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Exocio ao psm-IV Guillermo Tzaguirre (O Dsw-1Ve a pritica psiquidtrica ‘Atiltima versdo do Diagnostic oud Statistical Manual of Mental Disorders (DSM-IV) cons- titai uma ferramenta eficaz para os psiquiatras de cuja utilidade ninguém pode duvidar. A partir desta afirmagio, 6 possivel se perguntar em que consist, para que e para quem? Em primeiro lugar serve para poder estabelecer claramente, quando um psiquiatra re- ‘ebe em tratamento um paciente, onde este pode ser situado no mapa classifcatsrio. E isto fica simples mesmo quando a decisio ¢ tomada segundo o critério com que nesse momento ‘ psiquiatra vai classificar, mesmo quando, e com frequéncia ocorre, outro psiquiatra ou ‘mesmo em outro momento, sea possivel escolher outra divisio do Manual para esse pa- ‘iente.O que 6 praticamente certo é que vai encontrar um lugar no mapa, quando néo tiver ‘a possibilidade de propor outra alternativa para ser acrescentada a lista? Em segundo lugar, é um excelente aunxiliar para a tarefa estatistica. Sua utilidade é indubitével. Emterceiro, sua tarefaterapéutica é simplificada porque, ao saber a que divisio corres- ponde o paciente, poder-se-{ deduzir com bastante precisdo 0 tratamento correspondente, seja psicoterapéutico,farmacolégico ou misto, que certamente teré de escolher recorrendo a seus conhecimentos, a bibliografia correspondente, a0 vade-mecum e & sua experiéncia. Mas a divisio, submarino fundido ou fragata avariada, facta seu trabalho. Em quarto, sua posigéo de médico possuidor de um conhecimento e de elementos para a acio fica resguardada. (Os paradigmas da psiquiatria e suas crises ‘A parti destas observagies, algumas dividas sio necessariamente introduzidas no ‘campo mesmo do fazer psiquistrico que nao podem ser separadas da histéria do sistema classificatério. O DSM assume plena vigéncia a partir de 19802 Até entio como se viravam 0s psiquiatras? 7. Eo case come veremos adans da proposta da elcdade coo un wanstomo ative maior ‘por parte de Richard P.Bentall. °2 Na realidade, 0 DSM surgiu em 1952, mas nio foi aeito como nomenclatura oficial dos [EUA, em 1968 foi publicado o DSWil,adotado pela Associacdo de Psqulatria Americana, mas logo 0 oro negro da psiopatolgiacontenpornea #14 Pareceme proveitoso remeter-me a um texto caja aparigdo em castelhano data > ano 2000: Ensaio sobre os Paradis da Psiquiatria Moderna de Georges Lantéi-Laura. Nele a tatabelece, partindo do conceto de paradigma na hstéria das cléncias de T.S. Kuhn € permitindo-se, com as ressalvaspertinentes, rangporti-lo para a histria da piquitia 0 Exdenamento desta em tes pesos dominados pr sus vez por tes paraiamss diferer- tex E importante desiacaro que considera como paradigma ea nogio de “crise” do mesmo, © paradigma seria “oconjunto de conhecimentos transmitidos que conttu a cia no tral enquanto desempenka bem seu papel eque serve de referéncia fundamental e efcaz para tos os saberes para todas as questées que se color em seu sei” © cresoonla Fuanto ie “rises” “que 0 paradigma desaparece ea crise no se resolve até que um. 20¥9 Suradigma vera a ocuparo lugar do antigo eprestar novos servgos, que set preseessor ‘io conseguiu assegurar” (Lantéri-Lauro, 2000, p. 47). Com este insrumento, o autor data 0 comeco da psiquiatra em 1792. Para isso situa «que considera um aspecto importante da origem da patologia mental, pressupondo uma * gpresenlagio socal da loucura e “a adequagio & medicina de uma parte desta represen” taclo” (idm, p. 17) tende a das quests: em primeio fugarsuplanaroutra expiagies (fligions,sobrenaturats, mica ec) e,em segundo, tratar de dar conta da ttalidade da fbucea, A parte da loucura que écooptada pela medicina vai se definr de acordo com © paradigma que, em cada épocn lugar, domine sua descrio, organiza e classifcasee que impli a suposigio de que a concepeio social da loucurapreceda, Hi culturas em meticine da mente, mas quase todas as