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HISTÓRIAS DE ENSINAMENTO I

"As pessoas que falam pouco precisam apenas de meio cérebro."


(Provérbio Italiano)

Não posso imaginar maneira melhor de iniciar uma reflexão sobre histórias do que
contando uma, pequena e verdadeira, acerca das condições e das reais complexidades com as
quais nos deparamos ao lidar não apenas com histórias, mas com o processo mesmo de falar e
ouvir.
Pouco tempo atrás eu estava dando uma conferência a respeito da dificuldade que as
pessoas têm para assimilarem situações - especialmente com certa rapidez - mesmo se o fazem
sequencialmente; e de como uma história, ou até uma afirmação, pode transformar-se, por
assim dizer, numa propriedade pessoal de cada indivíduo, podendo então ser recordada e
considerada de vários pontos de vista.
"Observou-se", continuei, "que muitas informações não são absorvidas porque a maior
parte das pessoas é realmente incapaz de absorver algo que escuta apenas uma vez..."
Imediatamente uma mão levantou-se e alguém sentado na primeira fila pediu-me: "Poderia
repetir isso novamente?" Mais tarde investiguei e descobri que essa pessoa não sofria de
nenhum tipo de deficiência auditiva, e nem se tratava de um humorista perspicaz.
Julgamos que esse intervalo entre a apresentação de materiais e sua integração ao
pensamento e ao repertório de ação do indivíduo precisa ser ensinado à maioria das pessoas
interessadas em histórias. Isto é útil também em outros campos, mas achamos que é algo fácil
de ser observado e comprovado no ambiente de narração e audição de histórias. O método
holístico é capaz de dar conta de certos elementos e o método linear de outros. Nenhum dos
dois, no entanto, será capaz de perceber outras dimensões da história antes que certa
habilidade tenha sido desenvolvida. Este pequeno conto sufi é empregado com o propósito
educativo de, pelo menos, instalar na mente a asserção de que a pessoa necessita deste lapso
de tempo para que tal objetivo seja alcançado. Não tem a intenção, portanto, de zombar de
nenhum dos personagens fictícios que nele aparecem.

TEMPO E ROMÃS
Um candidato a discípulo foi até a casa de um médico sufi e pediu para tornar-se aprendiz da
arte da medicina.
"Você é impaciente e por isso fracassará em observar os fatos que necessitará aprender", disse o
médico. Mas o jovem implorou e o sufi concordou em aceitá-lo.
Depois de alguns anos o jovem sentiu que poderia exercer certas habilidades que aprendera. Um
dia, um homem caminhava em direção à casa e o médico - olhando-o à distância - disse: "Esse homem
está doente. Ele necessita de romãs."
"O senhor fez o diagnóstico; deixe que eu receite para ele e terei feito metade do trabalho",
disse o estudante.
"Está bem", disse o professor, "desde que você se lembre que ação também deve ser vista como
ilustração", disse o professor.
Assim que o paciente chegou à soleira da porta, o estudante puxou-o para dentro e disse:
"Você está doente. Coma romãs."
"Romãs!", gritou o paciente. "Romãs para você! Que loucura!" E foi embora.
O jovem perguntou a seu mestre o significado do intercâmbio.
"Eu o esclarecerei da próxima vez que tivermos um caso similar", disse o sufi. Algum tempo
depois os dois estavam sentados do lado de fora da casa quando o mestre olhou para cima de relance e
viu um homem se aproximando.
"Aqui está o seu esclarecimento - aí vem um homem que necessita de romãs", ele disse. O
paciente foi levado para dentro e o médico lhe falou:
"Você é um caso difícil e intricado, pelo que vejo. Deixe-me pensar... Sim, você necessita de um
dieta especial. Ela deve ser composta de alguma coisa redonda, que possua naturalmente pequenas
bolsas em seu interior. Uma laranja... teria a cor errada..., limões... são muito ácidos... Já sei: romãs!" O
paciente foi embora, satisfeito e agradecido.
"Mas, mestre", disse o estudante, "por que o senhor não falou "romãs" logo de saída?"
"Porque ele necessitava de tempo tanto quanto de romãs", ele respondeu.

Bem, este conto costuma produzir algum riso, mas, especialmente em culturas onde as
pessoas adquiriram o hábito de transformarem tudo em piadas, nós às vezes encontramos
comentários do tipo: “Aquele paciente era realmente um idiota, não?”

