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edições pedago
V. Y. M u d i m b e nasceu em 1941 em Jadotville, no
antigo Congo Belga, hoje República Democrática
do Congo. Foi seminarista durante a juventude,
mas afastou-se para se dedicar ao estudo das for-
ças que enformaram a história africana. Professor,
filósofo e autor de uma vasta bibliografia sobre
a história e cultura africanas, Mudimbe obteve
o seu doutoramento em filosofia pela Catholic
University of Louvain, em 1970. Em 1997 rece-
beu o Doutoramento Honoris Causa pela Uni-
versité Paris VII Diderot e, em 2006, recebeu a
mesma distinção pela Katholiene Universiteit
Leuven. Foi professor nas universidades de
Paris-Nanterre, Zaire, Stanford, e ainda no Have-
ford College. Ocupa actualmente a prestigiada
posição de Newman Ivey Professor of Literature,
na Duke University. Mudimbe é ainda o autor de
uma extensa produção poética, de vários ro-
mances e de várias obras no campo da linguística
aplicada. Durante a sua longa carreira, em que
os seus principais interesses se situaram sempre
no campo da fenomenologia e do estruturalismo,
V. Y. Mudimbe foi o presidente do Board of
African Philosophy e do International African
Institute [SOAS, University of London], tendo-se
também tornado membro honorário da Acadé-
mie Royale des Sciences d'Outre Mer (Bélgica),
da Société Américaine de Philosophie de Langue
Française, da Society for Phenomenology and
Existential Philosophy e, ainda, do World Institute
for Advanced Phenomenological Research and
Learning.
V. Y. Mudimbe é, incontornavelmente, um dos
grandes pensadores africanos do século XX.
\
^ àe Ciêfjc-
edições pedago
Colecção Reler África
Nota de Apresentação
Uma das lacunas do mercado editorial dos países de língua oficial
portuguesa é a ausência, em língua portuguesa, de obras de referência
de autores africanos e africanistas, que fizeram cátedra no domínio
dos chamados "estudos africanos" nas academias dos países anglófo-
nos e francófonos.
A Colecção Reler África pretende colmatar essa lacuna. Trata-se de
uma colecção especializada em temáticas africanas no domínio das
Ciências Sociais e Humanas. Ao inaugurar esta colecção, as Edições
Mulemba da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho
Neto (Luanda - Angola) e as Edições Pedago (Mangualde - Portugal)
pretendem criar um espaço de debate, alteridade e reflexão crítica
sobre o continente africano.
A colecção publicará obras, textos e artigos compilados de reconheci-
dos autores africanos e africanistas, que contribuam para a compreen-
são e a reinterpretação do continente africano.
Além de apresentar uma visão endógena (de dentro) do continente,
a colecção está aberta à comunidade científica internacional que tem o
continente africano como objecto da sua pesquisa.
Publicar e divulgar conhecimentos e saberes sobre África e provenien-
tes de África é, assim, um desafio que a colecção abraça, de contribuir
para a construção de uma nova epistemologia e uma nova hermenêu-
tica dos estudos africanos no espaço lusófono, livre de estereótipos e
de um olhar folclórico e exótico. Ao abraçar esse desafio, a colecção
pretende ser uma galeria de conhecimentos e saberes de África e
sobre África, que interpele os leitores e investigadores especializados
a reler África para compreendê-la e reinterpretá-la.
Luanda, 19 de Agosto de 2012.
Victor Kajibanga
(Coordenador da Colecção Reler África)
Copyright © 1994, Indiana University Press
Tradução para a Língua Portuguesa Autorizada pela Indiana University Press.
Todos os direitos reservados.
Título original: The Idea of Africa
© desta edição
Edições Pedago, Lda.
Título; A Idéia de África
Autor: V. Y. Mudimbe
Colecção: Reler África
Coordenador da Colecção: Victor Kajibanga
Tradução: Narrativa Traçada
Revisão do Texto: José Miguel Cerdeira
Design e Paginação: Márcia Pires
Impressão e Acabamento: Tipografia Lousanense
ISBN: 978-989-8655-19-6
Depósito Legal: 367856/13
Dezembro de 2013
A presente publicação é uma coedição das Edições Pedago e das Edições Mulemba
da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto, Luanda, Angola.
Nenhuma parte desta publicação pode ser transmitida ou reproduzida por qualquer
meio ou forma sem a autorização prévia dos editores. Todos os direitos desta edição
reservados por
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A Ideia de
AFRICA
Y. ï. MUDIMBE
edições pedago
Anthropologie ist jene Deutung des Menschen,
die im Grunde schon weiß, was der Mensch ist
und daher nie fragen kann, wer er sei. Denn mit
dieser Frage müßte sie sich als selbst erschüt-
tert und überwunden bekennen.
Prefácio
séculos antes. As genealogias e as causalidades, entre outros, são ape-
nas ferramentas utilizadas para organizar grelhas hipotéticas visando
a compreensão das transformações de paradigmas, da peculiaridade
das narrativas, do seu poder de negociação em termos culturais e
políticos. Assim, no que diz respeito à antropologia africana, é possível
que a questão mais relevante não se prenda com a unidade e a sig-
nificação do domínio; e muito menos com a criatividade, a originali-
dade e a sofisticação progressiva dos contributos trazidos por sábios
consecutivos, por exemplo, desde Tylor a Claude Lévi Strauss e Luc de
Heusch. Ao considerar as correntes do evolucionismo, difusionismo,
funcionalismo e estruturalismo como acontecimentos e ao abordar as
questões relativas às suas condições de possibilidade, presentes e pas-
sadas, é possível, em vez disso, formular uma pergunta fulcral: para
que configurações intelectuais servem elas de testemunho? De acordo
com esta perspectiva, afigura-se interessante notar que ninguém na
história da disciplina deve ser considerado "aberrante"; e, para um es-
tudante de história das ideias, a pergunta incómoda seria, por exemplo:
por que motivo Sir Evans Pritchard ou Meyer Fortes não são conce-
bíveis no século XVII e de que forma é possível compreender Herskovits,
Lévi-Strauss ou Mveng como produtos do século XX? Em suma, o ver-
dadeiro problema parece residir nas configurações epistemológicas e
nos tipos de práticas discursivas que propiciam.
Prefácio
Hoc Opus Eruditíssimo et
Dilectíssimo Magistro
WILLY BAL discupulus
gratus dedicat.
I. Os Símbolos e a Interpretação
do Passado Africano
Do Fado Francês de Hércules aos Espaços
Exóticos de Robert Burton
Credenda sunt omnia, nihil enim est incredible.
Facilia Deo omnia sunt, nihil est impossible.
- Ficino, Theol. Plat, 301
nunca permanece quieto e os marinheiros são tolos por se exporem assim a este
perigo; pois as águas são uma fiiria insana em movimento constante: e os ventos,
como tudo o resto, perderam o seu rumo, não sabem de onde vêm nem para onde
vão; e os homens que embarcam e se lançam ao mar nestas condições são os mais
loucos de todos... (AM, DTR, p. 116).
Em que acreditar?
Burton propõe uma utopia marcada pela interacção e a interde-
pendência entre os mitos e a criação de mitos. É evidente que Burton faz
a distinção entre os dois, mas é precisamente a partir da sua relação
que se dá a formulação de uma tese: os "selvagens" existem em toda a
parte, sendo imperativo o regresso ao modelo grego a fim de salvar o
tecido civilizacional. A geografia separa e estipula a priori universos de
loucura e selvajaria, por oposição aos universos que deveriam repre-
sentar e incorporar o juízo, a sabedoria e a civilização. Por conseguinte,
apesar da contiguidade entre os selvagens por dentro - devido à sua
corrupção moral e espiritual - e os selvagens por fora, efectivada no
tratado de Burton, a sua aproximação não afasta o desvio geográfico
nem o seu significado histórico e cultural, sendo possível estabelecer
uma relação entre este argumento e a fábula de Hércules e os pigmeus.
Tal como o tratado de Burton sobre a melancolia, ícones de Filóstrato,
comentado por Blaise de Vigenère, pertence igualmente a um gênero
edificante. Em ambos os casos, os paradigmas míticos substituem-se
sucessivamente e, com a maior das idealizações, cada paradigma jus-
tifica a cultura como um projecto incompleto, estando os seus valores
superiores e fundamentais, a par do seu destino, inscritos nas marcas
que a tornaram possível. O discurso é autocentrado e promove mani-
festamente a vocação cultural inequívoca que pretende transmitir, con-
trabalançado a identidade da sua experiência histórica e espacial com
aquilo ou aqueles que ocupa(m) as margens do seu espaço concreto
e simbólico. O selvagem [Silvaticus] vive nos bosques, nas florestas,
bem longe da polis, da urbs; e, por extensão, "selvagem" pode designar
qualquer ser marginal, forasteiro, desconhecido, diferente e, por isso,
Em 1484, teve lugar uma cerimônia mais elaborada por ocasião da to-
mada de posse oficial da Costa da Guiné na África Ocidental por D. Diogo.
A cavalgada prosseguiu [...] rumo a uma árvore de grandes dimensões, não muito
distante da Aldeia, considerada o local mais adequado para a fortaleza pretendi-
da; as armas reais foram imediatamente colocadas sobre a árvore e um altar foi
construído por baixo; toda a tripulação participou na primeira missa celebrada na
Guiné. (Keller etal., 1938, p. 24)
Após ter dado ordens no navio sobre o que iria ser feito e tendo elegido alcaides e
regedores para que houvesse alguém para tomar posse do porto e daquilo que viria
a ser descoberto, desembarquei com doze soldados...
Chegando a um monte que se revelava um local adequado para a tomada de posse do
porto e do país em nome de Sua Majestade, constatando que eu e o resto do grupo
havíamos desembarcado e atravessado o país e o porto silenciosa e pacificamente,
num território sob o seu jugo, fi-lo em nome do Rei D. Filipe, nosso senhor, na devida
forma legal, com Diego Vasquez Mexia (um dos alcaides eleitos para este propósito)
enquanto representante da )ustiça, colocando uma cruz enquanto marca da fé cristã
e da posse do porto e do país tomada em nome de Sua Majestade, cortando ramos
das árvores que cresciam em redor e executando as restantes cerimónias habituais
(Keller et a/., 1938, p.40).
A Ideia de África
subsiste o desafio de trazer os conceitos e as hipóteses até ao laboratório do campo
transcultural, e de testar o seu valor de generahzação ou extrair novas generaliza-
ções. Porventura, a palavra "desafio" é demasiado austera para o nosso significado
implícito. Na tradição do saber humanístico, trata-se de um convite à descoberta de
recursos vastos, susceptíveis de nos informar e deleitar em prol da literatura e do
pensamento mundiais. (Herskovits, 1972, p. 241).
- Heródoto, II, 35
L
selecção dos excertos, procurei, de facto, escapar à tentação de psi-
cologizar de modo a que a minha exegese fosse uma "reprodução"
quase literal do original, "redescrevendo-o" na sua própria "violência
textual".
Mapa do mundo no tempo de Heródoto, 440 a.C. Reproduzido, com autorização dos editores
e da Loeb Classical Library, de Heródoto, I, Livros l-ll, tradução de A. D. Godiey,
Harvard University Press, Cambridge, Mass.
Da Mauritânia ao rio Cebu, à colônia de Banasa e A região de Atlas: incolarum neminem inter-
à cidade de Salé (HA/, V, i, 1-5): existe uma série de diu cerni, silere omnia ["não se vislumbra ne-
cidades romanas - oppida - assim como aldeias nhum habitante, o silêncio impera"] (HN, V, i,
autônomas e acolhedoras. 6). Spatium ad eum immensum incertumque
["É uma região de vastas dimensões e inex-
plorada"] {HN, V, i, 7). Do Monte Atlas para
ocidente: território selvagem e florestas
densas {HN,V,\, 8-16).
A costa: sita oppidum ex adverso Malacae in His- A província de Tingitana, habitada por Mou-
pania situm, Syphacis regia, alterius iam Maure- ros, Massesilos, Getulos, Baniurae, Nesimi.
tania [A cidade real do Rei Sifax jaz defronte de Produz elefantes [HN, V, i, 17).
Málaga, em Espanha, e corresponde à segunda
Mauritânia"] (HN,V, i, 18).
Numídia (ou Metagonita): uma região de Nôma- O deserto, seguido da região dos Garaman-
d a s {vero nômades a permutandis pabulis, mapalia tes, para lá dos habitantes de Phasania e
sua, hoc est domos, HN, V, ii, 22). [O seu povo (é Fezão no Saara: excipiunt saltus repleti fer-
denominado de) Nômada devido ao seu hábito de raram multitudine, et introrsus elephanto-
mudar constantemente de pastagens, levando as rum solitudines ["Existem florestas repletas
suas mapalia, ou seja, as suas casas consigo.] Esta de uma multiplicidade de animais selvagens,
região não produz nada de extraordinário a não além de paradeiros isolados de elefantes"]
ser mármore e animais selvagens. (HN, V, iv, 26).
A África propriamente dita (Tunísia e Tripoli) A costa do deserto e os seus habitantes:
engloba também a região de Bizâncio com uma os Marmáridas [desde El Bareton a Sirte
fertilitatis eximiae, cum centesima fruge agricolis Maior), seguidos dos Acrauceles, Nasamões,
fenus reddente terra ["com uma fertilidade excep- Asbistas, Maças e Amantes que constroem
cional cujo solo rende aos agricultores o cêntu- casas de sal-gema no deserto onde vivem
p l o " ] ( H N , V, iii, 2 5 ) . Ad hunc finem África a fluvio {HN, V, v, 34).
Ampsaga popuius DXVI habet qui Romano pareant
império ["entre o rio Ampsago e esta fronteira,
África é composta por 516 povos que assumem
fidelidade a Roma"] [HN, V, iv, 29).
0 distrito de Cirenaica ou Pentapolitana regio [a A sudoeste dos Amantes, os habitantes de
região das cinco cidades] marcada pelas tradições cavernas, a Montanha Negra, seguida da
gregas (HN,V,v, 31). região dos Garamantes. Ad Garamantes iter
inexplicabile adhuc fuit ["Até ao momento,
não foi possível chegar à região dos Gara-
mantes" (WW,V,v,38).
Líbia Mareota confinada pelo Egipto: regio Mareo- Povos do interior (para sul): Getulos, Líbios
tis Libya appellatur Aegypto contermina ( H N , V, v, egípcios, Etíopes brancos, Perorses, etc. Para
39). leste: habitantes de cavernas, tribos etíopes,
egipãs, Sátiros, pemilongos, etc {HN, V, viii, 46).
Egipto: próxima Africae incolitur Aegyptus, intror- Etiópia: et de mensura eius varia prodidere
sus ad meridiem recedens donec a tergo praeten- ["A sua extensão foi tema de vários relatos"]
dantur Aethiopes ["0 Egipto é a região habitada (HN,V,xxxv, 183).
vizinha de África, estendendo-se para sul e para o usos e costumes dos Cireneus.
interior onde faz fronteira com os Etíopes na reta-
guarda"] (HN, V, ix, 48).
Ad hunc finem Africa a fluvio Ampsaga populos DXVI habet qui Romano pareant
império; in his colonias sex, praeter iam dietas Uthinam, Thuburbi, oppida civium
Romanorum XV, ex quibus in mediterrâneo dicenda Absuritanum, Abutucense, etc.
[HN, V, iv, 29)
Entre o rio Ampsago e esta fronteira, África é composta por 516 povos que assumem
fidelidade a Roma. Estes incluem seis colónias Uthina e Thuburbi, além das anteri-
ormente mencionadas; 15 aldeias com cidadania romana, entre as quais importa
referir as de Absurae, Abutucum, etc., situadas no interior
L
de Plínio espelha fielmente a descrição de Heródoto, embora com
niaior minúcia. Á concepção geográfica global formulada por Heró-
doto em relação aos monstros - cinocéfalos e acéfalos (IV, 191) - que
habitam a região oriental da Líbia opõe-se o quadro curioso de Plínio
Mémnon com um homem negro. Vaso grego, século VI a.C. Direitos reservados
do Museu Britânico, Londres.
L
clima é referido como uma explicação suplementar. Todavia, a distân-
cia geográfica constituiu, desde sempre, o critério de medição e classi-
ficação. Plínio começa por tecer o seguinte enunciado sobre os nomes
i
A Ideia de Africa
dois pontos: em primeiro lugar, apesar das diferenças que estão en-
volvidas, "a cidade grega, na sua forma clássica, caracterizava-se por
uma dupla exclusão: a exclusão das mulheres, o que a tornava um
'clube de homens'; e a exclusão dos escravos, o que a tornava um 'clube
de cidadãos'. (Podemos até considerá-la uma exclusão tripartida em
virtude da ostracização dos estrangeiros; contudo, não restam dúvidas
de que o tratamento dos escravos corresponde ao tratamento dos es-
trangeiros levado ao extremo.)" (In Gordon, 1982, p. 188). Em segundo
lugar, "independentemente de nos referirmos às Amazonas ou aos Lí-
cios, é a polis grega, tal clube de homens, que é objecto de definição em
termos do seu oposto por parte dos seus historiadores e 'etnógrafos'
[...]. A afirmação de Heródoto segundo a qual as instituições do Egipto
são exactamente contrárias às dos Gregos (2, 35) afigura-se um exem-
plo magnífico desta técnica de inversão ou reversão" (In Gordon, 1982,
p. 190).
A ginecocracia das Oiorpata e a mítica dulocracia de uma cidade de
escravos (sempre localizada fora das fronteiras da Grécia - ver Vidal-
Naquet in Gordon, 1982, p. 189) são inversões estruturais do paradig-
ma grego relativo à civilização e organização do poder. A base desta
filosofia pode ser sintetizada em duas fórmulas: as mulheres estão
para os homens como os escravos estão para os cidadãos; uma gine-
cocracia ou dulocracia está para a polis/urbs como a barbárie ou a sel-
vajaria está para a politikon.