culturas contém sua representacio da loucura ‘Lantéri-Laura referee 8 psiquiatria, tal como fica definida e organizada na cultura ‘cdental. Com a nocio de “crise”, podemas desfazer qualquer ideia de continuidade ou bstituigio natural Geum paradigma por outro e revelaque nao se trata de que umn paradig- tha exe futado nem que 0 segunte tena sido demonstrado, mas que se deixou de usar de fate eo seguinte, som que s safba como nem porque oi entronizado/ etabeleceurse de ftn, O paradigma esté destinado newssariament, na medida em que a dscplina em questo sem colocadasacomplexidade de seus assuntos ea aparigao denovos problemas, aentat em crise e desaparecer Como a psiquatia nio é uma cincia,e se pretende s-oestélonge de consegu. ¢ poosivel compreendél igada ao desenvolvimento de outasdiscipinasheterogeneas S%- ai nas quals vai se basar, mas por sua vez vai Ihe trazer mais fterrogasies do que sols (Ges, Provavelmente estas contribuigdes da cultura vio produzir as mudangas que evan sere es um novo paradigm, Por ser uma concepgio histirce, vamos nos encontrar com. continuldade junto aesta descontinuidade. ‘Oprimelro paradigma da psiquatria vai dominar desde ins do século XVI até ame tade do XIX coma dei, arrigada nas tradigbes francesa, alemisitalianase nglesas, de tue se campo est organizado por ma afc nica que fundamentalmente Pinel mas ‘em 1980, com a public sr Daongas em sa verso enterior que vigors na atwaidade e Cortamente, poder-se-ia saber, mas apenas rtroativaments koa 15 + Questaes epistemolgicas também outros autores, chamou “alienagio mental”. Este periodo, ao qual o autor restringe seu tempo de dominio, estende-se entre 1793 e 1854, quando se finda com o surgimento do artigo de J-P.Falet (1864), inttulado “Da nao-existncia da monomania” O segundo, denominado por Lantér-Laura de “as doencas mentais”, rompendo com a ideia de doenga ou afeccio tinica e renunciando a constituir uma extraterrtoralidade com relagdo & medicina, passa a se inscrever de fatoe de direito dentro dele. Fo tempo em. que se desenvolvem a extravagante descricio das doencas mentaisfeitas pelos alienistas € a organizacio dos grandes quadros classificatérios. Considera seu termo no ano 1926, momento em que, no Congresso realizado em Genebra e em Lausane, Bleuler expae se coneceito sabre 0 grupo das esquizofrenias. O terceito, chamado de grandes “estruturas psicopatolégicas", surge pela influén- cia de varias disciplines préprias dessa época como a Gestalttheorie de Koelher ¢ Kootica, 4 neurobiologia de Goldstein, a fenomenologia, os formalistas russ0s, 0 estudo dos mitos na antropologia do século XX, a semiologia e a linguistica, as matemticas e a psicanali- se. Recupera-se certa unidade perdida pela dispersio das descrigBes das variadas doencas ‘mentais em um niimero restrito de estraturas, Termo que pouco depois deveria assumir um lugar destacado no que se chamou ciéncias humanas, especialmente com a linguistica ea an- ‘ropologia. Prope como data de encerramento o momento da morte de Henri Ey em 1977, Lantéri-Laura sustenta que, ao haverterminado est terceio paradigma ose, com Ee iow east pos oer unk Toop onbaets Nos iiltimos anos do terceiro paradigma, desenvolveram-se noves psicoférmacos, fato que passou a ter progressivamente maior importancia, e imediatamente comesaramn 2 {er um predominio notavel os estudos sobre as neurociénciase a genética A psiquiatria nos tltimes anos forse apoiando cada vez mais neste tripé: psicofarmacologia, neurociéncias genética, pcendo-se questionar se estes desenvolvimentos permitiriam definir um novo paradigma psiquistrico dominante desta época. Considero que é uma presungio que nao deve ser descartada, No terceiro paradigma, ainfluéncia da psicandlise foi enorme, a ponto de a aproxima- ‘Ho entre amb as disciplinas poder ser marcada claramente. Inclusive, frjou-se, sem pa- recer forgada, a expressio “psiquiatria psicanalitica”suposta sintese, ou melhor dizendo, sineretiomo, que