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Pegar o gancho da análise de castas e tentar enquadrar o racismo como uma hierarquização

social baseada em critérios raciais que possui semelhanças com as divisões estamentais da
sociedade.

Introdução
Este trabalho foi organizado e pensado para trazer uma breve análise do filme
espanhol “O poço” (2019), sendo usado como síntese na apresentação de conceitos pensando
por sociólogos acerca da sociedade, relações sociais, questões econômicas e de conflitos que
foram pensados por autores clássicos como Karl Marx (1985) e Max Weber (1979).
Iniciaremos apresentando o conceito de acumulação primitiva e classe pensados por
Marx, a questão do capital, as relações de trabalho dessa nova demanda na sociedade moderna
e pré-capitalista, trazendo reflexões de contribuições do período medieval para o
desenvolvimento dessa nova forma de produção. Este trabalho trata também de trazer o
conceito de classe, estamento, casta, a relação desses conceitos com a distribuição de poderes
nas sociedades por Marx Weber e como se refletem nas ações e relações sociais. A
valorização do trabalho moldando a forma como grupos enxergam a si mesmo e aos outros,
mostrando porque um grupo precisa oferecer sua força de trabalho e a outra não, apresenta
aparatos jurídicos que tentam controlar “vagabundagem” e pobreza, como o sistema prisional
neoliberal pensado por Loic Wacquant (2008).

Conceitos de Marx, Weber e Wacquant.


Para Marx, a acumulação primitiva foi essencial para a estrutura política e econômica
do modo capitalista que surge na modernidade europeia, ou seja, foi um conjunto de fatores
anteriores como descobertas navais significativas, a escravidão, monopólios de rotas
comerciais nas índias, feitorias na África e a colonização no continente americano como
importantes nesse processo. Resumidamente, essa acumulação advém de momentos históricos
distintos e em diferentes territórios que não deve ser presumido que aconteceu da mesma
forma, o uso do termo “primitivo” corresponde a uma história anterior ao capitalismo
comercial e modo de produção capitalista industrial, advém da estruturação da sociedade
feudal e suas relações econômicas da época (MARX, 1985, p. 339-340).
Sendo assim, o autor traz reflexões sobre a importância dessa acumulação no
desenvolvimento das classes sociais e da produção capitalista na modernidade, fazendo com
que se analise essas relações em diferentes temporalidades e como causa impactos nas
sociedades. É dentro dessa produção capitalista que a acumulação possibilitou e fez-se
necessário a existência entre duas classes antagonistas, mas que se relacionam entre si: os
donos do meio de produção que possuem acumulações, dinheiro, podendo assim comprar a
mão de obra de quem precisa vender, pois estes consistem em “trabalhadores livres”, é por
meio dessas duas classes que se encontra a ligação da produção do dinheiro em ainda mais
capital, a acumulação fomentando a mais valia, que consiste na diferença entre a quantidade
produzida e o quanto esses produtores recebem (MARX, 1985, p. 339). Assim sendo, a
acumulação originária se dá de maneira ininterrupta durante o espaço-tempo, acontecendo de
formas distintas e em diversos territórios. 
Levando em consideração esse cenário, é possível tratar do filme espanhol de 2019, O
poço, para refletir sobre conceitos citados por Marx, visto que o enredo se trata de um
experimento prisional onde a comida é o bem mais valioso e de subsistência, mas sua
distribuição não é feita de forma igualitária visto que os presos são divididos em duplas e com
níveis diferentes numerados de forma aleatória a cada mês, onde os do topo podem comer à
vontade e quando o painel de comida chega até os de baixo é quase sempre o mesmo cenário:
fome, miséria e pobreza. Dado a importância que a comida possui é mostrado a cozinha logo
no início do filme de forma simbólica, retratando a maneira como os cozinheiros são tratados
dentro de seu trabalho e como não possuem acesso aquilo que eles mesmos produzem.
A acumulação e demanda capitalista tem como marca a retirada das massas populares
de seus meios de sobrevivência e sustento como no período feudal e a expropriação do campo
frente a crise do feudalismo, onde por mais que era propagado a ideia entre a burguesia local
de que com o fim da servidão uma nova forma de trabalho capitalista aumentaria a liberdade
na relação de trabalho, pois agora havia liberdade e separação dos trabalhadores do local de
serviço, na realidade mostra interesses de um grupo especifico em garantir e consolidar um
modelo econômico que lhes fosse conveniente (MARX, 1985, p. 341).
Ainda havia dependência e servidão marcando essa continuidade, não se tratava de
uma liberdade plena (MARX, 1985, p. 341-342) e entra em cena a questão do trabalhador
visto como produto conforme a produção capitalista aumenta durante o espaço-tempo. É bom
ressaltar que os indivíduos expulsos e expropriados, desagarrados dos espaços de trabalho
anteriormente conhecido não foram acoplados no modelo industrial e no recém mercado de
trabalho, pois não havia garantia de adaptação como é visto a seguir:
Assim, o movimento histórico, que transforma os produtores em trabalhadores
assalariados, aparece, por um lado, como sua libertação da servidão e da coação
corporativa; e esse aspecto é o único que existe para nossos escribas burgueses da
História. Por outro lado, porém, esses recém-libertados só se tornam vendedores de
si mesmos depois que todos os seus meios de produção e todas as garantias de sua
existência, oferecidas pelas velhas instituições feudais, lhes foram roubados. E a
história dessa sua expropriação está inscrita nos anais da humanidade com traços de
sangue e fogo. (MARX, 1985, p. 341).