SUPRESSÃO DO IMPACTO
A anulação do impacto de uma história ou de outro tipo de estímulo é, sem dúvida
alguma, um estratagema bem conhecido, uma maneira de evitar a assimilação de seus pontos
principais. Este comportamento pode ser visto frequentemente nas pessoas que têm a
necessidade, também manifesta de outras formas, de protegerem-se contra influências
exteriores. Outros contos também são usados como corretivos dessa situação, possibilitando às
pessoas rirem de si mesmas e reconhecerem que não há nenhum pecado no fato de serem
propensas a apresentarem as mesmas deficiências que muitas outras também possuem.
Pouquíssimas vezes encontrei reações tão dramáticas como as que se seguiram à minha
primeira publicação, em 1969, de uma antiga narrativa sobre reações dramáticas. Utilizando
cerca de 1.500 palavras bem espalhadas - que ocupavam nove páginas com muitos espaços em
branco -recontei a lenda de um homem que possuía um livro enorme, mas que continha
apenas algumas poucas palavras escritas. Essas palavras falavam a respeito de como as
pessoas julgam pelas aparências, confundindo o recipiente (container) com o conteúdo
(content). Mas as pessoas se enfureciam quando descobriam que o livro continha tão poucas
palavras. Essas nove páginas foram impressas e publicadas como um livro, que tinha outras
300 páginas - em branco - para fazer volume. A forma externa, tamanho e peso desse volume,
que intitulei “The Book of the Book”, presumivelmente dava a impressão de que ele estava
repleto de palavras do começo ao fim. E a capa era gravada a ouro.
Houve uma gritaria imediata. Os críticos, ao verem que o livro continha apenas nove
páginas impressas, manifestaram sua raiva e desapontamento frente a tal produto. A princípio,
nenhum deles percebeu que se tratava de um livro que falava sobre a raiva e o
desapontamento das pessoas frente a um livro que não contava nada a não ser como as
pessoas ficavam aborrecidas ao perceberem que se tratava de um livro que apenas alertava a
respeito de forma e conteúdo. Aos poucos, no entanto, outros críticos começaram a perceber
este ponto e fizeram boas críticas. O livro agora já está na quarta edição, embora um
especialista do British Museum de Londres tenha declarado, sem hesitar, que “de forma alguma
aquilo era um livro”. Nós então descobrimos um texto da UNESCO que provava que ele
realmente preenchia todos os requisitos exigidos de um livro... Várias foram as referências a ele
como “causador de sensações”, ou “experimental e novo”, até mesmo no London Times.
A confusão entre recipiente e conteúdo é, sem dúvida alguma, uma tendência humana
muito comum, que produz idolatria às aparências exteriores e um pensamento do tipo “varinha
de condão”. Por alguma razão, esse tipo de pensamento é chamado mágico apenas quando
encontrado entre povos subdesenvolvidos... A argumentação e a ilustração, através de histórias
como esta, de que existem esses dois modos - o conteúdo interno e a forma externa - permite
ao estudante recordar e reviver, por assim dizer, a história-modelo, e então estudar o seu
próprio comportamento para ver se, talvez, não esteja desenvolvendo uma tendência em
direção à superficialidade, ao pensamento mágico e à atenção incompleta.
ENSINAMENTO ANALÓGICO
O ensinamento analógico sufi possui uma interessante dimensão que, à medida em que
nos familiarizamos com ele, podemos observar quase que em toda parte. Isto pode ser
resumido na seguinte afirmação: “tudo o que tem uma forma mental, tem uma forma física e
também uma forma que se reflete nos acontecimentos sociais”. Se o recipiente é o ser
humano, o conteúdo pode ser chamado a natureza e a qualidade de seu ser interior, não
importa se você o qualifique como psicológico, educacional ou espiritual. Algumas vezes vocês
podem observar a verdadeira diferença entre forma e conteúdo exposta como lição de moral ou
mesmo drama social, na vida cotidiana. É este fato que dá às histórias-ensinamento sua
realidade e que dota de vitalidade as narrativas de ensinamento (descrição de
contatos entre mestres e discípulos).
Aqui está um exemplo de como a negligência humana em relação à forma e conteúdo,
em seu significado interior, pode concretizar-se num acontecimento da vida real:
No ano passado, o London Times noticiou que a jurisdição local de um distrito britânico
recebeu um pacote, pelo qual teve que pagar uma taxa postal devido ao excesso de peso, já
que ele não trazia nenhum selo estampado. Estava tão mal embrulhado que arrebentou
durante a viagem. Dentro desse interessante pacote, desse recipiente com uma aparência
externa tão desastrosamente negligente, o que vocês pensam que havia? Nada mais, nada
menos que 200 folhetos do Conselho dos Usuários dos Correios intitulado: “Você tem alguma
reclamação a fazer dos Correios? “
Aqui está outro exemplo, pinçado quase que ao acaso, que levanta questões ainda mais
profundas sobre recipientes e conteúdos:

NUTRINDO-SE DO RECIPIENTE
Há quatro anos atrás foi divulgada a realização de alguns testes científicos acercadas
características de vários cereais matinais e suas embalagens. Ratos foram alimentados, em
condições de laboratório, com dietas feitas a partir tanto do conteúdo quanto da embalagem
desses cereais. Os resultados indicaram que “com frequência a caixa de papelão é mais
nutritiva que os cereais que contém”.
Eu gostaria de extrair uma lição desses exemplos, com o objetivo de alertar contra
suposições que costumam se produzir em torno de um pretenso estudo sufi ,, sem mencionar o
que nele se costuma inserir, e o que realmente se encontra ali.
Quando pessoas tornam-se prisioneiras das aparências exteriores, certas histórias,
frequentemente as engraçadas, podem ser usadas para capacitá-las a adquirirem uma
perspectiva mais produtiva. Nos círculos sufis não é incomum um mestre impedir que os
estudantes se apeguem a ele, dirigindo, em vez disso, a atenção dos alunos para o fenômeno
total do empreendimento sufi. Nós podemos fazer uso de uma história, como a que
apresentamos a seguir, com o intuito de produzir um “impacto” que remova a concentração das
superficialidades e irrelevâncias, para que assim o indivíduo possa conectar-se com algo mais
fundamental, embora menos palpável. Temos aqui uma história ocidental, mas que servirá para
nossos propósitos:
OS SENTIMENTOS “MAIS PROFUNDOS”
Era uma vez um homem que viajou para uma terra muito distante em busca de iluminação
espiritual. Finalmente chegou à casa de um sábio que tinha a reputação de ser um mestre dos segredos.
No exato momento em que foi conduzido à presença do grande homem, uma estranha agitação
tomou conta dele, fazendo-o cair no chão, e ele sentiu que a própria terra poderia se abrir e engoli-lo.
“Até que enfim! Até que enfim o senhor despertou meu ser interior, Ó Mestre de espirito
elevado...”, ele gaguejou.
“Receio não compreender muito bem”, disse o venerável professor, “como você pode ser capaz
de beneficiar-se com o que, de fato, foi apenas um terremoto... Eles ocorrem com frequência por aqui,
sabe...”

Deve ser lembrado que a técnica educacional sufi objetiva remover, ou ajudar a
remover, padrões de comportamento superficiais que limitam uma compreensão mais
profunda. Isto porque, entre os sufis, a exclusão de fatores limitantes é tão importante quanto
a inclusão de conceitos e o uso de técnicas especiais para estimular a percepção: na verdade, a
primeira deve preceder os outros dois.
Já que a maioria das pessoas tende a adotar as práticas exteriores dos indivíduos e
instituições que respeitam e admiram, muitos contos sufis assumem o formato humorístico ou
semi-humorístico, para que possam ser trazidos à mente com o intuito de reduzirem o efeito
dessa incrustação. Muitas das escolas espirituais, sufis ou não, que são do conhecimento
público, tanto aqui quanto em outros lugares, são visíveis e, para o verdadeiro sufi, encontram-
se desqualificadas em seu potencial de ensinamento exatamente por causa dessa aderência.
Existe um conto que aponta este aspecto, ainda que, como muitas outras histórias sufis,
ele também englobe outras dimensões, que vão ficando claras à medida em que a consciência
torna-se apta a lidar com elas.

CONSELHO ROUBADO
Certa vez um homem solicitou a um sufi que o tomasse como seu discípulo, mas foi rejeitado por
não estar ainda pronto para este caminho. Ele então decidiu que aprenderia o que pudesse por métodos
diretos. Que poderia haver de errado em adotar as práticas sufis?
Ao descobrir que um novo discípulo estava sendo admitido naquela noite, ele subiu ao telhado da
sala de reuniões do sufi e escutou as primeiras instruções dadas pelo professor.
“Não caminhe pelo lado esquerdo da rua, não evite uma pessoa próspera, não passe a frente de
ninguém.”
Isto pareceu bastante simples ao ouvinte oculto, que naturalmente começou a aplicar esses
ensinamentos à sua própria vida.
Mas, enquanto caminhava de volta para casa ao longo do lado direito da rua, um vaso de plantas
caiu sobre ele de um balcão, ferindo-o. Tendo feito amizade com um próspero mercador, tudo o que
conseguiu foi ser enganado por esse homem. Finalmente, ao tentar conseguir um emprego para poder se
alimentar ( pois havia perdido todo o seu dinheiro), descobriu que sempre havia outros candidatos na sua
frente, e sem empurrá-los foi incapaz sequer de arranjar uma entrevista.

