forma,  seu pleno desenvolvimento econômico, político e social e
negando a estes povos o direito à participação social e à construção
da cidadania.

No entanto, Tavares caminha, também, para o anúncio de algumas


“mudanças no horizonte”, enquanto possibilidades de transformação
dessa realidade. Ao dar sequência em seu discurso, afirmou que:

A força e intervenção das culturas que foram negadas e silenciadas


tendem a aumentar cada vez mais no presente, formas de interven-
ção diversas que contribuem, indiscutivelmente, para a conscien-
tização e para uma perspectiva cada vez mais crítica em relação a
todas as formas de etnocentrismo, de racismo e de xenofobia.

Assim, negros e não negros, somos todos/as, chamados/as a con-


tinuar no caminho da resistência, como diz Tavares, ao finalizar seu
discurso: caminho de “resistência, persistência, afirmação e de revitali-
zação da cultura afro-brasileira”.
A apresentação dos convidados da Mesa 1 – Cinedebate sobre a re-
presentação do negro no cinema, contou com a presença, aproximada de
140 pessoas, maioria alunos/as do curso de Pedagogia da UNINOVE,
tendo a participação incentivada pela profa. Dra. Mônica Todaro e prof.
Marcelo Luiz da Costa. A Mesa foi composta pelo cineasta Renato Can-
dido de Lima (também professor de direção, roteiro e fotografia) e pelo
ator Luís Navarro, que narraram um pouco de suas experiências pro-
fissionais e desafios que o ator negro enfrenta para conseguir um papel

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TELMA CEZAR S. MARTINS, NEIDE CRISTINA DA SILVA, ESTEVÃO ANDRÉ DA SILVA

no cinema, nas telenovelas e na mídia em geral. Após a exposição dos


convidados, foi apresentado um curta-metragem valorizando a atuação
do ator Grande Otelo, símbolo da presença negra no cinema brasileiro.
Na sequência, o debate foi aquecido por comentários e perguntas que
contribuíram para a reflexão sobre o espaço que negros/as têm ocupado
na mídia em geral, quais são os/as atuais protagonistas negros/as que es-
tão na mídia, os caminhos que percorreram para conseguir este espaço
e o quanto hoje eles/as têm (ou não) utilizado este espaço para reprodu-
ção dos estereótipos em relação à população negra e à manutenção dos
processos de branqueamento.
Uma das questões debatidas estava relacionada ao programa “O Sexo
e as negas”13 que, no período em que estava no ar, foi alvo de muitas
críticas dos/as militantes em defesa da população negra. A resposta do
ator Luis Navarro, que na intenção de justificar a necessidade de homens
e mulheres negros/as ao assumirem papéis que reproduzem o precon-
ceito racial e fortalecem os estereótipos para com população negra (em
especial, com as mulheres negras), acabou gerando a necessidade de um
debate maior sobre esse tema. Concluímos que, enquanto educadores/as,
não podemos utilizar a mídia (filmes, telenovelas, propagandas, outros
roteiros) de forma acrítica, ou seja, não é porque o elenco tem atores/as
negros/as (que venceram grandes desafios para chegar aonde chegaram)
que vamos reproduzir seus textos sem fazer as devidas considerações,
alertas e apontamentos dos estereótipos que contribuem para a manuten-
ção do lugar (pré) determinado a população negra. Lembramos que vive-
mos numa sociedade, onde o ideal do branqueamento ainda é fortemente
presente; por isso, o compromisso da educação é motivar a consciência
crítica dos/das alunos/as, promovendo uma educação problematizadora,
que questiona os processos hegemônicos e busca a transformação social.
A Mesa 2 - Estética Afro-Brasileira na construção da cidadania, con-
tou com a presença de, aproximadamente, 35 pessoas, (maioria alunos/

13  Sexo e as Negas é uma série de televisão produzida pela Rede Globo, exibida em 13 episódios,
no período de setembro a dezembro de 2014. Programa alvo de muitas críticas por reproduzir
cenas de racismo, e vincular a população negra à pobreza, baixa qualificação e sexualidade
exacerbada.

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NASCIMENTO DO YLÊ-EDUCARE: RESISTÊNCIA NA ACADEMIA

as do programa de pós-graduação da UNINOVE). O debate foi motivado


por temas relacionados à raça e gênero: a exposição da psicóloga e escri-
tora Janaina Leslão, autora do livro “A princesa e a costureira”14 abordou
questões de gênero, o que auxiliou nas discussões sobre diversidade e a
luta dos direitos das pessoas LGBT15. As apresentações de Vanderlei Vic-
torino e Oswaldo Faustino perpassaram por temas como: as conquistas
dos movimentos negros, as políticas públicas de recorte racial, processos
de branqueamento, qual o lugar pré-determinado à pessoa negra na so-
ciedade brasileira e ações afirmativas.
As questões que nortearam o debate seguiram na direção da im-
portância do não silenciamento diante dos processos racistas e discri-
minatórios, seja pelo viés raça ou gênero. Muitas vezes, temos a ten-
dência de pensar que os temas raça e gênero já estão vencidos e que
não precisamos aprofundar as discussões e pesquisas nesta perspectiva.
No entanto, embora as exposições dos convidados tenham sido repeti-
tivas, no sentido de que a maioria dos/as participantes/ pesquisadores/
as ali presentes tinha conhecimento do tema, é importante o retomar
histórico, pois, em meio à academia, a resistência ainda é grande, e nos
deparamos também com educadores/as, pesquisadores/as que não co-
nhecem as demandas da população negra e nem atuam na educação, a
fim de minimizá-las. Fazemos esta afirmativa, a partir da observação da
reação de espanto de alguns participantes diante da temática e denún-
cias expostas nesta Mesa.
As Palavras de Encerramento foram construídas a partir de uma das
provocações que o convidado Vanderley Victorino realizou, ao mostrar
uma imagem que denuncia as críticas ao programa do governo brasilei-
ro, referente a financiamentos sociais. Nessa imagem, uma criança diz:
“Você usa de uma bolsa para fazer pesquisa sobre mim e critica a bolsa
família que me sustenta.” A crítica é sobre a relação pesquisador e sujei-
to da pesquisa, e o (não) retorno que se dá ao último. Neste sentido, o
doutorando Jorge Oliveira, em seu discurso de encerramento, expressou
alguns dos desafios que cercam os/as pesquisadores/as:

14  LESLÃO, Janaina. A princesa e a costureira. Rio de Janeiro: Metanoia Editora. 2015.

15  Sigla utilizada para se referir a lésbicas, gays, bissexuais e transexuais.

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TELMA CEZAR S. MARTINS, NEIDE CRISTINA DA SILVA, ESTEVÃO ANDRÉ DA SILVA

[...] a) Nos manter na pesquisa, pois somos profissionais da edu-


cação e, na maioria das vezes, trabalhamos em mais que uma ins-
tituição, dividindo o tempo entre as atividades de sustento de vida
com as atividades de pesquisa. b) Fazermos com que nossa pesqui-
sa, sobre as relações étnico-raciais sejam reconhecidas no mesmo
status das demais pesquisas. c) Que a pesquisa se efetive na base
e beneficie os/as sujeitos da pesquisa (população negra). Assim,
nossa responsabilidade é garantir o espaço criado na Instituição e
ampliá-lo como DIREITO - cidadania e justiça.

Quanto às Apresentações Culturais, entrelaçadas na programação,


ressaltou-se que, para além da compreensão de entretenimento, a Arte
é um caminho de acesso a diferentes expressões étnico-culturais. E, ao
falar em cultura, concorda-se com Canclini, ao afirmar que

A cultura não é um suplemento decorativo, entretenimento domi-


nical, atividade de ócio ou recreio espiritual para trabalhadores
cansados, mas algo constitutivo das interações cotidianas, à me-
dida que no trabalho, no transporte e nos demais movimentos co-
muns se desenvolvem processos de  significação (2005. p.45).

Entende-se que a educação tem a função de mediar Arte-Cultura


e, no caso, contribuir para que a Arte e as Culturas Africanas e Afro-
-Brasileiras sejam resignificadas no cotidiano de homens e mulheres
negros/as ou não.
Concluiu-se o olhar para o I Encontro YLÊ EDUCARE, ressaltando
a relevância desses espaços de troca de experiências, de aproximação
entre teoria e prática, de visibilidade das diversas temáticas que envol-
vem discussões sobre educação e diversidade, identidades e estéticas
afro-brasileiras na construção da cidadania.

Considerações finais

O tema do I Encontro YLÊ EDUCARE foi proposto a partir das


discussões realizadas com o próprio grupo de estudo que, na ocasião
partiu de algumas sugestões:

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NASCIMENTO DO YLÊ-EDUCARE: RESISTÊNCIA NA ACADEMIA

a. Neoliberalismo e Educação para as questões étnico-raciais (cf. suges-


tão do prof. Dr. Mauricio Silva), visto que este foi o tema dos Seminários de
Pesquisa, da linha de Pesquisa Educação Popular e Culturas (LIPEPCULT).
b. A questão do direito e da cidadania na formação dos professores à
luz do Plano Nacional de Educação - PNE (2014-2024) e a Lei 10.639/03
(cf. sugestão do doutorando Jorge Alves de Oliveira);
c. Educação Étnico-racial e Formação Docente (cf. sugestão da dou-
toranda Maria Lucia da Silva), pensando na práxis pedagógica ou troca de
saberes. Abordaram-se questões culturais, análise de material didático (cf.
sugestão da mestranda Francisca Mônica Rodrigues de Lima).
Entendendo que algumas discussões sobre o PNE e a Lei 10.639/03
foram garantidas nas apresentações do X Colóquio de Pesquisa da UNI-
NOVE16, sobre Educação e Neoliberalismo nos encontros dos Seminários
de Pesquisa da linha LIPEPCULT, o grupo decidiu pelo tema: “A dimensão
estética Afro-Brasileira na construção da cidadania”, o que, de imediato,
sofreu algumas intervenções, conforme provocação feita pelo prof. Dr. Ja-
son Mafra17:

Acho que poder-se-ia tirar a palavra “dimensão” do título do even-


to. Ficaria então “Estética Afro-Brasileira na construção da cida-
dania”. Primeiro porque a categoria “estética” já se refere a uma di-
mensão. Segundo porque a economia nos termos ajuda a expressar
melhor as ideias. E vejam: não existe “a” estética, já que há várias
expressões culturais afro-brasileiras.

Como grupo, somos provocados a pensar de que estética se fala; po-


rém, no momento, a discussão foi colocada em stand by e, num caminhar
individualizado, procurou-se trazer algumas considerações, na intenção
de iniciar uma reflexão sobre estética (s) Afro-Brasileira (s).
Ao abordar a dimensão estética, entende-se que se trata de um termo
que está atrelado a outras dimensões, tais como: política, econômica,

16  X Colóquio de Pesquisa sobre Instituições Escolares e Plano Nacional de Educação: desafios
e perspectivas. 29 e 30 de outubro de 2015- UNINOVE.

17 Texto extraído do e-mail-resposta enviado pelo professor Jason Mafra, coordenador do


PROGEP ao grupo YLÊ EDUCARE, em 20 de outubro de 2015.

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TELMA CEZAR S. MARTINS, NEIDE CRISTINA DA SILVA, ESTEVÃO ANDRÉ DA SILVA

religiosa, cultural e étnica, indicando a importância de ações que afirmem


e valorizem os padrões estéticos afro-brasileiros. Para Nilma Gomes (2008)

[...] as categorias estéticas que conhecemos não são construídas no


vazio, mas na experiência sensível do homem com o mundo, loca-
lizadas no tempo e no espaço e mediadas pela cultura. A sua exis-
tência nas mais diversas culturas nos mostra que até mesmo as ati-
vidades consideradas mais racionais desempenhadas pelo homem
e pela mulher são perpassadas pelo sentimento estético (p.287).

Neste sentido, sabe-se que, historicamente, foi negada à população ne-


gra brasileira a construção de uma estética a partir das culturas africanas;
em contrapartida, houve a imposição e valorização de um sentimento es-
tético a partir da cultura hegemônica, eurocêntrica, advinda dos processos
colonizadores que, atualmente, são reproduzidas por mentes colonizadas.
Quando se pensa nas concepções da palavra estética, se é conduzido
a organizar ou sistematizar conceitos ligados ao belo, à beleza e, por con-
sequência, determinar o que está no campo da feiura. No entanto, numa
sociedade como a brasileira, que se constituiu num padrão de beleza euro-
cêntrico, e não afrocêntrico é emergente, a implantação de projetos socio-
educacionais que valorizem as estéticas afro-brasileiras. Entende-se que o
desenvolvimento desses projetos é um caminho para a construção de uma
cidadania que, de fato, respeita a diversidade humana, valoriza as culturas
de raiz africana e a beleza negra.
Concordando com Dávila, quando afirma que a “brancura pode ser
considerada como ausência de negritude” (2006, p.25). Diante disso, o ca-
minho que se vislumbra é investir na negritude da população negra. Esse
pode ser o objetivo maior da valorização das estéticas afro-brasileiras na
formação da cidadania da população brasileira, que se autodeclara, na sua
maioria, como preta ou parda.18

18 Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - PNAD mostram um


crescimento da proporção da população que se declara preta ou parda nos últimos dez anos:
respectivamente, 5,4% e 40,0% em 1999; e 6,9% e 44,2% em 2009. Provavelmente, um dos
fatores para esse crescimento é uma recuperação da identidade racial, já comentada por diversos
estudiosos do tema. (IBGE. Síntese de Indicadores Sociais: Uma Análise das Condições de Vida
da População Brasileira. 2010, p. 226).

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NASCIMENTO DO YLÊ-EDUCARE: RESISTÊNCIA NA ACADEMIA

Ao citar projetos educacionais que valorizam as estéticas afro-bra-


sileiras, não se podería deixar de buscar os conceitos freirianos propos-
tos no livro Pedagogia da Autonomia, quando apresenta alguns saberes
necessários à prática educativa. Segundo Freire, “a necessária promoção
da ingenuidade à criticidade não pode ser feita à distância de uma rigo-
rosa formação ética ao lado da estética” (1998, p. 36).
Freire ajuda a repensar as práticas pedagógicas a partir da ética e da
estética. Em relação à dimensão ética, a concepção de uma pedagogia da
autonomia, ressalta a corporificação da palavra, ou seja, como educado-
res/as, são chamados/as a afinar o discurso com a prática, pois um dis-
curso que exalta a criticidade, a democracia e o pensamento autônomo,
não pode aliar-se a uma prática de educação bancária, antidialógica,
que desconsidera os saberes de seus educandos.
Como Freire, acredita-se que é uma ética pautada na pedagogia da
autonomia, que supõe o respeito às diferenças, rejeitando, assim, toda
e qualquer forma de discriminação, seja ela de raça, classe, gênero etc.
Em relação à estética, pode-se inferir que não é a estética promovi-
da pela educação bancária, que reproduz um conteúdo sem criticidade,
no caso, alimentando e mantendo vivas as representações sociais, tão
bem inculcadas no imaginário das pessoas, sobre as culturas africanas e
os estereótipos negativos em relação à pessoa negra, especificamente, ao
corpo negro, disseminando práticas discriminatórias e de racismo. Mas
uma estética que promova o reconhecimento e valorização dos saberes
culturais, sentimento de pertencimento étnico, desenvolvimento de au-
toestima e libertação das diferentes identidades da população brasileira.
Por isso, ressalta-se que a possibilidade de desenvolver a negritude,
a consciência negra, através de projetos pontuais, como o I Encontro
YLÊ EDUCARE, abre passagens para a ampliação de outras ações afir-
mativas nos diferentes espaços da academia, viabilizando e legitimando
um maior número de estudos e pesquisas sobre a educação libertadora,
que exige estar fora do senso estético hegemônico. Exige, antes de tudo,
um (re) pensar a unidimensionalidade do saber, enxergar outras racio-
nalidades e promover uma prática educacional que favoreça as diferen-
tes culturas e epistemologias.

30
TELMA CEZAR S. MARTINS, NEIDE CRISTINA DA SILVA, ESTEVÃO ANDRÉ DA SILVA

Referências

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CANCLINI, Néstor Garcia.  Diferentes, desiguais e desconectados. Rio


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Paulo: Centauro, 2008.

31
NASCIMENTO DO YLÊ-EDUCARE: RESISTÊNCIA NA ACADEMIA

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. Dicionário Escolar Afro-Brasileiro. São Paulo: Selo Negro, 2006.

32
abcdefghij
ARTE E LITERATURA
LITERATURA INFANTO-JUVENIL BRASILEIRA
NO ENSINO BÁSICO DO ESTADO DE SÃO
PAULO: UMA ABORDAGEM DAS RELAÇÕES
ÉTNICO-RACIAIS

Maurício Silva1
Sandra Rosa Gomes dos Santos 2

Introdução

O encontro entre a literatura infanto-juvenil e as relações étnico-
-raciais resulta num complexo conjunto de manifestações artístico-li-
terárias, que engloba desde obras que tematizam o universo da cultura
africana e afro-brasileira ou que abordam o preconceito racial diante a
realidade social contemporânea, até obras que tratam da escravidão e
suas representações, da identidade negra e da diversidade cultural do
Brasil, entre outras. Essa discussão pode-se adensar ainda mais se levar-
mos em consideração a dificuldade de caracterizaração dessa literatura,
que para a crítica especializada se define ora como uma literatura negra,
ora como afro-brasileira, ora ainda como afro-descendente. De qualquer
maneira, independentemente da “divisão” que se faça da produção literá-
ria infanto-juvenil vinculada às questões étnico-raciais e da “definição”

1  Pós-Doutor – USP. Professor PPGE-UNINOVE. email: maurisil@gmail.com.

2  Mestranda em Educação – PPGE – UNINOVE.

34
MAURÍCIO SILVA, SANDRA ROSA GOMES DOS SANTOS

que suas diversas manifestações podem assumir, o fato é que essa produ-
ção - ao se associar às noções de multiculturalismo e pluralidade étnica -
não prescinde de um agenciamento que resulta numa conscientização da
identidade negra, por isso mesmo não apenas inserindo-se no contexto
normativo da lei 10.639/03, mas principalmente numa ampla discussão
histórica da formação da sociedade brasileira. Ao se pensar analisar essa
produção, percebe-se, por exemplo, que, embora a figura do negro con-
tinue pejorativamente marcada no imaginário brasileiro, gerando pre-
conceitos diversos, há atualmente uma produção literária infanto-juvenil
que já aponta para um movimento de transformação desse padrão, com a
publicação de obras que procuram valorizar a figura do afrodescendente
e realçar uma identidade que se constrói a partir da diversidade. Nesse
sentido, percebe-se um caminhar na direção da construção de uma lite-
ratura mais condizente com a realidade contemporânea, mas sem deixar
de lado uma perspectiva crítica que, por isso mesmo, denuncia atos de
discriminação implícita ou explícita, ainda presentes em nossa produção
literária para crianças e jovens, reflexo mais evidente e direto de uma
sociedade cronicamente excludente, como é a sociedade brasileira. O pre-
sente artigo trata das possíveis relações entre a literatura infanto-juvenil
brasileira contemporânea e a questão das relações étnico-raciais, desta-
cando aspectos relacionados à crítica à discriminação racial e combate
ao racismo, bem como à representação da personagem afrodescendente
nesta produção literária. Para tanto, além de considerações analíticas de
obras que abordam as temáticas aqui destacadas, direta ou indiretamente
relacionadas ao universo das questões étnico-raciais, foram pesquisadas
quatro escolas sediadas na cidade de São Paulo, tendo sido elaborado um
questionário com quinze perguntas, aplicado a sessenta professores da
Educação Básica da rede pública e privada.

Relações étnico-raciais no contexto da educação brasileira e a litera-


tura infanto-juvenil

A legislação voltada às questões étnico-raciais no Brasil não é nova,


embora sua aplicação tenha sido prejudicada por uma série de percalços,
que vão do histórico preconceito que impera na sociedade brasileira à

35
LITERATURA INFANTO-JUVENIL BRASILEIRA NO ENSINO BÁSICO DO ESTADO DE SÃO PAULO: UMA
ABORDAGEM DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

impedimentos de natureza jurídica e afins. Especificamente sobre a edu-


cação das relações étnico-raciais, há uma legislação específica aprovada,
e os direitos da população negra (embora não apenas dela) passaram a ser
garantidos pela Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional (LDB), que
estabelece, entre outras coisas, o respeito aos valores culturais na edu-
cação e repúdio ao racismo, na medida em que determina o estudo das
e o respeito às contribuições das diferentes culturas e etnias para a for-
mação do povo brasileiro. Semelhante determinação acabaria resultando
naquela lei que, mais do que qualquer outra, incide diretamente sobre a
importância da contribuição das matrizes culturais próprias da popula-
ção afrodescentende: trata-se da Lei 10.639, sancionada em 09 de janeiro
de 2003, por meio da qual se torna obrigatório, no Ensino Fundamental
e Médio, o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira, o que assinala
a necessidade do estabelecimento de novas diretrizes curriculares nacio-
nais para a educação das relações étnico-raciais no Brasil.
O encontro entre a literatura infanto-juvenil e as relações étnico-ra-
ciais resulta num complexo conjunto de manifestações artístico-literárias
que Luiz Fernando França subdividiu da seguinte maneira: obras que te-
matizam o universo da cultura africana e afro-brasileira; obras que tema-
tizam o preconceito racial diante a realidade social contemporânea; obras
que tematizam a escravidão; obras que tematizam a identidade negra e
a diversidade cultural do Brasil; e obras que, sem abordar diretamente a
questão racial, apresentam o negro como personagem literária, em situa-
ção de igualdade com os outros personagens (FRANÇA, 2008). Seu qua-
dro exprime bem a diversidade de perspectivas que podem ser adotadas
para se tratar da conjunção entre a literatura infanto-juvenil e as relações
étnico-raciais, revelando o quanto semelhante abordagem pode ser rica e
complexa. Diante do quadro exposto, contudo, ainda caberia perguntar:
qual a natureza - e, por extensão, quais as propriedades, as idiossincra-
sias, os elementos determinantes - de uma literatura infanto-juvenil espe-
cialmente vinculadas - seja pela temática, seja pela autoria, seja ainda pela
ideologia veiculada - à questão étnico-racial?
Pesquisas acadêmicas ou não, voltadas para a presença da temática
negra nas obras de literatura infanto-juvenil brasileira podem nos apon-
tar o caminho para uma resposta minimamente satisfatória. Em seu já

36
MAURÍCIO SILVA, SANDRA ROSA GOMES DOS SANTOS

clássico estudo sobre o perfil ideológico dessa literatura no período de


1955 a 1975, Fúlvia Rosemberg, analisando 168 livros infanto-juvenis
brasileiros (num total de 626 histórias), detecta, entre outras coisas, um
tratamento diferenciado - que, no entanto, aparece de forma aberta ou
velada - dado a brancos e negros. Assim, segundo seu estudo, persona-
gens mais frequentes nos textos e nas ilustrações, os brancos são também
representados como modelos da espécie humana, apresentando ativi-
dades profissionais mais diversificadas, recebendo melhor acabamento
estético, representando figuras e personagens históricos mais relevantes
etc. (ROSEMBERG, 1985), o que pode resultar, por fim, não apenas na
instauração de um processo discriminatório de fato, mas de uma violên-
cia simbólica (LIMA, 2005). Ao se pensar nessa questão de forma similar,
mais de duas décadas depois, percebe-se, por exemplo, que, embora a
figura do negro continue pejorativamente marcada no imaginário brasi-
leiro, gerando preconceitos diversos, há atualmente uma produção literá-
ria infanto-juvenil que já aponta para um movimento de transformação
desse padrão, com a publicação de obras que procuram valorizar a figura
do negro e realçar uma identidade que se constrói a partir da diversida-
de (KNOP, 2010). Percebe-se, portanto, uma diferença significativa, que
acusa - inclusive quantitativamente (DEBUS, 2007; DEBUS & VASQUES,
2009) - um caminhar na direção da construção de uma literatura mais
condizente com a realidade atual, mas sem deixar de lado uma perspecti-
va crítica que, por isso mesmo, denuncia atos de discriminação implícita
ou explícita, ainda presentes em nossa produção literária infanto-juvenil.
Buscando, portanto, responder em parte o questionamento feito aci-
ma, acerca dos vínculos entre a literatura infanto-juvenil e questões de
natureza étnico-racial, partimos, antes de mais nada, do princípio de que,
como já se afirmou mais de uma vez (SILVA, s.d.), assumir/incluir posi-
cionamentos éticos nos textos literários para crianças e jovens - especial-
mente voltados para as relações étnico-raciais - não significa limitar o
potencial estético das obras. A partir desse ponto de vista, não hesitamos
em afirmar que a literatura infanto-juvenil direta ou indiretamente vin-
culada às relações étnico-raciais pauta-se ou deve pautar-se por atitudes
de valorização da cultura afro-brasileira, de estímulo à (re)construção de
uma identidade afro-descendente, de resgate da autoestima, dos valores

37
LITERATURA INFANTO-JUVENIL BRASILEIRA NO ENSINO BÁSICO DO ESTADO DE SÃO PAULO: UMA
ABORDAGEM DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

culturais, dos direitos, da memória e da identidade do negro, desfazendo


injustiças seculares e ressemantizando o conceito de negritude a partir de
um agenciamento afro-brasileiro, atitudes, por fim, norteadas pelos prin-
cípios genéricos de multiculturalismo e pluralidade étnica, antes citados.
Há, na vasta produção literária brasileira voltada para crianças e jo-
vens, em especial naquelas que procuram destacar/explorar motivos de
extração étnico-racial, alguns temas recorrentes que, por sua própria na-
tureza, contribuem para uma mais intensa e profunda reflexão sobre o
lugar que o negro ocupa em nossa sociedade atualmente. Trata-se, antes
de mais nada, de textos que, senão pela posição pessoal que seus autores
ocupam/assumem diante do campo literário, pelo menos pela temática
que abordam com maior ou menor grau de explicitação, inserem-se na
ou pelo menos dialogam com aquelas obras e autores em que Eduardo
Duarte detectou um deliberado pertencimento étnico (DUARTE, 2013).
É o que se pode verificar nos mais diversos títulos, que discutem des-
de questões relativas a traços fisionômicos e/ou fenotípicos do afrodes-
cendente - como Menina Bonita do Laço de Fita (2000), de Ana Maria
Machado; O círculo (1985), de Maria Lysia Corrêa de Araújo; ou O herói
de Damião (A descoberta da capoeira) (2000), de Isa Lolito -, passando
por discussões acerca da questão racial propriamente dita - com Irmão
Negro (1995), de Walcyr Carrasco; Felicidade não tem cor (1997) e Preti-
nha, eu? (2008), de Júlio Emílio Braz; ou O amigo do rei (1999), de Ruth
Rocha - até temas mais contundentes e polêmicos, como o da negritude,
do racismo e do preconceito - por exemplo, em A cor da ternura (1989),
de Geni Guimarães; em O sol da liberdade (1985), de Giselda Laporta
Nicolelis; ou em Os bons e os justos (A fábula do amor bastardo) (1983),
de Lourenço Cazarré.

Literatura infanto-juvenil brasileira e relações étnico-raciais no En-


sino Básico do Estado de São Paulo

Após mais de um século abolição de escravatura, acredita-se, inge-


nuamente, que os problemas de racismo e preconceito no Brasil já foram
sumariamente superados. Essa realidade, contudo, continua vigindo de
forma quase irretocável, como se pode constatar em qualquer análise da

38
MAURÍCIO SILVA, SANDRA ROSA GOMES DOS SANTOS

questão educacional brasileira, de cujo sistema excludente o contingente


afrodescendente é vítima. Com o intuito de realizar uma ruptura no ciclo
que perpetua o racismo no âmbito da educação, foi criada a Lei 10.639/03,
como uma importante forma de reparação de uma divida social.
Amparada por esta referida lei, a experiência aqui relatada é resulta-
do de uma pesquisa que buscou observar a relação entre o profissional da
Educação Básica, a literatura e a referida lei. O método utilizado consistiu
na aplicação de um questionário a 60 professores da Educação Básica da
Rede Pública e Privada do Estado de São Paulo. Durante o período de
aplicação do questionário, também foi possível conhecer as dependências
das instituições, aceder a alguns documentos institucionais, ter contato
com as crianças e até mesmo conversar com coordenadores e demais fun-
cionários das instituições de ensino visitadas, o que permitiu uma maior
explanação acerca de cada uma especificamente.
A primeira instituição visitada foi um Centro de Educação Infantil
(CEI), localizado na Zona Oeste de São Paulo - precisamente na Aveni-
da Pacaembu, região nobre de São Paulo - e mantido por uma Sociedade
de Defesa e Apoio às Comunidades Urbanas, uma associação de utili-
dade pública, sem fins lucrativos, conveniada à Prefeitura do Município
de São Paulo, através da Secretaria Municipal de Educação, conforme
exigido pela legislação. A maioria das crianças que frequentam o CEI é
formada por filhos dos empregados dos estabelecimentos locais, porém
a mesma instituição também atende a uma clientela de maior poder
aquisitivo, filhos de donos de consultórios médicos e pequenos comér-
cios da região, promovendo assim um interessante convívio social entre
diversas classes sociais.
Esse CEI oferece atendimento a crianças de 0 a 4 anos de idade, em
um trabalho de cooperação e articulação da rede pública e privada de
serviços, atendendo às necessidades e características de desenvolvimen-
to da criança ali inserida no período das 7 ás 17 horas, de segunda a
sexta-feira, contando com aproximadamente 180 crianças, divididas em:
berçário I, com 2 salas e 7 crianças cada, onde ficam os bebês de 0 a 1
ano de idade; berçário II, com 4 turmas de 9 alunos cada, atendendo a
crianças de 1 a 2 anos de idade; 5 turmas de mini grupo I, atendendo a
crianças de 2 a 4 anos de idade; e 1 mini grupo II, para as crianças com 4

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LITERATURA INFANTO-JUVENIL BRASILEIRA NO ENSINO BÁSICO DO ESTADO DE SÃO PAULO: UMA
ABORDAGEM DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

anos de idade, mas que ainda não foram transferidas para o pré, devido
à data em que completam a idade requerida. Para atender a esse alunado,
atualmente o CEI conta com o trabalho da diretora, auxiliar de direção,
aproximadamente 13 professores e 6 auxiliares, entre cozinheiras, auxi-
liares de cozinha, professora de balé e judô, além do serviço prestado por
alguns voluntários que contribuem para o bom funcionamento da creche.
A segunda instituição visitada foi uma Escola Municipal de Edu-
cação Infantil (EMEI), criada pelo Decreto nº 38.689, de 25/11/1999,
anteriormente regida pelo Decreto Municipal nº 37.205, de 08/12/1997.
Localizada na Praça Coronel Ezequiel, no bairro de Vila Silvia, distrito
de Cangaíba, Zona Leste, na cidade de São Paulo e vinculada à Co-
ordenadoria de Educação Penha, pertencente à Subprefeitura Penha.
Conforme o exposto pela equipe diretiva da instituição, a escola surgiu
devido a reivindicações da comunidade aos políticos da região, pois se
trata de uma área que apresentava grande número de crianças na faixa
etária entre quatro e seis anos de idade, resultado do permanente cres-
cimento populacional do bairro.
A equipe escolar é representada por um expressivo quadro, sendo
composta por: equipe técnica, representada pela diretora e coordenado-
ra pedagógica; equipe docente, representada por 21 professores; equipe
de apoio à educação, representada por agentes escolares e agentes de
apoio e limpeza;
Conforme dados extraídos do Projeto Pedagógico da Instituição, o
alunado atendido pela escola apresenta-se bastante diversificado, com-
posto principalmente por crianças que moram em favelas próximas e
outros tipos de residências, sendo que mais ou menos metade possui re-
sidência própria; além disso, a maior parte desse contingente mora no
bairro há mais de 5 anos, tendo alguns pais indicado que residem na re-
gião desde o nascimento. A maioria dos pais ou responsáveis apresenta
um grau de escolaridade compatível com o ensino fundamental, tendo,
uma boa porcentagem, concluído o ensino médio, com alguns casos mais
raros em que concluíram o ensino superior; a renda média dessas famílias
varia entre 1 e 3 salários mínimos.
Quanto à Proposta Pedagógica, é possível destacar dentre seus
princípios a valorização do direito de a criança brincar, como forma

40
MAURÍCIO SILVA, SANDRA ROSA GOMES DOS SANTOS

particular de expressão, pensamento, interação e comunicação infantil,


buscando alicerçar os pressupostos das teorias existentes com a prática
social ligada à realidade da escola e de sua clientela, distinguindo entre
seus objetivos a importância de a criança conhecer algumas manifesta-
ções culturais, demonstrando atitudes de interesse, respeito e participa-
ção frente a elas e valorizando a diversidade.
A terceira instituição visitada foi uma Escola Municipal de Ensino
Fundamental (EMEF), uma instituição de utilidade pública, sem fins lucra-
tivos, conforme consta na legislação; ela está situada na Rua Manoel Dias
do Campo, no Bairro da Casa Verde Alta, Zona Norte de São Paulo.
Segundo registro de pesquisas realizadas pela escola em 2015, a comu-
nidade é composta de famílias de quatro a sete pessoas, com as seguintes
peculiaridades: 40% dos pesquisados são de estado civil solteiro; 69% são
de São Paulo e 5% são formados por imigrantes bolivianos; 45% são par-
dos e 14%, negros; a escolaridade do responsável por alunos fica entre o
ensino fundamental e médio; 21% não estão empregado; a renda familiar
de 32% concentra-se entre R$200,00 e R$780,00; 30% recebem auxilio da
bolsa família; 56% dos alunos ficam sozinhos, enquanto o responsável tra-
balha fora; 22% participam de centros de convivência e 22% fazem cursos e
esportes; 89% são usuários do SUS.
Arquitetonicamente, a região é composta de casas de alvenaria, corti-
ços e de conjuntos habitacionais populares, sendo que 53% da população
local paga aluguel. A falta de planejamento urbano é bastante evidente: cór-
regos como depósitos de lixo, terreno baldios sem manutenção de limpe-
za, arruamento desorganizado e casas construídas sem orientação técnica.
Ainda conforme registro da instituição, é importante ressaltar na fala da
comunidade, a relação de pais ou responsáveis por alunos, bem como mo-
radores do bairro, com o tráfico e consumo de drogas.
A EMEF oferece atendimento a crianças e adolescentes de 6 a 14/16
anos de idade, em um trabalho de cooperação e articulação da rede pú-
blica e privada de serviços, atendendo às necessidades e características de
desenvolvimento da criança e adolescente inseridos na unidade escolar no
primeiro (das 7 às 12 horas), no segundo (das 13 às 18 horas) e no terceiro
períodos (das 18,30 às 20,30 horas), de segunda a sexta-feira, tendo hoje
aproximadamente 763 alunos, divididos em: período da manhã e período

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LITERATURA INFANTO-JUVENIL BRASILEIRA NO ENSINO BÁSICO DO ESTADO DE SÃO PAULO: UMA
ABORDAGEM DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

da tarde. Para atender a esta clientela, atualmente a EMEF conta com o


trabalho da diretora, duas assistente de direção, aproximadamente 60 pro-
fessores e 13 módulos, agentes escolares, agentes de apoio, cozinheiras e
auxiliares de cozinha.
Dentre os principais objetivos da Proposta Pedagógica, é possível
destacar que a EMEF afirma-se como um espaço coletivo e privilegiado
de vivência da infância e adolescência, que busca sensibilizar a comuni-
dade escolar, pais, alunos, docentes, funcionários operacionais, equipe
técnica e de apoio para a construção de um ambiente escolar colaborativo
e para o desenvolvimento do processo ensino-aprendizagem: desenvolvi-
mento da autonomia, o protagonismo, a convivência harmoniosa, respei-
to étnico-racial e aos alunos com necessidades especiais.
A quarta e última instituição visitada difere muito dos demais, tanto
arquitetonicamente, quanto em sua organização administrativa e pedagó-
gica, além da clientela atendida. Localizado no bairro de Perdizes, um dos
bairros mais privilegiados de São Paulo, com a maioria dos moradores for-
mada pela classe média alta, este colégio é uma importante referência no
bairro. É um colégio com quarenta anos de história, fundado pela união de
irmãs da mesma família, que tinha como sonho uma escola onde se apren-
de brincando. Iniciou com 22 alunos e hoje possui aproximadamente 3000,
divididos entre as unidades de Perdizes, Morumbi e Alphaville.
A unidade de Perdizes, objeto desta pesquisa, tem aproximadamente
1153 alunos e aproximadamente 100 professores. O colégio encontra-se
instalado num prédio antigo, onde, anteriormente, ficava um convento de
freiras, tendo sido tombado pelo poder público, com o intuito de preservar,
por meio de legislação específica, seu valor cultural, arquitetônico e histó-
rico. Além dos espaços destinados a parte pedagógica, como salas de aulas,
salas de apoio e sala interdisciplinares, o colégio também dispõe de uma
extensa parte administrativa, dividida em: secretaria escolar, sala da dire-
toria, coordenação administrativa, departamento de uniformes, relações
institucionais, gráfica própria; enfermaria; sala de reunião e atendimento
aos pais, dentre outras.
Conforme apontado anteriormente, o método utilizado nesta pes-
quisa consistiu na aplicação de um questionário, contendo 15 pergun-
tas, a 60 professores da Educação Básica da Rede Pública e Privada do

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MAURÍCIO SILVA, SANDRA ROSA GOMES DOS SANTOS

Estado de São Paulo. Voltado para a área da literatura infantil bra-


sileira, seu objetivo principal foi coletar dados relativos às questões
étnico-raciais na escola e analisá-los. Segundo Gil (2010), o questio-
nário é uma técnica de investigação que serve para coletar dados de
cunho empírico, com um número razoavelmente elevado de questões,
na qual se busca conhecer principalmente a opinião das pessoas sobre
determinados assuntos, tendo como uma de suas vantagens garantir o
anonimato de quem participa.
A participação dos professores foi voluntária, e a divisão por escola
visitada ficou da seguinte forma: no Centro de Educação Infantil, loca-
lizado na zona oeste/SP, 7 professores responderam ao questionário; na
Escola Municipal de Educação Infantil, localizada na Zona Leste/SP, 14
professores participaram da pesquisa, dentre os quais contamos com
a participação e colaboração da coordenadora pedagógica; na Escola
Municipal de Ensino Fundamental, da Zona Norte/SP, 28 professores
se propuseram a responder, e também contamos com a participação e
apoio da coordenadora pedagógica; na instituição privada, de ensino
fundamental, situada na Zona Oeste/SP, 11 professores participaram
respondendo a pesquisa.
As perguntas apresentadas foram de cunho empírico, e serviram para
coletar informações condizentes com o pensamento e opinião dos pro-
fissionais que se dispuseram a participar da referida pesquisa, tendo sido
as mesmas basilares para a construção deste artigo. Dentre as 15 per-
guntas que compuseram a pesquisa, 14 foram perguntas fechadas, que
traziam alternativas específicas para que o docente escolhesse a resposta,
e uma pergunta foi aberta. Como sugerido inicialmente, o questionário
buscou resposta a diversos aspectos da realidade, em consonância com
a Lei 10.639/03. A pesquisa, portanto, buscou observar a relação entre o
profissional da educação básica, a literatura infanto-juvenil e a referida
lei. Desse modo foram explorados aspectos como: o conhecimento dos
professores sobre a lei e sua utilização na proposta curricular das institui-
ções onde lecionam; a formação continuada desses profissionais, já que,
de acordo com Imbernóm (2011), “é preciso estudar como a formação
permanente contribui para a profissionalização dos professores” (p. 115);
os livros de temática africana e afro-brasileira disponíveis nas instituições

43
LITERATURA INFANTO-JUVENIL BRASILEIRA NO ENSINO BÁSICO DO ESTADO DE SÃO PAULO: UMA
ABORDAGEM DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

onde atuam estes profissionais e sua utilização em sala de aula; a im-


portância da literatura para o combate ao racismo nas escolas; a opinião
destes professores quanto à necessidade de lei especifica da área da edu-
cação com o propósito de resistência antirracista; as recentes polêmicas
em torna da obra de Monteiro Lobato; a tematização do racismo pelos
professores no ambiente escolar, dentre outros. Tais questionamentos re-
fletem a ideia de que, segundo Munanga (2005),

“não existem leis no mundo que sejam capazes de erradicar as ati-


tudes preconceituosas existentes nas cabeças das pessoas, atitudes
essas provenientes dos sistemas culturais de todas as sociedades
humanas. No entanto, cremos que a educação é capaz de oferecer
tanto aos jovens como aos adultos a possibilidade de questionar e
descontruir os mitos de superioridade e inferioridade entre grupos
humanos que foram introjetados neles pela cultura racista na qual
foram socializados” (p. 17).

