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A Ideia de

ÁFRICA
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edições pedago
V. Y. M u d i m b e nasceu em 1941 em Jadotville, no
antigo Congo Belga, hoje República Democrática
do Congo. Foi seminarista durante a juventude,
mas afastou-se para se dedicar ao estudo das for-
ças que enformaram a história africana. Professor,
filósofo e autor de uma vasta bibliografia sobre
a história e cultura africanas, Mudimbe obteve
o seu doutoramento em filosofia pela Catholic
University of Louvain, em 1970. Em 1997 rece-
beu o Doutoramento Honoris Causa pela Uni-
versité Paris VII Diderot e, em 2006, recebeu a
mesma distinção pela Katholiene Universiteit
Leuven. Foi professor nas universidades de
Paris-Nanterre, Zaire, Stanford, e ainda no Have-
ford College. Ocupa actualmente a prestigiada
posição de Newman Ivey Professor of Literature,
na Duke University. Mudimbe é ainda o autor de
uma extensa produção poética, de vários ro-
mances e de várias obras no campo da linguística
aplicada. Durante a sua longa carreira, em que
os seus principais interesses se situaram sempre
no campo da fenomenologia e do estruturalismo,
V. Y. Mudimbe foi o presidente do Board of
African Philosophy e do International African
Institute [SOAS, University of London], tendo-se
também tornado membro honorário da Acadé-
mie Royale des Sciences d'Outre Mer (Bélgica),
da Société Américaine de Philosophie de Langue
Française, da Society for Phenomenology and
Existential Philosophy e, ainda, do World Institute
for Advanced Phenomenological Research and
Learning.
V. Y. Mudimbe é, incontornavelmente, um dos
grandes pensadores africanos do século XX.
\

^ àe Ciêfjc-

edições pedago
Colecção Reler África
Nota de Apresentação
Uma das lacunas do mercado editorial dos países de língua oficial
portuguesa é a ausência, em língua portuguesa, de obras de referência
de autores africanos e africanistas, que fizeram cátedra no domínio
dos chamados "estudos africanos" nas academias dos países anglófo-
nos e francófonos.
A Colecção Reler África pretende colmatar essa lacuna. Trata-se de
uma colecção especializada em temáticas africanas no domínio das
Ciências Sociais e Humanas. Ao inaugurar esta colecção, as Edições
Mulemba da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho
Neto (Luanda - Angola) e as Edições Pedago (Mangualde - Portugal)
pretendem criar um espaço de debate, alteridade e reflexão crítica
sobre o continente africano.
A colecção publicará obras, textos e artigos compilados de reconheci-
dos autores africanos e africanistas, que contribuam para a compreen-
são e a reinterpretação do continente africano.
Além de apresentar uma visão endógena (de dentro) do continente,
a colecção está aberta à comunidade científica internacional que tem o
continente africano como objecto da sua pesquisa.
Publicar e divulgar conhecimentos e saberes sobre África e provenien-
tes de África é, assim, um desafio que a colecção abraça, de contribuir
para a construção de uma nova epistemologia e uma nova hermenêu-
tica dos estudos africanos no espaço lusófono, livre de estereótipos e
de um olhar folclórico e exótico. Ao abraçar esse desafio, a colecção
pretende ser uma galeria de conhecimentos e saberes de África e
sobre África, que interpele os leitores e investigadores especializados
a reler África para compreendê-la e reinterpretá-la.
Luanda, 19 de Agosto de 2012.

Victor Kajibanga
(Coordenador da Colecção Reler África)
Copyright © 1994, Indiana University Press
Tradução para a Língua Portuguesa Autorizada pela Indiana University Press.
Todos os direitos reservados.
Título original: The Idea of Africa
© desta edição
Edições Pedago, Lda.
Título; A Idéia de África
Autor: V. Y. Mudimbe
Colecção: Reler África
Coordenador da Colecção: Victor Kajibanga
Tradução: Narrativa Traçada
Revisão do Texto: José Miguel Cerdeira
Design e Paginação: Márcia Pires
Impressão e Acabamento: Tipografia Lousanense
ISBN: 978-989-8655-19-6
Depósito Legal: 367856/13

Dezembro de 2013
A presente publicação é uma coedição das Edições Pedago e das Edições Mulemba
da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto, Luanda, Angola.
Nenhuma parte desta publicação pode ser transmitida ou reproduzida por qualquer
meio ou forma sem a autorização prévia dos editores. Todos os direitos desta edição
reservados por
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A Ideia de
AFRICA
Y. ï. MUDIMBE

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Anthropologie ist jene Deutung des Menschen,
die im Grunde schon weiß, was der Mensch ist
und daher nie fragen kann, wer er sei. Denn mit
dieser Frage müßte sie sich als selbst erschüt-
tert und überwunden bekennen.

A antropologia é aquela interpretação do


homem que, no fundo, já sabe o que é o homem
e, portanto, nunca pode perguntar quem ele é.
Pois tal pergunta implicaria reconhecer-se a si
mesma como abalada e superada.

Martin Heidegger, "Die Zeit des Weltbildes." In


Holzwege (Vittorio Klosterman, Francoforte-no-
-Meno, 1950), 69-104, p. 103, "Addendum 10".
A Daniel e Claude
índice
Prefácio ii
I. Os Símbolos e a Interpretação do Passado Africano 23
II. Que Idéia de África? 65
III. O Poder do Paradigma Grego 103
IV. A Domesticação e o Conflito das Memórias 141
V. Reprendre 199
Coda 265
Referências Bibliográficas 273
Ilustrações
25 Hércules entre os pigmeus, de Filóstrato, ícones
40 África, do atlas mundial de Gerald Mercator, 1595
40 África, de J. W. Heydt, 1744
43 Mulheres africanas, 1591
47 Músico Barberini, estatueta em bronze, c. 200 a.C.
88 Mother and child, Jacob Epstein, 1913
89 Painting, Joan Miró, 1933
90 Oferendas de gratidão. Paul Gauguin, c. 1891-93
91 Little French Girl, Constantin Brancusi, c. 1914-18
93 Les Demoiselles d'Avignon, Pablo Picasso, 1907
94 Busto, Amadeo Modigliani, 1915
96 Figura hermafrodita, Mali
105 0 mundo no tempo de Heródoto, 440 a.C.
112 Allegory of Africa, Marten de Vos, século XVI
117 Mémnon com um homem negro. Vaso grego, século VI a.C.
118 Mémnon com duas amazonas. Vaso grego, século VI a.C.
127 Eixos comerciais no Saara
155 África pré-colonial
155 África pós-colonial
156 África independente antes de 1975
180 Mpala, 1975
180 Mpala, a outra ordem
181 The Missionary. Emil Nolde, 1912
200 Busto de um rei, Ashanti,c. 1750
204 Pierre Romain-Desfosses com os seus discípulos
214 Héro National Lumumba, década de 1970
214 The Battle with Mosquitoes, Cheri Samba
217 Um projecto de habitação, Boudier e Minh-ha, 1985
218 Materna, Trigo Puila, 1984
219 Toucado feminino Chi Wara, Mali
221 Mukishi wa pwo, a mãe mítica primordial, Zaire
223 Mami Wata, uma temática mitológica
Prefácio
Este livro incide sobre uma idéia, a idéia de "África". Em que consiste
e de que modo está ligada à literatura contemporânea? Ao regressar a
este ponto, senti-me compelido a enfrentar uma simples questão: que
tipo de histórias deveria contar aos meus dois filhos "americanizados"
sobre África?
Teria sido fácil, demasiado fácil, explorar as representações e categorias
exóticas de África, presentes, designadamente, na literatura inglesa ou
francesa, e marginalizá-la no âmbito daquilo a que Bernard Mouralis
designou de "Contrelittératures". Como é sabido, existe uma tradição
que veiculou esta idéia exótica de África durante séculos. Ao invés de
firmar o presente projecto nesta tradição literária controversa e dis-
putada, prefiro interpretar o conceito e a história desta literatura de
um modo que me permita transcender a continuidade e a predominân-
cia de uma imaginação exoticista e, ao mesmo tempo, dar conta do seu
surgimento. Por conseguinte, as minhas referências e análises podem
ser surpreendentes na medida em que justapõem fontes e convenções
bastante díspares. Elas constituem um mosaico que, apesar de ilustrar
uma idéia de África desenvolvida no seio da tradição ocidental e in-
cluir, de facto, as reacções dos africanos a esse respeito, não pretende
discorrer sobre designações descritivas antigas do continente, mas
antes convidar à reflexão sobre a sua credibilidade e a autenticidade
das identidades, da geografia e da mitologia africanas constantes na
literatura.
Note-se que a própria denominação do continente é, por si só,
muito problemática. Os gregos apelidaram-no de Líbia e designavam
qualquer indivíduo da raça negra deAithiops. A confusão desencadeia-se
com os romanos, cujo império incluía uma província conhecida como
África, sendo que os seus intelectuais utilizavam o mesmo termo para
fazer referência à "tertia orbis terrarum pars" [por exemplo, Salústio,
Jug., 17, 3), ou seja, ao continente tal como o conhecemos, o terceiro
depois da Europa e da Ásia. A confusão adensa-se com a "descoberta"
europeia do continente no século XV.
Tratando-se de uma continuação de A Invenção de África (1988),
este livro apresenta digressões em torno da "idéia" multifacetada de
África. De acordo com a abordagem e as balizas adoptadas, esta idéia
é um produto do Ocidente, a qual foi concebida e transmitida através
de sistemas de conhecimento divergentes. A partir de Heródoto, as
auto-representações do Ocidente incluíram sempre imagens de povos
situados fora das suas fronteiras culturais e imaginárias. Se, efecti-
vamente, estes forasteiros eram vistos como originários de um local
geográfico específico e longínquo, afigura-se paradoxal o facto de serem,
ainda assim, imaginados e rejeitados como a outra face íntima do su-
jeito pensante europeu, no quadro do modelo analógico da tensão
entre o ser-em-si e o ser-para-si. De qualquer modo, a partir do sé-
culo XV, a ideia de África incorporou novas interpretações científicas e
ideológicas nos campos semânticos de conceitos como "primitivismo"
e "selvajaria". A expansão geográfica da Europa e da sua civilização
constituiu então uma crónica sagrada de proporções míticas. O único
problema - e trata-se de um problema considerável - reside no facto
de que, ao longo do seu desenvolvimento, esta civilização submeteu
o mundo à sua memória; mas, ao mesmo tempo, pareceu ser sancio-
nada pelos males mais incríveis que um louco poderia imaginar e que,
aparentemente, ela própria engendrou. Atentando apenas nos últimos
cinco séculos, consideremos três monstruosidades de relevo que pa-
recem indissociáveis da história do Ocidente: o tráfico de escravos e a
sua política a partir do século XV, o colonialismo e o imperialismo nos
finais do século XVIII e durante o século XIX, e o fascismo e o nazismo
no século XX.
Partindo de uma tradução francesa, da autoria de Blaise de Vigenère
(1614), de ícones do grego Filóstrato e do tratado sobre a melancolia
(1621) do inglês Robert Burton, dedico-me, na presente obra, a um
breve estudo acerca das ligações gregas ao continente, a questões
associadas ao relativismo, ao paradigma grego e ao seu poder e, por
fim, à política da memória. Contemplo ainda a recuperação dos textos
gregos por parte dos académicos negros nos nossos dias e os debates
sobre "razão etnológica", primitivismo e "domesticação" colonial. Fi-
nalmente, arrosto um problema contemporâneo: qual a ideia de África
facultada pelas ciências sociais de hoje? Estes cinco capítulos são, muito
simplesmente, histórias que escrevi para os meus filhos "americaniza-
dos" nascidos em África.
O espaço intelectual abrangido descreve África como um paradigma
da diferença. Conforme demonstrado por Alain Bourgeois (1971), apa-
rentemente, esta peculiaridade não tinha mais peso para os gregos do
que o significado das palavras África, Etiópia e Líbia. Os asiáticos e os
europeus do Norte também eram "bárbaros", funcionando no imaginário
grego como uma ordem homogénea de alteridade. Creio ter sido a Eu-
ropa dos séculos XV e XVI a responsável pela invenção do selvagem

Bi, V.Y. Mudimbe A Idéia de África


como uma representação do seu próprio duplo negado. Graças aos ex-
ploradores e aos seus escritos, um "acervo colonial" começa a ganhar
forma no final do século XIX, representando um corpo de conhecimen-
to construído com o objectivo explícito de traduzir e decifrar fielmente
o objecto africano. Na realidade, cumpriu um projecto político no qual,
supostamente, o objecto desvenda o seu ser, os seus segredos e o seu
potencial a um senhor que poderia então domesticá-lo. É certo que a
complexidade e a ambição do acervo colonial difundem o conceito de
desviância como o melhor símbolo da idéia de África. Este acervo co-
lonial é, de facto, alvo de referência e, para lá dos respectivos acertos e
ajustes, aponta para vestígios ou manifestações de uma tradição mais
antiga. De resto, procurei contornar a sua violência epistemológica
através da inclusão dos seus pesadelos, a par dos pressupostos vaci-
lantes sobre os quais assenta o seu conhecimento oneroso.
A ressalva de que A Idéia de África, à semelhança de A Invenção de
África, não versa sobre a história das paisagens ou das civilizações de
África poderá ser útil. Os acadêmicos africanos, sobretudo antropólo-
gos e historiadores, têm vindo a questionar essas paisagens e civili-
zações desde a década de 1920, reconstruindo aos poucos e segundo
novos moldes as genealogias frágeis que testemunham vitalidades
históricas, até então aparentemente imperceptíveis aos olhos dos alu-
nos de estudos africanos. Acresce que A Invenção de África não era
uma exposição da história da antropologia africana, nem mesmo da
história da conversão colonial do continente. E não é essa, certamente,
a preocupação de A Idéia de África que, em todo o caso, não inclui
análises sobre o que se pode designar de feitos africanos.
A Invenção de África brotou de uma hipótese muito simples. Em
todas as sociedades - remetendo imprudentemente para O Conflito
das Interpretações (1974) de Paul Ricceur - detecta-se sempre, em
princípio, uma espécie de discurso de grau zero: uma interpretação
popular e primária dos acontecimentos fundadores da cultura e da sua
concretização histórica. A necessidade de caracterizar este discurso
como sendo o veículo de um conjunto de lendas e mitos não se reveste
de qualquer importância, pois a sua função comum é a de testemunhar
com ingenuidade, é claro, um dinamismo histórico. Tácita, mas perma-
nente, esta referência discreta e, ao mesmo tempo, sistemática a uma
gênese marca as práticas quotidianas de uma comunidade. As famílias
reproduzem este discurso no seu dia-a-dia; as mães transmitem estas
regras aos seus filhos de forma consciente (ensinando as origens de
uma cultura à medida que forçam a criança a interiorizar uma civiliza-
ção, as suas regras espirituais e culturais e os seus valores) e a comuni-
dade no seu todo - através dos seus processos iniciáticos, do ensino e
da socialização - velará pelo desenvolvimento de um cidadão munido
do "tacto" de uma tradição, que, por conseguinte, na idade adulta, será
capaz de agir e reagir na vida quotidiana segundo parâmetros normais
e adequados. O pensamento que determina o comportamento é con-
sistente e remete silenciosamente para uma carta-mestra, mesmo se
se tratar de uma acção inconsciente quando se realiza na prática do
dia-a-dia. A Tora é um desses exemplos na tradição judaica, ao passo
que o Novo Testamento assumiu uma missão semelhante no Ocidente
cristão.
Existe, também, em princípio, um segundo nível de discursos mui-
to evidentes em determinadas sociedades e menos noutras. Eles
dispõem-se criticamente e realizam-se como disciplinas intelectuais
- história, sociologia, economia - da cultura, ou seja, como conheci-
mento disciplinar que transcende o discurso do primeiro nível e que,
graças ao seu poder crítico, domestica a esfera do conhecimento popular,
inscrevendo-a num domínio racional. É neste nível que a identidade e
a dinâmica de uma cultura se manifestam como desígnio e invenção,
como uma construção que pretende confinar num quadro regulado os
elementos essenciais e as características de um passado ou, se quiser-
mos, o "espírito da cultura", na acepção específica veiculada pelo con-
ceito romântico de Volkgeist.
A ruptura com o nível dos acontecimentos fundadores é escorreita.
Aliás, esta descontinuidade introduz uma incógnita que promove outras
práticas discursivas, se aceitarmos as grelhas de classificação de Pierre
Bourdieu: por um lado, a fenomenologia enquanto leitura crítica e au-
tocrítica que tem início num sujeito determinado e que apreende, com
rigor, aquilo que é observado, vertendo-o em discurso e conhecimento;
e, por outro, o perigoso projecto etnofilosófico tão bem descrito nos es-
tudos africanos por Placide Tempels e os seus discípulos. Ao negar os
seus fundamentos subjectivos, a etnofilosofia alegou ser uma tradução
"científica" perfeita de um sistema "filosófico" implícito existente na
experiência quotidiana, e se auto-classificou de discurso objectivista,
propondo assim que a principal chose du texte que anima a prática
quotidiana é susceptível de ser fielmente encerrada num discurso
para todo o sempre. Tal ambição parece excessiva. Mesmo os discur-
sos mais objectivistas do segundo nível - por exemplo, a história ou a
sociologia nas ciências sociais, a física ou a química nas ciências - não
negam que as suas proposições transformam e alteram frequente e
radicalmente as vozes, traduções e concepções anteriores relativas ao
que supostamente existe no mundo.
Por fim, verifica-se um discurso de terceiro nível que, em princípio,
deve ser crítico quanto aos restantes discursos (questionando as suas

