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Desidério Murcho
Universidade Federal de Ouro Preto
Uma breve reflexão, contudo, mostra a instabilidade teórica desta posição. Se não se
pode saber que Deus existe nem que não existe, como sabemos que não se pode saber?
Será a teoria do conhecimento de Kant mais plausível do que as posições de outros
filósofos, tanto antigos como contemporâneos, que defendem que Deus existe ou que
não existe? Poderá parecer-nos que sim, sobretudo se desconhecermos a bibliografia da
área; mas tal como o desconhecimento da lei não iliba o prevaricador, também o
desconhecimento da bibliografia não fundamenta aquele que a ignora.
Imagine-se alguém que, nomeadamente por ser um cientista, está habituado a distinguir
cuidadosamente as opiniões descuidadas que as pessoas têm sobre biologia, por
exemplo, de opiniões fundamentadas no conhecimento da bibliografia relevante. Essa
mesma pessoa pode considerar que, no que respeita à filosofia, as coisas são diferentes,
sendo desnecessário conhecer a bibliografia relevante. Só aceitaria a ilegitimidade de ter
opiniões descuidadas, que ignoram a bibliografia, sobre filosofia da religião,
epistemologia ou metafísica se nessa bibliografia se encontrasse o género de resultados
que se encontra na bibliografia científica.
Contudo, esta posição assenta numa confusão. Mesmo que em filosofia não tenhamos o
género de resultados que temos na ciência, temos outro tipo de resultados: alternativas
teóricas sofisticadas cuidadosamente pensadas, argumentos rigorosamente explorados,
distinções e análises clarificadoras. Se ignorarmos a bibliografia relevante, estaremos a
fazer filosofia outra vez como os primeiros filósofos faziam, repetindo-lhes os passos —
o que é desavisado porque podemos fazer melhor do que eles fizeram se partirmos das
suas investigações.
Não se deve confundir progresso com resultados. O progresso cognitivo numa área não
depende exclusivamente do género de resultados que há nas ciências. Podemos saber
muito, e muito sofisticadamente, sobre um problema, sem saber resolvê-lo, caso em que
temos progresso sem resultados. Recusar ler a bibliografia filosófica relevante por esta
não apresentar resultados é recusar o progresso filosófico entretanto alcançado.
Ironicamente, se todos os cientistas se tivessem recusado a estudar a bibliografia da sua
área antes de esta apresentar resultados, nenhuns resultados teriam sido alcançados.
Epistemologia
Conhecimento, crença e fé são conceitos distintos. Definir rigorosamente o
conhecimento é um dos problemas em aberto da epistemologia, mas algumas distinções
cruciais podem ser dadas como razoavelmente seguras.
Quando se fala de crença em filosofia não se tem em mente apenas a crença religiosa,
caso em que esta última expressão seria um pleonasmo. Por crença entende-se em
filosofia qualquer representação, susceptível de ser verdadeira ou falsa, que um agente
cognitivo faz de seja o que for. As crenças podem ser muito sofisticadas ou muitíssimo
elementares: temos crenças sobre a natureza dos átomos, mas também sobre a
localização dos nossos joelhos. As opiniões são crenças razoavelmente sofisticadas e
articuladas; crianças de seis anos, por exemplo, podem ter crenças fortes sobre o que
gostam ou não de comer, mas não têm opiniões, políticas ou outras. O termo crença é
usado em filosofia no sentido em que muitos filósofos gregos usavam o termo δοξα
(doxa). Já o termo fé é usado em filosofia no sentido do termo grego πιστις (pistis) e do
termo latino fides.
Podemos distinguir três tipos de conhecimento ou saber (as duas palavras são usadas
como aproximadamente sinónimas):
O conhecimento por contacto é o que temos quando sabemos algo directamente, ainda
que não tenhamos conhecimento de verdades claramente articuladas sobre isso:
conhecemos Londres por contacto quando visitámos Londres, mas só temos
conhecimento por descrição de Londres (conhecimento proposicional ou de verdades)
se nunca visitámos a cidade, mas sabemos várias coisas sobre Londres. Também temos
conhecimento por contacto de nós mesmos, apesar de muitas vezes ser bastante difícil
articular o que sabemos realmente de nós mesmos: “Quando olho para mim, não me
percebo”, escreveu Álvaro de Campos.
Finalmente, o saber-fazer é o que sabemos quando sabemos fazer algo, como andar de
bicicleta, raciocinar cogentemente ou pintar um quadro. O saber-fazer ou conhecimento
como habilidade ou competência não parece reduzir-se ao conhecimento proposicional
ou de verdades e parece marcadamente distinto deste: podemos saber muitas coisas
sobre bicicletas e não saber andar de bicicleta, e podemos saber andar de bicicleta
sabendo quase nada sobre bicicletas (também é argumentável que se pode saber muitas
coisas sobre filosofia sem saber fazer filosofia).
Por exemplo, o verbo ver é factivo porque se o Asdrúbal vê que está a chover, então
está a chover. Claro que o Asdrúbal pode acreditar erradamente que está a ver chover
quando na realidade está a sonhar ou a ter uma alucinação ou a confundir a água de rega
com chuva — mas em nenhum desses casos está realmente a ver que está a chover. O
mesmo acontece com o conhecimento: Asdrúbal só pode saber que há vida em Marte se
houver vida em Marte; se não houver vida em Marte, pode acreditar muito firmemente
que há vida em Marte, mas não pode saber tal coisa.
Por proposição entende-se geralmente o que é expresso por uma frase verdadeira ou
falsa. A frase “Está calor” exprime a proposição de que está calor em Ouro Preto no dia
1 de Março de 2009, mas exprime outra proposição se for proferida noutro dia ou
noutro local. Portanto, a mesma frase pode exprimir diferentes proposições. E diferentes
frases podem exprimir a mesma proposição: “A neve é branca” e “Snow is white”
exprimem ambas a proposição de que a neve é branca.
Que há pelo menos três tipos centrais de conhecimento (proposicional, por contacto e
saber-fazer), que o conhecimento é factivo e a crença não, e que o conhecimento e a
crença proposicionais são relações entre pessoas e proposições são aspectos elementares
dos conceitos de conhecimento e de crença. Contudo, é muito difícil saber precisamente
o que é o conhecimento, com o mesmo tipo de precisão com que sabemos o que é a
massa em física. O problema da definição de conhecimento é muitíssimo difícil,
precisamente por se tratar de um conceito muito básico. Apesar disso, é comum aceitar
que há três condições necessárias para o conhecimento proposicional, ainda que não
sejam suficientes: para que algo seja conhecimento proposicional é preciso que seja 1)
uma crença, 2) verdadeira 3) e justificada.