Após cuidadosa análise dos dados, buscamos destacar aqui alguns resul-
tados encontrados, dentre os que revelaram mais importância para a reflexão
que vimos fazendo até aqui.
O primeiro resultado da pesquisa assinalou que 50% dos professores
que responderam ao questionário consideram a sociedade brasileira racis-
ta e 46% acreditam que nossa sociedade é um pouco racista; 85% afirmam
ter conhecimento da Lei 10.639/03, que visa à obrigatoriedade do ensino de
história e cultura africana e afro-brasileira nos ensinos fundamental e médio,
porém apenas 16% conhecem a lei que trata sobre a literatura africana ou
afro-brasileira; e ainda 60% acreditam não ser necessária uma lei específica
para abordar esse relevante tema.
Ao refletir a cerca destes percentuais encontrados é possível aferirmos
que um expressivo percentual de professores participantes da pesquisa reco-
nhece e identifica a desigualdade racial, pois considera a sociedade brasileira
racista ou um pouco racista; contudo, não relaciona essa desigualdade racial
à discriminação e ao preconceito, pois ignora, desconhece ou até mesmo de-
saprova a lei que aborda o tema.
Para melhorar compreensão dos resultados, procuramos dar continuida-
de na analise realizada e percebemos que 55% dos professores afirmam não

44
MAURÍCIO SILVA, SANDRA ROSA GOMES DOS SANTOS

ter obtido uma formação continuada alusiva à referida lei; 52% dizem ter
conhecimento de que a biblioteca da escola possui literatura relativa ao tema
e 50% dizem que esses livros não são usados em sala de aula; 94% acreditam
que a literatura é um meio de combater o racismo; no entanto, 48% não res-
pondeu que obra utiliza e 35% citaram Menina bonita do laço de fita.
Ainda na mesma linha reflexiva, parece evidente que estes profissionais,
carecem de formação específica voltada ao conhecimento da referida lei. Faz-
-se necessária a formação sólida do profissional da educação, da graduação à
formação continuada, a fim de se garantir as bases necessárias para se tratar
as relações étnico-raciais dentro da escola, onde a literatura pode e deve ser
uma aliada eficaz, uma vez que apenas a implantação e a obrigatoriedade
desses temas, por força da lei, não surtem os resultados almejados.
Em continuidade com a pesquisa e com as ponderações acerca do ques-
tionário, sublinhamos que 67% afirmam ter se confrontado (e mediado o
conflito) com algum tipo de racismo contra negros dentro do ambiente de
sala de aula; e 33% dizem não ter encontrado/mediado situação de racis-
mo. Neste caso, inferimos pela presença, no ambiente escolar, de um racismo
declarado, um tipo de racismo cordial, capaz de encobrir posicionamentos
racistas e preconceituosos.
Por fim, não podemos deixar de lembrar o que foi respondido a cerca
de Monteiro Lobato e sua obra ser ou não racista: 49% dizem não considerar
as obras de Lobato racistas e 39% consideram algumas obras racista, sendo
que 6% nem sequer conhecem as obras do autor. Elucidando a dimensão da
magnitude de Lobato e sua obra, analisando-o sob a perspectiva da questão
étnico-racial, Lajolo (1998), afirma que

“discutir a representação do negro na obra de Monteiro Lobato,


além de contribuir para o conhecimento maior deste grande escri-
tor brasileiro, pode renovar os olhares com que se olham sempre
delicados laços que enlaçam literatura e sociedade, história e litera-
tura, literatura e política e similares binômios que tentam dar conta
do que na página literária, fica entre seu aquém e seu além” (s.p.).

Com certeza, essa é uma inestimável oportunidade para que leve-


mos para a sala de aula uma discussão mais profunda acerca das ques-
tões étnico-raciais não apenas na escola, mas em toda a sociedade.

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LITERATURA INFANTO-JUVENIL BRASILEIRA NO ENSINO BÁSICO DO ESTADO DE SÃO PAULO: UMA
ABORDAGEM DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

O emprego da literatura infanto-juvenil como canal de veiculação de


ideias propulsoras dessa discussão é, mais do que legítimo, necessário.

Considerações finais

Considerada até pouco tempo um gênero literário secundário, a lite-


ratura infanto-juvenil passou a ter uma importância incomensurável na
atualidade, atuando ainda na construção da própria cidadania da criança,
facilitando o diálogo e a formação de uma consciência crítica no leitor-
-mirim. Desse modo, tanto o educador quanto os pais têm oportunidade de
trabalhar conflitos infantis a partir de histórias que estimulem o imaginário
infantil, mas também que levem em conta aspectos diversos da sociedade
contemporânea, como é o caso das relações étnico-raciais e os conflitos que
delas resultam.
Semelhante constatação pressupõe, contudo, uma consideração mais
ampla e, também, mais crítica da questão: Rosane Cardoso, por exemplo,
lembra que mesmo a produção infanto-juvenil brasileira contemporânea
não é pródiga em trazer personagens com quem a criança afrodescendente
possa se identificar, embora algumas exceções já comecem a surgir no ce-
nário atual. E completa: “a presença de personagens negras na literatura é
fundamental para todos os leitores. Se, por um lado, para a criança negra,
essa mudança pode contribuir para a autoestima e o seu reconhecimento
no mundo, para a branca pode ser o espaço de reconhecimento da diversi-
dade étnica” (CARDOSO, 2011, p. 131).
A questão da identificação do leitor com personagens da literatu-
ra infanto-juvenil - bem como a consideração da leitura como forma de
superação de preconceitos - também é ressaltada por Ruth Barreiros, que
considera que “a identificação com narrativas próximas da sua realidade e
com personagens que vivem problemas e situações semelhantes as suas leva
o leitor a reelaborar e se conscientizar sobre o seu papel social e contribui
para a afirmação de uma identidade étnica” (BARREIROS, 2009, p. 04).
Ao refletirmos acerca das respostas encontradas, é possível inferir que,
de certo modo, a educação no Brasil - de modo geral - não apenas des-
cumpre seu papel no sentido de se opor ao e contribuir para a erradicação
do racismo, mas acaba, indiretamente, reforçando-o, pois se observa, entre

46
MAURÍCIO SILVA, SANDRA ROSA GOMES DOS SANTOS

outras coisas, a dificuldade que nossos profissionais da educação têm em


relação a lidar com essa questão, além de desconhecerem e/ou não com-
preenderem a lei que, justamente, trata da valorização da cultura negra
e afrodescendente, possivelmente pela falta de uma formação específica.
Pode-se dizer que, embora identifiquem e reconheçam, em muitos casos, as
situações de racismo e discriminação, encontram dificuldade em trazê-las
para um debate dentro da escola, não promovendo, consequentemente, a
tão necessária ruptura do ciclo que perpetua, em nossa sociedade, o pre-
conceito racial.

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construirnoticias.com.br/asp/materia.asp?id=1044)

48
LITERATURA INFANTO-JUVENIL AFRICANA E
AFRO-BRASILEIRA: POSSIBILIDADE DE REPARAR
INJUSTIÇAS, ELIMINAR DISCRIMINAÇÕES E
PROMOVER A INCLUSÃO CIDADÃ

Mônica Abud Perez de Cerqueira Luz1


Vanda Aparecida de Araújo2

Introdução

A literatura infantil surge somente no século XVII na Europa. Anterior a


essa época, nada era produzido especificamente para a criança, uma vez que
a infância e a criança eram vistos pela sociedade como adultos em miniatura.
Com a ascensão da burguesia, um novo modelo familiar se estrutu-
rou dando valor aos laços afetivos e às ligações entre pais e filhos – o que
antes era inviável.
A criança, no século XIX passou a participar da vida pública com
os adultos: na política, nas festas, nos esportes. Elas também passaram a

1 Pedagoga, Psicopedagoga Clínica e Institucional. Mestre em Psicologia da Educação.


Pesquisadora em literatura e constituição do sujeito leitor. Doutoranda pela Uninove,
desenvolvendo a temática Literatura Infantil e Questões Étnico-Raciais. Coordenadora
Pedagógica na PMSP-SME.

2  Professora de História, Pedagoga e Especialista em Gestão Educacional. Pesquisadora em


Educação Popular e Culturas. Mestranda pela Uninove, desenvolvendo a temática A Construção
de Uma Escola Cidadã: Limites e Possibilidades. Professora de História e Diretor de Escola no
GESP-SEE.

49
LITERATURA INFANTO-JUVENIL AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA: POSSIBILIDADE DE REPARAR
INJUSTIÇAS, ELIMINAR DISCRIMINAÇÕES E PROMOVER A INCLUSÃO CIDADÃ

conviver com questões até então não abordadas, como o nascimento, a


morte, a doença. Assim, a criança passou a ser, de fato, preparada para
viver na sociedade, cabendo aos adultos assumir a função de cuidar e
proteger essas crianças.
Ela passou a ser vista pela sociedade como um ser e passou a ter atri-
butos a serem “observados” e “tratados”, como a fragilidade física, a fra-
gilidade mental, a fragilidade moral e a imaturidade intelectual e afetiva.
A projeção dessa imagem de infância foi para as instituições de aten-
dimento público; portanto, a educação e a saúde teriam que dar condi-
ções para que essa criança superasse suas fragilidades inerentes.
Atualmente, muito se discute sobre a função da leitura de literatura
na formação de sujeitos: crianças questionadoras, críticas e mais autô-
nomas para buscar e construir conhecimento. A literatura infantil se
torna muitas vezes um instrumento eficaz para aguçar o interesse das
crianças por determinado tema ou conteúdo. Algumas escolas usam a
leitura de literatura como metodologia para a formação de leitores e
alfabetização.
Infelizmente, a leitura de literatura infantil possui um papel bem mais
complexo do que apenas um instrumento. Pesquisas acadêmicas apon-
tam que o gênero literário deixa de ser discutido e trabalhado de fato.
Corroboramos com Meireles (1979), Lajolo (1995) e Marchens (2009, p.
104), para quem “[...] literatura infantil é, antes de tudo, literatura”. Desse
modo, a literatura infantil não termina em si mesma; pelo contrário, ela é
mais abrangente do que a própria literatura. Assim, segundo Abramovich
(1997), “[...] esse gênero literário permite, dessa forma, a construção e a
consolidação de valores culturais, morais e padrões de beleza reforçando
‘o ético e o estético’”.
Diante das questões mencionadas, este artigo busca reafirmar a im-
portância de olhar para a literatura infantil de maneira crítica e sua rela-
ção com o racismo.

1. Racismo: origens e contexto atual

Mas na verdade, o que se gostaria de ter é uma outra visão de mun-


do, não apenas apregoada, mas também agida, desbaratando, pelo

50
MÔNICA ABUD PEREZ DE CERQUEIRA LUZ, VANDA APARECIDA DE ARAÚJO

menos ao nível simbólico, as relações habituais de dominação e


subordinação. No caso específico da literatura infanto-juvenil, essa
nova relação adulto/criança deveria levar, simultaneamente, à eli-
minação da estrutura didática e à busca de formas de expressão
igualitárias. (ROSEMBERG, 1984).

A literatura infantil precisa ser entendida como explicitação de pen-


samentos, atitudes e padrões de uma determinada classe social.
Em livros de história, aparentemente ingênuos, pode-se perceber a
trama dos personagens e dos diálogos, bem como a classe a que os auto-
res pertencem, os seus valores e os seus preconceitos.
Para entendermos a relação entre racismo e literatura infantil, de-
vemos recorrer ao conceito de raça que foi utilizado para classificar os
grupos que possuíam diferenças.
As teorias pseudocientíficas não foram as primeiras a hierarquizar
os grupos biológica e fisicamente distintos, pois o racismo já estava pre-
sente quando as explicações eram religiosas. O grande problema do uso
do conceito de raça na humanidade não foi o de classificar os seres
humanos em grupos de acordo com a cor da pele e outros traços mor-
fológicos.
Para Munanga (2004), o grande problema da história foram os na-
turalistas dos séculos XVII-XIX, ao estabelecer uma escala de valores
entre as denominadas raças que hierarquizavam as pessoas pelo código
biológico (cor da pele, traços morfológicos) e pelas qualidades psicoló-
gicas, morais, intelectuais e culturais.
Embora a evolução da ciência tenha descartado a classificação dos
seres humanos pelo fenótipo, isso não foi suficiente para aniquilar com
o racismo, pois a raça ainda é um conceito que habita o imaginário
coletivo da humanidade, mesmo que não assumindo uma forma insti-
tucionalizada.
Aquino (2007, p. 182) afirma que

[...] as imagens de desigualdades sociais que atingem negros (as) e


aparecem em várias regiões do País são recorrentes na saúde, ha-
bitação e educação, gerando situações adversas para homens e mu-
lheres da população negra, num quadro assustador.

51
LITERATURA INFANTO-JUVENIL AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA: POSSIBILIDADE DE REPARAR
INJUSTIÇAS, ELIMINAR DISCRIMINAÇÕES E PROMOVER A INCLUSÃO CIDADÃ

Cabe ressaltar que o papel do Movimento Negro foi crucial para as


mudanças substanciais, já que a história oficial insistiu na negação da
trajetória dos negros no Brasil.
Em 2003, foi promulgada a Lei n.º 10.639 de 2003 que estabelece a obri-
gatoriedade da inclusão da História e Cultura Africana e Afro-Brasileira no
currículo escolar, e em 2004 foram estabelecidas as Diretrizes Curriculares
para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e
Cultura Afro-Brasileira e Africana (BRASIL, 2004), visando a reparações,
reconhecimento e valorização da identidade, da cultura e da história dos
negros brasileiros.

2. Literatura infanto-juvenil: produto de uma cultura eurocêntrica

Ao longo de muitos anos, as obras da literatura infanto-juvenil bra-


sileira abordam a temática sobre o negro e sua cultura, a partir da es-
cravização deste povo, construindo uma imagem de passividade com
relação à escravidão, imagem esta de fragilidade, tristeza, resignação,
com feições idiotizadas, sem orgulho sobre si mesmo.
Não podemos esquecer que somos produtos de uma educação eu-
rocêntrica, como assinala Munanga (2005, p. 15) e que podemos, em
função desta, reproduzir consciente ou inconscientemente os precon-
ceitos que permeiam nossa sociedade. E é neste contexto que se destaca
o importante papel da literatura. É por meio dela que podemos inserir
e estimular o interesse pela cultura de matriz africana e afro-brasileira,
buscando superar a desqualificação do personagem negro no imaginá-
rio popular brasileiro.
Nesse sentido, o mesmo autor adverte:

O resgate da memória coletiva e da história da comunidade negra


não interessa apenas aos alunos de ascendência negra. Interessa
também aos alunos de outras ascendências étnicas, principalmen-
te brancos, pois ao receber uma educação envenenada pelos pre-
conceitos, eles também tiveram suas estruturas psíquicas afetadas.
Além disso, essa memória não pertence somente aos negros. Ela
pertence a todos, tendo em vista que a cultura da qual nos alimen-
tamos quotidianamente é fruto de todos os segmentos étnicos que,

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MÔNICA ABUD PEREZ DE CERQUEIRA LUZ, VANDA APARECIDA DE ARAÚJO

apesar das condições desiguais nas quais se desenvolvem, contri-


buem cada um de seu modo na formação da riqueza econômica e
social e da identidade nacional. (MUNANGA, 2005, p. 16).

A literatura infanto-juvenil aponta para um terreno ainda desco-


nhecido a ser explorado, pois nela podemos identificar as diferentes
culturas existentes em uma sociedade, com seus valores, significações,
expressões culturais, transmissão de mensagens, imagens e percepções
de um mundo imaginado, provocando emoções, e desejos de sonhar.
Nessa dimensão, a literatura é um espaço não apenas de representação
neutra, mas de enredos e lógicas, que “[...] ao me representar eu me
crio, e ao me criar eu me repito” (LIMA, 2005, p. 102).
Nesse contexto, a construção ideológica da imagem dos personagens
negros, vestuários, fala, religião, concepções de mundo e sexualidade
são costumeiramente representados de forma bestializada e grotesca. A
cor negra aparece com muita frequência associada a personagens maus:
“O negro associado à sujeira, à tragédia, à maldade, como cor simbólica,
impregna o texto com bastante frequência” (ROSEMBERG, 1985, p. 84).
Desta feita, a criança negra internaliza o sentimento de inferiorida-
de frente a uma história de escravização deteriorada e pouco questiona-
da, depreciando sua identidade ainda em formação, tende a não aceita-
ção ou negação da própria imagem. “Geralmente, a queixa de crianças
negras se sentirem constrangidas frente ao espelho de uma degradação
histórica nos alerta que o mesmo mecanismo ensina para a não negra
uma superioridade.” (LIMA, 2005, p. 104).
Fanon (1984) relata que séculos de escravidão e colonização determi-
nam um olhar sobre o outro do qual é difícil, para não dizer impossível, se
despojar. Quando amam um negro, logo justificam, apesar da cor da pele.
E se detestam, justificam dizendo que não é pela cor da pele. E denuncia a
recusa dos martinicanos à sua cor, uma vez que internalizaram os valores
franceses, assim como a ilusão de serem também brancos e franceses.
Nesta perspectiva, entendemos que a imagem opera como aparelho
de dominação ideológica de supremacia racial, com implicações que
sugerem uma violência simbólica, que ajudam na manutenção de uma
sociedade de identidades dominantes.

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LITERATURA INFANTO-JUVENIL AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA: POSSIBILIDADE DE REPARAR
INJUSTIÇAS, ELIMINAR DISCRIMINAÇÕES E PROMOVER A INCLUSÃO CIDADÃ

3. Literatura infanto-juvenil: possibilidade de valorização e desmis-


tificação das culturas africana e afro-brasileira

Trabalhar com obras literárias que abordam a temática sobre culturas


africana e afro-brasileira como leitura obrigatória oportuniza a descons-
trução de um gênero literário, edificado à luz do chamado mito da “demo-
cracia racial”, historicamente construído em nossa sociedade. Assim como
viabiliza no ambiente escolar a construção e o exercício da cidadania.
Neste sentido, Brandão e Macheletti (1997, p. 22) declaram que

Em um contexto ainda maior, a leitura possui um poder conscien-


tizador, uma vez que deve ser entendida não como mera atitude
passiva, mas como uma construção ativa, tornando-se um instru-
mento de transformação social. Assim sendo, têm-se motivos de
sobra para acreditar que a escola não deve abrir mão da prática da
leitura em sala de aula.

Silva (2010) afirma que os critérios para definir a literatura negra ou


afro-brasileira vêm se ampliando com o intercâmbio entre os autores, críticos
e públicos, atraídos por essa linha de produção literária.
Com a implementação da Lei n.º 10.639/2003, que modificou a Lei de
Diretrizes e Bases, Lei n.º 9.394/1996 (LDB) para incorporar a cultura, a his-
tória e a literatura africana ao currículo escolar, propiciou-se o resgate das
contribuições dos povos negros nas áreas social, econômica e política ao lon-
go da história do país. Tal lei incentivou que o mercado brasileiro na última
década ofertasse obras excelentes que procuram atender as orientações e exi-
gências da Lei.
No caso presente, podemos citar algumas obras da literatura infanto-
-juvenil de raiz africana e afro-brasileira como exemplo: MADIBA – O meni-
no africano, de Rogério Andrade Barbosa, Cortez Editora; As panquecas de
Mama Panya, de Mary e Rich Chamberlin, Editora Biruta; Lendas da África
Moderna, de Heloisa Pires Lima e Rosa Maria Tavares Andrade, Editora Ele-
mentar; A semente que veio da África, de Heloisa Pires de Lima, Georges
Gneka e Mário Lemos, Editora FDE; Lila e o Segredo da Chuva, de David
Conway e Jude Daly, Editora Biruta; Luanda, filha de Iansã, de Lia Zatz, Edi-
tora Biruta, e Irmãos Zulus, de Rogério Andrade Barbosa, Editora Larouse.

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MÔNICA ABUD PEREZ DE CERQUEIRA LUZ, VANDA APARECIDA DE ARAÚJO

Parafraseando Nelson Mandela: “Ninguém nasce odiando o outro


pela cor da pele. Se é possível ensinar para o ódio, também é possível
ensinar para o amor”. E é neste contexto que a cultura africana e afro-
-brasileira pode educar para outro mundo possível, visando reparar in-
justiças, eliminar discriminações, promover a inclusão cidadã para todos
os sujeitos participantes do sistema educacional brasileiro. “A diversidade
é a característica fundamental da humanidade.” (GADOTTI, 2000, p. 10).
Na perspectiva de Gadotti (2000, p. 10-11)

Educar para um mundo possível deve incluir uma pedagogia das


ausências (Santos, 2005), isto é, mostrar o que foi ausentado his-
toricamente pelas culturas dominantes, aquilo que foi tornado es-
tranho pela sobrevalorização do científico em detrimento do não-
-científico, pelo não reconhecimento do saber de experiência feito,
pela sobrevalorização do produto em detrimento do não-produto.
[...] Educar para um mundo possível é educar para re-humanizar
a própria educação. [...] É educar para a paz, para os direitos hu-
manos, para a justiça social e para a diversidade cultural, contra o
sexismo e o racismo.

Neste sentido, a literatura africana e afro-brasileira apresenta-se como


uma proposta política e educativa, para a (re) construção de uma sociedade
que congrega uma cidadania multicultural e intercultural. Como aponta
Munanga (2005), uma atitude responsável de professores e educadores é
mostrar que a diversidade não constitui um fator de superioridade e in-
ferioridade entre os grupos humanos, mas sim, ao contrário, um fator de
complementaridade e de enriquecimento da humanidade em geral.
Para Silva (2010), ao trabalharmos os contos de matriz africana e
afro-brasileira, é possível resgatar-se os mitos e provocar naqueles que
ensinam e nos que aprendem um novo olhar sobre sua identidade no
campo das diferentes máscaras: no trabalho, na família e na escola.
Segundo Machado (2003 apud SILVA, 2010, p. 5),

Contar um mito, em muitos lugares na África, faz parte do jeito de


educar a criança que, mesmo antes de ir para a escola, aprende as
histórias da sua comunidade, os acontecimentos passados, valori-
zando-os como novidade.

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LITERATURA INFANTO-JUVENIL AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA: POSSIBILIDADE DE REPARAR
INJUSTIÇAS, ELIMINAR DISCRIMINAÇÕES E PROMOVER A INCLUSÃO CIDADÃ

Nessa linha, a educadora Vanda Machado (2002), vivendo a cultura


do terreiro, trouxe à tona a memória de matriz africana vivida na infân-
cia, na Fazenda Copioba, um engenho de açúcar localizado na cidade
de São Felipe, no Estado da Bahia, onde a matriz africana mantém parte
de sua essência pela tradição de contar e vivenciar histórias míticas. E
adverte:

A mitologia africana, recriada como afro-brasileira, é pródiga na


possibilidade da compreensão do mundo sempre em construção.
Um mundo onde o ser humano continua transitando como parcei-
ro de Deus na criação e manutenção planetária. A mitologia conta
as histórias da vida, incluindo sempre o ser humano. [...] Compre-
ender a mitologia africana passa pela necessidade de apreensão de
outras realidades. O ser humano não foi construído de um único
elemento da natureza. A construção foi de um ser síntese do mun-
do, síntese de elementos universais. O pensamento africano, des-
tacadamente a mitologia, serve como reflexão para a aproximação
ou reconciliação da cultura com a ciência, com a Filosofia, com a
Psicologia moderna e com a vida, na elaboração de saberes e faze-
res e as práticas educacionais. (MACHADO, 2002, p. 6).

Desta feita, ao trabalhar mitologia africana e afro-brasileira em


sala de aula, possibilitamos que o aluno, de forma poética, compreen-
da que o mundo está sempre em construção. Assim como irá conhecer
muitas histórias e aventuras passadas de geração para geração sobre o
sentido da vida e os seus mistérios, as forças da natureza, as relações
humanas e as curas cedidas pelos deuses.
A implementação da Lei n.º 10.639/2003, o estudo da cultura, histó-
ria e literatura africana e afro-brasileira, não garante que serão erradi-
cadas as atitudes preconceituosas e racistas que residem no inconscien-
te coletivo do Brasil, fruto da natureza histórica e construção racial que
passa pela cultura que é latente em nossa sociedade. No entanto, cremos
que a educação é capaz de oferecer tanto aos jovens como aos adultos a
possibilidade de questionar e desconstruir os mitos de superioridade e
inferioridade entre grupos humanos que foram introjetados neles pela
cultura racista na qual foram socializados. (MUNANGA, 2005, p. 17).

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MÔNICA ABUD PEREZ DE CERQUEIRA LUZ, VANDA APARECIDA DE ARAÚJO

4. Lei n.º 10.639/2003 e produção literária

A promulgação da Lei 10.639/2003 não conseguiu convencer as


mentes mais esclarecidas e nem mesmo descolonizá-las. Outro dado
importante de pesquisas mostra que o racismo ainda se faz presente no
sistema de ensino, de forma velada. Uma de suas formas de manifesta-
ção é na literatura, sob a negação da história da população negra.
Alguns livros didáticos e de literatura infantil mantêm-se conserva-
dores das imagens de humilhação da população negra, traduzida pela
estereotipia e caricatura, identificadas pelas pesquisas realizadas nas
duas últimas décadas, segundo o pesquisador Silva (2005).
Percebemos a reprodução da ideologia do branqueamento, uma vez
que, desde cedo na escola, às crianças estarão internalizando uma ima-
gem negativa do que é ser negro e, ao mesmo tempo, introjetando uma
imagem positiva do que é ser branco.
Um breve levantamento dos livros de literatura infantil, publicados
após 2003 e pertencentes a um acervo de uma escola municipal de edu-
cação infantil (EMEI) da cidade de São Paulo enfatiza a pouca presença
de personagens protagonistas negros (as). Dos 104 livros de literatu-
ra infantil, 51 apresentavam a figura de personagens negros. Desses
livros, apenas 14 desses apresentavam personagens principais negros
(as) e 9 representavam a pessoa negra em posições inferiores, como,
por exemplo, empregadas da família, crianças abandonadas, pobres e
sujos. Dentre as 104 obras destacadas, apenas oito delas representavam
uma única imagem de pessoa negra quando a ilustração representava a
diversidade.
As estatísticas atestam que somos o segundo país do mundo com
maior número de negros. Porém, a maneira de lidar com a nossa repre-
sentação mostra um país “moreno”, ”mestiço”. O processo de “branque-
amento”, estimulado por parcelas da sociedade, é pais, de pessoas com
deficiências, de ciganos etc., possivelmente tais obras questão impor-
tante que deixa de ser observada, como a efetiva integração social dos
descendentes dos antigos escravos. Muitos desses preconceitos e este-
reótipos contra negros e mestiços ainda circulam em nossa sociedade,
sendo camuflados.

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LITERATURA INFANTO-JUVENIL AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA: POSSIBILIDADE DE REPARAR
INJUSTIÇAS, ELIMINAR DISCRIMINAÇÕES E PROMOVER A INCLUSÃO CIDADÃ

Ao analisarmos como o negro tem sido representado na literatu-


ra infantil, é necessário fazer uma contextualização social e temporal e
desmistificar tais estereótipos.
Sendo a escola um espaço para se mudar questões de ordem cul-
tural, como é o caso do racismo, temos como prioridade as mudanças
desses imaginários.
Reiteramos que a promulgação da Lei n.º 10.639/2003 não garante
que essa mudança irá acontecer de forma satisfatória. Conforme afirma
Arroyo (2007, p. 114), é necessário

[...] avançar mais na criação de normas compulsórias sobre a elimi-


nação de todo preconceito racial no material escolar e nas condutas
dos alunos e profissionais das escolas. Desenvolver políticas mais
coerentes de produção de novos materiais. Incorporar representan-
tes do movimento negro, pesquisadores, intelectuais e educadores
na formulação dessas políticas. Políticas mais focadas de formação
inicial de professores a administradores para o trato da diversidade
e da pedagogia multirracial. Obrigar os centros de formação a in-
corporar nos currículos de pedagogia e licenciatura o conhecimen-
to da nossa realidade multirracial.

A representação da feitiçaria associada ao negro repete-se em al-


guns livros. A feitiçaria não se mostrava uma prática presente, mas re-
manescente nas figuras daqueles pretos e pretas velhas que habitavam,
isolados, suas taperas. Menotti Del Pichia, em O país das formigas, e
Lobato, em O saci, assim afirmavam:

Havia uma cabana escondida numa porção de árvores. Todos os


que passavam por lá se benziam. É que corria a fama por toda a
redondeza que ali morava um feiticeiro. De fato, o dono daquela
cabana era um preto velho, muito feio, muito misterioso. (DEL PI-
CHIA, 1932, p. 7).

Nesse contexto, reiteramos que a literatura infantil também é um


produto mercadológico e quando as escolas e os educadores buscam
as histórias de príncipes, princesas, fadas, heróis e heroínas negros e
negras, e também de histórias de famílias compostas só de mãe ou pai

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MÔNICA ABUD PEREZ DE CERQUEIRA LUZ, VANDA APARECIDA DE ARAÚJO

ou de duas mães ou dois serão criadas em maior escala que as ofere-


cidas atualmente.
As imagens iconográficas e as imagens narrativas podem significar
ainda, na prática pedagógica, a massificação de um posicionamento étni-
co-cultural e de uma visão de poder ou ser a oferta de representações po-
sitivas do negro e do afro-brasileiro ausentado de visões estereotipadas.
O educador deve considerar efetivamente a existência de literatu-
ras com abordagens diversificadas que contribuam para a preservação
de mecanismos ideológicos que possibilitem a afirmação da identidade
cultural, bem como a ressignificação em torno do simbolismo criado
acerca da palavra negro e africano.
A literatura infantil nos proporciona prazer. A leitura nos leva ao
saber. E a leitura tem grande poder. É preciso ter cuidado ao ler o mun-
do e ao ler o mundo nos livros. É preciso ter cuidado com a palavra dita
e com a palavra escrita, principalmente. As várias facetas das palavras
podem encantar denunciar, iludir, enganar.
Diante de tantos livros, é necessário analisar o que ler para nossas
crianças, pois elas têm um grande poder na questão da construção da
identidade, do reconhecer-se negro, como também para a desmistifica-
ção da imagem do negro, uma vez que na maioria das obras analisadas
percebemos a presença de estereótipos nos personagens negros. É preci-
so demonstrar para as crianças que o negro pode ser o sujeito de sucesso
e que também a menina negra pode ser princesa.

Considerações finais

Primeiramente é interessante refletirmos que a literatura infantil


sempre partiu de um referencial europeu. Fomos, assim, acostumados
às diversas adaptações de contos de: Cinderela, Chapeuzinho Vermelho,
Joãozinho e Maria, Branca de Neve ou às diversas histórias do livro Mil
e uma Noites. Portanto uma literatura infantil hegemônica e eurocêntri-
ca, que nada agregava ao povo brasileiro.
Outro objetivo deste artigo, e talvez o mais significativo, foi abordar
a questão dos livros para as crianças e ao mesmo tempo investigar como
o personagem negro vem sendo tratado neste âmbito literário e todo

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LITERATURA INFANTO-JUVENIL AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA: POSSIBILIDADE DE REPARAR
INJUSTIÇAS, ELIMINAR DISCRIMINAÇÕES E PROMOVER A INCLUSÃO CIDADÃ

o predomínio no processo de constituição identificatória étnico-racial


das crianças.
Na questão do livro de literatura infanto-juvenil, destaca-se que o
mesmo vem adquirindo seu espaço de forma paulatina, mas com núme-
ros ainda pouco animadores. Uma das características mais significati-
vas é a não participação dos negros como protagonistas das principais
obras. Por mais que tenhamos avançado e mesmo com toda a mobiliza-
ção da presença da Lei n.º 10.639/2003, ainda há existência de obras que
trazem os negros com características distorcidas.
Para tanto, além de identificar e valorizar as diferenças corporais,
como a cor da pele, o cabelo, os traços morfológicos, a escola deve co-
nhecer e reconhecer a história e a cultura da população negra e, com
isso, promover a afirmação da identidade afrodescendente.
É extremamente importante que estas brechas cheguem às escolas e
aos recursos materiais que atendem aos sujeitos que vivenciam a fase da
infância e que estão justamente construindo suas identidades. As crian-
ças negras precisam construir suas identidades de forma positiva para
serem felizes agora, e não só no futuro, quando se tornarem adultas.
Desse modo, este artigo foi concebido com o objetivo de promover
discussões que possam desconstruir a visão estereotipada e preconcei-
tuosa aplicada à imagem da população brasileira de origem africana,
os afrodescendentes: um segmento da população sofre desde os pri-
mórdios da colonização com a afluência da discriminação racial e da
repressão cultural, cujas práticas ancestrais foram marginalizadas e/ou
corrompidas, disfarçadas pelo mito da “democracia racial”. Para Serra-
no e Waldman (2007, p. 15),

Portanto, nesse contexto, verifica-se grande repercussão na identi-


dade nacional, que não pode subsistir nem simplesmente reconhe-
cer-se enquanto tal hipótese de excluir os seus elementos africanos
ou os que procedem da releitura de contribuições dessa origem.

Trabalhar com a literatura africana e afro-brasileira na sala de aula


dará visibilidade aos homens, mulheres e crianças negras, propiciando
a desconstrução das representações imagéticas estigmatizadas, estereo-

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MÔNICA ABUD PEREZ DE CERQUEIRA LUZ, VANDA APARECIDA DE ARAÚJO

tipadas e caricaturais, associadas à pobreza e ao indesejável, comprome-


tendo sua inserção ao pleno exercício da cidadania.
Acreditamos que a implementação da Lei n.º 10.639/2003 possibi-
litará uma abordagem das contribuições do povo negro, nas artes, culi-
nária, poesia, literatura e religião, não somente como o outro, enquanto
objeto de compra e venda, mas como sujeito do processo social e histó-
rico brasileiro.

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SILVA, Ana Célia da. Desconstruindo a discriminação do negro no livro


didático. Salvador: EDUFBA, 2005.

63
abcdefghij
EDUCAÇÃO BÁSICA
E PEDAGOGIAS
ALTERNATIVAS
A EFETIVAÇÃO DA HISTÓRIA E CULTURA
AFRO-BRASILEIRAS E AFRICANAS NO
ENSINO PÚBLICO E PRIVADO NA CIDADE DE
SÃO PAULO

Antonio Germano 1
Manuel Tavares 2

Introdução

Afirmar que o Brasil não é um país racista é um retrocesso e não con-


tribui em nada para uma discussão saudável e pertinente. A cultura afro-
-brasileira está presente em toda a nossa trajetória de formação de nação.
O Brasil foi um dos países que mais recebeu escravizados africanos, ape-
sar de ter sido um dos últimos a abolir a escravidão e, após a abolição,
a luta do negro pelo reconhecimento na sociedade tem sido incessante.
Fruto das constantes reivindicações do movimento negro no Bra-
sil, a Lei nº 10.639/2003, promulgada pelo então presidente Luiz Iná-
cio Lula da Silva, estabelece a obrigatoriedade do ensino de História

1 Mestre em Educação com o tema A efetivação da História e Cultura Afro-brasileiras e


Africanas no ensino Público e privado: Um estudo comparativo entre duas escolas (Uninove,
2016). Especialização em andamento em Gênero e Diversidade na Escola. Professor na
Educação Básica do município de São Paulo. Contato: cafeatoa@hotmail.com

2  Doutorado em Filosofia pela Universidade de Sevilha, US, Espanha. Professor no Programa


de Pós-graduação em Educação (PPGE) Universidade Nove de Julho. Contato: manuel.tavares@
outlook.com.br

65
A EFETIVAÇÃO DA HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRAS E AFRICANAS NO ENSINO PÚBLICO E
PRIVADO NA CIDADE DE SÃO PAULO

e Cultura Afro-Brasileira nos estabelecimentos educacionais do país


(BRASIL, 2003). É o reconhecimento da influência das muitas culturas
africanas na formação da cultura nacional. Entretanto, dentro de um
conturbado contexto socioeconômico e político no país, a aplicabilida-
de da lei envolve problemas relacionados com conteúdo, informação e
despreparação dos educadores.
A Lei nº 10.639/03 sintetiza uma discussão de âmbito nacional e dire-
ciona as unidades educacionais para a proposição de atividades relevantes
em relação aos conhecimentos das diversas populações africanas, suas ori-
gens e contribuições para o nosso cotidiano e história, num movimento de
construção e redimensionamento curricular e ação educativa, salientando a
importância do contexto e sua diversidade cultural (BRASIL, 2003). Ela tam-
bém aponta para um modelo educacional que prioriza a diversidade cultural
presente na sociedade brasileira e, portanto, na sala de aula, de modo que
as ideias sobre reconhecimento, respeito à pluralidade cultural, democracia
e cidadania prevaleçam em todas as relações que envolvem a Educação e a
comunidade escolar, desde o processo de formulação de políticas educacio-
nais, de elaboração de currículos escolares e de formação de docentes, até às
atividades pedagógicas, metodológicas e de acolhimento de educandos.
A necessidade da Lei nº 10.639/03 exige que se repense e reflita sobre
as práticas educacionais que permeiam as bases das relações étnico-raciais,
sociais e pedagógicas em que se apoiam a política educacional brasileira
vigente. Apesar da legalidade e da essencialidade, a obrigatoriedade da in-
clusão das temáticas na Educação das Relações Étnico-Raciais e da História
e Cultura Afro-Brasileira e Africana não é o suficiente para sua efetivação.
A demanda por política de reparação e reconhecimento implica ga-
rantir à população negra o ingresso e a permanência na educação escolar;
valorizar a história e cultura afro-brasileira; viabilizar a justiça e a igualda-
de de direitos sociais, civis, culturais e econômicos; valorizar a diversidade;
discutir e problematizar as consequências nefastas da ideia de democracia
racial na sociedade brasileira, apontar as implicações do racismo; questio-
nar as relações étnico-raciais sustentadas por preconceitos e discrimina-
ções direcionados/as a negros e negras; valorizar e respeitar a história e
cultura negras, desfazendo folclorizações e estereotipações que refletem o
racismo (BRASIL, 2004).

66
ANTONIO GERMANO, MANUEL TAVARES

Refletindo sobre a discriminação racial e sobre o conceito de racismo

O preconceito e a discriminação, pautados em critérios étnicos-ra-


ciais, estão entre os principais motivadores da evasão escolar dos alunos
negros da rede pública de ensino. A escola é uma instituição que repro-
duz o racismo, como ideologia e como prática de relações sociais que
invisibiliza e imobiliza as pessoas, inferiorizando-as e desqualificando-
-as em virtude da sua etnia.
De acordo com Sant’Ana (1999 apud MUNANGA, 2001, p. 34), “o
racismo é a pior forma de discriminação porque o discriminado não
pode mudar as características raciais que a natureza lhe deu. E a dis-
criminação racial como ela se apresenta hoje é relativamente recente”.
O racismo entre os seres humanos foi surgindo e se consolidando aos
poucos, ele é um fenômeno ideológico que se perpetua por meio dos
preconceitos, discriminações e estereótipos. É fruto de um longo pro-
cesso de amadurecimento, objetivando usar a mão de obra barata por
intermédio da exploração dos povos colonizados (SANT´ANA, 1999
apud MUNANGA, 2001). Para Christian Delacampagne (1990, p.85
apud GUIMARAES, 1999, p. 31),

o racismo, no sentido moderno do termo, não começa necessaria-


mente quando se fala da superioridade fisiológica ou cultural de
uma raça sobre outra; ele começa quando se faz a (pretensa) supe-
rioridade cultural de um grupo direta e mecanicamente dependen-
te de sua(pretensa)superioridade fisiológica; ou seja, quando um
grupo deriva as características culturais de outro grupo das suas
características biológicas.

Nesse sentido, o artigo 2º da Declaração sobre Raça e Preconceito


Racial da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e
a Cultura (UNESCO), assevera:

o racismo engloba as ideologias racistas, as atitudes fundadas nos


preconceitos raciais, os comportamentos discriminatórios, as dis-
posições estruturais e as práticas institucionalizadas que provocam
a desigualdade racial, assim como a falsa ideia de que as relações

67
A EFETIVAÇÃO DA HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRAS E AFRICANAS NO ENSINO PÚBLICO E
PRIVADO NA CIDADE DE SÃO PAULO

discriminatórias entre grupos são moral e cientificamente justifi-


cáveis; manifesta-se por meio de disposições legislativas ou regu-
lamentárias e práticas discriminatórias, assim como por meio de
crenças e atos antissociais; cria obstáculos ao desenvolvimento de
suas vítimas, perverte a quem o põe em prática, divide as nações
em seu próprio seio, constitui um obstáculo para a cooperação
internacional e cria tensões políticas entre os povos; é contrário
aos princípios fundamentais ao direito internacional e, por con-
seguinte, perturba gravemente a paz e a segurança internacionais
(UNESCO, 1978).

Consideramos que, passados quarenta anos sobre essa declaração,


deveríamos estar social e politicamente mais avançados no que diz res-
peito à superação de constrangimentos legislativos e obstáculos políti-
cos e sociais que permitissem a superação de todas as formas de discri-
minação e racismo. O racismo e a discriminação são formas primitivas
e anacrônicas de abordagem e de relacionamento dos e entre os seres
humanos. A discriminação de seres humanos em função da cor da pele,
no século XXI e em sociedades democráticas que são o resultado de
processos históricos de desenvolvimento e de construção da cidadania,
é absolutamente injustificável. O racismo é, assim, do ponto de vista
social, político e ético a confirmação de que há determinados grupos
sociais que não aceitaram nem ultrapassaram a fase de libertação dos
povos oprimidos. Representa, assim, o nível mais aviltante de relaciona-
mento social e o grau mais elevado da ignorância.
Um conceito mais amplo de racismo aparece a partir dos anos 70
sob diversas formas derivadas, em que está presente a intolerância con-
tra o diferente e, quando essa diferença é considerada ameaçadora da
especificidade do grupo, o diferente é excluído. Nesse caso, o concei-
to de racismo toma o sentido popular onde a palavra “raça” não está
presente. Munanga (1998), aponta um sentido mais restrito do racismo
no qual as categorias sociais são racizadas quando portadoras de uma
marca biológica, de um estigma corporal.
De acordo com Munanga (1998, p.45), “existe um consenso para di-
zer que há racismo, todas as vezes que, na interação conflitual de catego-
rias diferentes, surge um modo de exclusão baseado na marca biológica”.

68
ANTONIO GERMANO, MANUEL TAVARES

A partir desse contexto, é iniciada a fomentação das ideias que originam


o racismo “pseudocientífico”.
O racismo como fenômeno global pode-se decompor em três elemen-
tos distintos e inter-relacionados como nos aponta Munanga (1998, p.47):

por um lado, nós temos uma ideologia racista que é uma doutri-
na, uma concepção do mundo, uma filosofia da história, às vezes
apresentada como uma teoria científica ou como uma filosofia.
O mesmo fenômeno se decompõe também em preconceito racial,
que é simplesmente uma disposição afetiva imaginária, ligada aos
estereótipos étnicos; uma atitude, uma opinião, que pode ser ver-
balizada ou não. Pode-se tornar uma verdadeira crença. (...) Final-
mente a discriminação racial, que é um comportamento coletivo
observável.

A educação é, com certeza, um instrumento privilegiado de combate


ao racismo. Entretanto, não é suficiente, pois o preconceito racial esconde
uma racionalidade social e existencial que a razão abstrata desconhece.