Bem, continua o conto, será que ele percebeu que as instruções foram escritas,
prescritas APENAS para o homem com o qual o sufi estava falando? Certamente que não! Ele
concluiu que o sufi era uma fraude, quem sabe até um agente do diabo. E, é claro, foi porque
ele ainda não estava pronto para seguir instruções precisas e calculadas que o sufi rejeitou sua
candidatura.
As estruturas dessas histórias, além de revelarem aspectos corriqueiros da prática
humana, possuem duas outras funções principais. A primeira é fornecer indicações a respeito
das barreiras ao aprendizado. A segunda é colocar à disposição do estudante certos meios para
que ele possa, num certo grau, administrar seu processo de auto-correção através de
feedbacks.
Os sufis não se organizam em “ordens” monásticas, ou de qualquer outro tipo. Por isso
fazem uso desses contos em vez de lançarem mão de expedientes doutrinários ou punitivos,
com o objetivo de disciplinarem as relações sociais. A razão para tal é que os sufis consideram
que um treinamento desse tipo pode acabar se transformando numa camisa de força, e tende a
produzir automatismo e um comportamento reativo e condicionado. Dessa forma, a capacidade
de escolha baseada no pensamento e na ação é eliminada, pois ela só é possível quando as
alternativas são conhecidas e o condicionamento não impõe uma assim chamada “escolha” -
previamente determinada. As “ordens” sufis conhecidas historicamente são elaborações
posteriores das estruturas externas das escolas.
(Embora muitas dessas assim chamadas “ordens” levem o nome de seus supostos
fundadores, elas constituem desenvolvimentos posteriores. Até mesmo a pesquisa histórica, de
um modo geral, está de acordo com os autênticos professores sufis contemporâneos, no que
diz respeito à inexistência de provas ou razões para que os grandes mestres do passado
tenham realmente organizado estas instituições tão restritivas. Na verdade, se eles o tivessem
feito, seria um contra-senso em relação à grande parte de seus ensinamentos.)
Como qualquer outro instrumento, os contos sufis podem ser mal utilizados, e isto
acontece com frequência. Quando tanto o pretenso professor (que tenta aplicar as histórias que
tira dos livros, sem ser ele mesmo um produto delas) quanto o pseudo-estudante não estão
operando dentro de uma estrutura genuinamente sufi, nada de útil acontece. A não ser que
vocês considerem a propaganda e o estímulo emocional algo útil: e isto vocês podem conseguir
em qualquer lugar.
O texto a seguir indica um aspecto da situação então criada:

OS SINTOMAS
Alguém perguntou a um homem sábio: “Ouvi dizer que a humanidade sofre de uma enfermidade
que impede homens e mulheres de verem a verdade, de conhecerem a si mesmos. Qual é o sintoma
principal?”
Ele respondeu: “O primeiro sintoma é a pessoa acreditar que de forma alguma está sofrendo
desta doença. No entanto, quando ela começa realmente a apoderar-se do paciente, ele pode até
concordar com o fato de que está doente, mas insiste em que a doença é qualquer outra, menos a que
na verdade é.”