Para haver conhecimento não basta haver crença verdadeira, porque podemos ter
crenças verdadeiras por sorte — e certamente que isso não é conhecimento. Por
exemplo, imagine-se que tenho a crença de que são 16:55 horas porque olhei para o
relógio, e imagine-se que realmente são 16:55 horas. Acontece que, sem eu saber, o meu
relógio avariou-se e está parado — mas, por coincidência, olhei para ele quando era
16:55. Não parece razoável dizer que sei que são 16:55 horas, apesar de ter essa crença
e de isso ser verdade — não parece razoável, porque a minha justificação para essa
crença não é adequada. Não é adequada porque não é fidedigna: a mesmíssima
justificação exactamente produziria uma crença falsa, apenas meia hora antes ou depois,
e não uma crença verdadeira. Assim, apesar de ser razoável pensar que todo o
conhecimento é uma crença verdadeira justificada, parece razoável que nem toda a
crença verdadeira justificada é conhecimento.
Assim, seja qual for a nossa noção sofisticada de justificação, é defensável que tem de
permitir casos em que um agente tem justificação para acreditar em falsidades. Daí que
ter uma crença justificada seja defensavelmente uma condição necessária para saber
algo, mas não suficiente.
Uma perspectiva inicialmente plausível é defender que uma crença está justificada,
ainda que seja falsa, desde que quem tem essa crença tenha sido epistemicamente
virtuoso, ao invés de ser preconceituoso, tendencioso, preguiçoso ou pura e
simplesmente falho de raciocínio. Nesta perspectiva, a justificação adequada não é
primariamente uma propriedade das crenças, mas antes das atitudes epistémicas das
pessoas; só derivadamente a justificação adequada é uma propriedade das crenças. Esta
abordagem deu origem à chamada epistemologia das virtudes, que ao analisar o
problema central da justificação epistémica põe a ênfase no carácter epistemicamente
virtuoso ou não das pessoas, e não nas propriedades intrínsecas da justificação.
Uma análise da fé
O que é exactamente a fé? Mesmo que não possamos responder a esta pergunta
apresentando condições necessárias e suficientes, é iluminante ter pelo menos uma
caracterização razoavelmente precisa da fé. Sem essa compreensão, a análise da
epistemologia da fé poderá ser desadequada — exigindo-lhe, por exemplo, padrões
epistemológicos desadequados à sua natureza.
Se a concepção objectal de fé for verdadeira, ter fé em Deus é como ter outra crença
qualquer: esta crença estará justificada ou não do mesmo modo que qualquer outra
crença. Se houver razões para pensar que é irracional acreditar em algo sem provas, será
irracional ter fé em deuses sem provas.
Há dois argumentos centrais contra a concepção objectal de fé. Em primeiro lugar, não
parece fazer jus à experiência da fé que os crentes religiosos efectivamente têm, e que a
concepção fenomenológica destaca. A fé não parece ser para quem a tem uma crença
como qualquer outra, mesmo que a comparemos com crenças muitíssimo importantes e
valiosas, como a crença de que os nossos filhos nos amam. Além de mais intensa,
parece mais valiosa.
A segunda objecção é mais promissora: se a fé fosse como qualquer outra crença, teria
de ser possível uma pessoa ter fé na existência de uma divindade depois de saber que
essa divindade existe. Na verdade, depois de uma pessoa que uma divindade existe, teria
de lhe ser impossível não ter fé na sua existência, tal como é defensavelmente
impossível que não acreditemos que a neve é branca quando sabemos que a neve é
branca. Contudo, parece implausível defender sequer que é possível ter fé que uma
divindade existe depois de sabermos que existe, e mais implausível ainda defender que
saber que uma divindade existe implica ter fé nessa divindade. Isto porque a fé é o
género de atitude que se tem perante o que se desconhece: antes de uma intervenção
cirúrgica delicada, uma pessoa pode ter fé de que tudo irá correr bem, mas não pode ter
fé de que tudo correu bem depois de tudo ter corrido bem. No entanto, há efectivamente
um sentido em que se pode ter fé no que se conhece — no sentido de se ter confiança
nisso.
Assim, podemos rejeitar a objecção acima distinguindo dois sentidos de fé: a fé como
crença proposicional e a fé como confiança. Há um sentido no qual não só temos fé em
alguém ou algo mesmo sabendo que isso existe como só é racional ter fé nesse alguém
ou algo se acreditarmos que existe. Por exemplo, uma pessoa só pode ter fé no amor dos
seus filhos se acreditar que tem filhos. Fé, neste contexto, quer dizer confiança: ter fé
em alguém ou em algo é confiar nessa pessoa ou nesse algo. Nesta acepção, todos temos
fé diariamente em muitas coisas — na gravidade, por exemplo, no poder nutritivo do
que comemos e na medicina — porque todos confiamos nessas coisas. Mas é possível
ter fé no sentido da crença proposicional sem ter fé no sentido da confiança: uma pessoa
pode saber que o primeiro-ministro existe, mas não confiar nele. Na Bíblia afirma-se:
“Tu crês que há um só Deus? Fazes bem. Também o crêem os demónios, mas enchem-
se de terror” (Tiago, 2:19) — o que poderá significar que os demónios acreditam que
Deus existe, mas não confiam nele.
A componente da confiança é sem dúvida uma das mais importantes da fé. Mas a
perspectiva objectal sobre a natureza da fé não se lhe adequa muito bem — pois, nessa
perspectiva, só o objecto da fé a distingue de outras crenças, e não as atitudes do agente.
Ora, a confiança é precisamente uma atitude particular que podemos ter perante
objectos diferentes. E ainda que objectos diferentes possam alterar a fenomenologia da
confiança, é argumentável que há algo de comum a todas ou, pelo menos, à maioria das
atitudes de confiança; seria esse aspecto fenomenológico da confiança que a
caracterizaria, e não o objecto da confiança. Em conclusão, tentar defender a
perspectiva objectal da fé socorrendo-se de uma acepção de fé que a aproxima da
confiança tem um efeito contrário ao pretendido, pois conduz-nos à perspectiva
fenomenológica da natureza da fé.
Acresce que apesar de a confiança ser uma componente importante da fé, não é nem
poderia ser a única. Parece impossível ou irracional ter confiança em algo e não
acreditar pelo menos na possibilidade de isso existir. Podemos, evidentemente, ter
confiança em algo que não sabemos se existe, mas gostaríamos que existisse — pois
nesse caso a nossa confiança é condicional. Por exemplo, um náufrago pode não saber
se o desaparecimento do seu veleiro foi registado, mas ter a esperança que o tenha sido
e confiar que, nesse caso, os serviços de emergência náutica acabarão por salvá-lo. Mas
é impossível ou irracional o náufrago confiar que os serviços de emergência náutica
acabarão por salvá-lo se souber que o desaparecimento do seu veleiro não foi registado.