O preconceito não é o problema da ignorância. Ele tem a sua ra-


cionalidade embutida na própria ideologia. Por isso a educação é
apenas um dos meios para se lutar contra o racismo, mas não é o
único, porque o racismo é, antes de mais nada, uma ideologia e
não se corrige a ideologia simplesmente pela educação. Pode-se,
entretanto, trabalhando com jovens, potencializar a personalidade,
dar elementos para que eles possam reagir contra o racismo. (MU-
NANGA, 1998, p.48)

Justamente, é a escola entendida como espaço institucional que re-


trata os interesses de grupos dominantes em relação aos valores e co-
nhecimentos que devem ser transmitidos um local onde o racismo se
manifesta de várias maneiras, inclusive dentro do livro didático ou pela
ausência de projetos políticos-pedagógicos que contemplem o ensino de
História e Cultura Afro-Basileira e Africana.

O racismo manifesta-se quando a comunidade escolar, o currículo


e até mesmo o educador ou a educadora demonstram preconceito
ou desconhecimento de questões de ordem racial ou ridicularizam

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A EFETIVAÇÃO DA HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRAS E AFRICANAS NO ENSINO PÚBLICO E
PRIVADO NA CIDADE DE SÃO PAULO

identidades e estéticas diferentes das que foram estabelecidas como


ideais. A ausência nos currículos escolares da história e da cultura
afro-brasileiras e africanas reforçou o racismo, incutiu a percepção
discriminatória nas crianças brancas em relação às pessoas negras,
inibiu a autoestima das crianças negras, estimulou a evasão e a repe-
tência escolares e impossibilitou o acesso a outros conteúdos e conhe-
cimentos produzidos pela humanidade. (SÃO PAULO, 2008, p. 21)

De acordo com as interpretações de Antônio Sérgio Guimarães (1999,


p. 26), “qualquer estudo sobre o racismo no Brasil deve começar por no-
tar que o racismo no Brasil é um tabu. De fato, os brasileiros se imaginam
numa democracia racial”. Essa constatação demonstra o fato de que nosso
país nega que a pobreza atinja mais os negros que os brancos.
Consequentemente, no Brasil, somente aqueles com pele realmen-
te escura sofrem inteiramente a discriminação e o preconceito antes
reservados ao negro africano. Aqueles que apresentam graus variados
de mestiçagem podem usufruir, de acordo com seu grau de brancura
(tanto cromática quanto cultural, dado que “branco” é um símbolo de
“europeidade”), alguns dos privilégios reservados aos brancos (GUI-
MARÃES, 1999).
Schwarcz (2012, p. 81) nos aponta que uma das especificidades
do preconceito é o seu caráter não oficial; para isso, ela trata da Lei
nº.7716, de 5 de janeiro de 19983 e, analisando seu texto, ela infere que

3  Lei CAÒ Define os crimes resultantes de preconceitos de raça ou de cor.  


Art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de preconceitos de raça ou de cor.  
Art. 2º (vetado)  
Art. 3º  Impedir ou obstar o acesso de alguém, devidamente habilitado, a qualquer
cargo da Administração Direta ou Indireta, bem como das concessionárias de serviços
público. Pena: reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos.  
Art. 4º Negar ou obstar emprego em empresa privada(...)
Art. 5º  Recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, negando-se a servir,
atender ou receber cliente ou comprador(...)
Art. 6º  Recusar, negar ou impedir a inscrição ou ingresso de aluno em estabelecimento
de ensino público de qualquer grau. (...)
Art. 7º  Impedir o acesso ou recusar hospedagem em hotel, pensão, estalagem, ou
qualquer estabelecimento similar (...) 
Art. 8º Impedir o acesso ou recusar atendimento em restaurante, bares, confeitarias, ou
locais semelhantes abertos ao público (...) 

70
ANTONIO GERMANO, MANUEL TAVARES

“a lei, em primeiro lugar, é pródiga em três verbos: impedir, recusar e


negar. Racismo é, portanto, de acordo com o texto da lei, proibir alguém
de fazer alguma coisa por conta de sua cor de pele”.
Tomando-se o texto da lei, fica caracterizado que racismo no Brasil
é possível de punição apenas quando reconhecido publicamente. Não
existem referências, porém, à possibilidade de a pena ser aplicada quan-
do algum ato racista ocorrer em locais reservados. A lei é pouco espe-
cífica quando se trata de delimitar a ação da justiça. Somente é possível
ocorrer a prisão quando há flagrante ou a presença de testemunhas e a
confirmação do próprio acusado. (SCHWARCZ, 2012).
Em suma, lutar contra o racismo requer uma re-educação permanente,
quer na família, quer nas escolas e uma conscientização permanente dos
profissionais da educação de modo a que possam contribuir para uma
formação das crianças e dos jovens livre de discriminações e racismos.
Dessa forma, é importante conhecer, realizar pesquisas e compreender
com mais profundidade a história da África e da cultura afro-brasileira,
pois o conhecimento e a informação, se não forem capazes de superar,

Art. 9º Impedir o acesso ou recusar atendimento em estabelecimentos esportivos, casas


de diversões, ou clubes sociais abertos ao público(...)  
Art. 10º  Impedir o acesso ou recusar atendimento em salões de cabeleireiros, bares,
termas ou casas de massagem ou estabelecimentos com as mesmas finalidades:  
Art. 11º  Impedir o acesso às entradas sociais em edifícios públicos ou residenciais e
elevadores ou escada de acesso aos mesmos(...)
Art. 12º Impedir o acesso ou uso de transportes públicos, como aviões, navios, barcos,
ônibus, trens, metrô ou qualquer outro meio de transporte concedido(...)
Art. 13º Impedir ou obstar o acesso de alguém ao serviço em qualquer ramo das Forças
Armadas(...)
Art. 14º Impedir ou obstar, por qualquer meio ou forma, o casamento ou convivência
familiar ou social(...)
Art. 15º, 17º e 19º (vetado)  
Art. 16º    Constitui efeito da condenação a perda do cargo ou função pública, para
servidor público, e a  suspensão do funcionamento do estabelecimento particular por
prazo não superior 3 (três) meses.  
Art. 18º Os efeitos de que tratam os arts. 16 e 17 desta Lei não são automáticos, devendo
ser   motivadamente declarados na sentença.   Art. 20º Esta Lei entra em vigor na data
de sua publicação.  
Art. 21º Revogam-se as disposições em contrário. (BRASIL, 2012)

71
A EFETIVAÇÃO DA HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRAS E AFRICANAS NO ENSINO PÚBLICO E
PRIVADO NA CIDADE DE SÃO PAULO

pelo menos podem reduzir o racismo presente em todas as camadas da


sociedade, inclusive dentro da escola.

Diversidade e Currículo

Indagar sobre a presença da diversidade no currículo das escolas


tornou-se, cada vez mais, necessário devido à onda de conservadorismo
que pretende instalar e instaurar o ódio e a intolerância, capazes de ex-
cluir dos projetos pedagógicos e das propostas educacionais o diferente,
o múltiplo e o etnodesenvolvimento das pessoas.
Segundo Gomes (2007, p. 30),

a diversidade, do ponto de vista cultural, pode ser entendida como


a construção histórica, cultural e social das diferenças. Ela é cons-
truída no processo histórico-cultural, na adaptação do homem e da
mulher ao meio social e no contexto das relações de poder. Os aspec-
tos tipicamente observáveis, que se aprende a ver como diferentes, só
passaram a ser percebidos dessa forma porque os sujeitos sociais, no
contexto da cultura, assim os nomearam e identificaram.

O Centro Nacional de Pesquisa em Currículo reconhece que a esco-


la deve: “[...] ensinar conteúdos e habilidades necessários à participação
do indivíduo na sociedade. Por meio do seu trabalho específico, a escola
deve levar o aluno a compreender a realidade de que faz parte, situar-
-se nela, interpretá-la e contribuir para a sua transformação” (CENTRO
NACIONAL DE PESQUISA EM CURRÍCULO – CENPEC, 2000, p. 7).
A cobrança hoje feita à educação, de inclusão e valorização da diver-
sidade, tem a ver com as estratégias por meio das quais os grupos huma-
nos e sociais considerados diferentes passaram a destacar politicamente
as suas singularidades e identidades, cobrando tratamento justo e iguali-
tário, desmistificando a ideia de inferioridade que paira sobre diferenças
socialmente construídas. Não é tarefa fácil trabalhar pedagogicamente
com a diversidade, sobretudo em um país como o Brasil, marcado, his-
toricamente, por profunda exclusão social. Um dos aspectos dessa exclu-
são — que nem sempre é discutido no campo educacional — tem sido a
negação das diferenças, dando a estas um trato desigual (GOMES, 2007).

72
ANTONIO GERMANO, MANUEL TAVARES

Para avançar na discussão, é importante compreender que a luta


pelo reconhecimento e pelo direito à diversidade não se opõe à luta pela
superação das desigualdades sociais. Ao contrário, ela coloca em ques-
tão a forma desigual pela qual as diferenças vêm sendo historicamente
tratadas na sociedade, na escola e nas políticas educacionais. Essa luta
alerta, ainda, para o fato de que, ao desconhecer a diversidade, pode-se
incorrer no erro de tratar as diferenças de forma discriminatória, au-
mentando ainda mais a desigualdade, que se propaga via conjugação de
relações assimétricas de classe, raça, gênero, idade e orientação sexual,
dentre outros.
Compreender a relação entre diversidade e currículo implica deli-
mitar um princípio radical da educação pública e democrática: a escola
pública se tornará cada vez mais pública na medida em que compreen-
der o direito à diversidade e o respeito às diferenças como um dos eixos
norteadores da sua ação e das práticas pedagógicas. Para isso, faz-se ne-
cessário o rompimento com a postura de neutralidade diante da diver-
sidade que ainda se encontra nos currículos e em várias iniciativas de
políticas educacionais, as quais tendem a se omitir, negar e ou silenciar
perante a diversidade.

Para Gomes (2007, p. 31),

[...] a inserção da diversidade nas políticas educacionais, nos cur-


rículos, nas práticas pedagógicas e na formação docente implica
compreender as causas políticas, econômicas e sociais de fenôme-
nos como: desigualdade, discriminação, etnocentrismo, racismo,
sexismo, homofobia e xenofobia.

Nessa linha de raciocínio, falar sobre diversidade e diferença im-


plica, também, posicionar-se contra todos os processos de colonização
e dominação. Implica compreender e lidar com relações de poder, mas,
mais do que isso, denunciar todas as formas de poder colonial e de do-
minação, pressuposto fundamental, para o reconhecimento da diversi-
dade cultural e para a promoção da interculturalidade ou, na perspec-
tiva de Santos (2010), da ecologia dos saberes. Para isso, é importante
perceber como, nos diferentes contextos históricos, políticos, sociais e

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A EFETIVAÇÃO DA HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRAS E AFRICANAS NO ENSINO PÚBLICO E
PRIVADO NA CIDADE DE SÃO PAULO

culturais, algumas diferenças foram naturalizadas e inferiorizadas, tra-


tadas de forma desigual e discriminatória. Trata-se, portanto, de um
campo de luta política por excelência.
Cabe destacar, aqui, o papel dos movimentos sociais e culturais em
prol do respeito à diversidade. Os movimentos negro, feminista, indíge-
na, juvenil, dos trabalhadores do campo, das pessoas com deficiência,
Gays, Lésbicas, Bissexuais e Travestis (GLBTs), dos povos da floresta,
entre outros, são atores políticos centrais nesse debate. Eles colocam em
xeque a escola uniformizadora e reprodutora, que, apesar dos avanços
dos últimos anos, ainda persiste nos sistemas conservadores e bancários
de ensino. Questionam os currículos, imprimem mudanças nos projetos
pedagógicos, interferem na política educacional, na elaboração de leis e
das diretrizes curriculares nacionais (GOMES, 2007).
O currículo escolar, diferentemente do discurso de multiculturalis-
mo e de pluralidade cultural, é povoado pela ideologia dominante, pelo
preconceito, responsáveis diretos pela exclusão, não somente reprodu-
zindo, mas também produzindo e reforçando, na teoria e na prática, a
desigualdade social.
Uma organização escolar combativa e dinâmica trabalha em prol da
libertação dos oprimidos, como postula Freire (2001), tem a obrigato-
riedade de socializar o conhecimento já sistematizado pela humanidade
e de levar o educando a refletir sobre si, sua cultura e seu universo,
questionando padrões e normas, além de levá-lo a investigar sobre a
sua realidade social e do seu grupo. Para Freire (2014, p. 59), “qualquer
discriminação é imoral e lutar contra ela é um dever por mais que se
reconheça a força dos condicionamentos a enfrentar”.
Uma escola comprometida com a igualdade e, ao mesmo tempo,
com a diversidade progride, em suas ideias e respeito ao educando, pen-
sa num currículo organizado por todos os envolvidos no processo de
ensino-aprendizagem. Leva em consideração as diversas opiniões, es-
cuta os pais, os funcionários, os professores e todos aqueles que fazem
parte da comunidade educativa. Dessa forma, ela concretiza a sua fun-
ção social numa perspectiva emancipatória e constrói, nesse processo,
uma postura crítica. O currículo deve ser entendido numa perspectiva
da sociologia crítica, dialógica e compartilhada.

74
ANTONIO GERMANO, MANUEL TAVARES

A criação de condições políticas e pedagógicas que garantam a im-


plementação da Lei nº 10.639/03 (obrigatoriedade do ensino de História
da África e da Cultura Afro-brasileira na Educação Básica) exige me-
didas políticas e práticas pedagógicas consistentes que garantam, para
todos os grupos sociais, sobretudo para os negros, que eles vivenciem e
partilhem sua cultura e história de forma plena.

Abordagem metodológica

Tendo em consideração o objeto de pesquisa, centrado na prática


pedagógica e, especificamente, no modo como os professores de duas
escolas (pública e privada) trabalham, com os seus alunos, a cultura
afro-brasileira e africana, cumprindo o que está determinado pela lei
10.639/2003, decidimos pela abordagem qualitativa, com o recurso a
entrevistas como instrumento metodológico de pesquisa. A metodolo-
gia qualitativa permite um estudo em profundidade por intermédio do
discurso dos sujeitos. Interpretar e compreender as práticas discursivas
e os diversos sentidos dos discursos, quer do ponto de vista ideológi-
co quer social e político, constitui a grande finalidade das abordagens
qualitativas e da análise de discurso, técnica utilizada na pesquisa rea-
lizada. O discurso foi entendido como prática social, na perspectiva de
M. Pécheux (1995) e E. Orlandi (2005), vinculado ao seu lugar de enun-
ciação (a escola), às condições sociais de produção e ao seu marco de
produção institucional, ideológica, cultural e histórico-conjuntural. De
um modo geral, os sujeitos emissores do discurso não estão na origem
do significado, mas este é determinado pelas condições ideológicas que
são postas em jogo em cada momento histórico e social no qual se pro-
duzem as palavras e os respectivos significados (KARAM CÁRDENAS,
2015). Foram entrevistados oito professores (cinco do sexo feminino e
três do sexo masculino), quatro de cada uma das escolas. As entrevistas
foram realizadas no primeiro trimestre de 2015 em função das seguintes
formações discursivas: conhecimento da lei 10.639/2003; realização de
trabalhos-projetos interdisciplinares; acesso e permanência de alunos
negros à e na escola; percepção sobre situação de racismo, preconceito
ou discriminação; formação dos professores. Os discursos dos docentes

75
A EFETIVAÇÃO DA HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRAS E AFRICANAS NO ENSINO PÚBLICO E
PRIVADO NA CIDADE DE SÃO PAULO

foram analisados em função das formações discursivas referidas. No


presente artigo, analisaremos os discursos dos docentes em função de,
apenas, três das formações discursivas enunciadas.

Análise e discussão dos dados

Formação discursiva: conhecimento da Lei nº 10.639/03

Relativamente ao conhecimento da Lei nº 10.39/2003, 4 dos sujei-


tos entrevistados revelaram possuir algum conhecimento dela e do seu
conteúdo, enquanto 4 revelaram não ter qualquer conhecimento. No
que diz respeito à relação entre professores da escola pública e da es-
cola particular, apenas uma professora da escola particular referiu ter
conhecimento da lei e do seu conteúdo. No entanto, essa mesma profes-
sora disse que a lei “(...) trata, da valorização, da cultura afro-indígena
dentro da escola”, o que não é correto dado que a lei se refere, apenas, à
cultura africana e afro-brasileira e não à cultura indígena. Dessa forma,
S1, S2 e S3, professores da escola pública, afirmaram conhecer a lei e o
seu conteúdo. S2 identifica ser uma lei federal. “É uma que tem... Lei Fe-
deral que tenta incenti... Regulamentar, vamos dizer assim...” S2 ressalta
a lei como uma imposição positiva para se trabalhar História, Cultura
e Literatura Africana na sala de aula. Apesar de não mencionar o termo
“afro-brasileira” em seu discurso, podemos inferir que este tem intro-
jetado a cultura afro-brasileira quando lança mão da palavra “africas”
no plural como possibilidade de abarcar todos os sentidos, inclusive a
cultura afro-brasileira. Silva (2001) menciona que, em relação ao dizer
“africanidades brasileiras”, estamos nos referindo às raízes da cultura
brasileira que têm origem africana.
O enunciado de S3 traz o verbo “estabelecer” o que pode evidenciar
o desconhecimento do sujeito em relação à obrigatoriedade de inclusão
da lei nos currículos da educação básica. Ao utilizar o verbo “estabele-
cer” e não “obrigar”, ele, de certa forma, ameniza em seu discurso o fato
de a Lei nº 10.639/03 ser obrigatória como diz o próprio Art. 26-A “nos
estabelecimentos de Ensino Fundamental e Médio, oficiais e particulares,
torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira”.

76
ANTONIO GERMANO, MANUEL TAVARES

Porém, é possível presumir que, apesar disso, S3 teve acesso à leitura da


lei e, dessa forma, se apropria da mesma para trazer ao seu discurso o
sentido da obrigatoriedade quando utiliza “estabelecer”.
S4 afirma não conhecer a Lei nº 10.639/03 e pergunta “não. (...) É
uma lei federal?” Por meio do seu enunciado, podemos perceber, de an-
temão, que não houve nenhuma formação oferecida pelas diretorias ou
pela unidade educacional que contemplasse a efetivação da lei. S4 relata
que “(...) em Língua Portuguesa nunca foi citado isso, pelo menos pro
meu conhecimento de todos os cursos que eu fiz”.
S6 e S7 são sintéticos e imperativos ao dizerem ambos “muito pou-
co. Pode atualizar a gente aí.”, não mencionam nenhum conteúdo refe-
rente ao “Muito pouco” do que sabiam e utilizam o verbo “poder” na
forma verbal “imperativo” em vez do indicativo do futuro do presente,
o que sugere arrogância e desinteresse pelo assunto.
S8 diz não se lembrar da Lei nº 10.639/03 “não. Não lembro.” e,
após tomar conhecimento do conteúdo da mesma simplesmente, res-
pondeu com um “ok”, o que, do nosso ponto de vista, pode revelar um
assentimento em relação à institucionalização da ausência do cumpri-
mento da lei.

Formação discursiva: acesso e permanência dos alunos negros na escola

O enunciado de S1 contextualiza a permanência dos educandos na


escola com base na marca “olha, eu acho que a escola em que eu dou
aula, ela tem um perfil bastante diferente nesse sentido também. (...)
Não desistem muito. Há uma iniciativa na escola, ela não está insti-
tucionalizada, mas há a iniciativa de vários professores que trabalham
com a Lei nº 10.639/03.”
Quando se questiona aos professores sobre a permanência dos alunos
na escola e a referência que tem a lei em relação a isso, os enunciados dos
professores de ambas as escolas sugerem uma desconfiança em relação
à aplicabilidade da lei na sala de aula e consideram que o conhecimento
que é dado sobre a referida lei é insuficiente; porém, S3 realça a impor-
tância da lei, demonstra sua preocupação com o aluno e, quanto ao con-
teúdo, afirma que o racismo é institucional.

77
A EFETIVAÇÃO DA HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRAS E AFRICANAS NO ENSINO PÚBLICO E
PRIVADO NA CIDADE DE SÃO PAULO

Para Souza (2011, p.79),

a noção de Racismo Institucional foi fundamental para o amadu-


recimento teóricopolítico do enfrentamento do racismo. Ao fazer
referência aos obstáculos não palpáveis que condicionam o acesso
aos direitos por parte de grupos vulnerabilizados, o conceito de Ra-
cismo Institucional refere-se a políticas institucionais que, mesmo
sem o suporte da teoria racista de intenção, produzem consequên-
cias desiguais para os membros das diferentes categorias raciais.

A forma institucional do racismo se manifesta em práticas discri-


minatórias sistemáticas, individuais e/ou nos mecanismos e normas
arquitetadamente previstos, com fins de perpetuação de desigualdades
raciais. O racismo institucional é praticado por pessoas, pela sua anu-
ência a uma estrutura, é uma prática da estrutura por meio das práticas
individuais.
O enunciado do S4 projeta certo descrédito quanto à real imple-
mentação dessa lei: “Tenho minhas dúvidas, tenho minhas dúvidas,
porque muitas leis não são respeitadas aqui”.
Para S5 há evidência de que os alunos negros frequentam menos
a escola do que os alunos brancos “na escola particular, eu vejo que a
frequência do negro é bem menor do que a do branco”.
S6, com uma resposta sucinta, “Com certeza”, demonstra imensa
vaguidão e falta de rigor no que se refere ao acesso e à permanência dos
alunos negros na escola e, logo, se exclui do compromisso da obriga-
toriedade de se trabalhar as questões mencionadas em relação à Lei nº
10.639/03.
S7 considera, em seu discurso, o conhecimento da lei insuficiente e
projeta certo descrédito quanto à implementação da lei, além de utilizar o
adjetivo “simples”, o que sugere uma desqualificação: “ (...) então eu acho
que não é uma só uma simples lei que vai fazer com que todos fiquem ali
estudando, vão ser valorizados, direitos iguais para todos.” Esse sujeito
desconhece o fato de que a lei é extremamente importante pois possibilita
a desconstrução de um modelo educacional ancorado em práticas euro-
cêntrica e excludente. A conquista histórica de direitos sociais implica a
existência de um quadro legal que sustenta esses direitos.

78
ANTONIO GERMANO, MANUEL TAVARES

A Lei nº 10.639/03 sinaliza para um modelo educacional que prio-


riza a diversidade cultural presente na sociedade brasileira e, por-
tanto, na sala de aula, de modo que as ideias sobre reconhecimento,
respeito à pluralidade cultural, democracia e cidadania prevaleçam
em todas as relações que envolvem a Educação e a comunidade
escolar, desde o processo de formulação de políticas educacionais,
de elaboração de currículos escolares e de formação de docentes
até as atividades pedagógicas, metodológicas e de acolhimento de
educandos. (SÃO PAULO, 2008, p.16)

S8 parece reconhecer a legitimidade e a importância da lei tal como


a importância do conhecimento na vida dos educandos “então, traba-
lhar essa questão na escola, na sociedade e, sobretudo, na sala de aula,
ela é muito importante.”

Formação discursiva: realização de projetos e interdisciplinaridade

Quanto à realização de projetos no ano de 2014, sozinho ou em


parceria com outros professores, que propusessem ações visando à efe-
tivação do ensino da História e Cultura Afro-brasileiras e Africanas tais
como concursos, festivais, feiras ou festas, peças de teatro, jogos didá-
ticos e oficinas. S2, S3, S4, S5, S6 e S7 disseram claramente que não re-
alizaram nenhum projeto com os alunos, somente S1 disse realizar um
trabalho com proposta, organização e objetivos.

Montamos uma esquete chamada, é, inspirada na interpretação do


poema da poetisa afro peruana chamada Vitória Santa Cruz, acho
que é da década de 60, e apresentando um nascimento de um fes-
tival chamado Festival de Arte e Cultura “Fac”, do Albino César, é,
dentre as outras atividades relacionadas à cultura, estava a apresen-
tação do grupo Dayo com essa peça, misturando também o “Navio
Negreiro” do Castro Alves. E a gente apresentou e está apresentan-
do em outras escolas também, agora, e há esse trabalho sim.

Os sujeitos, de uma forma geral, foram inexatos ao relatarem suas


experiências nos planejamentos e realização de projetos interdisciplina-
res sobre o tema das relações etnorraciais.

79
A EFETIVAÇÃO DA HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRAS E AFRICANAS NO ENSINO PÚBLICO E
PRIVADO NA CIDADE DE SÃO PAULO

S1 relata o fato de não ter realizado nenhum projeto interdiscipli-


nar, mas que houve a participação do professor de História no grupo de
discussões presente na escola. “Não. Eu não fiz trabalho, outros profes-
sores das escolas fizeram um trabalho nesse sentido, entendeu?”
Para Hilton Japiassú (1976), a interdisciplinaridade caracteriza-se
pela intensidade das trocas entre os especialistas e pelo grau de inte-
gração real das disciplinas no interior de um mesmo projeto. O autor
destaca, ainda, que, do ponto de vista integrador, a interdisciplinari-
dade requer um equilíbrio entre amplitude, profundidade e síntese. A
amplitude assegura uma larga base de conhecimento e informação. A
profundidade assegura o requisito disciplinar e/ou conhecimento e in-
formação interdisciplinar para a tarefa a ser executada. A síntese asse-
gura o processo integrador.
Assim, é possível inferir, em relação aos enunciados de S3, S5,S7
e S8, que não houve convergência com outras áreas além de Literatura
e História em relação aos trabalhos relacionados à História e culturas
africanas e afro-brasileiras. S3 referiu que dialoga com o professor de
Geografia, ocasionalmente, e que há vários professores que tratam da
questão africana, racismo e cultura africana; porém, lamenta o fato de
não haver planejamento “ só que como eu falei, a gente sentar, os profes-
sores, para a gente montar um planejamento interdisciplinar, isso está
para funcionar”.
Entre os relatos de suas práticas, os professores afirmaram que
abordam os conteúdos referentes à Lei nº 10.639/03 durante o ano todo
e não só em dias específicos como a “Abolição da Escravidão” e “Cons-
ciência Negra”.

Considerações Finais

Considerando, primeiramente, que ambas as escolas não contemplam


em seus Projetos Políticos- Pedagógicos (PPP) a Lei nº 10.639/2003, che-
gamos à conclusão de que o corpo docente das escolas públicas e priva-
das nas escolas pesquisadas do ensino fundamental e médio trabalha de
maneira insuficiente a aplicabilidade dos conteúdos referentes à História
e Cultura Afro-Brasileira. Os professores disseram não estar ocorrendo

80
ANTONIO GERMANO, MANUEL TAVARES

muita coisa significativa por parte do Estado e das escolas. Afirmaram


também que faltam compromissos destes e, principalmente, investi-
mento financeiro e formação docente.
Chegamos à conclusão, depois de comparar os discursos analisados
dos professores das duas escolas, que a escola pública estadual tem um
trabalho mais relevante quanto à aplicabilidade da Lei nº 10.639/03. As
ações desenvolvidas pelos professores da escola pública, de acordo com
seus discursos, foram mais bem executadas, e os conteúdos trabalhados
estão mais condizentes com a proposta da lei.
Em Língua Portuguesa, na escola pública, aconteceu um projeto
mais consistente e mais bem planejado no que diz respeito ao ensino da
História e cultura afro-brasileira e africana. Foi realizado pelo profes-
sor um grupo de estudos com os alunos e a participação de outros pro-
fessores. A partir disso montaram uma esquete inspirada na interpre-
tação do poema da poetisa afroperuana chamada Vitória Santa Cruz e
apresentaram em um festival chamado Festival de Arte e Cultura “Fac”,
dentre as outras atividades relacionadas à cultura, estava a apresentação
do grupo Dayo com essa peça, misturando também o “Navio Negreiro”
de Castro Alves. Eles se apresentaram em outras escolas também.
Apesar dos avanços que se vêm tendo com as políticas públicas afir-
mativas, ainda são muitos os desafios e as dificuldades que os negros e
suas organizações continuam enfrentando para fazer valer os seus direi-
tos, inclusive no campo educacional, em que se percebem as principais
mudanças.
Após uma década da criação da Lei nº 10.639/03, muitos têm sido os
desafios para que ela se efetive de fato nas escolas brasileiras. Entre eles,
na percepção dos professores entrevistados, estão: carência da forma-
ção inicial e continuada dos professores para trabalhar com a temática
da diversidade étnico-racial e cultural do povo brasileiro e da humani-
dade; o fundamentalismo religioso da parte dos sujeitos envolvidos nos
processos educacionais; ação mais efetiva, conjunta e cooperativa entre
as instituições responsáveis pelo processo educacional e os profissionais
da educação, os movimentos sociais e a sociedade.

81
A EFETIVAÇÃO DA HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRAS E AFRICANAS NO ENSINO PÚBLICO E
PRIVADO NA CIDADE DE SÃO PAULO

Referências

BRASIL. Lei nº 10.639, de 09-01-03: altera a Lei 9.394/96 para incluir


no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática
“História e cultura afro-brasileira e africana”.

BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos


Jurídicos. Lei n° 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394,
de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da
educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a
obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras
providências. Brasília, DF, 2003. Disponível em:<http://www.planalto.gov.
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ANTONIO GERMANO, MANUEL TAVARES

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83
A EDUCAÇÃO PARA AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS
E O CURRÍCULO A PARTIR DA LEI 10.639/2003

Djalma Lopes Góes1


Jason Mafra2

1. Introdução

Este artigo apresenta a temática da diversidade étnico-racial iniciada


nos Parâmetros Curriculares Nacionais, passando pela Lei 10.639/03 e
demais regulamentos a saber: Diretrizes Curriculares Nacionais para
a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e
Cultura Afro-brasileira e Africana; o Plano Nacional de Implementação
das Diretrizes Curriculares Nacionais para educação das relações
étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e
africana; o Parecer n.º 03 de 10 de março de 2004 e a Resolução n.01
de 17 de junho de 2004, que auxiliam no processo de implementação

1  Graduado em Ciências Sociais pelo Centro Universitário Fundação Santo André. Professor de
Educação Básica II da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo e discente do Programa de
Mestrado em Gestão e Práticas Educacionais.

2 Graduado em História e doutor em Educação pela USP. Docente do Programa de Pós-


Graduação em Educação da Uninove e diretor do Programa de Mestrado em Gestão e Práticas
Educacionais pela mesma universidade.

84
DJALMA LOPES GÓES, JASON MAFRA

da referida lei. Procuramos dialogar com os conceitos, categorias,


temáticas e tendências que possibilitam uma fundamentação teórica
voltada ao entendimento da Lei e a reelaboração do currículo.
Os conceitos sobre educação para a educação das relações étnico-
-raciais e currículo serão tematizados conjuntamente com foco e neces-
sidades de mudança do trabalho pedagógico no sentido da execução da
lei que inseriu a temática da história e cultura africana e afro-brasileira
na educação básica.
A política educacional modificada pela Lei 10639/03 implica esta-
belecer novas diretrizes e práticas pedagógicas que reconheçam a im-
portância do legado cultural e histórico dos povos africanos e afro-bra-
sileiros no processo de formação nacional, das relações e diversidade
étnico-raciais. Mas a Lei não se limita a isso, ela propõe o acompanha-
mento pedagógico de sua aplicação.
Há mais de 127 anos do pós-abolição, especificamente a partir da
Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xeno-
fobia e Intolerâncias Correlatas, realizada em Durban, África do Sul,
em 2001, inicia-se o debate, em termos de Estado, sobre a dinâmica das
relações raciais no Brasil, em especial, das diversas formas de discrimi-
nação racial vivenciadas pela população negra (CONE, 2005, p.7).
Para essa reflexão, tomaremos como referência e fio condutor refe-
renciais teóricos sobre diversidade das relações étnico-raciais e currícu-
lo e documentos considerados marcos legais no processo de discussão
e implementação de ações por uma política de educação étnico-racial.
Dentre outros, para este exame nesse conjunto de documentos, desta-
camos aqui:
a) Lei 10.639/2003 que estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obriga-
toriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira” e dá outras
providências;
b) As Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Ét-
nico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana;
c) O Parecer CNE/CP 003/2004;
d) Resolução N.º 1/CNE de 17/06/2004;

85
A EDUCAÇÃO PARA AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E O CURRÍCULO A PARTIR DA LEI 10.639/2003

e) O Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares


Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino
de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana;
Como subsídios teóricos, dentre outros autores e obras, recorremos
a Gilberto Luís Alves, especialmente em seu estudo “Em busca da histo-
ricidade das políticas escolares” (2007); Celso Vasconcelos, sobre “Cur-
rículo: a atividade humana como princípio educativo” (2009). Monteiro
e Motta (2013), com o trabalho “Gestão Escolar: perspectivas, desafios
e função social”.
O objeto de reflexão do presente escrito tem como escopo geral A
Lei 10.639/2003 e o Currículo Escolar. Entre a cultura escolar e a prá-
tica pedagógica para a educação das relações étnico-raciais, buscamos
intuir teoricamente as modificações necessárias sobre a organização
do trabalho didático, as práticas pedagógicas, a gestão do currículo e
a aplicação da lei.
Partimos de uma problematização acerca da legislação mencionada,
articulada à gestão do currículo na perspectiva do fazer pedagógico.
Pensando a escola como mundo e a cultura que é produzida no inte-
rior dela, passando por influências exógenas e endógenas, apresenta-
mos a seguinte indagação: em que media as práticas educativas em sala
de aula possibilitam desenhos curriculares e posturas pedagógicas que
atendam ao preceito legal da educação voltada para o cumprimento da
Lei 10.639/03 relacionada à gestão do currículo?

2. A gênese da Lei 10.639/2003

Pensar o currículo escolar e ações pedagógicas na lógica dos


direitos humanos, principalmente num país construído durante mais
de 350 anos, pela força de trabalho nativa e africana na diáspora,
pode contribuir para a consolidação que se preconiza na Constituição
Federal de 1988, qual seja, a que submete a efetivação da ideia de
nação à educação em seus níveis e modalidade. Nesse sentido, a partir
da Lei 10639/03, busca-se consolidar o respeito e o reconhecimento à
diversidade étnico-racial como possibilidade de superação do racismo
e das desigualdades raciais.

86
DJALMA LOPES GÓES, JASON MAFRA

A Lei 10639/03, que tornou obrigatório o ensino da História e Cultura


Africana e Afro-brasileira em todos os estabelecimentos de ensino da
educação básica, desde 09 de janeiro de 2003, não modificou apenas a Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Ela traz consigo um grande
debate pertinente às políticas de ações afirmativas para o negro brasileiro.
As ações previstas em lei resultam de um longo debate iniciado nos
anos 1960, em meio a governança planetária - convenções, conferências
e encontros da Organização das Nações Unidas (ONU) - e compõem
o discurso estratégico dos organismos internacionais que defendem a
instituição de políticas sociais direcionadas aos estratos populacionais
fragilizados e empobrecidos, entre os quais, os pretos brasileiros, no
processo de implementação da Lei 10.639/2003.
Os marcos legais que antecedem essa Lei constituem-se em linhas
de ações que subsidiam a prática docente na lida pedagógica cotidiana.
Dentre os principais documentos que assinalam os momentos desse
processo, destacamos: 1) Declaração Universal dos Direitos Humanos de
10/12/1948; 2) A Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de
Discriminação Racial de 21 de dezembro de 1965. Ratificado pelo Brasil
conforme Decreto 65.810 de 08/12/1969; 3) Convenção Americana de
Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) de 22 de novembro
de 1969, aprovada pelo Brasil em 25 de setembro de 1992 e; 4) III
Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia
e outras formas de Intolerância Correlatas, 31 de agosto a 8 de setembro
de 2001.
A conferência conhecida como Declaração de Durban e Plano
de ação resultou, por parte dos Estados, na assunção, ratificação e
reconhecimento de que

[...] a escravidão e o tráfico escravo, incluindo o tráfico de escravos


transatlântico, foram tragédias terríveis na história da humanida-
de, não apenas por sua barbárie abominável, mas também em ter-
mos de sua magnitude, natureza de organização e, especialmente,
pela negação da essência das vítimas. (DURBAN, 2001).

A Declaração de Durban reconhece que o tráfico transatlântico


e a escravidão configuram crime contra a humanidade e, por sua vez,

87
A EDUCAÇÃO PARA AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E O CURRÍCULO A PARTIR DA LEI 10.639/2003

crime contra os direitos humanos. Ela também preconiza meios para


indenização e combate ao racismo, à discriminação racial, à xenofobia
e à intolerância correlatas. A mesma declaração obriga e solicita aos
seus signatários que adotem medidas de prevenção, educação e proteção
com vistas à erradicação do racismo, discriminação racial, xenofobia e
intolerância correlata em níveis nacionais, regionais e internacionais.
Os dispositivos legais, ora expostos, versam sobre as origens, causas,
formas e manifestações contemporâneas de racismo, discriminação racial,
xenofobia e intolerância correlata. Estabelecem conteúdos programáticos
a serem incorporados pelas nações ratificadoras e devem promover
medidas de prevenção, educação e proteção, com objetivos de superação
dessas opressões raciais e seus aspectos em níveis nacionais, regionais e
internacionais.
É importante notar que, embora o Brasil tenha ratificado a primeira
Declaração no final dos anos 1960, somente no século XXI organizou
políticas públicas com a pretensão de inserir positivamente, o povo preto,
na agenda da proteção e integração societária como políticas de ações
afirmativas. Sobre isso, observemos o que diz a Lei 10.639/03:

[...] O Presidente da República. Faço saber que o Congresso Nacio-


nal decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1º A Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar
acrescida dos seguintes arts. 26-A, 79-A e 79-B:
“Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio,
oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e
Cultura Afro-Brasileira.
§ 1º O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo
incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos
negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação
da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas
áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.
§ 2º Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira
serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial
nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.
§ 3º (VETADO) “; «Art. 79-A. (VETADO)»
“Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como
‘Dia Nacional da Consciência Negra’.”

88
DJALMA LOPES GÓES, JASON MAFRA

Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. Brasília,


9 de janeiro de 2003. (BRASIL. Lei 10.636 de 9 de janeiro de 2003).

3. A Lei 10639/03 e a educação das relações étnico-raciais

Historicamente, o Brasil se constituiu a partir do trabalho escravo.


Essa modalidade de trabalho no continente americano antecede o
trabalho fabril. Esta forma social de produção de mercadorias veio a
dar o impulso primeiro e necessário para a acumulação de capital. Logo,
a temática racial está umbilicalmente associada a exploração dessa
força de trabalho. Segundo Marx (2013), como acumulação primitiva
de capital “[...] a transformação da África numa reserva para a caça
comercial de peles-negras caracteriza a aurora da era da produção
capitalista […], momento fundamental da acumulação primitiva”
(MARX, 2013, p. 821).
A Lei 10.639/2003, ao inserir a temática do ensino de história e
cultura afro-brasileira e africana na educação básica, traz à baila, pela
primeira vez, o ente estatal como precursor do debate sobre o racismo.
Um estado escravista, cujos traços de capitalismo atrófico incorporam
a permanente ideologia do agrarismo e do conservadorismo, que serve
aos ditames da classe dominante brasileira, com as suas singularidades
e particularidades desse modo de produção.
É preciso explicitar que a Lei 10639/2003, que legisla sobre o ensino
da história e cultura afro-brasileira e africana, não é uma lei paralela
à educação escolar. Ela encarna a própria Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDB), na media em que modifica os artigos 26 e 79,
inserindo respectivamente os artigos 26A e 79B.
As passagens a que se referia a LDB tratava da base comum curri-
cular para as modalidades de ensino fundamental e médio, nos sistemas
de ensino, municipal, Distrito Federal, estadual e nos estabelecimentos
escolares. Diversificada e que fossem observadas as diferenças locais e
regionais. Embora abrangesse as áreas de conhecimento, códigos e lin-
guagens (língua portuguesa, arte, educação física, língua estrangeira),
a matemática, as ciências da natureza (física, química e biologia) e as
ciências humanas (história, geografia, sociologia e filosofia), não tra-

89
A EDUCAÇÃO PARA AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E O CURRÍCULO A PARTIR DA LEI 10.639/2003

tava da temática das relações e diversidade étnico-raciais. Na verdade,


afirmava o etnocentrismo europeu instituído em forma de currículo.
Historicamente, a escravidão apresenta características econômicas
como elemento determinante. Nas palavras de Eric Williams (2012), ti-
nha sido a base da economia greco-romana, dentre tantas civilizações
do velho mundo que a instituíram, e na América foi uma instituição de
primeira importância.

[...] a escravidão [na América] tem sido identificada com o negro


de uma forma demasiado estreita. Com isso deu-se uma feição ra-
cial ao que é basicamente um fenômeno econômico. A escravidão
não nasceu do racismo: pelo contrário, o racismo foi consequência
da escravidão (WIILIAMS, 2012, p. 34).

Entendendo que o racismo brasileiro, em sua origem, atendeu as


perspectivas de consumo do continente europeu, os trabalhadores se-
questrados de África durante o tráfico transatlântico, fenômeno co-
nhecido pelo nome de Diáspora Africana, não podem ser vistos como
imigrantes a procura de melhorias das condições de vida. São pessoas
que, sequestradas de suas terras, foram postas a trabalhar cotidiana e
compulsoriamente, com vistas a produzir no sistema de fazenda, sob
controle direto dos senhores de engenho.
As relações étnico-raciais pautadas no escravismo reificaram o
africano. Tratado como coisa e, ao mesmo tempo, parte integrante
do capital inicialmente acumulado, o seu proprietário tinha poder de
vida e morte sobre o africano escravizado. Isto significa que os fazen-
deiros, senhores de engenhos, poderiam dar o destino que lhe cabiam
sem que fosse lhe imputado qualquer descumprimento de norma.
Como evidenciam muitos estudos (STEPAN, 2014), após o proces-
so abolicionista, com apoio dos meios de comunicação e a burguesia
expoente do capital atrófico, o Brasil se utilizou de uma Política Públi-
ca, a Eugenia, para tentar dizimar a população de ascendência africa-
na, que resultou num processo de morticínio e no aprofundamento da
racismo. Todo esse processo resultou no que Abdias do Nascimento, o
Movimento Hip Hop e o Movimento Negro denominam de Genocídio
do Povo Preto.