Desse modo, as novas relações de produção dentro da sociedade europeia do século


XVI somados à religião, criam uma nova visão sobre o trabalho e sua valorização, onde a
maioria de camponeses, homens livres e pobres, se encontram em posição de não conseguir
competir por um emprego assalariado e da não adequação ao novo sistema, tendo como
consequência social e urbana um aumento significativo de pessoas em situação de rua,
pedindo por esmolas e ganhando o status de “vagabundo”, aumentando o número de assaltos,
o que fez com que a coroa inglesa e o continente europeu criassem leis extremamente
violentas que punissem, marcassem a ferro e até chegava a matar quem estivesse “vadiando”
na rua ou fosse pego roubando (MARX, 1985, p. 356).
Em o poço, é mostrado como alguns personagens como Trimagasi e o próprio Goreng
se adaptam ao sistema fazendo consumo de carne humana quando em níveis que a comida não
era capaz de chegar, em contrapartida, é mostrado também personagens que não recorre a
esses métodos para se adaptar e preferem tirar a própria vida, como é o caso da Imoguiri que
após estar no nível 33 e ir para o nível 212 acaba tirando sua própria vida.
Segundo Weber (1979, p. 211), conceitos como classes, estamentos e poderes, são
ocorrência da distribuição de poderes nas sociedades. Dessa maneira, para o sociólogo há
repartições e diferenças de poderes, como poder jurídico, político, econômico, financeiro,
social e o que perpassa prestígio e honrarias, tendo também relação com diferentes ordens. A
distribuição de poderes consiste na manutenção da ordem e da hierarquia social de grupos
específicos sobre a maioria, podendo ser usados violência física, psíquica, por meio de
coerção, força, mas também de consentimento. É importante dentro dessa configuração
entender que a distribuição de poderes consiste na circulação entre esses mesmos grupos,
fazendo com que seus interesses sejam garantidos e mantidos mesmo frente a insatisfações.
O filme citado anteriormente exemplifica questões tratadas por Marx Weber quando é
apresentado o personagem Trimagasi questionando ao colega de cela, Goreng, o motivo de
estar no poço, ficando claro para a audiência que há quem esteja ali por um acordo para
ganhar algo material ou cumprindo pena por crime cometido e pôde escolher o poço a outro
lugar. A relação entre pessoas divididas por níveis que enfrentam a mesma situação durante o
poço, mas que se desprezam devido ao status entre “os de cima e os de baixo”, mostra que
hierarquizações criadas pelas sociedades interferem e influenciam as motivações e ações
humanas, a forma como enxerga a si e aos outros, que é o campo de pesquisa de Max Weber.
O Goreng, por exemplo, é apresentado como aquele que quer mudar o sistema e a forma
como a comida é racionalizada, escolhendo descer até o último nível na plataforma, mas
usando a força e violência a quem queria levar ajuda durante a trama. Enfrentando conflitos
morais quanto a consumir a carne humana de seus dois antigos colegas de classe, onde
inclusive matou um deles.
Diferentemente das definições marxistas, o conceito de classe para Weber não
representa comunidades e perpassa questões sociais onde os indivíduos precisam ter em
comum e como causa oportunidades e condições de vida, é uma condição onde um número de
pessoas se encontraria na mesma situação frente a oportunidade de trabalho e a motivação de
possuir bens (WEBER, 1979, p. 212), sendo possível uma mobilidade social. O que difere a
tese de Weber (1979) para Marx é que para o primeiro a ação social tem um lugar importante
no entendimento da humanidade e suas relações socioculturais para além das estruturas
econômicas, tratando de especificidades onde valores, a moral, a religiosidade, motivações,
tradições, formam elementos e relações sociais importantes dentro dos conceitos de classe,
estamento, ordem social, prestígio e castas.
Os estamentos, diferentemente das classes, normalmente são compostos por
comunidades que possuem um sentido de pertencimento dentro de seus próprios grupos, tendo
relação com a condição que lhe é atribuída desde o nascimento, podendo estar ligado a uma