Segundo Simónides, a politikon é um locus de conhecimento, conferindo
ao verbo dokein um poder superior ao do termo religioso e tradicional,
aletheia. O homem é formado pela cidade (que o educa, cria e reali-
za). Simónides escreve: TTOAIO" 'avôpa ô l ô a c T K e l . Conforme observado
por M. Detienne, "dokein corresponde, de facto, a um termo técnico do
vocabulário político. Trata-se de um verbo exemplar de decisão políti-
ca" (1967, p. 117). Simónides foi o primeiro poeta a celebrar os feitos
dos cidadãos que se sacrificaram em nome da cidade ou a honraram
através das suas acções. Assistiu-se, na época, ao despontar de um
novo conceito relativo ao "homem saudável", ilustrado pelos heróis na-
cionais, os atletas e, claro, os corajosos colonos que levaram a cabo a
expansão da politikon e dos seus valores em territórios estrangeiros. A
partir do século V, uma concepção democrática e acentuadamente secu-
lar procedeu à definição de normas intelectuais, entrelaçando o termo
dokein com o seu parente etimológico, doxa, o único modo de conhecer
as coisas, que, segundo Platão e Aristóteles, sofreu uma adaptação a fim
de acomodar um mundo contingente e ambíguo (ver Aubenque 1963;
Detienne 1967). O campo semântico da politikon estabelece o espaço
prático da verdade através de conceitos como politikos (o que é próprio
Black Athena
Por fim, gostaria de regressar a uma questão crucial: o título Black Athena.
Devo reconhecer que o sugeri inicialmente como um dos títulos possíveis mas,
após uma reflexão mais aprofundada, foi meu desejo alterá-lo. Porém, o meu
editor insistiu em mantê-lo, argumentando: "Os negros já não vendem.
As mulheres já não vendem. Mas as mulheres negras ainda vendem."
- M. Bernal, Arethusa, Outono de 1989, p. 32
i
foi o produto da mistura de culturas, na seqüência de uma conquis-
ta encetada no norte por Gregos pertencentes aos primeiros povos
'pré-helénicos' e falantes das línguas indo-europeias" (1991, p. 1).
Trata-se de um projecto ambicioso. O volume de 1987 começa por
distinguir um modelo de um paradigma. Um modelo é artificial e ar-
bitrário, assumindo-se como "um esquema reduzido e simplificado de
uma realidade complexa" (1987, p. 3). Assim, com base nesta definição,
um modelo pode ser mais produtivo ou fiável do que outro "em termos
da sua capacidade de explicar as particularidades da 'realidade' que
é analisada" (1987, p. 3). Para Bernal, um paradigma corresponde a
"modelos ou padrões de pensamento generalizados que são aplicados
a vários aspectos, ou todos, da 'realidade' tal como é apreendida por
um indivíduo ou uma comunidade" (1987, p. 3]. Tendo esclarecido a
distinção entre modelo e paradigma, passemos ã tese central de
Bernal: a destituição do modelo ariano. Bernal escreve o seguinte:
Se a razão estiver do meu lado quando exorto à destituição do modelo ariano e à
sua substituição por um modelo antigo revisto, será necessário repensar as bases
fundamentais da "civilização ocidental" e ainda reconhecer a presença do racismo
e do 'chauvinismo continental' em toda a nossa historiografia, ou filosofia de es-
crever a história. O modelo antigo não apresentava lacunas "internas" de relevo ou
insuficiências na sua competência explicativa. Foi derrubado por motivos externos.
Considerar a Grécia o fruto da miscigenação de europeus nativos com africanos e
semitas colonizadores teria sido absolutamente impensável para os românticos e
racistas dos séculos XVIII e XIX, sobretudo porque a Grécia era entendida como o
epitome da Europa e a sua infância pura. Por conseguinte, urgiu derrubar o modelo
antigo e substituí-lo por outro mais aceitável. (1987, p. 2).
129V.Y.MudimbeAldeiade Africa
cuja explicação se cinge a factores externos - ou seja, pressões políticas e sociais - e
a ascensão do modelo ariano, dotado de uma componente interna significativa - por
outras palavras, os avanços do próprio saber desempenharam um papel importante
na evolução do novo modelo. (Bernal, 1987, p. 330).
131V.Y.MudimbeAldeiade Africa
A história do "pensamento racial" deve ser separada do "racismo"
científico, preconizado por figuras como De Gobineau em meados do
século XIX. Ironicamente, a história incrível do racismo teve lugar em
França quando os nobres prussianos, sob a liderança de Frederico
II, combateram a ascensão da sua própria burguesia nacional. No
século XVIII, o Romantismo alemão surgiu introduzindo conceitos
como "raízes originais", "laços familiares", "personalidade inata" e
"pureza da linhagem". Porém, conforme apontado por Hannah Arendt
em Imperialismo, a segunda parte da obra As Origens do Totalitarismo
(1968), o pensamento racial é exterior a esta nobreza, enquanto o
racismo faz parte de uma cultura e de uma civilização. Segundo este
ponto de vista, o nazismo não foi acidental.
O segundo volume de Bernal apresenta os fundamentos da tese
constante no primeiro volume através de uma produção de "provas
arqueológicas e documentais" que atende à causa do seu "modelo an-
tigo revisto". Sumariamente, Bernal advoga de um modo convincente
que o "espaço mediterrâneo" constituía um espaço aberto e, nesse sen-
tido, promove uma tese difusionista por oposição à tese isolacionista
desenvolvida pelo modelo ariano. Enquanto marcas e provas, Bernal
debruça-se, em primeiro lugar, sobre a interligação das narrativas mi-
tológicas do Egipto e da Beócia (por exemplo, Sémele e Alcmena, Zeus
e Ámon, Atena Itónia e Atena Alalcomeneia, Posídon e Set, a origem
de Hércules, etc.). Em segundo lugar, descreve a influência do Egipto
sobre a Beócia e o Peloponeso no terceiro milênio a.C., a par da relação
susceptível de ser estabelecida entre Creta e o Egipto durante o Mé-
dio Império Egípcio, entre 2100 e 1730 a.C. Em terceiro lugar, reflecte
sobre os escassos vestígios arqueológicos e documentais a respeito
das campanhas de Sesóstris e das expedições do seu filho em África e
na Ásia (tal como referidas na inscrição de Mit Rabina). Com efeito, a
"idéia da marcha triunfante de um africano 'civilizado' não só pelo su-
doeste asiático como também pelas regiões de uma Europa 'bárbara'"
(1991, p. 273) parece seduzir Bernal. O seu argumento de que alguns
Hicsos, que haviam conquistado Creta e possivelmente Tera, eram fa-
lantes semitas (enquanto os restantes eram falantes indo-arianos ou
indo-iranianos) é mais apodíctico, e a sua explicação sobre a existência
de contactos econômicos e culturais entre o Egipto, a Mesopotâmia e o
Egeu a partir do século XV a.C. revela-se absolutamente esclarecedora.
A Pax Aegyptiaca terá imperado no Mediterrâneo oriental durante o
reinado de Tutmósis III, após 1470 a.C.
O período de formação da cultura grega deve sofrer um recuo [...] até aos séculos
XVlll e XVll a.C., na era dos Hicsos - retratada nos murais de Tera. É muito provável
II.oPoderdo ParadigmaGrego
incluiria Muntu, ou ser dotado de inteligência, Hantu, que indica "tempo"
e "espaço", e Kuntu, que expressa modalidades. Uma análise dos dados
lingüísticos do sul do Buganda e da região dos Grandes Lagos teria en-
riquecido a descrição de Ray a respeito da transformação personificada
por Kintu. Enquanto símbolo do Estado, o Kabaka era acolhido como "o
mais sagrado", o que explica a ambigüidade do seu corpo. Ray apresenta
descrições satisfatórias sobre esta ambigüidade a propósito dos códigos
de etiqueta, o corpo real, os meios reais, etc. Em Écrits sur Ia royauté
sacrée (1987) e The Drunken King (1982), Luc de Heusch observou e
estudou os mesmos fenômenos nas regiões de língua banta.
Nos capítulos seguintes, Ray trata de três temas interdependentes:
os santuários reais, o regicídio e o homicídio ritual, e, o Buganda e o
Antigo Egipto. Os santuários reais espacializam o poder político cuja
presença na terra está associada ao simbolismo do corpo do rei. No
capítulo final, o autor analisa com cautela "as especulações e as pro-
vas" acerca de uma ligação entre o Buganda e o Antigo Egipto. Centran-
do-se nos argumentos de E. A. Wallis Budge sobre a origem africana da
religião egípcia e na teoria racial de Charles G. Seligman, Ray constata
"a existência efectiva de semelhanças consideráveis entre o Buganda
e Antigo Egipto, algumas das quais bastante impressionantes" (1991,
p. 197) e acrescenta com demasiada sisudez que: "o problema dos
estudos comparativos de Budge, Seligman e Frankfort reside no facto
de estarem enredados em questões de teor histórico, antropológico e
interpretativo, tornando-os pouco esclarecedores" (1991, p. 199).
Quanto à Grécia Antiga e ã sua experiência multicultural, Bernal descurou
"outros aliados", nomeadamente Englebert Mveng, um padre jesuíta dos
Camarões que estudou em França e escreveu Les Sources grecques de
Thistoire négro-africaine (1972), assim como um livro maravilhoso intitu-
lado La Grèce antique devantla Négritude (1973) de Alain Bourgeois.
O empreendimento de Bernal ilustra a forma como a prática cientí-
fica está igualmente dotada de uma dimensão política, e o autor tem
perfeita consciência disso. Nas suas réplicas às críticas tecidas por de-
terminados classicistas, Bernal confessou candidamente no número
especial de Outono de 1989 da revista Arethusa, que o seu projecto foi
possível graças ao "retrocesso do anti-semitismo", acrescentando:
[...] se um negro afirmasse aquilo que proponho nos meus livros, a sua recepção
seria bastante diferente. Os enunciados seriam considerados parciais e partidários,
propulsores de um nacionalismo negro e, por conseguinte, postos de lado.
As minhas idéias permanecem tão escandalosas que estou convencido de que, se não
tivesse todas as cartas a meu favor, não teria beneficiado sequer de uma primeira
audiência, na qualidade de seu proponente. Contudo, o facto de ser branco, do sexo
138V.Y.MudimbeAldeiade Africa
exactamente no dia 22 de Janeiro de 1879, chegaram a Ujiji e, em Julho,
o Rei Rumoke do Burundi recebeu-os amistosamente, autorizando a
inauguração de uma missão católica. A primeira missão católica no
Congo foi instituída a 25 de Novembro na costa oriental do Lago Tan-
ganica, perto da foz do Rio Luwela em Masanze.
Por motivos políticos, Leopoldo almejava dispor somente de mis-
sionários belgas no seu reino africano pois, supostamente, identificar-
-se-iam com maior prontidão ao Catolicismo e o nacionahsmo belga.
Lavigerie, então cardeal, aceitou este intento e a próxima caravana
de Padres Brancos que partiu de Marselha em Julho de 1891 rumo
ao Congo incluía apenas belgas, entre os quais um jovem eloquente
chamado Victor Roelens. A esta primeira expedição "sagrada" exclu-
sivamente belga sucederam-se outras cuja missão era similar: labutar
pela conversão da África Central em colaboração com os colonos de
Leopoldo através de uma transformação do seu espaço, dos seus habi-
tantes e das suas culturas. Fazendo referência apenas às missões exis-
tentes na região antes de 1911, salientemos os Scheutistas em 1888,
as Irmãs da Caridade de Gent em 1892, os Jesuítas em 1893, os Tra-
pistas de Westmalle e as "Irmãs Brancas" [o homólogo feminino dos
Padres Brancos] em 1895, as Franciscanas Missionárias de Maria em
1896, os Padres do Sagrado Coração de Jesus em 1897, os Norbertinos
de Tangerloo em 1898, os Redentoristas em 1899, os Espiritanos em
1907, os Irmãos Cristãos em 1909, os Beneditinos e os Capuchinhos
em 1910 e os Dominicanos, Salesianos, Maristas e as Irmãs da Cruz de
Liège em 1911. Várias outras Ordens religiosas seguir-se-iam a este
exército sagrado. Em todo o caso, o número de missionários floresceu.
Em 1909, havia 191 sacerdotes católicos no Congo. Em 1920, chega-
ram aos 471, mais 11 escolásticos, 175 irmãos e 13 auxiliares laicos.
Em 1930, verificou-se um aumento exponencial: 639 sacerdotes, 16
escolásticos, 252 irmãos e 27 auxiliares laicos. Além disso, as Ordens
de irmãos desprovidas de uma componente sacerdotal ascenderam a
59 membros em 1920,110 em 1930 e 701 em 1939. Quanto às freiras,
a evolução quantitativa revela-se igualmente surpreendente: 283 mis-
sionárias em 1920, 618 em 1930 e 1631 em 1939 (ver De Moreau,
1944].
Estes números traduzem um movimento incrível: uma vontade de
converter, transformar e mudar radicalmente um espaço e os seus ha-
bitantes. Em nome da fé (o Catolicismo] e de um apelo nacionalista
(a expansão da Bélgica], jovens belgas de ambos os sexos rumaram à
África Central, impelidos pela crença de que poderiam engendrar uma
ruptura histórica na consciência e no espaço dos africanos. Designar
este acontecimento de "imperialismo" não fornece - nem pode fornecer
140V.Y.MudimbeAldeiade Africa
trabalharam no Vicariato do Congo com os Scheutlstas, na Comuni-
dade de Matadi com os Redentoristas e em Katanga com os Benedi-
tinos.
Resumidamente, a divisão das ordens e a consequente especializa-
ção das regiões assumem um significado importante: a necessidade de
respeitar, pelo menos em principio, carismas e vocações específicos de
acordo com o preconizado por uma tradição religiosa. É possível pro-
ceder a uma descrição estereotipada de algumas dessas vocações: um
Beneditino, em regra contemplativo, obedece ao regime da oração e do
trabalho, vivendo num mosteiro isolado do mundo; um Dominicano,
embora monge, é um homem de acção, versado na filosofia e teologia
cristãs de modo a defender e ilustrar intelectualmente a pertinência do
Cristianismo; um Franciscano, seguindo a tradição de São Francisco,
tende a testemunhar a magnificência da criação de Deus e, por meio de
uma vida de pobreza, ilumina a glória e a liberdade dos filhos de Deus;
conforme têm sido encarados, e bem, os Jesuítas são soldados que,
perinde ac cadaver, dão o melhor de si para promover o Catolicismo; os
Scheutistas, cuja organização data do século XIX, correspondem a uma
comunidade de homens que realizam uma autopreparação rigorosa
como missionários em países estrangeiros, à semelhança dos Padres
Brancos e das Irmãs Brancas. Segundo o Direito Canónico e a Tradição,
a maioria destas Ordens são conhecidas como Ordens religiosas e dife-
rem do clero secular que, na Europa, é habitualmente responsável pela
vida espiritual dos cristãos, pela actividade das paróquias e por grande
parte do trabalho encetado nas dioceses católicas. As Ordens apenas
intervêm em assuntos mundanos mediante um mandato excepcio-
nal emitido pelo bispo local. Num espaço católico usual, estas Ordens
acompanham as suas próprias missões e integram a Igreja através do
exercício de ministérios especializados: os Beneditinos são monges de
clausura; os Dominicanos, teólogos respeitados; os Jesuítas, excelen-
tes pedagogos e cientistas; os Redentoristas, pregadores especializa-
dos em retiros (até recentemente, o seu estilo era bastante afrontoso:
eram conhecidos pela sua perícia em representações visuais e verbais
do inferno que se destinavam a realentar os fiéis). Em suma, a nível
paroquial, a vida normal da Igreja Católica no Ocidente não estava nas
mãos das Ordens religiosas ou, para me servir de uma expressão téc-
nica, dos Regrantes; ao invés, os assuntos paroquiais estavam sob a
alçada do clero secular - o clero que não faz votos monásticos e está
directamente dependente do bispo local.
Eis o drama político da África Central. Em 1911, o Congo Belga
estava repartido em dez regiões eclesiásticas, tal como menciona-
do anteriormente. Consideremos três pontos: em primeiro lugar, a
II i
distribuição abrangeu uma geografia política coincidente com o reino
de Leopoldo em África. Em segundo lugar, os que actuavam como
missionários eram católicos, estando espiritualmente dependentes
de Roma. Além disso, eram quase todos de nacionalidade belga. Por
conseguinte, Roma e Leopoldo incumbiram-nos de executar na África
Central as obrigações da Igreja e os objectivos políticos do rei belga,
que também era o soberano do estado africano. Em terceiro lugar, o
território africano foi submetido, em termos analíticos, às represen-
tações espirituais das ordens religiosas, e obrigado a adoptar padrões
restritivos: os convertidos de Cassai identificavam-se com o horizonte
de referência scheutista, os de Kwilu com o jesuíta, os do nordeste com
o dominicano, os do leste com o do Padre Branco, e os de Katanga com
o espiritano no norte, o beneditino no sul, e assim sucessivamente.
Contrariamente ao que se possa pensar, trata-se de uma questão
fulcral porquanto aborda um eixo basilar das políticas de conversão. O
acto da conversão traduz-se num conjunto de etapas de entre as quais
serão identificadas, no mínimo, três: 1) existe um símbolo de referên-
cia, neste caso um ser humano, que fala em nome do poder político
e da verdade absoluta. 2) O discurso utilizado nessa comunicação é
dotado de um carácter edificante e de uma espiritualidade, remeten-
do, em todo o caso, para uma verdade absoluta; a sua eficácia pode ser
política e católica [conferindo-lhe um carácter credível, convincente];
porém, adopta um estilo que torna o discurso específico e apelativo,
afirmando o seu poder. As tentativas de explicar a especificidade de
discursos tão diversos resultam na imposição de determinadas pas-
sagens controversas e medíocres no plano simbólico: o brilhantismo
é dominicano; a eficiência, scheutista; o engenho, do Padre Branco; a
paciência, beneditina; o poder intelectual, jesuíta, etc. 3] O processo
de alienação constitui a fase em que o convertido - individualmente
uma "criança" - assume a identidade de um estilo que lhe é imposto
a ponto de o exibir como parte integrante da sua própria natureza; a
conversão funcionou assim na perfeição: a "criança" é agora candidata
à assimilação na medida em que já existe enquanto entidade forjada
para reflectir uma essência cristã e um estilo, seja ele dominicano,
beneditino ou jesuíta.