90
DJALMA LOPES GÓES, JASON MAFRA

Diante desse quadro e levando-se em conta a situação atual das


desigualdades econômico-sociais, bem como as tantas práticas racis-
tas instituídas até o início deste século XXI, é possível concluir que a
elite brasileira, ou, pelo menos sua parte mais poderosa, etnocentris-
ta, branca, conservadora não apenas rejeita a integração dos negros
na sociedade de classes, como mobiliza-se para manter resquícios do
escravismo, reforçando a condição histórica de inferioridade perpe-
trada pelo modo de produção escravista no contexto do capitalismo 3.
Se o processo econômico na integração social é perverso, não
menos cruel é a exclusão negra no processo educacional formal. Des-
de os primórdios deste País plural e multiétnico, desde que os pretos
estejam trabalhando ou segregado, a educação sempre foi dificulta-
da. Vejamos esta situação ainda no período escravista:

[...] quanto à época da escravidão, não há um consenso entre auto-


res sobre a extensão da escolaridade do negro. Encontramos infor-
mações de que os escravos eram absolutamente excluídos da escola,
mesmo de instrução primária [...] os escravos e leprosos eram proi-
bidos de frequentarem as escolas. (BRASIL. Resolução 382, artigo
35, 1854 apud WENCZENOVICZ, T.J. e GOMES, E, 2015, p. 226).

Mais à frente, o mesmo documento estabelece que:

Os professores receberão por seus discípulos todos os indivíduos,


que, para aprenderem primeiras letras, forem apresentando-lhe,
exceto os cativos e os afetados de moléstias contagiosas” (Idem)

3  Há inúmeros contextos atuais que demonstram a tentativa de inferiorização de negros e ne-


gras na sociedade brasileira pelas elites. Um exemplo paradigmático, particularmente no âmbito
da questão econômica, pode ser observado na resistência das elites em reconhecer os direitos das
trabalhadoras e trabalhadores domésticos. Embora o serviço doméstico seja uma das profissões
mais antigas e centrais da vida, até o ano de 2016 as trabalhadoras e trabalhadores domésticos
(grupos compostos em sua maioria por mulheres negras e homens negros) ainda não tiveram
seus direitos plenamente equivalentes aos demais trabalhadores. Vale destacar que o contrato
mais básico da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), criada em 1943, o registro assinado
em Carteira de Trabalho, só foi garantido em forma de lei às trabalhadoras e trabalhadores do-
mésticos na primeira década do século XXI.

91
A EDUCAÇÃO PARA AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E O CURRÍCULO A PARTIR DA LEI 10.639/2003

Como se pode observar nesses trechos de documento da época do Brasil


imperial, século XIX, essa segregação ocorria de forma escancarada o que
levava à sua naturalização, ou seja, à legitimação da exclusão do processo
educativo de negras e negros na sociedade brasileira.

4. Parecer CNE/CP 003/2004

O Parecer CNE/CP0003/2004 trata de um documento regulatório das


modificações introduzidas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Na-
cional, Lei Federal 9.394/1996, referente ao ensino de História e Cultura
Afro-Brasileira e Africana nos estabelecimentos de educação básica e ní-
vel superior, preconizados na Lei 10.639/2003. Obedece aos princípios do
ordenamento jurídico do Estado Democrático de Direitos, em especial, a
Constituição Federal de 1988.
O Parecer é um orientador para educadores, educandos, profissionais da
educação e demais cidadãos que buscam no entendimento da educação para
a diversidade das relações étnico-raciais a ratificação e valorização do legado
histórico e cultural dos afro-brasileiros.
Aponta para uma política curricular de combate ao racismo, em termos
de formação inicial de professor, garantia de direitos do educando e a valo-
rização das identidades e diversidade étnicas. Dentro da dimensão educativa
sobre educação para as relações étnico-raciais perspectivada pelo parecer,
à escola atribui-se um papel de suma importância no sentido do combate e
eliminação da discriminação racial e o empoderamento dos grupos étnicos
historicamente discriminados.
Ao que tudo indica, o Parecer suscitou a necessidade de se organizar ca-
minhos para o exercício de uma educação que possa abarcar positivamente as
identidades dos povos situados em solo brasileiro. O respectivo parecer aponta,
assim, para a criação das Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações
Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.

5. A resolução nº 01 de junho de 2004

A Resolução N.º1 de 17 de julho de 2004 delineia o percurso que os


sistemas de ensino, estabelecimentos escolares e níveis devem enveredar

92
DJALMA LOPES GÓES, JASON MAFRA

para o estabelecimento de uma educação das relações étnico-raciais


que resultem no fortalecimento da diversidade étnica e identitária.
Ela instituiu oficialmente as Diretrizes Curriculares Nacionais para
a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História
e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Ao direcionar o currículo e a
educação sobre o legado Afro-Brasileiro, a resolução define o papel dos
sistemas, das instituições, dos especialistas, professores e demais atores
que atuam na causa para a educação e diversidade das relações étnico-
raciais.
Ampliou o entendimento da obrigatoriedade da temática da educação
das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasi-
leira e africana não somente da educação básica, mas também das Institui-
ções de Ensino Superior, principalmente “as que desenvolvem programas
de formação inicial” (DCN, 2013, p. 512).
As Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Étnico-Ra-
ciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana são
constituídas de orientações, princípios e fundamentos que levem as Insti-
tuições, os estabelecimentos de ensino e os sistemas de ensino, ao planeja-
mento, execução e avaliação da Educação que se almeja, nos termos da lei
10.639/2003. A meta a ser alcançada diz respeito à promoção de cidadãos
atuantes e conscientes que tenham as suas vivencias concretizadas em meio
a sociabilidade multicultural e pluriétnica, percebendo e travando relações
étnicos-raciais positivas, que valorizem a diversidade de identidade racial
com a finalidade de construção de uma nação democrática.
Ensinar História e Cultura Afro-Brasileira e Africana é uma ação de-
cisiva para o reconhecimento e a valorização da identidade destes povos,
com vistas à igualdade de valorização histórico-cultural de matriz africana
da nação brasileira, no mesmo patamar dos outros povos, dentre eles, indí-
genas, europeus e asiáticos.
Para uma configuração e materialização do currículo, os sistemas de
ensino e as mantenedoras devem incentivar e criar condições materiais e
financeiras para prover as escolas, professores e alunos, de material biblio-
gráfico e de materiais didáticos necessários a viabilização da Educação das
Relações Étnicos-Raciais e o Estudo de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana. Nesse sentido as coordenações pedagógicas devem exercer rele-

93
A EDUCAÇÃO PARA AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E O CURRÍCULO A PARTIR DA LEI 10.639/2003

vante papel para aprofundamento da temática, estimulando os professores


a conceber e desenvolver grupos de estudos, elaboração de projetos e pro-
gramas e articulando os componentes curriculares, fornecendo subsídios
para o plano escolar, planejamento pedagógico e plano de ensino.
A presente Resolução ainda atribui aos sistemas de ensino a garantia
e o direito dos alunos afro-brasileiros de frequentar estabelecimentos de
ensino de qualidade, com infraestrutura adequada, cursos ministrados
por professores com domínio dos conteúdos de ensino comprometidos
com a diversidade das relações étnico-raciais que visem o combate ao
desrespeito e formas de discriminações raciais.

6. Currículo: o trabalho pedagógico e a Lei 10.639/2003

O currículo aparece nas práticas escolares como um caminho que


nos leva à produção do saber considerado e assemelhado aos conteúdos,
vivências de aprendizagens e planos (de curso e de ensino). De acordo
com Alves, “a organização do trabalho didático constitui-se conceitu-
almente, nos limites de outras categorias mais centrais, tais como tra-
balho e organização técnica do trabalho” (2007, p. 256). Logo, a lida
pedagógica reflete a historicidade das práticas escolares como reflexo
da natureza das relações sociais, situada como dimensão material do
trabalho humano, ou seja, resulta do trabalho como formação social
histórica, ligado ao modo de produção social vigente.
O currículo deve ser entendido como conjunto de experiências de
aprendizagem, organizado pela escola, sobre responsabilidade da esco-
la, girando em torno dos saberes escolares com vistas a contribuir para
formação intelectual e das identidades de nossos estudantes.
Segundo Vasconcellos (2009), o conceito de currículo tem um sen-
tido histórico, marcado por visões de mundo e posicionamentos peda-
gógicos.
As perspectivas da proposta curricular e o percurso das ações de
aprendizagem, tornados currículo, voltados ao cumprimento da Lei
10.639/2003, devem estar direcionados para desenvolver uma educação
das relações étnico-raciais nas esferas “conceituais (relativos a informa-
ções, fatos, conceitos, imagens), procedimentais (habilidades, hábitos,

94
DJALMA LOPES GÓES, JASON MAFRA

aptidões, procedimentos) e atitudinais (disposições, sentimentos, inte-


resses, posturas, atitudes)” (VASCONCELLOS, 2009, p. 56).
Consequentemente, a aprendizagem com foco na educação da diver-
sidade das relações étnico-raciais, pensada ao longo do ano letivo, deve ser
elaborada e em conjunto com os sujeitos da educação, na unidade escolar
e no sentido de atender aos requisitos estabelecidos na Lei 10.639/2003,
em especial, o disposto no parágrafo 2º do artigo 26A, segundo o qual, “os
conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministra-
dos no âmbito do currículo escolar” (BRASIL, 2003).
As instituições escolares, enquanto instituições do sistema do capi-
tal, transmitem uma determinada cultura, selecionada e veiculada nos
currículos. O trabalho educativo, objetivado por meio de instrumentos
didáticos-pedagógicos, mediados por um corpo docente, expressa os
antagonismos dos estratos sociais em luta. Logo, podemos afirmar que
o currículo não é apenas um programa, que o professor desenvolve co-
tidianamente com os seus educandos. Mais do que isso,

[...] o currículo escolar é uma prática social complexa, construída


historicamente, vinculada às relações sociais, políticas, econômi-
cas e culturais ... O entendimento do currículo como uma práxis
implica na compreensão de que diversos tipos de ações interferem
na sua configuração, adquirindo sentido em um contexto real. [...]
Uma concepção processual de currículo entende o seu significa-
do e importância real como resultado dos diferentes âmbitos aos
quais está submetido. [...] As instituições educacionais transmitem
determinada cultura e aquela selecionada e veiculada nos currícu-
los se relaciona com o contexto no qual se situam ela própria e as
instituições escolares. O currículo, de alguma maneira, expressa o
conflito de interesses e os valores dominantes que guiam a escola-
rização (REGIS, 2009, p.45).

Dialeticamente, o currículo não é somente expressão das demandas


do sistema do capital, mas, ao constituir-se como reflexão crítica do modo
de produção a que está inserido, pode contribuir, por suas ações e pelos
seus efeitos, para efetuar um movimento de mudança pessoal e social.
Nesse sentido, um currículo voltado para atender a Lei 10.639/03
deve desenvolver nos educandos a assunção da diversidade étnico-racial.

95
A EDUCAÇÃO PARA AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E O CURRÍCULO A PARTIR DA LEI 10.639/2003

Para tanto, na perspectiva de uma consciência histórica e para superar-


mos as contradições entre ação e intenção, devemos sempre ter em mente
que o Brasil tem resistido em aceitar e reconhecer as divergências das re-
lações étnico-raciais. Essa memória nos obriga a compreender essa resis-
tência como fenômeno decorrente da estrutura social escravista que, por
quase 4 séculos, apropriando-se da vida e da mão-de-obra de africanos
e seus descendentes, resultou na dominação racial e econômica de um
povo (europeu) sobre o outro (africano), situação que a literatura mun-
dial denominou genericamente de racismo.

Considerações Finais

Embora haja extensa literatura sobre o tema, ao falar das questões


étnico-raciais, é sempre importante lembrar que as relações raciais na
América foram forjadas a partir das relações sociais estabelecidas eco-
nomicamente, a partir do desenvolvimento do sistema do capital em sua
fase de acumulação primitiva. Nesse quadro internacional, ao se estabele-
cer em terras americanas, os povos europeus implementaram uma forma
de produção intensiva de produtos e gênero agrícolas para suprir as de-
mandas do continente europeu, abastecendo-o com açúcar, café, riquezas
minerais, dentre outros.
O modelo de organização do trabalho preconizado, no regime de fa-
zenda, foi o trabalho compulsório em sua versão mais cruel, que ensejou
o sequestro e tráfico de africanos para a América sob o regime de escravi-
zação. Mantida e aprimorada pelas necessidades da exploração intensiva,
por cerca de quatro séculos, esse modelo econômico cristalizou relações
de superioridade para os europeus e inferioridade para os africanos e seus
descendentes. Essa forma de trabalho forçado engendrou complexa rede
de relações de dominação, com o propósito de inferiorização de todas as
dimensões da cultura e práticas dos africanos em solo brasileiro.
Dessa relação de escravização, como desdobramento entre os sujeitos
da produção econômica colonial, imperial e posteriormente, republicana,
institucionalizaram-se inúmeras práticas de degradação humana basea-
das no conceito de superioridade e inferioridade. Disso, resultou a insti-
tuição do racismo, da discriminação racial e do preconceito racial.

96
DJALMA LOPES GÓES, JASON MAFRA

Como toda história de opressão, esse contexto foi marcado tam-


bém pelos movimentos de resistência e libertação da comunidade negra
ocorridos durante todo o período diaspórico, seja nos momentos mais
cruéis do estado escravista, seja no período pós-abolição.
As políticas de equidade social passaram então a ser pensadas no
Brasil, de forma mais contundente, somente após a realização da III Con-
ferência Mundial de Combate ao Racismo, a Homofobia, Xenofobia e
Intolerância Correlata, conhecida pelo nome de Declaração de Durban,
ocorrida em 2001. Ao ratificar a referida Declaração, o governo brasilei-
ro passou a adotar medidas de combate ao racismo. Uma das primeiras
medidas foi a criação da Lei 10.639/03 no sentido de valorizar a história
e cultura legada pelos afro-brasileiros na construção da nação brasileira.
Instituída a Lei 10.639/03, o Conselho Nacional de Educação (CNE)
iniciou um processo de regulamentação. Ao aprovar as Diretrizes Na-
cionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de
História e Cultura Afro-brasileira e Africana, sob Parecer CNE Nº 03 de
10/03/2004, que estabelece orientações de conteúdos a serem incluídos
e trabalhados nos currículos escolares em todos os níveis e modalidades
de ensino, expôs os limites e a necessidade de inovação de práticas edu-
cativas na elaboração, organização e execução do currículo.
Essa literatura normatizadora traz na esteira da diversidade étnico-
-racial a importância da organização do trabalho didático-pedagógico.
A possibilidade de uma reconfiguração deve ser preconizada em razão
de novos paradigmas da educação (dentre os quais, holístico, ecológico
e sistêmico), em que o trabalho didático e as práticas escolares possam
ser materializados de forma articulada na reestruturação do currículo.
Nesse sentido, há uma necessidade de redimensionar toda a organi-
zação do trabalho pedagógico e curricular, pensada de forma inovadora,
sintonizada com os princípios da equidade racial que resulte no fortale-
cimento de uma educação para a diversidade das relações étnico-raciais.
Há que se observar a importância da gestão democrática, pois, a par-
tir dela, pode-se estabelecer maior grau de participação e de responsabi-
lidades dos atores sociais. No processo educacional ocorrido no interior
da escola, essa perspectiva pode instituir decisões em favor da diversida-
de étnico-racial que permeie a organização do trabalho didático, resga-

97
A EDUCAÇÃO PARA AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E O CURRÍCULO A PARTIR DA LEI 10.639/2003

tando o sentido histórico da escola enquanto instituição educativa que


promove equidade étnico-racial.
As leituras de apoio para o entendimento das Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de
História e Cultura Afro-Brasileira e Africana apontam para a necessidade
de superação do etnocentrismo europeu diluído nos temas e conteúdos dos
materiais didáticos escolares, bem assim numa reestruturação do currículo,
quanto à formulação, organização, gestão e execução. Que seja pensado
como práticas educativas inovadoras, fundamentadas teórica e metodolo-
gicamente por procedimentos e instrumentos didáticos que possam vis-
lumbrar novos arranjos curriculares e instrumentos pedagógicos para in-
teragir organicamente com as diferentes áreas de conhecimentos expressas
no currículo para a consecução de uma educação voltada às práticas em
diversidade étnico-racial.
A organização curricular, que demanda o processo de trabalho didáti-
co escolar, sustentáculo e hospedeira da inovação pedagógica cidadã, volta-
das para a educação do século XXI e assumindo as Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais, apresenta desafios
na materialização do Currículo, dentre as quais, as premissas de uma edu-
cação antirracista, levando em consideração os conceitos de escola, cultura
organizacional e gestão de pessoas. Inovar pedagogicamente e historicizar
as práticas escolares se faz necessário, em termos de uma lida pedagógica
sistêmica que inclua a diversidade das relações étnico-raciais.
À luz das categorias e conceitos apresentados em diálogo com o com-
plexo normativo para a Educação da Relações Étnico-Raciais, especifica-
mente com as lentes que possibilitaram enxergar os meandros da configu-
ração e execução do currículo frente à implementação da Lei 10.639/03 e
suas normativas reguladoras - que exigem o ensino de História e Cultura
dos povos afro-brasileiros e africanos nos estabelecimentos de educação
básica das redes pública e privada – procuramos problematizar o debate so-
bre a efetivação das políticas de ações afirmativas, no campo da educação,
para a população negra.
De fato, ainda que tantas iniciativas e movimentos estejam engaja-
dos nesse processo, apenas inicia-se o debate sobre a possibilidade de se
educar para a igualdade racial, fundamentada numa práxis pedagógica

98
DJALMA LOPES GÓES, JASON MAFRA

que possa fortalecer e afirmar, mas acima de tudo criar, uma educação
escolar para a diversidade das relações étnico-raciais.
O propósito maior deste debate consiste em pensar sobre as ma-
neiras mais eficazes de se materializarem na prática, a execução das
declarações, resoluções e tratados internacionais, traduzidas em ações
pedagógicas, que possam convergir institucionalmente em políticas so-
ciais favorecedoras da construção da identidade, relevância e diversi-
dade étnico-raciais dos protagonistas da prática pedagógica, isto é, de
toda comunidade educativa.

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102
MORADORES DE RUAS EM SÃO PAULO: UMA
VIDA MARGINAL

Fernando Leonel Henrique Simões de Paula1


Neide Cristina da Silva2

Introdução

O presente estudo tem como objeto as concepções de liberdade para


os moradores de rua de São Paulo, discutindo as relações de poder e
opressão impostas a esta população e, explicitando essas relações den-
tro do grupo. Considerando que a maioria dessa população é composta
por negros (38%), buscou-se realizar um resgate histórico da situação
do negro no Brasil, com o objetivo de entender quais os fatores sociais
e políticos que impeliram parte da população negra brasileira a morar
nas ruas das grandes capitais.
Sendo o Brasil um país de mestiços, tendo forte presença do negro na
formação da sua população. A introdução dos primeiros negros se deu
por ter o Brasil adotado o escravismo colonial, no qual os portugueses

1  Mestre Educação UNINOVE. Licenciatura em Ed. Física. fernandodepaula62@gmail.com

2  Doutoranda Educação UNINOVE. Profa. História na rede estadual de ensino de São Paulo.
neidesilva87@hotmail.com

103
MORADORES DE RUAS EM SÃO PAULO: UMA VIDA MARGINAL

recorreram à escravidão negra em detrimento da escravidão dos


autóctones. Diferentemente da escravidão indígena, os negros tiveram,
desde cedo, sua escravização sancionada pela Igreja Católica e pela
Igreja Protestante. Ao longo dos quatro séculos de escravismo colonial
no Brasil, existiram diferentes formas de escravidão, que não se limitou
ao escravismo na agricultura.
No século XIX, houve um crescimento da escravidão urbana, na
qual os negros escravizados exerciam atividades, como: escravos de ga-
nho, artesãos, serralheiros, mecânicos, mestre de obras, alfaiate, carpin-
teiro, pedreiro, britador, entre outros. Ao longo da segunda metade do
século XIX, observou-se a substituição paulatina do trabalho escravo
pelo livre e, no final desse século, aumentou-se a pressão econômica
internacional para que se abolisse a escravidão.
A pressão externa, aliada à luta radical antiescravista dos negros
(que resistia ao sistema, formando quilombos, organizando fugas, le-
vantes, assassinatos e até mesmo cometendo suicídio), aos movimentos
abolicionistas (que eram mais moderados) e aos interesses políticos e
econômicos internos, culminou na sanção da Lei 3.353, de 13 de maio
de 1888, que no artigo 1º declarou extinta a escravidão no Brasil. As
senzalas foram abertas, mas aos ex-escravizados não eram dadas terras
ou qualquer outro auxílio, e não houve nenhuma medida por parte do
Estado e da sociedade para ressarcir os africanos e seus descendentes
dos danos: psicológicos, materiais, sociais, políticos e educacionais so-
fridos sob o regime escravista. Dessa maneira, a liberdade física não
veio acompanhada pela liberdade econômica e pela inserção social.
Ao longo do século XIX e XX as políticas de exclusão marginali-
zaram a população negra resultando em um quadro desigual em que
pessoas negras têm menor número de anos de estudos do que pessoas
brancas. Na faixa etária de 14 a 15 anos, o índice de pessoas negras não
alfabetizadas é 12% maior do que de pessoas brancas na mesma situ-
ação. Aproximadamente 15% das crianças brancas entre 10 e 14 anos
encontram-se no mercado de trabalho, enquanto 40,5% das crianças
negras, na mesma faixa etária, vivem essa situação.
No século XXI, a população negra continua às margens da socie-
dade, em uma situação subalterna em termos de mercado de trabalho,

104
FERNANDO LEONEL HENRIQUE SIMÕES DE PAULA, NEIDE CRISTINA DA SILVA

de acesso à educação, de cargos públicos e outros. Sujeitos a políticas


governamentais que objetivam a segregação espacial e social de grande
parte desse grupo, refletindo na desqualificação social dessa população
que, no limite da exclusão, vai morar na rua.

Imersão histórica

Os negros foram escravizados na África e trazidos para o Brasil


como máquinas de trabalho. Contudo, o negro não se limitou à fun-
ção que lhe foi destinada pela classe dominante e, apesar da escravidão,
manteve seus cultos e as suas superstições, penetrou a Igreja Católica,
fundando as irmandades de São Benedito e de Nossa Senhora do Rosá-
rio, organizou juntas de liberdade e quilombos.
O negro escravizado não poderia ser considerado boçal, exercendo
jornadas de trabalho de quinze a dezoitos horas diárias, alimentados
de acordo com a função que exerciam. Foram os primeiros a morrer de
fome nos períodos de seca e escassez; exerciam os mais diversos traba-
lhos, com ínfimas horas de lazer.
Além da exaustiva carga horária, poucas horas de lazer e parca ali-
mentação, os negros escravizados ainda sofriam castigos corporais. O
mais frequente era o açoite, que chegou a ser banalizado pela constância
com que era aplicado; também existia a máscara de Flandres – confec-
cionada em metal flexível, cobria todo o rosto, à exceção do nariz e dos
olhos, tendo como objetivo impedir a ingestão de alimentos e bebidas.
Na zona aurífera, fora utilizada para impedir que os escravos engolis-
sem alguma pepita de ouro. Havia também o calabouço. Localizado nas
cadeias, era o local em que os escravos eram torturados por ordem dos
senhores que não queriam sujar suas mãos. Existia, finalmente, a pena
capital, geralmente por enforcamento.
Diante desta situação, o negro resistia e, entre os anos de 1807 e
1835, várias insurreições escravas foram organizadas em Salvador. Ne-
las, os escravizados realizaram formas superiores de luta a favor da li-
berdade e da destruição do sistema escravista. De acordo com Freitas
(1976, p. 9), os insurgentes urbanos “[...] não deixaram de mobilizar
os escravos dos quilombos, das plantações e dos engenhos”. Este autor

105
MORADORES DE RUAS EM SÃO PAULO: UMA VIDA MARGINAL

questiona a que atribuir a singularidade das insurreições de Salvador,


contestando a explicação de Nina Rodrigues, que lhes atribuiu a um
movimento religioso muçulmano e, não, a uma mobilização política
contra o regime escravista.
Apresentando como referência o livro Insurreições escravas, de Frei-
tas (1976), pode-se afirmar que as insurreições tinham como objeti-
vo destruir o sistema escravocrata, pois os negros escravizados tinham
consciência da sua humanidade e os maiores aliados dos escravos eram
os libertos, demonstrando que havia uma solidariedade étnica e cons-
ciência política dos escravos. Ramos (1979, p. 247), no livro As culturas
negras no novo mundo, também concorda que, na chamada “Revolta
dos Malês”, “[...] não reconheceram primordialmente causas econômi-
cas, como querem alguns ensaístas. Elas tiveram causas culturais, contra
aculturativas”. Este ponto de vista é compartilhado por Moura (2004, p.
26), ao apresentar que “[...] para nós, a religião foi um elemento ideoló-
gico mediador entre a situação objetiva [...] ordem social escravista e a
consciência dessa situação alienadora”.
Outras formas de resistência dos negros escravizados eram as fugas,
os assassinatos de senhores, a formação dos quilombos e os suicídios.
Pinsky (1998, p. 61) informa que, “[...] no limite de sua resistência
física e moral, o escravo se matava. Além de gesto de libertação, de
ponto final à sua condição de objeto, ele golpeava fundo seu senhor,
fazendo com que tivesse prejuízo do investimento”.
Encerrando o tópico referente à resistência negra, não se poderia
silenciar sobre a importância dos quilombos, que foram as organizações
de resistência mais radicais ao sistema escravocrata e era no quilombo
que o negro negava, radicalmente, a escravidão e conquistava a condi-
ção de ser livre:

O quilombola é o homem que adquire, pela sua condição radical, a


sua liberdade. Ele não pode ser meeiro, camponês, posseiro ou ar-
rendatário. Só pode ser homem livre ou escravo. [...] É somente no
quilombo que ele adquire a sua cidadania (MOURA, 2004, p. 32).

Portanto, para Moura a quilombagem constituiu um processo de des-


gaste das forças do Modo de Produção Escravista Colonial; significou um

106
FERNANDO LEONEL HENRIQUE SIMÕES DE PAULA, NEIDE CRISTINA DA SILVA

movimento de rebeldia permanente, organizado e dirigido pelos próprios


escravos (exceto o Quilombo do Jabaquara). Foi um movimento emanci-
pacionista que antecedeu o movimento liberal abolicionista, atravessan-
do todo o sistema escravista, desarticulando-o, constantemente, desde o
começo da escravidão. E o autor chama atenção para o fato de que “[...]
eles (os quilombos) foram não apenas uma força de desgaste [...], mas
pelo contrário, agiam em seu centro, isto é, atingindo, em diversos níveis,
as forças produtivas do escravismo e, ao mesmo tempo, criando uma so-
ciedade alternativa” (MOURA, 2004, p. 43).
Nas Américas, “[...] a resistência engendrou os movimentos de luta
antiescravista que culminou na abolição” (MUNANGA, 2004, p. 6). Não
há dúvidas que a abolição só se concretizou em virtude da resistência
do negro, que não aceitou sua condição como escravizado e combateu,
veementemente, enquanto esse sistema perdurou. No entanto, a abolição
no Brasil foi tardia e o abolicionismo liberal não promoveu a revolução,
não revogou os privilégios da elite branca latifundiária, não promoveu a
igualdade social e, ainda, diminuiu a força do abolicionismo negro, subs-
tituindo o conflito da primeira fase da quilombagem pela acomodação.
Como exemplo, pode ser mencionado o movimento dos caifazes que
apresentava um discurso radical, mas que acabou servindo como solução
conciliadora que satisfazia os interesses dos fazendeiros.
O aludido movimento organizou o quilombo do Jabaquara, em San-
tos, e, para lá, enviou os negros retirados das fazendas, assim como os
negros foragidos. Mas os escravizados enviados para o Jabaquara tinham
um papel passivo na organização e manutenção do quilombo e eram su-
bordinados aos abolicionistas que, por sua vez, eram moderados. Apesar
de serem a favor da abolição da escravidão, eram contra a radicalização
do movimento antiescravista.
O processo da abolição da escravidão no Brasil ocorreu de forma len-
ta, atendendo mais aos interesses da elite brasileira do que aos dos negros
escravizados; em 1888, aprovou-se a Lei n.º 3.353, conhecida como “Lei
Áurea”, determinando o fim da escravidão. Tal lei, que agradou tanto aos
abolicionistas como os setores mais conservadores da sociedade, pôs um
ponto final “[...] numa situação que envergonhava a nação. Colaboran-
do com a ideia de liberdade outorgada, com a tentativa de escamotear

107
MORADORES DE RUAS EM SÃO PAULO: UMA VIDA MARGINAL

o protagonismo do escravo na derrocada do regime” (JACINO, 2008, p.


65). Aos escravos foi concedida uma liberdade teórica e aos senhores e ao
Estado não foi atribuída nenhuma obrigação com os libertos; mais uma
vez prevaleceram os interesses dos proprietários de escravos (BASTIDE;
FERNANDES, 2008).
Jacino entende que, no decorrer do século XIX, o Brasil produziu
uma legislação que teve como consequência a marginalização do negro,
pois quanto mais o sistema escravista ia chegando ao fim, mais a classe
dominante adotava medidas para impedir a inserção do negro liberto
na nova estrutura social pós-escravista.
No primeiro período pós-abolição (1889-1930), houve um recuo
nas condições socioeconômicas dos negros livres e recém-libertos, que
eram hostilizados como trabalhadores e como seres humanos. O pro-
cesso de reabsorção do elemento negro no sistema de trabalho ocorreu
a partir das ocupações mais humildes e mal remuneradas.
Como o ex-escravizado não estava em condições de competir com
o imigrante europeu, a sobrevivência econômica dos negros se concen-
trou em dois tipos de atividades: serviços urbanos e suburbanos e como
trabalhadores rurais por conta própria, obrigando-se a vender seus
produtos por preços inferiores aos praticados no mercado (BARBOSA,
2004; BASTIDE; FERNANDES, 2008).
Mediante esse quadro adverso, a população negra precisou organizar-
-se e, a partir de 1915, formaram-se clubes e associações de negros, inten-
sificando-se este movimento entre 1918 e 1924. Em 1924, foi fundado em
Campinas (SP) o primeiro jornal negro, O Getulino, e, no ano de1931, foi
fundada a Frente Negra, dirigida pelos irmãos Veiga dos Santos.
A Revolução de 1930 e a lei do trabalho nacional reabriram, gradu-
almente, as possibilidades de aproveitamento da mão de obra negra nas
atividades industriais urbanas, pois havia interesse político em dimi-
nuir a influência dos sindicatos controlados por imigrantes europeus.
Dando sequência a este movimento, em 1944 foi formado o Teatro
Experimental do Negro (TEN), sob a liderança de Abdias Nascimento,
que também criou um fórum para os negros promoverem seus direitos
civis e, em 1949, junto com outros grupos de interesses, foi organizado
o Primeiro Congresso Nacional Negro.

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FERNANDO LEONEL HENRIQUE SIMÕES DE PAULA, NEIDE CRISTINA DA SILVA

Em 1951, foi sancionada a Lei n.º 1.390, denominada “Lei Afonso


Arinos”, que tinha como ponto relevante a proibição das discrimina-
ções raciais. As reivindicações continuaram e com a promulgação da
Constituição de 1988, o racismo foi considerado crime inafiançável e
imprescritível e se garantiu a posse das terras dos remanescentes dos
quilombos.
Em meados da década de 1990, o movimento negro nacional orga-
nizou a Marcha Zumbi dos Palmares Contra o Racismo, pela Cidadania
e a Vida que, em novembro de 1995, reuniu mais de 30 mil militantes
na capital federal. A marcha relembrava os 300 anos da morte de Zumbi
dos Palmares e culminou no reconhecimento, pelo governo brasileiro,
de Zumbi como herói nacional; na criação de um grupo no governo
para estudar políticas antirracistas; na adoção de ações afirmativas pelo
governo e pelas universidades públicas.
No mesmo ano (1995), foi sancionada a Lei n.º 9.125/95 que,
no artigo 1.º, instituiu o ano de 1995 como o “Ano Zumbi dos Palmares”,
destinado a homenagear o tricentenário da morte do líder quilombola.
No artigo 2.º, estabeleceu o dia 20 de novembro como data nacional,
oficializando-a como o Dia da Consciência Negra.
Na década seguinte, em articulação com o Movimento Negro, o de-
putado federal Paulo Paim apresentou o Projeto de Lei n.º 3.198/00,
que instituiu o Estatuto da Igualdade Racial, em defesa dos que sofrem
preconceito ou discriminação em função de sua etnia, raça e/ou cor. Em
2003, foi aprovada a Lei n.º 10.639/03, que altera a Lei n.º 9.394, de 20
de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional, para incluir, no currículo oficial da Rede de Ensino, a obriga-
toriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”.
No entanto, apesar dos avanços, a desigualdade entre brancos e ne-
gros persiste, pois, de acordo com Censo 2010, o diferencial de rendi-
mento entre os grupos de cor ou raça ainda é relevante. Brancos apre-
sentam rendimentos médios mensais de R$ 1.538,00, semelhantes a
amarelos de R$ 1.574,00, enquanto os grupos de pretos percebem R$
834,00, pardos R$ 845,00 e indígenas R$ 735,00. Ou seja, os brancos
recebem, praticamente, o dobro de rendimento dos negros; nos grandes
centros, essa relação chega a 3,2.

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MORADORES DE RUAS EM SÃO PAULO: UMA VIDA MARGINAL

A liberdade sob o olhar do oprimido na periferia da periferia do


capitalismo

A população de rua possui mais que o desejo do consumo desenfrea-


do imposto pelo sistema capitalista, tem a vontade de ser livre, de ser vista
e percebida sem sofrer o descaso, a repulsa, a opressão e a exclusão social.
Exclusão para essa população é encarada como um desrespeito do
poder público. A opressão e repressão são sentidas como a ausência de
liberdade, que é explicitada quando os moradores de rua são agredidos
verbal e fisicamente, ou são impedidos de transitarem em determinados
lugares públicos.
No senso comum, as pessoas que moram nas ruas são culpabilizadas
por viverem nessas condições; por outro lado, para o Estado são “pes-
soas em situação de rua” e, portanto, estão em uma situação transitória.
Os autores da presente pesquisa se contrapõem ao termo “pessoas em
situação de rua”, uma vez que, na maioria das vezes, esta é uma situação
permanente e, por isso, optou-se por denominar esta população como
“moradores de rua”.
Na verdade, o morador de rua é um indivíduo sem habitação, que
tem o seu fundo de consumo dissipado e passa a depender da rede pú-
blica de proteção social, apropriando-se do espaço público como mora-
dia (GIORGETTI, 2012).
A população de rua é constituída por pessoas desempregadas, imi-
grantes, migrantes, egressos do sistema prisional, deficientes físicos,
deficientes mentais, entre outros.
De acordo com o Censo da população “em situação de rua” da ci-
dade de São Paulo (2015), nesta cidade há 15.905 pessoas nestas con-
dições, sendo 7.335 nas ruas e 8.570 acolhidos. Nos anos 2000, eram
5.013 nas ruas e 3.693 acolhidos, portanto, em 15 anos a população de
rua praticamente dobrou. Atualmente, dos 15.905 moradores de rua,
82% são homens, 14,6 % são mulheres e 3,4% não identificados. A idade
média é de 40 anos.
Concernente à raça/cor, o censo de 2015 ainda não apresentou a por-
centagem, mas no Censo de 2011 (SÃO PAULO, 2011) consta que 25%
são brancos, 38% pretos/pardos, 0,3% indígenas, 0,2% oriental e 36% não

110
FERNANDO LEONEL HENRIQUE SIMÕES DE PAULA, NEIDE CRISTINA DA SILVA

classificados. Estes dados não são conclusivos, devido à grande porcenta-


gem de não identificados; dentre os classificados, percebe-se uma maior
predominância dos negros, dados que demonstram mais uma vez a situa-
ção de exclusão da população negra, desde os tempos da escravização até
os dias atuais.
De acordo com pesquisa de campo3, essa população passa a morar nas
ruas por motivos pessoais e sociais como: a) perda de vínculo familiar, às
vezes provocados pelo alcoolismo, drogas psicoativas e o desemprego; b)
educação deficitária que reflete na desqualificação profissional; c) graves
problemas de saúde; d) violência doméstica; e) ausência de políticas de
inserção dos antigos detentos etc. O resultado são indivíduos com con-
dições mentais fragilizadas, que acabam se isolando e não vislumbrando
nenhuma possibilidade ou alternativa para sua real libertação.
Esses seres oprimidos caminham em círculos, a procura de espaço no
meio social para viverem com dignidade, apesar da condição de excluí-
dos. Esperam encontrar um caminho, uma oportunidade para inclusão,
mas são considerados desocupados, vagabundos e preguiçosos.
E é nas noites frias, e em que o morador de rua está faminto, que ele
sonha em ser livre, feliz, transcendendo, pois, suas necessidades que não
se resumem a apenas um “prato de quentinha”, como a falsa generosidade
opressora coloca. Querem mais, querem que o dia amanheça com outra
perspectiva, onde possa conseguir um endereço, um trabalho, um estudo.
Desejam ser notados e ter uma vida com dignidade, liberdade e respeito,
como todos os homens e mulheres querem e merecem.
No entanto, a sociedade opressora denomina o morador de rua de
vagabundo e drogado, o enxerga como um ser desprezível que não é dig-
no de estar diante de supostas pessoas de “bem”, em qualquer lugar e,
contrapondo pesquisas como a de Giorgetti (2012) – que afirma que o
morador de rua não é violento – negam sua cidadania e os rotulam como
delinquentes violentos.
Os opressores, acima de tudo, desejam que os moradores de rua
estejam cada vez mais afastados da dignidade humana, para assim, jus-
tificarem as agressões impostas a estes, culpando-os pela sua miséria,

3  Entrevista realizada com 18 (dezoito) moradores (as) de rua.

111
MORADORES DE RUAS EM SÃO PAULO: UMA VIDA MARGINAL

que em grande parte foi causada pelo sistema social desigual e perverso
em que estão inseridos. Na verdade, tem-se um ciclo no qual a violência
e a desigualdade são formas de manter o poder da classe dominante. De
acordo com Freire (1987, p. 45),

Esta violência, como um processo, passa de geração a geração de


opressores, que vão fazendo legatários dela e formando-se no seu
clima geral. Este clima cria nos opressores uma consciência for-
temente possessiva de mundo dos homens. Fora da posse direta,
concreta, material, do mundo e dos homens, os opressores não se
podem atender a si mesmos. Não podem ser. Deles como consci-
ência necrófilas, diria Fromm que, sem esta posse, “perderiam el
contacto con el mundo”. Daí que tendam a transformar tudo o que
os cerca em objeto de seu domínio.

Diferentemente do que o senso comum possa afirmar, não é simples vi-


ver de migalhas e ter que lutar contra o opressor que habita em seu interior,
assim como o opressor que habita os outros moradores de rua, que per-
seguem uns aos outros, disputando espaço, comida, coberta e até drogas.
O opressor que habita o interior do morador de rua é o que atua, a
partir da opressão que o sistema capitalista exerce sobre ele. Diante dessa
realidade, pensar a realidade do morador de rua é pensar o que justi-
fica sua atitude imediatista e questionar quais as razões da resistência
de muitos(as) moradores(as) de rua para deixarem essa situação. Seria a
sensação de liberdade?
A rua lhes proporciona um sentimento de liberdade, de poderem es-
tar em qualquer lugar; por este motivo, não se sentem tão oprimidos,
mesmo sendo ridicularizados, diminuídos, humilhados e vigiados. A
ideia de estarem em qualquer lugar a qualquer hora lhes propicia esta
sensação de falsa liberdade.
Podemos dizer que esta falsa liberdade é o motivo de sua resistência
à verdadeira libertação, esta liberdade que está no seu subconsciente, no
interior dos oprimidos que é imposta pelo opressor de forma que esta falsa
liberdade o controle, o conforte; que, por meio dela, os opressores conti-
nuem agindo e atuando de forma desumana e com seus “gestos generosos”
continuem controlando e vigiando.

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FERNANDO LEONEL HENRIQUE SIMÕES DE PAULA, NEIDE CRISTINA DA SILVA

Para o morador de rua, a liberdade é estar onde a discriminação, a


opressão e a repressão não tenha espaço para tirar sua voz. Poder ter o
direito de falar diante da injustiça que fere o direito universal da pessoa
humana, assim como afirma Freire (1987, p. 12):

O seu ideal é realmente ser homem, mas, para eles, ser homens, na
contradição em que sempre estiveram e cuja superação não lhes é
clara, é ser opressoras, este são o seu testemunho de humanidade.
[...] O seu conhecimento de si mesmo como oprimido se encontra
prejudicado pela “imersão” em que se acham na realidade opresso-
ra. “Reconhecerem-se”, a este nível, contrário ao outro, não signifi-
ca ainda lutar pela superação da contradição. Daí esta quase aber-
ração: um dos polos da contradição pretendendo a não libertação,
mas a identificação com o seu contrário.

Esta aderência ao opressor faz com que a libertação fique mais dis-
tante, pois a liberdade implica expulsão do outro. Não é uma doação,
exige uma busca constante e é uma ação na qual o oprimido deixa de
hospedar o opressor.

Cultura da regionalidade

O morar na rua não é igual para toda população de rua, existem dife-
renças com relação ao gênero, idade e local de ocupação. Referente a este
último item, a presente pesquisa identificou que existe uma cultura da re-
gionalidade, que se manifesta de formas diferentes de acordo com o local
em que o morador ou grupo de moradores de rua ocupam.
O conceito de cultura varia de uma sociedade para outra, assim como
de um grupo para o outro, de uma região para outra, de uma rua para
outra. Considerando que indivíduos de uma mesma sociedade possuem
visões de mundo diferentes, é natural que enxerguem a exclusão e a opres-
são de forma diversa e, no caso do morador de rua, não é diferente, cada
grupo se vê como melhor que o outro. De acordo com Laraia (2004, p. 16),

Se oferecêssemos aos homens a escolha de todos os costumes do


mundo, aqueles que lhes parecessem melhor, eles examinariam a

113
MORADORES DE RUAS EM SÃO PAULO: UMA VIDA MARGINAL

totalidade e acabariam preferindo os seus próprios costumes, tão


convencidos estão de que estes são melhores do que todos os ou-
tros. Segundo o autor, Taylor definiu em 1871, a cultura como sen-
do todo o comportamento aprendido, tudo aquilo que independe
de uma transmissão genética.