Bi,V.Y.MudimbeA Idéia de África


modalidades, o seu significado e os seus objectivos) e, em simultâneo,
autocrítico por vocação. Deve ficar claro que o desvio entre o segundo
e o terceiro nível é, na prática, espúrio, tal como constatado pela fi-
losofia de Hegel, a qual integra magnificamente todos os apriorismos
do discurso de segundo nível na experiência e história europeias. Em
todo o caso, pelo menos em termos teóricos, nada obsta a que se con-
sidere este terceiro nível um nível onde um meta discurso é susceptível
de originar uma história das histórias de uma dada cultura ou, con-
forme demonstrado por Lucien Braun na sua obra, a possibilidade de
uma "história da história da filosofia" - e, no nosso caso, a utilidade de
uma história das histórias da antropologia e história africanas. E este
será apenas um primeiro passo num projecto indefinido de natureza
crítica e autocrítica. Segundo este ponto de vista, é evidente que, para
responder às perguntas "O que é África?" ou "Como definir as culturas
africanas?" não se pode ignorar um corpo de conhecimento no qual
África foi subsumida pelas disciplinas ocidentais, tais como a antropo-
logia, a história, a teologia ou qualquer outro discurso científico - facto
que tentei demonstrar muito concretamente em A Invenção de África e
Fables and Parables (1991). Este novo projecto deve ser situado neste
nível.
À medida que lia algumas críticas sobre os meus livros, a minha
primeira reacção foi remeter-me ao silêncio. Para utilizar uma me-
táfora: porque seria obrigado a jogar xadrez com pessoas que, apa-
rentemente, desconheciam as regras do jogo? Com efeito, para lá do
positivismo, tenho procurado compreender a ordem epistemológica
poderosa mas invisível que parece viabilizar, num dado momento, um
determinado tipo de discurso sobre África - ou sobre qualquer grupo
social em África, na Ásia ou na Europa. Parafraseando Michel Foucault:
por um lado, a história da ciência traça o progresso da descoberta, a
formulação de problemas e o choque da controvérsia; analisa igual-
mente as teorias na sua economia interna; em resumo, ela descreve os
processos e os produtos da consciência científica. Contudo, por outro
lado, tenta restaurar o que escapou a essa consciência: as influências
que a afectaram, as filosofias implícitas que lhe estavam subjacentes,
as temáticas não-formuladas, os obstáculos inobservados; ela descreve
o inconsciente da ciência, que corresponde sempre ao lado negativo da
ciência - aquele que lhe oferece resistência, que a desvia ou abala.
Não tenho dúvidas de que existe uma leitura nos discursos primários
das culturas africanas capaz de remeter para la chose du texte, as suas au-
toridades locais fundamentais. E contudo, o facto é inegável: os discursos
africanos foram radicalmente silenciados ou, na sua maioria, convertidos
pelos discursos ocidentais dominadores. Os conhecimentos populares
locais foram criticamente subsumidos por disciplinas "científicas".
Este processo significou não só uma superação da localidade original,
mas também a ocorrência, através da tradução (que, na realidade, é
uma transmutação), daquilo que designo de "invenção" de África. Emi4
Invenção de África e Fables and Parables observo e analiso este aspecto,
procurando distinguir níveis de interpretação e ordens de historicidade.
Conforme referido em A Invenção de África, os intérpretes ociden-
tais bem como os analistas africanos têm recorrido a categorias e
sistemas conceptuais que dependem de uma ordem epistemológica
ocidental. Mesmo nas descrições cujo pendor "afrocentrista" é mais
evidente, os modelos de análise dizem respeito à mesma ordem, seja
de forma implícita ou explícita, consciente ou inconsciente. O que sig-
nifica isto para o domínio dos estudos africanos?
Na presente obra, A Ideia de África, exploro o conceito de África
com base em todos os níveis de interpretação e analiso as suas raízes
e referências no que concerne a tradição ocidental, atentando em al-
gumas das suas constelações passadas e presentes e contando com a
minha própria participação enquanto leitor A variedade dos textos se-
leccionados espelha os meus códigos éticos e estéticos. Será que o meu
entendimento e a minha análise desta "ideia de África" confusa e que
confunde (confusa devido ã sua história e interpretação, que confunde
devido aos diferentes níveis da sua percepção) têm uma ligação válida
e autêntica com a minha subjectividade e experiência como professor
africano de antropologia cultural e história das ideias? Por outras pala-
vras: é ou não válida? Se não o for, perde interesse e deve ser posta de
parte; se o for, demonstra o óbvio e, por isso, também deve ser posta
de parte. Por conseguinte, o realinhamento correcto ou incorrecto da
"ideia" de África em histórias de exotismo sobejamente conhecidas ou
em celebrações da alteridade não é mais do que uma simples história
que pode ser pleiteada.
A Ideia de África é, sob muitos aspectos, tanto o produto quanto a
continuação de A Invenção de África, na medida em que preconiza a
existência de características naturais e culturais assim como, provavel-
mente, valores que contribuem para a realidade de África enquanto
continente e para as suas civilizações enquanto constituintes de uma
totalidade diferente das da Ásia e da Europa, por exemplo. Além
disso, qualquer análise permitiria concluir que África (a par da Ásia
e da Europa) está representada no saber ocidental por "fantasias" e
"construções" engendradas por académicos e escritores desde a An-
tiguidade Grega. Devia ser óbvio que tais construções simplificaram
complexidades culturais e complexificaram o ser desses continentes
como objectos. No caso de África, as construções têm obedecido a uma

Bi,V.Y.MudimbeA Idéia de África


ordem externa e formulado paradigmas que tendemos actualmente
a relacionar com a pré-história e a história das narrativas africanis-
tas. Em nome de uma diferença, estas construções invocaram sempre
um direito a uma visibilidade específica. A história desse direito em
si demonstra paradoxalmente uma vontade de verdade da ordem oci-
dental cuja "invenção" de África decorre desde há séculos. A história
recente da antropologia cultural pode servir de melhor exemplo.
Desde o evolucionismo ao pós-estruturalismo - passando pelo
difusionismo (representado pela escola de Viena de Schmidt), o fun-
cionalismo de Malinowski (e as suas variantes na Inglaterra e na
América), a entnofilosofia francesa, iniciada no início da década de
1940 por Mareei Griaule e tematizada pelo missionário belga Placide
Tempels, autor da conhecida obra A Filosofia Bantu (e que se viu na
posição desconfortável de ser simultaneamente rejeitado tanto por an-
tropólogos quanto por filósofos profissionais) e o trabalho magistral
de Claude Lévi-Strauss e Luc de Heusch - a história da antropologia
cultural indica muito claramente que a disciplina não tece comentári-
os sobre as suas grandes mutações, mas antes sobre as regras que per-
mitem o desenvolvimento correcto das suas proposições disciplinares.
Michel Foucault afirmou que "o que é suposto à partida não é
um sentido que precisa de ser redescoberto, nem uma identidade que
deve ser repetida; mas antes aquilo que é requerido para a construção
de novos enunciados. A existência de uma disciplina depende, pois,
da possibilidade de formular, e de formular ad infinitum, proposições
novas." (Foucault, 1982). As reacções negativas contemporâneas ao
funcionalismo ou ao estruturalismo representam nitidamente uma
percepção distorcida decorrente da chamada crítica pós-modernista
no âmbito das humanidades e das ciências sociais. Em antropologia, o
evolucionismo não é o berço do funcionalismo; e o difusionismo não
é necessariamente o prenúncio do estruturalismo. De qualquer modo,
não devemos rejeitá-los de imediato mas antes encará-los como fases
do desenvolvimento de um discurso - dotado de aspectos positivos e
negativos - conforme me recordou Ivan Karp numa nota pessoal.
O mito positivista de uma história causal - uma transposição sim-
plificada e descurada dos modelos das ciências naturais, encetada no
século XIX - tem obscurecido o facto de que, a partir do período evo-
lucionista nos finais do século XVIII, o próprio objectivo da antropolo-
gia era precisamente o de reportar a diferença. Na sua ingenuidade, a
armadilha causalista tão magnificamente veiculada por Edward Burnett
Tylor e Thomas Frazer não estabelece, por exemplo, a necessidade
do estruturalismo, da mesma forma que Diodoro Sículo ou Filóstrato
não figuram silenciosamente nas histórias de Heródoto escritas cinco

Prefácio
séculos antes. As genealogias e as causalidades, entre outros, são ape-
nas ferramentas utilizadas para organizar grelhas hipotéticas visando
a compreensão das transformações de paradigmas, da peculiaridade
das narrativas, do seu poder de negociação em termos culturais e
políticos. Assim, no que diz respeito à antropologia africana, é possível
que a questão mais relevante não se prenda com a unidade e a sig-
nificação do domínio; e muito menos com a criatividade, a originali-
dade e a sofisticação progressiva dos contributos trazidos por sábios
consecutivos, por exemplo, desde Tylor a Claude Lévi Strauss e Luc de
Heusch. Ao considerar as correntes do evolucionismo, difusionismo,
funcionalismo e estruturalismo como acontecimentos e ao abordar as
questões relativas às suas condições de possibilidade, presentes e pas-
sadas, é possível, em vez disso, formular uma pergunta fulcral: para
que configurações intelectuais servem elas de testemunho? De acordo
com esta perspectiva, afigura-se interessante notar que ninguém na
história da disciplina deve ser considerado "aberrante"; e, para um es-
tudante de história das ideias, a pergunta incómoda seria, por exemplo:
por que motivo Sir Evans Pritchard ou Meyer Fortes não são conce-
bíveis no século XVII e de que forma é possível compreender Herskovits,
Lévi-Strauss ou Mveng como produtos do século XX? Em suma, o ver-
dadeiro problema parece residir nas configurações epistemológicas e
nos tipos de práticas discursivas que propiciam.

Gostaria de agradecer os contributos de um conjunto de colegas e


amigos: Katya Azoulay, Arnd Böhm, Elisabeth Boyi, Stanley Blair, Gau-
rav Desai, Marjolijn de Jager, Denise McCoskey e Rigobert Obongui que
me ajudaram, aconselharam e apoiaram. Estou imensamente grato a
Bogumil Jewsiewicki, Ivan Karp e Allen Roberts pelas suas críticas e
sugestões. A minha gratidão estende-se também a Rita Henshaw^, que
dactilografou a primeira versão deste livro, e aos meus colaboradores
directos no Duke Graduate Program in Literature, Priscilla Lane e Dan
Pillay, pela sua assistência competente e perseverante. Presto ainda os
meus sinceros agradecimentos a Janet Rabinowitch da Indiana Univer-
sity Press, e à minha editora. Nan Miller, cuja coordenação editorial foi
muito além daquilo que poderia supor.
Algumas partes do presente livro já foram incluídas em revistas ou
publicações colectivas. Agradeço aos editores a autorização para reescrevê-
-las e incluí-las no livro e, sobretudo, a Henry Finder {Transition^ e a
Susan Vogel do New York Center for African Arts. Um excerto deste
livro, "Amazonas, bárbaros e monstros", foi publicado num número

Bi,V.Y.MudimbeA Idéia de África


da revista South Atlantic Quarterly, com edição de Frederic Jameson,
dedicado à investigação em curso na faculdade da Duke University.
A bibliografia inclui livros que consultei e que estavam na minha
posse. Não são necessariamente versões originais e as suas datas es-
pecificam a edição e a editora. Optei, preferencialmente, por utilizar
e indicar as versões em língua inglesa, mesmo nos casos em que es-
tava perfeitamente familiarizado com o original noutra língua. Como
tal, quando remeto, na bibliografia, para um original que não está em
inglês, a tradução constante no texto é da minha autoria.
Dedico esta obra aos meus dois filhos, Daniel e Claude e, em jeito de
nostalgia, ao Monsieur Willy Bal que, há trinta anos, me ensinou, em
Lovanium e na Lovaina, os aspectos essenciais das técnicas que ainda
hoje utilizo para a descodificação de culturas e histórias. Na realidade,
o projecto deste livro resultou de uma reacção minha aquando da lei-
tura do seu relatório de Junho de 1999 relativo ao encontro mensal da
Belgian Academy of Literature sobre o significado de ser um "Wallon
'wallonant' et 'tier mondialist'", sobre o significado de nos lermos a nós
próprios como marginais em narrativas elaboradas e escritas pelos
titulares do poder discursivo.

Prefácio
Hoc Opus Eruditíssimo et
Dilectíssimo Magistro
WILLY BAL discupulus
gratus dedicat.
I. Os Símbolos e a Interpretação
do Passado Africano
Do Fado Francês de Hércules aos Espaços
Exóticos de Robert Burton
Credenda sunt omnia, nihil enim est incredible.
Facilia Deo omnia sunt, nihil est impossible.
- Ficino, Theol. Plat, 301

0 fado francês de Hércules em ícones de


Filóstrato
Na obra ícones, Flávio Filóstrato, um grego natural de Lemnos nascido
em 170 d.C., narra a história de Hércules e os pigmeus da Líbia, emitindo
reflexões morais sobre a desgraça da existência humana. (Recorde-se
que, na geografia grega antiga, o termo "Líbia" designava o continente
africano.) Após a sua vitória sobre Anteu, "a praga" o herói grego, extenu-
ado, decide repousar. Enquanto dorme. Hércules é atacado por pig-
meus, retratados como um "exército" de formigas pretas e descritos
como "filhos da terra", ou seja, "filhos da carne", à semelhança de Anteu.
Através da sua tentativa de vingar a morte de Anteu e destruir Hércules,
os pigmeus confirmam a tensão entre o mundo terreno e o espiritual, o
indivíduo forte e o fraco, asseverando a hegemonia destes últimos. Com
efeito, no final da história, Hércules levanta-se, esmaga os seus agresso-
res, coloca-os num saco e leva-os até Euristeu.
Datada de 1614, a tradução francesa de Blaise de Vigenère engrandece
o episódio e a sua mensagem, associando ao seu argumento a economia
de uma gravura de página inteira que ilustra a moralização de Filóstrato.
Le pauvre Hercule ayant sué sang et eau à nettoyer le pays de cette peste de Antée, ce
loup-garou, brigand et bourreau infame; tout las et travaillé du combat encore [...] le
voilà [...] agacé, assailli par une petite racaille [...]; lesquels bouillonant de la terre à
guise d'une fourmilière, sans mesurer leurs forces à la sienne, sans peser ni considérer

I. Os Símbolos e a interpretação do Passado Africano 21


révénement de Ia chose, ayant plus le coeur de nuire à autrui, que de se conserver eux-
-mêmes [...] [Vigenère, 1614, p. 482).
Após verter sangue e suor para livrar o país dessa praga que é Anteu, esse homem-
-lobo, bandido e tirano infame, o pobre Hércules, ainda cansado e exausto devido ao
combate, é provocado e atacado por uma pequena escória que brota da terra como um
formigueiro. Estes atacantes não medem a sua força face à de Hércules nem avaliam
a situação devidamente, uma vez que o seu desejo de lhe fazer mal parece prevalecer
sobre o seu próprio desejo de sobrevivência.

A gravura (Vigenère, 1614, p. 480] tanto reproduz visualmente quan-


to evoca as contradições e o ensinamento. Anteu era filho da terra e um
bandido. O seu poderoso corpo foi derrotado e jaz agora, abandonado,
no local do duelo, mas em perspectiva, na parte superior da gravura,
como se pertencesse a um passado remoto. Hércules é retratado num
sono profundo, com os músculos relaxados e, ainda assim, o seu ser ilus-
tra uma força vigorosa, dominando o centro da gravura. Na parte inferior,
"pigmeus-formiga" de feição militar emergem do solo e cercam Hér-
cules com o intuito de lutar contra o herói. Quanto à mensagem, basta
mencionar que a sabedoria consiste em conhecer-se a si próprio e não
intrometer-se em assuntos alheios, mormente num estado de notória
fraqueza.
Hércules, o modelo! É-lhe atribuído todo o prestígio da força física, da
consciência intelectual e da sabedoria espiritual. O seu papel enquanto
modelo depende não só das suas virtudes e capacidades mas também
do facto de essas qualidades serem cuidadosamente definidas por um
espaço e uma tradição sobre cujas estruturas assentam a criação e a
afirmação do seu ser. O carácter salutífero da sua autoconsciência e do
seu corpo exprime um paradigma: o poder é histórico e cultural sendo
que, neste caso, a sua origem é claramente divina. A gravura, a história
e os comentários regulam este paradigma ou esta normalidade de tal
modo que os opositores de Hércules estão impossibilitados de transgre-
dir a fatalidade do seu propósito: o de serem "coisinhas" aberrantes e
moralmente perversas que brotam do solo como formigas.
Importa esclarecer que, tanto no texto de Filóstrato (1931) quanto na
tradução fi-ancesa de De Vigenère, os pigmeus líbios funcionam declarada-
mente como uma memória mítica e um anti-paradigma histórico. Constituem
um exemplo privilegiado pois convergem os padrões destes dois imaginári-
os distintos naquilo que representam; o mítico sobrepõe-se a um saber
pretensamente objectivo e histórico. De facto, as notas aditadas à história
de Filóstrato citam fontes clássicas de Homero, Plínio, Amiano Marcelino e
outros, às quais regressaremos na secção seguinte. Porém, curiosamente,
a sua introdução parece adoptar uma abordagem etnográfica:

Bi, V.Y. Mudimbe A Idéia de África


Não só Poetas mas também historiadores e naturalistas referiram-se, com segurança,
a estes pigmeus [pygmées] como sendo verdadeiros e reais. A existência de anões
[na/ns] é um facto paladino e conhecido que não deve ser questionado. Recordo-me
de estar em Roma, em 1566, num banquete do falecido Cardeal de Viteili durante o
qual fomos servidos por cerca de trinta e quatro anões, muito pequenos, a maioria
disforme e deformada (Vigenère, 1614, p. 483, minha tradução).

Hércules entre os pigmeus. Uma reprodução incluída na edição da Bodleian de ícones de


Filóstrato, traduzida por Blaise de Vigenère, 1614. Les Images ou Tableaux de Platte Peinture,
Paris: Chez la Veuve Abel LAngellier

A polarização entre os antagonistas torna-se intolerável e não res-


tam dúvidas de que a representação da história completa insinua algo
mais. Contudo, seria despropositado confrontar Filóstrato e de Vigenère
quanto à veracidade dos seus textos neste momento da análise. Acredi-
tariam eles realmente na linhagem de Anteu e dos pigmeus líbios, na
existência de uma cultura semelhante às formigas, e na probabilidade
do episódio que opõe Hércules aos pigmeus? Tais perguntas revelam-
se inúteis pois estamos perante discursos que parecem transcender a
oposição actual entre verdadeiro e falso (ver, por exemplo, Veyne 1988).
Os nossos autores alegam ser capazes de distinguir um "indiano" de um
"etíope", diversos tipos de "negros" e muitas outras criaturas estranhas.
Em todo o caso, são os relatos dos viajantes sobre continentes e países
longínquos e os seus habitantes que recebem a sua atenção (por exem-
plo, Vigenère, 1614, pp. 870-72],

I. Os Símbolos e a interpretação do Passado Africano 23


No concernente ao estudo da história mítica, os próprios textos veiculam
com bastante nitidez o significado do seu projecto. Em primeiro lugar, ao
confundir os significantes "pigmeu" e "anão", introduzem uma entidade
inexistente que, na fábula, se assume como exemplo da estupidez: "Dum
vitant stulti vitia, in contraria currunt" [quando tentam evitar os erros,
os tolos acabam por cometê-los); e, como consequência, "decidit in Scyl-
lam, cupiens vitare Charybdim" [quando tenta escapar a Caríbdis, o tolo
depara-se com o rochedo de Cila). Em segundo lugar, tornam explícita a
tensão cultural única entre Hércules e os pigmeus; estes são qualificados
como "filhos da terra" ou seja, seres que vivem em função das paixões
carnais, em total subserviência aos seus prazeres e às suas violências.
Assim, nas notas, o escoliasta pode passar da primeira qualificação para
a segunda: "as Sagradas Escrituras designam-nos de filhos dos homens".
A partir desta distinção, uma citação autorizada de Alberto Magno
permite transitar para uma classificação de seres, situando o pigmeu
no fim da escala humana, imediatamente antes dos macacos: "Albert au
troisième chapitre du premier livre des Animaux, appelle les Pygmées
hommes sauvages, participant de vrai aucunement de notre nature, en
tant que touche quelque premier motif de la délibération" [No terceiro
capítulo do seu livro sobre os animais, Alberto denomina os pigmeus de
selvagens, dado não partilharem da nossa natureza pensante) [Vigenère,
1614, pp. 484-85). Por conseguinte, a história impõe-se como parábola.
Com a riqueza paradoxal das suas fontes, dos seus modelos e das suas
hipóteses contraditórias, ela visa, na sua exegese, a combinação de,
pelo menos, três aspectos: um legado epistemológico que remonta aos
gregos e aos romanos, um novo entendimento sobre o lugar dos seres
humanos [as suas semelhanças e diferenças) na natureza, e questões de
antropologia filosófica. Entretanto, aquilo que retemos desta confusão é
aparentemente simples: os textos são, em sentido estrito, legenda de se-
gundo nível, uma miscelânea de factos, histórias, símbolos, pressupostos
e outros, organizados segundo uma grelha contemporânea.
Esta confusão confirma um intento de readaptar uma ordem episte-
mológica antiga e reformulá-la segundo uma perspectiva radicalmente
nova [ver, por exemplo, Groethuysen, 1953). As afirmações de Michel
Foucault acerca dos estudos de Aldrovandi poderiam, assim, ser alarga-
das no sentido de incluir os nossos autores e a maioria dos estudantes
de variedades humanas [ver, por exemplo, Hodgen, 1971) do século XVI
e inícios do século XVII.
Nada disto é descrição mas lenda. E, com efeito, para Aldrovandi e os seus contem-
porâneos, tudo isto é legenda - coisas para ler. Não por uma questão de preferência
pela autoridade dos homens em detrimento da exactidão de um olhar isento, mas pelo

Bi,V.Y.MudimbeA Idéia de África


facto de a natureza, em si mesma, ser um tecido ininterrupto de palavras e marcas,
de narrativas e caracteres, de discursos e formas. Perante a tarefa de escrever uma
história de um animal, afigura-se inútil e impossível escolher entre o ofício de natu-
ralista e o de compilador: há que recolher e reunir numa única e só forma do saber
tudo o que foi visto e ouvido, tudo o que foi contado pela natureza ou pelos homens,
pela linguagem do mundo, das tradições ou dos poetas (Foucault, 1973, pp. 39-40).