pode se sustentar sobre a base ce conseguir uma coincidéncia nas nogBes de estratura e de estruturas psicopatoldgicas. Junto & crise do paradigma psiquidtrico eda propria psicandlise, pés-se em evidéncia que aquele sintagma era um oximoro, 14 uma correlagao entre paradigma e tratamento, Para a doenca tnica corresponde um “tratamento moral da loucura” e formas juridicas espectficas de se ocupar do alienado, Para as doencas mentais, ao implicara entrada de pleno direito da psiquiatria na medicina, toma desta a ideia de doenca que se define como uma unidadie independente pela primazia légicae cronoligica da semiologia e da clinica. Em consequénca, perle-se aideia de um tatamento tinico para dar lugar & diversidade de tratamentos, havendo um, especifco, para cada doenca ou para um grupo de doengas. Com o predominio das estruturas psico- 4. Forem inclusive excitos livros com este tule : toro negro da psicopetolgiacontemporines + 16 patol6gicas, vai se dar uma nversio na relagéo entre psicopatologiaepsiquiaria,passando 5 primeira a prevalecer sobre a segunda da mesme forma que a medicina ¢ organizada pela isiopatoogia Isso leva acertas formas partcuares do tratamento que pareciam con ttadizer a singularidade da psicandlise e, a0 mesmo tempo, tomar a tragar o tratamento moral, agora sob a denominagSo de psicoterapias. Com o surgimento das primeiras drogas ‘Genominadas “antipsicticas” nao entra em crise 0 paradigma, mas com o aparecimento de sultipostipos de psicofirmacos a questdo muda O tratamento neste paradigma podetia ser considerado psicopatolégico como se isso implicasse ocupar-se das causas e das meca- : ‘nismos de adoecer. Nao deixemos de lado que, para isso, a psicandlise Ihe deu a letra. Essa ‘ontundente dferenca de “estruturas” também teve consequencias juridicas. "Acrise deste terceiro paradigma arrasta a psiquiatria, mas também a sua sécia, a psi- 4 canélise. Crise que leva, entre outras questdes, @separar ou a volar a separar os trilhos da psiquiatia dos da psicandise,cujo paradigma entrard simultaneamente em crise com os ‘itimos semindrios de Lacan e os posteriorestrabalhos de alguns de seus diseipulos. ‘Lantéri-Laura assinala 0s elementos dispares que intervieram nas crises dos trés pri- meiros paradigmas que, ainda que muitos, quero destacar ns poucos. No inal do primeiro no inicio do segundo, infiuenciam tanto elementos intrinsecos que tém a ver com a com- plexidade que se colocava no campo, quanto exrinsecns tas como o dominio do presigio Social da medicina. Na passagem do segundo para o terceiro, podent-se tomar ambos 0s itérios, as dificuldades intrinsecas eo aparecimento além da psiquiatria da influéncia, por seu proprio presigio socal, de outras disciplinas. TEnquanto 20 final do tecero,além dos elementos que jé foram citados, é possivel ‘considerar-se a recuperacio do termo loucura como um elemento importante na crise do paradigma. Quando Lacan ntrodu.apolaridade “Ioucura ou deficiénca mental’, nos tic thos seminérios, a estamos em um dominio que questiona a supremacia da ideia de estru- turas psicopatoligicas* Considero, entio, que, a partir da crise do terceiro paradigma e pelos desenvolvi- imentos de muitas questdes e questionamentos produzidos por movimentos culturais do “ltimo quarto do século passado e do comeso deste, encontramo-n0s com uma separaao jmportante entre a psiquatra ea psicandlise, que liberadas uma da outra,abrem possibi- lidades de conformar cada uma suas novas orientagtes. A psiquiatria talvez possa entrar ‘mais plenamente na medicina e abanconarcerta posicio limite. Poderdo as neurociéncias, 10s psicofarmacos e a genética dar base para a constituigao de um novo paradigma? “Aqui nos encontramos com varios problemas. Se estes novos desenvolvimentos cen tificos trazem as bases para um novo paradigma da psiquiaria seria 0 DSM-IV sua expres- REC ne eee Nese mes so ano surge DSI. Euma coincide, mash algumarelasSo entre aimportinca