Dentro desta questão, os locais onde o morador de rua habita obtêm


algum favorecimento que se destaca de outros, tornando-o superior, justa-
mente pelo fato que aquele favorecimento de algumas representações seja
importante dentro de suas necessidades para a sobrevivência na rua “[...]
as representações nascem a partir de interesses de grupos ou frações de
classe que desenvolvem formas de explicar o real segundo tais interesses”
(ALMEIDA, 2001, p. 30).
A diversidade dessas habitações – a) albergue público; b) ruas, calçadas,
praças públicas, becos ou vielas; c) casarões ou prédios vazios – é um fator
que altera a interpretação dos conceitos de exclusão, opressão e liberdade.
Por exemplo, o indivíduo que mora na rua está mais desprotegido do que
aquele que mora no casarão, que por sua vez está mais vulnerável do que
quem vive nos albergues. No albergue, a presença do Estado é maior e o pró-
prio morador de rua se vê superior aos que moram nas calçadas ou casarões.
Nas diversas habitações, os conflitos estão presentes com frequência,
ficando de lado o ético e a boa conduta social, inclusive entre membros
da mesma família. Esses conflitos, muitas vezes, são provocados por uso e
abuso de substâncias psicoativas, que, como afirma Humberg (2002, p. 39),
inviabilizam um determinado grau de convivência:

É muito difícil, senão impossível, estabelecer um padrão ético para


todos. O que é fundamental é sempre ter consciência de respeitar o
ser humano. Cada vez que você não respeita o ser humano você não
está sendo ético. Como no caso das prisões, onde você não está sendo
ético, porque não se respeita a dignidade humana. É preciso respeitar
as diferenças não pelo fato de eu achar que estou certo e que você está
errado. Você pode estar tão certo quanto eu a partir de outros padrões.
Existe um campo intermediário, mas existem alguns valores que têm
que ser tomados como base em qualquer país e em qualquer situa-
ção. Temos que respeitar a dignidade humana, garantida pela carta da
ONU, e respeitar as diferenças éticas, sociais e culturais.

114
FERNANDO LEONEL HENRIQUE SIMÕES DE PAULA, NEIDE CRISTINA DA SILVA

As representações da rua transitam entre a verdade e a mentira, en-


tre o certo e o errado, entre o verdadeiro e o falso. E quando o morador
de rua se motiva a morar em outro lugar (rua, albergue, casarão aban-
donado) ele é movido por uma necessidade que vai além da ausência de
moradia convencional; é motivado por uma “[...] força da eficiência das
representações, bem como a sua capacidade de adequar-se às condições
históricas que estão vinculadas à sua habilidade de dissimular, em es-
conder uma parte do real” (ALMEIDA, 2001, p. 27).
Estes locais são escolhidos de acordo com a necessidade, personali-
dade, ideia de liberdade e as relações de poder, de cada morador ou gru-
po. Quando estes atores/sujeitos estão em uma situação adversa, como
a ocupação do seu espaço por outros moradores, despertam o opressor
que hospedam e passam a oprimir os demais, reproduzindo nas ruas, a
classe opressora que se encontra na sociedade.
São várias as formas, jeitos, situações, condições até mesmo posi-
ções de se localizar na rua, pois há uma estrutura instituída onde ha-
bita esta população. Há hierarquia e relações de poder em seu interior,
existindo a sensação de que, obtendo este poder sobre os demais, será
mais forte e menos excluído, pertencente ao grupo dos opressores, gru-
po mais fortalecido em relação a outras localidades.
Dentro de determinadas situações específicas, apropriar-se de es-
paços como liderança lhe propicia poder, que é legitimado perante os
demais, muitas vezes negando o diálogo com membros de outras loca-
lizações, impondo uma condição de respeito no qual “[...] os oprimi-
dos, tendo a ilusão de que atuam, na atuação da liderança, continuam
manipulados exatamente por quem, por sua própria natureza, não pode
fazê-lo” (FREIRE, 1987, p. 122).

Mulher, a voz da liberdade

Tratar do universo feminino não é uma tarefa fácil, principalmente


quando se trata de exclusão, opressão e violência imposta à mulher mo-
radora de rua.
A violência contra a mulher é uma constante em nossa sociedade, que
a enxerga como submissa; no caso da moradora de rua, essa submissão

115
MORADORES DE RUAS EM SÃO PAULO: UMA VIDA MARGINAL

a coloca em condições desfavoráveis deixando-a vulnerável ao abandono


das ruas e a mercê dos julgamentos preconceituosos dos ditos “cidadãos
de bem”.
A moradora de rua é julgada tanto pela sociedade burguesa, con-
servadora, machista e que se julga branca, como pelos próprios mo-
radores de rua. Os primeiros as culpabilizam e responsabilizam por
estarem em condições sub-humanas, fingindo ignorar que tais cir-
cunstâncias foram geradas pelo sistema excludente de selvageria so-
cial em que nos encontramos.
Esta sociedade rotula-a como despudorada, leviana, facilitadora se-
xual e usam o discurso que “se elas estão nessas condições é porque
querem, afinal, poderiam estar trabalhando como empregada domés-
tica ou realizando algum trabalho similar de servidão”. Por sua vez, os
homens moradores de rua, aproveitam-se da fragilidade emocional e
mental dessas mulheres e as exploram de forma extremamente violenta,
covarde e desumana. De acordo com depoimento das entrevistadas, “na
maioria das vezes elas sofrem abuso sexual e apanham dos outros mora-
dores e, se quiserem diminuir esses abusos, precisam se juntar a algum
homem da rua, para receber sua proteção”, sendo que este, ao mesmo
tempo, a protege e oprime. Além da violência física, são desumaniza-
das, sendo ofendidas e chamadas de “maloqueira, cadela, vaca, macaca,
nóia” (nóia é um termo usado nas ruas aos dependentes químicos, ori-
ginado de “paranoia”), entre outros.
A dificuldade da rua para essas mulheres é enorme. E elas afir-
mam que “o que mais dói é a violência e agressão dos iguais, esta
penetra na carne e sangra”. Situação em que oprimido hospeda em
sua consciência o ser duplo, oprimido e hospedeiro do opressor, em
sua situação concreta de opressão, que a faz de vítima do próprio
oprimido.
As mulheres deste universo são submetidas à prostituição pelos
próprios membros deste grupo social, são violentadas sexualmente e
agredidas ao se negarem à submissão, à opressão machista imposta. De
modo que a pesquisa demonstrou que as mulheres (e crianças, que não
fazem parte do universo) são as mais marginalizadas e precisam usar a
“manha do oprimido”, a “malícia” para sobreviver.

116
FERNANDO LEONEL HENRIQUE SIMÕES DE PAULA, NEIDE CRISTINA DA SILVA

A educação como forma de libertação, para o morador de rua

Dentro da concepção capitalista, o morador de rua pouco reflete


sobre sua condição e forma de libertação, sobre as condições que o faz
sentir-se e ser cada vez mais excluído dentro deste sistema político e
econômico opressor, que lhe nega a oportunidade de legítima inclusão,
capaz de ser um cidadão possuidor dos direitos universais.
No entanto, em alguns momentos existe essa reflexão e faz-se ne-
cessário criar uma estrutura formada a partir da educação como uma
forma de libertação, para potencializar essas reflexões. A importância
desta educação é a força crítica, o poder de reflexão que traz consigo,
pois com ela surgem relações do mundo real com o abstrato, respostas
e conscientização sobre opressão e dominação, assim como a compre-
ensão dos desafios a serem enfrentados contra uma vida alienada e alie-
nante, rumo à libertação.
Esta forma de libertação se dá com consciência, com fé e esperança,
pois, apesar das condições impostas, é possível resistir à violência, à
injustiça e à falsa generosidade do opressor. No entanto, as críticas do
oprimido, que são adquiridas por meio de uma educação emancipado-
ra, são vistas como rebeldia e ingratidão pelo opressor, que não aceita a
libertação e prefere continuar com o discurso paternalista de que “nada
lhe acontecerá, você estará protegido”, dificultando a busca contínua
pela real libertação.
Sabemos que esta forma de opressão é uma forma desumanizante
de posição de dependência e com a manutenção da consciência do se-
nhor, de servir e agradecer pela migalha oferecida, de agradecer pelos
direitos que são roubados, temendo a superação, como salienta Freire
(1987), acomodados e adaptados, imersos na engrenagem da estrutura
dominadora.
Os moradores (as) de rua temem a liberdade, evitando o risco de
assumi-la, mas é preciso a tomada de consciência, para entender que a
liberdade não é uma doação, é uma conquista e deve ser uma busca con-
tínua contra a opressão. E a educação humanista será capaz de libertar e
transformar os moradores de rua com uma visão de mundo onde serão
capazes de libertar também o opressor.

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MORADORES DE RUAS EM SÃO PAULO: UMA VIDA MARGINAL

A importância desta educação emancipadora composta é a força


crítica, o poder de reflexão que traz consigo, do pensar certo; através
dela, surgem suas relações reais dialéticas com o mundo abstrato, sua
consciência em relação a ele, a do antes e do depois, sua forma real em
enxergá-lo, onde é feita sua leitura, obtendo suas respostas e consci-
ência sobre a opressão, sobre a dominação, sobre a exclusão, sua com-
preensão e respostas sobre os desafios compreendidos, como também
a percepção sobre ele mesmo cada vez mais desalienada, rejeição de
denúncia contra qualquer tipo ou forma de discriminação.

Considerações finais

O conceito de exclusão para os moradores de rua é o desrespeito,


descaso ou abandono pelo Estado, que não faz valer os direitos uni-
versais da pessoa humana. Também é um meio utilizado pelo opres-
sor para se beneficiar dessa exclusão, propagandeando a segurança
dos shoppings e condomínios fechados em detrimento da rua, “que é
perigosa com uma população lasciva, leviana, drogada, despudora” e
outros adjetivos.
No ano de 2015, somente a cidade de São Paulo conta com 15.905
moradores de rua, em sua maioria pretos/pardos, que assim como seus
antepassados, depois da abolição, foram abandonados nas ruas para
definharem. Uma população que o Estado intitula como em “situação
de rua”, mas que, na verdade, mora na rua e tem pouca ou nenhuma
perspectiva de abandoná-la.
São homens, mulheres e crianças invisíveis, que sofrem com a vio-
lência física e moral, sendo que, a exemplo do que ocorre na socie-
dade, são as mulheres e crianças as mais oprimidas e as mulheres (e
supõe-se que as crianças) são as maiores vítimas, sofrendo inclusive
com a opressão dos próprios moradores de rua do sexo masculino.
Em relação à educação como forma de liberdade para o morador
de rua, pode-se afirmar que, apesar das ameaças dos opressores, os
moradores de rua enxergam a liberdade como superação, como forma
de se livrar do opressor sem temer e sem deixar espaço para o “outro”.
No entanto, os moradores de rua ainda estão “presos” a uma falsa li-

118
FERNANDO LEONEL HENRIQUE SIMÕES DE PAULA, NEIDE CRISTINA DA SILVA

berdade, mas defende-se que, a partir de uma educação humanista,


será possível vislumbrar uma liberdade real, crítica e autônoma que
poderá mudar não só a sua visão de mundo como propiciar uma luta
por ser mais.

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pdf>. Acesso em: 16 ago. 2015.

120
A APROXIMAÇÃO DA FILOSOFIA COM A
TEMÁTICA ÉTNICA NEGRA1

Jorge Alves de Oliveira2

A filosofia no espaço escolar e a temática da etnia negra

A presença da filosofia enquanto componente curricular do ensino


médio vai além da relação professor-estudante. Dada à sua constituição
as questões filosóficas extrapolam aquela relação primária e, acaba re-
percutindo em outros ambientes.
Lorieri (2002) explica que

a Filosofia é diferente das demais formas de conhecimento, porque


ela trabalha principalmente e prioritariamente sobre certas ques-
tões, utilizando uma maneira própria de abordá-las, tendo em vista
a produção de respostas que nunca se fecham, porque são continu-
amente questionadas. (p. 35)

1  Este texto, originalmente, consta dos anais do V CBPN - Congresso Baiano de Pesquisadores
Negros. Aqui ele se apresenta com alterações a fim de atender às demandas desta produção.

2  Doutorando do PPGE da Universidade Nove de Julho – Uninove; Professor de filosofia junto


à SEE - SP. Membro dos grupos de estudo e pesquisa GRUPEFE e do YLE EDUCARE, ambos na
Universidade Nove de Julho - UNINOVE.

121
A APROXIMAÇÃO DA FILOSOFIA COM A TEMÁTICA ÉTNICA NEGRA

A formulação, acima, ajuda a entender porque, a filosofia, presente


enquanto componente curricular, da sala de aula invade outros espaços
da escola atingindo até mesmo a comunidade escolar. A imagem de inva-
são é válida, pois, não é sorrateiramente que as questões se apresentam.
Ao contrário, as questões filosóficas surgem e, provocam incômodos a
todos – novos e adultos; professores e estudantes; pais/responsáveis e
filhos. Mas, é preciso considerar que a sala de aula, também, é invadida
por questões originadas no seu externo. Os temas externos à sala de
aula, bem como, aqueles extra escola, também, se fazem presentes na
relação professor-filosofia-estudante e, explicitamente ou não, pedem
uma abordagem filosófica. Reafirma-se, assim, a dimensão da filosofia,
no currículo escolar, e da prática pedagógica do professor de filosofia.
Entre as inúmeras questões que se apresentam no interno e no ex-
terno da sala de aula encontram-se aquelas que têm ‘o outro’ como re-
ferência. E quem é este ‘o outro’? De pronto se dirá que é o diferente do
‘eu’. E quem é este diferente do ‘eu’? Aquele que traz marcas próprias e
se apresenta frente ao ‘eu’ não se confundindo com o ‘eu’. Até de forma
óbvia é possível dizer que ‘o outro’ é tudo e todos que não são o ‘eu’. E,
porque ‘o outro’ promove questionamentos? Porque o ‘eu’ deseja saber
se é possível ou não compor com ‘o outro’. Tal composição é estratégica
para a sobrevivência física, mas, também se refere a uma tranquilidade
psíquica, à significação da existência, ao estar no mundo e ocupá-lo. Em
uma palavra o ‘eu’ quer ser feliz e as demandas acima lhe permite sentir
segurança, elemento importante para quem almeja a felicidade. Freud
(1997) explanando sobre os homens escreve: “O que pedem eles da vida
e o que desejam nela realizar? A resposta mal pode provocar dúvidas.
Esforçam-se para obter felicidade; querem ser felizes e assim permane-
cer.” (P. 23) Mas o autor chama a atenção que este desejo de felicidade
acabou se transformando em ações para evitar a dor e, neste sentido, ser
feliz passa a ser não sentir dor.

Não admira que, sob a pressão de todas essas possibilidades de so-


frimento, os homens se tenham acostumados a moderar suas rei-
vindicações de felicidade – tal como, na verdade, o próprio princí-
pio do prazer, sob a influência do mundo externo, se transformou

122
JORGE ALVES DE OLIVEIRA

no mais modesto princípio da realidade –, que um homem pense


ser ele próprio feliz, simplesmente porque escapou à infelicidade
ou sobreviveu ao sofrimento, e que, em geral, a tarefa de evitar o
sofrimento coloque a de obter prazer em segundo plano. (FREUD,
1997, P. 25)

O que chama a atenção na formulação de Freud é o que segue, “con-


tra o sofrimento que pode advir dos relacionamentos humanos, a defesa
mais imediata é o isolamento voluntário, o manter-se à distância das
outras pessoas.” (Idem, P. 26) Note-se, a construção das formulações. O
‘eu’ quer ser feliz, mas teme a dor. Não investe na felicidade, protegen-
do-se, assim, de algo que lhe provoque a dor. Seu medo da dor é tanto
que abre mão até mesmo do contato com ‘o outro’ temendo as conse-
quências desta relação. Aqui reside uma parte importante do incômodo
que se têm frente à questão apresentada, anteriormente, “o que o ‘eu’
deseja compor com ‘o outro’?”
Outro pensador importante, Bauman (1998) traz outras formula-
ções que agravam a resposta para a questão posta. O autor trabalha com
os conceitos de pureza e de ordem para apresentar ‘o outro’, “o estranho”
como aquele que provoca o caos rompendo com a lógica da segurança
que até então sustenta uma ideia de felicidade, de prazer e de poder do
‘eu’ sobre os demais. Segundo ele,

a pureza é uma visão das coisas colocadas em lugares diferentes dos


que elas ocupariam, se não fossem levadas a se mudar para outro,
impulsionadas, arrastadas ou incitadas; e é uma visão da ordem
– isto é, de uma situação em que cada coisa se acha em seu justo
lugar e em nenhum outro. Não há nenhum meio de pensar sobre
a pureza sem ter uma imagem da “ordem”, sem atribuir às coisas
seus lugares “justos” e “convenientes” – que ocorre serem aqueles
lugares que elas não preencheriam “naturalmente”, por sua livre
vontade. (P. 14)

Em outras palavras o ‘eu’ estabelece critérios e com eles determina


o lugar do ‘outro’ e, como se disse, um lugar conveniente e justo. Mas,
exatamente,

123
A APROXIMAÇÃO DA FILOSOFIA COM A TEMÁTICA ÉTNICA NEGRA

“é por isso que a chegada de um estranho tem o impacto de um ter-


remoto ... O estranho despedaça a rocha sobre a qual repousa a se-
gurança da vida diária. Ele vem de longe; não partilha as suposições
locais [...] Ele “tem de” cometer esse ato perigoso e deplorável por-
que não tem nenhum status dentro do grupo abordado que fizesse o
padrão desse grupo parecer-lhe “natural” e, porque, mesmo se ten-
tasse dar o melhor de si, e fosse bem-sucedido, para se comportar
exteriormente da maneira exigida pelo padrão, o grupo não lhe con-
cederia o crédito da retribuição do seu ponto de vista. (Idem, P. 19)

O “estranho” de Bauman é entendido neste texto como sendo ‘o ou-


tro’, o mesmo presente na questão central que necessita de resposta, a
saber, o que o ‘eu’ quer compor com ‘o outro’? Mas, este ‘o outro’ precisa
ter um perfil e, no que se apresenta neste texto, este ‘o outro’ é o negro,
a etnia negra. A que pese as diferenças e as dificuldades de composição
com os outros diferentes – gênero, classe social, faixa etária, entre outros
– o diferente-negro salta aos olhos e, as ‘simples’ questões – quem é este
‘outro’? Como lidar com ele? É possível compôr algo com ele? – passam a
demandar a todos.
As questões, acima, são exemplos das certas questões cogitadas por Lo-
rieri (2002) a respeito da filosofia. São questões centrais da antropologia
que pergunta sobre ‘o que é o homem?’. ‘O que o faz ser humano’? ‘O que o
faz ser gente?’. Ao mesmo tempo são questões que vê a grande trama das re-
lações sociais (filosofia social) marcada por uma disputa de poder (filosofia
política) que obriga à tomada de posições pró-construção de vida digna ou
construir a sua própria destruição. (ética/moral). (p. 54-58)
São inúmeras as proposituras para um trabalho pedagógico efetivo
do professor junto à turma para enfrentar estas questões. As mais atuais
encontram-se na Lei 10.639/03, no Estatuto da Igualdade Racial (2010) e
no PNE 2014-2024. Apesar das inúmeras iniciativas com significantes re-
sultados é sabido, infelizmente, que as ações ainda são tímidas em várias
unidades escolares – públicas e privadas –, pois, entre outros, os gestores
da educação, muitos educadores, bem como, os cursos de formação –
graduação e pós-graduação – apresentam sérias dificuldades para tratar
da temática.

124
JORGE ALVES DE OLIVEIRA

O texto que se apresenta procura articular a temática com três si-


tuações distintas, mas, que se fecham no final. A primeira é trazer e
envolver a filosofia neste trabalho. O professor de filosofia tem muito a
contribuir com a turma, com a escola e com a comunidade ao adotar a
reflexão filosófica para tratar da questão étnica negra na unidade esco-
lar. A segunda se volta para a formação deste professor de filosofia, bem
como, de todos os demais professores e gestores. Os cursos superiores –
graduação e pós-graduação – não podem se eximir do debate formativo
sobre a questão étnica negra que deve chegar na sala de aula. Por fim,
compromissar os gestores das unidades de ensino para que envolvam
todas as equipes e todas as instâncias que atuam juntos aos estudantes
e a comunidade.
É necessário admitir, contudo, que há divergência na aceitação da fi-
losofia e da ação pedagógica do professor de filosofia. Algumas pessoas,
incomodadas ao extremo, provocativamente, lançam questões como es-
tas. Por que o ensino da filosofia? O que se objetiva com ele? Assimilada
a provocação e, tomada como possibilidade de um diálogo, percebe-se
que as questões dizem respeito ao próprio caráter da educação. Por que
educar os jovens? O que se objetiva com tal educação? O enfrentamento
deste questionamento, ainda que não dito, explicitamente, é na verdade
o núcleo da filosofia da educação.
Severino (2004) formula

Filosofia da Educação se constitui como modalidade teórica de co-


nhecimento destinada a intencionalizar a prática educativa, seja
mediante a explicitação dos valores, dos significados nela envol-
vidos, seja ainda na construção de uma imagem do homem que se
precisa educar. (p. 9)

Para amenizar o incômodo provocado pela filosofia, por suas ques-


tões, pela prática pedagógica do professor de filosofia, se faz necessário
considerar a formulação do autor acima. Aqueles que querem pensar
educação deverão contemplar e fundamentar a sua intencionalidade.
Ter presente o que ofertarão aos estudantes e, considerar, em projeção, o
que se quer no final da intervenção, ainda que sem garantia de sucesso.

125
A APROXIMAÇÃO DA FILOSOFIA COM A TEMÁTICA ÉTNICA NEGRA

Contemplar, fundamentar não significa ter respostas prontas, definiti-


vas. Acentua-se, por isto, a necessidade sempre renovada de se pensar a
educação, em termos filosóficos, ou seja, considerar as inúmeras possi-
bilidades, não estabelecendo um ponto final.
Nesta perspectiva da intencionalidade, apresentada na formulação
de Severino, citada acima, é preciso que se faça a seguinte consideração.
Este texto entende que a educação deva se configurar como elemento de
emancipação. Os encaminhamentos que se adotem para a educação dos
novos – crianças, adolescentes e jovens – devem contribuir no processo
de emancipação de seus agentes – professores, estudantes, comunidade
escolar e extraescolar.
Esta educação, voltada à emancipação, objetiva fazer com que o ‘ou-
tro’, o negro, seja reconhecido como tal e, que se considere que é possível
construir algo em comum com ele. Superar com isto o incômodo frente
ao outro, o negro. Incômodo promotor de violência, que impede o ‘eu’ e
o ‘outro’ de crescerem. Esta é a grande emancipação que pode ocorrer na
sala de aula e se expandir para outros locais.

O uso da palavra como reconhecimento do ‘outro’/negro e instrumento


para a emancipação

O subtítulo, acima, reflete a contento os elementos que compõem a


educação que ora se apresenta, resta, portanto, explicitar a ideia. O pri-
meiro e decisivo passo pró-emancipação é o do reconhecimento do ‘ou-
tro’. Reconhecer aqui é, acima de tudo, reconstruir o entendimento que se
tem do ‘outro’. Isto, porque, o ‘outro’, o negro, tal como já fora precisado
anteriormente, mais do que descrito, ele é caricaturado. Em tal condição
as imagens lhe conferem mais limitações do que ampliações do enten-
dimento sobre quem ele é. O mais contundente dos entendimentos fora
traduzida na sua negação. O outro/o negro não é e, não sendo, não existe,
não produz ideia e como tal, é uma coisa. Nesta condição não há nada a
ser criado em comum com ele.3

3  Não se tem o propósito de reproduzir a história da colonização neste texto. Contudo, a tese
que reduz o negro a uma categoria de não humano foi a chave central para transforma-lo em

126
JORGE ALVES DE OLIVEIRA

Esta tese histórica ainda é presente em inúmeros setores sociais e


digladia frontalmente com máximas de excelência importância no coti-
diano. A primeira é a defesa acalorada pró-liberdade de expressão que
se faz ouvir mesmo para certas regiões e, certos segmentos, historica-
mente, marcados pela supressão da palavra. A segunda corresponde aos
apelos e às facilitações advindas com as novas mídias que incitam o
posicionamento frente a todos e quaisquer temas. A terceira é a defesa
individual (que beira ao individualismo) acirrada pelo direito da sub-
jetividade. O embate contraditório encontra-se no fato de que se o ‘eu’
defende tudo isto a seu favor, como negar ao ‘outro’, o negro, as mesmas
condições? Atente-se, ainda, para outra questão delicada. O que se diz
não é qualquer coisa, ele deve ser considerado, levado a sério e, muitas
vezes, ser posto em ação. Então, como considerar a palavra do outro,
levá-la a sério e ser mobilizada por ela, pois este ‘outro’ é negro e, como
tal, não reconhecido?
Na sala de aula é possível detectar este conflito. Ele nem sempre é
explícito, mas, se faz presente. Desde a ‘inofensiva’ recusa de se formar
casal de dança na festa junina, passando pela composição de grupos de
trabalhos, chegando aos debates acalorados sobre os diversos temas do
cotidiano. Tenha-se presente que nos dois últimos apontamentos, parti-
cipar de grupos de trabalho e dos debates, é fazer o uso da palavra. É fa-
zer com que sua voz seja ouvida e considerada. Este é ponto. Até se pode
fazer par e, ser casal. Até se pode participar do grupo de trabalho pela
camaradagem, pelo lado festeiro, pelo ritmo brincalhão que imprime.
Nos debates, ele é um dos que compõem o grupo. Pronunciar, contudo,
a palavra e, pretender que ela seja considerada é outra coisa. Por vezes
ele mesmo se nega a dizer a sua palavra, pois, duvida de sua eficácia.
Eis, portanto, a dimensão da emancipação que este texto apresenta. Há
um ‘eu’ que detém a palavra e, o ‘outro’/negro não a pode dizer.
Ao revisitar a etimologia é possível ter como imagem de ‘emancipa-
ção’ o ‘soltar a mão’. Deixar o ‘outro’ solto da ação daquele ‘eu’ que até

escravo. Nesta condição toda a sorte conhecida no projeto colonizador português. Referência:
MIGNOLO, Walter D. La colonialidad a ló largo y a ló ancho: el hemisfério occidental em el
horizonte colnial de la modernidad.

127
A APROXIMAÇÃO DA FILOSOFIA COM A TEMÁTICA ÉTNICA NEGRA

então o conduzia. É possível pensar em três movimentos. O movimento


daquele que emancipa, portanto, libera o outro. O movimento daquele
que conquista a sua emancipação, liberta-se do outro. O terceiro movi-
mento corresponde à emancipação daquele que conduzia o outro, jun-
tamente, com a emancipação daquele que era conduzido. Neste sentido,
condutor e conduzido, se emancipam.

O primeiro, em que os oprimidos vão desvelando o mundo da


opressão e vão comprometendo-se, na práxis, com a sua transfor-
mação; o segundo, em que, transformada a realidade opressora,
esta pedagogia deixa de ser do oprimido e passa a ser a pedago-
gia dos homens em processo de permanente libertação. (FREIRE,
1987, p. 41)

E como isto se efetiva? Segundo Freire (1987) “não é no silên-


cio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-
-reflexão.” (p. 78) Na construção que se faz a educação que emancipa
ocorre no reconhecimento e na aposta de que é possível construir algo
em comum como o ‘outro’/negro. Para tanto, é fundamental, que a
palavra seja algo de e para todos. E, mais, que esta educação, escolar
por excelência, de sala de aula, envolva todos os espaços da escola e
do seu em torno.

O desafio-convite para falar e ler o mundo com o outro

É necessário que se tenha presente as dimensões da leitura do


mundo e da leitura de mundo. Não se trata de um simples jogo de
palavra. Se na leitura do mundo os sentidos captam as imagens e as
faculdades mentais as decodificam e produzem um arranjo minima-
mente lógico, na leitura de mundo é acrescida a intencionalidade, os
conceitos, os valores, os princípios. Evite-se o comparativo qualifi-
cador que buscará apontar que uma leitura é melhor do que aoutra.
São inúmeras as formas de leitura que se faz do mundo. O ponto a ser
ressaltado é que esta leitura deve produzir significados para além da-
quilo que os sentidos ofertam, bem como, os arranjos lógicos se dão.
Eis, porque não é qualquer palavra que diz sobre o mundo.

128
JORGE ALVES DE OLIVEIRA

A importância desta ponderação reside no fato de que a leitura de


mundo produz visões de mundo e estas pautam substancialmente a vida
de muitos. Atente-se para os formadores de opinião. Suas análises, ou seja,
suas leituras movimentam mercados econômicos, pautam as discussões
políticas, orientam a vida social. As suas falas são diferenciadamente ou-
vidas. Observe-se, contudo, de que lugar estas leituras de mundo surgem
e são proferidas. Quem são estas pessoas de fala diferenciada que pronun-
ciam estas falas. Quem se apropria destes que falam e como utilizam da
fala proferida. Neste sentido esta fala tem poder. Ela mobiliza ou impede
a mobilização. Ela promove ou rebaixa. A emancipação pela fala objeti-
vando uma leitura de mundo e a apresentação da visão de mundo que se
tem deve atingir a todos. Neste caso específico atingir os negros e as ne-
gras para que possam dizer a sua leitura de mundo e, consequentemente,
a sua visão de mundo. Frente à complexidade das relações humanas é de
se desconfiar que haja apenas uma maneira de ler o mundo. Neste sentido
o que segue é parte central de uma prática pedagógica que se inspira nas
teses de Mathew Lipman (1994). Desta teoria lipmaniana surgiu o livro
paradidático “Amantes do Futebol e da Música – uma discussão étnica
afro-brasileira” (2003) que traz a questão étnica negra e a metodologia da
fala de forma paradidática para a sala de aula. Após a aplicação em várias
turmas de estudantes e de professores, bem como, lendo relatos de outros
educadores, os resultados são expressivos a ponto de comunicá-la.

1. A filosofia, a prática pedagógica do professor e a fala.

A primeira parte da metodologia é fazer com que a fala aconteça e


que todos participem dela. Para tanto é necessário que haja um tema em
comum (neste caso sobre a etnia negra) e que as falas, até então dispersas,
possam contemplá-lo. Por fala entenda-se a verbalização sobre algo o que
implica o uso da palavra. Portanto, não é qualquer fala, nem qualquer pa-
lavra, mas, sim aquela que expressa um sentimento, uma ideia, uma visão
de mundo, ou tão somente indagações, dúvidas, problematizações. Para
a reflexão filosófica é fundamental a problematização. As afirmações, as
respostas, as observações são bem vindas, mas, a intensidade da fala se dá
pela qualidade da problematização.

129
A APROXIMAÇÃO DA FILOSOFIA COM A TEMÁTICA ÉTNICA NEGRA

2. A filosofia, a prática do professor e a oferta de repertório.

A pronúncia da palavra significante por meio do exercício da fala


que nasce ou acompanha a problematização deve-se muito ao repertó-
rio que os estudantes possuem. Eles (os estudantes) encontram-se nas
primeiras décadas de vida que lhes proporcionaram algumas experiên-
cias relevantes, mas, cabe à escola, na figura do professor ampliar este
repertório por meio da literatura. A escola e o professor dominam esta
literatura que comporta uma variedade de gêneros que passa deste a
mais simples gravura até os mais complexos esquemas de linguagem. Da
linguagem corporal à linguagem escrita. Neste quadro específico cabe
ao professor de filosofia ofertar o repertório filosófico que lhes possi-
bilite tratar as questões problematizadoras que cercam a etnia negra. E
qual é o benefício? Auxiliar a todos a dialogar com o diferente. A aposta
é que o repertório ofertado dará sustentação para a argumentação ao
mesmo tempo em que contribuirá na ampliação da experiência destes
novos com o diferente. O esperado é que o estudante se aproprie das
formulações e dos caminhos que percorreram os filósofos e se inspire
para traçar os seus caminhos.

3. A filosofia, o professor de filosofia e o diálogo intencional.

O terceiro elemento da metodologia é o diálogo. Se as intervenções


do professor tiverem repercussão positiva no grupo de estudantes será
possível detectar sinais de diálogo entre os pares. No primeiro momento
da fala há ainda dispersão. Os temas se multiplicam e são abordados
de inúmeras maneiras. Mesma assim a palavra é dirigida ao outro. No
momento do repertório há uma concentração maior no texto e com isto
uma troca mais específica com o filosófico. Há uma fala com o texto,
com o professor que decodifica o texto, do indivíduo com o texto, dos
indivíduos entre si. Neste terceiro momento o diálogo passa a ser in-
tencional, ou seja, nele objetiva-se a palavra significante para o grupo,
a fala daqueles que buscam significar as suas vidas e suas relações com
o outro. A subjetividade se faz presente na perspectiva de se construir
algo em comum.

130
JORGE ALVES DE OLIVEIRA

O compromisso esperado da filosofia com a temática étnica negra

O que se objetiva com estas reflexões é comprometer o esforço teó-


rico dos professores de todos os níveis escolares sobre a questão étnica
negra. Ao mesmo tempo o texto é composto por diversos apontamentos
que acenam para uma ação reflexiva sobre o tema. Este é o ponto central
da qual a filosofia não pode se ausentar, por ter muito a oferecer, ou seja,
promover uma ampla e filosófica reflexão sobre este tema étnico. Como
já fora dito, trata-se de reconhecer ou não a humanidade do outro e, com
isto, decidir o que se quer construir enquanto sociedade.
A existência do Estatuto da Igualdade Racial, da Lei 10.639/03 e do
PNE 2014-2024 pode ganhar significativa contribuição da filosofia e da
prática pedagógica do professor de filosofia. Mas, ao mesmo tempo a
questão étnica negra tem muito a oferecer para a filosofia, para o pro-
fessor de filosofia e para todo o conjunto escolar. É preciso que se tenha
presente a dimensão da temática, pois, ela envolve a ressignificação dos
conceitos e dos valores que se articulam nas complexas relações humanas.

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abcdefghij
EDUCAÇÃO E ENSINO
SUPERIOR
A EXPANSÃO UNIVERSITÁRIA BRASILEIRA:
UM PROCESSO DE RECOLONIZAÇÃO?

Cláudia Cristina de Oliveira1


Francisca Mônica Rodrigues de Lima2
Maria Lúcia da Silva3

O ingresso na Universidade, muitas vezes, é precedido de expecta-


tivas que vão da emancipação financeira à independência social, daí a
máxima de que o nível superior, com a sua consequente diplomação, é
um rito obrigatório para alguém que quer ser alguém na vida. A lógica
de que o conhecimento universitário é propiciador de um futuro melhor
está arraigada no pensamento e nas práticas educacionais ocidentais,
tornado o campo de privilégios e vantagens em detrimento daqueles
que não o possuem. Na lógica escravocrata e hierarquizada que formou

1  Mestre em Educação com o tema “Entre Direitos e Deveres: Um estudo sobre as literaturas
africanas e afro-brasileiras nos cursos de Letras para o atendimento à lei 10.639/2003” (Uninove,
2016). Bacharel em Letras e História e atua como professora na Educação Básica. Contato:
ccolivei@yahoo.com.br

2 Mestranda, PPGE-Uninove, com a pesquisa “Vozes e contra-vozes de um discurso


universitário lusófono: o caso da Unilab”. Licenciada em Letras e atua como professora na
Educação Básica. Contato: franciscamoni@yahoo.com.br.

3  Doutora em Educação, PPGE-Uninove, com a pesquisa “Memória dos professores negros da


Unilab”. Mestre em Comunicação PUC/SP e atua como professora no ensino superior. Contato:
mlucia1459@gmail.com

134
CLÁUDIA CRISTINA DE OLIVEIRA, FRANCISCA MÔNICA RODRIGUES DE LIMA, MARIA LÚCIA DA SILVA

o pensamento ilustrado brasileiro, por sua vez, não há estranheza nesse


pensamento, embora possa ser uma das causas do atraso para o desen-
volvimento e promoção da justiça social e equidade de que se necessita.
A promoção de justiça social e equidade, no entanto, dependem,
fundamentalmente, do reconhecimento dessa diferença, do desejo de
reparação histórica e material, e da reforma universitária.
Nesse sentido, esse artigo visa demonstrar que a estrutura sobre
qual foi construído o conceito de Universidade no Brasil atende, em su-
cessivos períodos históricos, à mecanização e às necessidades das elites,
estendendo seu lastro ao ensino superior nos dias atuais, constituindo
uma recolonização das mentes, quer nas práticas, quer nos discursos,
levando-nos a questionar se esse lastro se estende ao projeto da Univer-
sidade Nova.

Universidade no Brasil: cenas de uma história fragmentada

O acesso não democratizado à universidade é uma realidade e o en-


sino gratuito e de qualidade é um sonho alcançável apenas por uma elite
que detém o poder econômico, social e cultural. Segundo o pensamento
de Florestan Fernandes, essa elite constitui uma minoria forte em seu
poder e em seu alcance, assim como em suas realizações. Para pensa-
dores como Fernandes (1975) e Buarque (1994), até a segunda metade
do século XX, mais especificamente até os anos 1960, democratizar o
acesso à universidade era algo tão distante quanto indesejado.
Luiz Antônio Cunha (2007) explica que as primeiras universidades
surgidas nas colônias datam de 1538 em São Domingos (Haiti), 1553 no
México e, posteriormente as universidades do Peru, Chile e Argentina,
respectivamente, Universidade de São Marcos, de São Felipe e Córdoba.
Diferente da empresa espanhola, Portugal negou os pedidos de funda-
ção de universidade feitos pelos jesuítas, sendo que a primeira recusa
data do século XVI. Dessa forma, as tradições – e contradições – assim
como as condições universitárias dos países que foram colonizados por
Espanha, comparadas ao Brasil, são bastante diferentes.
Portugal manteve uma política de bolsas de estudos àqueles que
eram nascidos na colônia, filhos dos colonizadores, permitindo que

135
A EXPANSÃO UNIVERSITÁRIA BRASILEIRA: UM PROCESSO DE RECOLONIZAÇÃO?

fossem estudar na metrópole, segundo as necessidades do Império, mas


prosseguiu recusando os pedidos da colônia para a fundação até mesmo
de um curso de medicina, no ano de 1800, quando o Conselho Ultrama-
rino argumentou que “(...) um dos mais fortes vínculos que sustentava
a dependência das colônias, era a necessidade de vir estudar a Portugal”
(CARVALHO, 1968, p. 72). Cunha alerta que a empresa jesuíta, sobre-
tudo para atender à necessidade civilizadora - catequização, domestica-
ção e instrumentalização daqueles que os colonizadores denominaram
indígenas - a partir do momento em que as metrópoles necessitaram de
mão de obra especializada ou de conhecimento específico para alguma
demanda, também contribuiu para o surgimento dos primeiros cursos
de nível superior, iniciando a consolidação daquilo que viriam a ser as
universidades.
Dito de outro modo, é possível também constatar o modo de agir
de Portugal em relação à colônia, oferecendo tão somente o necessá-
rio para o atendimento de seus interesses colonizadores, servindo ao
controle dos modos de produção e do pensamento das próprias gentes
enviadas pela metrópole, assim como o controle daqueles nascidos na
colônia.
Com a ascensão do Marquês de Pombal – as reformas pombalinas,
incluindo a reforma da educação, sobretudo da Universidade de Coim-
bra, em 1770 -, a colônia portuguesa assistiu a um progresso significati-
vo, mas ainda insuficiente para causar preocupações à Metrópole. Após
a expulsão dos jesuítas e controle das atividades educacionais, Pombal
introduziu na colônia as aulas régias, sob controle do Estado, oferecidas
pelos centros de ensino. Assim, a educação passava a ser pública. Tal
controle favoreceu o crescimento da oferta de acesso ao ensino, mas não
chegou a consolidá-lo. Por isso, com a ascensão de D. Maria I e a queda
de Pombal, assiste-se ao retrocesso do ensino na colônia, retornando
aos moldes que atendiam aos interesses de Portugal.
Assim, nascido tardiamente no Brasil, o caráter técnico e utilitário do
conhecimento está arraigado à estrutura da universidade, influenciando-
-a e determinando os rumos daqueles que por ela passam.
A partir de 1808, com a vinda da família real portuguesa, a cena colo-
nial brasileira sofre mudanças profundas, empurrada a desenvolvimento

136
CLÁUDIA CRISTINA DE OLIVEIRA, FRANCISCA MÔNICA RODRIGUES DE LIMA, MARIA LÚCIA DA SILVA

relâmpago e desordenado, autorizando-se também a criação de cursos


que formassem profissionais em nível superior, o que se deu, inicialmen-
te, nas áreas da saúde e da construção – medicina e engenharia, respec-
tivamente.
Assim, entre 1808 e 1822, o Brasil assistiu a avanços em diferencia-
dos setores e o ensino superior foi um deles. A instalação dos cursos
superiores por essas terras procurava resolver o problema da falta de
mão de obra especializada, mas também de civilizar um território que
não estava preparado para ser sede da Coroa.
Ocorre, no entanto, que as agitações políticas por que passava Por-
tugal se intensificaram, exigindo o retorno de D. João. O retorno tão re-
pentino quanto a chegada culminou na independência do Brasil, aten-
dendo aos clamores internos da colônia, mas deixando um Imperador
- D. Pedro I –, com o claro vínculo com a ex-metrópole, como nos con-
ta Emília Viotti da Costa, acerca da Assembleia Geral dos Representan-
tes das Províncias que deliberava que “o Brasil quer Independência, mas
firmada a união, bem entendida, com Portugal, quer enfim apresentar
duas famílias regidas pelas suas leis particulares, presas pelos seus inte-
resses e obedientes ao mesmo chefe” (COSTA, 2010, p. 50).
As necessidades do Brasil independente, portanto, não contempla-
vam o estabelecimento de uma universidade brasileira: àqueles que po-
diam sair do país e obter formação estavam reservadas melhores opor-
tunidades. Aos demais, servir. Segundo a análise de Cristóvão Buarque,
[O Brasil] “integrou uma parte de sua população à cultura, às técnicas
e ao consumo dos países-com-maioria-rica, mas à custa de uma desin-
tegração social interna que criou uma sociedade de apartheid”. (BUAR-
QUE, 1994, p. 18-19).
Após os anos 1930, quando a necessidade de mão de obra especia-
lizada exigiu o acesso de outros estudantes que não a elite exclusiva-
mente que se formava nos cursos de Direito, Medicina ou Engenha-
ria, surgiu também a necessidade de garantir o acesso à pesquisa e à
extensão, à formação técnica e profissionalizante para número maior
de pessoas oriundas das classes menos favorecidas – os pobres, prefe-
rencialmente não negros -, de modo a atender às demandas técnicas e
de crescimento social.