Ou seja, a confiança parece envolver uma componente proposicional, pelo menos
quando não estamos em contacto com o objecto da confiança e quando não se trata de
um saber-fazer. Logo, ainda que a confiança seja uma componente importante da fé, é
defensável que tem de haver nesta uma componente proposicional: quem tem fé numa
dada divindade tem de acreditar que essa divindade existe ou, pelo menos, desejar que
exista ou ter esperança que exista, e em qualquer destes casos estamos perante atitudes
proposicionais. Esta é a designação que se dá a qualquer atitude que tenha por objecto
uma proposição: recear que esteja a chover, ter medo de perder o comboio ou ter a
esperança de chegar a horas são atitudes que têm como objecto, respectivamente, as
proposições expressas pelas frases “Está a chover”, “Vou perder o comboio” e
“Chegarei a horas”.
A concepção fenomenológica de fé
Passemos então à análise da concepção fenomenológica de fé. Deste ponto de vista, a fé
não é como qualquer outra crença, diferindo apenas quanto ao objecto; ao invés, além
da diferença de objecto, envolve aspectos que as outras crenças não envolvem. Um
desses aspectos é a força da convicção: a fé exibe a força da convicção do
conhecimento, apesar de não ser conhecimento (ou, pelo menos, não é como os outros
conhecimentos comuns, como o conhecimento de que a água é H2O, por exemplo;
exploraremos já de seguida a ideia de que a fé é um tipo especial de conhecimento). E
por não ser conhecimento, a fé é, nesse aspecto, como a mera crença. Portanto, deste
ponto de vista, a fé é como o conhecimento num aspecto e como a mera crença noutro.
Assim, a fé não é apenas uma crença que tem por objecto um certo tipo de entidades: é
uma crença que tem características próprias, que a distinguem de muitas outras crenças,
ou mesmo de todas.
Este argumento, contudo, não é convincente, pois ignora uma diferença entre haver
justificação e o agente do conhecimento ou da crença em causa conseguir articular essa
justificação. Por exemplo, uma criança forma a crença de que está uma maçã em cima
da mesa ao vê-la lá; a justificação da sua crença é muitíssimo mais sofisticada do que o
mero “Vi-a lá” que ela é capaz de articular, pois envolve coisas como condições
normais de luz e o funcionamento correcto do seu aparato visual e cognitivo. Parece
excessivo exigir que um agente tenha de conseguir articular uma justificação adequada
das suas crenças para estas poderem constituir conhecimento proposicional, dado que,
na sua maior parte, as pessoas têm grande dificuldade em fazer tal coisa. (Contudo,
podemos insistir que as pessoas quase nada sabem, na sua maior parte, vivendo apenas
com base em meras crenças.) Uma alternativa é então aceitar que um agente tem
conhecimento proposicional desde que tenha uma crença verdadeira que se pode
justificar adequadamente, ainda que ele mesmo não o saiba fazer ou não o tenha
efectivamente feito. Chama-se externismo a esta posição sobre a justificação, e
internismo à posição oposta.
Aplicando esta distinção à fé, poder-se-ia então insistir que as pessoas só podem ter
realmente fé numa divindade caso seja possível justificar tal crença, ainda que elas
mesmas sejam incapazes de o fazer. Ter fé numa divindade seria, assim, análogo a
muitas outras crenças que somos incapazes de justificar adequadamente, mas que
pensamos que outros seres humanos sabem justificar adequadamente. Por exemplo, na
sua maior parte, as pessoas são incapazes de justificar adequadamente a crença na
cosmologia do Big Bang, pois não têm os conhecimentos nem os recursos necessários
para justificar esta teoria: limitam-se, por isso, a transferir para os especialistas
relevantes a tarefa da justificação.
Esta perspectiva implica que caso não exista justificação adequada para crer numa
divindade, ninguém teve jamais fé nessa divindade, apesar de ter pensado que a tinha.
Note-se que isto é compatível com a diversidade de religiões e de divindades; pois
apesar de as diversas divindades que são objecto de fé em diferentes religiões serem
incompossíveis (ou seja, não são conjuntamente possíveis: não podem existir todas
simultaneamente), é perfeitamente possível que existam justificações adequadas para as
crenças religiosas nessas divindades. Recorde-se que podemos defender que a
justificação não é factiva, o que significa que diferentes pessoas em diferentes contextos
epistémicos podem ter justificação adequada para crer em divindades diferentes e
incompossíveis.
Contudo, a perspectiva que estamos a explorar não defende apenas que só há fé quando
há justificação: defende também que a fé é factiva, pois defende que a fé é
conhecimento, ou um tipo de conhecimento. E é isto que torna esta concepção
implausível, pois significaria que caso a única divindade que realmente existe seja
Diana, por mais genuína que fosse a fé dos antigos egípcios no deus Rá, por exemplo,
ou dos actuais cristãos em Deus, nenhuma dessas pessoas tinha realmente fé — apenas
acreditava erradamente que a tinha. Isto parece excessivo: quem tem fé numa divindade
que, sem ela o saber, não existe, não parece ter uma fé menos genuína do que quem tem
fé numa divindade que realmente existe. Assim, a fé, ao contrário do conhecimento, não
parece factiva.
Uma saída para esta dificuldade seria sustentar que a fé é um tipo diferente de
conhecimento, que não envolve factividade. Mas isto seria presumivelmente um mero
jogo de palavras, dado que conhecimento infactivo não é conhecimento, em qualquer
acepção relevante do termo: é mera crença (que pode até estar justificada).
Dado que tanto o conhecimento proposicional como o conhecimento por contacto são
factivos, o mesmo argumento se aplica para refutar a ideia de que a fé poderia ser
conhecimento por contacto: aceitar que a fé é conhecimento por contacto implica a tese
implausível de que a maior parte da humanidade ao longo da maior parte da história não
teve realmente fé, apesar de pensar que a tinha.
Este aspecto do conhecimento por contacto envolve o que se chama qualia: a qualidade
interna da experiência. É este aspecto do conhecimento por contacto que está em causa
nos famosos artigos “Como é Ser um Morcego?”, de Thomas Nagel, e “O que Mary
Não Sabia”, de Frank Jackson.
No primeiro caso, Nagel faz notar que temos muito conhecimento proposicional sobre a
ecolocalização usada pelos morcegos, e usamo-la também em navios, recorrendo a
radares: um sinal sonoro é enviado e o tempo decorrido entre o seu envio e o eco
devolvido permite determinar a distância e parcialmente a forma do que se encontra na
direcção relevante. Contudo, argumenta Nagel, num certo sentido não podemos saber
como é percepcionar objectos dessa maneira, não sabemos como é a experiência interna
da ecolocalização: não sabemos como é ser um morcego.
Não é, pois, plausível que a fé seja conhecimento proposicional nem por contacto.
Contudo, é inegável que há algo na fenomenologia da fé irredutível às crenças
proposicionais, pelo simples facto de que toda a atitude proposicional tem uma
fenomenologia própria, irredutível às crenças proposicionais. Por exemplo, ter medo de
dragões tem uma fenomenologia própria, diferente de ter a esperança de haver dragões,
que não depende do objecto, mas sim da própria atitude. Assim, ter fé terá sem dúvida
uma fenomenologia distinta, mas não implica de modo algum que tenha de existir a
divindade que é objecto da fé. A impressão subjectiva do conhecimento por contacto,
testemunhal e subjectivo que se associa à fé pode ser independente da existência da
divindade que é objecto da fé em causa: pode ser uma peculiaridade da atitude. A
peculiaridade da fé, uma vez mais, é não ser fenomenologicamente como uma mera
crença, como as muitas crenças que temos e a que não damos muita importância: a fé é
uma crença considerada e sentida como muitíssimo importante pelos crentes.