crescent dos tratamentos peicofarmacoldgicos eo sistema classifcatrio dos sucessivos DSMs. re a 1977, ano da morte de Henri Ey, evento a partir do qual Lantéi-Laura data ofinl deste terceto paradigm, Lacan apresenta seu limo semindsio inttulado “L'nsu que sit de Tune bévue {que shilea mourre", onde formula esta poaridade. = separagso, -m possibi- 17+ Quests epistemic séo cassficatéria? A prtica da clinica psiquidtrca atua, fundamentalmente centrada nas psicoterapis ena administraclo de psicofdrmacos écongruente com estes desenvolvimen- tose responde a classificagio do DSM-IV? ‘Para trabalhar estas perguntas seria necessério vermos de perto tanto o que aconte- ce nas priicas clinicas como nas concepgées que engeriraram 0 sistema classificatécio rorte-americano que se tornot universal.” “A palcofarmacologia modema permit 3 psiquitia contr com uma gama bastante ampla de recursos para 0 exercico de sua prétca, caso se entenia por isto o controle de sin- tomas dos transtornos mentais. Ao contar com tum sistema clasificatério suficiente como © DDsM, o arsenal farmacolégico tem bastante espeifcidade e permite um uso congruente com ‘esupostosuilizados para esta classifcagso. Coma grande maioria dos sntomas éconside- ada franstomos de comportamento, 0 efeito dos frmacos sobre a mesma e certa apreciagio bastante desenvolvida de seus modos de atuar permitem uma Idgiea de sua utilizagio. ‘Como os transtornas estio descrtos de tal modo que nao seguem uma sequéncia cldssica da descrigdo de doencas nem se agrupam pela causalidade, 0 tratamento & sobre as Condulas descritas e ndo sobre as causas das doencas. Na realidade, néo ha doencas, mas transtomos de comportamento. Critétios para o estabelecimento do DSM-IV ‘Quais soos crilérios classificatérios do DSW/-1V? Uma cassficagdo é um provesso que permite agrupar e defini critros para ainduséo ou exclusio de um grupo. Ha diversoe > tris para este processo. Uma classfiacio se faz a partir da eleio de algum ou alguns ‘utérose se for Util, mantém uma homogeneidade entre aqueles ¢ os elementos classifica: férios que a compoe-Na psiquitea, cada paradigms estabeleceu suas propras cassifca- les. Ao se traar da ideia de doencatnica, um ctério classification poseui demasiado Endo apesar de existirem alguns esbogos quando se incluem diversas formas de mono- tranias. No dominio do segundo paradigma que determinou a entrada de pleno direito da poiguatra na medicina, desenvolveram-se muitas assificagbes,sendo as mais importay- Tes us diversas edigbes da classificaglo de Kraepelin. Sua intengo foi seguit os crtérios da ‘medicina do século XIX e comeco do XX. Como se tratava de doencas, podiam basear-se na ttiologia, no desvio da norma fisioldgica ow cultural ou na apresentagéo de sintomas: No ‘aso do terceiro paradigma, o fundamental foi considerar a psicopatologiaestrutural que ‘permitinestabeleer os trés grandes grupos: neuroses, perverse € psicoses "Em contrapartida o DSM-IV no considera a existéncia de doengas, mas de transtor ros endo uli um citério causal. E uma dassfcacdo empirica tanto categérica quanto dimensional’ Esta ultima é tomada inicialmente para dar conta de transtornos em que a Gimendo do desenvolvimento desempenha um papel fundamental. Por sua vez, 20 cons 7 Univeral sigpiica por ofbito de influia dos ELIA convo noo induz pensar a lobalzagio 1 "Catgéric”Implica que es entidades nsoldgicassfoqualitativamente diferentes. Em con tropartda, ar timensionais”considerem una nhs continua ene doenas 0 sintomas,Ainds qu eae pala Maria Magdalena Contreras, para Feariman as doencas se dio em um continuo ¢ a ‘Categorias slo construgies do observador. iors negro da psicopatolgiacotenpornea #13 deraradimensdo categérica, o DSMV € polittico, sendo as categorias heterogéneas e seus limites pouco caros. ‘Com outros parimelros para a classificagio, por exemplo ao considerar cinco eixos sobre os quais e organiza, seu sistema multiaxal Mas 0 que me parece