137
A EXPANSÃO UNIVERSITÁRIA BRASILEIRA: UM PROCESSO DE RECOLONIZAÇÃO?

Somente durante o regime militar, com seus os projetos mercan-


tilistas, cursos técnicos e faculdades destinadas à formação de mão de
obra especializada, maior número de pessoas teve maior acesso ao en-
sino superior, dando início à era das IES – Instituições de Ensino Su-
perior. Essa oferta foi delineada pela mecanização, profissionalização e
tecnização do ensino para o povo brasileiro.
O problema da concepção de povo foi um dos entraves para a cria-
ção de vagas no nível superior: até o advento da independência, as gen-
tes do Brasil não constituíam um povo. Era tão somente o colonizado,
o escravizado, pois “surgimos da confluência, do entrechoque e do cal-
deamento do invasor português com índios silvícolas e campineiros e
com negros africanos, uns e outros aliciados como escravos” (RIBEI-
RO, 1995, p. 19). A ideia de povo brasileiro, pautada no pensamento de
Darcy Ribeiro, implica em aceitar que sua formação se dá pela violên-
cia, escravidão negra e dizimação dos nativos da terra – os indígenas.
A cisão entre colonizado e colonizador é clara: as relações de po-
der e força permearão todo o contato existente entre esses dois atores,
durante o período colonial, pós-independência e pós-colonial, já que,
se analisadas as teses do pensamento de Florestan Fernandes, a socie-
dade brasileira formada a partir da República e a absorção do pobre
e do negro, base dessa estrutura cindida, na sociedade de classes foi
um “rearranjar” que atendeu às necessidades do mundo do trabalho.
Assim, àqueles que mandavam, cabia prosseguir mandando; e àqueles
que até então serviam como trabalhadores ou escravos, cabia prosseguir
servindo, observadas a hierarquização própria do mundo do trabalho,
secundado pela educação que servisse a esse intento.
O texto da constituição de 1824 prevê que cidadão seria todo aquele
nascido no Brasil, filho de pai brasileiro morando aqui ou no exterior,
filho ilegítimo de mãe brasileira, ingênuo (filho de escrava) ou liberto,
filho de pai estrangeiro, além de todos os portugueses moradores do
Brasil anteriormente à independência (BRASIL, 1824). Percebe-se que o
texto da carta constitucional privilegia o colonizador português e todos
os exploradores, independente da nacionalidade, que aqui aportaram: o
indivíduo de origem europeia, branco e seus descendentes, miscigena-
dos ou não.

138
CLÁUDIA CRISTINA DE OLIVEIRA, FRANCISCA MÔNICA RODRIGUES DE LIMA, MARIA LÚCIA DA SILVA

Essa Carta Magna ainda prevê, em relação aos direitos do cidadão,


no Título 8º, artigo 179º - da inviolabilidade dos direitos Civis, e Políticos
dos Cidadãos Brazileiros, “nos parágrafos XXXII - A Instrucção prima-
ria, e gratuita a todos os Cidadãos - e XXXIII - Collegios, e Universi-
dades, aonde serão ensinados os elementos das Sciencias, Bellas Letras,
e Artes.” (BRASIL, 1824). A palavra “todos”, que é abrangente, não se
estende ao escravo, embora não haja uma proibição explícita, tal como
afirmam alguns pesquisadores (MOYSÉS, 1994; MAESTRI apud VEI-
GA, 2008). Percebe-se, assim, que o povo brasileiro se forma baseado
na desigualdade.
Adentrar ao século XX, ultrapassar os limites das discussões raciais
– e racializadas – e chegar à reforma de 1968 contempla seis décadas de
rasura sobre o pensamento universitário brasileiro. Se a década de 1930
assistiu à formação das maiores universidades públicas e a ampliação do
acesso ao conhecimento superior, não se pode afirmar que a democrati-
zação de acesso também acompanhou tal crescimento.

A partir dos anos 30, a universidade assumiu o papel de consoli-


dadora e motora da revolução técnica que ela, de início, não em-
preendeu. A universidade foi o centro da geração do saber da so-
ciedade consumo (...). Transformou-se no agente da modernização
(BUARQUE, 1994, p. 25).

Reforma de 1968 na formação da crise universitária

A história, até aqui, nos mostra que o conceito de universidade no


Brasil associa-se à modernização dos países de primeiro mundo no to-
cante à formação de mão de obra para o desenvolvimento da cultura,
ciência e tecnologia. Não ao acaso, foi introduzido no país o mode-
lo moderno de universidade inspirado nas ideias do cientista alemão
Alexander von Humboldt, de 1810, contemplando ensino e pesquisa.
Anterior a este período, perdurava o modelo francês napoleônico na
formação de profissionais para o Estado, permanecendo até o final da II
Guerra Mundial, quando as empresas no país não tinham a urgência de
avanço tecnológico e especialização de mão de obra.

139
A EXPANSÃO UNIVERSITÁRIA BRASILEIRA: UM PROCESSO DE RECOLONIZAÇÃO?

Os primeiros anos do século XX assistiram ao processo de indus-


trialização, que começou a exigir recursos humanos qualificados para
compor empresas nacionais e multinacionais devido à expansão da
iniciativa privada. Isto favoreceu, no país, a criação de uma estrutura
de investigação acadêmica dando origem ao CNPq e Instituto Tec-
nológico de Aeronáutica (ITA) em 1948. A UnB – Universidade de
Brasília -, fundada em 15 de dezembro de 1961, adotou os princípios
inspirados numa concepção tecnocrática norte-americana de produ-
tividade, eficiência e eficácia, sendo a primeira instituição do país
concebida no modelo moderno de universidade. Esse modelo surgia
como resposta àquele outro que promovia o que Cristovam Buarque
chamou de “apartheid social” (1994, p. 55) e que ainda mantinha in-
tacta a estrutura de atendimento aos interesses da elite dominante,
pois os primeiros anos da universidade brasileira, baseada no modelo
europeu, privilegiou a formação de uma elite econômica promovida à
elite intelectual.
Nesse contexto, o Governo Militar impunha modernização com
base em uma proposta tecnocrática para o sistema educacional e, as-
sim, a Reforma Universitária de 1968, feita sob a proteção do Ato Ins-
titucional nº 5 e do Decreto nº 477, é amparada pelo Relatório Atcon
(1965) 4 e Relatório Meira Mattos (1968) 5 que colaboraram com o mo-
delo de universidade moderna, adoção de ensino e pesquisa, contem-
plando as diversas áreas do conhecimento e valorizando o desenvolvi-
mento científico e tecnológico.

4  Em 1965, a Diretoria de Ensino Superior do Ministério da Educação (MEC) contrata Rudolph


P. Atcon para a função de consultor com o objetivo de reorganizar a estrutura e funcionamento
das universidades brasileiras. Para tanto, “a diretriz principal de Atcon era decididamente
tecnocrata: a reforma da universidade deveria ser tratada como um assunto eminentemente
técnico: ‘uma universidade autônoma é uma grande empresa, não uma repartição pública’.
Cumpre adotar padrões de racionalidade administrativa que consistiriam, por exemplo,
em separar o planejamento da execução; aquele deveria ser centralizado, esta poderia estar
distribuída pelos institutos e departamentos, de acordo com as finalidades acadêmicas de cada
um” (SILVA, 2014, p. 34-35).

5 O Relatório Meira Mattos propõe uma reforma com o objetivo do progresso técnico,
econômico e social do país (CHAUÍ, 2001, p. 47).

140
CLÁUDIA CRISTINA DE OLIVEIRA, FRANCISCA MÔNICA RODRIGUES DE LIMA, MARIA LÚCIA DA SILVA

O discurso da Reforma era composto, portanto, pela crença nos


benefícios trazidos pela ciência e pelo reforço de ideais desenvolvi-
mentistas /nacionalistas destacados como sinônimos de harmonia
e democracia social, mas nem sempre de capitalismo. Estes jus-
tificavam a centralização das ações governamentais (necessidade
de profissionalizar a administração) e a organização da instituição
acadêmica como empresa (regida pelos princípios de produtivida-
de e eficácia). E refletiam, também, valores burgueses, ao apresen-
tar a educação como meio de ascensão social via meritocracia. O
modelo tripartido, tomado de empréstimo dos EUA, deveria ‘con-
densar’ todos estes elementos (MENEGHEL, 2001, p. 138-139).

A adoção de princípios pautados numa concepção tecnocrática


norte-americana voltada à produtividade e eficiência responde ao avan-
ço da UnB, porque, como vimos, para Buarque (1994, p. 93), a uni-
versidade, é instrumento da modernidade, mas, até então, valorizava
sociedades de países ricos criando uma cultura isolada da população
e identificada com o pensamento da comunidade acadêmica e da elite
social contribuindo com o aumento da segregação social à custa do em-
pobrecimento e atraso da maioria.

Entre 1964 e 1985 a universidade foi o centro da vida democrática


do país. Era a grande aliada do povo na luta pela democracia, mes-
mo quando recebia todos os incentivos da ditadura militar para
fundar o marco tecnológico da construção de uma sociedade apar-
tada. Lutando por objetivos que coincidiam com os da população
em geral, a universidade escondia o seu isolamento real em relação
às massas (BUARQUE, 1994, p. 90).

Assim, o desenvolvimento econômico do país dita a educação como


capital, ou seja, um investimento que deve gerar lucro social. Assim, a
reforma visava à formação de mão de obra para o mercado de trabalho
e deformava a universidade na sua função ideológica e política contri-
buindo com uma estruturação do modelo organizacional de uma em-
presa no tocante à fragmentação, “pois obedece ao princípio da empresa
capitalista moderna: separar para controlar” (CHAUÍ, 2001, p. 56).

141
A EXPANSÃO UNIVERSITÁRIA BRASILEIRA: UM PROCESSO DE RECOLONIZAÇÃO?

Nesse sentido, a reforma universitária definiu-se por meio da de-


partamentalização, reunindo no mesmo espaço todas as disciplinas, o
que gerou menor gasto material e queda na contratação de professores;
matrícula por disciplina, divididas em obrigatórias e optativas; criação
do curso básico, com a finalidade de melhor aproveitamento da “capaci-
dade ociosa” e possibilidade de se tornar um vestibular interno, conhe-
cido como ranqueamento; fragmentação da graduação, comprometendo
a comunidade acadêmica; licenciaturas curtas em ciências, estudos so-
ciais e comunicação e expressão, com o objetivo de manter por menos
tempo os estudantes, gerando menos gastos e a institucionalização da
pós-graduação, recuperando a verticalidade do ensino universitário
(CHAUÍ, 2001, p. 48-50).
Ora, esse modelo pode formar ótimos profissionais, excelentes téc-
nicos, mas não favorece o debate acadêmico, não propicia ao estudan-
te que se conheça e conheça a sociedade, tampouco a comunidade, de
onde veio. Ela repete um modelo empresarial, corporativo, desmembra-
do e não o pensamento Universalizante, o que se esperaria de uma uni-
versidade. Daí o fato de produzir riqueza, mas não produzir liberdade,
sobretudo das mentes.

Processo de Bolonha e reverberações no ensino superior brasileiro

Anteriormente à criação da União Europeia (UE), os países da Eu-


ropa Ocidental, ao longo da história de formação da universidade, ti-
nham sistema de organização de ensino superior próprio e diferente,
que atendiam às especificidades de cada país. A partir do surgimento da
UE, em 1991, consolidado em bloco geopolítico, cultural e econômico,
tornou-se necessária a padronização dos sistemas de formação profis-
sional entre estes países integrados. Assim, o modelo de universidade,
até 1998, era múltiplo e diverso.

Durante todo o século XIX e na primeira metade do século XX, a
Europa conviveu com uma imensa multiplicidade de modelos de
formação superior. Praticamente cada país do continente europeu
adotou sua versão de sistema universitário diretamente gerado da

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CLÁUDIA CRISTINA DE OLIVEIRA, FRANCISCA MÔNICA RODRIGUES DE LIMA, MARIA LÚCIA DA SILVA

universidade elitizada do século XVIII. A universidade de pesqui-


sa inspirada na Reforma Humboldt consolidou-se na Alemanha e
no Reino Unido. Na França, a rede de universidades convivia com
os collèges (muito distintos dos colleges norte-americanos), com
as écoles supérieures e com as écoles polytechniques. Nos países
mediterrâneos, em especial na Itália, seguiam-se ainda formatos
setecentistas de formação profissional bacharelesca. Em Portugal,
além disso, as diretrizes estruturais da universidade francesa pré-
-reforma Bonaparte eram respeitadas (FILHO, 2008, p. 126).

Somente a partir de 1998, os ministros responsáveis pelo Ensino Su-


perior na Alemanha, França, Itália e Reino Unido assinaram a Declara-
ção de Sorbonne, documento que atestava a coerência, a uniformização
e a compatibilização entre os sistemas de ensino europeus.
Em 1999, ministros de 29 países, incluindo Portugal, assinaram a
Declaração de Bolonha, que estabelecia a formação de um Espaço Eu-
ropeu de Ensino Superior até 2010, tendo como metas o aumento da
competitividade, a mobilidade estudantil, a creditação6, a avaliação e
a adoção de estruturas curriculares. O Processo de Bolonha buscava
compatibilizar os sistemas universitários nacionais nivelando graus,
diplomas, títulos universitários, currículos acadêmicos, legitimando
programas de formação contínua reconhecíveis por todos os seus esta-
dos-membros. Atualmente, mais de 40 países da Europa participam do
Processo de Bolonha contando também com reuniões para a consoli-
dação de seu projeto em Praga (2001), Berlim (2003) e Bergen (2005).
O contexto econômico da Europa se constituiu como espaço para
as transformações na educação com o objetivo de competir em con-
dições semelhantes com as universidades americanas. Assim, formou
um sistema que reconsiderasse as antigas tradições universitárias na

6 O ECTS - European Credit Accumulation and Transfer System, Sistema Europeu de
Transferência e Acumulação de Créditos, implantado em 2003, é uma das ferramentas para
o fortalecimento do Processo de Bolonha, no que tange à equiparação nas formas de atribuir
créditos às disciplinas, na Europa que devem ser consonantes ao número total de horas de
trabalho que os estudantes devem ter para realizar uma disciplina. Além disso, a organização do
ensino superior é modificada para três ciclos: 1º ciclo, grau de licenciado, 2º ciclo, grau de mestre
e, 3º ciclo, grau de doutor.

143
A EXPANSÃO UNIVERSITÁRIA BRASILEIRA: UM PROCESSO DE RECOLONIZAÇÃO?

construção de centros de excelência acadêmica e modelo de gestão


como ocorria nos Estados Unidos. Nessa perspectiva, o Processo de
Bolonha pode ser considerado como um instrumento para a mercan-
tilização do ensino superior no cenário competitivo entre a Europa e
os Estados Unidos, primando pelo crescimento social e humano, ofe-
recendo aos cidadãos aptidões e condições para enfrentar os desafios
impostos pelo neoliberalismo.
No Brasil, a adequação dos requisitos discutidos e acordados no
Processo de Bolonha passou a ter materialidade no governo de Fernan-
do Henrique Cardoso (1995 a 2002) que, ao abarcar a globalização e as
orientações do Banco Mundial e Unesco para educação, ao implantar a
educação à distância no ensino superior de forma maciça, ao reformar a
Lei de Diretrizes e Bases (LDB 9.394/96), também favoreceu a expansão
desses aspectos na educação brasileira.
Para tanto, a parceria entre o setor privado e financeiro, universi-
dade e indústria, na gestão e no financiamento do sistema brasileiro
de desenvolvimento científico e tecnológico, conduzem ao entendi-
mento de que o objetivo é qualificar a população para atuar no mer-
cado de trabalho.
Após os dois mandatos do governo FHC, Luiz Inácio Lula da Silva
é eleito presidente e inicia suas ações no ensino superior voltadas à ex-
pansão e democratização do ensino superior com a criação do Progra-
ma de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades
Federais (REUNI) sob o Decreto n° 6.096/07. Segundo o governo, o
objetivo deste Programa é

Criar condições para a ampliação do acesso e permanência na edu-


cação superior, no nível de graduação, para o aumento da qualida-
de dos cursos e pelo melhor aproveitamento da estrutura física e de
recursos humanos existentes nas universidades federais, respeita-
das as características particulares de cada instituição e estimulada
a diversidade do sistema de ensino superior (REUNI, 2007, p. 10).

Pode-se considerar que esta democratização é resultante de lutas


dos movimentos sociais na garantia de direitos para a construção de
uma sociedade mais justa e igualitária. Nesse sentido, os bancos das

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CLÁUDIA CRISTINA DE OLIVEIRA, FRANCISCA MÔNICA RODRIGUES DE LIMA, MARIA LÚCIA DA SILVA

universidades públicas e privadas passaram a ser divididos por diversas


classes sociais, atendendo ao discurso da inclusão social na consolida-
ção da democracia.
Estas universidades, em seus projetos políticos-pedagógicos, propa-
gam a ideia de que seus territórios de ensino são, sobretudo, formadores
do “livre pensar” e, para além da integração globalizada, propõe que o
estudante compreenda seu papel sócio-histórico no país e no mundo.
Dito de outro modo, remontamos aos processos de formação histórica
da universidade brasileira e nos perguntamos até que ponto essas uni-
versidades propiciam ao estudante a compreensão do processo colonial
e mercadológico de que é parte e se consegue romper com tal círculo
vicioso, já que, por um lado é formado para o mercado de trabalho e,
por outro, tem diante de si a proposta de se repensar historicamente e
assumir outro papel social: deixar de ser aquele que foi preparado para
servir para se tornar parte de um grupo que possa construir.
Pensar em que medida as providências do Processo de Bolonha ga-
nharam terreno brasileiro com a inclusão social e a integração regional,
por meio do conhecimento e da cooperação solidária, na instalação de
novos campi universitários com uma política educacional de natureza
supranacional expandida a partir de 2008 - Universidade Federal da
Integração Latino-Americana (Unila), em Foz do Iguaçu (Paraná), Uni-
versidade Federal da Integração Internacional da Luso-Afro-Brasileira
(Unilab), em Redenção (Ceará), Universidade Federal da Integração da
Amazônia Continental (Uniam), em Santarém (Pará), e a Universidade
Federal da Fronteira Sul (UFFS), em Chapecó (Santa Catarina) – e de
que forma iniciamos uma recolonização do pensamento são questio-
namentos pertinentes e necessários para que não iniciemos um novo
período de dominação europeia.

A caravela em águas do desenvolvimento: discursos que atravessam


a Unilab

O modelo institucional e pedagógico da Universidade de Coimbra,


com o culto à tradição histórica da universidade escolástica, inspirou
algumas universidades no Brasil num contexto histórico do final da

145
A EXPANSÃO UNIVERSITÁRIA BRASILEIRA: UM PROCESSO DE RECOLONIZAÇÃO?

era Vargas, em 1945, com a criação da rede de universidades federais


inauguradas em 1946: Universidade do Rio de Janeiro, Universidade da
Bahia e Universidade de Recife. Além disso, é possível refletir sobre a
implementação deste modelo na Universidade Federal da Bahia, já que
sua declaração de existência consta “nos documentos de fundação da
nossa Universidade Federal da Bahia, a meta de tornar-se uma Coimbra
brasileira” (FILHO, 2008, p. 134).
No início do século XXI, Portugal firma parceria com a Universida-
de da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab),
criada pela Lei nº 12.289, de 20 de julho de 2010, e instalada em 25
de maio de 2011, localizada nos estados da Bahia, município de São
Francisco do Conde, e do Ceará, municípios de Redenção e Acarape.
Esta IES surge em um contexto de cooperação solidária entre os países
que compõem a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP),
Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Prínci-
pe, Brasil, Portugal e Timor-Leste, visando à oferta de cursos de nível
superior para estas nações em uma cooperação denominada Sul-Sul.
Conforme aponta a ex-reitora da Unilab, Nilma Lino Gomes:

A consolidação dessa função acadêmica e política esperada da Uni-


lab exige de todos nós uma postura atenta e em sintonia com a
consciência dos direitos dos coletivos sociais, étnicos, raciais, de
gênero e diversidade sexual, tanto na nossa sociedade quanto na
especificidade das sociedades africanas e dos outros países com os
quais a Cooperação Sul-Sul se realizar. No caso da comunidade
negra brasileira e africana essa postura implica no direito à sua
história, memória, cultura, identidade, conhecimentos e valores
(UNILAB, 2013, p. 103)

Nesse sentido, busca promover o intercâmbio entre professores e


estudantes em programas nas áreas de ensino, pesquisa e extensão con-
tribuindo com os processos de integração e internacionalização do en-
sino superior bem como com a execução de convênios temporários ou
permanentes com outras instituições da CPLP para o desenvolvimento
regional a partir dos intercâmbios cultural, científico e educacional da
região. Em novembro de 2012, a China passa a integrar a comunidade

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CLÁUDIA CRISTINA DE OLIVEIRA, FRANCISCA MÔNICA RODRIGUES DE LIMA, MARIA LÚCIA DA SILVA

com convênios firmados entre a Universidade de Macau e a de Zhejiang


Normal University e, em março de 2013, consolida acordo com o Insti-
tuto Politécnico de Macau.
Desde 2010, a Unilab possui convênio com universidades e institu-
tos portugueses, com validade de cinco anos com cada um: Instituto Po-
litécnico de Coimbra (2013), Instituto Universitário de Lisboa (2012),
Universidade de Aveiro (2012), Universidade de Coimbra (2010), Uni-
versidade de Évora (2012), Universidade de Lisboa (2012) e Universida-
de do Minho (2012). Em 2012, foi firmada uma parceria acadêmica en-
tre a Unilab e a Universidade de Coimbra na promoção de intercâmbio
entre estudantes e professores destas instituições7 além da aprovação
do Programa de Licenciaturas Internacionais (PLI) criado pela Capes
com a contribuição do Grupo Coimbra de Universidades Brasileiras
(GCUB)8 e do Projeto GAIA9.
Dom Dinis criou a Universidade de Coimbra 10, uma das mais anti-
gas de Portugal e do mundo, ao assinar o Scientiae thesaurus mirabilis,
em 1290. Inicialmente, localizada somente em Lisboa e, em 1308, foi
transferida para Coimbra tendo suas atividades nas duas cidades até
1537. A instalação definitiva se dá na cidade de Mondego. Situada no
Palácio Real, esta IES expande-se pela cidade de Coimbra, contribuin-
do para a formação de uma cidade universitária na criação do Polo II,
com as engenharias e tecnologias, e o Polo III com as ciências da vida.
A Universidade de Coimbra conta com mais de sete séculos de história
e ocupa lugar de destaque no desenvolvimento da ciência europeia e
mundial, sobretudo, na formação de personalidades ligadas à cultura,
ciência e política de Portugal.
Em 16 de julho de 2010, a Unilab envia a cópia do acordo com a
Universidade de Coimbra para o reitor Professor Doutor Fernando

7  Ver http://www.unilab.edu.br/noticias/2012/06/19/alunos-da-unilab-terao-a-oportunidade-
de-estudar-em-portugal/

8  Ver http://www.grupocoimbra.org.br/Sobre_o_Grupo.aspx

9  Ver http://www.unilab.edu.br/pli-gaia/

10  Ver http://www.uc.pt/sobrenos/historia

147
A EXPANSÃO UNIVERSITÁRIA BRASILEIRA: UM PROCESSO DE RECOLONIZAÇÃO?

Jorge Rama Seabra Santos assinado pelo então reitor Professor Doutor
Paulo Speller. Ao longo da leitura deste documento, ressalta-se o item
Termo Aditivo ao Convénio de Cooperação entre a Universidade Federal
da Integração Internacional Luso-Afro-Brasileira – Unilab (Brasil) e a
Universidade de Coimbra (Portugal) que descreve, na Cláusula Primeira
– Objecto,

Estabelecer entre a UC e a Unilab os princípios básicos do desen-


volvimento de programas comuns de formação de professores bra-
sileiros; Os Programas de Licenciaturas Internacionais reforçarão
os laços de cooperação entre as duas universidades, nomeadamente
promovendo uma sólida formação científica em áreas específicas,
com obtenção do grau de Licenciatura na UC e posterior desenvol-
vimento de estudos de formação de professores, com obtenção do
grau na Universidade Federal da Integração Internacional Luso-
-Afro-Brasileira (UNILAB, 2010, p. 06 - grifo nosso).

Os pressupostos teóricos do filósofo da linguagem, Mikhail Bakhtin,
dão conta de uma análise linguística considerando a relação do emissor
com o receptor nos contextos social, histórico, cultural e ideológico.
Nessa perspectiva, o sujeito é um ser discursivo, que se constitui na e
pela linguagem tendo o outro como referência nas interações sociais.
Assim, o referido acordo, entre a Unilab e a Universidade de Coimbra,
será analisado considerando-se a palavra desenvolvimento em um con-
texto de parceria entre estas instituições na promoção da cooperação
entre Brasil e Portugal.

As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideoló-


gicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os
domínios. É, portanto, claro que a palavra será sempre o indicador
mais sensível de todas as transformações sociais, mesmo daquelas
que apenas despontam, que ainda não tomaram forma, que ain-
da não abriram caminho para sistemas ideológicos estruturados e
bem formados (BAKHTIN, 1992, p. 41).

Primeiramente, é importante destacar a pureza semiótica da palavra


desenvolvimento em circulação nas várias esferas ideológicas, além do

148
CLÁUDIA CRISTINA DE OLIVEIRA, FRANCISCA MÔNICA RODRIGUES DE LIMA, MARIA LÚCIA DA SILVA

documento Acordo, com traços mais ou menos estáveis de significa-


ção dando a oportunidade de ser utilizada em diversos contextos. Nesse
sentido, é possível considerar o desenvolvimento como um dos pressu-
postos de um contexto político, econômico e social do sistema neoli-
beral apontando para “benefícios” que Portugal pode contribuir para o
ensino superior da Unilab, nas parcerias com o Brasil e países da África,
instaurando um discurso monovalente pautado em uma ideologia euro-
cêntrica, pois “A classe dominante tende a conferir ao signo ideológico
um caráter intangível e acima das diferenças de classe, a fim de abafar
ou de ocultar a luta dos índices sociais de valor que aí se trava, a fim de
tornar o signo monovalente”(BAKHTIN, 1992, p. 47).
Corroborando a parceria e os convênios estabelecidos com as uni-
versidades portuguesas, em análise o acordo com a Universidade de
Coimbra, faz-se necessário destacar, neste documento, o logotipo da
Unilab:

Fig. 1: Logo da UNILAB


Fonte: http://www.unilab.edu.br/

A imagem aponta para a ideia de uma caravela no lado esquerdo


da sigla da universidade. É importante destacar que a caravela é um
meio de transporte que trafega no mar não tendo um sentido preciso,
mas apenas a função de transportar sem refletir ou representar algo. No
entanto, considerando o contexto histórico da chegada de Portugal no
Brasil com europeus em caravelas, este meio de transporte é convertido
em signo ideológico, podendo apontar para a construção de uma ideo-
logia de recolonização de Portugal no espaço da Unilab11.

11  A análise extensiva do logotipo da Unilab, bem como dos discursos que o norteiam, são
objetos da pesquisa, em andamento, “Vozes e contra-vozes de um discurso universitário

149
A EXPANSÃO UNIVERSITÁRIA BRASILEIRA: UM PROCESSO DE RECOLONIZAÇÃO?

Um signo não existe apenas como parte de uma realidade; ele tam-
bém reflete e refrata uma outra. Ele pode distorcer essa realidade,
ser-lhe fiel, ou apreendê-la de um ponto de vista específico, etc.
Todo o signo está sujeito aos critérios de avaliação ideológica (isto
é: se é verdadeiro, falso, correto, justificado, bom, etc.). O domínio
do ideológico coincide com o domínio dos signos: são mutuamente
correspondentes. Ali onde o signo se encontra, encontra-se tam-
bém o ideológico. Tudo que é ideológico possui um valor semiótico
(BAKHTIN, 1992, p. 32).

As estratégias discursivas de desenvolvimento e da imagem da cara-


vela, descritas no documento que versa sobre o acordo entre a Unilab e
a Universidade de Coimbra, podem sustentar a hipótese de que Portu-
gal está desbravando outros mares no contexto do ensino superior em
sonhos líquidos de estudantes africanos. As políticas de diversidade e
internacionalização na Unilab, futuramente, poderão clarificar um ho-
rizonte de sonhos líquidos com a mudança do modelo tradicional de
universidade trazendo uma proposta de inclusão ou transbordar o mar
de lágrimas na história dos negros, revisitada.
Em entrevistas realizadas entre no ano de 2014 com coordenadores,
professores e outras autoridades da instituição, constatou-se, em dois
momentos distintos, que depoimentos análogos apontam para a análise
ensejada:

Pergunta 1 - A universidade tem uma vocação lusoafrobrasilei-


ra, como se trabalha a inclusão dos negros e afrodescendentes
no ponto de vista cultural, linguístico e epistemológico, esses
assuntos estão atrelados nos conteúdos da disciplina ou são in-
seridos a parte?

Professor 1: No caso do bacharelado de humanidades eles


são conteúdos das disciplinas. Mas creio que é uma particulari-
dade do curso de bacharelado de humanidades, acho que não pode
ser tão estendido aos outros cursos. No nosso caso, é uma questão

lusófono: o caso da Unilab” (título provisório), em desenvolvimento pela pesquisadora


Francisca Mônica Rodrigues de Lima, sob orientação do Prof. Dr. Maurício Pedro da Silva
(PPGE - UNINOVE-SP).

150
CLÁUDIA CRISTINA DE OLIVEIRA, FRANCISCA MÔNICA RODRIGUES DE LIMA, MARIA LÚCIA DA SILVA

que colocamos o tempo todo nas disciplinas, o projeto do nosso


curso já contém isso e o conteúdo também contém isso.

Pergunta 2- Sendo uma universidade constituída majoritariamente


por estudantes vindos de escolas públicas e de outras nacionalidades,
eventualmente com alguma diversidade linguística e cultural, como
você lida do ponto de vista metodológico com essa diversidade?

Professora 2: Quando eu vim para cá eu já sabia que iria ter que


conviver com isso, eu já sabia que iria trabalhar com diversidade
linguística, com diversidade cultural, o que eu noto, por exemplo, o
que eu não deixo de fazer é almoçar no RU, de usar minha farda que
é a mesma roupa que eles usam, de andar com a minha mochila nas
costas, e tem certos assuntos que eu abordo com cuidado na sala de
aula, como temas de colonização, de escravidão, entre ou-
tros, porque certos assuntos ainda mexem com os sentimentos dos
alunos africanos, então tenho que tomar cuidado ao abordar.

O surgimento de IESs com a proposta de integração, como o caso


da Unilab, atende ao apelo dos movimentos sociais e do movimento
negro, cujo recrudescimento data dos anos 1990-2000. A proposta
dos movimentos advindos dos setores organizados da sociedade sem-
pre defendeu entender o mundo a partir do olhar das categorias da-
das pelos colonizadores, a fim de desconstruir um discurso de domi-
nação que perpassa a formação do Brasil. No entanto, constata-se que
essas IESs também respondem a um processo de internacionalização
crescente do ensino superior voltado à competição. Assim, os novos
entendimentos sobre a formação superior nos países da UE e do Mer-
cosul constituem espaços para uma educação a serviço do mercado de
trabalho, onde o conhecimento é mercadoria no contexto econômico
e político das exigências da globalização.
A malha social cindida de que é formado o Brasil ainda apresenta
sua agenda própria: a desigualdade em que se forma o tecido nacio-
nal, as pautas sociais, sobretudo a inclusão efetiva do negro no ensino
superior, seja como estudante, seja como docente, ainda constituem
frentes de discussão e lutas pelas quais há o clamor nacional, mas há
também o silenciamento ou o abaixar da voz, porque tais temas ainda

151
A EXPANSÃO UNIVERSITÁRIA BRASILEIRA: UM PROCESSO DE RECOLONIZAÇÃO?

são delicados, como visto na fala da Professora 2. Nesse sentido, a


agenda conf litante da internacionalização e dos ditames do proces-
so de Bolonha e do Banco Mundial fragilizam nossas necessidades
internas, que não são de menor importância, além de dar margem
para que um discurso já conhecido da necessidade de harmonização
dos antagonismos, sobretudo raciais se implante, sorrateiro, nessas
instituições.
Nesse sentido, é preciso considerar o direcionamento de Naomar
de Almeida Filho (2008) conhecido como Protopia – Nem Harvard,
Nem Bolonha –, mas uma Universidade Nova, que contemple nossas
especificidades, de modo que não nos afastemos dos avanços sociais
já alcançados, sobretudo, aqueles que contemplam as políticas afir-
mativas de inclusão de negros e afrodescendentes, um dos pilares que
justificam a fundação de universidades como a Unilab.
Em outras palavras, para oxigenar a história que atravessa estes
sujeitos subalternizados, é imperioso descolonizar o conhecimento,
resultado de uma ideologia dominante reverberada nos espaços esco-
lares e universitários, e o ser, localizado em um espaço e tempo con-
textualizados na história de exclusão. Para tanto, é necessário opor-
tunizar condições de acesso e permanência à liberdade, pautada na
reflexão de que este conhecimento hegemônico existe para reprimir as
subjetividades colonizadas e que suas culturas, saberes e história tam-
bém são estruturas de conhecimento e que devem conquistar espaço
e expansão na luta dos movimentos sociais que abraçam a diversidade
de histórias, culturas e subjetividades na valorização do pensamento
que emerge da margem.

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154
CLÁUDIA CRISTINA DE OLIVEIRA, FRANCISCA MÔNICA RODRIGUES DE LIMA, MARIA LÚCIA DA SILVA

Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira;


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da Integração Internacional Luso-Afro-Brasileira – UNILAB (Brasil)
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155
DA REPRODUÇÃO CULTURAL À INCLUSÃO SOCIAL
DO NEGRO NA UNIVERSIDADE: O CASO DA UNILAB

Daniel Bocchini1
Manuel Tavares 2

Introdução

A partir da referência ocidental, podemos considerar que a primei-


ra instituição de educação superior foi a Universidade de Bolonha, em
1088. Oliveira (2007) nos explica que o nascimento das cidades e dos
comércios, assim como o surgimento de ocupações específicas, foram
fatores fundamentais para a sua implantação, além disso, sua origem
está em grande parte atrelada a tentativa de um despertar civilizatório.
Desse modo, a universidade se pautava nos pressupostos da univer-
salidade e da corporação, assim, exercia uma importante contribuição
na construção do percurso da “humanização” da sociedade, isto é, atra-
vés dos estudos e de sua organização potencializavam e influenciavam o
desenvolvimento da racionalidade europeia (HASTINGS RASHDALL,
1895). Vale destacar que desde o aparecimento da primeira universida-
de, supracitada, Romão e Loss (2013) explicam que já estavam presentes

1  Doutorando do Programa em Educação da UNINOVE.

2 Professor Phd do Programa em Educação da UNINOVE.

156
DANIEL BOCCHINI, MANUEL TAVARES

em seu interior as seguintes características: corporativismo; uma pro-


dução com fim a sua própria existência; saber fracionado; e, um espaço
destinado apenas a elite.
A busca pela construção da unidade de pensamento, provocada pela
divulgação dos conhecimentos oriundos da universidade, reforçavam a
adoção de um padrão que iria além do científico, ecoando também para
os campos dos valores, costumes e tradição, patamar que cada sociedade
deveria conquistar para de fato se considerar civilizada. Tal pressuposto
ainda alinha com o ideal de hierarquizar e classificar as diferenças entre
os povos e as suas variadas formas de conhecimento. Em outras pala-
vras, pode-se dizer que a influência da universidade, surgida na época
medieval, é o começo do que atualmente chamamos de eurocentrismo,
ou seja, a instauração de apenas uma forma de saber e a valorização
monocultural, prevendo a naturalização da relação entre europeu/não
europeu, dominante/dominado, brancos/negros, ou, simplesmente, os
incluídos/excluídos.
E essas foram as características que, em grande parte, influenciaram
a implantação da educação superior no Brasil, desde a primeira univer-
sidade institucionalizada, a Universidade de São Paulo, em 1934. Por-
tanto, por meio de sua composição curricular, metodologias e avalia-
ções as universidades brasileiras refletiam o processo de discriminação
social e racial presente na sociedade brasileira (DARCY RIBEIRO, 1975;
CRISTOVAM BUARQUE, 1994; MENDONÇA, 2000 e DEMO, 2011).
No entanto, Santiago Akkari e Marques (2013) nos alertam que as
desigualdades raciais não podem ser reduzidas à questão da classe so-
cial, visto que a divulgação de indicadores sociais correlacionam a po-
breza aos grupos historicamente desprivilegiados; além disso, devemos
nos atentar a ideia que circula em nossa sociedade onde o Brasil é con-
siderado um país sem diferenças entre negros, índios e brancos, sendo
todos brasileiros. Este discurso do mito da democracia racial apenas
promove a manutenção e naturalização das desigualdades já existentes
em nosso país e favorecerá o aumento da discriminação e exclusão que
determinados grupos raciais sofrem em diversos espaços sociais.
Quando refletimos sobre a discriminação racial presente na univer-
sidade, é fácil compreendermos o processo de naturalização da exclusão

157
DA REPRODUÇÃO CULTURAL À INCLUSÃO SOCIAL DO NEGRO NA UNIVERSIDADE: O CASO DA UNILAB

que essa temática revela, onde a sua composição social revela pouquís-
simos alunos negros em seus corredores, fato esse, que é justificado pela
legitimação hierárquica por mérito, a valorização do esforço individual,
onde ser aprovado num vestibular em uma universidade pública, onde
há mais alunos brancos, ocorre exclusivamente pelo mérito do indiví-
duo, perspectiva que soa na sociedade como sendo natural e justa, no
entanto, na suavização dessas práticas está escondida a validação da ex-
clusão e da desigualdade racial.
Além dessa justificativa revelar, na atualidade, um racismo anacrô-
nico, ao mesmo tempo, contribui para silenciar a luta histórica e cultural
de um povo que, desde o período escravista, foi oprimido, inferiorizado e
excluído de diversos espaços sociais, inclusive das universidades. Ribeiro
(1991) e Barcelos (1992) em seus estudos retratam as diversas dificulda-
des, tanto no acesso quanto na permanência, que são encontradas pelos
estudantes negros nas universidades. Outro dado que nos mostra essa ta-
manha diferença, são os dados publicados pelo Censo no Ensino Superior
de 2011, em que os negros representam apenas 19,8%, ou seja, ainda 80%
da população negra do Brasil não frequenta os bancos da universidade.
Com o objetivo de desocultar essas desigualdades, Pierre Bourdieu,
considerado um dos mais importantes sociólogos do século XX a analisar
a educação contemporânea, explora essa temática a partir do estruturalis-
mo, ou seja, compreende que existe um peso muito maior das estruturas
sociais e institucionais, como é o caso da universidade, que estão por trás
das ações dos indivíduos. Sintetizando, é possível dizer que os compor-
tamentos das pessoas são apenas reproduções das orientações instituídas
pela estrutura social vigente (BOURDIEU, 2002).
A partir da análise do pensamento de Bourdieu, pode inferir-se que a
universidade é uma estrutura institucional que contribui para a constru-
ção de um sistema de dominação quer no que diz respeito aos mecanismos
de acesso quer aos currículos e conteúdos programáticos ministrados.
O próprio sistema de avaliação instituído contribui para a legitimação e
reprodução dos privilégios e dos saberes das classes dominantes; a insti-
tuição universitária foi construída historicamente para os brancos e para
o seu sucesso excluindo do seu seio os mais pobres, os negros e todos os
dominados pelo sistema de opressão capitalista.

158
DANIEL BOCCHINI, MANUEL TAVARES

Com a emergência da democracia brasileira, nos anos 1980, a ins-


tituição universitária começa a ser alvo de críticas. Diversos autores,
como Darcy Ribeiro (1975), Cristovam Buarque (1994), Martins (2009)
e Demo (2011) referem que a estrutura da universidade brasileira vive
um processo de crise, assolação ou, nas palavras de Pedro Demo, está
em “decomposição histórica” (p.47) esse quadro é devido incialmente
aos embates políticos internos entre os conservadores e disciplinares
– que defendem a manutenção da estrutura -, e, do outro, os renovado-
res e revolucionários – que defendem mudanças sociais e na instituição
universitária. Todavia, esta “velha senhora” com tantos séculos de his-
tória, apesar de, no Brasil, ter uma história de menos de um século, pelo
grau de elitização que ainda possui, parece não ter condições para se
autorregenerar, no sentido de se abrir a um público que, historicamente,
foi excluído da possibilidade de acesso ao ensino superior e, particular-
mente, os negros.
Tavares (2013) avança nesse entendimento afirmando que o mode-
lo tradicional de educação superior, devido a essas características, não
possui capacidades de transformar-se, logo, seria impensável a possi-
bilidade de uma abertura epistemológica, isto é, a construção de uma
educação mais humana, por meio de uma postura tendo como princípio
a valorização dos conhecimentos historicamente excluídos.
Os primeiros sinais contrários a qualquer forma de exclusão nas
universidades brasileiras começam no governo de Fernando Henrique
Cardoso (FHC), em 2001, na Conferência Mundial contra o Racismo,
a Discriminação Racial, a Xenofobia e as Formas Correlatas de Into-
lerância 3, realizada em Durban, na África do Sul; no ano seguinte, foi
aprovada a Lei Federal 10.558/02 que cria o programa Diversidade na
Universidade, conhecido como “lei das cotas”. Os governos de Luís Iná-
cio Lula da Silva e de Dilma Rousseff avançaram nessas ações implan-
tando, por exemplo, o Programa Universidade para Todos 4 (ProUni);

3  Prévia ações para eliminar qualquer tipo de discriminação e racismo, na tentativa de corrigir
os obstáculos históricos na sociedade brasileira, adotando ações compensatórias.