Gostaria de invocar outro texto, uma ilustração mais concreta - a eco-


nomia geral de The Anatomy of Melancholy (1621), de Robert Burton, e
as respectivas directrizes para uma antropologia mítica - com o objecti-
vo de rearticular a fábula de Hércules e os pigmeus à luz do sistema total
e complexo de semelhanças, simpatias e antipatias referido por Foucault
e no qual o pigmeu, enquanto marca, exemplificaria outra abstracção, a do
selvagem. Conforme sugere Michel de Certeau (1982), este último terá
sido, na qualidade de figura cultural, o antecessor do "sujeito económi-
co".

Os espaços exóticos de Robert Burton


Insanus vobis videor, non deprecor ipse quo minus insanus.
- Petrónio, AM, DTR, p. 120

Pertence a Michel de Certeau a constatação de que: "Na história,


que conduz à transição do sujeito místico do século XVI para o sujeito
económico, o homem primitivo situa-se entre os dois. Enquanto figura
cultural (ou mesmo epistemológica), ele prepara o segundo através da
inversão do primeiro e, no final do século XVII, é obliterado e substituí-
do pelo nativo, o colonizado ou o mentalmente incapaz" (ver De Certeau,
1982, p. 227). Numa primeira análise, The Anatomy of Melancholy não
incide directamente sobre esta figura cultural em particular. O texto de
Burton, volumoso tanto em extensão quanto em erudição, revela outro
propósito: abranger "cientificamente" a esfera da melancolia, analisar
as suas formas, as suas causas e os seus sintomas e, por fim, lançar luz
sobre as técnicas mais adequadas para a sua cura. Contudo, o texto per-
tence a um período específico, a uma era caracterizada pelo incentivo às
"recolhas de curiosidades" (Hodgen, 1971, pp. 162-201) e, no cômputo
geral, às recolhas de costumes e tradições. Podemos citar, por exemplo,
as histórias de J. Boemus, Omnium gentium mores, leges, ritus, ex multis
clarissimis rerum scriptoribus (1520), a obra de F Deserpz, Recueil de la
diversité des habits qui sont de présent en usage tantès pays d'Europe, Asie,

I. Os Símbolos e a interpretação do Passado Africano 25


Affrique et Illes sauvages, le tout fait après le naturel (1576), ou o tratado
de A. de Bruyn, Omnium pene Europae, Asie, Aphricae atque Americae
gentium habitus (1581). Trata-se de urn período extraordinário que con-
sente e liberta esta nova forma do saber, um período que, no rescaldo do
século XV, interpreta o mundo, as suas virtudes e evocações consoante
a expansão do espaço europeu, representado no planisfério publicado
por Mercator em 1569.
Por essa razão, as figuras do "selvagem" são instigadoras do reconhe-
cimento: no discurso científico e filosófico, elas traduzem o negativo,
sobrepõem-se como interrogação, ironia ou provocação face a textos
ortodoxos e colocam à prova as ordens do saber e da tradição, evi-
denciando assim um cariz múltiplo, conforme observa De Certeau. A
título de exemplo, podem indicar "uma sabedoria 'popular' em compa-
ração com as redes de 'civilidade' e a profissionalização do saber; um
caso 'extraordinário' em comparação com a normalização de compor-
tamentos e métodos; uma perambulação sem norte pelo espaço dis-
tribuído por Igrejas instituídas ou Estados nascidos do Cristianismo
mais antigo, etc." (1982, p. 278). Acresce ainda que estas figuras se
estendem por todo o longor da expansão geográfica de um modo
idiossincrático. As histórias europeias das conquistas além-mar enceta-
das por navegadores e exploradores coincidirão com o rigor do saber,
obedecendo à fidelidade do espírito colonizador para com imagens
culturalmente integradas ou rejeitadas.
Por conseguinte, o desacordo revela-se um critério poderoso,
ajustando o fosso produzido pela distância e a diferença decorrentes
destas práticas colonizadoras, que, regra geral, se manterão constan-
tes entre os séculos XVI e XX: os cenários de redução de outras paisa-
gens, outros povos e outros valores (ver Mouralis, 1975, pp. 66-105) a
um paradigma normativo.
Apesar de uma intenção destoante, The Anatomy of Melancholy não
deixa de ser representativa da orientação do "corpus" explicitamente
exótico do início do século XVII: em primeiro lugar, devido á sua forte
harmonia com uma concepção predominante da época (Hodgen, 1971,
p. 184); em segundo lugar, porque as figuras do primitivo avançadas
nesta obra são aquelas que afloram nas fronteiras dos valores normati-
vos no círculo geográfico europeu e que, dentro ou fora deste contexto,
surgem como monstruosidades ou corpos exuberantes e excessivos.
Com efeito, este segundo motivo lança a confusão no espaço exótico
de The Anatomy of Melancholy. O "selvagem", integrado ou rejeitado,
não tem cara, cor ou voz, como é evidente. Constitui um pretexto, e o
seu aparecimento é simplesmente uma consequência ou, em termos
mais gerais, uma metáfora que procede directamente dos sonhos e das

Bi, V.Y. Mudimbe A Idéia de África


leituras de Robert Burton, autor de um denso tratado sobre a melan-
colia destinado a evitar a sua própria sucumbência (AM, DTR, p. 20).^
Robert Burton era inglês e um homem da Igreja. Nasceu em 1577
em Lindlye (Leicestershire) e estudou em Brasenose College e Christ
Church. Em 1616, tornou-se vigário em St. Thomas (Oxford) e, desde
1630 até à sua morte em 1640, exerceu o cargo de pastor em Seagrave.
Seria de esperar que a Inglaterra, o Ocidente em geral e o Cristianismo
em particular, fossem os titulares da chave que permitiria interpre-
tar o espaço exótico dimanante da sua obra. Porém, sabemos apenas o
seguinte: no respeitante à Inglaterra, Burton afirma com sarcasmo que
"é um paraíso para as mulheres e um inferno para os cavalos, enquanto
a Itália é um paraíso para os cavalos e um inferno para as mulheres"
(AM, III, p. 265). Se Burton exalta a "beleza" de Deus, a preparação
da Revelação e a sua tradição no Ocidente (AM, III, pp. 313-18) com
um cepticismo pessimista, adopta igualmente uma posição firme, e
mais duradoura, acerca do alcance da idolatria, da descrença e das ex-
travagâncias do mal no mundo. "Onde Deus possui um templo" escreve
Burton, "o Mal terá uma capela; onde Deus recebe sacríficos, o Mal
colherá oferendas; onde Deus é celebrado em cerimônias, o Mal fruirá
das suas tradições" (AM, III, p. 321). Dir se-ia um cínico quem tece este
comentário: "Divisum imperium cum Jove Daemon habet" (AM, III, p.
322): o império foi dividido entre Deus e Satanás.
Um cínico? No prefácio, enquanto explica o simbolismo do seu
pseudônimo, Demócrito Júnior, humilha-se segundo os preceitos
da época: "parvus sum, nullus sum, altum nec spiro, nec spero" (AM,
DTR, p. 17): sou insignificante, nulo, e não alimento grandes aspirações.
Mas é apenas para melhor se fazer de fantasma e assombrar os seus
leitores. Burton acredita descender de uma raça de excluídos por von-
tade própria, à imagem daquele pequeno Demócrito que, segundo
Hipócrates e Diógenes Laércio, era melancólico por natureza e "eludia
a companhia dos homens e se dedicava exclusivamente aos seus es-
tudos na solidão do seu jardim em Abdera" (AM, DTR, p. 16). Burton
interpreta as raízes da sua existência e as linhas orientadoras da sua
investigação e filosofia em função desse símbolo. "Levei", afirma Bur-
ton, "uma vida de silêncio, sedentária, solitária, discreta, mihi et musis,
1-A edição consultada é de Holbrook Jackson cujo título completo é The Anatomy of Melancholy:
What it is, with all the kinds, causes, symptomes, prognostickes and severall cures of it (Random
House, Nova Iorque, 1932; livro brochado, 1977). Confrontei as passagens citadas com a versão
de 1638, 5.® edição, corrigida por Burton. No meu texto, utilizo a abreviatura AM. DTR é a abre-
viatura de Democritus to the Reader e remete para o prefácio do tomo. Os livros que incluem o
tratado sobre a melancolia estão indicados através dos numerais romanos correspondentes. Por
exemplo, II refere-se ao segundo livro do tratado. A tradução dos excertos em latim e a adaptação
moderna do inglês são da minha autoria. Contudo, por regra, mantive as citações latinas do autor
tal como foram formuladas.

I. Os Símbolos e a interpretação do Passado Africano 27


totalmente ocupada pelo estudo, quase tão longa como a de Xenócrates
em Atenas até à vetustez, ad senectam fere; uma vida como a sua, to-
talmente consagrada à aprendizagem da sabedoria" [AM, DTR, p. 17).
Esclarece que:
Não sou pobre nem rico, nihil est, nihil deest; tenho pouco, mas de nada preciso:
toda a minha riqueza jaz na torre de Minerva... Imitando Demócrito no seu jardim,
levo uma vida monástica, ipse mihi theatrum, muito distante do tumulto e do ruído
do mundo, et tanquam in specula positus, mas, por assim dizer, acima de todos vós
à maneira de um Estóico, Stoicus sapiens, omnia saecula, praeterita praesentiaque
videns, uno velut intuitu [ A M , D T R , p . 1 8 ) .

Para Burton, o mundo é um espectáculo. Contudo, embora a sua con-


cepção de vida dependa certamente desse juízo, Burton não está de
todo condicionado por ela. Crê-se um estóico, mas também um visionário
e assume um projecto bastante radical: servindo-se do seu bom senso,
pretende demolir e gorar significados em nome do seu direito à razão.
"Sou apenas um espectador", confessa,
alguém que assiste às fortunas e aventuras dos outros, escutando as novidades e
os rumores: guerras, epidemias, incêndios, carnificinas, assassínios, movimentos
celestiais dos meteoros, milagres, aparições, etc.: sou um leitor atento de todas as
publicações e um observador dos acontecimentos: paradoxos, cismas, heresias,
disputas filosóficas ou religiosas, etc.

Resumindo, Burton é dotado de uma inteligência - e de um olhar e


de um ouvido -, ao mesmo tempo, próxima e distante, que contempla
de cima a confusão e a desordem do mundo. À semelhança dos modelos
que invoca, Diógenes e Demócrito, também Burton penetrou no mun-
do e no alvoroço, non tam sagax observator, ac simplex recitator [AM,
DTR, p. 19), mais na qualidade de observador do que de recitador.
É evidente que se ria da folia desenfreada, encarando com complacên-
cia a miséria que estava impossibilitado de mitigar. Não obstante, Bur-
ton regressa à sua solidão com uma sensação vivida de impotência
e a intenção de tornar o seu conhecimento acerca da polaridade um
contributo para o saber da loucura do mundo. Na óptica de Burton,
resta apenas reinvestir a nostalgia pela antigüidade e, por meio das
transgressões e aberrações contemporâneas, encontrar uma vez mais
o significado primordial do plano de Demócrito, o Velho. A tônica de
uma das suas obras perdidas era a origem e o significado da atra bilis,
ou seja, da melancolia. Todavia, Burton acrescenta estar a viver esta
diligência de um sonho antigo à maneira de Vétio em Macróbio, com o

Bi,V.Y.MudimbeA Idéia de África


intuito de proporcionar prazer e conhecimento ao seu leitor, a espécie
humana: simul et jucunda et idônea dicere vitae/Lectorem delectando
simul atque monendo (AM, DTR, p. 21).
Poderíamos concluir que se trata da postura do filósofo ou do cép-
tico do início do século XVII. No entanto, esta postura, além de negar
a vida que analisa de cima, questiona essa mesma vida no sentido de
lhe alvitrar um significado. A pormenorização dos estados e impulsos
da melancolia não atenua directamente a loucura ou a folia, pelo con-
trário, subverte-as perigosamente noutras formas de desejo: a realeza
sagrada da antigüidade e o poder do profeta.
Em síntese, estamos perante uma imagem bastante próxima do
"homem selvagem" referido por De Certeau: "uma invenção brilhante
dos séculos XIV e XV que precedeu (e, sem dúvida, moldou) a desco-
berta ocidental dos 'selvagens' do Novo Mundo no século XVI", uma
imagem que "introduz no campo simbólico aquilo que a cidade exor-
ciza, numa altura em que os carnavais, excluídos dos dias santos por
serem demasiado onerosos, se transformam em sabats nocturnos de
feiticeiros e bruxas" (1982, p. 272). De Certeau identifica a imagem
do vencido, mas de um vencido que "profere aquilo que não pode
ser esquecido". Por outras palavras, poderíamos afirmar que Burton, à
revelia, abre a porta para aquilo que ainda é possível. Não é um Huss
nem um Lutero, nem mesmo um daqueles místicos do início do sé-
culo XVII que contribuíram para a reorganização da topografia reli-
giosa e social (De Certeau, 1975). Na verdade, Burton é um esteta que
se dedica aos recursos reais ou potenciais dos países, dos seres e das
virtudes: teólogo, filósofo, filólogo, geógrafo e profeta medita sobre a
precariedade do mundo, o conjunto dos continentes longínquos e os
êxtases do universo que gostaria de criar. Estes reinos são, em bom
rigor, meros espelhos que emanam dos poderes e das obsessões do
próprio autor, assim como da memória do seu espaço geográfico e da
sua tradição cultural.
Consideremos, por exemplo, as suas ponderações sobre África,
América e Ásia. África é um lugar de interesses irrisórios cujos habi-
tantes são tão miseráveis como os índios da América e, segundo Leão,
o Africano, "natura viliores sunt, nec apud suos duces majore in pretio
quam si canes assent" (AM, I, p. 351). A sua vida é o pináculo do in-
fortúnio: "miseram, laboriosam, calamitosam vitam agunt, et inopem,
infelicem, rudiores asinis, ut e hrutis plane natos dicas" (AM, I, p. 351).
As afirmações de Burton estão longe de ser uma descrição geográfica,
nem sequer constituem um corpo de trabalho etnológico na esteira dos
comentários de Michel de Montaigne. Correspondem a uma construção de
recursos vagos face aos conhecimentos adquiridos em livros e diários de

I. Os Símbolos e a interpretação do Passado Africano 29


viagem. O tema e a imagem contumaz do continente africano como um
"lugar renegado" provêm dessas referências: um pedaço de terra quente
onde seres patéticos vivem de raízes, ervas e leite de camelo (AM, I, p.
230); um lugar monstruoso e, sobretudo, um lugar onde a loucura e a
melancolia reinam supremas, conforme observado por Bodin (Brown,
1939). De facto, se assim não fosse, qual a explicação para a procriação
e a sobrevivência de tantos animais venenosos em África, considerando
que estes não existem na Irlanda, por exemplo? (AM, II, p. 43). Nesse
sentido, África é um "continente renegado" e um local de extremos nega-
tivos, mesmo no concernente aos seus feitos que seriam a promessa do
equilíbrio e da salvação noutros destinos: basta pensar no confronto do
Cristianismo de Preste João na África Oriental e nos horrores da poli-
gamia, da circuncisão, dos jejuns rigorosos, de um culto aberrante a S.
Tomé, etc. E, paradoxalmente, este "espaço renegado" é, ainda assim,
susceptível de ser convertido noutro organismo e encontrar um sen-
tido através da chegada das colónias de imigrantes, como foi o caso da
América e da Terra Australis (AM, II, p. 246).
A América insere-se na mesma categoria abjecta que África: é bár-
bara (AM, I, p. 97), desproporcional (AM, II, pp. 36 e 41) e exibe uma
fauna estranha (AM, II, p. 43). Os seus habitantes são pagãos supersti-
ciosos e idólatras (AM, III, p. 322). Porém, visando o seu bem e o seu
despertar, foi plantada uma marca na história: Cristóvão Colombo
descobriu o continente por ordem divina (AM, II, p. 60) e, daí em diante,
os espanhóis do México começaram a reestabelecer a dignidade hu-
mana através da extinção de sacrifícios monstruosos como a oferenda
diária de corações e partes de corpos humanos ainda vivos, viva homi-
num corda e viventium corporibus extracta (AM, III, p. 360).
A Ásia não parece existir enquanto corpo geográfico. A hipótese de
ser essa a localização do misterioso reino de Preste João foi devidamente
notada por Burton (AM, II, p. 36). Contudo, na obra propriamente dita,
a Ásia é apenas um adjectivo que remete para a Arábia e a China, a
primeira caracterizada como um deserto imenso, uma terra seca,
agreste e abrasadora (AM, II, p. 47) e a última, um enigma, uma terra
nos confins do mundo, um país civilizado, pacífico e exemplarmente
governado, isento de toda a loucura, um lugar aparentemente regido
pela commune bonum de Aristóteles. Do ponto de vista de Burton, a
China é a materialização da vitória do pensamento sobre a loucura, da
mesma maneira que Augusto era o governante de Itália (AM, I, pp.
79 e 102). Todavia, a Ásia descortina outros símbolos, marcas que se
mostram ambíguas na sua exuberância, designadamente a Babilónia
com os seus jardins suspensos (AM, II, p. 75) e o Cairo com as suas
centenas de milhares de cortesãos e os seus vícios triunfantes (AM,

Bi,V.Y.MudimbeA Idéia de África


III, p. 247). O Médio Oriente, um dos pórticos asiáticos, é também a
entrada para o Ocidente. A poligamia, as maravilhas nocturnas e os
jovens formosos do Cairo são esfumados pela tentação negra conhe-
cida em Fez, Roma, Nápoles, Florença, Veneza e em qualquer outra
grande cidade europeia. Essa tentação aponta para um caminho (AM,
III, p. 247). Os perigos, fascinantes e assustadores, também desabro-
charam destas mesmas regiões: a história do Antigo Egipto e as suas
superstições, os empreendimentos sírio e persa, bem como os grupos
de hereges cristãos, etc.
Na verdade, os círculos exóticos e a selvajaria imaginária - tão cor-
rentes nos relatos dos etnólogos dos séculos XVI e XVII (Hodgen,
1971; Hammond e Jablov^^, 1977) - não contêm a intenção principal
de Burton. No seu tratamento de nações "civilizadas" ou "bárbaras", a
natureza positiva de uma civilidade quando comparada com as supos-
tas perversões da outra não resulta de um fascínio nem do facto de se
tratar do tópico de estudo. Burton procura provas e contraprovas de
modo a defender um argumento. O valor dos "reinos" enquanto enti-
dades, seja na Europa ou noutro local, decorre de uma única ligação: a
estabelecida por Burton entre o plano do seu discurso e a verdade crua
e absoluta, cuja "testemunha heróica" seria Lutero, conforme escreve
noutro contexto (AM, III, p. 334).
Apesar de serem, evidentemente, corpos exóticos, África e Améri-
ca não têm mistério devido à transparência e por se revelarem a si
próprias como espaços marcados pela versatilidade da desordem, a
supremacia do mal e a força todo-poderosa de deuses falsos (AM, III,
pp. 365-366). À semelhança da Ásia, é possível defini-las através de
um corte, de um afastamento, ou até de uma rejeição, através daqui-
lo que exprime um intervalo em relação à norma. Por conseguinte, a
marginalidade é, em concomitância, um acidente (histórico), uma mal-
dição (religiosa) e, felizmente, uma promessa (escatológica) de uma
eventual reconciliação com a norma-padrão.
A partir daí, a tese de Burton - se é que se pode falar de uma tese - pa-
rece negar toda e qualquer diversidade e reduzir os espaços marginais.
Com efeito, o termo "tese" comporta riscos. O autor de The Anatomy of
Melancholy volta à realidade graças ao espírito de uma era que cogita
e recogita uma "redistribuição do espaço" de acordo com um "Mesmo",
isto é, "uma forma histórica, uma prática da dicotomia e não um con-
teúdo homogéneo" (De Certeau, 1982, pp. 30-31). Em termos concretos,
o marginalismo espacial do espaço não-ocidental seria dissolvido na ex-
pansão da geografia e história europeias, na medida em que estas se con-
sideram suficientemente poderosas para reestabelecer a uniformidade
do Génesis, através da eliminação das monstruosidades acidentais