Estas três etapas são meras construções teóricas e entram em
conflito com outros factores, designadamente o local de nascimento
[rural ou urbano], a origem étnica, e o tipo de educação. Contudo, o
mais surpreendente é a necessidade de considerar zelosamente estas
três etapas da conversão e os seus padrões simbólicos, a fim de com-
preender a política da independência africana na década de 1960. Foi
afirmado, e bem, que a maioria dos políticos da década de 1960 na
146V.Y.MudimbeAldeiade Africa
Roelens pela sua estadia em Baudoinville. A carta enaltece Roelens e
os seus colaboradores. Os seus esforços colectivos simbolizam algo de
muito excepcional: são criadores de maravilhas [agricultores, constru-
tores, arquitectos, advogados, médicos, etc.). Criadores de monumen-
tos, tais como a Igreja Romana de Mpala, e construtores de catedrais,
estes Padres Brancos também são jardineiros, cozinheiros exímios e,
claro, bons companheiros. A sua conversão do espaço africano foi de
tal ordem que reproduziram o território flamengo:
Ce sont des jardiniers modèles. Le potager de la mission de Baudoinville est unique;
on y trouve tout ce que l'on désire, même des pommes de terre d'Europe. C'est là
que fut planté le premier caféier. Les Pères se font d'ailleurs un plaisir d'envoyer
leurs produits aux avoisinants de l'État Indépendant. Aussi faudrait-il entendre
parler d'eux les agents de l'État. J'ai mangé à Baudoinville du pain gris délicieux, de
ce savoureux pain flamand, large comme deux, et ferme.
[Os padres] são cozinheiros exemplares. A horta da missão de Baudoinville é ex-
traordinária. Podemos encontrar tudo o que desejarmos, inclusivamente batatas da
Europa. O primeiro cafeeiro foi aí plantado. Os padres retiram uma satisfação ma-
liciosa na oferenda dos seus produtos aos agentes do Estado Independente. Devía-
mos então ouvir o que dizem esses agentes do Estado sobre os Padres. Em Baudoin-
ville, comi um delicioso pão preto, um saboroso pão flamengo do tamanho de dois,
e muito consistente.
148V.Y.MudimbeAldeia de Africa
Tácticas e Estratégias de Domesticação
Leopoldo almejava domesticar o seu estado africano com o auxílio
dos missionários católicos belgas. Mesmo assim, teria de contemplar
outros programas, designadamente os concebidos por alguns dos seus
amigos protestantes que participaram na Conferência de Bruxelas (ver
Roeykens, 1957). Além disso, a própria Bélgica era palco de um forte
movimento anticatólico, representado, entre outros, pela Association
Libérale de Bruxelles, que visava combater a transposição de ideolo-
gias religiosas para a África Central. Os franco-mações também acom-
panhavam o projecto colonial com atenção. Segundo Victor Roelens, a
franco-maçonaria constituía um opositor activo do empreendimento
missionário. Um certo A. Sluys, antigo director das Écoles Normales
de Bruxelles, terá afirmado numa conferência maçónica internacional
realizada em Paris que "o maior inimigo do povo é o clericalismo e
caso [este] não seja eliminado pela raiz, não haverá uma solução para
a questão social" [Crand Orient de Belgique, 1900, fase. III, p. 217). Em
1897, devido a uma indiscrição, os missionários na África Central toma-
ram conhecimento da iniciação maçónica de um explorador candidato,
durante a qual foi enfatizada a necessidade de exercer um impacto ma-
çónico sobre "as acções e os projectos morais" de candidatos a cargos
no Congo. O seu pânico adensou-se quando souberam do encontro do
Grande Oriente da Bélgica a 25 de Dezembro de 1900, presidido por
G. Rogers, o Grão-Mestre. Um dos assuntos tratados dizia respeito às
formas de abrandar a actividade missionária católica no Congo. Se-
gundo Roeykens, as minutas incluíam afirmações como: "do ponto de
vista da civilização real, a conversão dos negros ao catolicismo não
constitui um progresso verdadeiro nem uma etapa necessária"; "em
termos de crença, os dogmas da Igreja ou de Roma não correspondem
a um estado superior pelo que não devem substituir as superstições
dos negros"; "moralmente, ninguém deveria ter de escolher entre [a
superstição negra e a superstição do sacerdote católico romano], são
equivalentes e devem ser combatidas na totalidade" (ver Roeykens).
Victor Roelens acreditava na conspiração maçónica. Em 1913, estu-
dou minuciosamente a lista de nomeados para os tribunais do Congo
Belga e constatou que a maioria era anticatólica, à excepção de três
elementos católicos. Três escândalos convenceram-no de que estava
certo. A administração colonial local instaurou três acções judiciais:
uma contra o prefeito apostólico de Cassai, um bispo, por infanticí-
dio; e as restantes duas contra um padre redentorista e um jesuíta
por abuso sexual. Roelens glosou sobre o que considerava ser uma
perseguição e uma "guerra insultuosa" (1913, p. 15). A Igreja estava
150V.Y.MudimbeAldeia de Africa
África pré-colonial. De M. Kwamena-Poh, J. Tosh, R. Waller, M. Tidy, African History in Maps,
Reino Unido: Longman, 1982. Direitos reservados de Longman Group UK Ltd.
i
colonizar. Em termos específicos, será a objectividade ou um contexto
África independente antes de 1975. De M. Kwamena-Poh, J. Tosh, R. Waller, M. Tidy, African His-
tory in Maps, Reino Unido: Longman, 1982. Direitos reservados de Longman Group UK Ltd.
l
basta recolher as impressões que guardam de nós, as quais, infeliz-
mente, nem sempre são falsas" [1946-47, p. 34]. Por conseguinte, o
missionário torna-se o objecto da conversão, é o detentor da verdade e
define os percursos espirituais. Porém, conforme observado por Mels,
cabe agora ao missionário reaprender não o seu material de base mas
antes a sintaxe e o vocabulário utilizados para veiculá-lo.
Registam-se conversões de ordem linguística e sociológica. O mis-
sionário passa a discursar menos e, sobretudo, a ouvir o convertido
e, seguramente, o évolué, agora um interlocuteur valable. Neste caso, a
importância reside não apenas naquilo que é transmitido mas também
no modo como é comunicado, tendo o último adquirido uma maior
relevância. Com efeito, a deficiência do projecto colonial no seu todo
encontra-se precisamente neste aspecto. O ensinamento de Mels di-
rigido aos seus colegas scheutistas constitui, de facto, uma táctica -
nada menos do que a arte do fraco: como sobreviver? Como manter a
legitimidade da nossa presença e a sua visão? As técnicas de adaptação
sugeridas testemunham um problema colonial de teor geral.
Quanto maior o poder, menor será a mobilização de uma parte dos seus meios ao
serviço do artifício; é perigoso utilizar forças consideráveis em prol das aparências;
este género de "demonstração" é, em regra, inútil e "a seriedade da necessidade
amarga confere tanta urgência às acções directas que não deixa espaço para este
tipo de jogo". Aplicamos as nossas forças, não corremos riscos com logros. O poder
está sujeito à sua própria visibilidade. O embuste, pelo contrário, é possível para os
fracos, constituindo, amiúde, a sua única oportunidade, um "último recurso": 'quan-
to mais fracas as forças à disposição do estratega, maior será a sua propensão para
recorrer ao artifício". Por outras palavras: mais a estratégia adquire os contornos de
uma táctica. [De Certeau, 1984, p. 37)
Mels está no poder por aquilo que representa e simboliza. Não pre-
cisa de provar a sua eficácia pois tem perfeita consciência daquilo que
personifica enquanto branco, colono e missionário. As tácticas desen-
volvidas nas suas instruções vão ao encontro de uma política acentua-
damente prática: como articular a primazia da missão segundo novos
moldes. Consequentemente, surgem novas regras, enunciam-se novas
normas sobre o modo de lidar com os negros em geral, e aplicam-se no-
vas tácticas em matéria de diálogo e comportamento junto dos évolués,
que, apesar da sua posição sociológica, ou porventura por causa dela,
Mels parece desprezar. De acordo com as suas próprias palavras, o pro-
cesso é "humilhante", mas "sejamos objectivos, não nos devemos guiar
pelos nossos sentimentos [...] em relação a estes "negros" arrogantes.
A nossa missão consiste em ensiná-los [...] e não devemos alimentar a
A Ideia de África
antipatia que, por vezes, sentimos instintivamente a seu respeito [...]"
(1946-47, pp. 27-28)
Em comparação com Roelens, Mels é um "moderno". Permitam-me
uma breve descrição dos seus contextos geográficos e missionários,
confrontando, em seguida, as instruções de Mels com as de Roelens,
escritas largos anos antes aquando do período da conquista.
Os Padres Brancos já se encontravam a trabalhar no Congo Oriental
quando os Scheutistas começaram a implementar as suas missões na
região ocidental. Um decreto papal de 11 de Maio de 1888 instituiu
o Vicariato do Congo Belga, composto por Scheutistas. Entre 1888 e
1908, a missão perdeu 38 membros que faleceram por força da sua
incapacidade de adaptação ao meio. Entretanto, assistiu-se a uma ex-
pansão frutífera com a construção de Berghe-Sainte Marie, Nouvelle
Anvers, Kalala Merode Salvator, Tshilunda Hemptinne Saint Benoît,
Lusambo Saint Trudon e Thielen Saint Jacques. Além disso, à
semelhança dos Padres Brancos na região oriental, os Scheutistas
combateram os traficantes de escravos e "adquiriram" órfãos e anti-
gos escravos, os quais, já convertidos, constituíam o núcleo dos postos
missionários. Em colaboração com o Estado colonial, os Scheutistas
inauguraram instituições especificamente dedicadas a crianças órfãs
em Boma e Nouvelle Anvers em 1892.
Importa sublinhar que, ao contrário dos Padres Brancos, os Scheutis-
tas, de entre os quais 33 eram missionários em 1903, tinham naciona-
lidade belga. Concretizaram o sonho do Rei Leopoldo II, que, em 1876,
havia convidado esta nova ordem belga, cujo alvo era o Extremo Ori-
ente, a participar na colonização da Bacia do Congo. Aliás, foi precisa-
mente na Mongólia, sob a liderança do Abade E. Verbist, o fundador
da Ordem, que os Scheutistas decidiram tornaram-se colonizadores no
Congo.
A colaboração privilegiada entre o Estado e a Ordem exerceu um
impacto significativo sobre a política de evangelização na Bacia do
Congo. Por exemplo, as missões estavam isentas do pagamento de im-
postos. Um decreto de 26 de Dezembro de 1888 estipula as normas
de cooperação entre o Estado e as missões. Leopoldo II transmite com
bastante clareza quais os missionários da sua eleição ao escrever a
Lambermont que: "o Estado deve favorecer tanto quanto possível os
missionários belgas" (Cuypers, 1970, p. 33). Um decreto datado de 16
de Julho de 1890 veio a confirmar este estatuto privilegiado [Bulletin
de l'État Indépendant du Congo, 1890, p. 13). As missões, de preferên-
cia belgas, beneficiam de três tipos de vantagens. Em primeiro lugar,
subsídios especiais concedidos pelo Estado, trimestralmente, pelo
menos no início. Assim, a partir de 1888, os Scheutistas recebem um
Geografia e Memórias
Conforme verificado nas páginas anteriores, a experiência colonial
caracteriza-se pelo confronto de dois tipos de sociedades, cada uma
provida de uma memória específica. Coerente e monolítico, o sistema
colonial é sustentado pelas suas práticas expansionistas, deparan-
do-se com uma multitude de formações sociais africanas dotadas de
memórias distintas e, amiúde, particularistas que competem entre si.
Por conseguinte, no final do século XIX, a colonização vincula de um
modo estreito memórias colectivas diferentes e, por vezes, antagóni-
cas oriundas de uma variedade de culturas africanas. Oferecendo e im-
pondo a conveniência da sua própria memória, a colonização afiança
aos colonizados o sonho de um enriquecimento gradual. De que modo
se concretiza esta transformação de memórias africanas tão diversas?
Quais os argumentos a utilizar por uma política colonial marcada pela
manipulação dos desejos, no sentido de realçar convincentemente as
vantagens da conversão a uma nova memória que, em concomitância,
deve inaugurar uma ordem social profundamente nova?
A Ideia de África
política belga responsável pela implementação eficaz de um conjunto
de políticas de delimitação e domesticação. Este novo corpo "social",
recentemente definido, era composto por africanos que deveriam
personificar um começo absoluto da história, sendo o Centre Extra-
-Coutumier [C.E.C.) o local exclusivo para colmatar o fosso entre a
memória tradicional e uma memória radicalmente reconstruída.
Sob a direcção do Governador Heenan e de alguns colonos "ilumina-
dos", o C.E.C. adquiriu os contornos de uma experiência e foi transformado
numa "comunidade nativa", constituindo, desde a sua concepção, uma
memória experimental ou, em bom rigor, um entrelaçamento de elemen-
tos africanos e coloniais. Esta nova memória emergente correspondia,
de facto, a uma força dinâmica cuja transformação se pautou por uma
série de exigências relacionadas com a finalidade da escola colonial,
uma nova administração profundamente hierárquica, e a presença de
uma vigilância policial secreta e permanente, que funcionava como
uma força de coacção. Entendia-se que a missão da escola era a de ga-
rantir a educação das massas. Essa educação, conduzida ao abrigo dos
termos dos programas oficiais de 1889 e 1930, visava a promoção de
um novo sistema de valores. Na prática, a escola fomentava uma nova
Weltanschauung, a par de uma ideologia assente na tradição judaico-
-cristã. Aos estudantes, era-lhes ensinada uma moral baseada nos va-
lores familiares e na responsabilidade cívica. Após completarem os
seus estudos, tornavam-se oficiais menores da administração colonial
ou trabalhadores especializados dentro do Centro - constituindo, assim,
a classe média de que os belgas necessitavam.
A estrutura administrativa do C.E.C inspirou-se em elementos do estilo
indirecto do domínio colonial britânico e do estilo directo dos franceses.
Um administrador colonial (que subia hierarquicamente desde a função
de agente territorial até ao cargo de chefe do C.E.C) era responsável pela
administração dos interesses de uma variedade de conselhos e exer-
cia controlo sobre a polícia, o orçamento e os africanos que trabalha-
vam no C.E.C. Estes africanos tinham uma dupla função. Por um lado,
estavam incumbidos de transmitir e executar políticas relativas a meios
concretos de conversão social e cultural. Nesta capacidade, transmitiam
as informações dos oficiais coloniais superiores à população do Centro.
Por outro lado, facultavam notícias acerca de diversas actividades, as-
sim como dos problemas que delas poderiam resultar afectando os pro-
cessos de conversão. Como tal, o volume de formalidades administrati-
vas do C.E.C e o tédio dos jovens burocratas africanos, bem versados nos
acrônimos complexos que iniciavam cada carta e cada relatório, eviden-
ciava uma ordem subjacente - a ordem da conversão. Cabia ao chefe do
C.E.C organizar diariamente este processo de conversão, mas não sem
A Ideia de África
Importa salientar que este sistema organizacional denotava a
existência de uma "economia" de conversão cultural na qual as nor-
mas do mercado, designadamente a concorrência, a qualidade in-
dividual enquanto produto da nova cultura, a capacidade de gerar
lucro, etc., controlavam e regulavam a integração gradual dos indi-
víduos considerados "aptos" para domesticação. Encurralado en-
tre duas memórias, o évoluant do Centro tentava provar que havia
conseguido reprimir a memória africana tradicional nos seus pensa-
mentos, na sua vida e no seu trabalho, estando, por isso, aberto à
assimilação numa nova memória. O início da sua própria história, a
par da sua consciência individual, deveria coincidir com o sistema
colonial. Mais concretamente, um conjunto de procedimentos e tes-
tes de selecção eram constantemente aplicados obrigando o évoluant
a sujeitar-se a esta transformação. As escolas e as igrejas procediam
a uma avaliação contínua das capacidades intelectuais, no sentido
de facilitar uma selecção criteriosa de potenciais candidatos, desde
a primeira infância, para inserção na nova hierarquia profissional.
Acresce ainda que a vigilância ininterrupta levada a cabo pelas forças
de investigação exercia um controlo reforçado sobre as reacções dos
candidatos face às exigências diárias dos novos códigos éticos, profis-
sionais e culturais.
Na verdade, os três níveis referidos - os matrimónios cristãos e a
sucessão patrilinear, a hierarquia linguística e a profissionalização -,
discriminados em separado por motivos analíticos, complementam-se
entre si. Visam a conversão a uma nova ordem, ou seja, a eliminação
da tradição e a produção do convertido no seio da "modernidade". A
título de exemplo, segundo o Padre Coussement, o objectivo da con-
versão do Cercle Saint-Benoit, era, desde a década de 1930, o de re-
duzir as constrições étnicas consideradas negativas, além de combater
o racismo contra negros e a oposição à colonização e à evangelização
(Coussement, 1932). A capa de uma pequena revista contemporânea
dos évolués do Cercle Saint-Benoit constitui possivelmente um sím-
bolo do projecto da conversão: uma faixa celebra a esperança de uma
comunhão entre brancos e negros em nome de uma cruz que especifi-
ca determinadas condições: solidariedade, fraternidade, compreensão
mútua e respeito recíproco (Grevisse, 1950, p. 362).
Mpala, a outra ordem. Fotografia e Direitos de Autor de Allen Roberts e Christopher Davis.
Emil Nolde. The Missionary. 1912. Óleo sobre tela. Colecção de Berthold Glauerdt, Solingen.
l
Todavia, em bom rigor, as políticas da Igreja Católica não colidiam
com o projecto colonial. Assentaram apenas, numa fase inicial, nos
dois princípios do direito à colonização e nas metáforas da conversão,
tendo elegido a assimilação como símbolo de uma identidade cristã
e uma nova memória, a partir da década de 1920. Decerto que as ac-
tividades dos Padres Brancos na região oriental do Congo Belga e no
Ruanda-Burundi parecem contrariar o espírito conservador de um
Monsignor de Hemptinne em Katanga. Porém, na região ocidental, em
Kwango, os Jesuítas belgas, designadamente J. J. Lambin em 1931 e H.
Vanderyst a partir de 1927, ponderaram a criação de um ensino supe-
rior específico que oferecesse aos habitantes locais a oportunidade de
garantir a sua própria conversão económica e espiritual (Litt, 1970).
Em 1935, num breve artigo publicado em La Revue de 1'Aucam (n.^ 2,
1935, pp. 44-59) na Lovaina, N. Nimal, também Jesuíta, advogou uma
hipótese totalmente inaceitável aos olhos das autoridades coloniais:
o direito à soberania como consequência do direito à exploração e
vice-versa. Será possível que, caso as vozes destes Jesuítas liberais
tivessem definido o programa colonial de 1933-1935 em diante, jun-
tamente com as actividades dos Padres Brancos na região oriental, o
futuro do Congo Belga tivesse sido diferente? Não sabemos.