4  Possui o objetivo de conceder bolsa a estudantes que a família tenha uma renda per capita de
até três salários mínimos.

159
DA REPRODUÇÃO CULTURAL À INCLUSÃO SOCIAL DO NEGRO NA UNIVERSIDADE: O CASO DA UNILAB

assim como a Lei 10.639/2003, que institui, como obrigatório, o ensino


de história da África e Afrobrasileira em todos os níveis de educação
e o Programa de Apoio aos Planos de Reestruturação e Expansão das
Universidades Federais5 (REUNI).
Além disso, ao longo dos últimos dez anos, também por iniciati-
va dos governos Lula e Dilma, foram criadas outras universidades que
pretendem afirmarem-se como verdadeiramente democráticas, possi-
bilitando o acesso dos alunos oriundos da escola pública que, tradi-
cionalmente, não tiveram oportunidade de entrar nas universidades
tradicionais ou clássicas. Estes novos modelos pretendem ser, também,
uma consciência crítica da sociedade, quer no que diz respeito ao mo-
delo social vigente de caráter excludente quer no que se refere ao co-
nhecimento dominante. Estas novas universidades, de que destacamos
algumas - Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Universidade
do Mercosul (UNISUL), e a Universidade Federal da Integração Latino-
-Americana (UNILA) - possuem uma proposta diferenciada, e podem
ser entendidas como alternativa aos modelos clássicos. Contudo, essas
instituições, algumas delas como o resultado das lutas dos movimentos
sociais, estão sustentadas numa outra racionalidade e numa outra lógica
relativamente às universidades tradicionais, de origem europeia e Norte
Americana. Em seus projetos é proposta uma educação intercultural,
tendo como referência uma dívida histórica, devido à ausência de aces-
so e permanência, em relação aos grupos inferiorizados e desprivilegia-
dos no espaço universitário.
Com esse mesmo propósito, no ano de 2010, é instituída a Uni-
versidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira
(UNILAB) que tem o objetivo de contribuir para o desenvolvimento
regional, intercâmbio cultural, científico e educacional entre os países
de língua portuguesa. Além disso, através desse projeto internacional,
a UNILAB possui como princípio institucional a promoção de ações
de inclusão e permanência, como as cotas de fator público e para os
negros. Assim, a UNILAB é compreendida como uma estratégia da

5  Programa que busca ampliar o acesso, promover inovações pedagógicas, combate à evasão e
melhorar a qualidade dos cursos.

160
DANIEL BOCCHINI, MANUEL TAVARES

política externa brasileira que promove a Cooperação Sul-Sul e que


atende aos critérios internacionais para ampliação da oferta de cursos
em regiões menos abastadas, das relações de cooperação com a África
(UNILAB, 2013).
Considerando esse novo cenário do modelo universitário que nos
apresenta, e, conscientes de sua recente criação, nos surgem algumas in-
terrogações: Como a UNILAB favorece a prática de uma educação inter-
cultural? Será que, de fato, ocorre uma integração os dos povos, assim
como consta em seu próprio nome? Em seu currículo, pensado de uma
maneira ampla, existem, ainda, princípios e ações racistas, já que um dos
objetivos da UNILAB é a internacionalização com os países africanos?
Assim, o presente texto tem o objetivo de discutir e compreender as
políticas de inclusão do negro na UNILAB. Para tanto, o presente estu-
do concentra-se, incialmente, na reflexão da teoria proposta por Pierre
Bourdieu, que procura desvelar a naturalização que compõe a estrutura
social, a partir da retomada de alguns conceitos, como habitus, campo,
capital cultural, reprodução cultural e violência simbólica. Entendemos
que esses conceitos são fundamentais a fim de contextualizarmos o pro-
cesso de dominação que as instituições sociais acarretam na manutenção
das desigualdades que marcam as sociedades. A seguir, temos o propósito
de correlacionar essa forma de organização da teia social, revelada pelo
autor francês, com a construção do espaço universitário, a partir de uma
prerrogativa de perpetuação do poder hegemônico, tendo como foco a
exclusão do negro nesse espaço. Na próxima parte, buscaremos caracteri-
zar os pressupostos de uma educação superior que se propõe constituir-se
alternativa ao modelo historicamente implantado. Faremos uma aproxi-
mação ao cenário da UNILAB a partir do aparato legislativo que a insti-
tuiu e dos documentos institucionais para descrevermos os seus objetivos
e missões. Finalmente, discutiremos a política de inclusão e a represen-
tação dos alunos negros na UNILAB por meio da análise de entrevistas.

Os conceitos de Pierre Bourdieu

Não nos restam dúvidas de que o francês Pierre Bourdieu é um dos


sociólogos mais importantes do séc. XX; sua leitura sobre a organização

161
DA REPRODUÇÃO CULTURAL À INCLUSÃO SOCIAL DO NEGRO NA UNIVERSIDADE: O CASO DA UNILAB

social nos oferece elementos para a construção de um pensamento críti-


co, no sentido de compreender os sistemas de dominação que se natura-
lizam nos espaços e nas relações sociais.
Bourdieu começa sua trajetória, após a sua formação em filosofia,
na Argélia, onde fora cumprir suas obrigações militares, se depara com
a transformação que ocorria com a agricultura, já que nesse momento de
pós-guerra ocorria a passagem do sistema tradicional para o capitalismo
moderno; essa experiência o impulsiona a diversas publicações onde de-
senvolve um dos conceitos fundamentais do seu pensamento, o habitus.
(BOURDIEU, 1990) Com esse conceito o autor pretende estabelecer uma
explicação do dualismo indivíduo/sociedade; dessa maneira, Bourdieu
(2003) elucida que na sociedade existem estruturas sociais (escolas, uni-
versidades, igrejas, clubes, etc.) que são independentes da consciência e da
vontade dos indivíduos, e, por isso, limitam e orientam tanto as represen-
tações quanto as práticas das pessoas; também é possível reconhecer esse
processo a partir da posição social ocupada pelo sujeito, na medida em
que os diferentes meios que o cercam possibilitam diversos modos de ver,
pensar e agir nas situações. Assim, o habitus expressa estilos de vida, julga-
mentos políticos e morais. O autor segue dizendo que “a noção de Habitus
exprime, sobretudo, a recusa a toda uma série de alternativas nas quais a
ciência social se encerrou, a da consciência (ou do sujeito) e do inconscien-
te, a do finalismo e do mecanismo, etc.” (p.60)
Algum tempo depois, em meados da década de 60, o francês volta à
sua cidade natal e inicia suas pesquisas tendo como pauta central o sistema
de ensino. Junto com Jean Claude Passeron coloca em xeque a sociedade
marcada pela meritocracia e a escola como um sistema fundamental para
garantir a igualdade de todos (RODRIGUES, 2004). Entre essas discussões
formula o conceito de campo, que nada mais é do que um termo para de-
finir as áreas de atividades dos indivíduos que, por sua vez, se caracteriza
como um espaço de lutas pelo poder simbólico, isto é, se pensarmos no
campo da arte, a luta simbólica decide o que é erudito ou popular e, no
campo da educação, aquilo que é ou não importante aprender.
Nessa relação simbólica, os indivíduos se posicionam por intermédio
do capital acumulado, do ponto de vista do capital social; essa relação ocor-
re nas diversas interações que os sujeitos constroem entre si, inclusive nas

162
DANIEL BOCCHINI, MANUEL TAVARES

consequências das competições inerentes ao convívio. Na educação se acu-


mula o capital cultural por meio de boas maneiras, livros, diplomas, etc.
Em suas reflexões sobre o capital cultural e a escola, Bourdieu e Pas-
seron (2014) apontam que nessa luta simbólica pelo conhecimento a ser
validado nas aulas, os estudantes da classe média ou da alta burguesia
possuem maior possibilidade de sucesso escolar, devido às práticas cultu-
rais e linguísticas, próprias do seu meio social e familiar pelo fato de se-
rem mais próximas aos conhecimentos reconhecidos como importantes
para serem aprendidos na escola, ao passo que os estudantes oriundos de
outras classes só terão contato com tal conhecimento quando estiverem
na escola. O conceito de violência simbólica surge neste cenário de repro-
dução cultural e de imposição de um conjunto de saberes e conhecimen-
tos próprios de uma cultura dominante que subalterniza todas as formas
culturais, saberes e conhecimentos contra hegemônicos. Neste sentido,
“o ato educativo é a imposição, por formas e processos violentos de um
capital cultural arbitrário e de um código linguístico que não se ajustam
ao público a que se destinam. As formas de violência simbólica geram
formas explícitas de violência, como atos de resistência e de indignação
em relação a uma ordem injusta para os grupos sociais mais desfavoreci-
dos”. (TAVARES, 2013, p. 94).
O êxito e o fracasso escolar estão atrelados à origem social do aluno,
determinados, à partida, pelo sistema escolar dominante que, para além
disso, promove a manutenção da “ordem” que naturaliza as ideias e os co-
nhecimentos dominantes (BOURDIEU E PASSERON, 2014). Os autores
elucidam essa ideia dizendo:

... as denúncias esquemáticas da “Universidade de Classe” que es-


tabelecem, antes de toda análise, a identidade “em última análise”
... da cultura das classes dominantes, da inculcação cultural e do
doutrinamento ideológico, da autoridade pedagógica e do poder
político...” (p.230).

Após esse breve percurso sobre alguns dos principais conceitos de


Pierre Bourdieu, cujo intuito foi evidenciar os processos de naturaliza-
ção que são propagadas pelas instituições sociais a determinados grupos

163
DA REPRODUÇÃO CULTURAL À INCLUSÃO SOCIAL DO NEGRO NA UNIVERSIDADE: O CASO DA UNILAB

sociais, nosso próximo passo é compreender como a teoria do sociólogo


francês nos ajuda a compreender a construção histórica da universidade
como uma instituição genuinamente hegemônica.

Universidade: a ideia de um espaço hegemônico

Perante os dados apresentados na introdução, não podemos negar


que, historicamente, o sistema universitário tem-se configurado como
um elemento chave na reprodução das desigualdades sociais, trans-
formando privilégios sociais em méritos. Nesse sentido, Cunha (2007,
p.514) explica que “a igualdade formal de chances, aparentando estar
assegurada, faz com que a escola coloque todas as aparências de legiti-
midade ao serviço da legitimação dos privilégios”.
Segundo Ferreira (2007), a educação brasileira, historicamente,
serviu como um instrumento de manutenção social como uma forma
de peneira humana, ou seja, possibilitando privilégios à elite social e
favorecendo a perpetuação das discriminações e exclusões atingindo,
principalmente, os pobres e negros.
O mito da democracia racial que é muito falada em nosso país, é
facilmente desmascarada em diversas atitudes, ora de um modo mais
gritante, ora mais imperceptível. Jaccoud e Theodoro (2005) classificam
duas formas de discriminação: a direta e a indireta. A primeira, mais
evidente, classifica a cor de pele como ponto determinante para a exclu-
são ou restrição; a segunda, indireta, ocorre em atitudes cotidianas que
soam serem normais e, por isso, se naturalizam. Assim, Gomes (2001,
p.20) afirma que: “ora tornando-se banais e, portanto, indigna de aten-
ção salvo por aqueles que dela são vítimas, ora se dissimulando através
de procedimentos corriqueiros, aparentemente protegidos pelo Direito”.
As produções acadêmicas na temática racial iniciam-se com os
autores Pinto (1981; 1987) e Rosemberg (1986) reforçando, no campo
educacional, a necessidade de toda a comunidade (pais, professores e
direção), além dos grupos ativistas negros, tentarem construir, na práti-
ca pedagógica, uma consciência crítica e antirracista.
Na educação superior, Ribeiro (1991) e Barcelos (1992) pesquisaram
as inúmeras desvantagens e discriminações de que a população negra é

164
DANIEL BOCCHINI, MANUEL TAVARES

vítima, ações que vão desde aspectos ligados ao estereótipo até questões
epistemológicas, valorizando a cultura educacional europeia e silencian-
do a história e os conhecimentos oriundos da cultura afro-brasileira.
Nesse contexto, o movimento negro iniciou discussões de inicia-
tivas políticas a fim de democratizar as universidades. Assim, surgem
diversas políticas afirmativas adotadas pelo governo com o objetivo de
diminuir essa desigualdade racial (política de cotas, isenção na taxa de
inscrição nos vestibulares, cursinhos populares, etc). Essas ações visam
reconhecer e reparar os danos que a população negra sofreu ao longo
da história.
As discussões sobre a adoção de ações afirmativas se polarizou entre
a opinião pública na própria universidade; no Poder Legislativo Federal
e no Poder Judiciário, Heringer e Ferreira (2012) afirmam que esses de-
bates percorriam assuntos ligados à meritocracia, queda de qualidade,
aprovação de estatuto e a inconstitucionalidade da política.
O processo de ações afirmativas, na universidade, pode ocorrer por
meio de cotas, bonificação por pontos ou reservas; para concorrer a essa
vagas, na maioria das vezes, as universidades solicitam que o candida-
to apresente uma autodeclaração (documento que o candidato declara o
pertencimento ao grupo excluído); ressaltamos que a adoção dessa polí-
tica pode ser em instituições públicas ou privadas, em universidades pú-
blicas existentes; de acordo com os dados do IBGE (2012), apenas cerca
de 40% adotaram as políticas de cotas (HERINGER E FERREIRA, 2012).
Em outras palavras, podemos dizer que os debates, inicialmente,
se centraram na inclusão dos alunos negros no ensino superior, por
intermédio da discussão do ingresso via vestibular universalizado, ou
seja, aquele tradicional, onde o que define é a capacidade de cada um
- palavras contidas na própria constituição - que, consequentemente,
constrói, nitidamente, um espaço privilegiado a um determinado grupo
racial, na medida em que a maioria dos alunos brancos estuda em esco-
las particulares, consideradas de boa qualidade, enquanto grande parte
dos alunos negros está em escolas públicas, julgadas de baixa qualidade,
provocando uma competição desleal entre os candidatos.
A partir dessa configuração, é possível compreender que a proble-
mática em relação ao ingresso do estudante negro na educação superior

165
DA REPRODUÇÃO CULTURAL À INCLUSÃO SOCIAL DO NEGRO NA UNIVERSIDADE: O CASO DA UNILAB

envolve fatores sociais e raciais. Para elucidar, Otaviano Helene (1997),


em sua pesquisa, analisou o desempenho dos candidatos no vestibular
da Fundação Universitária para o Vestibular – FUVEST -, utilizando as
variáveis da condição socioeconômica, escolaridade dos pais e tipo de
escola frequentada; assim, o autor aponta que existe o triplo de chances
de aprovação no vestibular dos candidatos que possuem uma condição
econômica boa, pais escolarizados e alunos que frequentaram escolas
privadas; logo, o autor conclui que existe uma necessidade de criar me-
canismos compensatórios para que os alunos negros não sejam excluí-
dos das universidades.
Para termos uma ideia do que isso representa, pegamos como exem-
plo a maior universidade pública do Brasil, a Universidade de São Pau-
lo – USP. Dados referentes ao ano de 2012, dizem que entre os quase
onze mil alunos ingressos, apenas oitocentos são negros, isso represen-
ta cerca de 7% das matriculas nessa instituição. Mesmo com a criação
da USP Leste, que foi uma tentativa de descentralização, criando uma
nova unidade em outro local da cidade, na tentativa de incluir alunos
de baixa renda e negros, Guimarães (2006) ressalta que apesar de ter
aumentando o número de alunos negros, na USP Leste, esses estudan-
tes beneficiados possuíam renda e a maioria era procedente de escolas
particulares.
Nesse sentido, conforme a própria Lei 73/99 do sistema de cotas
determina, é necessário que a universidade destine no mínimo 50% das
vagas para estudantes que cursaram, integralmente, o ensino médio pú-
blico; além disso, ainda prevê que o total de vagas reservadas pela cota
seja destinado a estudantes com renda familiar de 1,5 salários mínimos.
Desse modo, é comum observarmos que a maioria dos programas de
políticas afirmativas acaba associando o critério racial ou étnico a ou-
tros, como, por exemplo, ser carente ou ter estudado em escola pública.
Essas medidas possibilitam que o sistema se torne mais democrático,
embora ainda não seja suficiente, visto que a condição econômica é um
importante fator que pode determinar o abandono dos estudos por par-
tes dos alunos o que significa que são necessárias políticas públicas que
garantam a permanência dos alunos no sistema de ensino até à conclu-
são do curso.

166
DANIEL BOCCHINI, MANUEL TAVARES

Universidade contra hegemônica: uma proposta em ação

Por caracterizar-se como um espaço para poucos, a educação supe-


rior brasileira tem pela frente um enorme desafio que diz respeito à sua
reforma e ampliação, principalmente na tentativa de encontrar soluções
que respondam a essa significativa desigualdade racial, tanto no acesso
quanto na permanência que, infelizmente, marca a sua história. Desse
modo, Gomes e Vieira (2013) nos mostram que a história da educação
superior em nosso país apresentou quatro ciclos expansionistas, sendo
o primeiro entre a criação das primeiras instituições até o início dos
anos 70, o segundo, em meados dos anos 60 até aos anos 90, o terceiro
ciclo, no intervalo entre os anos 90 e o início dos anos 2000 e, o último e
atual, do meio da década dos anos 2000 até recentemente. Ainda segun-
do as autoras, esse aumento do número de vagas e de instituições é pro-
duto do grande crescimento no consumo dos bens culturais, em grande
parte devido às famílias pobres que outrora nem imaginavam adentrar
numa sala de ensino superior e passam a reconhecer as universidades
como um importante caminho na tentativa de mudar de vida.
No sentido de reverter esse quadro universitário brasileiro, nos úl-
timos anos, diversos movimentos, marcados em grande parte, por dife-
rentes manifestações sociais, incluíram em seus planos de luta o acesso
e permanência na universidade. Uma das ações políticas que integram
o PDE (Plano de Desenvolvimento da Educação) e que contribuiu so-
bremaneira para o crescimento do educação superior, foi a criação do
Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Univer-
sidades Federais (REUNI) que, dentre outros objetivos visa aumentar o
número de vagas na graduação; a ampliação da oferta de cursos notur-
nos; a promoção de inovações pedagógicas e o combate à evasão. Ações
que possuem como meta diminuir a desigualdade social no país.
Além disso, nos últimos anos, foram implantadas no Brasil algumas
universidades que estão sendo denominadas de alternativas ou popu-
lares, na medida em que apresentam diferenças em relação às universi-
dades ditas tradicionais ou clássicas; portanto, possuem diferencial no
PDI (Plano de Desenvolvimento Institucional), na matriz curricular e
nas formas de ingresso de docentes e discentes.

167
DA REPRODUÇÃO CULTURAL À INCLUSÃO SOCIAL DO NEGRO NA UNIVERSIDADE: O CASO DA UNILAB

A concepção de universidade popular no Brasil apresenta seus pri-


mórdios na década de 1940, quando Anísio Teixeira defende a educação
como instrumento de inclusão social e de emancipação política, pro-
pondo caminhos, tais como: “construir uma universidade que pudesse
resgatar a dívida histórica do acesso das camadas populares à educação
superior, sem que isso significasse uma universidade menos exigente
e criativa” (TEODORO, 2013, p. 9). No entanto, a ditadura de Getúlio
Vargas e o golpe de 1964 interromperam essas iniciativas, sendo neces-
sário aguardar até o século XXI para retomar este processo. Essa re-
tomada aconteceu nos governos de Luís Inácio Lula da Silva e Dilma
Roussef que criaram novas universidades, com perfis diferenciados,
denominadas Universidades Populares e/ou Alternativas de que já refe-
rimos anteriormente algumas delas.
De acordo com Tavares (2013), essas instituições são caracterizadas
por uma experiência desafiante, na medida em que caminham para um
sentido contrário ao modelo universitário americano, ou seja, possibi-
litam a construção de uma universidade intercultural, que tem como
pressuposto as epistemologias que, historicamente, foram negadas e si-
lenciadas, como é o caso dos saberes afrodescendentes. Na perspectiva
de uma educação superior que privilegie os oprimidos Florestan Fer-
nandes (1975, p. 268) diz:

(...) é de esperar-se o advento de uma mentalidade pedagógica e de


uma administração de espírito igualitário, antielitista e que deixe um
lugar crescente para a cogestão na vida cotidiana da universidade. O
educador que “educa os outros” e o reformador que “reforma para os
outros” são entidades condenadas ao desaparecimento. Daí as pon-
derações, que visam transcender ao imediatismo estreito do presente
e às limitações intrínsecas à “universidade ambígua” que conhece-
mos, para situar o debate no plano do mesmo em que a universidade
deixa de ser uma “privação necessária” para ser comum e de todos.

A experiência com as universidades populares no Brasil ainda é


muito recente e os desafios são inúmeros; por isso, a relevância em de-
senvolver pesquisas sobre essas experiências. As pesquisas realizadas e
as que estão em curso podem-nos auxiliar no amadurecimento dessa

168
DANIEL BOCCHINI, MANUEL TAVARES

nova instituição que se apresenta, participando do projeto de desenvol-


vimento de uma ciência pública, referenciada na democracia cognitiva
omnilateral.6

Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira


(UNILAB)

A preparação do projeto da UNILAB está fortemente influenciada


pela base de cooperação entre o Brasil com os países africanos de língua
oficial portuguesa. Heleno (2014) aponta que os motivos que orientam
essa relação se dá na medida em que o nosso país procura uma maior
inserção internacional por intermédio de sua presença política, diplo-
mática e econômica no continente africano. Em 2008, o Ministério da
Educação, por meio da Secretaria de Educação Superior (SESU), ins-
tituiu a Comissão de Implantação da UNILAB que, por cerca de dois
anos, através de pesquisas, levantou os principais temas comuns entre o
Brasil e os países parceiros.
Desse modo, a partir das ambições internacionais e, em consonân-
cia com as políticas de expansão das universidades federais, no ano de
2010, foi criada pela Lei Federal n°12.289/10 a UNILAB (Universidade
da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira), localizada
no município de Redenção (CE), primeira cidade no Brasil a abolir a
escravatura. Suas atividades tiveram início no dia 25 de maio de 2011,
dia em que se comemora a África 7. Além da sede em Redenção a uni-
versidade está localizada em mais dois municípios (Acarape – CE e São
Francisco do Conde – BA).
A UNILAB tem a proposta de estabelecer ações cujo interesse se dá
na construção de acordos cooperativos no cenário internacional, pro-

6  Diz-se de um pensamento marxista que defende que o homem deve se sentir completo a
partir de sua convivência em sociedade e de seu trabalho.

7  No dia 25 de maio comemora-se o Dia da África, data em que 32 chefes de estado africanos
se reuniram na Etiópia, em 1963, e criaram a Organização de Unidade Africana (OUA), com
objetivo de libertar o continente africano do colonialismo e do apartheid, e ainda promover a
emancipação do povo africano. 

169
DA REPRODUÇÃO CULTURAL À INCLUSÃO SOCIAL DO NEGRO NA UNIVERSIDADE: O CASO DA UNILAB

põe um compromisso com a inciativa intercultural, cidadania e a demo-


cracia nas sociedades, fundamentalmente a partir do campo acadêmi-
co, especialmente, com os países da Comunidade dos Países de Língua
Portuguesa (CPLP). Segundo as Diretrizes Gerais UNILAB (2010), sua
missão no cenário na educação superior é:

Produzir e disseminar o saber universal de modo a contribuir


para o desenvolvimento social, cultural e econômico do Brasil e
dos países de expressão em língua portuguesa – especialmente os
africanos, estendendo-se progressivamente a outros países deste
continente – por meio da formação de cidadão com sólidos co-
nhecimentos técnicos, científico e cultural e compromissado com a
necessidade de superação das desigualdades sociais e a preservação
do meio ambiente. (p.12)

De acordo com as Diretrizes Gerais, a UNILAB (2010) tem como


objetivo:

Promover, por meio de ensino, pesquisa e extensão de alto nível e


em diálogo com uma perspectiva intercultural, interdisciplinar e
crítica, a formação técnica, científica e cultural de cidadãos aptos
a contribuir para a integração entre Brasil e membros da Comu-
nidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e outros países
africanos visando ao desenvolvimento econômico e social. (p. 13)

Além disso, nas Diretrizes Gerais, ainda destacam-se entre os ob-


jetivos específicos a atuação em áreas estratégicas para a produção de
conhecimento comprometido na Cooperação Sul-Sul; possibilitar a mo-
bilidade acadêmica e intercâmbio; considerar nas práticas docentes a
complexidade dos saberes (formais e informais, científicos e tradicio-
nais); desenvolver ações que valorizem as tecnologias da informação;
incentivar princípios de uma gestão acadêmica democrática e integra-
dora entre as áreas (UNILAB, 2010).
Tendo como referência a missão e os objetivos, que constam nas
Diretrizes Gerais, a Comissão de Implantação da instituição identifi-
cou cinco áreas que se tornaram prioridade na atuação da universidade:

170
DANIEL BOCCHINI, MANUEL TAVARES

agricultura8; saúde coletiva 9; educação básica; gestão pública 10; e tecno-


logias e desenvolvimento sustentável 11 (UNILAB, 2010).
A proposta formativa tem o estudante como o centro do processo,
fazendo com que a formação e estrutura da universidade ofereçam pos-
sibilidades reais para o sucesso nos estudos, este sendo compreendido
por meio do desenvolvimento técnico, político, cultural e humano; des-
se modo, os princípios que norteiam a formação são:

1º. Desenvolvimento da ciência e da tecnologia, com caráter huma-


no e social. O ensino de graduação pretende formar estudantes em nível
de excelência científica e tecnológica, mas, também, buscará ser local de
estudo e difusão das culturas dos países parceiros, respeitando e valori-
zando suas identidades e diversidades culturais por meio de práticas e
vivências sociais, culturais, esportivas e artísticas.
2º. Reconhecimento das diferenças como meio de cooperar e inte-
grar. A UNILAB será espaço contínuo para que o reconhecimento das di-
ferenças entre povos e culturas se constitua em campo e espaço únicos de
problematização e de análises críticas, a partir de programas que respon-
dam à necessidade de formação de um sujeito social crítico e propositivo,
capaz de analisar e participar de seu contexto político e econômico, assim
como dos contextos políticos mundiais, de forma sustentável.

8  Para a área da Agricultura está previsto o Instituto de Ciências Agrárias, cujo foco inicial será
a produção sustentável de alimentos – em termos ambientais e sociais. (UNILAB, 2010)

9  A promoção da Saúde Coletiva e a formação de pessoas qualificadas para atuar em programas


de saúde comunitários serão desafios das atividades do Instituto de Ciências da Saúde. (UNILAB,
2010)

10 O Instituto de Ciências Humanas e Sociais, por sua vez, terá como objetivo inicial
desenvolver a gestão pública, em especial das políticas públicas. Tendo em vista a necessidade de
promover o desenvolvimento educacional das populações, bem como tecnologias inovadoras de
ensino-aprendizagem sem perder de vista o pluriculturalismo, o plurilinguismo e a identidade
artística e cultural dos povos envolvidos, haverá o Instituto de Formação de Professores, voltado
à formação de docentes de educação básica. (UNILAB, 2010)

11  O Instituto de Tecnologias com a função de promover ciência, tecnologia e inovação para,
com aproveitamento de recursos existentes, desenvolver a base tecnológica necessária aos países
parceiros, com especial atenção à área de energia. (UNILAB, 2010)

171
DA REPRODUÇÃO CULTURAL À INCLUSÃO SOCIAL DO NEGRO NA UNIVERSIDADE: O CASO DA UNILAB

3º. Reconhecimento e respeito à diversidade étnico-racial, religiosa,


cultural, de gênero etc.. Gerada em um contexto de cooperação Sul-Sul
e, portanto, como instrumento de superação de desigualdades, de res-
gate de aprendizagens decorrentes do passado colonial e de construção
de um futuro autônomo, o reconhecimento e respeito às diferenças será
princípio de todas as atividades da UNILAB. Em função disso, adotará
ações afirmativas que busquem ir além de cotas de acesso à universida-
de e contemplará estas questões em seus programas curriculares.
4º. Inclusão social com qualidade acadêmica: as demandas e as
oportunidades que se colocam à educação superior configuram um ce-
nário que deve articular, de forma criativa e sustentável, políticas que
reforcem o compromisso social da educação superior com qualidade
acadêmica e inclusão social.
5º. A Interdisciplinaridade, para além de fazer conhecer e relacionar
conteúdos, métodos, teorias ou outros aspectos do conhecimento, visa o
diálogo entre diversos campos do saber em uma atitude de colaboração.
Dessa forma, gera novas dinâmicas e atitudes frente ao conhecimento,
substituindo a tradicional concepção fragmentada das áreas do saber
por outra, mais integrada e unificadora do mundo e do ser humano.
6º. A articulação teórico-prática visa constituir uma unidade na
qual a prática não é simples aplicação da teoria, mas constitui-se ponto
de partida e de chegada. Por meio dela, a teoria passa a ser reformu-
lada tendo em conta necessidades concretas da realidade à qual busca
responder. Por isso, contrapõe-se à concepção que entende os dois ele-
mentos como unidades separadas, tendo o saber como algo “ao lado da
teoria”, produzido fora da prática, em uma relação de aplicação.
7º. Articulação ensino-pesquisa-extensão: prover a educação supe-
rior de forma generalizada e ao longo da vida requer rever as formas e
estruturas sobre as quais estão alicerçadas as atividades acadêmicas. A
articulação ensino-pesquisa-extensão é fundamental em uma proposta
formativa que busca vincular o conhecimento ao exercício da cidada-
nia, ao desempenho ativo no mundo do trabalho e ao acesso à diversi-
dade das culturas.
A fim de concretizar tais ações, atualmente, segundo dados do site da
universidade, nas duas modalidades de ensino (graduação e pós-graduação)

172
DANIEL BOCCHINI, MANUEL TAVARES

nas formas presencial e a distância a UNILAB possui um total de 4.166 es-


tudantes, sendo: 1.949 do Brasil; 51 da Angola; 77 do Cabo Verde; 438 de
Guiné-Bissau; 20 de Moçambique; 62 de São Tomé e Príncipe; e, 69 do Timor
Leste. Em relação aos docentes possui um total de 173 (por nacionalidade:
Brasil: 74; Angola 2; Guiné Bissau: 2; Moçambique 4; Portugal: 6; São Tomé e
Príncipe: 2; e, Timor Leste: 1).
Divididos em 7 cursos de Graduação (Administração Pública, Agro-
nomia, Bacharelado em Humanidades; Ciências da Natureza e Socieda-
de; Enfermagem; Engenharia de Energia; Letras- Língua Portuguesa)
e 6 cursos de Pós-Graduação, Especialização (Gestão Governamental;
História e Cultura Afro-brasileira, Indígena e Africana; Gestão Pública;
Gestão Pública Municipal; e, Gestão em Saúde) e ainda um curso Stric-
to Sensu (Mestrado Acadêmico em Sociobiodiversidade e Tecnologias
Sustentáveis e o Mestrado Interdisciplinar em Humanidades).
Para garantir a efetiva integração dos estudantes na vida universi-
tária, a UNILAB oferece programas voltados para as ações acadêmicas,
tais como o Programa de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID), o Pro-
grama de Bolsas de Desenvolvimento Regional (PIBDR), entre outros;
possuindo, também, a assistência estudantil, nas dimensões de auxílio
alimentação, transporte, moradia, instalação e social (UNILAB, 2013).

Abordagem metodológica e discussão dos resultados: compreenden-


do as representações dos negros na UNILAB

Essa pesquisa está configurada num perfil descritivo de caráter qua-


litativo, de acordo com Gil (1999). O objetivo principal desse modelo
é descrever determinada população ou fenômeno, ou seja, em nenhum
momento o pesquisador tem a prerrogativa de intervir na realidade estu-
dada, sendo seu único foco observar fatos, registrar, analisar e interpretar.
Participaram das entrevistas sete alunos dos cursos de Humanidades,
Agronomia, Administração Pública e Ciências da Natureza e Sociedade.
As entrevistas foram previamente agendadas e gravadas com um aparelho
Mp3 da marca Sony e transcritas na íntegra. Para a análise das entrevis-
tas, utilizamos a técnica da análise de discurso, a partir das propostas de
Orlandi (1990).

173
DA REPRODUÇÃO CULTURAL À INCLUSÃO SOCIAL DO NEGRO NA UNIVERSIDADE: O CASO DA UNILAB

Selecionamos, para este artigo, algumas formações discursivas que


incluímos nas entrevistas realizadas com estudantes da instituição: a di-
mensão intercultural na UNILAB; a integração cultural na instituição;
obstáculos à sua integração e a questão do racismo. No que diz respeito
à interculturalidade, os estudantes referiram que a universidade possui
uma dimensão intercultural, desde o seu próprio nome, passando pelas
diferentes formas de se vestir, andar e falar, os encontros ocorridos em
sala de aula, por intermédio dos trabalhos em grupo; também apon-
taram que a universidade promove espaços para que seja festejada a
independência dos países, abrindo, de certo modo, um caminho para a
troca cultural. Como exemplo, segue a opinião de um discente brasilei-
ro, graduando em humanidades:

Sim. Por exemplo, nós temos aqui o quarto cultural. Ele traz a apre-
sentação de crianças aqui da região, traz apresentações estrangei-
ras, danças, debates políticos, apresentações audiovisual da Guiné,
São Tome e Príncipe, Cabo Verde e de todos esses países da lusofo-
nia e o Timor Leste na Ásia. E é muito intercultural. No começo, é
como se eles fizessem questão de andar com as roupas tradicionais
e você vê o quanto é diferente a partir do modo de se vestir, do
modo de falar, de se comunicar. A música que eles ouvem muitas
vezes são muito parecidas com as dos brasileiros. E a gente vai ven-
do que há tantas amplas diferenças e amplas semelhanças. Então,
tratando da cultura da UNILAB, ela traz um forte investimento na
promoção cultural e na divulgação cultura, na pratica das políticas
culturais e afins.

Os estudos realizados por Heleno (2014), na UNILAB, convergem


para o mesmo cenário; um dos importantes pontos citados pelo autor
relaciona-se com as dimensões da cidade de Redenção que, por não ser
grande, oferece maiores possibilidades de integração entre os alunos,
além disso, o autor reforça essa integração em outros espaços dentro da
própria universidade como no restaurante universitário, corredores, bi-
blioteca etc. Todo esse panorama sobre a integração entre os alunos, por
algumas pessoas, são bem questionáveis; como exemplo, segue a fala de
um aluno africano relatando sobre sua impressão em relação à cidade e
às infraestruturas de saúde:

174
DANIEL BOCCHINI, MANUEL TAVARES

Não recebi informação quanto a localidade da UNILAB. Mas uma


coisa é certa, a caixa postal do Brasil é o Rio de Janeiro, São Pau-
lo. E a cidade de Fortaleza, Recife... Não mostra o interior. Eu na
verdade não tinha informação de que a UNILAB se situasse em Re-
denção, que é uma cidade que está dessa forma que está. Que não
favorece em certas condições como saúde. Saúde, UNILAB nada.
Eu tenho alguns problemas, como na coluna. Isso me deixa quase
a noite inteira sem dormir. Eu durmo pouco a noite, porque fico
sentindo dor. Nós temos aqui uma secretaria que tem a responsabi-
lidade das questões da saúde, mas lá só atende para essas pequenas
dores como de cabeça, etc, e, além disso, o médico não vem todos
os dias, só vem de dois a três dias por semana. E como é que se sabe
em que dia que a pessoa vai estar doente? Se o médico não vem
hoje e alguém está gravemente doente, o que fazer? E aqui não está
equipado de medicamento. Isso não é só pra nós, é para os brasilei-
ros. É a realidade de Redenção.

Em relação aos obstáculos encontrados para a integração cultural fo-


ram levantados que em alguns momentos essa interação se torna superfi-
cial, pois, grande parte dessa interação ocorre em salas de aula, onde o es-
paço é restrito. Quando os estudantes estão fora da sala de aula é destacada
a separação que ocorre entre essas diferentes culturas; existe uma tendência
a formação de grupos de semelhantes, ou seja, grupos de brasileiros de uma
lado e de africanos de outro. Segue a fala de um aluno africano:

Fora da sala de aula também se percebe isso, que existem alguns gru-
pos, onde cada um procura ficar com seus semelhantes: Brasileiros
ficam mais entre si, Africanos entre si, mas assim, Africanos tendem
a ficar com seus semelhantes, como Quenianos com Quenianos, Ca-
bos Verdianos com Cabo Verdianos, Santomenses com Santomenses,
mas assim, dentro da sala de aula isso acontece de uma forma mais
discreta, mas fora da sala de aula vemos com mais frequência.

Mais uma vez, em sua pesquisa, Heleno (2014) salienta que o ato de
integrar e cooperar só existem de fato quando ocorre numa via de mão
dupla, ou seja, onde os brasileiros aprendem com os países parceiros e eles
com os brasileiros, a fim de corroborar com esse quadro, um aluno africano
comenta sobre a responsabilidade do papel de integração na UNILAB:

175
DA REPRODUÇÃO CULTURAL À INCLUSÃO SOCIAL DO NEGRO NA UNIVERSIDADE: O CASO DA UNILAB

Eu não digo que somos nós que distanciamos deles, nem que eles
são os que distanciam de nós. Isso é algo em comum. Nós fazemos
e eles também. Mas eu acho que deveria ser eles a abrir o coração
e deixar nós entrarmos, porque nós viemos na casa deles. É como
você receber um hóspede. Tem que mostrar a esse hóspede todo
esse espaço e mostrar que ele é bem-vindo aqui. Mas, tem brasi-
leiros aqui que reclamam que os africanos não devem receber o
mesmo dinheiro que eles.

A forma como alguns relatos são representados pelos estudantes


nos permitem refletir sobre o racismo. De acordo com Santos (2001), o
racismo e o preconceito são configurados a partir de atitudes que carac-
terizam um modo de manifestação, sobre um indivíduo ou grupo social
considerado inferior, em outras palavras, Da Matta (1996) acrescenta
que ele tende a ocorrer de forma implícita dando ou tirando negritude
ou indianidade ou estrangeiridade de qualquer pessoa. Queiroz (2004)
nos ajuda a compreender o racismo na educação superior pela enorme
diferença entre alunos brancos e negros matriculados em universidades
públicas, também pelas ações que ocorrem de maneira quase impercep-
tível por meio de um olhar, um tratamento diferenciado por parte do
professor, resistência em fazer atividades em grupos, etc.
Nesse sentido, perguntamos aos alunos se na UNILAB existe ra-
cismo, isto é, quisemos saber se esses espaços sociais que favorecem o
encontro de tantas diferenças, contribuem para fortalecer as desigual-
dades. Seguem alguns relatos:

Acho que tem diferença sim, no meu ponto de vista, os cidadãos na-
cionais são mais privilegiados. Por exemplo, no nosso curso posso
dizer que existem algumas bolsas que os Africanos não sabem que
existem. Então acho que os brasileiros sabem mais sobre bolsas do
que os Africanos. E sobre a afinidade, acho que existe mais afinidade
entre os professores com os brasileiros, do que com os africanos. Até
das comidas, fazem comidas africanas uns 3 meses, mas na maioria
do ano é brasileira. (Estudante africana, graduanda em Humanidades)
eu percebo que tem algumas, porque quando cheguei aqui percebi que
tinha racismo entre os brasileiros, alguns diziam que nós estávamos
aqui tirando vaga de brasileiro, então acho que isso é um ato de racis-
mo. Já sofri racismo na rua, no ônibus. Na sala de aula mesmo você

176
DANIEL BOCCHINI, MANUEL TAVARES

vê, que sempre tem separação na sala, onde tem africanos sentados,
dificilmente você vê um brasileiro, é cada um de um lado. (Estudante
africana, graduanda em Humanidades)

Já presenciei. Na minha sala mesmo. A gente estava montando um


grupo para um seminário, aí estavam dando os nomes. Daí tinha uma
menina que era africana. E aí uma outra menina esperou que ela colo-
casse o nome em outro grupo pra poder colocar dela. Ela disse: “Não
quero africana no meu grupo.” (Estudante brasileira, graduanda em
Ciências da Natureza)

Impanta (2015) em seu trabalho de conclusão de curso na UNI-


LAB, cujo objetivo foi investigar as relações étnicas e de gênero das
guineenses na universidade, também encontrou as mesmas evidências,
o mal-estar racial relatado em diversas situações como no ônibus, onde
alguns brasileiros não sentam do lado com medo de se sujar, em lojas,
e, até mesmo dentro da universidade. Em um entrevista realizada pela
autora, uma estudante descreve um situação durante uma avaliação, em
que pediu à professora uma folha de rascunho, a mesma negou alegando
que não era permitido; alguns minutos depois, uma brasileira pediu a
folha de rascunho e a professora lhe entregou prontamente.