Uma objecção imaginativa a esta última ideia insiste que, apesar de historicamente a fé
ter sido considerada e sentida como muitíssimo importante pelos crentes, poderia não o
ser. Podemos imaginar pessoas que têm fé numa divindade menor, digamos, com
poucos poderes ou com poderes limitados, e que intervém apenas em trivialidades do
quotidiano — como nunca deixar uma pessoa esquecer-se de fechar a tampa da sanita,
por exemplo. Estas pessoas teriam uma fé banal, digamos, neste tipo de divindade
menor, precisamente por ser uma divindade menor.
Esta objecção insiste na conexão entre o objeto da fé e a atitude do crente: a ideia é que
a atitude de extrema importância associada à fé resulta da natureza da divindade que é
objecto da fé.
A resposta a esta objecção é a seguinte: do mesmo modo que ter medo de escorregar
quando neva é diferente de ter medo quando um leão corre na nossa direcção, porque os
objectos do medo são diferentes, persistindo todavia algo em comum (caso contrário
não seria medo), também a fé será inevitavelmente influenciada pela natureza do
objecto da fé. Quem tiver fé numa divindade menor, terá presumivelmente uma fé
diferente de quem tiver fé numa divindade omnipotente, mas algo em comum terá de
haver em ambos os casos para que sejam ambos fé. E apesar de ser evidentemente
possível imaginar cenários em que já duvidamos se estamos perante fé ou perante uma
mera crença banal e quotidiana, o objectivo da nossa investigação é a fé que de facto as
pessoas têm, e não a que conseguimos imaginar, mas que depois nem sabemos bem se é
ainda fé ou outra atitude. Ora, nas manifestações conhecidas de fé, esta não é uma
crença banal, como as outras crenças quotidianas; é uma crença a que o próprio crente
dá extrema importância.
Søren Kierkegaard (1813-1855) foi um dos filósofos que mais claramente sublinhou
este aspecto da fé, que a torna incompatível com o conhecimento — e, por isso, com as
provas, argumentos ou justificações. Este aspecto da fé parece corresponder à
desvalorização, por parte de alguns crentes, dos intrincados argumentos filosóficos a
favor e contra a existência de Deus. Talvez isso ocorra por considerarem, como
Kierkegaard, que a fé é precisamente o género de confiança ou convicção profunda que
se tem numa divindade quando não temos provas da sua existência:
“Em nome de quem se procura a prova? A fé não precisa dela. Sim, tem de encará-la
como inimiga. Mas quando a fé começa a ter vergonha, como uma rapariga para quem o
amor deixa de ser suficiente, que secretamente tem vergonha do seu namorado e tem
por isso de confirmar junto de outros que ele é realmente notável, quando a fé vacila e
começa a perder a sua paixão, então a prova torna-se necessária para parecer respeitável
da perspectiva do descrente.
[…] Sem risco não há fé. A fé é precisamente a contradição entre a paixão infinita da
interioridade e a incerteza objectiva. Se posso compreender Deus objectivamente, não
acredito; mas porque não posso conhecer Deus objectivamente, tenho de ter fé; e se for
firme na fé, tenho de estar constantemente determinado a agarrar-me à incerteza
objectiva, para permanecer sobre as profundezas do oceano, sobre setenta mil braças de
água, e continuar a acreditar.”
Será realmente defensável o risco epistémico de crer no que não temos provas que
existe? William James argumenta que sim.
Aposta momentosa
James sublinha que em alguns casos as nossas crenças são motivadoras: um desportista
ganha em acreditar que consegue obter um resultado; um estudante ganha em acreditar
que conseguirá bons resultados num exame difícil. Nestes casos, precisamos de
acreditar sem provas, de maneira a ter motivação para tentar: não faria sentido treinar ou
estudar se não confiássemos na possibilidade de obter os resultados desejados, ainda
que não tenhamos realmente provas de que os conseguiremos obter. Será a fé análoga a
este género de casos? Tratar-se-ia nesse caso de ter confiança em algo que não sabemos
bem se ocorrerá ou se existe. A fé ficaria assim mais próxima da esperança.
Sem dúvida que este tipo de crenças motivadoras e sem grandes provas existem, e são
constitutivas da nossa vida. É difícil imaginar como seria a nossa vida sem elas. Mas
não é claro que este facto acerca da nossa vida cognitiva tenha relevância para a
legitimidade da fé sem provas, ao contrário do que James parecia pensar. Vejamos dois
argumentos contra a posição de James.
Em primeiro lugar, as crenças motivadoras só são racionais porque têm efeitos causais:
se um estudante acreditar que com o seu esforço irá conseguir obter um certo resultado,
isso tem o efeito causal de lhe dar mais ânimo, o que contribui para obter o resultado
desejado. Mas no caso da crença religiosa não há qualquer nexo causal, nem pode
haver, entre a força da convicção e a existência ou inexistência de divindades: estas não
existem ou deixam de existir consoante as pessoas estão mais ou menos fortemente
convictas da sua existência.
Blaise Pascal (1623-1662), contudo, ficou famoso por defender que, bem vistas as
coisas, temos tudo a ganhar e nada a perder em apostar na existência de Deus. Chama-se
aposta de Pascal ao seu argumento, que pertence à mesma família da posição de James:
trata-se de dizer que, na ausência de provas a favor ou contra a existência de Deus,
temos um argumento a favor da crença sem essas provas.
No caso da versão de Pascal, a ideia é fazer uma matriz para revelar as quatro
combinações possíveis que resultam de se acreditar ou não e de Deus existir ou não:
1. Caso não acreditemos e Deus não exista, nada de especial ganhamos. Apenas
não perdemos tempo, por exemplo, em rituais religiosos.
2. Caso não acreditemos e Deus exista, perdemos a possibilidade do paraíso, o que
é terrível.
3. Caso acreditemos e Deus não exista, nada de especial perdemos. Apenas
perdemos tempo, por exemplo, em rituais religiosos.
4. Caso acreditemos e Deus exista, ganhamos o paraíso, o que é maravilhoso.
Este género de argumento pode ser visto como desprezível por muitos crentes. Pois o
seu efeito é retirar à fé o elemento de risco epistémico que Kierkegaard considerava
importante: a fé torna-se o mero resultado do calculismo egoísta, e não uma atitude de
risco epistémico que nos dá confiança perante a “incerteza objectiva”.