Seja como for, a partir da década de 1930, os jesuítas envidam esfor-
ços, tendo em vista a construção de uma "elite" moral capaz de "elevar"
a sociedade nativa, em conformidade com as políticas coloniais. A for-
mação da elite médica constitui um bom exemplo. Desde a sua criação
em 1926, a Formulae (Fundação Médica da Universidade da Lovaina
no Congo) insistiu em determinados objectivos fundamentais: primei-
ro, a promoção dos valores profissionais; segundo, a inculcação dos
valores católicos e morais; terceiro, a formação de um esprit de corps;
e, por fim, o fomento de um sentido de responsabilidade para com as
massas. Consequentemente, esta elite representava, por um lado, a consti-
tuição de um grupo que, mais cedo ou mais tarde, seria convocado a
formar uma classe social distinta e simbolizava, por outro, a transição
da memória antiga para as promessas da história colonial, simples-
mente por existir. A sua tarefa primordial consistia na transformação
radical da sociedade congolesa num novo sonho.
Cada memória remete tanto para a vida quanto para uma história em
constante movimento. Nesse sentido, longe de serem antagónicas, é
óbvio que as duas memórias "africanas" - a antiga e a colonial - exibem
uma relação de complementaridade. Na tensão entre os dois pólos, os
évoluants lobrigaram um paradigma bastante normal que, em si, reve-
la ser totalmente neutro. Estas duas memórias significam apenas que a
transformação social e as correspondentes relações sociais dependem de
uma certa descontinuidade, indicada pelo surgimento de um novo tipo
176V.Y.MudimbeA Ideia de Africa
de consciência. Absolutamente nada nos impede de imaginar que a
passagem de uma memória para a outra, tal como ilustrada pelo C.E.C.,
poderia ter ocorrido sem a intervenção da colonização. Contudo, é um
facto que a mesma teve lugar no âmbito da colonização na África Cen-
tral. Paradoxalmente, em virtude deste contexto que a viabilizou e a
justifica, esta transformação parece suspicaz, pois implica a rejeição
da memória antiga. Assim, é possível compreender de que modo ideo-
logias tão díspares e até contraditórias como sejam o Pan-Africanismo,
a negritude e o "consciencismo", poderiam, em concomitância e num
ímpeto idêntico, opor-se ao colonialismo e apelar à modernização e
à miscigenação. Também se torna claro o motivo pelo qual qualquer
iniciativa análoga à do projecto zairense da década de 1970, assente na
promoção da autenticidade enquanto alternativa a uma modernidade
pós-colonial, crítica e rigorosa, está condenada a ser rejeitada como o
cúmulo de um simplismo extremo. É fácil concordar que a moderni-
dade não está idealmente simbolizada nos "fortes" de Mpala e nem
tão-pouco contemplada nas políticas de conversão que regiam o C.E.C
de Elisabethville. De resto, a tensão entre "a Missão" em Kapolowe e
a nova cidade nascida do pesadelo da independência não constitui
obrigatoriamente um indicador mais sólido de modernidade. Em função
da necessidade econômica e de uma reorganização do poder político,
urgiu fundir as duas memórias, a fim de projectar uma promessa de
modernidade e africanidade. Deveríamos focar-nos na produção deste
"pius être", que ilustra a nossa evolução melhor do que qualquer consciên-
cia ou liberdade.
i
e da continuidade de objectivos; apesar de esta afirmação estar fun-
damentada, é também possível lobrigar a sucessão e as transformações
confusas de figuras retóricas que apresentam uma relação directa com
Aldeia de África
uma centralização e descentralização extraordinariamente constantes
dos mitos mais profícuos do nacionalismo e dos assuntos mais contro-
versos das políticas coloniais.
O mobutismo afigura-se um sistema organizado cujo funcionamento
e articulação se firma na representação. Torce e retorce figuras e ima-
gens, analogias e semelhanças em construções figurativas que simu-
lam a realidade, em vez de a traduzir ou representar. A sua legitimi-
dade advém de uma ruptura política efectiva mas ambígua: o golpe de
estado de 1965. Os seus objectivos de transformação social e desen-
volvimento são puras metáforas, estimulando narrativas parabólicas
nas quais as próprias noções de continuidade e descontinuidade, colo-
nialismo e anticolonialismo, desenvolvimento e recessão, entre outros,
não parecem estar providos de outro sentido se não o conferido por
uma ortodoxia que se visa a si própria e modifica as suas referências
normativas, com o intuito de preservar a sua credibilidade enquanto
mediação e formulação da situação real do país. Em termos de ciên-
cia política, o mobutismo, uma sociedade de discurso totalitária, surge
como um absurdo completo (Young, 1978,1984). Todavia, adoptando
uma perspectiva diferente, K. Ilunga (1984) descreve a forma orgânica
do mobutismo, em termos psicológicos, como uma experiência repleta
de valor e dotada de aplicações tanto operacionais quanto estruturais.
Caso esteja correcto, Ilunga deu azo a um complexo sociológico que
poderá durar mais do que o esperado. Concretamente, esta sociedade
de discurso espelharia as suas próprias consequências: um espaço
teatral onde podemos ler uma utilização simples de uma relação orde-
nante, que opõe o mais forte ao mais fraco na maior tradição colonialista
que reproduziu a dialéctica do senhor e do escravo. Remetendo para
o comentário de Michel Serres sobre um paradigma clássico: o mais
forte tem sempre razão: "la raison du plus fort est toujours la meil-
leure", a manipulação da ordem é tal que engendra igualmente uma
confusão entre o significado-efeito e o significado-afecto no discurso
político. Eis o esquema de Serres (1979):
A Ideia de África
vem do verbo julgar, escolher, decidir, e do prefixo "debaixo". Por outras palavras, se
o desejo for a vitória, é necessário desempenhar o papel do minorante. Imagino que
todas as fábulas funcionem de um modo análogo, pela metamorfose que represen-
tam. [Serres, 1979, pp. 266-67).
i
Além disso, no seu imbróglio, ilustra magnificamente as memórias
conflituantes do kimbanguismo.
Modern Kongo Prophets, de Wyatt MacGaffey, uma obra pertencen-
te à colecção "African Systems of Thought", dirige-se aos africanistas
e aos estudantes de religião comparada. O livro visa, em específico,
uma "apresentação adequada do kimbanguismo", exigindo, segundo o
autor, "uma revisão de grande parte da literatura existente que versa
sobre o assunto e uma reconstrução de determinadas ferramentas da
antropologia da religião" (1983, p. xi). O quadro teórico é estabelecido
por paradigmas metodológicos vigorosos, porventura demasiado am-
biciosos:
o presente estudo procura discernir entre as representações de acontecimentos
nas categorias da ciência social e esses mesmos acontecimentos tal como en-
tendidos pelos Bacongo [...]. Esta distinção é digna desta tentativa embora, na
prática, seja impossível sustentar uma segregação radical. Por mais compassivo
que seja o antropólogo, o projecto que empreende é seu e não dos povos em
nome dos quais se propõe falar. Em segundo lugar, a potencial incompatibilidade
de ambas as perspectivas não deve ser amplificada; são, muitas vezes, congruentes.
(1983, p.xii)
V. Reprendre 199
estas conjecturas. Na sua obra Art History in África (1984), Jan Van-
sina procede a uma análise convincente da multiplicidade dos proces-
sos artísticos no continente, das readaptações e transformações dos
métodos e das técnicas aí existentes, da dinâmica da aculturação e da
difusão, além do seu impacto na criatividade. Acresce que, nos dias
de hoje, não existe "uma" arte africana. As correntes senegalesas dife-
rem das da Nigéria, da Tanzânia ou de Moçambique, e cada uma delas
encontra-se mergulhada no seu próprio contexto sociocultural. Mes-
mo nas obras-primas tradicionais (ver, por exemplo, Vogel e N'Diaye,
1985), a presença de estilos regionais e a variedade das suas histórias
são manifestas.
V. Reprendre 201
Independentemente das suas implicações técnicas, este conceito
afigura-se importante enquanto referência a uma configuração per-
dida e interrompida ou, pelo menos, ofuscada pela história. Sugere
uma espécie de inconsciente estético, partilhado pelos africanos
subsaarianos, passível de ser despertado por uma procura disci-
plinada, sensível e paciente. Em 1957, Frank McEwen, fundador de
uma galeria nacional em Salisbury, Rodésia (actualmente Harare,
Zimbabwe), fez uma sugestão semelhante recorrendo a uma me-
táfora: "Uma das características mais bizarras e inexplicáveis veri-
fica-se nas fases iniciais do desenvolvimento, pelas quais muitos
artistas atravessam em virtude da sua reflexão conceptual e mesmo
simbólica, mas nunca estilística, da arte da civilização antiga, mor-
mente a pré-colombiana. Designamo-la de "período mexicano" que
evolui, por fim, para um estilo altamente individualista" (McEwen
1970, p. 16). Quer se trate de uma "etiqueta nilótica" quer de um
"período mexicano", a expressão parece descrever algo que Carl
Jung teria apelidado de "imagem arquetípica", "no fundo, um con-
teúdo inconsciente que sofre uma alteração ao tornar-se consciente
e ao ser apreendido, e cuja cor provém da consciência individual
dentro da qual se manifesta". Jung prossegue: "O termo 'arquétipo'
[...] aplica-se apenas indirectamente às representações colectivas,
dado designar somente os conteúdos psíquicos que ainda não foram
submetidos à elaboração consciente, sendo, por isso, um dado ime-
diato da experiência psíquica" (Jung, 1980, p. 5).
Todavia, no respeitante à sua "etiqueta nilótica", é provável que Ro-
main-Desfossés tivesse outro aspecto em mente - um dado extrema-
mente antigo, uma espécie de teia perdida, totalmente esquecida, mas
ainda viva e bem enterrada no inconsciente. Além disso, estava con-
vencido de que as obras dos seus melhores discípulos - Bela, Kalela,
Mwenze Kibwanga, Pilipili - confirmavam a sua existência. Porém, o
conceito de um complexo "nilótico" primitivo ou outro revela-se bas-
tante questionável. Talvez seja mais prudente considerar que estes
jovens artistas inventaram uma textura e um estilo originais dado es-
tarem situados no cruzamento entre as tradições locais e a moderni-
dade artística de Romain-Desfossés. Exibiam, por um lado, a influência
luminosa e inescapável da vida aldeã e, por outro, o olhar e o discurso
menos neutros do seu professor. Romain-Desfossés desempenhava a
função de pai (chamava os seus alunos de "meus filhos" e cuidava do
seu bem-estar físico e emocional), mestre (entendia que a sua missão
era ensiná-los a "ver") e guia numa nova disciplina: "a pintura... consti-
tui uma nova arte que trazemos aos africanos negros." Segundo Wim
Toebosch, Romain-Desfossés sonhava em recriar um novo universo
A Ideia de Africa
i
artístico: "Em vez de dar instruções ou impor critérios ou princípios,
pede simplesmente aos seus alunos, aos seus filhos como lhes chama-
va, que explorem com os olhos, estudem o mundo circundante e tentem
compreender a sua totalidade, mas também a sua essência, sem reme-
ter para nenhuma noção de credo - ou de superstição" (Toebosch, in
Cornet et a/., 1989, p. 66).
Ademais, os pareceres de Romain-Desfossés em matéria de história
de arte afiguravam-se bastante categóricos. Era um romântico e
celebrava a criatividade dos seus alunos enquanto fruto de "fontes
puras e virentes", por oposição ao que denominava de "decadência
ocidental", "snobismo" e "loucura" - apenas alguns artistas euro-
peus, como Picasso, Braque e afins eram poupados a estes rótulos.
Uma fotografia a preto e branco da sua "família" constitui o melhor
exemplo do modo como Romain-Desfossés imaginava o novo mun-
do artístico que procurava criar: os africanos estão colocados numa
disposição subtil, formando uma espécie de quadrado, com Romain-
-Desfossés, o único branco da fotografia, no centro. O equilíbrio ni-
miamente bem organizado entre a esquerda e a direita, a frente e a
retaguarda, o posicionamento geométrico dos indivíduos sentados, a
exploração da natureza - tudo é calculado para produzir um sentido
de comunhão, amizade e amor unindo o "pai" branco e os seus "filhos"
negros. A floresta densa em torno do grupo e as duas bananeiras plan-
tadas junto dele parecem ter como propósito o estabelecimento de
uma progressão gradual da natureza para a cultura e o inverso - uma
regressão das sensibilidades do mestre e guia, através dos jovens ar-
tistas que o rodeiam quase religiosamente, para a noite da simbólica
floresta invicta. Sob uma perspectiva freudiana, este caso presta-se à
identificação de uma vontade de dominar uma topografia psíquica e
de uma catexia ou concentração de energia nessa busca. Por fim, veri-
fica-se o cruzamento tranquilo dos olhares: a deferência respeitadora
dos olhares dos alunos recaindo sobre o mestre, como se estivessem
a aguardar um oráculo; e os próprios olhos de Romain-Desfossés que
parecem desfocados, como se estivessem semicerrados em medita-
ção. Ou estará ele a olhar para os três alunos à esquerda do grupo, ou
para a sua própria mão direita, ligeiramente erguida? Seja como for,
a característica mais marcante do seu rosto branco é o seu sorriso
enigmático, o pai, o mestre, o guia detentor de um segredo que só
será revelado no momento oportuno.
V. Reprendre 203
Pierre Romain-Desfossés com os seus discípulos. Foto cedida pela Jeune Afrique.
O Museu de Arte Africana, Nova Iorque.
V. Reprendre 205
Cristianismo, adaptando-se ao contexto africano. Quanto às produções
- crucifixos, esculturas, telas retratando temas bíblicos, portas entalha-
das, e outras - estas são, em regra, utilizadas para decorar as igrejas,
os edifícios paroquiais e as escolas. A terceira engloba a categoria da
arte dos souvenirs - "arte para turistas" ou "arte de aeroporto" (ver
Jules-Rosette, 1984). O objectivo destes trabalhos é o de agradar os
europeus; segundo as palavras de um entalhador da África Oriental:
"Descobrimos aquilo de que os [europeus] gostam. Produzimos aquilo
de que gostam quando temos fome" (Mount, 1989, p. 39). Por último,
uma nova arte emergente que exige "técnicas desconhecidas ou raras
na arte africana tradicional". Mount escreve o seguinte: "A representa-
ção deste novo tema evidencia uma variedade estilística. Tanto existem
obras produzidas de acordo com padrões conservadores e académicos
quanto pinturas abstractas reminiscentes da corrente do expressionis-
mo abstracto. Contudo, uma porção considerável desta nova arte afri-
cana situa-se entre estes dois pólos estilísticos e, consequentemente,
elude a observância rigorosa de ambos" (Mount, 1989, pp. 62-63).
As classificações pedagógicas de Mount revelam-se úteis para uma
primeira abordagem às artes africanas. Todavia, a sua clareza e apa-
rente coerência não têm em conta, naturalmente, a complexidade de
géneros, escolas de pensamento e tradições artísticas em África. A título
exemplificativo, podemos interrogar-nos se as obras de Mwenze Kib-
wanga, Pilipili (discípulos de Romain-Desfossés) e Thomas Mukarobgwa
(um aluno de McEwen) pertencem à primeira ou quarta categorias
da classificação de Mount. E quanto ao batique da África Oriental ou
à souwer senegalesa, a tradição da pintura sobre vidro? Além disso,
regista-se um segundo problema importante: em que categoria incluir
a "arte popular"? Apesar de estas produções testemunharem tendên-
cias emergentes, somente uma minoria dos seus produtores ingres-
saram em escolas de arte, sendo o número de "beneficiários de bolsas
de estudo atribuídas pelo governo em escolas de arte estrangeiras"
ainda mais escasso (Mount, 1989, p. 62), à semelhança dos vários
artistas que constam da quarta categoria de Mount. Acresce que, em
bom rigor, a arte popular não é inspirada pelas missões cristãs, em-
bora alguns dos seus criadores trabalhem sobre temas cristãos. Face
à impossibilidade de ignorar a modernidade desta arte, esta insere-se,
em princípio, na quarta categoria de Mount. Ainda assim, os motivos
de uma lista imponente de obras de arte popular inspiram-se clara-
mente em objectos tradicionais. O que fazer?
A classificação de Mount pode ser objecto de uma revisão de acordo
com uma ideia mais simples: a complementaridade das tradições em
todas as categorias que distingue. No entender do professor austríaco
V. Reprendre 207
A distinção de três correntes principais (e não categorias) nas artes
africanas contemporâneas pode ser efectuada com base em dois con-
juntos de critérios - internos (estilo, motivos, tema e conteúdo da obra
de arte) e externos (o contexto da sua criação e respectiva história
cultural, o meio sociológico e o desígnio do artista). Trata-se de uma
corrente inspirada na tradição, uma corrente modernista e uma arte
popular. Quanto à arte religiosa cristã, a arte turística e outras tendên-
cias afins, devem situar-se entre a correntes inspirada na tradição e a
modernista.
Ambas as correntes visam, por um lado, revitalizar os estilos, os mo-
tivos e os temas de outrora, trazer o passado para junto de nós, como
no caso das escolas fundadas por Romain-Desfossés, McEwen e
Victor Wallenda; por outro lado, buscam uma estética nova e moder-
na, uma inscrição consciente de um ambiente cultural moderno (como
no caso de Limidi Fakeye da Nigéria). Pese embora a sua aparente dis-
paridade, estas duas ambições são, na realidade, bastante compatíveis.
A terceira corrente - a arte popular recente - desenvolvida nos anos
da independência é paralela à arte de pendor modernista. Contudo, a
arte modernista apresenta uma dimensão mais intelectual, sendo, em
regra, produzida por artistas cultos, cujas obras exploram uma lin-
guagem académica adquirida na escola de arte. Além da sua proeza
artística, estas obras evidenciam igualmente uma importância monetária
porquanto se destinam sobretudo para venda. Com efeito, nos países
africanos, tanto as obras modernistas quanto as inspiradas na tradição
funcionam como "bens de exportação" para o mercado internacional.