Esta percepção desordenada frequentemente enconta-se presente nas tentativas


heróicas, embora inadequadas, de obter-se conhecimento esotérico, que no mundo de hoje é
sinônimo de conhecimento “instantâneo”.
O ensinamento sufi ocorre no interior de um sistema que frequentemente funciona de
um modo indireto. Por vêzes é imperceptível no momento mesmo em que está atuando,
embora nem sempre em seus aspectos externos. Jalaludin Rumi, um mestre do séc. XIII,
refere-se à essa qualidade de operar de modo indireto que as histórias possuem quando as
observamos em ação - e o faz através de um conto preciso, um conto que exemplica como um
conto pode trabalhar:
A HISTÓRIA DO MERCADOR E O LOURO
Era uma vez um mercador que mantinha um papagaio preso em uma gaiola. Quando estava para
ir à Índia, em uma viagem de negócios, ele disse ao pássaro:
- Estou indo à sua terra natal. Você quer que eu leve alguma mensagem para os seus parentes
que vivem nas florestas de lá?
- Simplesmente diga a eles que estou vivendo aqui em uma gaiola - repondeu o pássaro.
Quando o mercador retornou, falou ao papagaio:
- Eu sinto dizer que tão logo encontrei seus parentes lá na floresta, e os informei que você estava
engaiolado, o choque foi forte demais para um deles. Logo que ouviu a notícia ele caiu do galho onde
estava, não tenho dúvidas de que morto de tristeza.
Imediatamente, assim que o mercador terminou de falar, o papagaio teve um colapso e caiu
inerte no chão de sua gaiola.
Penalizado, o mercador tirou o pássaro da gaiola, e colocou-o do lado de fora, no jardim. Nesse
momento o papagaio, que havia captado a mensagem, levantou-se e voou para fora do alcance do
mercador.
Não devemos pensar nem que isso exaure o simbolismo desta história, nem que ela
atraia a todo mundo. O próprio Rumi disse certa vez que o ouro falso só pode ser encontrado
porque existe o ouro verdadeiro para ser copiado. E há uma história verídica, algo que
aconteceu na Inglaterra não faz muito tempo, que comprova nossa experiência de que muitas
de nossas histórias (e especialmente os eventos que nelas têm lugar) são aparentemente tão
triviais que muitas pessoas as rejeitam por completo.
Um joalheiro de Birkenhead, Cheshire, na Inglaterra, procurava atrair fregueses para
sua loja. Ele distribuiu 3.000 pedras para as pessoas na rua. Todas pareciam diamantes
verdadeiros, mas apenas quatro dentre elas não era de vidro. Ele explicava, num panfleto
colocado no interior de cada embalagem, que havia diamantes verdadeiros entre as pedras
distribuídas gratuitamente. Qualquer um que recebesse uma pedra, de qualquer tipo, estava
convidado a visitar a joalheria para saber se havia sido premiado. Entre as três mil pessoas que
receberam as pedras, apenas uma - uma mulher - realmente foi até a loja. Ela estava certa:
seu diamante era genuíno. As pessoas restantes, presumivelmente, pensaram que todas as
pedras eram falsas. Os diamantes verdadeiros foram descartados com a mesma rapidez das
imitações.
Bem, se esse tipo de coisa acontece com algo tão concreto como pedras, e se as
pessoas emgeral agem de maneira tão negligente com relação às possibilidades, já que apenas
um único indivíduo em três mil teve esperanças de obter sucesso, vocês podem fazer uma
analogia instantânea com nossa própria experiência.
A analogia encerra um fator negativo: as pessoas podem nos taxar de impostores por
propagandearmos estúpidas histórias antigas, e negarem-se a procurar mais longe. Ela também
trazembutida, no entanto, uma vantagem: muita gente pensa que somosinofensivos mascates
de velhas histórias, o que nos permite continuar em nosso caminho...
Tanto o Corão no séc. VII, quanto os escritos de Rumi no séc. XIII (além de muitos
outros livros) foram combatidos pelos “donos da verdade” e pelos “sábios” exatamente por
estarem repletos de “velhas fábulas”, que certamente não seriam de nenhuma utilidade para as
pessoas. Assim, estamos em boa companhia.
Mas mesmo as fábulas, cujas mensagens se encontram num nível menos profundo que
o das histórias de ensinamento indiretas, podem ser usadas, e o são amplamente, com o
objetivo de familiarizar as crianças pequenas com as realidades futuras da vida, tanto no
Oriente Médio quanto na Ásia Central, berços de minha cultura original.
Mas vocês não têm que ser crianças para aceitar ou rejeitar as histórias enquanto
veículos que agem a nível psicológico ou de conhecimento...
Certa vez, quandoalguém me perguntou na RádioBBC porque eu usava contos de outras
pessoas e nunca apresentava um dos meus, respondi que nunca ninguém havia me pedido
para fazê-lo. Então o entrevistados, é claro, pediu-me que contasse uma história inédita, o que
fiz. Um amigo meu estava ouvindo a rádio em seu escritório e perguntou à sua secretária o que
ela achara. Ela respondeu: “Não me espanta que ninguém nunca tenha lhe pedido para contar
suas histórias - elas são terríveis...” Mas a razão principal para adotar contos tradicionais, claro,
é que você não tenta fabricar seu próprio instrumento quando já possui uma coleção deles já
prontos, soberbamente construídos e totalmente eficazes, manufaturados por mestres-
artesãos.
Do ponto de vista da compreensão Sufi do pensamento himano, claro, seria muito difícil
esperar que a secretária se desmanchasse em elogios à história enquanto tivesse tantas outras
prioridades em sua cabeça. Por exemplo, nunca é fácil conseguir editores para coleções de
contos sufi quando eles primeiramente lêem o manuscrito, e o julgam de “qualidade irregular”.
Julgar os contos pelo seu vigor, humor, interesse ou porque eles lhe dizem alguma coisa num
determinado momento significa não usar as histórias de acordo com o projeto original. Um
instrumento é útil ou não dependendo de se as circunstâncias nas quais é usado são corretas.
O CAMELEIRO E O PLÁSTICO
Há uma história real a esse respeito. Certa vez mostrei um pedaço de plástico
transparente a um cameleiro. Ele olhou e disse: “Interessante, mas não há futuro nisso”.
Perguntei-lhe por quê. “Bem,” ele disse, “não é suficientemente transparente para que se possa
ver através dele com clareza, provavelmente custa muito caro, não serve para vestir e não
vedaria a claridade se eu o usasse para fazer uma janela na tenda...”
Uma das grandes vantagens que vejo nas histórias e narrativas de encontros sufis - mas
que muitos acham aborrecido - é que elas ajudam a mente a reconhecer como verdadeiro o