Considerações finais

Inicialmente, procuramos discutir, no presente artigo, a partir dos


conceitos elaborados por Pierre Bourdieu, a possível desnaturalização
da situação do negro em relação às universidades brasileiras. Quando
vemos essa realidade, e, ao invés de aceitá-la, tentamos a compreender,
fica evidente perceber a universidade como um sistema educacional
construído a fim de manter o status quo, favorecer a legitimação da raça
branca, e, consequentemente, contribuir para a reprodução da desigual-
dade social.
Inúmeras são as desvantagens que a população negra atravessa na
educação superior, além dos preconceitos ligados a estereótipo é im-
portante ressaltar que o modelo de organização universitário, que vai
desde os conteúdos, programas, relações pedagógicas até ao sistema de

177
DA REPRODUÇÃO CULTURAL À INCLUSÃO SOCIAL DO NEGRO NA UNIVERSIDADE: O CASO DA UNILAB

avaliação, simboliza uma via crúcis onde os negros não possuem seus
conhecimentos validados.
Com vistas a minimizar tal prejuízo, nos últimos anos, foram im-
plantadas políticas de democratização e expansão das universidades.
Desse modo, o governo passou a adotar diversas ações afirmativas (po-
lítica de cotas, isenção na taxa de inscrição nos vestibulares, cursinhos
populares, etc) que visam diminuir essa desigualdade racial em nosso
país. Além disso, foram criadas universidades que se propõem como
populares, ou seja, alternativas a esse modelo tradicional vigente. De
um modo geral, essas instituições possuem como metas a inclusão so-
cial e a autonomia política de determinados grupos sociais que, his-
toricamente, sofreram e ainda sofrem preconceitos; assim, procura-se
resgatar uma dívida da negação ao acesso e permanência na educação
superior.
Desse modo, a UNILAB possui em sua proposta um espaço para
a integração de países parceiros da Comunidade de Países de Língua
Portuguesa (CPLP), e, além disso, em suas diretrizes gerais aponta suas
ações no sentido de construir uma universidade intercultural e inclusi-
va, tanto em relação ao currículo, bolsas de estudos, auxílios, como em
eventos culturais. Assim, procuramos investigar se o estudante negro é
incluído nessa proposta de educação superior que, como dito, procura
se contrapor ao modelo hegemônico de educação.
A partir das entrevistas realizadas pudemos identificar que, de uma
maneira geral, os estudantes da UNILAB percebem que a universidade
é intercultural por meio do inevitável encontro de diferentes culturas,
variadas formas de andar, se vestir, falar, por meio de datas comemora-
tivas das independências dos países; comentaram também que a cidade
de Redenção, por ser pequena, permite a aproximação entre as diferen-
ças culturais. Alguns estudantes compreendem que tais ações ainda se
configuram de maneira superficial nas relações sociais que permeiam a
instituição, de certa forma eles atribuem um direcionamento institucio-
nal nessa integração, pois, quando existe liberdade, a tendência é cada
um se relacionar com o seu semelhante. Outra questão citada diz respei-
to ao ato de cooperar que pressupõe uma ação de mão dupla. Para os es-
tudantes entrevistados, não ocorre de forma satisfatória e deram como

178
DANIEL BOCCHINI, MANUEL TAVARES

exemplo a alimentação que, normalmente, só existe um prato típico de


algum país parceiro quando é comemorado a sua independência.
O racismo foi outro assunto a ser debatido na UNILAB. Os estudan-
tes relatam diversas situações dentro e fora da universidade em que já
sofreram algum tipo de preconceito, seja no ônibus, no mercado, e, até
mesmo no interior da instituição por meio de resistência a fazer grupos,
seleção de alunos bolsistas, professor que tratam de maneira desigual.
A UNILAB é uma instituição recente. Pretende afirmar-se como
um modelo alternativo às universidades tradicionais. Todavia, surgem
algumas dúvidas em relação à operacionalização dos princípios inova-
dores presentes na sua matriz institucional, o que significa que se im-
põem outras pesquisas que visem entender a relação entre os princípios
e as práticas. Em consonância com Gomes e Vieira (2013) e Heleno
(2014), e, cientes de seu processo de construção, podemos ressaltar os
importantes desafios encarados por essa instituição: realizar a inclusão
das culturas diferentes, promover a interculturalidade, formar para o
antirracismo e criar pontes de diálogo, favorecendo políticas e ações
descoloniais.

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183
POLÍTICAS PÚBLICAS INCLUSIVAS: JUSTIÇA SOCIAL
NA IMPLANTAÇÃO DE POLÍTICAS DE AÇÕES
AFIRMATIVAS

Evangelita Carvalho da Nóbrega1


Maurício Silva2

1. Introdução

O objetivo deste artigo é apresentar conceitos distintos de ação afir-


mativa, defendidos por diferentes autores, descrever o percurso histó-
rico das ações afirmativas, a implantação de políticas de ações afirma-
tivas por meio da política cotas nas universidades públicas brasileiras
enquanto instrumento de justiça social.
Compreende-se que existe uma pequena distinção entre Ação Afir-
mativa (AA) e Política de Ação Afirmativa (PAA). Aquelas podem ca-
racterizar-se como ações de iniciativas da sociedade civil, setor privado
e público; estas são, especificamente, um conjunto de políticas públicas
que visam a proteger grupos sociais que tenham sido excluídos, opri-
midos, discriminados e marginalizados no acesso e na permanência em

1 Pedagoga (UFPI). Mestre em Educação (UNINOVE/SP). Especialista em Gestão de


Políticas Públicas em gênero e raça (UFPI). Professora da UESPI. Bolsista da FAPEPI. email:
evangelitanobrega@hotmail.com.

2  Pós-Doutor – USP. Professor PPGE-UNINOVE. email: maurisil@gmail.com.

184
EVANGELITA CARVALHO DA NÓBREGA, MAURÍCIO SILVA

espaços sociais, culturais, educacionais e políticos, entre outros direitos


garantidos ao cidadão pela Constituição Federal.
O ponto de vista de Gomes (2001, p. 6) é o de que

[...] as ações afirmativas consistem em políticas públicas (e tam-


bém privadas) voltadas à concretização do princípio constitucional
da igualdade material e a neutralização dos efeitos da discrimina-
ção racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição
física. Impostas ou sugeridas pelo Estado, por seus entes vincu-
lados e até mesmo por entidades puramente privadas, elas visam
a combater não somente as manifestações flagrantes de discrimi-
nação, mas também a discriminação de fundo cultural, estrutural,
enraizada na sociedade.

Desse modo, as PAAs possuem um caráter emergencial e transitório,
compulsório, facultativo/voluntário e reparador, que tem como objetivo
corrigir as desigualdades historicamente impostas a determinados grupos
sociais e/ou étnico/raciais, os quais contam com um histórico comprovado
de discriminação e exclusão, por meio de leis, incentivos governamentais,
reserva de vagas no mercado de trabalho e na educação, concessão de bol-
sas e bonificações em concursos, entre outras.
Moehlecke (2002, p. 199) expõe que as várias formas de implementa-
ção de ações afirmativas ocorrem via “ações voluntárias, de caráter obri-
gatório, ou uma estratégia mista; programas governamentais ou privados;
leis e orientações, a partir de decisões jurídicas ou agências de fomento
e regulação.” A autora considera as ações afirmativas como reparatórias/
compensatórias e/ou preventivas, que buscam corrigir uma situação de dis-
criminação e desigualdade infringida a certos grupos no passado, presente
ou futuro, por meio de valorização social, econômica, política e/ou cultura
desses grupos, durante um período limitado. A ênfase em um ou mais des-
ses aspectos dependerá do grupo visado e do contexto histórico e social.
Já Gisele Cittadino (2004, p. 11) defende que as ações afirmativas não
devem ser vistas como mecanismos de compensação, mas sim como ações
que possibilitem a integração e tenham por objetivo a remoção de obs-
táculos, de modo a permitir a efetiva “participação de amplos setores da
sociedade nos processos de deliberação política.”

185
POLÍTICAS PÚBLICAS INCLUSIVAS: JUSTIÇA SOCIAL NA IMPLANTAÇÃO DE POLÍTICAS DE AÇÕES
AFIRMATIVAS

Nesse contexto, o Ministério da Justiça (1996, p. 10) define que

ações afirmativas são medidas especiais e temporárias tomadas pelo


Estado e/ou iniciativa privada, espontânea ou compulsoriamente,
com o objetivo de eliminar desigualdades historicamente acumu-
ladas, garantindo a igualdade de oportunidade e tratamento, bem
como compensar perdas provocadas pela discriminação e a margi-
nalização por motivos raciais, étnicos, religiosos, de gênero e outras.

Logo, as ações afirmativas procuram diminuir as desigualdades his-


toricamente acumuladas, garantindo a igualdade de oportunidades e o
tratamento diferenciado para compensar perdas provocadas pela dis-
criminação e marginalização que tem como motivo as questões sociais,
raciais, étnicos, religiosos, de gênero e outros, além de promover ascen-
são a postos de liderança.

2. Percurso histórico das ações afirmativas

As chamadas ações afirmativas são práticas que vêm sendo adotadas


há mais ou menos meio século e surgiram em contextos de reconheci-
mento de desigualdades econômicas, sociais, raciais, étnicas, religiosas
ou culturais de grupos e indivíduos em diferentes países, como Índia,
Estados Unidos, Malásia, Sri Lanka e Nigéria.
A Índia é o país de mais longa experiência histórica com políticas de
ação afirmativa, que começaram a ser adotadas ainda sob o domínio co-
lonial inglês e depois foram ratificadas pela Constituição de 1947, com
o país já independente. Desde a primeira Constituição, em 1948, passou
a adotar ações de discriminação positiva, ou seja, exceção constitucio-
nal à regra de tratamento igualitário, motivada pelas intensas discrimi-
nações entre as diferentes castas, os intocáveis indianos (Dalist) e gru-
pos tribais (Adivasis), com objetivo de proporcionar o desenvolvimento
socioeconômico, propondo aos beneficiados acesso sem competir com
indivíduos não contemplados por meio da progressão de reserva de es-
paços no funcionalismo público, na admissão à universidade, na repre-
sentação parlamentar e em outros benefícios projetados para vencer os
padrões históricos de discriminação. (FERRES JR.; ZONINSEN, 2006).

186
EVANGELITA CARVALHO DA NÓBREGA, MAURÍCIO SILVA

Entretanto, o termo ação afirmativa, de acordo com Domingues


(2005), foi criado em 1963, nos Estados Unidos, pelo então presidente
J. F. Kennedy, para nomear um conjunto de políticas públicas e privadas
cujo objetivo era coibir a discriminação racial relacionada ao merca-
do de trabalho. Essas ações surgiram no contexto de reivindicações e
aprovação da Lei dos Direitos Civis de 1964, que previa a igualdade de
oportunidades a todos, possibilitando a promoção de ações de combate
à segregação racial, que era explícita naquele país.
Sobre as ações afirmativas nos Estados Unidos, Munanga (2003, p. 1)
afirma que

nos Estados Unidos, onde foram aplicadas desde a década de ses-


senta, elas pretendem oferecer aos afro-americanos as chances de
participar da dinâmica da mobilidade social crescente. Por exem-
plo: os empregadores foram obrigados a mudar suas práticas, pla-
nificando medidas de contratação, formação e promoção nas em-
presas, visando a inclusão dos afro-americanos; as universidades
foram obrigadas a implantar políticas de cotas e outras medidas fa-
voráveis à população negra; as mídias e órgãos publicitários foram
obrigados a reservar em seus programas uma certa percentagem
para a participação dos negros. No mesmo momento, programas de
aprendizado de tomada de consciência racial foram desenvolvidos
a fim de levar a reflexão aos americanos brancos na questão do
combate ao racismo.

Na década de 1970, essa forma de compromisso político e ações


voltadas para a promoção de diferentes grupos passou a ser adotada
por outros países, como Canadá, Malásia, África do Sul, Nigéria, entre
outros. De tal modo, as ações afirmativas (ou ação positiva, como foi
chamada na Europa, em 1976) passaram a ganhar novos contornos e a
produzir novos sentidos, de acordo com o contexto histórico, cultural e
econômico específico de cada país (MOEHLECKE, 2002).

2.1 Ações afirmativas no Brasil

No Brasil as ações afirmativas tiveram formatos diferenciados, com


características e particularidades próprias. Feres Júnior e Zoninsein

187
POLÍTICAS PÚBLICAS INCLUSIVAS: JUSTIÇA SOCIAL NA IMPLANTAÇÃO DE POLÍTICAS DE AÇÕES
AFIRMATIVAS

(2006, p. 47) afirmam que é “a experiência norte-americana a mais sig-


nificativa para o caso da ação afirmativa no Brasil”. No entanto, outros
estudiosos apontam que as experiências de países como a Índia (1950)
também contribuíram na fundamentação e estruturação legal da conso-
lidação do modelo brasileiro.
Entre elas, a justificação pública de implantação mais utilizada, seja
no Brasil ou em outros países, para essas políticas que já estão em fun-
cionamento há mais tempo, são: reparação, justiça distributiva e diver-
sidade. Quanto aos argumentos da reparação, justificam-se por medidas
compensatórias; os da justiça distributiva enfocam, explicitamente, a
desigualdade do presente; e o da diversidade, para contribuir com os
processos de inclusão social a todos os grupos oprimidos. A reparação
volta-se para o passado e a justiça distributiva focaliza a desigualdade
presente, enquanto a diversidade sugere a produção de um tempo futu-
ro, quando as diferenças possam se expressar em todas as instâncias da
sociedade (FERES JR., 2008).
No Brasil, desde os anos de 1920, o movimento dos negros vem rei-
vindicando diversas formas de igualdade racial e social. Para Carvalho
(2003), a discussão acerca da implantação de ações de caráter reparató-
rio a favor da população negra começou com o Jornal Quilombo, publi-
cado nos anos de 1949 e 1950, pelo grupo de Abdias do Nascimento. Ele
trazia a ideia de entrada dos estudantes negros na educação pública e
privada, em todos os níveis de ensino, como bolsistas do Estado.
O movimento negro reivindicou a necessidade de políticas de
ação afirmativa em áreas como o trabalho, a educação, a moradia e a
saúde, reclamações estas também levantadas pela Frente Negra Brasilei-
ra, na década de 1940.
No Brasil, desde 1943, tivemos experiências que podem ser apon-
tadas como ações afirmativas, por meio da Consolidação das Leis de
Trabalho (CLT), que expressava, no art. 354, a proporcionalidade de
2/3 (dois terços) de empregados brasileiros, podendo, entretanto, ser
fixada proporcionalidade inferior, em atenção às circunstâncias espe-
ciais de cada atividade; e no art. 373-A, que previa “disposições legais
destinadas a corrigir as distorções que afetam o acesso da mulher ao
mercado de trabalho e certas especificidades estabelecidas nos acordos

188
EVANGELITA CARVALHO DA NÓBREGA, MAURÍCIO SILVA

trabalhistas”. Essa ação visava a uma discriminação positiva por deter-


minar uma proporção obrigatória de empregados brasileiros em relação
a estrangeiros, no Brasil (BRANDÃO, 2005, p. 2).
A implementação de políticas afirmativas, no Brasil, é antiga. Tive-
mos, na educação superior pública, cotas para brancos, com a Lei Federal
nº. 5.465/68, conhecida como Lei do Boi, que beneficiava os filhos de
agricultores, proprietários ou não de terras, e estabelecia reserva de vagas
(cotas) de 50% e 30% nos cursos de Agronomia e Veterinária, das univer-
sidades públicas brasileiras, a qual foi extinta ao ser provado o seu caráter
elitista, pois acabava por beneficiar os filhos de latifundiários.
As ações afirmativas, em uma concepção ampla, foram praticadas
em outros momentos históricos no Brasil, mas sob uma perspectiva de
garantia de direitos a populações e grupos em detrimento de outros,
que acabaram sendo marginalizados no processo de desenvolvimento
nacional. Elas não são medidas inéditas (DOMINGUES, 2005).
A partir de várias manifestações, os ativistas negros começaram a
se organizar e a fundamentar seus ideais. Assim, foi criado o Movimen-
to Negro Unificado Contra a Discriminação Racial, no ano de 1977,
em São Paulo, chamado posteriormente de Movimento Negro Unificado
(MNU), em defesa das questões raciais. Em 1970 e 1980, foram criadas
várias outras entidades que defendiam as questões raciais, incluindo
movimento de mulheres negras, como o GELEDÉS, que combatia a des-
valorização das mulheres negras e o racismo.
Em 1987, foi feita uma proposição, pelo deputado federal Florestan
Fernandes, de incluir na Constituição Federal de 1988 ações afirmativas
para negros e outros grupos marginalizados da sociedade. Guimarães
(2003, p. 196) aponta que a luta por ações afirmativas no Brasil “repre-
sentou uma importante guinada na pauta de reivindicação dos negros
brasileiros, dando início a uma era de luta contra as desigualdades so-
ciais do país, vistas agora como raciais, independentemente do combate
à discriminação e ao preconceito”.
No Brasil, para abranger os grupos excluídos historicamente, sur-
giram práticas de ações afirmativas fundamentadas por diversas leis, as
quais trouxeram a concepção de garantia do direito à diferença. Nesse
diapasão, a nova Constituição de 1988 restabeleceu o Estado Democrá-

189
POLÍTICAS PÚBLICAS INCLUSIVAS: JUSTIÇA SOCIAL NA IMPLANTAÇÃO DE POLÍTICAS DE AÇÕES
AFIRMATIVAS

tico de Direito, impondo a igualdade de direitos e criminalizando o ra-


cismo. Ela apresenta princípios que ratificam a implementação de ações
afirmativas para proteger direitos que ainda continuam silenciados e
reduzir desigualdades sociais e regionais.
Exemplificam-se algumas dessas desigualdades: no campo da saú-
de, a expectativa de vida dos negros é uma das mais baixas; quanto à
localização de espaço geográfico, vivem, em sua maioria, em áreas mais
periféricas, o que leva a outras consequências, como tornarem-se alvo
maior de violência; as condições econômicas em que estão inseridos são
de baixa renda, ou seja, pobreza e até miséria; baixos salários; subem-
prego; altas taxas de analfabetismo. Isso tudo interfere no campo edu-
cacional e, portanto, comprova que os negros são vítimas do sistema, o
que gera condições desiguais de oportunidades de acesso e permanên-
cia, levando-os ao abandono, à evasão e à repetência, em várias etapas
da educação.
Esses indicativos sociais mostram um pouco das políticas públicas
implementadas em nosso país, nas quais se separam negros (sem opor-
tunidades) e brancos (com oportunidades), tendo como consequência
a exclusão daqueles da universidade. Tivemos, ao longo da história, em
nossas instituições de ensino superior públicas, um modelo de acesso vol-
tado somente a uma pequena parcela da população, chamada de elite pri-
vilegiada, esta contando com melhores condições de acesso, permanência
e sucesso. O déficit de acesso à educação superior é de jovens de classes
populares e, principalmente, de negros. Nessa perspectiva, a partir da se-
gunda metade da década de 1990, a luta do movimento negro por ações
afirmativas deu-se em razão de as políticas universais mostrarem-se in-
suficientes para superar a condição de desigualdade racial entre brancos
e negros, no ensino superior brasileiro (SANTOS, 2007).
Vale sintetizar a trajetória do evento que aconteceu em 1995, em Bra-
sília, organizado pelo movimento negro, e que contou com uma forte mo-
bilização popular, sendo estimada a participação de 30 mil pessoas. A Mar-
cha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida foi um
marco, não apenas pela realização do evento, mas, sobretudo, pela politiza-
ção da questão racial e educacional do negro na sociedade e no parlamen-
to brasileiro, com a formalização de um documento com reivindicações,

190
EVANGELITA CARVALHO DA NÓBREGA, MAURÍCIO SILVA

exigindo políticas públicas e ações concretas do Estado, que oferecessem


condições para a promoção da igualdade de oportunidades e a eliminação
de qualquer fonte de discriminação racial na sociedade. (GONÇALVES;
SILVA, 2006).
As políticas afirmativas, no Brasil, em especial as cotas para o ensi-
no superior, continuam sendo uma temática pouco conhecida, do ponto
de vista teórico, pelos brasileiros em geral e, em muitos casos, o debate
tem sido focado a partir de um olhar de discriminação, quer sob aspec-
tos implícitos ou explícitos.
O Projeto de Lei 3.198/2000, apresentado pelo deputado Paulo
Paim, tramitou no Senado apensado ao Projeto de Lei 6.912/02, que
propõe a “instituição do Estatuto da Igualdade Racial, em defesa dos
que sofrem preconceito ou discriminação em função de sua etnia, raça
e/ou cor, e dá outras providências”. A proposta desse Estatuto institui
uma série de mecanismos e políticas relacionadas à população afrodes-
cendente para o mercado de trabalho, à mídia, à educação e à saúde. Ele
propõe, igualmente, a criação de um fundo para o desenvolvimento de
ações afirmativas.
Contudo, a partir do ano de 2001, a resistência às políticas de ações
afirmativas começou a enfraquecer, com a posição do Brasil na III
Conferência Mundial Contra o Racismo, a Discriminação, a Xenofobia
e Intolerâncias Correlatas, realizado na cidade de Durban, África do
Sul, em setembro daquele ano, que teve a participação de movimen-
tos sociais negros e de representações e lideranças. Nessa ocasião, fo-
ram reconhecidas as desigualdades raciais do país e o governo, à época,
comprometeu-se a revertê-las, com a adoção de políticas afirmativas.
Dessa forma, as pressões da comunidade internacional e do movimento
negro foram imprescindíveis para a estruturação de uma proposta de
ação afirmativa.
Para Rosana Heringer (2006, p. 81), o documento elaborado pela
delegação brasileira “listava um conjunto de 23 propostas destinadas
à promoção dos direitos da população negra”. Entre elas, previa-se “a
adoção de medidas reparatórias às vítimas do racismo”, com ênfase na
educação, no trabalho, além de titulação e políticas de desenvolvimento
para as comunidades quilombolas, e recomendava a “adoção de cotas

191
POLÍTICAS PÚBLICAS INCLUSIVAS: JUSTIÇA SOCIAL NA IMPLANTAÇÃO DE POLÍTICAS DE AÇÕES
AFIRMATIVAS

nas universidades e outras medidas afirmativas de acesso de negros às


universidades públicas.”
No entanto, após a Conferência de Durban, em que o país tornou-
-se signatário da convenção, comprometendo-se com o plano de ação e
firmando compromisso internacionalmente, e com a repercussão midi-
ática no cenário brasileiro, fomentou-se o debate sobre as ações afirma-
tivas, provocando mudanças na gestão do governo Fernando Henrique
Cardoso. Em termos institucionais, foram criados o Conselho Nacional
de Combate à Discriminação, para propor políticas públicas afirmativas;
o Programa Diversidade na Universidade, por meio da Lei 10.558/02,
no âmbito do Ministério da Educação, com a finalidade de implemen-
tar e avaliar estratégias para a promoção do acesso ao ensino superior
de pessoas pertencentes a grupos socialmente desfavorecidos, especial-
mente dos afrodescendentes e dos indígenas brasileiros; e o Programa
Nacional de Ações Afirmativas, por meio da Lei nº 10.588/2002 , coor-
denado pela Secretaria de Estado dos Direitos Humanos do Ministério
da Justiça, que tinha como objetivo, segundo o decreto, desenvolver um
conjunto de ações a partir do envolvimento de várias áreas do governo
federal (HERINGER, 2006).
Como ação afirmativa, o MEC implementou a inclusão da temática
diversidade como um tema transversal na instituição dos Parâmetros
Curriculares Nacionais, em 2000, com um volume intitulado Pluralida-
de Cultural e Orientação Sexual.
Salienta-se que o Programa Nacional de Ações Afirmativas não foi
concretizado, no que se refere à política de cotas no ensino superior
para estudantes negros. Segundo Heringer (2006, p. 99), esse “programa
visava ao repasse de recursos para organizações públicas ou privadas
que oferecessem a esses grupos cursos preparatórios para candidatos ao
vestibular, principalmente em universidades públicas.”
Sendo assim, somente no governo do presidente Luiz Inácio Lula da
Silva, sob a influência de diversas pressões nacionais e internacionais,
a discussão sobre ações afirmativas difundiu-se pela sociedade. Criou-
-se, pela Lei 10.678/03, a Secretaria Especial de Políticas de Promoção
da Igualdade Racial (SEPPIR), com status de ministério, responsável
pela execução de políticas públicas, articulada aos demais ministérios,

192
EVANGELITA CARVALHO DA NÓBREGA, MAURÍCIO SILVA

com a incumbência de formular, coordenar e avaliar políticas públicas


afirmativas de promoção da igualdade e da proteção aos direitos dos in-
divíduos e grupos raciais e étnicos (HERINGER, 2006). Foi com a cria-
ção da SEPPIR que as ações governamentais começaram a considerar as
desigualdades raciais como objeto de políticas de ações afirmativas que
pudessem alterar a situação do negro no país.
Nos objetivos da Política Nacional de Promoção da Igualdade Ra-
cial (SEPPIR, 2003), encontram-se: a defesa de direitos, no que se refere
à afirmação do caráter pluriétnico da sociedade brasileira, destacando-
-se a promulgação da Lei nº 10.639/03, alterada pela Lei nº 11.645/2008,
que instituíram a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-
-brasileira e indígena em todos os estabelecimentos de ensino da edu-
cação básica e ensino superior; a terra para os quilombolas e a crimi-
nalização do racismo; a ação afirmativa, entendida como a criação de
condições que permitam a todos se beneficiarem da igualdade de opor-
tunidades e eliminar qualquer fonte de discriminação direta ou indire-
ta, que compreende uma ação positiva, ativa do Estado e não mais uma
ação negativa que se restrinja à mera intenção de não discriminar; e a
articulação temática de raça e gênero como princípio de orientação das
políticas da SEPPIR.
Outro instrumento que potencializa a garantia de direitos refere-se
à aprovação da Lei 12.288/10, que criou o Estatuto da Igualdade Racial,
definindo, no art. 1º, ser “destinado a garantir à população negra a efe-
tivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos
individuais, coletivos e difusos, e o combate à discriminação e às demais
formas de intolerância étnica.”
Interessante destacar que as ações afirmativas viabilizam a pro-
moção do ingresso no ensino superior público, e foram reivindicadas,
principalmente, por membros do movimento negro, militantes da área
e pesquisadores envolvidos na temática, para o benefício da população
negra, baseando-se nos números que denunciam as desigualdades que
os negros(as) ainda sofrem na sociedade brasileira.
As ações afirmativas têm como objetivo corrigir as desigualdades
historicamente impostas a determinados grupos sociais e/ou étnico/ra-
ciais, e promover novas condições de acesso e permanência na educação

193
POLÍTICAS PÚBLICAS INCLUSIVAS: JUSTIÇA SOCIAL NA IMPLANTAÇÃO DE POLÍTICAS DE AÇÕES
AFIRMATIVAS

superior. Nessa perspectiva, percebe-se o objetivo de se repararem os


prejuízos históricos aos grupos marginalizados da sociedade, como é
o caso dos negros, indígenas, quilombolas e egressos de escolas públi-
cas. As ações afirmativas, na área educacional, com vistas a promover a
equidade e a inclusão social das populações mais desfavorecidas e dis-
criminadas, apresentam-se, pois, como uma estratégia para minimizar
as discriminações contra os desprestigiados, dando-lhes condições mais
igualitárias, principalmente em relação ao acesso à educação superior.
Para Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva (2009, p. 264), as ações
afirmativas têm caráter amplo:

ações afirmativas são um conjunto de metas articuladas e comple-


mentares que integram programas governamentais, políticas de Es-
tado, determinações institucionais, com as finalidades de: corrigir
desigualdades no acesso à participação política, educação, saúde,
moradia, emprego, justiça, bens culturais; reconhecer e reparar cri-
mes de desumanização e extermínio contra grupos e populações;
reconhecer e valorizar a história, cultura, identidade de grupos so-
ciais e étnico-raciais, bem como a importância de sua participação
na construção de conhecimentos valiosos para toda a humanidade.

Por isso, a efetivação de políticas afirmativas na educação superior


pública é imprescindível. Trata-se, em suma, de uma medida de discri-
minação positiva, que visa a tratar os desiguais de modo desigual e de
reparar os direitos sociais silenciados e/ou negados.
Logo, a reivindicação feita por cotas, empreendida pelo movi-
mento negro e demais defensores das ações afirmativas, enfatiza que,
em uma sociedade repleta de desigualdade social e racial, o princípio
do direito universal não é suficiente para atender aos grupos sociais e
étnicos excluídos e discriminados historicamente (GOMES, 2004).
Maurício Silva (2015, p.1) :

[...] A nosso ver, numa sociedade em que a cor constitui um pode-


roso mecanismo de estratificação social, a política de cotas raciais
é mais do que um direito, tornando-se uma obrigação, por questão
de justiça histórica, além de, num sentido subjetivo, mas com im-
ponderáveis repercussões práticas, representar o reconhecimento e

194
EVANGELITA CARVALHO DA NÓBREGA, MAURÍCIO SILVA

a assunção de uma identidade afrodescendente na clave da positi-


vidade, na medida em que leva o negro a se afirmar e a se posicio-
nar socialmente como tal.

Nesse sentido, o primeiro passo para romper com as barreiras do


privilégio de ingresso nas universidades públicas vem sendo consolida-
do com a implementação de política de cotas, ou seja, a reserva de va-
gas a segmentos excluídos da sociedade no acesso à educação superior.
Gomes (2004, p. 51) explica que “[...] cotas raciais atualmente em vigor
não significam que os alunos negros deixarão de fazer o vestibular. Eles
o farão, porém, concorrerão com outros alunos do seu grupo étnico/
racial que possuem trajetórias sociais escolares semelhantes.”

3. A implantação das cotas nas universidades públicas brasileiras



Com o reconhecimento dos direitos, foram promulgadas, a partir
do ano de 2000, as primeiras leis estaduais no Brasil sobre reserva de
vagas em universidades públicas.
Ao longo da trajetória de debates e reivindicações dos movimentos
negros, ativistas e intelectuais para implantação de cotas na educação
superior no Brasil, as pioneiras a implantarem ações afirmativas são uni-
versidades estaduais: Universidade Estadual do Rio de Janeiro(UERJ),
Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF), Universidade Es-
tadual de Mato Grosso de Sul (UEMS) e Universidade Estadual do Rio
Grande do Norte (UERN).
A aprovação da primeira lei de cotas na educação superior ocorreu
no Estado do Rio de Janeiro, com a Lei nº 3.524/2000, que reservava
50% das vagas a estudantes provenientes do sistema público de ensino.
Isso viabilizou às universidades estaduais adotarem a política de reserva
de vagas/cotas - UERJ e UENF. No ano de 2001, foi reformulada pela
Lei nº 3.708, que previa a reserva de 40% de vagas para estudantes au-
todeclarados pretos e pardos. Depois, houve outras alterações, e no ano
de 2003, substituída pela Lei nº 4.151/2003, que reservava 45% das va-
gas para estudantes de baixa renda per capita, por pessoa, de R$ 300,00
mensais, entre porcentagem das vagas: 20% para estudantes provenien-

195
POLÍTICAS PÚBLICAS INCLUSIVAS: JUSTIÇA SOCIAL NA IMPLANTAÇÃO DE POLÍTICAS DE AÇÕES
AFIRMATIVAS

tes do sistema público de ensino, 20% para negros e 5% para pessoas


com deficiência e indígenas.
A partir de 2002, tivemos outras instituições estaduais que adotaram
ações afirmativas: a Universidade do Estado da Bahia (UNEB), que por
meio da Resolução 196/2002 estabeleceu o percentual de 40% de vagas
para afrodescendentes oriundos de escolas públicas; a Universidade Es-
tadual de Goiás (UEG), pela Lei 14.832/ 2004 fixou cotas para o ingresso
de estudantes no Sistema Estadual de Educação - por meio dessa legisla-
ção, ficou estabelecida a reserva de vagas para os concluintes do ensino
médio classificados no processo seletivo, egressos de escola da rede pú-
blica de educação básica, negros, indígenas ou portadores de deficiência;
a UEMS, que por meio da Lei nº 2.605, que dispõe sobre 20% das vagas
para negros; e a Lei nº 2589, de 26/12/2002, que trata da reserva de vagas
para indígenas. A UEMS foi a primeira universidade do país a implantar
cotas para os indígenas, buscando viabilizar de forma mais ampla o aces-
so e, consequentemente, o ingresso destes no ensino superior.
As universidades estaduais iniciaram a mudança de paradigma para
o acesso à universidade. De forma tardia, as instituições federais de
ensino superior, mesmo gozando de autonomia administrativa, prin-
cipalmente no que se refere à tomada de decisões, somente a partir de
2003 realizaram as primeiras experiências, introduzindo o acesso pelo
sistema de cotas.
A pioneira na implantação de cotas no sistema federal foi a Universi-
dade de Brasília (UNB), adotando exclusivamente cotas raciais e indíge-
nas em seus vestibulares. O sistema foi implantado no segundo vestibular
de 2004, com a reserva de 20% das vagas dos cursos para candidatos ne-
gros; admissão de estudantes indígenas, em cooperação com a Fundação
Nacional do Índio (FUNAI); e intensificação de atividades de apoio a
escolas da rede pública (UNB, 2003).
Outras universidades federais começaram a adotar ações afirma-
tivas a partir de 2005, como: Universidade Federal de São Paulo, Uni-
versidade Federal da Bahia, Universidade Federal do Paraná, Centro
Federal de Educação Técnica - Rio Grande do Norte, Universidade Fe-
deral de Pernambuco e Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(HERING, 2006).

196
EVANGELITA CARVALHO DA NÓBREGA, MAURÍCIO SILVA

Desde 1983, foram apresentados projetos de lei federal sobre cotas


para ingresso nas universidades públicas brasileiras. Alguns legislado-
res fizeram parte desse movimento de promoção de cotas para o acesso
à educação superior. Citamos, em termos legislativos, o deputado fede-
ral Abdias do Nascimento, que apresentou projeto de Lei 1.332, de 1983,
no qual propôs o estabelecimento de cotas para negros nas universida-
des. Em 1995, a senadora Benedita da Silva mostrou o projeto de Lei nº
14, que dispõe sobre a instituição de cota mínima para os setores etnor-
raciais socialmente discriminados em instituições de ensino superior.
Já em 1999, ampliou-se o debate sobre ações afirmativas com a de-
putada Nice Lobão, que apresentou o projeto de Lei nº 73/1999, o qual
propôs cotas nas universidades federais de um percentual de reserva de
vagas de 50% mediante seleção de alunos nos cursos de ensino médio.
No mesmo ano, o senador Antero Paes de Barros também propôs outro
projeto de Lei, nº 298/1999, que ratificava a reserva de vagas nas univer-
sidades públicas para alunos egressos da rede pública de ensino.
No ano de 2004, houve outra tentativa, que teve como proponen-
te o governo federal, por meio do projeto de Lei nº 3.627/2004, que
visava a instituir o reserva de vagas nas instituições públicas federais
de educação superior para estudantes oriundos de escolas públicas, em
especial negros e indígenas. Em 2007, a senadora Ideli Salvatti também
registrou um projeto de Lei, nº 546/2007, que tratava de reserva de va-
gas para estudantes egressos de escolas públicas em instituições federais
de educação superior, profissional e tecnológica. Já em 2008, o senador
Marconi Perillo, por meio do projeto de Lei nº 344/2008, expôs o plano
de reserva de vagas nas instituições públicas de educação superior, pelo
período de doze anos, para estudantes de escolas públicas.
Também à frente do debate sobre as cotas, a deputada Nice Leão
sintetizou as ideias vinculadas em outros projetos e patenteou o projeto
de Lei nº 180/2008, que abordava o ingresso em universidades federais
e estaduais, e em instituições federais de ensino técnico de nível mé-
dio, estabelecendo um percentual de 50% de vagas para estudantes que
tivessem cursado o ensino médio integralmente em escolas públicas,
instituindo, ainda, que 50% dessas vagas fossem destinadas a estudantes
que possuíssem renda familiar igual ou inferior a 1,5 salário mínimo per

197
POLÍTICAS PÚBLICAS INCLUSIVAS: JUSTIÇA SOCIAL NA IMPLANTAÇÃO DE POLÍTICAS DE AÇÕES
AFIRMATIVAS

capita, e que as vagas deveriam ser preenchidas por recortes etnicorra-


ciais (negros, pardos e indígenas), de acordo com dados do IBGE quan-
to à proporção desses grupos em cada Estado da federação, mas no caso
de vagas remanescentes, estas deveriam ser ocupadas por estudantes
que tivessem cursado o ensino médio integralmente em escola pública.
Contudo, as tentativas de implementação de cotas nas universida-
des federais provocaram diversos debates e embates, com posições con-
trárias e favoráveis. Foi entregue, no Congresso Nacional e no Supremo
Tribunal Federal (STF), respectivamente em 2006 e 2008, manifestos
envolvendo intelectuais, artistas e ativistas contra e a favor da lei de
cotas, no período em que começou a tramitar o projeto de Lei de Cotas
(PL 73/1999) e o Estatuto da Igualdade Racial (PL 3.198/2000), em ju-
nho de 2006 (MUNANGA, 2007).
A audiência pública no Supremo Tribunal Federal (STF) para de-
finir a constitucionalidade das cotas contou com argumentos que le-
gitimaram a promoção das políticas de ação afirmativa em todas as
instâncias de sua aplicabilidade. O ministro Luís Inácio Lucena Ada-
ms ressaltou que as cotas raciais constituem uma forma de “resgatar as
minorias historicamente desprestigiadas do alimento político, social e
cultural a que foram submetidas, implantando um canal difusor de seus
valores, concepções e manifestações (BRASIL. STF, 2010, p. 28).”
A vice procuradora geral da República, Deborah Duprat, à época foi
favorável à política de reserva de vagas nas universidades, apontando que

[...] as cotas têm um caráter de, ao mesmo tempo em que elas per-
mitem um pluralismo nas diversas instituições nacionais, políti-
ca inclusiva. É uma política onde as diferenças se encontram e se
celebram, ao contrário da sociedade hegemônica, que confina os
diferentes aos espaços privados. Então diferentemente do discurso
de que a política de cotas cria diferenças, castras, ela inclui, traz
para o espaço público essa multiplicidade da vida social. (BRASIL.
STF, 2010, p. 15-16).

Enfim, depois de quase vinte anos de lutas e reivindicações por par-


te dos movimentos sociais, ativistas, intelectuais e alguns representan-
tes políticos, em abril de 2012, o STF decidiu que o sistema de cotas

198
EVANGELITA CARVALHO DA NÓBREGA, MAURÍCIO SILVA

da UNB era constitucional. Essa definição levou, em agosto de 2012, o


governo federal a publicar a Lei de Cotas, que regulamenta percentuais
de vagas nas universidades federais e instituições federais de ensino téc-
nico de nível médio para estudantes que cursaram escolas públicas, ou
que sejam oriundos de famílias com baixa renda, ou que sejam negros
ou indígenas.
A Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012, estabeleceu que:

Art. 1º As instituições federais de educação superior vinculadas


ao Ministério da Educação reservarão, em cada concurso seletivo
para ingresso nos cursos de graduação, por curso e turno, no mí-
nimo 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para estudantes que
tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas.
Parágrafo único. No preenchimento das vagas de que trata o caput
deste artigo, 50% (cinquenta por cento) deverão ser reservados aos
estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5
salário-mínimo (um salário-mínimo e meio) per capita.
Art. 3º Em cada instituição federal de ensino superior, as vagas de
que trata o art. 1º desta Lei serão preenchidas, por curso e turno,
por autodeclarados pretos, pardos e indígenas, em proporção no
mínimo igual à de pretos, pardos e indígenas na população da Uni-
dade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o últi-
mo censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

A lei específica prevê que as universidades federais, até 30 de agosto


de 2016 para o seu cumprimento integral de 50% de suas vagas. A regula-
mentação da lei deu-se pelo Decreto nº 7.824, de 11 de outubro de 2012,
que mantém autonomia administrativa e acadêmica das IES federais em
consonância com seus colegiados adotarem políticas específicas de ações
afirmativas, bem como reserva de vagas suplementares ou outras modali-
dades de ações.
O decreto define quem poderá concorrer às vagas na modalidade
de cotas:

[...] Art. 3º Parágrafo único. Os resultados obtidos pelos estudantes no


Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM poderão ser utilizados como
critério de seleção para o ingresso nas instituições federais vinculadas

199
POLÍTICAS PÚBLICAS INCLUSIVAS: JUSTIÇA SOCIAL NA IMPLANTAÇÃO DE POLÍTICAS DE AÇÕES
AFIRMATIVAS

ao Ministério da Educação que ofertam vagas de educação superior. 


Art. 4º  Somente poderão concorrer às vagas reservadas de que tratam
os arts. 2o e 3º: I - para os cursos de graduação, os estudantes que: a)
tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas, em
cursos regulares ou no âmbito da modalidade de Educação de Jovens
e Adultos; ou b) tenham obtido certificado de conclusão com base no
resultado do Exame Nacional do Ensino Médio - ENEM, de exame na-
cional para certificação de competências de jovens e adultos ou de exa-
mes de certificação de competência ou de avaliação de jovens e adultos
realizados pelos sistemas estaduais de ensino.

A entrada na universidade, por meio da lei de cotas, é o primeiro pas-
so de inclusão social. No entanto, é preciso garantir aos estudantes condi-
ções de permanência até a conclusão do curso. Os autores Benincá e Santos
(2013, p. 54) apontam caminhos para compreendermos que a universidade
deverá mais do que só oferecer oportunidades (vagas). São essenciais me-
canismos que assegurem equidade ao processo, bem como a permanência
do estudante.
Nesse ensejo, Angela Randolpho Paiva (2010, p. 7) relata que as ações
afirmativas são uma realidade social, sendo, nesse sentido, preciso avan-
çar nas discussões, pois “não se trata mais de ser contra ou a favor dessas
políticas”, porque elas já foram implantadas em várias universidades e con-
tinuam a ser. Assim, segundo a autora, o momento seria de investigação e
análise dessas políticas e suas implicações no contexto das universidades.
Ressalta-se ainda, que somente a política de cotas não é suficiente para
garantir a justiça social. Portanto, é preciso avançar para o segundo pas-
so - a efetivação de políticas sociais, ações que viabilizam a permanência
e assistência estudantil (aspectos financeiros, pedagógicos e psicológicos).
Assim, as políticas afirmativas precisam continuar sendo aplicadas como
uma ferramenta importante para a democratização da inclusão social à
educação superior no Brasil.

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de outubro de 1988. Brasília, DF: Imprensa Oficial, 1988.

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201
POLÍTICAS PÚBLICAS INCLUSIVAS: JUSTIÇA SOCIAL NA IMPLANTAÇÃO DE POLÍTICAS DE AÇÕES
AFIRMATIVAS

abril de 1995, 7.347, de 24 de julho de 1985, e 10.778, de 24 de novembro


de 2003. Brasília: 2010.

. Lei nº 12.711, de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas


universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de
nível médio e dá outras providências. Brasília: 2012.

. Decreto 7.824 de 2012. Regulamenta a Lei no 12.711, de


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