importante considerar para esta observagio ¢ que ele constitu ‘um manual classificatério, como afitma M. M. Contreras (204), que deixa de lado todo cri- tério nosolgico em favor do estatstco, cuj objetivo é conseguir a maior flexbilidade sem considerar as diferencas das orientagbes tedricas dos proissionas. Vejamos de perto o que colocao préprio DSMV. El diz queseus cbjetivos so cinicos, de investigacio e educacionas. Para quet? Para os clinios e pesquisadores de diferentes rientagies e passa a nomear a quem se dirige: pesquisadores biologicos, psicodinmicos, cognitivos, comportamentais, interpessons ¢ familiares. E 0 usuétios sio os psiquiatas, paicdlogos assistentes socias, enfermeiros, terapeutas ocupacionals de reabilitagZo,conse- Theirs e outros muitos profissonals da said. A psicandlise ¢ 0 DSM-IV (Como psicanalista, isto nos produ um grande aivio, jé que ficamos excluidos da quelesa quem se dige este manual. Nada temos aver com ele. Neste sentido, a psiquiatria oficial se separa explicitamente da psicandise. Ja ndo aparece essa aproximacio que havia- ‘mos assinalado em relagio ao terceiro paradigma da psiquiatria, fica distante ca época em que se podia falar de uma “psiquiatria psicanalitica” ou de nogSes semelhantes. Parece-me que nesse sentido é que o terceiro paradigma caiu ou, pelo menos, esti em crise. Defiiti- ‘vamente 0 manual de clasifcacio psiquistrico nada tem a ver com os psicanaistas. Nés psicanalistas podemos nos desprender tranquilamente da psiquiatria. Nossos propésitos sho outros, nosso objetivos diferem. Por outro lado, considere-se como um instrumento necessério para estuclos estatisti- «0s sobre Saiide Piiblica. O que é um objetivo importante do manual e, por sua forma de ‘organizagio, com os crtérios utilizados para organizé-lo, é um instrumento eficaz que se tomou além de tudo necessério. Deste modo, passou a ser imprescindivel para a prética ‘estafistica em Satide Publica elemento que o distancia ainda mais da psicandlise” Diz também que sua construcdo esti baseada na observacio empirica. Ou sea, su- postamente, nenhuma teoria ¢ posta em jogo. Nao & nosolégico, ¢ estatstico e empitico e ‘para que nao restem diividas expressa que nao tem a pretensao de explicar as patologias ou delimitar uma teoria ou corrente. Seu surgimento é a necessidade de confeccionar uma classificagio consensual. Entre quem? Para quem? Nao importa quem sejam, ficam excluidos os psicanalistas. psicandlise ‘do tem nenfuma necessidade de ser consensual para nenhuma classificacSo. Seus pressu- postos, suas necessidades so de outra natureza 7 Casi Gm parr da pode pte ie mao soba Soe PDI as de toca gana ta ener no quelo BSNeIV importante das estates 19 Quests eptomoligles O manual éferramenta de diagndstico, segundo diz, mas também de estatistica, per- fescrever o paciente em cinco eixos para “contar com um panorama geral de di- smbitos de funcionamento” 2” E uma frase importante, define muito bem o que 0 pretende, especialmente em trés palavras: “geral’, “Ambitos” e “funcionamento”. ese pode pensar com relacio & psicandlise,jé que nela no ha nada é um discurso do singular. Muito menos pode-se falar de “ambitos” e jonamento” nada mais é que um termo para indicar a conduta, ou seja, 0 behavio- ==> sobre o qual a psicandlise nada mais tem a dizer. Em suma, trés palavras alheias & = candlise que a excluem do DSM. interessante o modo como o manual manga certos termos. Na Internet, encontra-se ossério. Ai podemos ler, por exemplo, a palavra “psicose” e, portanto, em que sentido ada, Haveria uma definicdo estrita segundo a qual o que define a psicose “sio ideias, nites on alucinantes proeminentes’, “na auséncia de consciéncia sobre sua natureza ogica”. No manual ndo existe a neurose nem a perversio e no se coloce nenhum “=o que se oponha ou se diferencie da psicose. No final, fel a seus objtivos, a psicose se ne por certos aspectos de comportamento. Manifesta que ha, além disso, uma