fato de cada coisa tem seu tempo apropriado e correto. Ora, isso faz parte de nossa
experiência diária (você não pode apanhar um trem se ele não estiver ali, p. ex., à parte todos
os outro pré-requisitos necessários). Mas as pessoas tendem a imaginar que este tipo de
argumento sempre é levantado como intuito de impedir que alguém faça algo, ou para evitar
que tenha que fazê-lo. De acordo com a experiência sufi, as pessoas que conseguem se manter
suficientemente calmas para perceber que deve haver um tempo e um lugar - e outros
requisitos - para qualquer coisa, são mais e não menos capazes de se beneficiarem dela. Aqui
está uma história que quase sempre é usada para indicar que certas coisas são impossíveis,
mas cujo significado não é necessariamente esse:
PEIXE FORA D’ÁGUA
Um candidato a discípulo pediu que um mestre sufi lhe ensinasse exercícios. O Sufi, porém
respondeu: “Em vez disso lhe contarei uma história e você não precisará de exercícios”. Ele continuou:
“Certa vez existiu um homem que concordou em treinar um peixe que lhe pedira para ajudá-lo a viver
fora d’água. O peixe estava desesperado para levar uma vida sobre a terra. Aos poucos, primeiro alguns
segundos, depois alguns minutos, e finalmente horas ele foi conseguindo acostumá-lo ao ar aberto. De
fato, o peixinho passou a viver perto dele, no seu próprio cantinho úmido, mas ao ar livre, junto a um
canteiro de flores no jardim do homem. O peixe estava maravilhado com sua nova vida e costumava
dizer: “Isto é o que eu chamo de uma vida de verdade!” Então um dia caiu um aguaceiro pesado,
inundando todo o jardim - e o peixe afogou-se”.
Essa história provoca risos, e pode soar irônica. Mas ela se refere apenas a peixe, e é
somente uma história. “Peixe” não tem que ser uma condiçÃo inalterável da pessoa a quem ela
está sendo contada... A utilidade da história-ensinamento é ilimitada sob condições corretas,
embora seja severamente limitada sob duas circunstâncias: a primeira delas, claro, é quando as
pessoas as encaram como triviais, úteis apenas com entreterimento ou para a inculcação de
uma moral, ou assim por diante, como nas versões correntes das fábulas de Esopo. Mesmo se
elas são vistas como reveledoras de aspectos engraçados da natureza humana, esse uso, essa
opinião a respeito delas, neutraliza seu impacto. Dessa forma nós nunca podemos estar
seguros quanto à oportunidade de contá-las, sem que antes um certo contexto acerca de sua
tradicional importância tenha sido passado, o que permitirá a nossos ouvintes readquirir
flexibilidade mental para acessá-las. A outra circunstância limitante é quando as pessoas, por
alguma razão, estão tão estupidificadas por uma atitude de temor religioso e pelo desejo de
segredos assombrosos que elas, efetivamente, consomem esta experiência, a experiência do
assombro, e ficam “ligadas”, assombradas e estupidificadas com a história.
Essas duas atitudes são geralmente percebidas como vinculadas ao desejo do indivíduo
de definir com exatidão que tipo de fenômeno é a história , antes de consentir que se lhe
explique tratar-se de um instrumento sutil e muito sofisticado. Tais atitudes, além disso, podem
denunciar a motivação subjacente do indivíduo em questão como sendo uma sede tanto de
ordem quanto de excitação. Será isso um desejo de conhecimento ou de desenvolvimento
pessoal, podemos perguntar? Nós raramente achamos ser sábio desfazer esta “fixação de
escolha”, como poderíamos chamá-la, já que geralmente o resultado é alguém que doravante
não pode mais fixar-se numa expectativa errônea com relação às histórias: mas que continua a
desejar, digamos, explicações ou estímulos emocionais. A realização de um equilíbrio básico a
nível psicológico não é o trabalho principal do sufi, que além disso está sempre consciente do
significado do ditado: “Antes de matar o gato, resolva o problema dos ratos.”
HISTÓRIAS DE ENSINAMENTO II
Até muito pouco tempo atrás, como vocês podem constatar lendo livros sobre as
culturas humanas ou tendo algum conhecimento sobre os grupos atuais, inclusive os de
natureza religiosa ou psicológica, as instituições humanas mantiveram a tendência a ser o que
só pode ser chamado de limitantes (ou restritivas). Isto quer dizer que, embora desejem
ampliar a informação e desenvolver capacidades, deixam grandes áreas sem serem estudadas.
Há uma disposição em supor que certas atitudes não devem ser aceitas em seu sistema
particular, pois de outro modo estas atitudes poderiam ameaçar a estabilidade ou mesmo a
própria existência da sacrossanta instituição. Se você é advogado, tende a ter uma mente
legalista. Se decidir que certas coisas contribuem para o bem-estar social, você colocará
barreiras para trabalhar com algo que no momento parece-lhe militar contra esse bem. A
procura ignorante do “bem-estar social” tende a ser limitadora. O resultado desse modo
estreito de pensar é fazer a pessoa nele envolvida tornar-se menos efetiva, mais mecânica,
mais inclinada a buscar sistemas.
No Ocidente, apesar de sua tradição de investigadores inquietos, encontramos tanto
folclore conectado à crença de que tudo é de fato investigado que é difícil explicar que existem
coisas sobre as quais os ocidentais não pensam. Quando tentamos ir mais fundo nos fatos,
freqüentemente vemos que pessoas treinadas por todos os tipos de dogmas ocidentais tentam
relacionar o que está sendo formulado em termos de dogmas já estabelecidos em suas mentes.
Até mesmo em psicologia fatos devem ser apresentados segundo estruturas freudianas,
jungianas ou behavioristas. O desejo de encontrar um sistema, a ssim como o entendem os
dogmáticos, é acompanhado, ou talvez sirva de base, a um poderoso desejo de estabelecer,
através da associação ou da interpretação, similitudes com o que eles já pensam. Esta
compulsão está parcialmente enraizada, tenho certeza, num desejo básico por ordem. É
também um sintoma de que a sociedade ocidental ainda não se libertou completamente da
sufocante atitude medieval, na qual tudo deveria conformar-se com uma visão tradicionalista e
uniforme. Esta atitude acompanhou as duas últimas fases do pensamento humano, onde os
sistemas neo-medievais da Era da Razão e da Era da Tecnologia são tão infrutíferos e
limitantes quanto o sistema religioso-escolástico que eles pretenderam substituir.
Justamente aqui se encontra a distinção nítida entre a atitude sufi e essa busca
compulsiva de modelos.