A terceira corrente corresponde à arte popular, sendo entendida
como a antítese destes fastígios da aculturação estética. Em geral, os
seus artistas são autodidactas, utilizam materiais baratos e pintam
para as pessoas comuns nas margens da burguesia local (como muitos
dos próprios artistas) e não para efeitos de exportação. Os estilos, os
motivos e os temas da arte popular alegorizam as percepções asso-
ciadas ao senso comum; no estilo formal naïf, comentam vividamente
acontecimentos históricos, questões de cariz social e as dificuldades
culturais enfrentadas pelos povos rurais e pela classe trabalhadora
(ver, por exemplo, Fabian e Szombati-Fabian, 1980). Ao contrário de
uma "alta" cultura sancionada por uma autoridade internacional e
pela respeitabilidade dos géneros artísticos europeus, a arte popular
apresenta uma estrutura assente num conjunto de formações discur-
sivas regionais cujos significados, códigos, estatuto, distribuição e con-
sumo são muito específicos dos diferentes locais de onde emergem.
Em síntese, enquanto a arte modernista e a arte inspirada na tradição
reflectem os valores culturais mais elevados tal como definidos e.
Reagrupamento
Ainda me recordo da exposição de tapeçarias senegalesas na Wally
Findlay Galleries, Nova Iorque, em 1983, assim como da exposição mais
recente intitulada Contemporary African Artists no Studio Museum de
Harlem, Nova Iorque, em 1990. 0 aspecto mais surpreendente de ambas
as exposições prendeu-se com os estilos modernistas das suas colecções.
Na apresentação das peças senegalesas, James R. Borynack, presidente
da Wally Findlay Galleries, salientou que "a totalidade das [obras] en-
contra-se impregnada de uma espécie de retrospecção mitológica que
parece emanar do inconsciente colectivo" [Boiynack 1983, p. 4; Catál.
CARS); a introdução ao catálogo, por sua vez, louva as tapeçarias en-
quanto validação de "uma estética africana autêntica" [Borynack 1983,
p. 6; Catál. CARS). A técnica da tapeçaria provém da École National
dAubusson de França e a execução das peças pautava-se por uma ob-
servância fiel dos cânones de Aubusson, pelo menos entre 1964 e a déca-
da de 1970. Porém, os motivos destes trabalhos sofreram uma alteração
discreta que coincidiu com a introdução dos temas da "negritude" por
volta da década de 1960. A influência pessoal de Léopold Sédar Senghor,
então presidente do Senegal, patrono das Manufactures Sénégalaises e o
teórico mais conhecido da negritude, estava patente em várias peças de
homenagem aos estilos antigos. A cor, a linha e o movimento uniam-se e
separavam-se como se estivessem a ser lavrados por um ritmo virante.
Aliás, o empreendimento correspondia a uma ilustração imponente da
idéia de Senghor acerca da Escola de Dacar: "uma herança cultural afri-
cana", uma "estética do sentimento", "imagens imersas em ritmo" [Axt e
Babacar Sy, 1989, p. 19). Um crítico poderá indagar se as referidas peças,
que afirmavam exibir as virtudes de uma fonte estética antiga em ebu-
lição, se prestam à classificação de variantes da arte tradicional. Para o
artista e escritor Issa Samb [Axt e Babacar Sy, 1989, pp. 129-30), o êxito
das tapeçarias senegalesas nesta matéria, e o da Escola de Dacar em
geral, não deixa margem para dúvidas. Contudo, Samb, não obstante a
V. Reprendre 209
sua relutância em navegar contra qualquer espécie de crítica, receia que
a crítica habitual "desmascare e, ao mesmo tempo, defraude o sistema
sobre o qual a 'École de Dakar" se alicerça", por salientar a herança afri-
cana do objecto em vez da individualidade do artista. "A crítica confunde
a denotação no sentido em que as exposições que circulam pelo mundo
denotam efectivamente a Negritude mas conotam algo bastante dife-
rente. E este 'bastante diferente' é essencialmente indefinível, trata-se
da psique dos pintores" [Axt e Babacar Sy, 1989, p. 130).
A exposição Contemporary African Artists não foi imune a este problema:
quão verdadeiramente "africana é a arte africana moderna"? [Catál.
CAA, 1990, p. 36). Salvo o autodidacta Nicholas Mukomberanwa do
Zimbabwe, todos os artistas representados na exposição - El Anatsui
[Gana), Youssouf Bath (Costa do Marfim), Ablade Glover (Gana), Tapfu-
ma Gutsa (Zimbabwe), Rosemary Karuga (Quénia), Souleymane Keita
(Senegal), Nicholas Mukomberanwa, Henry Munyaradzi (Zimbabwe) e
Bruce Onobrakpeya (Nigéria) - ingressaram em instituições especializa-
das em África ou no estrangeiro; a maioria pertence a uma segunda
geração na esfera artística e, caso haja uma identificação consciente com
os primórdios da arte africana, estes artistas sabem como subvertê-la
e sujeitá-la aos seus próprios processos criativos. De facto, descobrem
no passado africano simplesmente uma arte que os precedeu, uma
arte bela e feia. Apesar de constituir uma fonte inspiração, o passado
não os agrilhoa. Gutsa, por exemplo, distancia-se de um modo bastan-
te consciente da sua cultura shona e respectivas convenções através
da exploração de temas estrangeiros (designadamente nas obras The
Guitar, 1988, em madeira, papel de jornal e serpentina, e The Mask,
the Dancer, 1989, em serpentina, aço e madeira). Chembere Mukadzi
(1988-1989; serpentina), da autoria de Mukomberanwa, exprime uma
agenda política contemporânea dos direitos das mulheres.
A posição ideológica do artista senegalês, Iba N'Diaye, reflecte a ati-
tude de um conjunto de artistas contemporâneos:
Não faço qualquer tenção de estar na moda. Alguns europeus, em busca de emoções
exóticas, esperam que lhes ofereça folclore. Recuso-me a fazê-lo - caso contrário,
existiria apenas em função das suas ideias segregacionistas acerca do artista
africano. (Catál. IN 1 e IN 2).
V. Reprendre 211
antigas mitologias senufo e dogon em traços, blocos e espaços vazios
repletos de simbolismo (Catál. O]. Trazem-me igualmente à memória
o misticismo mais pacífico e domesticado de outro jovem pintor, o
senegalês Ery Camara.
Este trabalho contínuo, assim como as várias obras-primas entretan-
to produzidas, começou, em bom rigor, nos ateliês da era colonial. As
novas gerações aprenderam com os êxitos e os fracassos dessas ofi-
cinas-laboratórios, interrogando, em concomitância, as suas próprias
artes tradicionais. Os artistas da geração actual são filhos de duas
tradições, de dois mundos, e desafiam-nos através da fusão de mecanis-
mos e máscaras, máquinas e memórias dos deuses.
Arte popular
A expressão "arte popular" engloba, no mínimo, três significados dis-
tintos. Primeiro, a arte popular pode corresponder apenas à arte que
beneficia do aplauso, da benevolência e da aprovação de uma dada co-
munidade; neste sentido, as máscaras tradicionais dos Dogon do Mali,
as pinturas abstractas de Pilipili e as esculturas figurativas de Twins
Seven-Seven são populares. O termo pode igualmente remeter para a
arte que representa o povo comum: de acordo com o moçambicano
Malangatana, "para mim, a arte constitui uma expressão colectiva pro-
veniente dos usos e costumes do povo e contribui para a sua evolução
social, mental, cultural e política" (Alpers, 1988, p. 85). Por fim, existe
ainda uma arte popular adequada e destinada a uma inteligência medío-
cre e a um gosto trivial. A descrição pode afigurar-se pejorativa mas
esta arte pode ser consideravelmente sofisticada, como acontece na
arte publicitária concebida para a manipulação das massas.
Geralmente, o termo "arte popular africana" é utilizado para aludir
ao último significado. Os artistas que produzem este tipo de trabalho
incluem Anthony Akoto e Ofori Danso do Gana e Cheri Samba e Kalume
do Zaire. A sua arte não constitui um resíduo da arte tradicional nem
uma ramificação da corrente inspirada na tradição e da corrente
modernista na arte contemporânea. Tal como exemplificado pela im-
portância da pintura não-figurativa patente em ambas, estas tendên-
cias são menos miméticas ou representativas do que simbólicas. Por
exemplo, o significado de uma máscara dos Maconde da Tanzânia, de
uma tela do artista nigeriano Bruce Onobrakpeya ou do zambiano
Henry Tayali, ou de uma escultura de Bernhard Matemera do Zimbabwe
provém das suas marcas estruturantes, marcas que se conjugam entre
si e com marcas exteriores à obra, a fim de sugerir coincidências de
valores e ideias. Estas obras são dotadas de uma dimensão polissémica
V. Reprendre 213
A arte popular tanto é narrativa como arte. A gramática do seu con-
teúdo, a sua lógica cromática e a economia das suas composições es-
capam à maioria das restrições da arte académica. Testemunha um
elemento particular: a prática da vida quotidiana. E fá-lo num estilo
original - isto é, tem como "significado a recriação do mundo segundo
os valores do homem que o descobre" (Merleau-Ponty, 1973, p. 59).
Chéri Samba, Lutte contre les moustiques. 1989. Tinta sobre tela. Zaire.
Colecção de Raymond J. Learsay, com autorização. Curadoria de E. Kujawski.
Aldeia de Africa
Um espaço aberto
II faudra, avant de revêtir le bleu de chauffe du mécanicien,
que nous mettions notre âme en lieu sûr [Antes de voltar a vestir o fato-macaco do
mecânico, é necessário colocar a nossa alma num local seguro.)
V. Reprendre 215
por qualquer um, contudo, o conjunto poético apresentado constitui
uma tradução daquilo que a autora apreendeu. Através do desejo esté-
tico, o olhar estiliza aquilo que é apreendido e devolve ao observador
o seu próprio investimento.
Ao contrário do que possa parecer, as paisagens naturais não bro-
tam da natureza: é no olhar do observador que os animais africanos
nos seus espaços são transformados em objectos estéticos e adquirem
um estatuto semiótico, assumindo-se como narrativas do natural. Por
exemplo, na floresta, a fisionomia e os hábitos dos antílopes bongo
assemelham-se a constituintes de um discurso: as "riscas que osten-
tam no corpo fundem-se com padrões estreitos de luz solar a fim de
tornar a sua forma de antílope quase invisível. [...] Quando um bongo
pressente perigo, congela. Em seguida, desprotege-se e desaparece
como por magia" (MacClintock, 1984, pp. 2-3]. Cefalófos, ocapis, dris,
porcos-espinhos, porcos e outros animais têm discursos próprios. Nos
rios, nas bacias lacustres e nas paredes do vale do Rift, MacClintock
identifica variações nos circuitos discursivos que encontrara nas
florestas: babuínos majestosos socializam em famílias ou caminham
sozinhos, pequenos exércitos de porcos do mato atacam as plantações
da aldeia sob a lua; grupos de flamingos e pelicanos leves, elegantes e
coloridos voam ou alimentam-se. Em charcos e pântanos, é possível
"ler" as actividades dos sitatungas, macacos colobus, inhacosos, croco-
dilos e hipopótamos. Não será a sua actividade de cariz escriturai, as-
severando um tipo de existência e a beleza da narrativa? Outros textos
discursivos são observáveis na mata e nas savanas: os movimentos e
as vidas sociais dos elefantes, rinocerontes negros e facocheros ou das
palancas negras e vermelhas e elandes; a graciosidade e majestade das
girafas, a beleza das nialas; e, claro, o júbilo de uma variedade
admirável de pássaros.
Podem as paisagens "naturais" africanas ser pensadas como textos,
pinturas? Será que se apresentam ao observador como fenómenos
linguísticos e pictóricos destinados a ser lidos, compreendidos e des-
frutados? Constituem elas um conjunto incrível de estilos discursivos
encantadores? Importa relembrar que o estilo de uma narrativa nasce
de um contexto - que, conforme observado por Maurice Merleau-Pon-
ty, "o estilo não pode ser entendido como um objecto pois continua
a não ser nada e só se tornará visível no trabalho" (1973, p. 59]. Por
conseguinte, o "estilo" dos animais que habitam no seu ambiente natu-
ral não constitui evidentemente "um meio de representação" (como
poderia sê-lo?], emanando, ao invés, do intercâmbio entre as paisa-
gens e os animais africanos e os olhos do observador. No seu epílogo,
MacClintock sonha acordada:
Um projecto de habitação. J.P. Bourdier e Trinh T. Minh-ha, African Spaces. Nova Iorque:
African Publishing Company, Homes and Meier, 1985.
V. Reprendre 217
é necessário postular uma relação entre os estilos africanos e o seu contexto
natural. A linguagem de MacClintock não evidencia uma relação deste cariz
- um impulso franciscano que transmuta cada imagem numa narrativa
celebrando a beleza e a alegria na natureza. Outro passo seria uma
tentativa de reconstruir as interacções complexas entre os meios físico
e humano e a sua transição para a arte. Ulli Beier descreveu magistral-
mente esta interacção na sua discussão acerca do Clube Mbari Mbayo
em Oshogbo [1968, pp. 101-11). Numa linha bastante diferente, Jean-
-Paul Bourdier e Trinh T. Minh-ha [1985), centrando-se na arquitectura
vernacular na região do Sahel no Burquina Faso, demonstraram como
a cultura gurunsi domesticou esteticamente um meio natural, no qual
integrou com coerência uma organização espacial de complexos e as
actividades humanas da vida quotidiana.
Trigo Puila, Materna, 1984. Óleo sobre tela. Congo. Museu de Arte Africana, Nova Iorque.
V. Reprendre 219
ndebele demonstram uma tradição em evolução. Nesse sentido, é pos-
sível constatar que a obra de arte "não é concebida de forma isolada,
nalgum laboratório privado cuja chave só pertence [ao artista]. Isto
também significa que [...] a obra não constitui uma sentença arbitrária,
relacionando-se sempre com o seu mundo, como se o princípio das
equivalências através do qual manifesta o mundo estivesse sempre
enterrado nela" [Merleau-Ponty, 1973, p. 61]. De acordo com as pala-
vras de Michel Leiris, é necessário "conceber a abordagem global face
às artes africanas não tanto como 'uma história das artes e dos esti-
los' mas sobretudo como a demanda pelos, e o ajustamento da forma
espácio-temporal aos, 'produtos visíveis de uma dada história da so-
ciedade'" (In Perrois, 1989, p. 526).
Conjugação
Os murais das mulheres ndebele apresentam uma socio-história es-
pecífica, porém, a dada altura, passam a fazer parte da permanência
mutável das imaginações artísticas, cânones e técnicas tradicionais
africanos, o que se verifica, designadamente, em peças de diferentes
regiões da África Central e Ocidental produzidas entre finais do
século XVII e inícios do século XX, inseridas na categoria de arte "ex-
tinta" pelos especialistas. Não obstante a diversidade dos seus estilos
e das suas morfologias, preservam características soltas em comum: à
semelhança da maioria das obras de arte tradicionais, os seus autores
são anónimos e, nesse sentido, dá-se uma fusão da consciência do
criador com o grupo social; podem ainda ser associadas a diversos câ-
nones, correntes e conjuntos de símbolos culturais de carácter global.
Enquanto africano, identifico-me com as referidas peças através de
uma dupla articulação. Por um lado, detecto uma estrutura de sig-
nificado comum que lhes confere uma dimensão de pertença a uma
única economia cultural. Além disso, por outro lado, observo, em cada
uma delas, características regionais, por exemplo, a observância de
costumes formais nas máscaras grebo da Costa do Marfim que se
afiguram alheios aos das placas do Benim. A primeira articulação é
altamente subjectiva e espelha o clima ideológico de África desde a
década de 1960, um período marcado pela promoção do conceito de
unidade cultural africana em livros como The Mind ofAfrica (1966) de
Willy Abraham, LVnité culturelle de I'Afrique noire (1960) de Cheikh
Anta Diop, e em várias outras sedes. A segunda resposta depende das
constatações dos antropólogos e dos historiadores de arte e permite a
exploração da individualidade de cada artista: as formas morfológicas.
A Ideia de Africa
i
as características geométricas, as técnicas cromáticas e os simbolismos
próprios do seu vocabulário.
Na dialéctica entre ambas as articulações, a extinção das correntes
artísticas do passado deixa de ser uma oclusão. Com efeito, posso atri-
buir um poder inspirador aos estilos antigos e analisar os padrões e
estilos acentuadamente idiossincráticos de obras mais recentes. Surge
uma continuidade criativa, transcendendo as rupturas objectivas
descritas pelos especialistas de laboratório. No meu entender, as más-
caras dogon de meados do século XX de origem maliana e as máscaras
maconde de inícios do século XX de origem tanzaniana integram a
mesma ordem cultural [In Vogel e N'Diaye 1985). Podem ser vistas
e admiradas não apenas em termos da sua diferença, mas também
enquanto variações que reflectem as transformações dos arquétipos
numa imaginação elementar. E por que não relacionar a máscara-antí-
lope dogon de meados do século XX com as componentes da paisagem
africana, as quais causaram estupefacção junto de inúmeros artistas
africanos antes das conclusões de Dorcas MacClintock? Esta sugestão
estabelece uma ponte entre as várias formas e os vários estilos da arte
africana ao longo do tempo, e os equivalentes na natureza.
V. Reprendre 221
Segundo os especialistas, as práticas dos artistas tradicionais revestem-
-se de interesse na medida em que os seus trabalhos, apesar de não
serem realistas, contribuem para definição do significado da realidade.
Facultam metonímias e metáforas para seres, objectos, acontecimentos
e forças naturais concretas no mundo e, em concomitância, realizam
uma abstracção do mundo. A sua introdução perfeita nas vidas normais
dos povos africanos levou os estudantes de arte africana a concluírem
- com um certo grau de preguiça - que esta arte é essencialmente fun-
cional. Esta conclusão apaga a complexidade dos significados simbóli-
cos e alegóricos da arte. A título exemplificativo, a máscara constitui
uma reificação clara de um significante, mas remete também para
outras ordens de significado sem as quais seria inútil.
Ao contrário da arte tradicional, a arte popular contemporânea as-
sume algumas das virtudes do realismo, promovendo as suas imagens
como reflexos de uma cultura moderna e da sua história. Privilegiando
a política do significado, procede à consolidação do seu realismo com
aspectos éticos [como no caso de Samba) ou, em termos mais gerais,
com diversas funções sociológicas, distanciando-se assim da activi-
dade simbólica e decorativa que, desde a década de 1940, tipifica as
correntes do ateliê e das escolas de arte.