definiglo 3s restrtiva que inchuiria“aluicinacoessignifcativas que oindividuo acca como expe- ~Socias alucinatdrias” e uma terceira mais ampla que aceita outros sintomas positivos de suizoftenia tais como “fala desorganizada”, “comportamento desorganizado ou cataté- >” eafirma que hd perda dos limites do ego ou alteracSo da verificagio da realidade. Como se v8 apela para um crtério de psicose com base em certos observaveis ou ain- fala do paciente sem passar seu limite explicito eo que ocorre com a consciéncia, com -s0 ou com a realidade. Nao podemos dizer entdo que 0 manual se afasta de seus objetivos ede seus citrios rics", “objetivos”, “comportamentais” para aderir 20 que pretence deixar de lado, ou 2 certas concepgdes,ideologias e mesmo teorias? Mas, de alguma forma, © manual escapa so, jé que afrma que no DSM_:IV se assinalam diferentes aspectos da definigio de psicose. tia dizB4o em termos do manual e, enti, seria assim: assnalam-se diferentes “aspectos erais doe mbitos de funcionamento”. E certo que oe podem inscrever diversos indvidues mio um niimero a mais neste compartimento, mas o que se quer dizer com isso? Podemos vé-lo em “funcionamento”. Por exemplo, para diagnosticar um paciente somo esquizotrénico so necessérios dois ou mais dos seguintes sintomas caracteristi- 1) ideias delirantes; ) alucinagGes; 3) linguagem desorzanizada; 4) comportamentos tnicos ou gravemente desorganizadios: 5) sintomas negativos: empobrecimento afeti- alogia, abulia. A estes sintomas caractersticos se somam outras condigées que no so acteristcas, mas que ajudam o diagnéstico ou seu descarte. Vé-se perleitamente que 0 =r0pésito do manual se mantém imperturbavel:nenhuma referéncia a uma hipdtese, a uma concep da psicose, a uma teoria, 10. DSVEIV. Capitulo sabre os objetives. Pode-se encontrar a Inlemet on em qualquer das igdesestabelecidas. tora negro da poicopatolgiacontemporinen # 20 No entanto, de forma alguma é possivel se considerar nfo haverteoria. Ao se tralar ddo empirico néo hé lugar para dividas de que haja uma teoria que se chama empirismo. Essa ¢ uma concepeo, se preferir uma filosofa, ecertamente é necessrioteorizar para sus- tentar algo sobre o empiricoe além disso estabelecer uma escala de valores. Sem teoria nem scala de valores nao ¢ possivel a construcéo de tal corpo. A prépriaideia de construir um ‘manual diagnéstico implica necesseriamente uma teoria ou um grupo delas e uma escala de valores, inclusive alguns preconositos, mesmo que se pretenda com a melhor disposigio desprender-se deles Isto é digno de nota na classificagfo dos transtornos sextiais, Diz-se que se define os transtornos da identidade sexual pela identificagao com 0 sexo oposto e outros crtérios ‘menores e no por escolha de objeto. Mas af jé estd impliito que ha um sexo definido, ppertence-se a tum e hi o outro e deve-se identificar com um e ndo com outro, caso contritio se trata de um “transtorno’. Nao temos nada a objetar quanto a isso, a partir do empirismo, dda anatomia ou da genética, mas a psicanslse fica excluida, nada permite decidit, a partir da psicanalise, que alguém pertenca a determinado sexo antes de sua dedlaracio de sexo, ‘Como a psicanilise podetia consierar isso um transtomo? De forma alguma, A ironia do Dr. Bentall De tum modo que poderia ser considerado irénico, um psiquiatra de Kingua inglesa, Richard P.Bentall (1992, 18, p. 498), da Universidade de Liverpool, langou uma proposta ‘muito interessante que, a meu parecer, questiona toda estrutura classificatéria deste ma- nual. Publicado em 1992, no Journal of Medical Ethics, sob o titulo “A proposal to classify happiness as a psychiatric disorder”, esta curiosa proposta lancaria, ao ser tomada com seriedade (e ndo hé porque nao ser assim), um polémico debate sobre o manual. Diz. no abstract que 0 propésito é que afelicidade sea lassificada como um transtomo psiquistrico e incluida nas proximas edigbes do manual diagndsticoe classificatério