I. Os Símbolos e a interpretação do Passado Africano 31


resultantes das várias marchas da história (ver Hodgen, 1971, pp. 254-
-349]. Em todo o caso, este é o tema definido por Burton no quadro da
dicotomia entre o universo cristão e o pagão, sendo que este último
sobreporia no mundo físico uma geografia espiritual corrompida.
Por outro lado, se o primeiro domínio implica a existência efectiva
de um espaço cristão, o seu significado não se cinge apenas a isso: o
universo cristão e este espaço concreto que corresponde à "Europa
cristã" não são homólogos. O universo cristão optaria por declarar
uma forma de privilégio com um carácter historicamente excepcio-
nal; ou melhor, seria um lugar onde o senso (e, por isso, o bom-senso)
é praticado com rigor e onde o juízo e o desejo são colonizados pela
verdade. Com efeito, Burton sugere que olhemos para os pagãos: "eles
representam Deus e mutilam a nossa compreensão de mil maneiras;
os nossos hereges, cismáticos e alguns eruditos não são muito diferen-
tes nos seus modos de acção" (AM, II, p. 59). Como tal, por oposição ao
universo cristão, o reino pagão ou o domínio da desordem constitui
também uma área cultural: segundo o estilo geográfico minucioso de
Edward Brerewood (1565-1613), caso as regiões do mundo conhecido
fossem divididas em trinta partes iguais, a parte cristã seria represen-
tada por cinco unidades, a parte muçulmana por seis e a parte idólatra
por dezanove (Hodgen, 1971, pp. 218-19). Contudo, Burton considera
o reino do mal um espaço espiritualmente indefinido. A geografia dos
espaços exóticos - tanto os de África quanto os da América - nada mais
é do que a manifestação do desejo de uma intratabilidade igualmente
presente na Europa, oferecendo um esboço da titânica acção prejudi-
cial do Mal e dos seus agentes: hereges, impostores, políticos, falsos
profetas e pregadores (AM, III, p. 328).
A retoma, ou seja, a fundação de um novo espaço de civilidade e sig-
nificado - uma comunidade que representaria a negação da selvajaria
e da loucura (AM, DTR, p. 97) - transforma-se, em termos concretos,
numa celebração profética da inversão de tudo o que Burton despreza
e cuja genuinidade ele próprio questiona, sobretudo, as mitologias
antigas e modernas, o papado e o catolicismo, os messianismos, as
superstições e as políticas das nações em geral (AM, III, pp. 325-72).
Burton recusa um mundo colossal em nome de uma utopia, uma nova
Atlântida, onde, recorrendo às suas palavras, "Reinarei com liberdade,
construirei cidades, instituirei leis e emitirei decretos como melhor
entender" (AM, I, p. 97). Ditadura ou teocracia? Eis a resposta de Bur-
ton: "pictoribus atque poetis, etc. - a liberdade de que os poetas sempre
beneficiaram é conhecida e, além disso, o meu antecessor, Demócrito,
foi um político [...], um homem das leis como dizem alguns; por que
razão não poderei seguir os seus passos?" (AM, I, pp. 97-98).

Bi,V.Y.MudimbeA Idéia de África


Simbolicamente, o reino de Burton não pertence ao mundo conhe-
cido. Poderia localizar-se tanto na Terra Australis Incógnita, nalguma
ilha recôndita no Oceano Pacífico, quanto no coração do continente
americano ou no litoral do norte da Ásia (AM, I, p. 98). Em todo o caso,
ficaria situado "numa região temperada, ou porventura abaixo do
equador, esse paraíso mundano, ubi sempre virens laurus" (AM, I, p.
98). Afigura-se óbvio que a nova Atlântida sugere outra coisa. Contudo,
importa assinalar que a natureza mítica da sua localização não é apenas
fruto da multiplicidade de lugares possíveis e da sua imprecisão, mas
também, e talvez sobretudo, do facto de as referências vagas a estes
locais remeterem para espaços classicamente exóticos. E o efeito alme-
jado impõe-se: Burton sonhava com um lugar dotado de significado,
capaz de reconciliar a desordem vivida e um ideal presente desde o
início dos tempos.
Burton organiza esta utopia com rigor servindo-se de três princípios
normativos: controlo sobre o espaço físico e humano, controlo sobre o
espírito da cidade e controlo sobre as regras fundadoras da ordem da
vida humana.
O controlo sobre o espaço físico e humano propriamente dito consti-
tui uma ferramenta que visa o estabelecimento de um reino organizado
"racionalmente". A nova Atlântida dividir-se-á num número específico
de províncias: doze ou treze. Cada província beneficiará de um centro
metropolitano, o seu núcleo geográfico. Todas as cidades respeitarão
normas particulares quanto à localização e construção: situar-se-ão ao
longo de um canal, exibirão uma disposição harmoniosa (quadrada,
rectangular ou circular) e habitações uniformes assim como edifícios
e instituições relevantes (igrejas, asilos, hospitais, escolas, prisões,
mercados, campos desportivos e, quiçá, uma fortaleza) construídos
com dinheiro do estado ex publico aerario (AM, DTR, p. 99). Estes pla-
nos, incluindo os pormenores avançados por Burton em matéria de
linhas de flutuação, distribuição de terra ou organização de reservas
alimentares colectivas, compõem um projecto utópico. Porém, no seio
da visão desafogada desse sonho, tecem uma crítica à sociedade exis-
tente e propõem novas fórmulas sociais e econômicas.
A vontade de Burton em controlar o espírito da cidade e as normas
que regem a vida quotidiana é, a esse respeito, o elemento que
melhor ilustra o arquétipo da sociedade que tem em mente. Burton
rejeita uma sociedade igualitária por ser utópica e considera A Cidade
do Sol de Campanella e a Nova Atlântida de Bacon puras fábulas, meras
fantasias. Indo mais longe: a comunidade platônica revela-se, na sua
perspectiva, "ímpia, absurda e ridícula" sob muitos aspectos (AM, DTR,
p. 101). A proposta de Burton consiste numa igualdade proporcional.

I. Os Símbolos e a interpretação do Passado Africano 33


cuja estrutura reflecte uma hierarquia fixa e flexível [assente nos três
tipos de títulos nobiliárquicos - filiação, eleição e outorga), passível
de funcionar numa monarquia pois - e aqui Burton evoca um adágio
monárquico - o bom exercício da liberdade é coadunável com a gover-
nação de um bom monarca: "numquam libertasgratior extat, quam sub
rege pio" {AM, I,p. 101).
Trata-se, sem dúvida, de uma monarquia, mas de uma monarquia
que sirva de comunidade modelo para Burton [AM, 1, pp. 102-03).
Encara-a como um Estado previdente [os cegos, os fracos, os neces-
sitados, os idosos serão todos assistidos em nome do bem comum); um
Estado pacifista [ninguém pode transportar armas na cidade e nunca
haverá uma guerra ofensiva); um Estado paternalista e legalista [Ms;
aliter dispensatum fuerit, os homens só se podem casar a partir dos
vinte e cinco anos de idade e as mulheres a partir dos vinte; em caso
de viuvez, só é permitido um novo casamento depois de decorrerem
seis meses sobre a morte do cônjuge; um código de gestão doméstico
para ensinar os casais como viver, etc.); e, mais extraordinariamente,
um Estado moral. Por conseguinte, neste reino, os padres seguiriam
verdadeiramente o exemplo de Cristo, os homens das leis prezariam
os seus vizinhos, os médicos seriam humildes e cuidadosos, a aristocra-
cia pautar-se-ia pela honestidade e os filósofos conhecer-se-iam a si
próprios. Quem optasse pelo vício e pelo pecado seria sujeito a punições
severas: o sacrilégio teria como punição o corte das mãos e o perjúrio,
o corte da língua; o ladrão seria enviado para as galés ou as minas ao
passo que o assassino e o adúltero seriam condenados à morte.
Robert Burton está, no fundo, a refazer o mundo, sendo que o mito
da nova Atlântida, forjado por si com base em normas extremas, as-
senta numa pureza totalitária. Isto vai ao encontro do seu ponto de
partida: a rejeição de uma sociedade corrompida. A invocação de es-
paços exóticos como locais de fundação de uma monarquia virtuosa já
demonstrou que a utopia profética seria erigida como símbolo de outra
coisa. O retorno a Demócrito, o Velho, a figura do pai, confere a Burton
o direito ao poder: quer para reescrever conhecimentos perdidos na
memória da época, quer para transmitir a sua perícia e discernimento
sobre o modo de funcionamento do espírito cristão. A dupla herança
emaranha-se em ambiguidade. A partir desse momento, as marcas da
melancolia e da loucura surgem como as raízes de um mal patente e
geral: "o mundo inteiro é melancólico, louco, podre, assim como tudo
o que nele vive" [AM, DTR, p. 120).
Tudo e todos são afectados. Uma massa enciclopédica de informação
multiplica os jogos e as funções da loucura, recita aos solavancos um
universo desregulado, ardido pelos raios da humilhação e da falta de

Bi, V.Y. Mudimbe A Idéia de África


sentido. Por um lado, existem os seres humanos, todos desequihbra-
dos, inquietos, perdidos. Burton menciona os filósofos, os escritores,
os sábios, esses ditadores do saber, priscae sapientiae dictatores (AM,
DTR, p. 110), todos eles, mais ou menos, declamadores de tolices gra-
ciosas, ineptiarum delicias (AM, DTR, p. 113); os amantes, ingênuos
na sua fé em reconciliar o amor e o saber, amare et sapere, são, sem
excepção, loucos; a juventude é tola, stulti adolescentuU (AM, DTR, p.
114); o homem, qualquer homem, com as suas virtudes, os seus conhe-
cimentos, os seus defeitos, prova apenas uma coisa - a loucura; os
epicuristas, ateístas, cismáticos, hereges, alquimistas, os irrascíveis,
invejosos, ambiciosos, lascivos, corajosos, sábios, os príncipes do
mundo - os de ontem e os de hoje - são todos loucos. Evocando Ulrich
Hutten, Burton afirma que, de facto, ninguém é realmente são: na ver-
dade, ninguém sabe nada, ninguém está livre do vício, ninguém é puro,
ninguém parece satisfeito com a sua condição, ninguém ama ninguém
verdadeiramente, ninguém é bom, sábio ou feliz: "nam, Nemo omnibus
horis sapit, Nemo nascitur sine vitiis, Crimine Nemo caret, Nemo sorte
sua vivit contentas, Nemo in amore sapit, Nemo bônus, Nemo sapiens,
Nemo estex omni parti beatus" (AM, DTR, p. 117). Os objectos, por seu
turno, trazem ou infligem o mesmo tipo de vertigem. Seria uma tarefa
hercúlea, escreve Burton, registar toda a loucura das construções, dos
empreendimentos, do luxo, "insanos substructiones, insanos labores, in-
sanum luxum" (AM, DTR, p. 116). E tudo é digno de referência: livros,
arquitectura, explorações, acções, movimentos, até que, numa palavra,
nada funciona, nada é saudável: a razão e o equilíbrio são belas menti-
ras. Citando Fabato, Burton afirma que o barco é louco:

nunca permanece quieto e os marinheiros são tolos por se exporem assim a este
perigo; pois as águas são uma fiiria insana em movimento constante: e os ventos,
como tudo o resto, perderam o seu rumo, não sabem de onde vêm nem para onde
vão; e os homens que embarcam e se lançam ao mar nestas condições são os mais
loucos de todos... (AM, DTR, p. 116).

A loucura enquanto apocalipse do mundo é uma metáfora no inte-


rior da qual o próprio Burton se fecha: "Nos numerussumus, nós somos
muitos, confesso que sou tão tolo e louco como qualquer um [...] E o
meu único desejo, para mim e para todos vós, é encontrar um bom
médico e, por fim, convalescer o meu espírito" (AM, DTR, pp. 119-20).
Nesse sentido, o suposto fanático não personifica a pureza nem a ex-
celência de raciocínio, apenas um desejo secreto de labutar contra a
instabilidade do mundo, de decifi^r o trivial, de reduzir o papel do mal e
a sua subversão: "os principais demônios subvertem o mundo cristão;

I. Os Símbolos e a interpretação do Passado Africano 35


judeus, gentios e muçulmanos andam por aí, extra caUem; a sua re-
sistência é relativamente inexistente, eos enim pulsare negligit, quos
quieto jure possidere se sentit" (AM, III, p. 364). Como tal, o texto con-
duz a moralidade de uma cultura ao seu apogeu. Se o dedo acusador
apontar para outro alvo, será para a derradeira vocação de um espaço
eleito. O significado torna-se "etnocêntrico". Os horizontes exóticos e
os seus matizes desvanecem. O que resta são imagens de doenças que
necessitam de cura e, ligeiramente recuada, a figura obstinada de um
profeta filosófico que pontifica o caminho da salvação para os corpos
e as almas do seu povo: "não viveis em isolamento, não sejais ociosos;
Sperate miseri, cavete felices", tende fé pobre povo, tende cuidado os
que são felizes (AM, III, p. 432).

Em que acreditar?
Burton propõe uma utopia marcada pela interacção e a interde-
pendência entre os mitos e a criação de mitos. É evidente que Burton faz
a distinção entre os dois, mas é precisamente a partir da sua relação
que se dá a formulação de uma tese: os "selvagens" existem em toda a
parte, sendo imperativo o regresso ao modelo grego a fim de salvar o
tecido civilizacional. A geografia separa e estipula a priori universos de
loucura e selvajaria, por oposição aos universos que deveriam repre-
sentar e incorporar o juízo, a sabedoria e a civilização. Por conseguinte,
apesar da contiguidade entre os selvagens por dentro - devido à sua
corrupção moral e espiritual - e os selvagens por fora, efectivada no
tratado de Burton, a sua aproximação não afasta o desvio geográfico
nem o seu significado histórico e cultural, sendo possível estabelecer
uma relação entre este argumento e a fábula de Hércules e os pigmeus.
Tal como o tratado de Burton sobre a melancolia, ícones de Filóstrato,
comentado por Blaise de Vigenère, pertence igualmente a um gênero
edificante. Em ambos os casos, os paradigmas míticos substituem-se
sucessivamente e, com a maior das idealizações, cada paradigma jus-
tifica a cultura como um projecto incompleto, estando os seus valores
superiores e fundamentais, a par do seu destino, inscritos nas marcas
que a tornaram possível. O discurso é autocentrado e promove mani-
festamente a vocação cultural inequívoca que pretende transmitir, con-
trabalançado a identidade da sua experiência histórica e espacial com
aquilo ou aqueles que ocupa(m) as margens do seu espaço concreto
e simbólico. O selvagem [Silvaticus] vive nos bosques, nas florestas,
bem longe da polis, da urbs; e, por extensão, "selvagem" pode designar
qualquer ser marginal, forasteiro, desconhecido, diferente e, por isso,

Bi,V.Y.MudimbeA Idéia de África


inconcebível, cuja presença real ou simbólica na polis ou na urbs se
assume como um acontecimento cultural: "comment peut-on être Per-
son?" Esta interrogação comporta mais do que um mero problema
de representação, como acontece na fábula de Hércules. A pergunta
define uma base egocêntrica de uma experiência, dos seus conteú-
dos e valores sugerindo ainda, no mesmo movimento, que o Outro só
pode ser o outro lado, a proposição negativa do indivíduo que deve
ser dominada na sua própria contradição e absolutamente convertida
aos ideais da verdade desse indivíduo. Se necessário, a história - uma
memória codificada como lição sobre os acontecimentos passados -
serviria de justificação e direito para uma eventual violência. Porém,
conforme afirmado por Paul Veyne, sabemos que
A reflexão histórica é uma crítica que diminui as pretensões do saber, limitando-se
a falar com verdade sobre verdades, sem pressupor a existência de uma política ou
ciência verdadeira.
Será esta crítica contraditória e poder-se-á afirmar que a existência de não verdades
é verdade? Sim, e deste modo não entramos no jogo, copiado dos gregos, do mentiroso
que mente quando diz, "Eu minto" - o que, por conseguinte, é verdade. Não se é
mentiroso em geral, mas em particular, quando se diz isto ou aquilo. O indivíduo que
diz, "Sempre inventei histórias", não está a inventar uma história quando profere
esta afirmação, especificando que "As minhas histórias consistiram na crença de que
as minhas imaginações sucessivas eram verdades inscritas na natureza das coisas".
(Veyne, 1988, p. 126)

Apresentam Filóstrato, Blaise de Vigenère ou Robert Burton ver-


dades? Uma resposta afirmativa ou negativa afigura-se irrelevante,
uma vez que os seus textos são o resultado e uma reflexão dentro de
uma cadeia intelectual e das suas determinações. A verificação da fi-
delidade das suas referências e a autenticidade das suas fontes poderia
fazer sentido, mas questionar as suas representações auto-cêntricas
do Eu e do Outro é inútil. Moldando uma afirmação de Origen ao meu
ponto de vista, diria que os acontecimentos históricos, a par das inter-
pretações míticas, não podem ser sujeitos a uma confirmação lógica
mesmo no caso de serem ou parecerem autênticos.
[Origen acrescenta:] "Para sermos justos, sem, todavia, nos deixarmos ludibriar du-
rante a leitura dos livros de história, é necessário distinguir entre acontecimentos
autênticos aos quais aderimos; acontecimentos figurativos em que devemos discernir
um significado alegórico secreto; e, por fim, acontecimentos indignos da nossa con-
fiança, escritos com o intuito de dar prazer" (neste ponto, o texto é questionável; há
quem leia: escritos para lisonjear determinadas pessoas"). (In Veyne, 1988, p. 143)

I. Os Símbolos e a interpretação do Passado Africano 37


Mapa de África retirado do atlas mundial de Gerard Mercator, 1595. Fonte: Oscar I. Norwich,
com descrições bibliográficas de Pam Kolbe, Maps ofAfrica, An Illustrated and Annotated
Carto-Bibliography, Joanesburgo: Ad. Donker, 1983.

Quando se descobriu África?


Apenas se conhecem as migrações, as divisões territoriais, as alterações
onomásticas e todos os restantes assuntos afins que dizem respeito a regiões
reputadas e conhecidas. De facto, estas informações chegam em abundância aos
nossos ouvidos pela acção de muitos, mormente dos gregos, que se tornaram nos
mais loquazes dos homens.
- Estrabão, Geografia. 3,4,19

Mapa de África retirado de j. W. Heydt, Alterneuste Geographisch und Topographische


Schau-Platz van Africa und Oost-Indien,1744. Fonte: Oscar I. Norwich, Maps of Africa, 1983.

