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SILVIANO SANTIAGO
RESUMO
Como se esculpidos na cabeça dum alfinete, esse aluno, aquele livro e seu autor
podem ser hoje vistos de maneira emblemática como corresponsáveis pela
produção intelectual do século 20 brasileiro, inaugurada no ano de 1900 pelas
memórias de Joaquim Nabuco, "Minha Formação". Nesse título o vocábulo --
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então definitivamente conceito-- também tinha ganhado direito de cidadania em
língua portuguesa e carreava o significado da sua importância no processo de
amadurecimento pessoal e cultural do indivíduo e do cidadão brasileiro na
passagem do século 19 para o 20. A boa formação era então --e até hoje,
infelizmente--uma dádiva da família ou do Estado aos privilegiados.
No correr do século 20, o conceito de formação se torna mais e mais elástico por
nossas terras. Em 1942, o historiador Caio Prado Jr. investigava a "Formação do
Brasil Contemporâneo", enquanto o economista Celso Furtado, nos anos 1950, a
"Formação Econômica do Brasil". E um dos prováveis discípulos de Antonio
Candido, Paulo Eduardo Arantes, de perfil semelhante ao do universitário já
mencionado, informava os estudiosos sobre --e o cito-- "a formação da filosofia
uspiana (uma experiência dos anos 1960)". Arantes aproveitou o adjetivo
"uspiano" para lançar sua irônica defesa da boa formação: "[...] afinal um
pastiche programado em início de carreira é bem melhor do que uma vida inteira
de pastiches inconscientes". T. S. Eliot se referia a esse fenômeno quando, nos
anos 1920, estabeleceu a célebre distinção entre "talento individual" e "tradição".
JOGOS
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Por uma dessas coincidências extraordinárias, a data do século privilegiado ""o
18' coincide com a idade em que o estudante brasileiro presta normalmente o
vestibular para a faculdade eleita. A data do século e a idade do aluno --no que
se refere às respectivas formações-- são coincidentes, embora não sejam
gratuitas. Na Europa, o conceito de formação é cunhado pelo idealismo alemão
e se torna peça importante no surgimento do ideário iluminista. Confunde-se com
a "paideia" dos gregos e o "humanitas" dos latinos. Os três traduzem a
indispensável busca pela excelência humana para chegar à idade madura letrada,
tanto no plano individual quanto no plano comunitário e coletivo.
TRILHOS
Logo após a Segunda Grande Guerra Mundial, o Primeiro Mundo atravessa uma
fase de grande euforia econômica e social e, de repente, é questionado nas raízes
pelo drama político das diversas nações colonizadas do continente africano, de
que foi exemplo maior a Guerra da Independência Argelina (1954-1962). As
colônias lutam a ferro e fogo contra o poder metropolitano. Buscam a
independência das potências colonizadoras europeias, conquistada pelos
brasileiros ainda no século 19.
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Brasil, de 1500 ao presente, a vacina que nomeou "manifestações literárias".
Com isso, imuniza o sistema competentemente estetizado, preservando-o do
descarrilamento pela África colonial. Libera o estudioso das letras do potencial
semântico oferecido pelos quase dois séculos e meio de vida em terras brasileiras
do vírus colonial lusitano.
OCEANO
Com o corpo tomado por virose pós-colonial, deliro. Instruído pelos intelectuais
e escritores africanos e pela França, apaixono-me pela poesia de Aimé Césaire.
Leio as revistas "Temps Modernes" e "Présence Africaine".
IMPULSO
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Tendo por impulso as consequências funestas do duplo descarrilamento, falo
sobre o período que vai de 1962, ano em que chego a Albuquerque, a 1972, ano
em que inicio o movimento de regresso ao Brasil universitário.
Sem ser mero silêncio, o outro brasileiro não seria --embora estivesse sendo
dado pela tradição eurocêntrica-- o mesmo europeu. Duplicata. Por essa fórmula
simplificada, fui levado a questionar o conceito de identidade e a conjurar,
enfatizando-a, a noção de diferença, de que Jacques Derrida será o grande
teórico a partir de 1967.
Como me valer do bom aprendizado teórico e ler textos --sem prejulgá-los-- que
escapam totalmente aos princípios estéticos determinados pelos formalistas
russos da qualidade literária? Antes de ser uma disciplina de estudos, a literatura
me fornecia tanto uma metodologia de leitura quanto alicerçava os primeiros
passos no que viria a ser definido como teoria pós-colonial e estudos culturais.
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Jogava e, munido das fichas de jogador, fiz uma aposta. Catava metáforas no
texto da época colonial e, a partir delas, apreendia o modo como cada uma servia
para montar e revelar, na superfície meramente descritiva do texto, as manobras
eficientes do colonizador, embora enrustidas a olho nu e ainda cercadas de
mistério nas primeiras narrativas historiográficas que iluminavam o Brasil.
COBAIA
Minha primeira cobaia foi a "Carta de Pero Vaz de Caminha", que líamos na edição
em português arcaico e moderno dos Nossos Clássicos, evitando com cuidado a
poderosa edição de Jaime Cortesão. Intuía que, pelo privilégio concedido a
certa(s) metáfora(s), o texto da carta abria uma fascinante descendência na
história da cultura e da literatura brasileira, cujos tataranetos no modernismo
brasileiro são "Macunaíma" (Mário de Andrade) e "Poesia Pau-Brasil" (Oswald de
Andrade).
A primeira metáfora privilegiada, dada, aliás, como "principal" pelo próprio texto,
foi "semen" em latim, semente em português, e sua descodificação pode ser feita
a partir do sintagma de origem bíblica: "Semen est verbum Dei" (A semente é a
palavra de Deus).
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Ainda no excepcional 1959, Sérgio Buarque de Holanda publica o esplêndido
"Visão do Paraíso". Por sua leitura eu acertava (como se acertam ponteiros de
relógio) minha proposta: "Como nos primeiros dias da Criação, tudo aqui era
dom de Deus, não era obra do arador, do ceifador ou do moleiro".
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produção literária nas metrópoles colonizadoras e sua disseminação inferior e
desafortunada nas colônias.
Foi naquela época que tive a ideia de introduzir nos estudos sobre literatura
comparada a noção de "entre-lugar", espaço negociável de leitura das literaturas
latino-americanas e das que passaram por processos semelhantes de
colonização, cujo principal intuito era dar o troco pela diferença (pela
originalidade), valor sempre neutralizado pela literatura comparada tradicional.
MILÊNIO
A exaustão do paradigma não o aliena. Assinala, antes, que ele está a perder a
condição de prioritário. Novas condições materiais definem o novo milênio
brasileiro. Elas passam a exigir outro feixe amplo e crítico de discursos afins e
complementares, que constituirão novo paradigma --o da "inserção" do Brasil no
conjunto das nações.
Nota: Versão mais longa deste texto será apresentada pelo autor na Universidade
Tres de Febrero, em Buenos Aires, no dia 2/10, em simpósio que o homenageia