sob um novo nome: ‘major afective disorder, pleasant type, porque foi visto na literatura relevante que a felicdade 6 estatisticamente anormal, consiste em um discreto conjunto de sintomas, esta associa- da com um nivel de anormalidades cognitivas e provavelmente refta um funcionamento anormal do sistema nervoso central. Uma possivel objegao & que no se considera um valor negativo, mas constitui uma objecao cientificamente irelevante. A flicidade seria um es- tado neurofisioldgico de desinibiglo. firma que ha cetta relagio entre flicidade e mania E provivel que se enconre certo distirbio do sistema nervoso central. E indubitivel ue se possa induzir a felicdade estimulando centros subcorticais, Encontraram-se com certa frequéncia relagbes entre a felicidade, a obesidade e a ingestio de dleool. Confere alguma esvantagem bioldgica. implica uma ma adaptacao A realidade. Poe em jogo determinados ‘centros nervosos que afetam o sistema nervoso central. Apresenta sintomas especifcos ese relaciona com anormalidades cognitivas. O autor assinala uma consequéncia ao ser aceita a ‘sua proposta: que os psiquiatras tentem algum tratamento para afelicidade. As referencias bibliogréficas consultadas pelo autor sio relevantes e numerosas, cita 32 trabalhos, todos em lingua ingles e ce importantes revista centificas. ‘Oartigo segue estrtamente padrées cientficos com um impecivel raciocinio que vai desfiando os argumentos para aficmar a pertinéncia ea necessidade de incur ese transtor- no afetivo maior na clasificado psiquistrica, no DSM. 2. Ao se tratar 2 empirismo. ‘ras critérios 20 definido, =0 contrdrio so seraceita a s referéncias p=ihos, todos sofo que vai transtor- 21 + Quests pistemoligicas Mas aironia que contém a existéncia mesma do trabalho, especialmente pela forma de sizar sua argumentacdo que considero impecivel, é que discute a pertinéncia mesma « classificagGes psiquidtricas ou, pelo menos, coloca dificuldades muito sérias para esta -efa realizada desta forma, supostamente sem considerar nenhuma teoria e baseada ex: ‘mente na observacao empirica. Richard Bentallcoloca ao discutr a provavel objec quea felicdade ou, como prope nomeé-1a, major afectve disorder, pleasant type, nao éum ior negativo. Mas, a partir das concepedes que construfram 0 DSM, nao se pode, sem se tradizer, contrapor seus valores se supostamente néo se considerou nenhum valor. Em -apartda, a psicandlise no pode deixar de consideraros valores que, a0 menos, sejam. stados no que se considera o Ideal do ego, 0s ideais da pessoa, inclusive o superego sem. ais no se pode pleitear nenhum trabalho de analise. Conclusio, O DSM-IV como expressio da crise do terceiro paradigma Como conclusdo, & possivel afirmar que 0 DSMIV responde no a um novo paradig- -s instaurado em psiquiatria depois do fim do das estruturas psicopatolégicas, mas a um ‘momento de crise dele. A psiquiatria de hoje parece tender ase gar em trésniveis do desen- ‘viento cientifico atual: as neurociéncias como tronco fundamental, a genética ea conse- cia tecnolégica de ambas, a psicofarmacologia. Mas, mesmo que se tivese estabelecido == novo paradigma, nao se construiram elementos diagnésticos¢ classifcatsrios coerentes 7 essas disciplinas. Quero dizer que, ao se construirem de acordo com esse suposto novo caradigma, deverlamos nos deparar com a consideragao dos mecanismos neuronais, neu- transmissores e genéticos, assim como com os efeitos psicofarmacolégicos no comporta- =ento e com os elementos do sistema nervoso central para fundar uma nova nosologia com ges de ser cientifica ou de se inscrever nas ciéncias biol6gicas. Nao 60 caso do DSMAV .ecorresponde, entao, a meu critério, a um momento de crise do terceiro paradigma. Prova- "mente seja por iso que no se arvora ase apoiar aparentemente em nenhuma teoria, mas -mmina submetendo-se ante um empirismo radical. E também, como dizem os propésitos e randamentos sobre os quas se apoia,esté consiruido a