Em Síntese
As três correntes da arte africana actual - inspirada na tradição,
modernista e popular - são recentes: os exemplos mais antigos datam
do primeiro quartel do presente século. Nesse sentido, existe a tenta-
ção de relacionar a sua gênese com o impacto da era colonial; porém,
vários dos seus temas e motivos - reproduções de crucifixos e Madon-
nas, referências bíblicas e assim por diante, por toda a costa ociden-
tal do continente - fazem partem de uma história de aculturação que
remonta aos séculos XV e XVI. Encaradas à luz da história, a distinção
entre a corrente inspirada na tradição e a corrente modernista nas
artes africanas contemporâneas, apesar da sua utilidade para efeitos
de análise, indica, em última instância, uma espécie de encanto face
à arte tradicional. Pois, na verdade, estas duas correntes constituem
uma única tendência. Primeiro, em ambos os casos, as obras são cria-
das sobretudo em ateliês e escolas de arte, e mesmo quando são da
autoria de artistas autodidactas ilustram a aculturação colonial das
sociedades africanas; segundo, ao contrário das obras de arte tradi-
cionais, ambas revelam a consciência, a identidade artística dos seus
criadores; e terceiro, a sua razão de ser reside na criação da beleza, em
detrimento da imitação da realidade.
V. Reprendre 223
Os artistas propõem uma visão antagónica às regras académicas da
representação e técnicas orientadas para a concretização "do belo".
Procuram veicular uma mensagem clara; proclamam a virtude da ver-
dade sociológica e histórica e tentam nomear e revelar o inominável e
o tabu. As lacunas técnicas tornam-se marcas de originalidade. O ar-
tista emerge como o herói "indisciplinável" que desafia as instituições
sociais, incluindo as práticas artísticas, sobretudo as de teor académi-
co. Porém, este "indivíduo subversor", que, por vezes, ataca uma dada
tradição e as suas correntes modernas, personifica manifestamente o
locus do seu confronto. Na arte popular, a política da mimese insere no
território "maternal" da tradição uma prática que questiona a arte e
a história em nome do sujeito. Trata-se de um trabalho que pretende
reunir a arte, o passado e os sonhos da comunidade para um futuro
melhor.
V. Reprendre 225
discursos autónomos que dão continuidade a reservatórios suces-
sivos de imaginações supostamente desconhecidas. Trata-se de uma
questão problemática que ainda não foi abordada de um modo con-
vincente pelos especialistas de estudos africanos. Ora, é a visão destes
corpos existentes de textos escritos e discursos orais que justifica uma
parte considerável da generosidade intelectual daqueles que acredi-
tam em África, assim como a actividade puramente estética daqueles
que utilizam estes textos como objectos por força de uma curiosidade
exótica ou de requisitos literários e ideológicos. Poder-se-á pensar que
a crítica literária africana se desenvolveu não tanto como uma neces-
sidade ou um projecto original no quadro de uma tradição académica
que questiona a abundância dos discursos, mas sobretudo como uma
consequência de um processo de invenção e organização de outra coi-
sa.
Podemos encarar aqui uma hipótese e um desejo? Por um lado, gos-
taria de apontar as condições em que a literatura africana é, actual-
mente, concebível e, por outro, formular, em termos de empreendi-
mentos possíveis, as perspectivas a partir das quais os comentários
e as análises em matéria de discursos africanos podem constituir um
meio de compreensão da experiência africana segundo um prisma
mais profícuo. Será possível estabelecer uma norma explicativa quanto
à natureza concreta da literatura africana de modo a relacioná-la com
as restantes literaturas, e sem veicular esta sensação desconfortável
de que ela corresponde, de alguma maneira, a uma imitação autóctone
de outra coisa, ou a uma reprodução adaptada dos géneros importa-
dos do Ocidente e dos respectivos imbróglios? Esta pergunta pode ser
respondida à luz de novas perspectivas. Na minha óptica, até ao mo-
mento, a crítica literária tradicional e, inclusivamente, a interpretação
ideológica dos discursos assentes numa perspectiva afrocêntrica não
proporcionaram os contributos implicados nas suas premissas. Toda-
via, é precisamente esta impotência que viabiliza a detecção dos sinais
de novas interpretações possíveis sobre a literatura e os discursos
africanos (ver Chinweizu etal, 1983).
Como produto, a literatura africana é uma invenção recente, sendo
que os autores, os críticos e os especialistas na matéria tendem a ofe-
recer resistência a este facto. O seu interesse em relação a esta literatura
não reside naquilo que ela é enquanto discurso e naquilo que pode
significar, na variedade dos seus acontecimentos e da sua significação,
num contexto mais alargado de outros discursos regionais ou locais,
mas antes na sua importância enquanto espelho de outra coisa, por
exemplo, a luta política africana, os processos de aculturação e os ob-
jectivos em termos de direitos do homem. Esta orientação deve-se ao
A Ideia de Africa
i
facto de o mundo da literatura reflectir e ser sustentado pelo universo
real, sobretudo as relações sociais de produção e o impacto silencioso
das marcas ideológicas. Assim, o mundo literário poderia, de facto,
ser um espaço mítico; porém, parece revelar a experiência concreta
das comunidades humanas. Por exemplo, a obra de Lilyan Kesteloot
que versa sobre a origem da literatura da Negritude (1965) e o estudo
de Jean Wagner sobre a literatura negra nos Estados Unidos (1962)
são ambos legítimos enquanto críticas literárias e socio-históricas. Na
mesma linha, as considerações de Janheinz Jahn sobre a literatura neo-
-africana (1961, 1968) ilustram o valor simbólico e a racionalidade
intelectual e sociológica das culturas negras.
Contudo, aquilo que estes monumentos fornecem com maior evi-
dência são, por um lado, processos de promoção de construções e,
por outro, processos de limitação do significado e da multiplicidade
dos discursos. Graças a estes livros, a arte e o significado dos discur-
sos africanos são comentados, celebrados e comprados com base no
seu valor, enquanto indicações de regras funcionais de criatividade.
Contudo, estas regras não correspondem às referências eficientes que
constituem o fundamento da validade académica dos projectos de
Kesteloot e Jahn. São marcas da possibilidade de um conceito recente
de literatura africana, uma "invenção" sobre a qual Jahn, Kesteloot,
Wagner e a maioria dos críticos literários e autores podem trabalhar
e viver.
Decerto que os alunos de Michel Foucault já perceberam onde quero
chegar. Na obra A Ordem do Discurso, o então Professor de História
dos Sistemas de Pensamento no Collège de France identificou três
tipos principais de regras de exclusão (Foucault 1982, pp. 215-27):
1) Procedimentos externos como o interdito ("tabu do objecto, ritual
da circunstância, direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala",
p. 216), a oposição entre razão e loucura e a vontade de verdade (que
integra os elementos precedentes e ordena-os num projecto). 2) Pro-
cedimentos internos de controlo de discursos, procedimentos directa-
mente relacionados com os "princípios de classificação, ordenamento
e distribuição": ou seja, o comentário que significa filologia em termos
de reconstrução e leitura de textos primários, e ainda crítica literária
enquanto exercício intelectual perante dados documentos; em segun-
do lugar, o autor como um centro de coerência, ponto de referência e
tema da unidade das suas obras; por fim, a organização das disciplinas
na qual, segundo Foucault, "o que é suposto à partida não é um sentido
que precisa de ser redescoberto, nem uma identidade que deve ser
repetida; mas antes aquilo que é requerido para a construção de novos
enunciados" (p. 223). O terceiro tipo de procedimento de exclusão inclui
V. Reprendre 227
sistemas de rarefacção dos discursos tais como o ritual que "define a
qualificação que devem possuir os indivíduos que falam" (p. 225); as
sociedades de discurso - para ter uma idéia mais esclarecedora do con-
ceito, basta pensar nas revistas de Estudos Africanos e nas suas políti-
cas em matéria de promoção de artigos, investigações e nomes; e, por
fim, a apropriação social dos discursos em relação à qual Foucault apre-
senta o exemplo da educação como "o instrumento graças ao qual todo
o indivíduo, numa sociedade como a nossa, pode ter acesso a qualquer
tipo de discurso" (p. 227).
Afigura-se evidente que este quadro de sistemas de exclusão pode
funcionar como uma ordem para novas iniciativas intelectuais que
deveriam, em concomitância, testar as considerações de Foucault e
interrogar a padronização e homogeneização da chamada literatura
africana face à suposta desordem dos discursos africanos em geral.
Recorrerei a alguns exemplos para me explicar melhor, a) O trabalho
de Aimé Césaire pode ser entendido como uma criação contra os pro-
cedimentos do(s) interdito(s) e a separação da razão. O terror e a vio-
lência patentes na obra de Césaire testemunham estes procedimentos
de um modo mais acentuado, comparativamente às dimensões vitalis-
tas e genitalistas observadas por Sartre em Orfeu Negro. Como tal, em
vez de simbolizar um "Orfeu negro", este trabalho poderia significar
uma forma de questionamento da vontade de verdade, b) Foi aventada
a existência de duas explicações sociológicas principais para a gê-
nese da literatura africana em línguas europeias: primeiro, o facto de
esta literatura ser uma conseqüência directa da colonização; segundo,
o facto de ter sido viabilizada pelo sistema de ensino ocidental. Por
outras palavras, estas explicações sugerem que as obras literárias afri-
canas e os comentários tecidos a seu respeito dependem das normas
europeias relativas às apropriações sociais dos discursos, podendo,
em concomitância, ser justificadas por essas mesmas normas. Por
conseguinte, esta literatura, se fizer sentido, fá-lo-ia apenas na medida
em que estas condições externas de possibilidade determinam o seu
estatuto de literatura, c) É possível afirmar que a mera existência desta
nova literatura africana advém do alargamento das sociedades de dis-
curso ocidentais a África. Assim, apesar das exortações realizadas nos
últimos anos no sentido de uma perspectiva afrocêntrica, a linguagem
das nossas concordâncias e discordâncias podem caracterizar-se, no
fundo, por uma coerência óbvia e surpreendente: um espaço episte-
mológico.
Qual o interesse em contestar estas hipóteses? Em termos de perspec-
tivas teóricas, é óbvio que estas hipóteses, em princípio, confirmariam
ou invalidariam a proposição de Foucault: "Presumo que em toda a
V. Reprendre 229
assim como a nossa esfera familiar da literatura africana. É possível
identificar as seguintes tensões ou lacunas em termos de oposições
binárias: no plano económico, a sociedade agrária dominada pelas
estruturas económicas de subsistência versus os processos altamente
sofisticados das relações de produção e sociais da civilização urbana e
dos mercados internacionais; no plano sociocultural, o meio oral e con-
suetudinário classificado de monocultura versus os contextos pluricul-
turais e complexos das grandes cidades; no plano das superestruturas
religiosas, sociedades caracterizadas por uma integração do sagrado e
do profano versus sociedades cujo funcionamento assenta na divisão
entre o sagrado e o profano. Não será um exagero da minha parte afir-
mar que a maioria dos nossos compêndios e das nossas monografias
incidem mormente sobre esta dicotomia e as suas marcas, ao invés de
analisar as complexidades dos discursos africanos. Consideremos os
melhores, a fim de descortinar os pressupostos básicos da dicotomia.
Primeiro: as formas e o conteúdo da literatura oral devem teste-
munhar e traduzir uma experiência monocultural que, até ao momen-
to, continua a ser designada de civilização "primitiva" em antropologia.
Segundo: em virtude dos processos de ocidentalização e cristianiza-
ção associados ao domínio colonial, emergiram duas novas formas de
expressão - literatura escrita em línguas africanas e europeias - que
descrevem as contradições e os problemas inerentes à metamorfose
traduzida pela colonização. Terceiro: esta conversão promoveu textos
de autor, que, embora sejam fundamentalmente diferentes dos do pas-
sado, não representam um hiato no concernente às experiências afri-
canas vitais. Quarto: a noção de literatura neo-africana assinala uma
dimensão sociológica e histórica interna mas não significa, nem pode
significar, que a sua possibilidade poderia residir para lá da exteriori-
dade desta mesma literatura.
Aprendemos como conviver com estes pressupostos contraditórios.
De facto, constituem normas e sistemas dado serem, ao mesmo tem-
po, referências paradoxais das nossas actividades profissionais e dos
acontecimentos que tornam concebíveis as nossas praxes literárias.
Além disso, consoante o estado de espírito, estas normas permitem-
-nos todas as liberdades que desejarmos. Partindo dessas normas, podemos,
hoje, decidir que as obras de Chinua Achebe e de E. Mphahlele são
componentes intrínsecas da literatura inglesa, e as de Senghor, Rabe-
mananjara ou Camara Laye da literatura francesa. E, amanhã, podería-
mos demonstrar com a mesma convicção exactamente o contrário e
celebrar os nossos autores como espelhos de uma autenticidade afri-
cana. Com pessimismo, rememoro as palavras de Northrop Frye: "a
literatura, à semelhança dos restantes domínios, contém uma teoria e
Literatura de referência
Porém, começámos a aperceber-nos de que as feridas infligidas
no corpo da nossa civilização são feridas que necessitamos tratar,
mas com uma maior profundidade do que tem sido feito até agora.
V. Reprendre 231
e, olhando para o psicanalista sereno e acomodado na sua poltrona,
conclui: "Foi uma sessão maravilhosa não foi?" Silêncio. Hesitante, o
doente recolhe-se e repete as palavras finais do ritual, escolhidas pelo
próprio psicanalista: "Muito bem; hoje ficamos por aqui." Silêncio. Há
qualquer coisa de errado. O psicanalista está anormalmente distante
e indiferente. Estará a dormir? Não, mas está muito pálido, muito frio.
As assistentes entram e assumem o controlo da situação. Chamam um
médico que, ao chegar, examina o corpo. O diagnóstico não deixa dúvi-
das: o psicanalista está morto há mais de três horas.
A história, tal como contada por mim, é um resumo do relato de Serge
Leclaire na obra Démasquer le Réel (1971), um conjunto de ensaios
sobre o objecto de psicanálise. Conforme demonstra Leclaire, trata-se
de uma história relevante na medida em que narra um tipo específico
de desejo de morte. O doente deseja a morte do psicanalista tal como
nós, consciente ou inconscientemente, desejamos a morte de quem
está no poder. Pelo menos em princípio, esse desejo não evidencia
qualquer espécie de ligação ao amor ou ao ódio; em rigor, manifesta-
-se junto ou além do significado desses sentimentos. A história ilustra
uma fantasia alimentada por vários doentes confinados numa "relação
analítica" e que, por todo o mundo, agem simbolicamente sobre ela.
Com o intuito de alumiar este argumento, Leclaire menciona outro
caso, desta vez verídico, no qual é possível constatar os efeitos de rico-
chete da primeira história. Trata-se novamente de um psicanalista
parisiense que recebe um doente, mas num contexto particular: o
analisante ingressa em sessões de análise a título de "formação" para
que ele próprio se possa tornar analista. Assim, por um lado, temos
um "guia" e, por outro, um "discípulo" que terá de enfrentar os seus
pesadelos para aceder à profissão. Um dia, na última sessão, o nosso
discípulo-doente tece comentários sobre a história que resumi ante-
riormente. O "mestre-guia" reage num tom mal-humorado: "E acha
graça ã história não é?" O discípulo encolhe os outros: "Por que não?"
Este aditamento permite-nos colher os ensinamentos da história
mais facilmente e identificar dois temas principais. Primeiro, ao imagi-
nar a morte do elemento poderoso de uma relação, o que verdadeira-
mente se deseja é matá-lo. Nesse sentido, quem for capaz de descodi-
ficar a história poderá afirmar, "Quer realmente matar o seu 'mestre'"?
Ou, num tom mais dramático: "Tem realmente desejado a morte do seu
pai?" Porém, a história ilustra ainda outro aspecto, ou seja, o facto de o
psicanalista incorporar o silêncio. É pago para ouvir e, ocasionalmente,
para orientar, mas não para falar. Corresponde exactamente ao oposto
de um professor. Por conseguinte, o psicanalista é um especialista num
"silêncio mortífero", que, segundo Leclaire, constitui simplesmente o
O exercício da palavra
É interessante observar que, quando a noção de morte, seja ela real
ou simbólica, emerge numa relação psicanalítica, o analista reme-
terá sempre, em princípio, para três respostas principais: desejo ou
medo da morte, identificação com a morte, representação simbólica
da morte.
Iniciarei a minha reflexão sobre as "teorias africanas" fazendo referên-
cia a dois enunciados de Leclaire que resumem a minha apresentação.
[As traduções são da minha autoria).
Seguramente que, se o analista está em silêncio, também existem decerto doentes
que fingem estar mortos [...] assumindo que o fazem. Tal situação pode prolongar-se
bastante no tempo (1971, p. 124).
Em poucas palavras, considero que, do ponto de vista do assunto em discussão, o
interesse dos analistas, excepto Freud, privilegiou sobretudo o tema da morte como
se a sua tematização permitisse velá-la com maior êxito. A nossa proposta, pelo
contrário, consiste [...] na reintrodução da questão da morte, tal como é vivida, por
exemplo, por doentes obsessivos. [1971, p. 127).
V. Reprendre 233
favor. Nesta perspectiva, a rejeição da crítica ocidental, exemplifi-
cada tão amargamente pelos nigerianos Chinweizu, Jemie e Madubuike
na sua obra Toward the Decolonization of African Literature (1983),
transforma-se numa marca transparente: deseja - e como! - a morte
dos pais simbólicos. Em segundo lugar, o próprio fundamento das
ideologias africanas mais significativas denota uma identificação com
a morte: "Negritude", "personalidade africana", "Pan-Africanismo". Re-
firo-me à identificação - por boas razões, além de muito respeitáveis
e sagradas - com milhões de vítimas do tráfico de escravos e à iden-
tificação com os que resistiram ao processo de colonização, acabando
por ser chacinados. Esta identificação vai de mãos dadas com formas
de introjecção e incorporação, que constituem marcas explícitas e
antagônicas de um desejo e de uma recusa de morrer. Contudo, estas
ideologias africanas de auto-afirmação vêem-se igualmente assom-
bradas pelo espectro da morte cultural que associam, por exemplo,
às políticas francesas de assimilação. Resta-nos, por fim, contemplar a
representação simbólica da morte, o silêncio do conquistado que, no
divã do psicanalista, retratam outro silêncio, o silêncio colossal e torpe
dos homens que se mostram incapazes de explicar aos seus filhos o
que acontecera. Aqueles que cederam enfrentam agora dúvidas acerca
da sua pessoa, querem saber o que há de errado com eles e deparam-se
com uma pergunta terrível: será que o outro, o conquistador ou colo-
nizador, tem uma solução para o seu problema? Com efeito, tem uma.