O defensor da aposta de Pascal pode responder que não temos de ter uma concepção
primitiva de um Deus castigador: podemos entender a própria vida do crente, com a
graça da fé, como uma dádiva de imenso valor, e a vida do descrente como um deserto
espiritual que ninguém quererá viver. Assim, apostar em Deus faz sentido não porque a
divindade recompense a credulidade e castigue a racionalidade, mas antes porque a
própria vida sem fé em Deus é um martírio, ao passo que uma vida com fé em Deus é
graciosa e compensadora.
William James tem em mente algo como esta caracterização da vida de fé. Antes de
analisarmos brevemente as suas ideias, importa esclarecer as seguintes diferenças:
Confunde-se por vezes 2 com 3. 2 é mais fraco do que 3, no sentido em que 3 implica 2,
mas 2 não implica 3: quem acredita que Deus não existe, não acredita que Deus existe,
mas quem não acredita que Deus existe pode não acreditar que Deus não existe.
Suspender o juízo quanto à existência de Deus é rejeitar 1 e 3: é o que faz o agnóstico.
O crente, claro, aceita 1 e rejeita as outras; o ateu aceita 3, o que implica aceitar 2, e
rejeita 1. Estas relações lógicas dizem respeito a qualquer crença, e não especificamente
à crença de que Deus existe. A maior parte das pessoas, por exemplo, nem acredita que
existem extraterrestres nem que não existem extraterrestres; considera as duas hipóteses
interessantes e até momentosas, mas limita-se a suspender o juízo.
Uma opção é viva quando não é uma mera hipótese intelectual vaga, mas antes algo que
realmente nos importa: supostamente, para quem se debate com a questão de Deus, a
hipótese de acreditar ou não é para ela uma opção viva. Essa mesma pessoa pode não se
debater com a questão de acreditar ou não em Apolo, por exemplo. Uma opção é
forçosa quando não tomar partido é o mesmo que tomar partido. Suspender a crença
quanto à existência de Deus tem o mesmo efeito que não acreditar na existência de
Deus, pensa James. Finalmente, uma opção é momentosa quando é de extrema
importância, e não uma questão trivial.
A ideia de que uma vida virtuosa não é possível sem crer em divindades é uma
manifestação de provincianismo — ou de um mau íntimo: alguém que só não trapaceia,
mente, rouba e mata por ter medo de ser castigado na outra vida. Kant, que era religioso,
considerava que uma acção feita com vista à recompensa ou com medo do castigo não é
moralmente correcta, ainda que exteriormente o pareça. E não é preciso invocar Kant
para compreender que quem não mata o seu semelhante por medo do inferno e não por
respeitá-lo, não é o género de pessoa que queiramos ter por semelhante.
James poderia aceitar que é possível ter uma vida compensadora e virtuosa sem
qualquer crença religiosa, mas insistir que uma vida religiosa permite a qualquer pessoa,
por mais culturalmente carenciada que seja, o género de vida compensadora que um
artista ou cientista pode ter. A vida religiosa colocaria ao alcance de qualquer pessoa o
género de vida compensadora a que, de outro modo, só alguns poderiam almejar.
A ideia de que a religião permite às pessoas culturalmente mais carenciadas ter uma
vida mais compensadora do que de outro modo teriam é plausível. Tal como é plausível
que a religião pode oferecer conforto emocional a pessoas cujas vidas são desagradáveis
em quase todos os aspectos. Contudo, este género de argumentação não é
particularmente promissora, pois não só implicaria que a religião seria apenas um
paliativo para o infortúnio, como tornaria difícil explicar a fé de pessoas muitíssimo
cultas, como cientistas, filósofos, artistas ou outros intelectuais. A verdade é que tanto
se encontra pessoas descrentes e crentes entre os cultos como entre os incultos; e a
verdade é que a vida religiosa tanto oferece conforto emocional como opressão.
Podemos insistir na ideia original de James concedendo que é perfeitamente possível ter
uma vida humana digna e realizada sem crer em Deus; mas sublinhar que, mesmo
assim, acrescentar a crença religiosa a uma vida humana que já é digna e realizada sob
todos os outros aspectos é fazer algo de importância superlativa. Uma vida humana
digna em todos os outros aspectos, mas a que se acrescenta a crença religiosa, é uma
vida ainda mais digna e rica, adquirindo uma textura e dimensão que nenhuma vida de
agnóstico pode ter. Neste sentido, portanto, é forçosa a opção entre crer ou não em
Deus.
Concedendo que a opção é forçosa neste sentido, o problema é que agora o agnóstico ou
o ateu têm uma resposta demasiado fácil. Podem responder que só é forçosa a decisão
de ter ou não uma vida de crente religioso porque ou é verdade ou não é verdade que
Deus existe. O que torna forçosa a opção é que se Deus existir, vivemos na verdade se
formos crentes — e a verdade é de importância primordial para seres como nós. Uma
vida de crente não pode ser uma coisa boa por ser boa apenas internamente — isto é,
por fazer o crente sentir-se melhor. Isso torna de tal modo subjectiva a crença religiosa
que faz dela uma opção não momentosa mas mesquinha, ainda que seja forçosa: trata-se
de escolher o que me faz sentir bem, como quem escolhe os sapatos mais confortáveis, e
não o que é superlativamente real e importante. Para que a minha escolha seja
superlativamente importante não pode ser apenas uma escolha do que me faz sentir
bem. Tem de ser também uma escolha do que me conecta com uma realidade de
superlativa importância — recorde-se que o sentido do étimo da palavra religião é
religação. É mesquinho escolher uma vida religiosa pressupondo que a existência ou
inexistência dessa realidade de superlativa importância é irrelevante porque tudo o que
conta é que me sinta bem. Escolher ou não escolher uma vida religiosa só é de suprema
importância porque isso me abre ou não a uma realidade de suprema importância.
Assim, a ideia é que, precisamente por prezar a verdade, o ser humano não deve aderir
sem provas, sobretudo quando se trata de matérias de importância superlativa. É
verdade que muitas vezes temos de assumir riscos epistémicos, mas estes casos só são
razoáveis quando há uma relação causal entre a crença e o que dela resulta: cremos, sem
grandes provas, que somos capazes de fazer um curso universitário, e isso motiva-nos
de tal modo que contribui para o sucesso dos nossos estudos. No que respeita a Deus,
não há tal relação causal: crer em Deus não o faz existir magicamente. O único poder
causal dessa crença diz respeito à nossa vida, e não é óbvio que, sob a hipótese de Deus
não existir, uma vida de crente seja realmente melhor do que uma vida virtuosa e
realizada, aberta à possibilidade de existir Deus, mas que não a aceita sem provas.
James enfrenta outra dificuldade. Uma opção é forçosa quando não tomar partido é, na
prática, a mesma coisa que tomar partido. O problema é que não é fácil encontrar casos
neutros de opções forçosas. Um caso de uma opção forçosa é alguém dar-nos um prazo
de dois dias para decidir comprar ou não uma casa, por exemplo. Mas estamos indecisos
e deixamos passar o prazo. A indecisão, neste caso, é equivalente à decisão de não
comprar a casa. O problema deste tipo de exemplos é que só se aplica ao Deus
mesquinho referido. Pois seria como se Deus nos desse nesta vida a oportunidade de
optar sem provas pela crença, acabando-se o prazo quando morremos. Pelo contrário,
um Deus razoável consideraria sensato que não decidíssemos tão momentosa questão
sem provas fortes; e se só na outra vida tais provas surgissem, essa seria a altura para
crer na sua existência.