Bi, V.Y. Mudimbe A Idéia de África


A descoberta de África teve lugar no século XV, pelo menos, é essa a
indicação da maioria dos livros de história. Os professores ensinam-na
e os alunos aceitam-na como verdade. E porquê duvidar? Os média di-
vulgam a veracidade do facto nas aventuras dos exploradores europeus.
Na sua acepção primeira, esta descoberta (ou seja, esta revelação, esta
observação) significou e significa ainda a violência primordial trans-
mitida pela palavra. O relato do tráfico de escravos foi narrado em con-
formidade e o mesmo movimento de redução assegurou progressiva-
mente a invasão gradual do continente.
Por conseguinte, tratou-se, sem dúvida, de uma descoberta neste
sentido estrito. Contudo, podemos questionar muito seriamente se
a descoberta do continente no século XV é, de facto, verdadeira em
termos históricos. Temos conhecimento daquilo que essa descoberta
encerra, as novas ordens culturais que propiciou e, no plano episte-
mológico, os textos que os seus discursos produziram e os autores dos
feitos que constam do chamado "acervo colonial". Contudo, graças a
um novo olhar, torna-se claro que a descoberta do século XV não foi
o primeiro contacto do continente com forasteiros e, nesse sentido,
essa descoberta traduz apenas um único ponto de vista, o europeu.
Consideremos alguns dados.
O perípius de Neco ocorreu muito antes, no século VI a.C. Heródoto
descreve o empreendimento da tripulação fenícia ao serviço do Faraó
egípcio, especifica a primeira exploração de que se conhece do conti-
nente, "o qual está cercado de mar excepto do lado que confina com a
Ásia" (IV, 42), e, por fim, inocentemente, dá provas da circum-navega-
ção: "ao terceiro ano, [os fenícios] dobraram as Colunas de Hércules
[Cabo da Boa Esperança] e chegaram ao Egipto. Diziam eles - houve
quem acreditasse, mas eu não - que, ao fazerem a circum-navegação
da Líbia, tiveram sempre o sol à sua direita" (Heródoto, IV, 42). Com
efeito, o sol no hemisfério sul só poderia estar à direita da tripulação
durante a sua passagem pelo Cabo. Paradoxalmente, o que para Heró-
doto era inacreditável constitui a prova principal da circum-navega-
ção. Note-se igualmente que, para Heródoto, o nome que designava a
totalidade do continente era Líbia.
Sataspes, príncipe aqueménida (filho de umas das irmãs de Dario)
tentou repetir - muito provavelmente entre 485 e 465 a.C. - a proeza
da expedição de Neco, mas, desta vez, circum-navegando o continente
no sentido Oeste-Este. Segundo Heródoto, a missão fracassou porque
Sataspes "receava a extensão e a solidão da viagem e, portanto, voltou
para trás sem ter levado a cabo a empresa que a mãe lhe tinha impos-
to" (IV, 43). Ao contrário dos fenícios de Neco, que se coibiam de travar
conhecimento com os povos locais, a comitiva de Sataspes manifestava
essa preocupação. Aliás, Sataspes conta a seguinte história a Xerxes
I. Os Símbolos e a interpretação do Passado Africano 39
aquando do seu regresso, após a sua malograda missão: "No seu en-
contro com Xerxes, contou-lhe que, no ponto extremo da sua viagem,
tinha navegado ao longo de uma terra de homens pequenos, que se
vestiam com folhas de palmeira; e sempre que ele e os seus homens
aportavam à costa, aquela gente abandonava as suas aldeias e fugiam
para as montanhas" [Heródoto, IV, 43). Se estes "homens pequenos"
realmente existiram na costa ocidental de África, parece que desapa-
receram há muito tempo.
Outra expedição, decerto mais empolgante mas repleta de mistérios
e inconsistências, foi organizada pelos cartagineses a partir do próprio
continente (Hanon, 1855) em data desconhecida - provavelmente em
finais do século VI a.C. Foi impulsionada por dois objectivos: fixar colô-
nias no litoral (as fontes documentais indicam que sessenta navios e
trinta mil imigrantes - homens e mulheres - participaram na expe-
dição) e explorar o continente. Aparentemente, a expedição de Hannon
alcançou o Monte Camarões (ver igualmente Mveng, 1972, pp. 45-46).
Finalmente, gostaria de fazer referência a um texto pouco conhecido
intitulado Perípius ofthe Erythraean Sea (o actual Mar Vermelho), de
um autor desconhecido, escrito provavelmente em Alexandria e datado
entre 130 e 95 a.C. (ver Huntingford, 1980). Trata se claramente de
uma descrição em primeira mão e de "um texto que mostra todos os
sinais de ser a obra de um homem que teria estado pessoalmente na
maioria dos locais mencionados" (1980, p. 5), conforme observa G. W.
B. Huntingford. O seu relato acerca da costa oriental inicia-se em Muos
Hormos (muito provavelmente o actual Abu sharm al-qibli no Mar
Vermelho, cerca de 480 km a sul do Suez) e termina em Rhapta na cos-
ta da Azânia (a actual Tanzânia). Tal como sugere G. Mathew, Rhapta
possivelmente "jaz perdida no delta de Rufiji" (In Huntingford, 1980,
p. 100). Peripius indica em pormenor os bens exportados da costa, es-
pecificando a sua origem. Estes incluem canela, gomas aromáticas em
geral, incenso, marfim, cornos de rinoceronte e carapaças de tartaru-
gas.
Se o território - designado de Torglodutike por Ptolomeu {Geogr., IV,
7, 27) - praticamente não tem história, a etnologia revela-se imprecisa
mas intrigante, devendo ser confrontada com outras descrições anti-
gas, designadamente de Agatárquides e Estrabão. Foram observadas
determinadas características interessantes: a circuncisão dos Nandi e
Masai, ainda praticada; o enterro dos mortos cujos corpos eram co-
bertos com pedras, um costume dos Gala (Etiópia), Masai (Quênia) e
Zande (Congo-Sudão); e, ainda mais surpreendente, "o costume de rir
num funeral. Os Nandi costumavam sepultar um idoso sem mostras
de tristeza, com alegria e prosa, pois, a seu ver, 'Chegou ao sítio onde

Bi, V.Y. Mudimbe A Idéia de África


tencionava chegar há algum tempo'" (1980, p. 145), conforme explica
Huntingford. A prática do riso em funerais foi sempre popular nas
zonas ocidentais e centrais do continente.
É possível acrescentar a estes peripla o breve relato da exploração da
costa ocidental por Escílax de Carianda (Müller, 1882, 1, pp. 152-53),
a de Políbio, resumida por Plínio (V, I), e a de Eudoxo (Plínio, II, 67),
entre muitos outros (ver Mveng, 1972).

Mulheres africanas, de Odoardo Lopez e Filipe Pigafetta, Relatione, 1591.


Da esquerda para a direita: um escravo, uma plebeia e uma aristocrata.

' Recuperação dos textos antigos


Os peripla são apenas uma mostra que, no âmbito geral, representa
uma compilação muito limitada das percepções grega e latina do con-
tinente. Existem outros olhares, outros textos e comentários, outras
reproduções fruto de manifestações artísticas, sobre o que foi obser-
vado, dito ou aprendido em relação ao continente apelidado de Líbia.
Alain Bourgeois, um académico francês que residiu durante algum
tempo no Senegal, sintetiza os aspectos essenciais em La Grèce antique
devant Ia négritude (1971) e distingue três temas principais: Grécia e
África; os negros vistos pelos gregos em termos de anatomia, alimenta-
ção, habitação, guerras, luxo, sistemas políticos, sociedade, costumes,
religião, sabedoria, línguas, etc.; e os negros na Grécia. No final da sua
investigação. Bourgeois constata com espanto:
Que conclure, enfin, sinon que les rapports de la Grèce et de la Négritude, qu'on
eût pu croire a priori négligeables ou presque nuls, se sont révélés d'une insoupçon-
nable richesse? Il n'était pas nécessaire que les écrivains fissent grand étalage de leurs
connaissances sur l'Afrique, au demeurant bornées et fragmentaires, nécessairement.

I. Os Símbolos e a interpretação do Passado Africano 41


Mais en fait ils ont su beaucoup plus qu'on ne s'y serait attendu et de ce qu'ils ont su,
ils ont tiré un parti extraordinaire. (1971, p. 124).
Por fim, que conclusão extrair senão que as relações entre a Grécia e a negritude,
as quais poderiam ser consideradas descartáveis ou quase nulas a priori, revelaram
ser de uma riqueza inesperada? Os escritores [gregos] não tiveram de exibir os seus
conhecimentos sobre África, cuja natureza era necessariamente limitada e fragmen-
tada. De facto, sabiam muito mais do que se poderia imaginar e tiravam um proveito
extraordinário dos seus conhecimentos.
11 est réconfortant de voir que, au rebours de tant de peuples qui se sont tournés
vers l'Afrique que par convoitise, pour sa richesse en or, en ivoire, en main d'œuvre,
les Grecs d'il y a plus de deux millénaires ont regardé avec admiration les Nègres en
tant qu'hommes, fraternellement. (1971, p. 125).
É reconfortante verificar que, ao contrário de muitas nações que se voltaram para
África apenas devido à sua riqueza em ouro, marfim e mão-de-obra, os gregos, dois
milênios antes, olhavam para os negros como seres humanos, nutrindo um senti-
mento de admiração e fraternidade.

A investigação de Bourgeois assume e incorpora o seu anteces-


sor: LAfhque saharienne et soudanaise, ce qu'en ont connu les Anciens
[1927) de A. Berthelot. Porém, pode ser igualmente associada a uma
corrente, surgida depois da década de 1940, que atravessa a roman-
tização da busca de uma identidade africana, encetada pelo movi-
mento da Negritude. Desde a sua apresentação em Paris na década de
1930 por Aimé Césaire, Alioune Diop, Léon-Gontran Damas e Léopold
Sédar Senghor, a Negritude almeja celebrar os valores da experiência
histórica e cultural dos negros. O conceito de Negritude figura no
título do livro de Bourgeois e é uma constante ao longo do texto que,
aliás, conta com uma introdução de Léopold Sédar Senghor. Partindo
dessa herança ideológica e intelectual. Bourgeois divulga e recupera os
vestígios e as descrições dos africanos nos textos gregos. A análise dos
textos antigos pautou-se pelas referências explícitas a africanos, pela
consistência das avaliações positivas e pela visibilidade das represen-
tações concretas, como são a pintura e a escultura. Em contrapartida,
a mensagem que descortinam - ignorada, ofuscada ou omitida duran-
te séculos de sabedoria ocidental - é redefinida silenciosamente em
prol de um projecto do século XX: o negro é belo. De qualquer modo,
o ajustamento entre os dois pólos obedece à nova política das leituras
filológicas ou, para ser mais exacto, à primeira política textual contem-
porânea [ver, por exemplo, Mveng, 1972, pp. 205-14).
À medida que se reflecte sobre a imagem aventada pelo livro fabuloso
de Bourgeois, colocam-se duas questões essenciais. Primeiramente, os
textos gregos citados são utilizados como uma espécie de totalidade
Bi, V.Y. Mudimbe A Idéia de África
sincrónica, apesar de abarcarem vários séculos, beberem sensibilidades
culturais marcadamente diferentes e dependerem de normas tão di-
versas e, amiúde, contraditórias. Bourgeois, o filólogo, sabe disso tão
bem como discernir entre a credibilidade e as convenções de fontes
mitológicas e as de produções literárias e artísticas. Contrariamente
ao modo de tratamento do saber no Renascimento, verifica-se uma
distinção entre os gêneros e um reconhecimento da sua diferença
irredutível e do estatuto do seu conteúdo. Porém, nenhum gênero é
excluído uma vez que o objectivo do projecto consiste em avaliar a
representação grega dos povos negros. Todos os gêneros beneficiam
da mesma atenção e são invocados como um instrumento para com-
por um "ikon". Nesse sentido, as invocações lisonjeiras de Homero [//.,
1,423; XXIII, 206] relativas a negros fiéis e devotos parecem pertencer
à mesma ordem descritiva da exposição de Heródoto sobre os egípcios
e os povos negros (por exemplo, II, 104; IV, 55; VII, 70), assim como a
celebração de Píndaro do jardim etíope de Zeus {Pít, IX, 53) e a mate-
rialidade de um objecto como os perfis negróides ilustrados no vaso
tebano de Cabíria no qual Circe oferece uma bebida a Ulisses.
Em segundo lugar, esta integração de gêneros denota um efeito cu-
rioso, isto é, a introdução da máxima informação numa tela. Em vez de
um retrato rudimentar e realista - afinal, em comparação com Aris-
tóteles, os conhecimentos de Homero sobre os africanos eram redu-
zidos - eis um belo monstro plenamente desenvolvido: um conceito
religioso celebrado no século VI a.C., um corpo representado no século
IV e uma psicologia directamente inspirada nas descrições do século
III. Com efeito, um texto como o de Bourgeois não cede à ingenuidade
do registo das semelhanças e diferenças patente na fábula de Hércules
e os pigmeus líbios, referida inicialmente. Contudo, apesar dos seus
feitos magníficos, o texto de Bourgeois emprega involuntariamente
metáforas reflectivas ao invés das figuras espontâneas, limitadas e
sempre incompletas, passíveis de serem pintadas a propósito das repre-
sentações antigas. Importa reconhecer ainda que o alcance do retrato
não exclui sinais contraditórios decorrentes das próprias exigências
do método. Por exemplo, no respeitante ao estudo da anatomia do
negro, Heródoto, entre várias observações sensatas, escreve com bas-
tante seriedade que o esperma de um homem negro é preto (III, 97) e
as conjecturas de Aristóteles sobre a natureza do cabelo e da dentição
dos povos negros (por exemplo, III, 9) serão certamente recebidas com
estupefacção.
Um empreendimento como o de Bourgeois ocasiona um projecto
do saber e, em particular, uma nova forma de relacionar os excertos
gregos sobre África e os africanos com o discurso e a percepção actuais

I. Os Símbolos e a interpretação do Passado Africano 43


da história. Em suma, o direito africano à dignidade enuncia-se a si
próprio na recuperação dos textos antigos e no questionamento da
objectividade da história.
Este acontecimento pode ser datado. Até à década de 1940, a reali-
dade de uma história africana, sobretudo para a região subsariana do
continente, parece ser inexistente, pelo menos no plano académico. De
facto, o início da história africana deveria coincidir com a descoberta
europeia do continente no século XV, sendo que as sociedades africanas
se tornaram históricas no momento da sua colonização. As forças em
acção entre as décadas de 1920 e 1940, cada vez mais influenciadas
pelos conceitos de subjectividade, autonomia regional das culturas e
relativismo dos valores questionaram, numa reapreciação crítica, a
universalidade da experiência ocidental, bem como a sua vontade de
verdade. O conceito de história sofreu uma mutação [ver, por exem-
plo, Braudel 1980], o que permitiu recuperar o passado das culturas
não-ocidentais livres de uma presença ocidental. A obra De Ia Tradi-
tion orale: essai de méthode historique (1961), de Jan Vansina foi, sem
dúvida, surpreendente mas os praticantes da "arte" da história tinham
perfeita consciência da importância sagrada dos documentos escritos
para efeitos de análise, interpretação e construção de um passado.
Nesta perspectiva, Bourgeois joga aparentemente pelo seguro utili-
zando apenas testemunhos escritos mas, ainda assim, é tão ou mais
revolucionário do que Vansina. Em primeiro lugar, reagrupa referên-
cias acerca do que aparenta ser uma mera curiosidade: os africanos
presentes no mundo escorreito, neutralizado e perfeitamente expur-
gado da civilização grega, um universo ocupado consistentemente por
séculos de sabedoria ocidental que glosa sobre as suas próprias raízes
culturais. Ao recorrer a estes indivíduos, reduzidos a uma cor indefini-
da e a alguns nomes duvidosos (líbio, etíope, etc.), e às suas expressões
mais nítidas - tais como textos raros e vasos - Bourgeois exige
sub-repticiamente uma reinterpretação.
Il est clair que les Grecs, tant de l'époque homérique que de l'époque classique, voire
de l'époque alexandrine, poètes, historiens, moralistes, ont, de près ou de loin, con-
nu et apprécié les Nègres, non avec aucune curiosité de dilettantes, sans le moindre
préjugé racial, mais bien au contraire avec les sentiments les plus favorables et dans
les termes les plus flatteurs. (Bourgeois, 1971, p. 125).
Afigura-se evidente que os gregos, não apenas nos períodos homérico e clássico,
mas também no período alexandrino - poetas, historiadores, moralistas - conhe-
ciam os negros de perto e de longe e apreciavam-nos sem a curiosidade dos
diletantes nem o preconceito da raça, pelo contrário, acalentavam os sentimentos
mais favoráveis e abordavam-nos nos termos mais elogiosos.

Bi, V.Y. Mudimbe A Idéia de África


Léopold Senghor percebeu a mensagem, que corresponde a um re-
forço das suas próprias convicções. Escudando-se atrás da autoridade
de um dos seus professores. Paul Rivet, Senghor escreve o seguinte no
Prefácio ao livro de Bourgeois:
Quand les Indo-européens, quand les Grecs - grands, les cheveux blonds et les yeux
bleus - débouchèrent sur les flots de la Méditerranée, ivres de soleil et de fureur,
ils y trouvèrent un peuple brun, doux et poli, paisible et raffiné; un peuple métis,
composé de Négroïdes et de Sémito-Chamites (Bourgeois, 1971, p. 8).
Quando os indo-europeus, quando os gregos - altos, louros e de olhos azuis - chega-
ram às praias mediterrânicas, embriagados de sol e fúria, depararam-se com uma
raça castanha, doce e cortês, pacífica e sofisticada; uma raça mestiça composta por
negróides e semito-camitas.

The Young Barberíni Musician, c. 200 a.C. Bronze.


Biblioteca Nacional, Gabinete de Medalhas, Paris.

Trata-se de uma revisão da história tradicional. O que parece ser uma


idiossincrasia de Bourgeois e de Senghor corresponde, na realidade,
ao projecto mais assisado das reavaliações da história do continente
conduzidas entre 1940 e 1950. Eugène Guernier, professor no Insti-
tuto de Ciências Políticas da Universidade de Paris, já havia exposto,
em L'apport de l'Afrique à la pensée humaine (1952), todo um sistema
de acusação à história tradicional. Frisou a origem africana da humani-
dade e da consciência humana, as raízes africanas do homo artifex,
a originalidade da civilização egípcia, e o vasto contributo da região
setentrional do continente, denominada de Berbérie, para a formação

I. Os Símbolos e a interpretação do Passado Africano 45


da racionalidade e do saber europeus. O académico senegalês Cheikh
Anta Diop, egiptólogo e físico, desenvolveu as teses em dois livros.
Nations nègres et culture (1955) e Antériorité des civilisations nègres
(1967), estabelecendo uma relação entre a África negra e o Egipto. A
expressão mais elegante da nova ortodoxia consistiu na Histoire de
lAfrique, de Joseph Ki-Zerbo (1972). Esta perspectiva foi alvo de uma
reformulação rigorosa em dois projectos monumentais: as histórias de
África de Cambridge e da UNESCO. IVIais recentemente, Black Athena
(1987 e 1991), de Martin Bernal, enfatizou com veemência a hipótese
de Cheikh Anta Diop ao introduzir o "factor negro" do académico sene-
galês nas "raízes afro-asiáticas" da civilização greco-romana clássica.
Na verdade, a informação facultada pelo corpus grego acerca do con-
tinente africano é relativamente limitada, quando comparada com
aquela que está disponível sobre a Ásia, por exemplo. R. Lonis (1981)
sugeriu que a descrição grega de África é susceptível de ser conden-
sada em três abordagens: uma representação mítica, desde a época de
Homero até à arte do século VI; uma reflexão antropológica, patente
nos dados iconográficos de meados do século V e nos textos literários
do período helénico; e, finalmente, a representação do africano como
o Outro desconhecido que deve ser temido. Pessoalmente, inclino-me
para a conceptualização de dois modelos apenas: o mítico e o antropológi-
co. A ordem cronológica proposta poderia ser conservada se enten-
dida como um simples enquadramento metodológico. Com efeito, a
descrição do norte de África levada a cabo por Heródoto (Livro IV)
participa em ambos: apresenta uma descrição antropológica das co-
munidades situadas entre o Egipto e o lago Tritónis; projecta, para lá
do lago, monstros míticos, cinocéfalos e acéfalos com olhos no peito.
O mesmo se aplica às versões de Diodoro Sículo (Livro III) e de muitos
outros.
O movimento geral que promove a recuperação dos textos gregos
transcende uma mera revisão da sabedoria tradicional. Significa, real-
mente, uma inversão das perspectivas, assinalando uma ruptura epis-
temológica importante. Consiste numa reconversão completa dos con-
ceitos orientadores e, muito em particular, na disposição de todos os
elementos dentro da ordem devida do sistema, das regras e das nor-
mas, para recorrer à linguagem de Foucault (1973, pp. 359-61). Como
consequência, a nova ortodoxia suscitou polémicas - aparentemente
sobre os pormenores de matérias fulcrais como o referente de me-
las em grego antigo, a credibilidade científica da tradição oral ou as
relações linguísticas exactas entre o egípcio cóptico e as línguas afri-
canas - devido aos factores que estiveram na sua origem. O paradoxo
- mas será mesmo um paradoxo? - reside no facto de esta inversão