predestinação e ideia de destino, perpassando por uma honraria estamental acerca de religião,
da disputa por poder e da propriedade. A honraria estamental tem relação com o estilo de vida
de cada grupo, sua religião, as vestes e os vínculos familiares através do casamento, podendo
haver limitações entre relações sociais já que são mais fechados em si mesmos (WEBER,
1979, p. 218-219), quando comparado ao conceito de classe há uma menor chance de
mobilidade social, mas não é tão restrito quando se trata de questões étnicas das castas.
Em uma sociedade estamental, consideram-se as castas o tipo mais puro e extremo de
hierarquia social. No filme “O poço”, a cada mês, os personagens são realocados em um nível
diferente. O que fica explícito no longa-metragem é que, quanto mais alto o nível, melhor,
assim como numa hierarquia social, tal como as castas, já que nesse sistema, a casta em qual a
pessoa nasce determina como ela viverá pelo resto da vida, de maneira semelhante ao que
ocorre no poço. Ao longo do filme, em consequência da incerteza dos personagens sobre qual
nível os mesmos irão acordar no próximo mês, vemos que, por culpa do sistema, o instinto de
sobrevivência e até mesmo o egoísmo vai, de forma gradativa, crescendo a cada dia.
Segundo o sociólogo Loic Wacquant (2008 p.11) ele diz que, para aqueles que são
dependentes da estrutura de classes e castas, a imposição de ofertas de trabalho precárias e
mal remuneradas é um complemento indispensável de uma política de criminalização da
pobreza, dados por projetos neoliberais de desregulamentação e degradação do setor público.
Todos que habitam o poço estão trabalhando para conseguir algo: seja largar um vício
antigo, como o Goreng, a sua própria liberdade, como o Trimagasi buscava, ou até mesmo o
perdão que a Imoughari buscava, vindo da culpa de antes fazer parte da Administração.
Assim, o filme assemelha-se com a realidade das prisões, pois sempre há pessoas que
trabalham e lutam por sua liberdade, ou até mesmo trabalhando para garantir sua própria
sobrevivência, para que possam sair e voltar a viver em sociedade não como ex-presos, mas
sim como novos seres humanos, e que podem acabar se sujeitando aos princípios do trabalho
não regulamentado. “Para alguns dos recém-saídos de uma instituição carcerária, a intrincada
malha da supervisão pós-correcional aumenta a pressão para a opção pela vida "do caminho
certo" ancorada no trabalho, quando disponível.” (Wacquant, 2008 p.12).
Seguindo com a lógica, Wacquant afirma que o sistema penal (não só dos Estados
Unidos como no mundo inteiro) coopera diretamente para a normatização dos segmentos mais
baixos do mercado de trabalho. Também afirma que o sistema o faz de um modo muito mais
opressivo do que a legislação trabalhista, entre outras políticas públicas, das quais nem
abrangem trabalho não-regulamentado. “A prevalência e a escalada impressionantes das
sanções penais ajudam a disciplinar as parcelas reticentes da classe trabalhadora, aumentando
o custo das estratégias de resistência ao trabalho assalariado dessocializado por intermédio de
uma "saída" para a economia informal.” (Wacquant, 2008 p.12).
“A prisão como instituição está diretamente vinculada ao conjunto de organizações e
programas encarregados de prestar "assistência" às populações desfavorecidas, e alinhada à
crescente interpenetração organizacional e ideológica entre os setores penal e social do estado
pós-keynesiano” (Wacquant, 2008). Em uma estado pós-keysiano, os antigos ideais ficam
engavetados, enquanto surge o conceito neoliberal mais atrelado ao capitalismo que nunca. Se
tratando desse assunto, a economista Leda Paulani (2006) diz:
O neoliberalismo constitui o discurso mais congruente com a etapa capitalista que se
inicia, já que defende e justifica as práticas mais adequadas a esse novo momento.
[...] O estímulo à demanda agregada garantidor do pleno emprego, que implicava
gastos públicos substantivos (com bens públicos e mecanismos de proteção social),
não podia mais continuar, dada a crise que então se vivia e que atingia o próprio
equilíbrio fiscal. (Paulani, 2006 p.76).