servigo da esatistca ‘As consequéncias disso deveriam ser avaliadas. O que pode acontecer em popu- es em que uma porcentagem alta de seus habitantes sofre destes ou daqueles trans- ‘comes que, por sua vez, por se codificarem no manual precisam ser medicados? E, como scbemos, 0s efeitos colaterais so numerosos e bastante prejudiciais para a vida cotidiana £28528 pessoas, ¢ 0s conhecimentos sobre esses medicamentos, por mais avangados que siejam, acarselam uma gama desconhecida de mecanismos cujas consequéncias séo in- alculiveis. Mas € esta questdo dos efeitos colaterais 0 que mais pode nos preocupar, jé ue sabemos sobre os efeitos ou sobre os chamados “danos colaterais” de certas medidas ovemamentais, das guerras, dos totalitarismos, das invasGes preventivas, das leis de exce- slo, por que nao acrescentar, das classificagées, dos diagnésticos médicos, especialmente psiquidtrices, que permitem discriminar e se convertem inevitavelmente em instrumentos a destacar defeits, inclusive utlizarem-se como injrias ‘Ags psicanalistas, interessa-nos e nos confrontamos com os aparelhos da chamada satide publica, das estatisticas, dos diagnésticos e das clasificagdes, porque acabamos (tora negro de psicopatolgiacontemportnes + 22 sendo testemunhas das consequéncias subjetivas, porque somos parte dessas populagdes, porgue nada do que acontece no mundo pode n0s se alheio pela especificidade de nossa pratica e por participar de uma comunidade. ta crise do terceiro paradigma que descreve Lantér-Laura na qual estamos imersos Jevou a psiquiatria e a psicandlise a tomarem caminhos divergentes. Separacao necessaria depois de um periodo em que a convivéncia tao préxima entre ambas as diciplinas teve consequéncias inflizes. A psicandlise esté agora mais live para escolher seus caminhos, seus concetos, sua price, sua existéncia independente das préticas “psi” (psicologia, psi- aquiatra, psicodinémica etc), Por sua vez a psiquiatria, Wberada da influéncia psicanalitca, pode ser plenamente tuma especilidade ca medicina construir seus fundamentos biolog- cose se nutrir de elementos sociologicos, cognitivos, psicoldgicos ete. Esta separacSo pode se cotidianamente percebida ao se lerem osinteresses, os modos de tratamento, os conceitos com que uma e outra disciplina trabalham. Por sua vez, essa se- ‘paracio permite uma colaboragSo miitua muito melhor, jé que se abre a possbilidade para hhaver alguma, sem a necessidade de se confundis, se misturar, se imiscuir uma na outra, ste perniteefetuar um elogio 20 DSW. suficente que ndo se considere asi mes- mo como a verdade ou possuidor da verdade, nem tampouco pode sé-io a psicandlise,¢ {que se stue claramente neste lugar de ser um instrumento da época da crise do tereiro paradigma, Ao nao se fazer uma apologia da falta de teoria, 20 ndo tomar consciéncia de {que basear-se no empirismo, no comportamento, 10 observvel, nos dados da sociologia, de que colocar-se a servi da etatistica é tomar partido, entéo 0 DSM-IV um instrumento ssumamente valioso para os fins para os quais foi construfdo. ‘O que facltaré para que nds psicanalistas nos ocupemos de nossa prética ética do inconsciente sem estabelecer nenhum sincretismo com a psiquiatria. Referéncias bibliogrificas “Aveenscan Psvemataie ASsocraTi0N. DSM-IV. Manual Diagnstico y Estadistico de les Trastornes Mente les, Bareelona: Masson, 202 ‘Benaut, R-Aproposl to classify happiness as a psychiatric disorder. in Journal of Media Ethics. 1992, 18, p. 94-98. CCovrtznas, M. M, Claificacisn diagnéstica de ls trastomos del desarrollo In Laiansacs, H. Dser- ello de Nien Conteo. Buenos Aires: Pais, 2004 Fauanr J-P-Dela nonexistence de la monomanie. In Des Maladies Meniales ct des sles ‘Aliens. Pais: J-B. Bailie, 1864 ‘Lacan, J su que Sit de une Béoue que s‘Aile a Mourre.Inéito. Lavrdat-Lavna, G. Ensay sobre ls Paradigna de la Psiauintria Moderna. Madi: Tiacastela, 2000.

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