Bi,V.Y.MudimbeA Idéia de África


epistemológica, que sanciona as histórias africanas como recursos e
reflexos das suas próprias culturas regionais e os seus contactos trans-
culturais, ser idêntica à do Ocidente; ou melhor, define um momento na
história recente do saber ocidental caracterizado pela eliminação das
dicotomias e cujo melhor símbolo poderá estar em Freud. Com efeito,
citando Foucault, uma vez que Freud é "o primeiro a empreender a su-
pressão radical da divisão entre o positivo e o negativo (entre o normal
e o patológico, o compreensível e o incompreensível, o significante e o
não-significante), compreende-se de que modo anuncia a transição de
uma análise em termos de funções, conflitos e significações para uma
análise em termos de normas, regras e sistemas" (Foucault, 1973, p.
361].
Sob este ponto de vista, a obsessão actual de determinados intelec-
tuais negros pelo Antigo Egipto e pela Grécia torna-se bastante intrigan-
te, levantando um problema curioso ao sugerir que, embora não seja
transcultural, o poder filológico ou histórico trata textos antigos conhe-
cidos e perfeitamente espacializados como um domínio virgem que
aguarda uma nova autoridade. É possível compreender de que forma a
psicanálise seria a companheira silenciosa de tais empreendimentos,
desta vontade de verdade numa demanda pelos seus próprios alicerces.
Todavia, este não é o momento para proceder à análise desta paixão e
das suas ambiguidades.
De entre as aventuras mais originais neste âmbito, mencionarei
quatro livros por ordem cronológica.
1] Drusilla Dunjee Houston, Wonderful Ethiopians of the Ancient
Cushite Empire (1926, última edição 1985). Constitui uma celebração
dos fundadores de uma civilização resplandecente. Houston (1876-
-1941), historiadora e filóloga autodidacta, demonstra um conhe-
cimento enciclopédico notável sobre o assunto. A sua investigação
teria sido um contributo de primeira linha se incluísse uma leitura
mais crítica das fontes e aplicasse com maior rigor as normas dos
métodos histórico e filológico.
2] Grace Hadley Beardsley, The Negro in Greek and Roman Civiliza-
tion: A Study ofthe Ethiopian Type (1929). É considerado um clás-
sico do género. Outrora professora de Latim e História na Goucher
College, Beardsley conjuga informações impolutas com competên-
cias brilhantes em matéria de análise literária (o capítulo 1 sobre o
etíope na literatura grega e o capítulo 2 sobre o etíope na literatura
romana); história (o capítulo 2 sobre o etíope na Grécia); história de
arte, com o estudo sobre vasos de plástico (capítulo 3), pinturas em
vasos (capítulo 4], terracotas (capítulo 7), bronzes helénicos (capí-
tulos 8 e 9) e arte romana (capítulo 12); e inclusivamente o que hoje

I. Os Símbolos e a interpretação do Passado Africano 47


se apelida de sociopsicologia através da sua exploração sobre o tipo
etíope no século IV [capítulo 5), o etíope no mundo helénico [capí-
tulo 6) e o temperamento do etíope [capítulo 10).
3) Frank Snowden, Jr., professor de Estudos Clássicos na How^ard
University, apresenta, na obra Blacks in Antiquity [1970), um estudo
mais orientado para a literatura com o intuito de provar que "a per-
cepção greco-romana dos negros não foi uma idealização romântica
de povos distantes e desconhecidos, mas antes uma rejeição funda-
mental da cor enquanto critério de avaliação dos homens" [Snowden,
1970, p.216).
4) Engelbert Mveng, Les Sources grecques de 1'histoire négro-africaine
depuis Homèrejusqu'à Strabon [1972). Trata-se da obra mais filológi-
ca de todas. Padre jesuíta e acadêmico originário dos Camarões,
Mveng faculta um resumo da sua tese de doutoramento apresentada
na Universidade de Paris, que, no fundo, constitui uma análise de
documentos escritos e dados arqueológicos [epigráficos e iconográ-
ficos) no sentido de atestar o saber grego sobre África. A sua orga-
nização é clara: a) apresentação das fontes, b) exposição crítica dos
problemas relacionados com as fontes, c) análise do conteúdo das
fontes.
Na obra Black Athena, objecto de uma análise exaustiva no capítulo
3 do presente livro, Martin Bernal, remetendo para a classificação de
Jacob Carruthers relativa a acadêmicos negros que se dedicam à
presença africana na antigüidade greco-romana e à história do Egip-
to, distingue três grupos principais: o primeiro inclui os "velhos luta-
dores" que, "sem qualquer formação" consagraram os seus talentos
à causa da história e dos contributos dos negros; o segundo grupo,
"que inclui George Washington Williams, W. E. B. Dubois, John Hope
Franklin, Anthony Nogueira e Ali Mazrui", terá, segundo Carruthers,
"argumentado apenas que os negros também são responsáveis pela
construção da civilização egípcia, a par de outras raças"; e um terceiro
grupo, a que pertencem Cheikh Anta Diop, Ben Jochannan e Chacellor
Williams, atribui uma importância fulcral à iniciativa africana. Bernal
observa adequadamente que:
Por conseguinte, no final da década de 1980, observo uma discussão porfiosa entre os
acadêmicos negros quanto à natureza "racial" dos antigos egípcios. Por outro lado,
a elevada qualidade da civilização egípcia e o papel central que desempenhou
na formação da Grécia são questões que não propiciam cisões relevantes. (Bernal,
1987, p.436).

Bi,V.Y.MudimbeA Idéia de África


Denominação e metaforização
Na maioria dos dicionários do século XVI, a nomenclatura latina
reproduz-se a si própria. "Africano", enquanto substantivo e adjectivo, é o
termo equivalente a afer e significa qualquer indivíduo originário do
continente, independentemente da cor A sua tradução literal é africa-
nus. 0 famoso Cipião de Roma, que não era negro, ficou conhecido na
história como Cipião Africano, à semelhança de Agostinho de Hipona.
Este último, caso regressasse, seria muito provavelmente - e para sua
grande surpresa - identificado como um homem negro pelo sistema
de imigração norte-americano de classificação racial. Mas isso é outra
questão. Para os romanos, "África" designa uma das províncias do im-
pério ao passo que "africanos", afri ou africani, remetem para os seus
habitantes: "populi partis Africae, quam dicimus septentrionalis,
exceptis Aegyptiis, Numidiis, Mauris, ei maxime qui sub Carthagini-
ensium império tenebantur" [Thesaurus Linguae Latinae, I, 125, 53 sq.).
Porém, em obras literárias e técnicas ressalta outro significado - uma
terceira parte do mundo {tertia orbis terrarum pars, por exemplo,
Plínio, História Natural, 2, 123) - equivalente ao termo grego clássico
Libya. A concordância prolonga-se até aos séculos XVI e XVII, conforme
indica Robert Estienne: África ou Líbia, "Libya et Hesperia a Graecis
appellata", denominada Líbia e Hispéria pelos gregos (Estienne, 1740,
I, p. 1156].
"Étiops" [Aithiops) - nome próprio do filho de Vulcano na mitolo-
gia grega - corresponde à qualificação genérica de um indivíduo de
pele escura (Estienne, pp. 1816-18]. A palavra, tal como consta no
Thesaurus Linguae Latinae (I, 1554, 62], apresenta uma quantidade
surpreendente de variações fonológicas (ae- e e-; -th- e -t-, -i- e -y-].
No entanto, o significado manteve-se constante ao longo da história da
Grécia Antiga (ver Beardsley 1929]. Por outro lado, segundo Isidoro,
"Etiópia" {Aethiopia) qualifica o continente: dieta a calore - colore -
populorum quossolis vicinitas torret {_Oríg., 14, 5,14]. A referência sus-
surra uma particularidade: a terra ou o continente é denominado de
Etiópia devido ao calor [calore) ou à cor [colore) - eis uma confusão
textual visualmente sugestiva - dos povos que vivem perto do sol que
os queima. Nesta perspectiva, torna-se então possível compreender
uma distinção antiga entre a Etiópia oriental e a ocidental: "Aethiopia
duae sunt una circa ortum solis, altera circa occasum in Mauretania",
existem duas Etiópias, uma situada a leste e outra a oeste, na Mauritâ-
nia (Isidoro, Orig., 14, 5,16; Thesaurus Ling. Lat., 1,1157,4].
Apesar desta definição, que distingue claramente entre Etiópia oci-
dental e Etiópia oriental, a noção foi confusa desde o início. Homero,

I. Os Símbolos e a interpretação do Passado Africano 49


por exemplo, fixa os seus etíopes com os restantes líbios (^Odisseia, IV,
84 sq.) ao passo que, no texto de Heródoto, adquire um carácter alta-
mente polissémico. Ao contrário do norte do continente povoado por
líbios, a Etiópia é descrita como o país localizado depois do Egipto, nos
confins do mundo [III, 25), e a região mais meridional com habitantes
[III, 114). Diodoro Sículo [III, 8-9) realiza a mesma variação de signifi-
cados na sua descrição dos etíopes. Situa-os nas "terras que jazem em
ambas as margens do rio Nilo e nas ilhas no rio;" chama a atenção para
"aqueles que vivem para lá de Meroe" e, inclusivamente, faz referência
aos etíopes que povoam a área próxima da zona quente, de acordo com
Estrabão [XVIII, 2, 3). De qualquer modo, é evidente que, a partir do
século I d.C., os geógrafos procederam à divisão do continente em três
partes principais: Egipto, Líbia e Etiópia, a qual corresponde sensivel-
mente à África subsariana [ver Mveng 1972).
O uso de Etiópia enquanto termo que designa o continente entra
um declínio com as explorações europeias no século XV, as quais pro-
movem, entre outras curiosidades, Nigritia como o nome do conti-
nente. Os geógrafos antigos já conheciam Nigritia, que deriva do latim
niger, sendo que os seus habitantes eram denominados de Nigriti [por
exemplo, Pompónio Mela, I, 4). O termo latino niger corresponde ao
grego melas e, no que diz respeito à cor dos seres humanos, traduz
estritamente o termo grego Aithiops, ou seja, um rosto queimado pelo sol
[ver, por exemplo, Mveng, 1972), um valor neutro com ocorrência no
dicionário de Cotgrave de 1611: "neigre adj., de la couleur d'un nègre."
É interessante observar que nigritude, um substantivo feminino que
significa indivíduo de "cor negra", já estava contemplado no dicionário
Richelet, em 1566.
A partir do século XVIIl europeu, assiste-se ao surgimento de uma
ligação nítida e sólida entre o continente africano e o conceito de primi-
tivismo, e, por conseguinte, o de selvajaria. Etimologicamente, o termo
"primitivo" remete para originário, e, na acepção mais estrita, África é,
provavelmente, o locus originário da humanidade. "Selvagem", por seu
turno, deriva do termo latino tardio silvaticus e, conforme demonstrado na
leitura do tratado de Burton, significa marginalidade. Num espaço cul-
tural e normativo, designa ainda os incultos. Por exemplo, entre o perío-
do medieval e o século XVII, selvagem, em francês, muitas vezes significa
apenas "estranho", sendo que na época setecentista adquire a conotação
de "associai", tal como definido por Dubois, Lagane e Lerond.
A identificação do século XVIII como o momento da articulação estra-
tégica dos conceitos de primitivismo e selvajaria comporta problemas
consideráveis. Com efeito, a época áurea das explorações decorreu
entre 1485 [a viagem em que Bartolomeu Dias dobra África) e 1541

Bi,V.Y.MudimbeA Idéia de África


[o fim da missão de Jacques Cartier). As informações e descrições
sobre os "selvagens" recém-descobertos arraigaram-se na consciên-
cia europeia, que procura afirmar o seu Cogito em relação àquilo que
"este" define como sendo radicalmente diferente.
No entanto, entre o século XV e o século XVIII, a maioria dos debates
e das hipóteses de cariz teórico - por exemplo, de Joseph de Acosta,
Pedro Mexia, Sir Walter Raleigh, Pierre Viret - sobre este novo "outro"
partilha de duas características fulcrais: depende, no fundo, de um ar-
gumento religioso e moral e situa-se estritamente no domínio de uma
antropologia filosófica estática (ver Padgen, 1982]. Nesse sentido, as
teorias sobre a difusão, a degeneração ou o ambientalismo contornam,
e em todo o caso comprovam, um problema: como justificar a verdade
do Gênesis se a humanidade não descende de um só povo? Por outro
lado, se a geografia, na qualidade de hipótese, é capaz de explicar a
diversidade das culturas humanas, será possível aceitá-la e às suas
implicações sem refutar o Gênesis? (ver Hodgen, 1971]. Os debates e
as teorias conduziram a proposições assentes na hierarquização dos
seres humanos na cadeia natural do ser, contribuindo para antropolo-
gias filosóficas estáticas e imóveis em vez de uma eventual temporalização
das diferenças naturais e culturais. Como tal, também abriram caminho
para a concepção de uma antropologia histórica que, devido aos seus
desvios espaciais, teria de fazer face ao problema do relativismo cul-
tural. De acordo com Hodgen:
A ruptura surgiu no século XVIII com Leibniz e Erasmus Darwin. "As diferentes catego-
rias do ser," afirmou o eminente filósofo alemão, "cuja totalidade forma o universo,
residem nas idéias de Deus, que conhece nitidamente os seus matizes essenciais....
Assim, os homens estão associados aos animais, estes com as plantas e estas com
os fósseis.... Todas as ordens dos seres naturais devem obrigatoriamente constituir
uma única cadeia, na qual as diferentes categorias, como tantas outras associações,
estão de tal modo interligadas... que é impossível para a razão ou a imaginação de-
terminar o seu início ou o seu fim;... [e todas estão] prenhes de um estado futuro...
[ou] de uma mudança harmoniosa". O Dr. Darw^in foi mais longe nos seus comen-
tários, que teriam horrorizado os primeiros zoólogos e botânicos. Antecipando La-
marck em quinze anos, salientou que "quando esmiuçamos... as grandes mudanças
que se operam naturalmente nos animais após o seu nascimento... não podemos
senão convencermo-nos de que... todos os animais sofrem transformações perpé-
tuas... e muitas dessas formas ou propensões adquiridas são transmitidas para as
gerações vindouras." Contudo, durante a época de Lineu e várias décadas depois, a
crença na imutabilidade das espécies era tão venerada entre os cientistas como a
fé em Deus. Deus era ainda considerado o forjador pessoal de toda a espécie de
mosquito e sarça. [Hodgen, 1971, p. 470).

I. Os Símbolos e a interpretação do Passado Africano 51


Importa frisar que, na historização das culturas humanas, o Ilumi-
nismo inscreveu-se num horizonte cartesiano e revitalizou-o: "Se Deus
é a origem das leis naturais, poder-se-á então afirmar que o mundo
não foi 'criado desde logo num estado acabado e perfeito', mas que a
sua existência foi gradual." Para Margaret Hodgen, citando um tal
Dr. Bock, a importância desta leitura "reside no facto de uma divindade,
cujas vontades são porventura misteriosas e escapam à razão humana [...],
ter sido substituída por uma regularidade e legalidade inexoráveis que
funcionam 'de modo uniforme em todas as épocas e lugares'. Foi este o
princípio da legalidade e uniformidade utilizado pelos modernos com
o intuito de demonstrar a inevitabilidade da mudança progressiva no
saber" (Hodgen, 1971, pp. 449-50]. O evolucionismo decorre precisa-
mente deste locus epistemológico que, ao mesmo tempo, situa o seu
próprio infortúnio. Na medida em que o Iluminismo historiza as cul-
turas humanas e pretende, em específico, embargar o seu crescimento e
a sua diversificação (ver Duchet, 1971), teria esta tendência funcionado
sem (sobretudo] abordar a historicidade da sua própria civilização?
Seja como for, a nova ordem epistemológica, que poderia ter produzido
um quadro colossal dos sistemas históricos das diferenças, acabou por
servir de base para uma hipótese altamente polémica (ver Lévi-Strauss,
1952 e 1976): uma escala das civilizações apontada como o parâmetro
representativo dos méritos humanos, dos valores culturais e, claro, do
progresso técnico. Nas suas expressões mais nefastas, a antropologia
cultural assumiu-se como o espelho reflector das sociedades "primiti-
vas", estudando as suas posições específicas na cadeia linear das civili-
zações, e esteve, subsequentemente, ao serviço dos projectos coloniais,
analisando as condições para a conversão dessas sociedades.
A metaforização das designações de África é promovida por este
contexto. Limitando-me apenas ao discurso produzido (ver também
Bhabha, 1986], que se repete a si próprio indefinidamente nos livros
do "acervo colonial", o contexto - ou mais precisamente, a sua von-
tade de verdade que greta as palavras antigas - constrói estereótipos,
atribui adjectivos fantásticos aos africanos e outros "primitivos" e, por
fim, estipula a sua missão civilizadora. Nesse sentido, é a coadunação
da antropologia com os projectos coloniais, em finais do século XVIII e
inícios do século XIX, que refina os conceitos e realiza, na imagem do
colonizado, todas as metáforas negativas desenvolvidas ao longo de
cinco séculos de explorações europeias do mundo (ver, por exemplo,
Hammond e Jablow, 1977).
Os exploradores e navegadores dos séculos anteriores conheceram os
africanos e descreveram-nos, por vezes sem quaisquer laivos de simpa-
tia. Fizeram-no em nome de uma diferença e não necessariamente por

Bi, V.Y. Mudimbe A Idéia de África


força de uma política intelectual do preconceito. Em termos culturais,
as suas pinturas são declaradamente autocentradas. Porém, é impor-
tante ter consciência de que, ao contrário do realismo grego por exem-
plo, as representações dos séculos XVI e XVII "ocidentalizam" ou, mais
especificamente, "italianizam" os corpos negros segundo os princípios
da semelhança, conforme ilustrado na antologia de Willy Bal [1963). O
facto de esta aproximação não excluir a antipatia significa apenas que
a individualidade dos seres e das coisas - as suas diferenças - devem
ser preservadas [ver, por exemplo, Foucault, 1973, pp. 17-23). As se-
mentes do preconceito já estão plantadas. Procedeu-se à construção
de ideologias vigorosas que expõem sem cessar a lógica das diferenças
e que, em última instância, serão vantajosas para os comerciantes de
escravos. Porém, em bom rigor, ainda não existe uma "ciência", o que
contribui para que todos os paradoxos sejam possíveis: o escandalo-
so comércio de escravos, por um lado; e determinados acontecimen-
tos como o encontro de Vasco de Gama e os Hottentots em 1497, por
outro. Para saudar o viajante português, os Hottentots tocam as suas
flautas, cantam e dançam. Quando terminam, o cortês da Gama solicita
os trompetes dos navios e convida os seus homens a cantar e dançar
de modo a expressar a sua gratidão aos seus anfitriões. Graças ao Ilu-
minismo, somente a partir do século XVIII é que se verifica uma "ciên-
cia" da diferença: a antropologia. Ela "inventa" uma idéia de África, que
será desenvolvida pelo colonialismo.
Mas é possível prosseguir com a decadência. Fora da idéia, África
tornou-se uma metáfora, a qual está patente, por exemplo, na obra The
Modem Everyman [1984), de Michael Burn, no momento em que se
dá a explosão da personagem principal:"... O nosso filho deve abraçar
a Aprendizagem, a par da Vida,/Como um explorador, como um colo-
nizador/Pisando sempre novos continentes,/Descobrindo sempre
novas Áfricas/de pensamento, experiência, imaginação,/seguindo as
nascentes ao encontro do mar derradeiro,/Subindo rios rumo à fonte
original,/Um Livingstone do Laboratório./Um Cortez da mente, o cére-
bro de Magalhães!" [Burn, 1948, p. 14).

Romanus Pontifex [1454] e a expansão da Europa


Na bula. Inter Coetera, de 1493, o Papa Alexandre VI afirma o seguinte:
De entre as várias obras aprazíveis à Majestade divina, e que o nosso coração deseja,
há uma que se destaca, a saber: que a fé católica e a religião cristã sejam exaltadas,
ampliadas e dilatadas por toda a parte, mormente no nosso tempo; que se procure

I. Os Símbolos e a interpretação do Passado Africano 53


a salvação das almas e que as nações bárbaras sejam dominadas e reduzidas à
mesma fé.