Mas afigura-se oportuno sublinhar outra questão. Um segundo silêncio
assustador que perdura na economia geral das novas palavras, línguas
e teorias africanas que comentam sobre a catástrofe e articulam outros
objectos de desejo através de novas formas: as mulheres africanas pa-
recem não se pronunciar. Em todo o caso, a sua presença na literatura
francófona caracterizou-se, até recentemente, pelo silêncio.
Pretendo, primeiro, apresentar uma visão geral da obra de Miller,
regressando posteriormente a estas questões levantadas pelo autor.
O livro compreende seis secções. Intitulada "Reading through Western
Eyes" [Ler através do olhar ocidental], a primeira corresponde à in-
trodução e versa sobre as principais questões teóricas que predomi-
nam na indagação intelectual mais alargada de Miller, de entre as
quais, duas se revestem de uma importância central, nomeadamente a
utilidade da antropologia e do dialogismo.
Ao pensar programaticamente sobre as abordagens ocidentais à literatura africana,
chego a uma hipótese fundamental em torno da qual se desenvolverá este livro: uma
leitura justa das literaturas africanas sob uma perspectiva ocidental exige uma relação
de diálogo, e mesmo de dependência, com a antropologia. A demonstração desta tese
V. Reprendre 235
A sequência de acontecimentos que descrevi continua aberta a uma variedade de
interpretações, e não apresento o destino de Kétia Fodeba como uma consequência
necessária das teorias do marxismo ou de Fanon, nem como uma história cuja moral
consiste na impossibilidade de mudar as coisas [...]. Será que o engolfamento de
Sékou Touré no discurso marxista e fanoniano torna Fanon responsável pelo reino
de terror na Guiné? A questão evoca os debates acerca da relação de Nietzsche com
o nazismo: até que ponto será o autor responsável pelas leituras e tresleituras dos
seus textos? Através de uma leitura completa e sensata dos textos de Fanon,
poderemos descortinar um sistema "aberto" que foi incorrectamente "fechado" pe-
los críticos; porém, o problema que me causa inquietação é precisamente o modo
como os paradoxos textuais na escrita de Fanon foram traduzidos numa opressão
política inequívoca por um "tresleitor" como Sékou Touré. [Miller 1990, p. 62).
V. Reprendre 237
ocidental" (1990, p. 5]. Por fim, o último problema afigura-se ex-
tremamente sensível: a política da morte simbólica e, infelizmente,
concreta que se espelha com recorrência no debate de Miller acerca
das etnografias e projecções éticas.
"Pensar de um modo antropológico significa a validar a etnicidade
como categoria, o que se tornou uma ideia problemática", escreve Miller
(1990, p. 31). Talvez valha a pena sublinhar que por "antropologia",
neste e noutros casos. Miller se refere à antropologia cultural, uma
tradição que abraça as escolas evolucionista, difusionista e funciona-
lista. Tal como advoguei noutro contexto, as origens da antropologia
cultural residem no desejo ocidental de descobrir o seu próprio pas-
sado, construindo um percurso imaginário que começa com os chama-
dos primitivos e culmina com os feitos da civilização europeia. Mesmo
as correntes antropológicas que rejeitam ostensivamente tais noções
podem continuar a ser impregnadas por este telos oculto. Todavia, gos-
taria de insistir que estas preocupações não contrariam a tradição kan-
tiana da antropologia filosófica - como, por exemplo, na validação da
diferença na filosofia do Outro, de Emmanuel Levinas. (Embora pareça
estranho, alvitraria ainda que a antropologia estruturalista associada
a Claude Lévi-Strauss pertence plenamente a esta tradição kantiana.)
Miller correlaciona "etnicidade" e "alteridade"; e, remetendo para a
desconstrução do conceito de "etnicidade africana" de Jean-Loup Am-
selle. Miller admite que as etnias africanas foram "construídas pelos
colonizadores a fim de dividir para conquistar". Em seguida, levanta
uma questão: "Será que isto significa que a etnicidade em si constitui
uma ilusão, uma categoria inútil de interpretação?" O autor prefere
manter este conceito "para investigar as noções de identidade e dife-
rença", definindo-o como "um sentido de identidade e diferença entre
os povos, alicerçado numa origem e ascendência ficcionais e sujeito às
forças da política, do comércio, da língua e da cultura religiosa" (1990,
pp. 34-35). Ainda assim, a fragilidade do conceito torna-se manifesta
na própria leitura de Miller acerca do "espaço" cultural dos Mandé e
no seu reconhecimento de que "as fontes etnográficas sobre os Mandé
- desde finais do século XIX até aos finais da década de 1980" - estão
repletas de questiúnculas terminológicas e discórdias substantivas"
(1990, p. 75). Por que motivo escolheu então Miller manter um con-
ceito cujo valor ele próprio questionou?
A resposta encontra-se na fé que deposita na antropologia - ou
tratar-se-á de uma "resignação atentamente céptica"? Miller escreve
que "em termos do seu valor facial, a minha hipótese significa apenas
que qualquer leitor não-africano (ou mesmo um leitor africano per-
tencente a uma área cultural distinta) que procure atravessar o fosso
V. Reprendre 239
Alguém, à frente de outro alguém, fala. Interroga aquilo que ele é. No seu modo
idiossincrático, pergunta-se a si próprio como se sente, com uma felicidade
(ou infelicidade) desigual, em ser alguém mais ou menos identificado, situa-se a
si próprio em relação aos outros, mortos ou vivos; por sua vez, que tipo de vazio
criaria o seu desaparecimento, ou que lugar ocupa a sua presença? (Leclaire, 1968,
p.175).
V. Reprendre 241
Entre os Mandé, o totem pareceria ser, de facto, "aquilo que resta de uma totali-
dade diminuída", sendo que a totalidade corresponde aos sistemas organizados
de relações, costumes e crenças que remetem para os dias gloriosos do império.
A epopeia de Sundiata constitui a principal lembrança da última plenitude; a arte
verbal dos griots visa ressuscitar a totalidade mas é suspeita de a diminuir. O to-
temismo corresponde a outra lembrança. [1990, p. 154)
V. Reprendre 239
Ia nuit nue: Edouard Glissant et l'H(h)istoire antillaise (1988) da auto-
ria de Bernadette Cailler.
V. Reprendre 245
ou morte? De acordo com Cailler, "actualmente, investigadores sérios
concordam em considerar o amor pela liberdade a primeira prioridade
entre as causas da fuga dos escravos". Assim, a autora pode revelar a
emoção dos seus sacríficos excepcionais: "arraigadas nas primeiras e
expressivas negritudes [o escravo suicida que engole a língua, o es-
cravo que se atira ao mar, o sufocamento dos filhos...), as histórias dos
escravos fugitivos tiveram de ser e devem ser escritas um dia" (1988,
p. 66).
Reflectindo sobre este nível histórico das fugas dos escravos, a au-
tora descreve em pormenor um caminho simbólico e político percor-
rido por Edouard Glissant enquanto uma nova marca do escravo fugi-
tivo. Oriundo de uma família respeitada em Bezaudin, estudante em
Lamentin e posteriormente no Lycée Schoelcher em Fort-de-France,
Glissant rumou para França em 1946, onde cursou filosofia e etnolo-
gia. Cailler destaca alguns dos conhecimentos travados por Glissant
ao longo do seu percurso. Por exemplo, Aimé Césaire foi seu profes-
sor no Lycée Schoelcher. No início da década de 1940, "aparentemente.
Glissant nutria um forte desejo de se manter afastado da Negritude de
Césaire [...]" (1988, p. 40); e, já em França, "parece que viveu de uma
forma bastante isolada [...]; certas páginas de Soleil de la Conscience,
um ensaio poético publicado em 1955, evocam esta adaptação difícil à
paisagem francesa; são páginas introspectivas que evidenciam desde
logo toda a ambiguidade da relação com o Outro, mas também a força
da 'intenção poética' que resiste ao impasse, à errância sem destino e
à segregação" (1988, p. 41).
A questão é apresentada de um modo simples: em que medida a
descrição da biografia de Glissant reproduz a paixão dos históricos
escravos fugitivos e os riscos que correram? De entre os amigos ou
conhecidos de Glissant, contavam-se intelectuais negros como René
Depestre, Frantz Fanon e o escritor argelino, Kateb Yacine. Porém,
Glissant também era um intelectual francês, cuja dissertação para o
Diplome d'études supérieures versava sobre poetas franceses, nomeada-
mente Césaire, Reverdy, Char e Claudel. E, ainda assim, Césaire consta
entre eles: não validará a sua presença a ordem do séquito?
A fim de estabelecer um paralelismo entre o caminho percorrido
por Glissant e o do escravo fugitivo, Cailler insta efectivamente o leitor
a saltar da vida do autor para os seus textos, que sofrem uma trans-
formação a partir da década de 1950. Mas não precisamos de parar
em Glissant. Frantz Fanon, por exemplo, seria um escravo fugitivo de
primeira linha. Poderíamos igualmente aludir a figuras mais evoca-
tivas, tais como o cubano Esteban Montejo, um escravo fugitivo com
mais de 100 anos que, na obra de Miguel Barnet (1968), afirma que.
V. Reprendre 247
negada ou, pelo menos, pouco conhecida: "de que modo viveram os
africanos do passado a sua percepção da História?" Todavia, face a
uma historiografia desta natureza, face ao legado da filosofia hegeliana,
detectamos uma ansiedade profunda:
A obra de Glissant evidencia uma tensão constante entre o sentimento de impotên-
cia, a tristeza perante a "lacuna" histórica, e a convicção de que a derradeira ne-
cessidade não consiste no conhecimento dos "factos", mas antes na aquisição de
um sentimento de continuação, começando com "uma nova onda de recursos", ou,
conforme afirma novamente, com um "registo": como se a escassez documental
pudesse, todavia, servir de rampa de lançamento para uma meditação, profícua
para todos, sobre aquilo que constitui a consciência colectiva. (Cailler, 1988, p. 56).
V. Reprendre 249
Contudo, a memória subsiste, mestre e soberana trabalhando o ma-
terial do passado, designando sujeitos e objectos de desejo. Na escrita
que consegue reflecti-la, torna-se uma proposição de uma vontade
de verdade e de uma história que ainda está para vir. Segundo Cailler,
"Não a obra, mas sim um capítulo de um relato propulsor e instigador,
o texto, pouco a pouco, entre a 'noite' e o 'dia', a 'história' e a 'ficção', o
'referente' e a 'referência' fará com que o leitor vislumbre a identidade
narrativa de um povo em acção. É a construção desta identidade, den-
tro dos seus próprios limites, entre a terra sonhada e a terra real" que
a autora pretende descrever (1988, p. 142).
Neste livro extraordinário, Bernadette Cailler demonstra com êxito o
lugar de ambigüidade onde a caribenidade e a negritude se cruzam.
A recusa em ser reduzido à história do Outro é definida como um para-
doxo: questiona a sua própria criatividade no espaço do Outro, e, em
concomitância, encontra as suas razões na alteridade de uma memória
e experiência que são concebíveis apenas em função do Outro. Esta ar-
madilha desacreditou a negritude. Porém, Cailler garante que o choque
ideológico representado pelo trabalho de Glissant pertence a outra di-
mensão. Apontaria não só para uma rejeição de todos balbúcios mimé-
ticos, mas também para um confronto com um pai (falso). Recorrendo
a uma feliz expressão de Jacques Derrida, este último ocupa "o lugar
da forma, da linguagem formal. Este lugar é insustentável e, nesse sen-
tido, resta-lhe (ao pai) tentar ocupá-lo para efeitos formais, falando
apenas nesta medida a linguagem do pai" (Derrida, 1983, p. 285).
Creio que [escreve Cailler] "a obra [de Glissant] pretende resolver a crise do espaço
psíquico, no qual reside a aventura caribenha do texto, da seguinte forma: um processo
de auto-organização inserido num jogo de sistemas abertos. Esta crise encontra-se
profundamente enraizada na morte dos pais (pais falsos), os produtores de discur-
sos previamente codificados; uma crise em que os discursos do amor são degra-
dados por buracos em todos os lados, e os mitos da filiação se tornam indistintos;
uma crise em que a ligação exige sofrimento, uma receptividade ao imaginário
diariamente. (1988, p. 172)
V. Reprendre 251
cosmologia akan, concluindo que o pensamento akan é empírico e que
o povo akan acredita que a ordem percorre a criação [ver Mudimbe,
1992). Será que esta conclusão confirma a hipótese geral de Placide
Tempels [1949) sobre a ontologia dos "povos primitivos" ou as teses
principais de Kagame acerca dos Banyaruanda, desde La Philosophie
bantu-rwandaise de l'être [1956) até La Philosophie bantu comparée
[1976)? Em determinados aspectos específicos, diverge dos paradig-
mas de R. Horton [1981) em "African Traditional Thought and Western
Science".
Não pretendo questionar a credibilidade destas teses e hipóteses
que atravessam a análise de Wiredu relativa à mundividência akan.
Gostaria apenas de insistir em três questões de método, a fim de escla-
recer os procedimentos intelectuais que contribuem para a conclusão
de Wiredu e o seu projecto filosófico.
Em primeiro lugar, em que sentido poderemos afirmar que o projecto
de Wiredu veicula a mundividência akan de acordo com uma interpre-
tação apropriada? A título provisório, coloquemos entre parênteses dois
problemas: o instrumentarium filosófico que permite a análise do autor
e a minha crítica, e a noção de descolonização conceptual de Wiredu.
A distinção entre apropriado e inapropriado revela-se útil numa
perspectiva filosófica. Segundo o ponto de vista da filosofia moral, por
exemplo, uma boa leitura significa espremer um entendimento ético
positivo a partir de um conjunto de símbolos, enunciados ou regras
de comportamento. Por outras palavras, o filósofo pode investigar um
sistema cultural e as suas positividades a fim de abordar as seguintes
questões: Por que estamos aqui? Quais as verdadeiras razões subja-
centes às motivações e acções dos Akan? Será a pessoa akan assim e
assado? Por conseguinte, a leitura do significado simbólico ou real se-
ria não só descritivo como também normativo. Por outras palavras,
os valores que o filósofo ganês ou inglês projecta nos dados e na con-
clusão, reflectem, de alguma maneira, um conjunto de pressupostos
iniciais discretos. Por outro lado, em ciência, e mesmo na filosofia, uma
conotação diferente emana da expressão "interpretação apropriada".
Antes da mecânica quântica, os cientistas aceitavam, em regra, as leis
de Newton. Nesse sentido, a obtenção da verdade derradeira dependia
da precisão instrumental, acreditando-se que, com o aperfeiçoamento
dos instrumentos das experiências, o cientista seria capaz de alcançar
a simultaneidade entre imagens reais e virtuais. Em termos metafísicos,
os símbolos que mediavam entre o cientista e os supostos transcenden-
tais desapareceriam, e o cientista veria uma realidade nua, livre. Em
comparação com o filósofo, o cientista newtoniano poderá adoptar
uma posição não-normativa.
V. Reprendre 253
Esta distinção permitiu-lhe descrever criticamente o espaço de um
exercício filosófico em relação às práticas africanas da vida quotidiana.
Quanto a mim, o processo, encetado por Wiredu, de apropriação de
significados que definem um presente relativamente a um tempo e a
um espaço designa-se de invenção, nas duas acepções do termo lati-
no: in+venire, indo ao encontro de e, ao mesmo tempo, descobrindo e
apropriando-se daquilo que Michel de Certeau apelidou simpaticamente
de contrato com outro ser. Centremo-nos no maravilhoso "pecado" de
Wiredu e nas suas afirmações sobre um ser determinado, o Ser Su-
premo. Zomba gentilmente da invenção inconsistente de J.J. Maquet
relativa a um deus ruandês transcendente, supostamente incorpóreo.
Estabeleceu uma oposição entre este deus e o deus do pensamento
cosmológico akan, um antepassado idealizado an indefinitum. Ora,
conheci outros deuses incorpóreos, em livros: o do povo Mongo con-
forme descrito por Hulstaert (1980) ou do povo Luba conforme descri-
to por Van Canaeghem (1956). A solução para problema não está - e
receio que não poderá simplesmente estar - na aplicação da oposição
entre seres e fenómenos físicos e quase-físicos. Suponho que, aos olhos
de um sapateiro, podemos realmente indagar sobre o motivo pelo qual
antropólogos competentes como Hulstaert (1980) e Van Canaeghem
(1956), entre outros, forjaram deuses incorpóreos enquanto os estu-
dantes africanos de filosofia - como no caso de Tshiamalenga (1977
a, b e 1980) e Wiredu - exibem uma tendência para detectar apenas
um modelo antropocêntrico de deuses africanos. Estou ciente de que
podemos invocar a exigência do rigor e da consciência epistemológica.
Porém, gostaria de poder compreender a inconsistência metodológica
de Aléxis Kagame (1956, 1976), que optou por arriscar e construir a
sua filosofia com base num corpus linguístico, evidenciando ainda uma
concórdia notável com os antropólogos. Sobre esta matéria, afigura-se
importante levantar a seguinte questão: qual o motivo da nossa re-
lutância em acompanhar e confiar nos antropólogos? Provavelmente,
Kagame era mais uma espécie de antropólogo do que um metafísico.
Por outras palavras, pela honra dos povos akan, inscreveria, na
esteira de Foucault, o discurso filosófico nas suas próprias margens
obrigando-o a enfrentar práticas discursivas de carácter não-filosófico
- trata-se da minha segunda questão relativa ao método. Como possível
exemplo, podemos invocar a manipulação levada a cabo por Clifford
Geertz da noção de "descrição densa" de Gilbert Ryle. Eis o tema:
A piscadela é simplesmente a contracção mecânica de um olho. Porém, contrair um
olho pode não ter qualquer significado ao passo que uma piscadela, mecanicamente
idêntica, implica a iniciação de algum tipo de conspiração. Outra possibilidade é a de
V. Reprendre 255
"africana". Permitam-me que reformule esta ambição de praticar
filosofia em África; ou, mais especificamente, a ambição dos filósofos
que por acaso são negros. De facto, resta-me somente aludir à minha
própria experiência e, portanto, à minha própria subjectividade.