BUSCA DE MODELOS
No enfoque buscador de modelos as pessoas vão olhar para o seu material procurando
ver quais dos seus sistemas pré-concebidos adequam-se a ele. Como consequência, nos livros
britânicos da era vitoriana, os sufis são às vezes representados como próximos do gentleman
inglês, às vezes como selvagem ignorantes. Trabalhos realizados na Era da Razão enfatizam os
sufis como seres dotados de racionalidade. Naturalmente as pessoas da Era Tecnológica ficam
enormemente encantadas ao acharem os sufis tão “modernos”. Hoje em dia essa é uma das
observações mais freqüentes feita sobre os materiais sufis.
Agora, o efeito de tudo isso é que, em cada época, apenas uma ou duas possíveis
versões do que são os sufis é percebida, o que faz lembrar as pessoas que tateiam o elefante
no escuro. O resultado disso tudo, claro, é que serão necessários muitos séculos para que você
analise todas as possíveis interpretações do modo de ser sufi, levando em conta a sua
compreensão atual e o seu conhecimento localizado. Além disso quando, para a satisfação do
investigador, fica estabelecido que o sufismo é, digamos, uma forma de neoplatonismo, ou de
anti-clericalismo, ou de psicologia, ou de educação, ele exalará um grande suspiro de alívio. A
última palavra sobre o assunto foi dita - e o investigador poderá dormir novamente, tendo já
dado sua pequena contribuição para tornar o mundo mais confortável, ao colocar mais uma
peça de material inexplicável dentro de sua pasta, devidamente etiquetada.
A resposta das pessoas às quais isso é dito é que, a menos que se faça o melhor
possível para reinterpretar, digamos, o sufismo, usando as estruturas do conhecimento
contemporâneo, atualizando-o quando possível, tudo se tornará um caos e acabará sendo
permitido a qualquer um formular idéias tão vagas quanto desejar, e assim a ciência e a
civilização serão destruídas.
Há somente duas coisas erradas com esse argumento, e ambas acabam por destruí-lo.
A primeira é que os sufis, por um considerável tempo, têm estado entre aqueles
indivíduos mais capazes de mostrar eficiência de pensamento e ação em todas as coisas nas
quais os empreendedores convencionais gostam de pensar e das quais se orgulham. Isto
porque os sufis podem demonstrar que outro modo de pensar não destrói o modo mecânico,
que mantém seu próprio lugar como subordinado, não como soberano. O intelecto não é
soberano, o conhecimento sim.
O outro erro é afirmar que o enfoque sufi não conseguiu resolver a real dificuldade na
qual você se encontra - que realmente poderia ser a resposta ao problema que tão
freqüentemente é expresso nos seguintes termos: “Como podemos pensar numa coisa de duas
maneiras diferentes, ou em duas coisas ao mesmo tempo?” Os sufis têm essa pretensão, e não
gostam de abandoná-la, tão central ela é na totalidade da sua orientação. Afinal de contas, ela
funciona.
Dessa forma, na verdade, nós estamos oferecendo muito mais do que a maioria das
pessoas interessadas em nós gostaria de pedir. Os sufis não estão se oferecendo para
consertar o cavalo e a carroça de alguém quando sua empresa é ensinar locomoção...
Nessa discussão central, as histórias-ensinamento sufi ocupam um lugar vital.
Em vez de desperdiçar gerações olhando para os acontecimentos utilizando como
pontos de vista sucessivos dogmas, o enfoque sufi trata de observar os materiais (histórias,
nesse caso) sucessivamente, se você deseja, mas de todos os pontos de vista. É por isso, claro,
que séculos atrás os sufis já utilizavam o que hoje em dia as pessoas identificam, dando gritos
de alegria, como sendo atitudes “freudianas”, “jungianas” e similares. Eles descobriram (e
quem não faria usando tal enfoque?) as várias possíveis atitudes em relação ao comportamento
humano e pesquisaram-nas, sem ficarem hipnotizados pela crença de que essas posturas
deveriam ser corretas só porque eles as haviam descoberto, e nem tampouco fundaram escolas
de opiniões sobre elas.