Esta declaração, a par do significado geral da bula, comporta duas


implicações de relevo. Em primeiro lugar, denota que o papa, enquanto
sucessor de São Pedro, é um representante visível de Deus e está acima
dos reis, tendo autoridade para "doar, conceder e outorgar perpetu-
amente [a reis europeus] todas as ilhas e terras firmes achadas [re-
centemente]", como acontece em Inter Coetera. Em segundo lugar, os
não-cristãos são privados dos direitos de posse ou negociação sobre
qualquer território no contexto internacional então vigente e, como
tal, os seus territórios são objectivamente uma terra nullius (terra de
ninguém), passível de ser ocupada e confiscada por cristãos para efei-
tos de exploração da riqueza que, segundo a vontade de Deus, deve ser
partilhada por toda a humanidade. Nesse sentido, estes cristãos coloni-
zadores prestariam auxílio aos seus "irmãos" inferiores associando-se
à história verdadeira e real da salvação.
Inter Coetera é apenas uma das bulas pontifícias oficiais que outorgam
esses direitos aos reinos recém-unificados de Aragão e Castela. Foi as-
sinada a 3 de Maio de 1493. Outras se sucederam, designadamente uma
sequela. Inter Coetera (II), datada de 28 de Junho de 1493, e Eximiae
devotionis, de Julho de 1493 (mas, por motivos políticos, com data de
3 de Maio); a estas seguiram-se Dudum siquidem (25 de Setembro de
1493), Aeterni Régis (21 de Junho de 1497) e Eximiae devotionis (II) (16
de Novembro de 1501), todas de Alexandre VI. A estas bulas do papa
espanhol destinadas ao seu rei, há que acrescentar Universalis Ecciesiae
de Júlio II, datada de 28 de Julho de 1508. Estes documentos não só con-
cediam ao Rei de Espanha o poder absoluto sobre as terras descobertas
recentemente, como também o domínio sobre as estruturas eclesiásti-
cas no Novo Mundo. Incumbia ao rei suportar financeiramente os pro-
cessos de evangelização, a construção de igrejas e a organização da nova
Cristandade, além de exercer influência em matéria de nomeação dos
bispos. Inter Coetera II (28 de Junho de 1493) confirmou que todas as
terras descobertas ou por descobrir situadas a 100 léguas a oeste e a
sul dos Açores pertenciam a Espanha. No Tratado de Tordesilhas (7 de
Junho de 1493), o meridiano avançou 270 léguas para oeste em relação
ao estabelecido inicialmente, tornando o Brasil "português", em vez de
"espanhol", e dividindo o mundo entre Espanha e Portugal.
Alexandre VI atribuiu aos "Reis de Leão e Castela, todas as ilhas e
terras firmes [...] descobertas e por descobrir". Sublinhe-se que Inter
Coetera I e II, bem como os restantes documentos mencionados, foram
prescritos por uma bula menos conhecida de Nicolau V, papa entre

Bi, V.Y. Mudimbe A Idéia de África


1447 e 1455 e fundador da biblioteca do Vaticano. Foi dito que, com
ele, o Renascimento "ocupou o papado", embora a expressão seja nor-
malmente utilizada para designar o pontificado de Leão X (1513-21],
um Medici.
Romanus Pontifex (1454] constitui uma das várias bulas pontifícias
que documentam o ius patronatus português, entre elas Dum Diversas
(18 de Junho de 1452], Ineffabilis et summi (1 de Junho de 1497] de
Alexandre VI, Dudum pro parte (31 de Março de 1516] de Leão X e
Aequum reputamus de Paulo III (3 de Novembro de 1534], que codifi-
cou as disposições e os direitos definidos em Dum Diversas, Ineffabilis
et summi e Dudum pro parte. Estas bulas pontifícias definem direitos,
privilégios e obrigações do Reino de Portugal no respeitante à coloni-
zação de países acabados de descobrir.
Na versão de 1730 de Magnum Bullarium Romanum seu ejusdem Con-
tinuatio por mim consultada, Romanus Pontifex (1454) corresponde a
uma carta de cinco páginas. O início é interessante pois alude à história
recente, embora as suas conotações remetam para tempos antigos:
Alfonso Lusitaniae Regi cujus Filius Henricus studio iter in Indiam Orientalem
aperiendi usque ad Guineam et Nigrum Fluvium penetraverat, et insulas varias
detexerat.

O documento dirigido a D. Afonso diz respeito a acontecimentos


históricos: as descobertas levadas a cabo pelo Infante D. Henrique, o
Navegador (1395-1460), nas suas explorações. Inter Coetera de Calisto
III (13 de Maro de 1456) concedeu ao Infante de Portugal, também
Grão-Mestre da Ordem de Cristo, o ius patronatus sobre todos os
países descobertos ou por descobrir em África na rota para o sul da
Ásia. Henrique, ou melhor, o seu executante - o prior-mor da Ordem de
Cristo residente no convento de Tomar, Portugal - detinha o poder civil
e religioso absoluto sobre estes países. Em 1514, o poder jurisdicional
seria transferido para o bispo do Funchal e o ius patronatus devolvido
ao rei. A segunda parte da citação louva D. Henrique pela descoberta do
caminho para a "índia Oriental" - D. Henrique havia atravessado a Guiné
até ao Rio Negro [ad Guineam et Nigrum Fluvium penetraverat). A referên-
cia geográfica também é evocativa do período clássico. No século L Plínio
[História Natural, V, 8, 44) mencionou o Nigrifluvio eadem natura quae
Nilo, o Rio Negro, cujas características eram iguais às do Nilo.
O segundo parágrafo de Romanus Pontifex estabelece a autoridade
política e teológica da carta. O seu autor enuncia o título oficial: "Roma-
nus Pontifex Regni coelestis clavigeri sucessor; et Vicahus Jesus Christi"
(Romano pontífice, sucessor dos portadores das chaves do reino

I. Os Símbolos e a interpretação do Passado Africano 55


celeste e vigário de Jesus Cristo). É nessa qualidade que Nicolau es-
creve a D. Afonso V, avalizado por uma história religiosa e política do
papado invocada na bula controversa Unam Sanctam [11 de Julho de
1302), de Bonifácio VIII, na qual é proclamada a primazia do poder es-
piritual [do papa) sobre o temporal [dos reis): "Cabe ao poder espiritual
instituir o poder temporal e julgá-lo se não for bom. [...] Afirmamos,
declaramos e definimos ser absolutamente necessário à salvação de
toda a criatura humana a submissão ao romano pontífice."
Nicolau especifica a missão da colonização no segundo parágrafo da
bula, ou seja, a expansão do Cristianismo. E exorta o rei a seguir esta
tradição, exemplificada pela Casa Real de Portugal: um compromisso
de divulgar o nome de Jesus nos territórios mais longínquos do mundo.
Catholicus et versus omnium Creatoris Christimiles, ipsiusque fidei acerrimus ac
fortissimus defensor, et intrepidus pugil.

O terceiro parágrafo inclui os pormenores da missão e está directa-


mente relacionado com as explorações portuguesas. As empresas do
Infante D. Henrique, que levou o nome de Cristo à índia e à Guiné, são,
uma vez mais, objecto de referência: "usque ad Indos, qui Christi no-
men colere dicunturnavigahile fieret [...] ad Ghuineam provinciam tan-
dem pervenirent". Esta menção à Guiné é pouco clara, mas é possível
que corresponda à Etiópia dos geógrafos antigos, pois os navegadores
haviam alcançado a nascente do Nilo [ac? ostium cujusdam magniflu-
minis Nilis communiter pervenirent).
O quarto parágrafo da bula é aterrador. Em nome de Deus, concede
ao Rei de Portugal e aos seus sucessores o direito de colonizar mas
também de converter ã força os Saracenos ac paganos [sarracenos e
pagãos) ao Cristianismo e escravizá-los a título perpétuo. Eis a afirma-
ção central:
Nos praemissa omnia et singula debita meditatione pesantes, et attendentes, quod
cum olim praefato Alfonso Regi quoscumque Saracenos ac Paganos aliosque
Dominia, possessiones, et mobilia et immobilia bona quaecumque per eos detenta
ac possessa invadendi, conquirendi, expugnandi, debellandi et subjugandi, illo-
rumque personas in perpetuam servitute, ac Regna, Ducatus, Comitatus, Principatus,
Dominia, possessiones et bona sibi et successoribus suis applicandi, appropriandi,
ac in suos successorumque usus et utilitatem convertendi, aliis nostris Uteris plenam
et liberam inter cetera concessimus facultatem. [minha ênfase]

O conceito de terra nuUius baseia-se no direito de privar os sarra-


cenos e outros não-cristãos de todos os seus bens [móveis e imóveis).

Bi, V.Y. Mudimbe A Idéia de África


no direito de invadir e conquistar as terras destes povos, de os expul-
sar e, quando necessário, combater e subjugar numa servidão perpé-
tua {debellandi et subjugandi, illorumque personas in perpetuam servi-
tute), e ainda de os expropriar de todas as suas posses.
Nos últimos dois parágrafos, Nicolau reinscreve a sua carta na
tradição da política da Igreja e do poder espiritual do papado.
Romanus Pontifex chama a atenção para vários aspectos. Em primeiro
lugar, os povos não-cristãos não usufruem de direitos de posse sobre
os territórios onde vivem. Em segundo lugar, aquando do seu contacto
com os nativos, os europeus cristãos - designadamente, os espanhóis
e os portugueses - solicitavam um encontro com o rei ou chefe local e
os seus conselheiros, com vista a apresentar uma interpretação cristã
da história, rigorosamente consentânea com o Antigo e o Novo Testa-
mentos. No final do encontro, os nativos eram convidados a jurar a sua
submissão e a converterem-se. No caso de os nativos não aceitarem a
"verdade" e de não serem "colonizáveis" politicamente, a sua chacina
era lícita, constituindo um acto de fé e um dever religioso para os colo-
nizadores. O sistema filosófico subjacente a Romanus Pontifex e á sua
explicação sobre como lidar com os não-ocidentais era de natureza
aristotélica que, como se sabe, também justifica a escravatura. Na óp-
tica do Padre Las Casas, um "liberal", ambas as bulas Inter Coetera
indicavam que Espanha detinha o direito de propagar o Cristianismo
na América mas sem apreender as terras dos índios; o Padre Sepúlve-
da, um filósofo aristotélico rigoroso, considerava, pelo contrário, que
"todos os nativos deviam ser subjugados". Segundo Sepúlveda, uma
vez que Deus criou os nativos por uma razão, seria reprovável do ponto
de vista moral obstar à escravatura e à exploração dos nativos, pois tal
oposição minaria esse propósito.
Um estudo exaustivo sobre a política da terra nullius, empreendido
por Keller, Lissitzyn e Mann (1938), realça que, entre 1400 e 1800, ne-
nhuma nação europeia era assistida pelo direito de "possuir ou trans-
ferir qualquer território nos termos do direito internacional." Keller,
Lissitzyn e Mann facultam exemplos concretos de técnicas europeias
que visavam forjar direitos de soberania em terras acabadas de desco-
brir. No concernente à prática portuguesa, relatam o seguinte:
Em 1419, João Gonçalves Zarco descobriu a Madeira. Cumprindo as ordens do Prín-
cipe Henrique, tomou oficialmente posse da ilha através de três actos simbólicos:
em primeiro lugar, ergueu uma cruz; em segundo lugar, foi celebrada uma missa; em
terceiro lugar, torrões de terra da ilha foram colhidos e levados para Portugal como
oferenda ao Príncipe Henrique. Subsequentemente, procedeu-se à colonização da
ilha que se tornou parte de Portugal.

I. Os Símbolos e a interpretação do Passado Africano 57


Em 1494, Diogo Cão descobriu a foz do Rio do Congo na costa ocidental de África.
Diogo Cão ergueu "uma coluna de pedra com as armas reais e as letras de Portugal"
nela inscritas. Vasco da Gama fez o mesmo quando desembarcou no Reino de
Melinde, na costa oriental de África, durante a sua viagem à índia.
No Reino de Melinde, na costa oriental de África, Da Gama e a sua tripulação tra-
varam uma amizade muito cordial com o Rei. Os portugueses inteiraram o Rei acer-
ca de um certo "marco", o nome do Rei de Portugal inscrito numa pedra, o símbolo
do seu Rei a depor nos países de todos os seus amigos em homenagem à sua sin-
ceridade. O Rei de Melinde mostrou-se deveras satisfeito com essa informação e
quis que a coluna fosse colocada nos portões do seu palácio. Porém, os portugueses
responderam engenhosamente que quem entrava no porto não conseguiria avistar
a coluna facilmente, pelo que esta deveria ser deposta num local de maior destaque.
Com o aval do Rei, uma coluna alta de mármore branco, com os dois brasões acima
referidos e o nome do Rei D. Manuel I inscritos na base, foi colocada no cimo de um
monte sobranceiro ao porto, visível em alto-mar. Correia acrescenta que Da Gama
trazia consigo seis colunas já devidamente gravadas e encomendadas pelo seu Rei
que ordenou que estas fossem depostas em países onde fosse estabelecida uma
amizade, de modo a mantê-la viva na memória, "e que pudessem ser vistas por
todas as nações vindouras." (Keller et al., 1938, p. 25).

Em 1484, teve lugar uma cerimônia mais elaborada por ocasião da to-
mada de posse oficial da Costa da Guiné na África Ocidental por D. Diogo.
A cavalgada prosseguiu [...] rumo a uma árvore de grandes dimensões, não muito
distante da Aldeia, considerada o local mais adequado para a fortaleza pretendi-
da; as armas reais foram imediatamente colocadas sobre a árvore e um altar foi
construído por baixo; toda a tripulação participou na primeira missa celebrada na
Guiné. (Keller etal., 1938, p. 24)

Os espanhóis eram ainda menos informais. A sua prática habitual


incluía uma declaração formal da tomada de posse da terra nullius, uma
marca física como símbolo do acto e um exercício simbólico da nova
soberania. Uma instrução real datada de 1514 ao cuidado do explora-
dor de Solis especifica as etapas:
A tomada de posse das terras e regiões que descobríreis realizar-se-á da seguinte
feição: na terra ou região que descobríreis, perante um tabelião e o maior número
possível de testemunhas, e as mais conhecidas, procedereis a um acto de posse em
nosso nome, cortando árvores e ramos, e escavando ou construindo, se possível,
um edifício pequeno, numa região onde exista um monte visível ou uma árvore de
grandes dimensões, e devereis anunciar a quantas léguas de distância está do mar,
mais ou menos, em que região e quais as marcas que ostenta, e devereis aí construir

Bi,V.Y.MudimbeA Idéia de África


uma forca e ordenar a alguém que vos apresente uma reclamação e, na qualidade de
nosso capitão e juiz, vos pronunciareis sobre ela e tomareis uma decisão, para que,
em suma, tomareis a dita posse; esta aplicar-se-á à região onde foi realizada e a todo
o seu distrito e província ou ilha, e devereis trazer um testemunho assinado pelo
dito tabelião para fazer fé. (Keller et o/., 1938, pp. 39-40).

Efectivamente, a declaração formal estipula que o novo país é tomado


em "nome do Rei de Espanha". Nesse sentido, Colombo, por exemplo,
durante a sua primeira viagem em 1492, tomou posse das ilhas nas
Antilhas "em nome dos monarcas espanhóis através de uma proclama-
ção pública e do alçar das bandeiras". Por costume, os exploradores
espanhóis erguiam cruzes; Colombo fê-lo na sua terceira e quarta via-
gens, bem como Vicente Yáfiez Pinzón e Diego de Lepe, em 1500, nos
locais onde decorreram as cerimónias de tomada de posse na América
do Sul. Por vezes, a cerimónia física resumia-se apenas à construção de
um monte de pedras, como foi o caso de Balboa na costa do Pacífico em
1513. Por fim, a nova jurisdição e o controlo sobre a terra eram sim-
bolizados em diversos actos, tais como cortar árvores e beber água,
como aconteceu com Pinzón na costa norte da América do Sul. Diego
de Lepe, além de cortar árvores, gravou o seu nome noutras tantas.
Na sua segunda viagem, Colombo tomou posse dos novos territórios
através de uma cerimónia legal análoga à da tomada de posse levada
a cabo por Unamuno nas regiões da costa da Califórnia, conforme
descrito num relato de 1587:

Após ter dado ordens no navio sobre o que iria ser feito e tendo elegido alcaides e
regedores para que houvesse alguém para tomar posse do porto e daquilo que viria
a ser descoberto, desembarquei com doze soldados...
Chegando a um monte que se revelava um local adequado para a tomada de posse do
porto e do país em nome de Sua Majestade, constatando que eu e o resto do grupo
havíamos desembarcado e atravessado o país e o porto silenciosa e pacificamente,
num território sob o seu jugo, fi-lo em nome do Rei D. Filipe, nosso senhor, na devida
forma legal, com Diego Vasquez Mexia (um dos alcaides eleitos para este propósito)
enquanto representante da )ustiça, colocando uma cruz enquanto marca da fé cristã
e da posse do porto e do país tomada em nome de Sua Majestade, cortando ramos
das árvores que cresciam em redor e executando as restantes cerimónias habituais
(Keller et a/., 1938, p.40).

A tomada de posse espanhola de uma terra nuliius e o seu simbolismo


incluíam, com frequência, uma recitação conhecida como o Requi-
sito, embora fosse raramente executada de acordo com as instruções
especificadas. Fundamentalmente, tratava-se de uma apresentação

I. Os Símbolos e a interpretação do Passado Africano 6


sistemática da filosofia cristã da criação e da história aos nativos. No
final da recitação, os nativos eram convidados a "jurar fidelidade ao
Papa e ao Rei de Espanha." Em caso de recusa por parte dos nativos, a
ocupação forçosa das suas terras, se necessário, seria legítima.
Antes do final do século XVII, a prática francesa era bastante simples,
comparativamente às cerimônias espanholas ou inglesas. Era quase
tão informal como a portuguesa, tendo adquirido, mais tarde, uma
forma altamente estruturada no último quartel do século XVII, de que
é exemplo o ritual de 14 de Junho de 1671, através do qual Daumont
de Saint-Lusson - representante de Jean Talon, Intendente do Canadá
e representante pessoal do Rei de França - tomou posse da região do
Lago Superior. Liderando os seus homens, de Saint-Lusson marchou
até ao cimo de um monte onde chefes e representantes índios já se
encontravam reunidos.
À volta, a grande multidão de índios estava de pé ou agachada ou reclinada ao com-
prido, com os olhos e os ouvidos atentos. Uma grande cruz de madeira já estava pre-
parada. Dablon [um dos missionários jesuítas no grupo] abençoou a cruz solenemente,
que foi, em seguida, levantada e colocada no solo, enquanto os franceses, descober-
tos, entoavam o Vexilia Regis. Posteriormente, foi disposta uma estaca de cedro ao
lado, exibindo uma placa de metal com a inscrição das Armas Reais enquanto os
seguidores de Saint-Lusson cantavam o Exaudiat e um dos jesuítas proferia uma
oração pelo rei. Saint-Lusson deu então um passo em frente e, com a espada numa
mão, e levantando um torrão de terra com a outra, proclamou em voz alta:
"Em nome do Sumo, Poderoso e Ilustre Monarca, Luís, o Décimo Quarto desse nome,
o Rei Mais Cristão de França e Navarra, tomo posse deste local, Sainte Marie du Saur,
bem como dos Lagos Huron e Superior, a Ilha Manitoulin e todos os países, rios,
lagos e riachos que lhes são contíguos - tanto os que foram descobertos quanto
os que poderão ser descobertos doravante, em toda a sua extensão, cercados pelos
Mares do Norte e do Oeste num lado e pelo Mar do Sul no outro: declaro às respec-
tivas nações que, de agora em diante, são vassalos de Sua Majestade, tendo o dever
de obedecer às suas leis e a seguir os seus costumes; em seu nome, prometo auxí-
lio e protecção contra as invasões dos seus inimigos; declaro a todos os restantes
potentados, príncipes, soberanos, estados e repúblicas - a eles e a todos os seus
súbditos - que não podem nem devem apoderar-se ou estabelecer-se em nenhuma
das regiões dos países já mencionados, salvo se for esse o desejo da Majestade Mais
Cristã e daquele que governará em seu nome; e isto sob pena de provocar o seu res-
sentimento e a animosidade das suas armas. Viva el Rei!" (Keller et al, 1938, p. 125).