Este tipo de argumento põe em causa frontalmente a ideia central do fideísmo de que é
virtuoso crer sem provas. O fideísta poderia rejeitar o argumento por essa razão. Mas
isto seria confundir as coisas. O argumento conclui que não há virtude em crer sem
provas, pois é isso mesmo que estamos a discutir. Se o fideísta discorda desta
conclusão, tem de mostrar o que há de errado com o argumento apresentado, e não
apenas insistir que esta conclusão contraria a sua ideia de que é virtuoso crer sem
provas.
Acresce que a ideia de que crer sem provas é virtuoso poderá ser uma forma subtil de
impor a crença religiosa, um pouco como jogar um jogo viciado em que se sair caras
ganho eu, se sair coroas perdes tu. Pois se alguém declarar que algo existe, fica a dever-
nos evidentemente algumas provas, sobretudo se for algo momentoso e não uma
trivialidade. Se essa pessoa declarar que não tem provas, mas que é bom acreditar sem
provas nisso que ela diz que existe porque nessa circunstância coisas maravilhosas irão
acontecer-nos, está a trapacear-nos. O que lhe pedimos, muito razoavelmente, foram
provas. A sua resposta, muito insensatamente, foi uma ameaça. Perante a incerteza da
vida humana, sobretudo onde os níveis de bem-estar são muitíssimo baixos (por falta de
cuidados de saúde, protecção no emprego, recursos económicos adequados, etc.), este
género de resposta torna a aposta de Pascal muito vívida: nada se tem a perder e pode-se
ganhar muito em crer sem provas. Mas o preço a pagar, como vimos, é uma concepção
de uma divindade brutal. Concepção que é difícil crer que uma pessoa genuinamente
boa e epistemicamente virtuosa possa aceitar.
James argumenta, com alguma plausibilidade inicial, que a posição de Clifford nos
afasta da verdade, por estar demasiado preocupado com o erro. Compara Clifford a um
general que, por querer provas cabais da vitória antes de enviar as suas tropas, nunca
ganha qualquer batalha, porque nunca envia as suas tropas. A ideia é que por vezes é
preciso aceitar o risco epistémico. Clifford concorda com a ideia, mas rejeita que o risco
epistémico implique crença sem provas: apenas implica que, quando é necessário agir
sem certezas, devemos agir em função do que é mais provável.
O problema é que nada disto se aplica à crença em Deus. Esta crença não é urgente: não
temos de decidir, aqui e agora, crer ou não crer em Deus: podemos perfeitamente
continuar à procura. É o que fazemos com muitas outras crenças momentosas: queremos
saber o que poderá curar uma doença grave, por exemplo, e é extremamente difícil
decidir. Mas se pararmos de tentar decidir porque consideramos virtuoso o risco
epistémico de apostar numa das hipóteses sem provas, não estamos a contribuir para a
descoberta da verdade, mas antes a dificultá-la. Se o que realmente nos interessa é saber
se Deus existe ou não, e isso qualquer crente terá de aceitar, a menos que tenha uma
concepção de tal modo subjectiva da crença que torne irrelevante a existência de Deus,
não é uma boa ideia decidir de antemão e sem provas que existe. Se Deus realmente
existir, acertámos na verdade por sorte apenas, o que não constitui conhecimento —
privámo-nos assim de conhecer uma verdade de superlativa importância. Se não existir,
fomos crédulos e impedimos a descoberta de que não existe. Assim, a acusação central
que James faz a Clifford — que está tão preocupado em evitar o erro que não permite
acertar na verdade — aplica-se facilmente a James, que parece ter pensado que tudo o
que conta no que respeita à verdade é acertar nela, ainda que por acaso, e não conhecê-
la.
Racionalidade distribuída
A objecção de Plantinga a Clifford é uma objecção geral a qualquer posição indiciarista.
Consiste em defender que, pelo próprio critério indiciarista, não devemos acreditar em
coisa alguma sem provas; mas não há provas de que o indiciarismo seja verdadeiro;
logo, não devemos acreditar no indiciarismo.
Esta objecção depende, contudo, de uma concepção muito rígida de prova, concepção
que o próprio Clifford não defendia. Certamente que Clifford não pensava que o único
género de provas eram provas matemáticas ou científicas. Em muitas matérias, prova-se
ideias argumentando, e os argumentos podem ser muito complexos. Aquilo a que
Clifford claramente se opunha era a crença sem provas, sem quaisquer razões, só porque
se decide arriscar acreditar.
Antes, porém, é importante fazer notar que é argumentável que nem tudo o que é
epistemicamente ilegítimo ou incorrecto é moralmente ilegítimo ou incorrecto. Sem
dúvida que há alguma conexão entre os dois conceitos; em alguns casos, uma atitude
pode ser moralmente incorrecta precisamente por ser epistemicamente incorrecta;
Clifford, todavia, ou confundia ambos os conceitos ou estabelecia entre ambos uma
conexão excessivamente forte. O argumento de Clifford a favor da ideia de que é
sempre moralmente incorrecto acreditar em algo sem provas é que, mesmo no caso de
uma crença trivial e meramente pessoal, o facto de se acreditar sem provas torna-nos
crédulos e isso acabará por ter efeitos moralmente maus. Isto é um exagero: é fácil
pensar em contextos em que ser crédulo não terá quaisquer consequências para a
humanidade em geral: numa pequena ilha, um ancião doente alimenta a crença
injustificada de que os seus companheiros serão salvos, mas nada lhes diz e morre
pacificamente. O máximo que se pode defender é que na maior parte dos contextos é
uma má ideia criar hábitos de credulidade, em vez de hábitos de análise cuidadosa das
coisas, porque as consequências, directas ou indirectas, a curto ou longo prazo, são
quase sempre desastrosas.
Assim, o problema é saber o que são “razões adequadas” para mudar de ideias. No caso
do João, a razão adequada é ter visto a Francisca em casa; mas a visão só em certos
casos é fidedigna. Na seguinte imagem, por exemplo, a segunda linha parece maior do
que a primeira, mas ambas têm o mesmo comprimento:
Assim, nem sempre a simples visão nos dá razões adequadas para acreditar no que
vemos: nos sonhos, também nos parece que vemos muitas coisas, mas essas coisas
podem não existir. Distinguir as condições em que os dados dos sentidos são fidedignos
dos casos em que não o são é por isso crucial.
Outra maneira de conceber a certeza é pensar que se trata de estar certo, no sentido de
acertar. Nesta acepção de certeza, por definição, quando se tem a certeza de algo, é
porque se acertou na verdade. Mas nesta acepção podemos sempre estar enganados:
quando pensamos que acertámos, podemos não ter acertado.