O autor Loic Wacquant também menciona que, numa era pós-keysiana e com os ideais
neoliberalistas alinhados aos ideais capitalistas, o crescimento penal gera empregos no setor
privado de produtos e serviços carcerários, e a medida em que o setor privado cresce e a cada
ano tem lucros maiores, paralelamente, a privatização da punição também tem um
crescimento exponencial, porque, mesmo que tais empresas no ramo de correcionais tenham
uma alta competitividade, a punição aos seus funcionários são os salários incrivelmente
baixos que eles recebem, e a falta de garantia de quaisquer benefícios. Existe, também, um
fator que afeta diretamente o mercado de trabalho: o ultra encarceramento. Segundo
Wacquant, o excesso de presos facilita o crescimento da economia informal e até mesmo de
empregos que ficam abaixo da linha de pobreza. “O encarceramento extremo, portanto,
alimenta o emprego contingente, que é a linha de frente da flexibilização do trabalho
assalariado nas camadas mais baixas da distribuição de empregos.” (Wacquant, 2008).

Considerações finais
Após a breve análise do filme selecionado, “O poço”, é notado como o longa-
metragem faz inúmeras críticas sociais relacionadas ao seu enredo principal. É visto o
conceito da acumulação primitiva, muito presente na prisão vertical, que é apontado por
Marx, a questão dos estamentos, que ao longo do filme vemos que nos leva a questão da
estratificação social, clarificada por Weber, e a superlotação do sistema carcerário e trabalho
mal remunerado, resultado da aproximação do estado neoliberalista ao sistema capitalista,
explicados por Wacquant.
Foi feito uma análise sociológica do filme, o relacionando a conceitos sociológicos
defendidos por diferentes autores de renome na área, de uma maneira mais simplificada ao
leitor. Ao fim, esta análise concentra-se em pensamentos de Marx, Weber e Wacquant.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

MARX, Karl. A acumulação primitiva de capital. In: O Capital: crítica da economia política
do capital. Vol. I, Livro I, Tomo 2, 2.ed. São Paulo: Nova Cultural, 1985. (Os economistas).
p. 339-381

PAULANI, L.M. O projeto neoliberal para a sociedade brasileira: sua dinâmica e seus
impasses. In: LIMA, J.C.F., and NEVES, L.M.W., org. Fundamentos da educação escolar do
Brasil contemporâneo [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2006, pp. 67-107.

WACQUANT, Loic. O Lugar da Prisão na Nova administração da Pobreza, Novos Estudos


CEBRAP 80, 2008.

WEBER, Max. Classe, estamento, Partido. In: WEBER, M. Ensaios de Sociologia. Rio de
Janeiro: Zahar, 1979.

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