Um colega africano na École Pratique des Hautes Études en Sciences
Sociales de Paris tem trabalhado, há alguns anos, como editor no pro-
jecto de uma enciclopédia de culturas africanas. Em virtude do seu
âmbito e da sua ambição, o empreendimento traz à memória duas
colecções históricas de proporções monumentais: a Cambridge History
ofAfrica composta por vários volumes (1975) e a colecção da UNESCO.
No domínio da literatura, Ambroise Kom, dos Camarões, editou re-
centemente um dicionário enciclopédico de literatura africana. Neste
momento, nos Estados Unidos, Ruth Stone está a editar uma enciclopé-
dia de música africana na Universidade de Indiana, que irá concorrer
com outro projecto da mesma natureza apoiado pela UNESCO; e John
Johnson, também da Universidade de Indiana, está a editar uma enci-
clopédia de folclore africano. Quando, há quatro anos, recebi o convite
da Garland Publishing Company para assumir o cargo de editor-chefe
de uma enciclopédia de religiões e filosofia africanas, pensei em ga-
rantir a colaboração de académicos conceituados nos domínios das
humanidades africanas, das ciências sociais e da teologia. De entre as
personalidades por mim contactadas estava John Middleton, Profes-
sor Emérito de Antropologia da Universidade de Yale, a quem dirigi
um convite para integrar o conselho editorial. Na sua resposta infor-
mou-me de que aceitava participar no projecto e que, em princípio,
seríamos concorrentes pois estava a desempenhar as funções de edi-
tor-chefe de uma enciclopédia da Simon and Schuster sobre a África
Subsariana.
Obviamente que algo estava a acontecer e, a meu ver, tratava-se de
uma situação simultaneamente paradoxal e interessante. Todas es-
tas enciclopédias estavam dotadas de um determinado significado
em termos de uma reavaliação do nosso saber sobre África, e de uma
produção de um saber novo e actualizado. O acontecimento afigura-se
surpreendente se tivermos em linha de conta um conjunto de factores:
a recessão; o número limitado de africanistas comparados ao exército
de especialistas sobre a civilização europeia; a crise e os orçamentos
reduzidos dos centros e programas de estudos africanos e afro-ameri-
canos. O paradoxo assume a forma de uma pergunta - ou melhor, sus-
cita uma série de perguntas: a) Como explicar a presente ocorrência
de investimentos económicos e financeiros desta natureza? b) Que
tipo de urgência exigiria um esforço destes? c) Será possível aventar
que determinados editores se transformaram, qual milagre, em servos
V. Reprendre 257
instrumentarium filosófico rigoroso), conforme realizada por Placide
Tempels e os seus discípulos, demonstra um culto da diferença desidioso
mas sincero. Ao reconhecer este facto, creio que poderemos inscrever, na
enciclopédia, este momento e a sua ingenuidade na história da filosofia
africana da mesma forma com que consideramos os pré-socráticos os
antepassados da filosofia grega, c) Por fim, problemas de ordem filosó-
fica, os quais já foram mencionados.
Deverei sublinhar que a filosofia, na acepção grega da sua génese
e no verdadeiro significado da sua tradição, assim como nas suas práti-
cas contemporâneas, se define a si própria como saber e disciplina, da
mesma maneira como nós entendemos a história, a economia, a astro-
nomia e a botânica enquanto saberes? Todavia, corresponde também a
muito mais do que esse tipo específico de saber determinado. Podemos,
por exemplo, pensar na definição metafórica da filosofia como uma ár-
vore, apresentada por Descartes. Não poderemos contemplar a possi-
bilidade de considerar a filosofia como aquele discurso susceptível de
transcender dialogicamente três níveis complementares, remetendo
para o trabalho de Paul Ricoeur: a) o nível dos discursos e das interpre-
tações dos acontecimentos fundadores de uma cultura; b) o nível de
discursos de peritos que realizam práticas disciplinares ou, por outras
palavras, aquilo que pode ser considerado como discursos científicos; c)
por último, um terceiro nível, designadamente o da filosofia. Que fique
bem claro: por filosofia, entendo um discurso explícito, crítico, autocríti-
co e sistemático assente na linguagem e na experiência do primeiro e
do segundo níveis, com os quais não se funde, apesar de não se verifi-
car uma relação totalmente autónoma, porquanto foram esses mesmos
níveis que tornaram a filosofia possível e concebível inicialmente.
De facto, podemos indagar acerca dos princípios metodológicos basi-
lares que organizariam não apenas as religiões e a filosofia africanas na
sua economia geral como também a tabela de entradas, o seu número,
as variações em termos de extensão, além da sua complementaridade.
Seleccionei dois princípios essenciais: quanto ao primeiro, caracteri-
za-se por ser clássico e inspirado na obra centenária, French Vocabu-
laire technique et critique de la philosophie, comummente designado
de Laiande (o nome do seu primeiro editor) nos círculos francófonos.
O princípio estipula o seguinte: apresentar descrições semânticas que
esclarecem um determinado conceito, evitando em absoluto qualquer
confusão, erro ou sofisma. As definições deveriam estar cultural e his-
toricamente fundamentadas. Com efeito, citando Laiande novamente
numa alusão a Schopenhauer, a filosofia que afirma estar desprovida
de apriorismos constitui um charlatanismo filosófico. No meu caso,
devo reconhecer dois a priori: um etnográfico e outro técnico.
V. Reprendre 259
ponto: nós, todos nós, falamos e analisamos as situações a partir de um
dado local, e contestar este facto em específico já constitui por si uma
questão importante. Uma solução simples seria considerar a prática
concreta da etnografia.
V. Reprendre 261
The Religious Heritage and Spiritual Search ofCerno Bokar SaalifTaal
(1984), de Louis Brenner, que corresponde a uma exploração da "de-
manda espiritual de Cerno Bokar" e, nas palavras de Brenner, "um es-
tudo sobre a interacção entre, por um lado, a influência do seu ambiente
social e religioso e, por outro, a sua ânsia pessoal de encontrar a 'Ver-
dade'"; Social Facts and Fabrications: 'Customary' Law on Kilimanjaro
1888-1980 (1986), que, no fundo, versa sobre lacunas e descontinui-
dades entre "a lei praticada na vida de um povo (os Chaga) e a lei prati-
cada nos tribunais"; e Moral Imagination in Kaguru Modes of Thought
(1986), que reúne a prática da vida quotidiana, as representações e os
procedimentos dos Kaguru para a formação de conceitos morais.
Apesar de, à semelhança das línguas românicas, distinguir entre os
conceitos de "pensamento" e "conhecimento", a língua inglesa, no que
se refere ao último, não separa os valores especializados de dois con-
juntos complementares de conceitos: por um lado, savoir, saber, sapere,
e por outro, connaître, conocer e conoscere. É possível imaginar o meu
problema. Trata-se de uma questão fulcral no que diz respeito à enci-
clopédia. De facto, verifica-se a oposição de duas ordens conceptuais,
seja de uma forma implícita ou explícita. A primeira, provavelmente a
ordem mais visível, refere-se a, e articula, análises históricas e antropológi-
cas sobre as transformações que proporcionaram uma nova geografia
continental e promoveram novos sistemas de saberes e conhecimento
em África, sobretudo a partir do contacto com o Ocidente. Estas no-
vas sequências enfrentaram, despedaçaram ou simplesmente desar-
ticularam formas e práticas antigas do conhecimento. O facto de estas
formas consideradas "tradicionais" não terem desaparecido deve ser
óbvio ao atentarmos nas contradições actuais que existem por todo
o continente, sobretudo entre os processos de produção e as relações
sociais de produção, entre a organização do poder e da produção e,
por outro lado, os discursos políticos. Com efeito, as culturas africanas
dispuseram e dispõem de saberes e conhecimentos próprios, os quais
estão inscritos em, e dependentes de, tradições. Todavia, creio que se-
ria ilusório encetar em busca por tradições africanas originárias, puras
e definitivamente fixas, mesmo no período pré-colonial. A propósito
da herança africana [Consciencism, 1960), era o entender de Nkrumah
que a experiência colonial e o seu poderoso legado exemplificavam
algo que, em termos de conhecimento e experiência, ocorria desde
séculos, designadamente aquilo que os franceses designam de métis-
sage (miscigenação), na acepção desenvolvida por Jean-Loup Amselle
recentemente na sua obra La Raison Métisse (1990). A realidade das
miscigenações desafia a ideia de tradição enquanto essência pura
que testemunha o seu próprio ser originário. Na sua obra Paths in the
V. Reprendre 263
na crença de que existe uma ordem inerente à criação. Com efeito,
podemos interrogar-nos sobre se esta ordem não constitui uma modelo
reconstruído de uma proto-prática que Wiredu pensa ter encontrado
na sua investigação. Ao longo do seu projecto, evita com prudência uma
diferenciação clara entre saber e pensamento, apesar de referi-la na ten-
são que forja entre okra e sansum, na qual, ingenuamente, tenderia a
identificar a oposição kantiana entre Verstand e Vernunft.
A prática filosófica de Wiredu ou da enciclopédia desafia os limites
que circunscrevem os conhecimentos, as suas migrações e as suas
capacidades de alteração e transformação das memórias. Desde que
comecei o meu trabalho no projecto da enciclopédia, fui inundado pela
certeza de ser "colonizado" por três tipos principais de conhecimentos
antigos. O primeiro corresponde a um conhecimento {saberes e conhe-
cimentos) que depende de um poder político: expande-se "em nome
do Pai, do Filho e do Espírito Santo"; ou, segundo a revelação absoluta
do Corão: esta é a Palavra de Deus ao Seu Profeta. No âmbito dos es-
tudos de Pierre Bourdieu, trata-se de um conhecimento que maximiza
a riqueza material e simbólica dos profetas e dos missionários. O se-
gundo tipo é de natureza genealógica: por que motivo devo remontar
a Platão ou Santo Agostinho para abordar a história intelectual das
culturas africanas? O que me leva ao último tipo de conhecimento que
me afronta: em termos metodológicos, caracteriza-se por ser secular
e, por definição, utilizável devido à sua eficiência e às moralidades dos
seus efeitos no meu pensamento. Refiro-me, por exemplo, ao conheci-
mento de disciplinas como a antropologia e a história.
Para mim, a totalidade destes conhecimentos parece funcionar como
uma ficção. Serão reais? Em todo o caso, a meu ver, apresentam uma
natureza idêntica à dos mitos magnificamente analisados por Luc de
Heusch na sua obra The Drunken King [1982]. Todavia, não consigo
imaginar a enciclopédia que estou a dirigir sem eles. Em The Practice
of Everyday Life [1984], Michel de Certeau observou com propriedade
que "o postulado antigo da invisibilidade do real foi substituído pelo
postulado da sua visibilidade. O panorama sociocultural moderno
refere-se a um "mito". Este panorama define o referente social através
da sua visibilidade [e, portanto, da sua representatividade científica
ou política]; articula sobre este novo postulado [a convicção de que o
real é visível] a possibilidade do nosso saber, das nossas observações,
das nossas demonstrações e das nossas práticas".
Nesta obra, procurei explicar que a desordem epistemológica e in-
telectual representada pela minha leitura também constitui, efectiva-
mente, uma questão política. O saber articulado na futura enciclopé-
dia testemunhará uma vontade de verdade e, como tal, pode ser desde
logo pleiteado.
- Montaigne, Essais, 2, p. 26
Coda 265
entre discursos passados e o silêncio de uma promessa, optei por não
excluir associações (em termos de analogias possíveis) e muito me-
nos impor uma genealogia intelectual (em termos de interpretação
de tradições e idéias; analisando, deslocando, expondo e resistindo a
este passado; estas idéias nas quais as genealogias, por sua vez, se
reflectem).
Suspenso entre, e alheio a, dois momentos - na realidade, o meu pas-
sado e o meu depois - tinha consciência de que poderia evidenciar
com rigor o tema kantiano da permanência e, nas contradições do meu
compromisso metodológico, me identificar com todas as perguntas
que, ad vallem, poderiam incidir sobre aquilo que Willy Bal tem en-
frentado há anos.
Na sua comunicação de 9 de Junho de 1990, dirigida à Academia
Belga, sobre "Confidences d'un Wallon 'wallonnant' et 'tiers-mondi-
aliste'", Willy Bal glosa sobre a prática da sua disciplina através de
uma reflexão a respeito da sua vida e do seu meio humano, expondo
uma análise que, para muitos, poderá funcionar como uma ilustração
da fusão entre o Mesmo e o Outro, graças a uma vontade consciente
de reunir numa afinidade memórias aparentemente diferentes e até
antagônicas.
Vejo todos estes homens despojados da sua humanidade, sendo, em seguida, regis-
tados e considerados meros "bocados de ébano". Ouço o Grande Rei Cristão a lançar
as suas embarcações numa conquista "de almas e especiarias". O velame carnal das
almas pode ser exaurido pelo escorbuto e pela disenteria, pois, em todo o caso, a
alma beneficia da salvação pela graça do baptismo. Porém, as especiarias devem
chegar em segurança ao porto, com o seu sabor garantido, prontas para desencalhar
o tesouro real. Ilha da Goreia: o pôr-do-sol sobre um mar agitado, contemplado
por entre as grades da clausura. Quem contará, um dia, o segredo ou desespero
penetrante daqueles corações de madeira de ébano?
Percorro assim a esterilidade dos registos, dos arquivos, das relações, da história,
que evidenciam uma acentuada reserva face aos "pequenos" numa tentativa de
decifrar o palimpseste dos camponeses. Contudo, tacteio igualmente na matéria
viva das minhas próprias memórias, daquilo que vi, ouvi e vivi.
Tenho a felicidade de dispor de duas memórias: uma imediata, próxima, crua, for-
jada pela experiência, incrustada, por vezes, como dolorosos depósitos de cálcio
nos meus ossos, nas minhas articulações, nos meus músculos, nas minhas mãos; a
memória de um pastor, um lenhador, um ceifador, um cativo, um camarada.
E depois uma memória profunda, distante, celular, uma memória do salmão a na-
dar contra as correntes e sobre as represas até alcançar as águas da desova, uma
memória secreta amarrada a uma pedra de calcário, decifrando o sussurro da água
subterrânea que irriga os meus genes.
267
da sua formação. Isto se, de facto, após Bal, aceitarmos o rigor de con-
ceber a diferença com seriedade e nos submetermos às exigências tan-
to de uma análise regressiva quanto de um confronto e acompanha-
mento das figuras constritivas desta idéia até aos nossos dias. Procurei
demonstrar e definir a formação desta idéia e a sua complexidade,
sublinhando assim os seus aspectos nas apreensões cognitivas. O facto
de este livro começar e terminar como um monólogo subjectivo acerca
de memórias e interpretações aponta igualmente para uma forma de
tratamento e interpretação da história dos conceitos. Em termos mais
prosaicos, conforme referido por Jack Goody, será que a escrita desta
história a torna também um acontecimento moderno? Com efeito,
A escrita oferece-nos o ensejo de [...] um monólogo, muitas vezes impedido pela
comunicação oral. Permite ao indivíduo "expressar" os seus pensamentos minucio-
samente, sem interrupção, corrigindo e apagando, segundo determinadas fórmulas
apropriadas. Evidentemente que este propósito requer não apenas um modo de
escrita, mas uma escrita cursiva e os instrumentos específicos que propiciam um
registo célebre. Para efeitos de registo de um discurso interno ou externo, pensa-
mentos ou fala, a caneta e o papel são manifestamente melhores do que o estilete
e o barro, tal como a estenografia é mais eficiente do que a escrita por extenso, e a
máquina de escrever eléctrica mais eficiente do que a manual. (Goody, 1977, p. 160).
269
extrair uma idéia de África a partir de uma literatura vasta e de de-
bates complexos.
A segunda questão diz respeito à reacção face a "esta" idéia de África.
Por exemplo, conferi destaque a uma grecomania negra, uma vez que
me parecia ilustrativa de uma revolta contra a representação ocidental
de si própria e dos outros. Com efeito, esta revolta desenrola-se numa
das esferas mais importantes e frágeis da cultura ocidental. Em nome
da filologia e da história, a revolta articulou os seus argumentos como
um desafio para uma interpretação mais correcta da história grega,
para um entendimento mais credível da gênese da civilização ociden-
tal.
A idéia de África apresentada neste livro pode parecer, de facto, de-
masiado dependente de textos ocidentais. Mesmo assim, no meu en-
tender, trata-se de uma escolha sensata. A fim de compreender a or-
ganização arqueológica desta idéia de África e das suas ressonâncias,
creio ser impossível não tomar em linha de conta a literatura ocidental
e, em particular, a sua culminação no "acervo colonial". Concordo com
a possibilidade de partir de um contexto africano e identificar os seus
próprios efeitos. Contudo, receio que uma perspectiva desta natureza
acarretaria uma minimização do significado dos seus próprios instru-
mentos conceptuais. É verdade que o tráfico de escravos ou a coloni-
zação do continente seriam vistos de um modo diferente, mas, no seu
todo, essas visões perderiam a sua coerência histórica e conceptual.
Conforme observado por Immanuel Wallerstein: "a economia mundial
capitalista, ao colocar a questão sobre se um conjunto de idéias, ou um
modo de pensamento, é universal [europeu] ou africano apenas nos
faz regressar ao duplo vínculo forjado pelo próprio sistema. Para nos
libertarmos deste duplo vínculo, é necessário tirar partido das con-
tradições do próprio sistema de modo a contorná-lo" (1988, p. 332).
Contar histórias constitui uma forma de desarticular as pretensões
de um autor, bem como de reformular as supostas derivações lógicas
até de uma prova matemática. De facto, a história organiza os seus
próprios alicerces, as suas operações, os seus objectivos e as suas an-
tecipações. O mestre da representação de contar histórias é o ouvinte
que, quando enfastiado, pode parar a qualquer momento ou simples-
mente deixar de ouvir. Circulando na minha biblioteca imaginária, que
inclui os melhores e os piores livros sobre a idéia de África, escolhi
o meu próprio caminho, o que me levou para lá das fronteiras clas-
sicamente históricas (em termos de referências e textos) e, ao mesmo
tempo, manteve-me com firmeza naquilo que corresponde a uma linha
de desolação. Na sua transparência, independentemente do ângulo
adoptado, a vontade de verdade desta história (que alega regressar
9789S986ÇÇ1
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