Seja qual for a concepção de legitimidade epistémica que tenhamos, a mera certeza não
parece relevante: podemos ter a certeza por sermos casmurros, por exemplo,
defendendo firmemente uma ideia contra a qual há excelentes indícios ou argumentos.
Também a mera possibilidade de estarmos enganados, explorada pelo céptico, não
parece relevante para a ilegitimidade epistémica: do facto de podermos estar enganados
não se segue que estamos enganados, e do facto de não se poder garantir que não
estamos enganados não se segue que qualquer maneira de investigar as coisas e de
formar crenças tem o mesmo grau de legitimidade epistémica.
Não parece haver receitas automáticas para determinar quando um dado processo de
formação de crenças é epistemicamente legítimo, e este é um dos problemas centrais da
epistemologia da fé. Quem defende o indiciarismo, como Clifford, tende a pensar que
nenhuma crença é epistemicamente legítima sem provas, incluindo as crenças religiosas,
porque tem em mente o género de processo de estabelecimento de verdades que se usa
em medicina, física, biologia, matemática, etc. Quem defende a posição contrária tem
em mente os processos mais quotidianos de formação de crenças, que incluem coisas
como a experiência pessoal, a tradição e a confiança nos outros, além do poder
motivador das crenças.
O indiciarismo está por vezes associado a uma certa ingenuidade epistémica. A essa
ingenuidade epistémica podemos chamar o mito do investigador solitário. Esta
ingenuidade epistémica dá origem a uma versão infantil de indiciarismo, que é fácil
refutar: a ideia de que cada um de nós só tem legitimidade epistémica para aceitar o que
nós mesmos somos capaz de provar. Muitos crentes consideram, com razão, que esta
posição é insustentável, além de algo cega.
Para ver porquê, considere-se o memorável ensaio de George Orwell, de 1946, em que
ele se pergunta “Como sei que a terra é redonda?”. Rapidamente nos apercebemos que
só por testemunho sabemos que a Terra é esférica, ou que a água é H2O: os professores
ou cientistas escreveram isso ou disseram isso, e nós acreditamos. Não só não temos
provas directas dessas coisas, como a maior parte de nós não saberia estabelecer tais
coisas, mesmo que tivéssemos os meios para isso: eu, por exemplo, não saberia
estabelecer que a água é H2O, mesmo que tivesse acesso a um laboratório de química.
E, apesar de poder viajar num avião ou outro meio de transporte para poder ver
directamente que a Terra é esférica, não saberia dizer se o que me pareceria visualmente
evidente não ficaria a dever-se a alguma ilusão perceptiva, dado que neste caso eu
estaria muito afastado do meu ambiente perceptivo comum.
Estas considerações parecem militar contra Clifford, mas a sua posição é mais
sofisticada do que isso. Na segunda parte do seu ensaio, Clifford aborda explicitamente
o que acontece quando temos de nos apoiar em terceiros para justificar as nossas
crenças. Este problema torna-se mais vívido se compararmos estes dois casos: no
primeiro, a Josefa vem do supermercado e diz ao marido: “Afinal, não havia leite,
esgotou-se”; no segundo, a Marília vem também do supermercado e diz ao marido
“Afinal, não havia leite; vieram uns extraterrestres e levaram-no todo”. No primeiro
caso, o marido aceita o testemunho da Josefa, sem mais perguntas, e será capaz de dizer
com toda a segurança a outra pessoa, alguns minutos depois, que não há leite no
supermercado porque se esgotou. Mas, no segundo, o marido da Marília fica estupefacto
e começa imediatamente a fazer perguntas; muitas perguntas. Qual é a diferença?
Contudo, não é num certo sentido verdade que muitos de nós não fazem ideia como
seria possível descobrir a composição química da água? No entanto, confiamos no
testemunho dos cientistas. Será isso credulidade? Se não o for, por que razão seria
credulidade acreditar num profeta que afirma ter tido contacto directo com uma
divindade?
Assim, a primeira resposta é que seremos crédulos se acreditarmos num testemunho que
pressupõe que a outra pessoa tem um acesso privilegiado à verdade, no sentido forte.
Isto é credulidade porque a pessoa poderá ser vítima de alucinação, ainda que seja
sincera; ou poderá estar a mentir, por qualquer motivo. Acresce que qualquer pessoa
que pense ouvir a voz de uma divindade terá pelo menos de levantar a hipótese de estar
a ser vítima de ilusão, se for epistemicamente virtuosa, tal como olhamos com
estupefacção quando vemos coisas incomuns — uma mulher a ser aparentemente
serrada ao meio, num circo, e que, no entanto, continua a mexer os pés no outro lado da
caixa. O que poderá fazer-nos aceitar prontamente a nossa experiência religiosa, sem
um exame cuidadoso, ao mesmo tempo que não aceitamos a nossa experiência visual de
ver uma mulher ser serrada ao meio e sobreviver, é a credulidade: a vontade de acreditar
no que gostaríamos que fosse verdade.
Note-se que isto não significa que os membros dessas instituições sejam tão abertos à
discussão quanto seria desejável. Alguns poderão não o ser; mas isso é irrelevante se
outros o forem e se estes não forem impedidos de apresentar as suas ideias discordantes.
Analogamente, numa instituição que não permite a crítica aberta, alguns dos seus
membros podem ser-lhe favoráveis — mas isso não torna as afirmações dessa
instituição dignas de crédito. Só o serão se as vozes discordantes não forem silenciadas,
mas antes acolhidas, levadas a sério e frontalmente discutidas.
Imagine-se que, sem a Josefa saber, uma equipa de psicólogos decide fazer uma
experiência com ela. Falam com as pessoas do escritório de advogados onde trabalha e,
na hora do almoço, transformam o escritório num consultório de dentista. Quando ela
chega do almoço, entra no prédio, entra no elevador e carrega no número 5. Chegado ao
andar correcto, entra no seu escritório e fica perplexa: não vê o que esperava ver, mas
sim um consultório desconhecido de dentista. A sua primeira reacção será
provavelmente duvidar de que esteja no andar correcto. Isso parece-lhe mais provável, e
é, do que a hipótese doida de o escritório onde trabalha há mais de cinco anos ter
desaparecido durante a hora do almoço. De modo que sai do consultório e volta ao
elevador. Para seu espanto, está mesmo no quinto andar. Agora as coisas começam a
ficar mais estranhas para ela. O que poderá haver de errado? Fica ligeiramente
desorientada: poderão todas as suas memórias de que trabalha naquele prédio estar
erradas? Será que está a enlouquecer?
Um pouco desorientada, considera então que poderá ter-se enganado no prédio. Entra no
elevador, chega ao rés-do-chão e sai do prédio. O resultado é assustador: é realmente
aquele o prédio em que ela trabalha. Pelo menos, tanto quanto se recorda. Muito
provavelmente, a Josefa voltará a entrar no elevador, porque duvida agora de que tenha
realmente estado ao quinto piso, apesar de o ter verificado há menos de cinco minutos.
