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Tratado Descriptivo do Brazil em 1587

Fernanda Trindade Luciani


Apresentação da obra no Acervo Digital da Biblioteca Brasiliana Guta e José Mindlin.
Disponível em: <https://www.bbm.usp.br/node/96>

Apenas no século XIX os dois manuscritos quinhentistas de Gabriel Soares de


Sousa, Roteiro Geral com largas informações de toda a Costa do Brasil e Memorial e
Declaração das Grandezas da Bahia de Todos os Santos, de sua fertilidade e das notáveis
partes que tem, foram reunidos e publicados sob sua autoria. Foi o historiador brasileiro
Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878) quem organizou essa primeira edição da obra,
em 1851, a partir do cotejamento de cópias dos manuscritos encontradas em arquivos
europeus, uma vez que os textos originais não são conhecidos, e atribuiu a autoria a Soares.
Uma segunda edição, também disponível aqui, foi organizada pelo historiador, sendo
publicada em 1879, logo após sua morte. Ainda que tenham permanecidos inéditos e
anônimos ou apócrifos por mais de dois séculos, os escritos de Gabriel Soares eram bastante
conhecidos desde o século XVI por meio de cópias que circulavam não somente na Península
Ibérica, mas em outros países europeus, aparecendo citados por renomados autores. Entre eles
destacam-se Pedro de Mariz, já no próprio século XVI, Frei Vicente de Salvador, Antônio
Leon Pinelo e Simão de Vasconcelos, no século XVII, Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão,
no século XVIII, e Pedro Manuel Ayres de Cazal e Von Martius, no século XIX.
Pouco se sabe sobre as circunstâncias da vinda ao Brasil do português Gabriel Soares
de Sousa ou a respeito dos dezessete anos que viveu na colônia e das condições em que
colheu as informações sobre a costa do Estado do Brasil e a capitania da Bahia de Todos os
Santos. Há indícios de que, quando decidiu desembarcar no litoral baiano, provavelmente em
1569, fazia parte de uma frota que partiu de Lisboa em direção a Monomotapa, atual
Moçambique, com a finalidade de explorar as cobiçadas minas africanas. Fixando moradia ao
sul do Recôncavo Baiano, tornou-se um dos homens principais da capitania, proprietário de
terras, casas na cidade, bois e escravos, chegando a ocupar o cargo de vereador da Câmara da
Bahia. Em meados da década de 1580, tendo herdado alguns mapas e pedras preciosas de seu
irmão que falecera no Brasil, Soares deixava as terras americanas rumo à Espanha com a
intenção de solicitar ao rei Filipe II (I de Portugal) apoio a sua empreitada de exploração das
terras coloniais para além do Rio São Francisco, em busca de riquezas minerais.
Foi durante o tempo em que esperava, em Madri, o despacho real a respeito de suas
solicitações que, no intuito de reforçar a importância de seu plano e demonstrar conhecimento
sobre a colônia, Gabriel Soares tirou a limpo em um caderno suas lembranças do tempo em
que viveu no Estado do Brasil, como relata em carta de 1º de março de 1587 enviada ao
valido do rei Cristóvão de Moura, a qual precedia os manuscritos. Na primeira parte, Roteiro
Geral, seu autor descreve a costa brasileira desde o Maranhão até o Rio da Prata; na
segunda, Memorial e Declaração das Grandezas da Bahia, um texto mais longo, oferece um
minucioso relato das plantas, animais, rios, relevo, povos nativos, povoações, vilas e
engenhos da capitania da Bahia, especialmente do Recôncavo.
Essas pormenorizadas exposições sobre o Brasil, com destaque para as potencialidades
das possessões americanas, não são desinteressadas, voltadas apenas para o conhecimento em
si mesmo. Soares de Sousa vislumbra sempre nos objetos relatados as possibilidades de
engrandecer as riquezas da terra e de seus moradores e, ao mesmo tempo, da Coroa; em outras
palavras, de concretizar o “projeto” colonial metropolitano. Pode-se dizer que o princípio
organizacional do texto é demonstrar em caráter promocional – no que devemos considerar as
prováveis hipérboles das descrições de Soares – quão proveitoso seria ao rei incentivar a
exploração daquelas terras e, assim, lhe conceder as mercês requeridas para sua expedição
pelo sertão. Dessa forma, seus escritos inserem-se num tipo de literatura produzida pelos
descobrimentos que tinham o rei como destinatário final; seus autores os escreviam com o
objetivo de obter privilégios reais e a Coroa se valia desses relatos, que, junto às
correspondências coloniais, a aparelhavam para uma administração mais eficiente de suas
distantes possessões ultramarinas. Essa tecnologia de poder se inscrevia em uma prática das
monarquias ibéricas que consistia em centralizar a distribuição de mercês por serviços
prestados. As concessões de Filipe II a Gabriel Soares inserem-se nesse contexto da união das
Coroas ibéricas de incentivo à expansão territorial e à procura por veios minerais nas
possessões portuguesas.
Se, por um lado, essas minudenciadas descrições do Novo Mundo despertaram
interesse dos contemporâneos, como viajantes, religiosos e homens que viviam na colônia ou
exploravam as terras americanas; por outro, considerando a escassa produção documental do
início da colonização portuguesa, elas tornam oTratado Descritivo do Brasil em 1587 um dos
mais importantes documentos para os interessados e especialistas no período colonial. Sua
descrição permanece sendo a melhor fonte de formação sobre a Bahia do século XVI e vem
sendo amplamente utilizada pela historiografia desde o século XIX, além de servir a
diferentes campos de pesquisa como a antropologia e a botânica.
Sugestões de leitura
AZEVEDO, Gabriela Soares de. Leituras, notas, impressões e revelações do Tratado
Descritivo do Brasil em 1587 de Gabriel Soares de Sousa. Dissertação de Mestrado, UERJ,
2007.

LUCIANI, Fernanda Trindade. Prefácio. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. São Paulo,
Hedra, 2010.

RAMINELLI, Ronaldi. Viagens ultramarinas. Monarcas, vassalos e governo à distância. São


Paulo, Alameda, 2008.

VARNHAGEN, Francisco Adolpho de. Reflexões criticas sobre o escripto do seculo XVI
impresso com o título de Notícias do Brasil no tomo 3º da Coll. De Not. Ultr. Acompanhadas
de interessantes notícias bibliographicas e importantes investigações históricas. Lisboa, Typ.
da Academia, 1839. Revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro,
1940.

Sobre a autora
Fernanda Trindade Luciani é doutoranda em História Social pela Universidade de São Paulo.

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