A DIDÁTICA IMPEDE A COMPREENSÃO


Isto de deve ao fato de que os sufis muito cedo aprenderam que, longe de ser útil
adotar uma teoria após a outra em psicologia e educação, apenas depois de exaurir tão rápido
quanto possível os limites da investigação é que se poderia alcançar a verdade que está além.
Ao expulsar as teorias, você encontrará os fatos. Ao avançar para além da didática, você
alcançará compreensão.
Por essa razão nós podemos ver claramente o valor do exaustivo método de trabalho
com as histórias que irei esboçar a seguir.
A prática sufi é reunir certo número de contos e pedir a um grupo de pessoas que os
observe. Então as pessoas devem registrar os pontos que despertaram seu interesse nas
histórias. Em vez de se permitirem ficar magnetizadas por esses pontos, elas devem colocá-los
de lado e observar os pontos que não chamaram sua atenção, indagando a si mesmas por que
deixaram que estes lhes escapassem. Que tipo de censura ou de falta de entendimento estava
operando?
As pessoas primeiro fazem suas anotações separadamente, depois estudam-nas em
conjunto; assim cada um é capaz de compartilhar as reações dos demais. Dessa forma
constrói-se um mosaico, cada pessoa contribui para a compreensão dos outros. Então um
professor sufi vai além desses resultados e indica os pontos que ninguém percebeu, que dessa
forma são recolocados para o entendimento do grupo, o qual torna-se capaz de acrescentar ao
conhecimento individual e coletivo o material que não poderia ter sido gerado apenas por seus
próprios membros. Quando esse processo tiver terminado, pode-se esperar um dramático
desenvolvimento da capacidade de compreensão de todos os indivíduos envolvidos.
Isto é o que nós consideramos verdadeiro ensinamento e aprendizado. Primeiro você faz
o que pode. Depois aproveita o que outros estão fazendo, e vice-versa. Finalmente você obtém
o elemento adicional que faltava à sua bagagem de conhecimentos, providenciado por seu
professor.
Você pode se interessar em contrastar esse método com, digamos, a didática teológica.
Outro dia mesmo eu estava visitando um prédio religioso onde o clérigo havia de tal maneira
perdido o fio do ensinamento em qualquer forma - ao menos para mim - identificável, que
estava discursando para cerca de vinte senhoras idosas sobre a necessidade delas afastarem a
pornografia de suas vidas. Ele estava, lógico, falando para si mesmo. Mas quais eram as
qualificações, a sensibilidade desse professor nesse momento?
Nas páginas precedentes nós apontamos não menos de oito pontos, sublinhando a
necessidade de uma preparação, a necessária ausência de certas posturas antes que a
compreensão das histórias-ensinamento possa propriamente ocorrer, as quase sempre muito
triviais barreiras impedindo que você utilize esse grande tesouro do conhecimento. Esses oito
pontos freqüentemente se sobrepõem, e alguns fazem parte de outros. As coleções de contos
publicadas constituem em si mesmas molduras do ensinamento que permitem negociar com
algumas dessas barreiras, mas o propósito e a existência do mandato e do papel do instrutor é
central em todo o empreendimento. Existem limites além dos quais a familiarização e o sistema
de feedback ordinariamente empregados no estudo não podem operar sem a assistência ativa
de um instrutor verdadeiro, não um assim auto-intitulado.
Os sufis não insistem na primazia da função do professor por assim o desejarem, mas
porque devem fazê-lo. Inclusive um dos objetivos dos sufis é tornar obsoleta a função do
professor. Mas primeiramente ele - ou ela - deve tornar disponível informação e métodos que
não são encontrados ainda, para propósitos práticos, entre as generalidades que as pessoas
querem aprender.
A iniciativa sufi, na qual as histórias representam uma parte essencial, visa operar em
áreas que têm sido negligenciadas. Essa é a contribuição sufi para um mundo melhor.
Idries Shah, in “A Perfumed Scorpion”
Tradução: Mônica C. Lepri

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