Irá de novo ao quinto piso e, ao ver uma vez mais o estranho consultório de dentista,
começará a duvidar de que o seu escritório de advogados esteja afinal no quinto andar.
Não seria antes no 15.º?
Passemos agora para o segundo caso. As pessoas mentem e enganam-se. Mas se forem
erros epistemicamente comuns, as outras pessoas irão ter a ilusão de estar a confirmá-
los, precisamente por serem comuns. Sem estudar cuidadosamente astronomia, nenhum
ser humano tem razões directas e óbvias para pensar que a Terra se move, ou que é
esférica. E terá uma razão acrescida para pensar que está imóvel: todas as outras pessoas
à sua volta pensam o mesmo. Parece improvável que todas estejam erradas, ainda que o
estejam de facto. Nessa circunstância, não é óbvio que seja epistemicamente vicioso um
ser humano crer que a Terra está imóvel e que não é esférica, mas antes plana, ainda que
tais crenças sejam falsas.
Diversidade epistémica
As considerações da secção anterior dão uma imagem da legitimidade epistémica muito
diferente do que por vezes se pensa. A ideia de que somos agentes epistémicos sociais e
de que estamos continuamente a fazer controlos e ajustes nas nossas crenças colide com
um ponto de vista comum, na história da filosofia, no que respeita à justificação última
das nossas crenças. Esse ponto de vista tradicional tem a designação de
fundacionalismo. A ideia é que as nossas crenças só têm justificação, na sua maioria,
porque se baseiam noutras, das quais são inferidas. Assim, acreditamos que não
nascemos ontem, por exemplo, porque nos lembramos de existir há vários anos.
Portanto, a crença de que não nascemos ontem baseia-se noutras crenças. Mas nem
todas as crenças poderão basear-se noutras, sob pena de regressão infinita; logo,
algumas crenças são básicas: crenças que não se baseiam noutras.
Porque somos falíveis, a virtude epistémica exige que estejamos dispostos a pôr em
causa as nossas crenças, incluindo as mais queridas. E é difícil imaginar contextos
epistémicos nos quais a falibilidade humana não seja evidente. Contudo, em muitos
contextos epistémicos, a falibilidade humana é objecto de ocultação, fingindo-se que
certas pessoas ou instituições são infalíveis, sendo impróprio e até ofensivo e blasfemo
pôr em causa o que essas pessoas e instituições afirmam. Se levarmos a sério a
falibilidade humana, um agente terá tanto menos legitimidade epistémica para aceitar o
que afirma um grupo de pessoas quanto mais essas pessoas procuram impedir que as
suas afirmações sejam postas em causa. E, em muitos casos, basta que nos perguntemos
se as pessoas que afirmam algo não poderão estar enganadas para destruir a aparência
de autoridade epistémica que fingem deter.
O primeiro resultado desta análise é que aceitar a tese de Plantinga tem consequências
menos fortes do que se poderia pensar. Tudo o que Plantinga defende é que em certos
contextos é epistemicamente legítimo crer em Deus sem provas. Mas não mostra que é
epistemicamente legítimo crer em Deus sem provas num contexto em que muitos outros
agentes epistémicos põem a existência de Deus em causa. Só conseguiria mostrar isso
se conseguisse mostrar que as crenças ateias não devem ser tidas em conta pelos
crentes, por qualquer razão. Mas que razão poderemos invocar?
Podemos defender que falta aos descrentes uma faculdade especial, o sensus divinitatis;
ou que esta faculdade foi corrompida pelo pecado. O problema de qualquer uma destas
ideias é não ser mais evidentemente verdadeira do que a hipótese de que são as pessoas
crentes que são vítimas de ilusão, ou que são epistemicamente viciosas, crendo ser
verdade o que lhes dá jeito crer que é verdade.
Esta será outra discussão; para já, importa apenas mostrar o papel da diversidade e da
tolerância na nossa estrutura epistémica. A diversidade de pontos de vista é uma ameaça
a sistemas de crenças que se protegem precisamente porque as pessoas que têm essas
crenças desconfiam que são falsas, mas gostariam que fossem verdadeiras. É difícil
conceber qualquer virtude epistémica nesta atitude. Trata-se tão-somente de evitar o
incómodo de ter de mudar de ideias. Quem crê sinceramente que as suas ideias são
verdadeiras não pode sentir-se assustado quando alguém as põe em causa. E quem ao
mesmo tempo crê na sua óbvia falibilidade epistémica, quererá pô-las em causa, pois se
não resistirem ao exame crítico é porque são provavelmente falsas e devem ser
abandonadas.
A diversidade epistémica é por isso saudável, e terá de ser acolhida com agrado por
quem for epistemicamente virtuoso. Cada um de nós pode pôr em causa as ideias em
que acredita, mas a melhor pessoa para o fazer é o nosso semelhante que desde o início
não acredita nessas ideias. Assim, qualquer crente epistemicamente virtuoso acolhe com
agrado os descrentes que argumentam contra a sua fé; e qualquer descrente
epistemicamente virtuoso acolhe com agrado os crentes que argumentam a favor da fé.
O valor epistémico da diversidade de opiniões é permitir que as ideias mais díspares
sejam defendidas por quem genuinamente acredita nelas. E o primeiro sinal de vício
epistémico é a falta de tolerância, que se revela na vontade de eliminar ou silenciar
quem pensa de maneira diferente de nós, ou na manipulação da discussão, tornando-a
um exercício performativo que visa cativar e seduzir, e não descobrir a verdade e
detectar o erro.
Admitindo que James e Plantinga conseguem resolver as dificuldades discutidas, o que
se segue da aceitação das suas posições é a legitimidade epistémica de crer sem provas;
não se segue das suas posições a legitimidade de crer com imensa convicção sem
provas. Se considerarmos que crer com imensa convicção é constitutivo da fé, então
nenhum destes dois filósofos foi bem-sucedido em defender a legitimidade epistémica
da fé sem provas.
Conclusão
Ambrose Bierce (1842-1914) definiu a fé como “Crença sem indícios no que diz quem
fala sem conhecimento de coisas sem paralelo” (The Devil's Dictionary, 1906; há uma
tradução portuguesa, na Tinta da China). Esta humorística definição caracteriza bem a
atitude de muitos descrentes, que consideram por vezes a fé um paradigma de vício
epistémico. Muitos crentes, por sua vez, consideram que esta atitude é insensível a
realidades mais importantes e profundas, incluindo os aspectos vivenciais de quem tem
uma vida e atitude religiosa. O exame preliminar aqui realizado de algumas ideias e
conceitos centrais desta área poderá ajudar crentes e descrentes a discutir melhor o
tema. Outro não era o objectivo.
Desidério Murcho
desiderio@ifac.ufop.br
Extraído do livro A Ética da Crença (Bizâncio, 2010)