A partir do século XVI, a prática britânica traduziu-se num procedi-


mento particularmente intrincado que, à semelhança dos espanhóis,
compreendia etapas específicas: a primeira consistia na obtenção de

Bi, V.Y. Mudimbe A Idéia de África


cartas-patente. Em seguida, durante a tomada de posse de um ter-
ritório em nome do rei ou da rainha, procedia-se à reahzação de vários
ritos, sobretudo os três que se seguem: o alçamento de uma marca
simbóhca, uma declaração formal proclamando que a terra pertencia à
soberania inglesa e a promulgação de um conjunto de leis. A viagem de
Sir Humphrey Gilbert constitui um exemplo típico na medida em que
recebeu, a 11 de Junho de 1578, cartas-patente e uma concessão real
de privilégio exclusivo pelas suas descobertas. A rainha concedeu-lhe
"liberdade e autorização [...] para descobrir, encontrar, procurar [...]
terras, países e territórios bárbaros que não pertencessem a nenhum
príncipe ou povo cristão."
Em 1583, Gilbert lançou âncora em St. John's Harbour, Newfound-
land. A cerimônia oficial da tomada de posse foi organizada a 5 de
Agosto de 1583, "perante toda a tripulação e alguns 'estranhos.'" Após
o ritual, Gilbert, em nome do direito de soberania da Rainha Isabel
e da sua própria suserania, promulgou um código de três leis que a)
instituiu a Igreja de Inglaterra em Newfoundland; b) tornou puníveis
como alta traição quaisquer actos prejudiciais ao direito de posse da
Rainha; c) tornou puníveis quaisquer palavras de desonra endereça-
das ã Rainha cujo castigo era o corte das orelhas e o confisco do navio
e dos bens.
Em conclusão, Romanus Pontifex, de 1454, moldou todos os acordos
posteriores em matéria de direitos sobre as terras recém-descobertas.
Além disso, definiu as bases para as bulas pontifícias subsequentes e,
ao longo dos anos, os seus princípios fundamentais foram fielmente
preservados, mesmo aquando da alteração e revisão das suas políticas
com vista a acomodar exigências expansionistas concretas dos projectos
europeus. Apesar do elevado número de acordos e contratos celebrados
a este respeito, nenhum poder europeu reconhecia a soberania ou os
direitos dos nativos sobre as suas terras, salvo em casos excepcionais
nos territórios da Ásia Oriental e do Sudeste, nomeadamente a China.
Estes acordos eram, na sua intenção e na sua forma, instrumentos que
permitiam aos europeus entrar no país e construir postos avançados.
A filosofia de Romanus Pontifex reflecte igualmente dois conceitos
essenciais que viriam a servir de directrizes para a colonização. Em
primeiro lugar, afirmou a primazia do papado sobre os reis cristãos
cuja expressão mais explícita e radical reporta à bula de Bonifácio VIII,
Unam Sanctum, de 1 de Novembro de 1302. Em meados do século XV,
a primazia espiritual e os direitos foram alvo de negociações políticas.
Em segundo lugar, forneceu a base para o conceito de terra nullius - ou
seja, o conceito do direito de soberania europeu fora da Europa e, em
última instância, o direito de colonização e a prática da escravatura.

I. Os Símbolos e a interpretação do Passado Africano 63


Esta posição filosófica teria emanado da "Lei Natural". Por conseguinte,
tal como na floresta existem espécies mais fortes e mais fracas, sendo
que as últimas vivem e se desenvolvem sob a protecção das primeiras,
também as "raças" humanas obedeceriam à mesma regra. O mais forte
teria como "missão" ajudar os seus "irmãos" inferiores a medrar; e, em
todo o caso, segundo a doutrina, caberia à raça mais desenvolvida ga-
rantir a exploração de todos os bens criados por Deus em prol de toda
a humanidade. Em 1526, Francisco de Vitoria justificou as conquistas
coloniais com base nos direitos comerciais cristãos, explicando que o
estabelecimento de relações comerciais entre todas as nações era um
desígnio de Deus. O seu contemporâneo, Sepúlveda, invocando a lição
de Aristóteles, defendia que a subjugação dos nativos estava determi-
nada por Deus. Em suma, numa perspectiva cristã, a objecção ao pro-
cesso de colonização ou à escravatura só poderia ser errada do ponto
de vista moral.

Bi, V.Y. Mudimbe A Idéia de África


II. Que Ideia de África?
Proposta de Foucault sobre o Desaparecimento
do Sujeito
Si les discours doivent être traités d'abord comme
des ensembles d'événements discursifs, quel statut
faut-il-donner à cette notion d'événement qui fut si rarement
prise en considération par les philosophes?

- M. Foucault, A Ordem do Discurso, p. 59.

A recuperação dos textos gregos e a inversão das perspectivas históri-


cas são indicadoras de uma transformação epistemológica. A ordem do
saber sobre África passou a reger-se por um novo modelo. Não obstan-
te a resiliência dos mitos primitivistas e evolucionistas, registou-se a
fundação de um novo discurso - mais precisamente, um novo tipo de
relação com o objecto africano. A antropologia, a disciplina que mais se
enleou durante a exploração de África, começou por alcançar um novo
vigor com o funcionalismo [durante o período colonial) acabando por
adquirir, em França, um teor estruturalista perto do desfecho da era
colonial. Ao longo deste processo, a antropologia analisou, pelo menos
a nível teórico, o seu vínculo com a finalidade que deveria servir na
sequência do seu estabelecimento enquanto disciplina científica. De
qualquer modo, em meados da década de 1950, assistiu-se à sua fusão
com outras disciplinas (economia, geografia, história, literatura, etc.)
da qual brotou um novo corpo indefinido, denominado de Africanismo
ou saber sobre África. Unidas pelo mesmo espaço epistemológico, mas
radicalmente separadas pelos seus objectivos e métodos, estas disci-
plinas, a propósito da ideia de África, viram-se encurraladas entre as
exigências muito concretas da libertação política do continente, a desig-
nação da sua própria cientificidade e os seus fundamentos filosóficos.
A figura africana constituía um facto empírico, mas, por definição, era
entendida, experimentada e exaltada como a marca da alteridade
absoluta. Numa tentativa de reforçar este ponto, cito um excerto de As
Palavras e as Coisas:

II. Que Ideia de Africa? I {69


Nesta figura, ao mesmo tempo empírica e estranha a (e em) tudo o que podemos
experimentar, a nossa consciência já não encontra - como no século XVI - o trilho de
outro mundo; já não observa o descaminho da razão extraviada; ela assiste ao sur-
gimento do que nos é, perigosamente, mais próximo - como se, de súbito, o próprio
fundo da nossa existência se perfilasse em relevo; a finitude, a partir da qual nós
existimos, e pensamos, e sabemos, está, de repente, diante de nós; a existência a um
tempo real e impossível, pensamento que não podemos pensar, um objecto para o
nosso saber que se furta sempre. [Foucault, 1973, p. 375)

Partindo desta citação - uma reflexão sobre a figura da loucura


enquanto verdade e alteridade da experiência moderna ocidental -
gostaria de sugerir, paradoxalmente, que o "Africanismo" - no meu
entender, o conjunto dos discursos sobre África - procurou, em geral,
transmitir a verdade. Tratar-se-á realmente de um paradoxo quando
dedicamos uma atenção especial às figuras exóticas de África que são o
testemunho disparatado de um conjunto do continente desde o século
XV? (Ver Hammond e Jablow, 1977; Mouralis, 1988]. Todavia, por mais
estranho que pareça, as alterações de método, as transformações e as
conversões no âmbito de discursos técnicos como a antropologia e a
história africanas, firmaram-se em critérios de aferição da verdade so-
bre África e da sua tradução em discursos "cientificamente" credíveis.
Em virtude das suas exigências, essa procura justificaria, nomeada-
mente, a tensão entre o evolucionismo, o funcionalismo, o difusionismo
e o estruturalismo existente na antropologia.
Na minha óptica, os diversos métodos do Africanismo são indisso-
ciáveis de uma questão primordial: o modo como a vertente empírica
atesta a verdade dos discursos teóricos e vice-versa. Com efeito, este
problema extravasa largamente as modalidades das escolas metodológi-
cas do Africanismo. Num ensaio intitulado "The Search for Paradigms
as a Hindrance to Understanding", Albert Hirschman observa que "um
artigo científico recente mostrou-se fortemente contra a recolha de
materiais empíricos como um fim em si mesmo e desprovida de uma
análise teórica suficiente para determinar os critérios de selecção ade-
quados." Logo a seguir, Hirschman define o seu próprio projecto: avaliar
"a tendência para a teorização compulsiva e impensada - um mal tão
prevalecente e debilitador [...] como a proliferação de estudos irreflec-
tidos no âmbito das ciências sociais" (Hirschman, 1979, p. 163].
Encarando o relativismo cultural de Herskovits com seriedade, alvi-
traria que o verdadeiro problema não está na oposição entre teoria
e recolha empírica, mas antes na escolha tácita e a priori da verdade
almejada por um determinado discurso. Neste contexto, considero a
verdade uma abstracção derivativa, uma marca e uma tensão. Ao unir

ii8V.Y.MudimbeA Ideia de Africa


e separar, em concomitância, os objectivos contraditórios de sistemas
assentes em axiomas e paradigmas distintos, a verdade não é uma
ideia pura nem um objectivo fácil.
"Seja qual for o caso relativamente a [um] desejo de unidade, ele
encontra-se no início e no fim das verdades. Contudo, a partir do mo-
mento em que a exigência de uma verdade única penetra na história
como um objectivo da civilização, é imediatamente afectada por uma
marca de violência. Pois aspiramos sempre a dar o nó demasiado cedo.
A unidade concretizada da verdade corresponde precisamente à men-
tira inicial" (Ricceur, 1965, p. 176]. À luz desta teoria, consideremos
determinados exemplos, tais como o desafio cristão de aliar o seu
destino ao do Império Romano em 313 d.C.; o poder paradoxal de uma
expansão europeia além das suas fronteiras, cuja invenção e organiza-
ção do mundo em que vivemos hoje se pautou pela lei natural há prati-
camente quinhentos anos; a mentira que justificou a escravatura e, a
propósito de todos os territórios não-europeus, a ideia de terra nullius,
graças à qual a América, a Austrália e a África do Sul são o que são ac-
tualmente. As representações e as marcas que conferiram à memória
escondida e violada destes países o seu direito e a sua pertinência
enquanto um exórdio parecem ter desaparecido.
Estes tipos de marcas "contraditórias" podem ser menos interes-
santes porquanto revelam as suas próprias contradições internas com
uma excessiva facilidade. Mas será possível escorar esta afirmação
sobre a verdade como inópia, dotá-la de uma base filosófica numa
reflexão sobre os afazeres dos africanistas?
Permitam-me que desenvolva a minha hipótese. Na breve história
do Africanismo, creio ser óbvio que, além da dicotomia entre o saber
rudimentar e o científico, entre a ilusão e a verdade - uma dicotomia
contemplada pelos evolucionistas Lévy-Bruhl e os seus seguidores, in-
cluindo Evans-Pritchard - existe um problema significativo associado
às próprias condições do saber. A maioria concordará com Foucault
acerca da necessidade de estabelecer algumas distinções. Por um lado,
existe o facto das distinções necessárias sobre a verdade em si mesma.
Primeiro: "uma verdade que seja da mesma ordem do objecto - uma
verdade que, pouco a pouco, se esboça, forma e equilibra, manifestando-
se através do corpo e dos rudimentos da percepção"; segundo: "uma
verdade que se desenha à medida que as ilusões se dissipam"; e terceiro:
em simultâneo, "deve existir também uma verdade da ordem do dis-
curso - uma verdade que permita ter sobre a natureza ou a história do
saber uma linguagem que seja verdadeira" [ver Foucault, 1973, p. 320;
minha ênfase]. Estas distinções deveriam ter uma aplicação universal.
Além disso, impõe-se uma pergunta importante sobre o estatuto de

II. Que Ideia de Africa?I{69


um discurso verdadeiro. Conforme observa Foucault, "ou esse discur-
so verdadeiro encontra o seu fundamento e o seu modelo nessa ver-
dade empírica cuja génese na natureza e na história ele próprio traça,
e ter-se-á uma análise de tipo positivista [...]; ou o discurso verdadeiro
se antecipa a esta verdade cuja natureza e história ele próprio define
[...], e então ter-se-á um discurso de tipo escatológico" (Foucault, 1973,
p. 320; minha ênfase).
Estas demarcações metodológicas - sobre os tipos de verdade, as
condições da possibilidade de um discurso verdadeiro, e a tensão entre
o tipo positivista e o escatológico - fazem sentido. Existirá realmente
uma forma de conceptualizar com rigor a realidade africana enquanto
não abordarmos estas demarcações?
A fim de esclarecer algumas das consequências inerentes a estas
observações, gostaria de me debruçar séria e longamente sobre o rela-
tivismo cultural, tal como desenvolvido por Melville Herskovits, o fun-
dador dos Estudos Africanos nos Estados Unidos; em seguida, trarei
brevemente a lume uma tese contemporânea e percuciente defendida
por Jean-Loup Amselle, um académico francês e maître de conférences
na École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris.

0 relativismo cultural de Herskovits


Consideremos uma simples questão. As perguntas formuladas por
Herskovits acerca das civilizações antigas terão ressonância até
junto dos mais cépticos. Quão verdadeiro é o nosso saber sobre elas?
Herskovits escreve o seguinte:
[...] estas perguntas afiguram-se lícitas: não será o nosso conhecimento sobre as
civilizações do paleolítico, na melhor das hipóteses, demasiado pobre? Não será o
nosso conhecimento sobre a vida real dessas pessoas demasiado escasso para pro-
ferir julgamentos? Em que tipo de habitações viviam estes homens desde os tempos
mais remotos? Que tipo de linguagem falavam? Qual a sua religião e organização
social? Que tipo de vestuário envergavam? Além da carne dos animais cujos ossos
encontramos nas pilhas de detritos, o que comiam? Podemos colocar estas questões
e outras mais; infelizmente, as respostas para a sua maioria baseiam-se apenas em
palpites, por mais sagazes que sejam. (Herskovits, 1929, p. 121}.

O problema (a par do verdadeiro significado da chamada crise das


ciências sociais em geral e dos Estudos Africanos em particular) pode
ser aqui mencionado. Segundo Benoît Verhaegen (1974), este reside
na tensão entre a reivindicação e a vontade de verdade dos discursos

ii8 V.Y. Mudimbe A Ideia de Africa


empíricos (nos quais, supostamente, a realidade determina a credibi-
lidade e a objectividade do discurso] e as reivindicações dos discursos
escatológicos (nos quais uma promessa e o valor de uma esperança
devem actualizar uma verdade no processo de realização do seu ser].
Conforme nota Foucault, no quadro desta tensão, o marxismo, sob
uma perspectiva contemporânea, entra em contacto com a fenomeno-
logia e postula o ser humano como um objecto perturbador do saber.
Por outras palavras: concluímos que Auguste Comte e Karl Marx
testemunham uma configuração epistemológica na qual a "escatologia
(enquanto verdade objectiva decorrente do discurso sobre o homem]
e o positivismo (enquanto verdade do discurso definida a partir da
verdade do objecto] são indissociáveis" (Foucault, 1973, pp. 320-21).
Esta noção deve assumir-se como uma exigência intelectual. Na
década de 1960, a maioria dos projectos africanos de natureza marxis-
ta ignoraram a complexidade das suas próprias raízes epistemológi-
cas, eliminando assim os paradoxos do seu discurso e da sua prática.
Acresce que, ao descurarem a história (como enquadramento dos seus
próprios discursos) e as historicidades contraditórias dos seus "objec-
tos" de conhecimento, os empreendimentos não-marxistas tenderam
a privilegiar a alegoria das sociedades fechadas e inexistentes, redu-
zidas a um passado mítico, ou postularam um modo subjuntivo, jus-
tificado por um salto acrítico da história para uma escatologia cristã,
de que é exemplo o projecto de Mbiti (1971). Em todos os casos, um
passado, uma história, ou melhor, as histórias de África foram apaga-
das e a ideia de África limitada a uma potencialidade. Recordemos o
conselho de Herskovits:
[...] não tenhamos ilusões, o relativismo cultural é uma filosofia "resoluta". Exige
aos seus paladinos a alteração das respostas decorrentes de algumas das condicio-
nantes enculturativas mais poderosas a que estiveram sujeitos, os etnocentrismos
implícitos nos sistemas de valor específicos da sua sociedade. Para os antropólogos,
isto significa acompanhar as implicações dos dados que, quando confrontados com
o nosso sistema enculturado de valores, geram conflitos nem sempre fáceis de
resolver. (Herskovits, 1972, p. 37).

Apesar de contestar as lições marxistas sobre África, reconheço que


os marxistas tiveram uma certa razão ao insistir na existência de uma
relação de necessidade entre a prática da ciência social e a da política
e, por conseguinte, da ética. Apesar de podermos discordar das suas
conclusões políticas, não há como negligenciar a sua importância e
as provas que desvendam no tocante à ideia de África. Quanto ao futuro, o
custo (ou o preço] das mitologias sociais (desenvolvimento, modernização.

II. Que Ideia de Africa? I {69


etc.] forjadas pelo funcionalismo, antropologia aplicada e colonialismo
é de tal ordem que a redefinição do discurso e da prática "africanistas"
deve ser isomorfa com a das nossas expectativas políticas. O mesmo se
aplica ao passado: qual o preço a pagar para reacender o que foi enter-
rado, ofuscado ou simplesmente esquecido?
Abordemos o projecto marxista e as suas implicações. A partir da
década de 1950 em diante, com o despertar político da África negra, o
marxismo assumiu-se como a fonte de inspiração para a renovação do
país. Enquanto uma admirável apoteose, no sentido em que, desde o
início, as promessas subjacentes foram apresentadas como manifesta-
ções concretas da vida de pessoas reais e uma negação do exílio que
as tornara cativas, o marxismo parecia corresponder à ferramenta e à
ideia perfeitas para transcender aquilo que o colonialismo havia incor-
porado e decretado em nome do capital.
Outra consequência incontornável foi a nova inflexão conferida
aos Estudos Africanos pelos conceitos marxistas, logo após a última
guerra europeia, cuja intenção explícita e cujo quadro teórico impug-
nam claramente o dogmatismo das ciências coloniais e os seus pro-
gramas culturais no concernente às sociedades não-ocidentais. Os de-
bates acerca do modo de produção asiático, do modo de produção de
linhagem e dos conceitos de tradição oral e de pensamento selvagem
abriram novos horizontes. De qualquer modo, com Yves Bénot, Endre
Sik, Jean Suret-Canale e outros mais, estes conceitos tornam-se facetas
de um Africanismo militante que transforma progressivamente os ob-
jectivos e os métodos da antropologia, da sociologia, da história e da
economia política.
Por outro lado, durante o mesmo período, os homens de acção da
esfera política em África - sensíveis a este poder de conversão do
pensamento marxista e seduzidos pelas metáforas de uma sociedade
igualitária, cuja organização assenta em reguladores económicos ao
serviço do melhoramento dos indivíduos, de todos os indivíduos - en-
gendraram a libertação política dos novos países africanos ã luz da
revolução marxista. De facto, este plano político desencadeou a genero-
sidade do Africanismo marxista e regeu-se pelas mesmas normas: a
evidência de uma condição humana comum; uma resistência partilha-
da contra os privilégios da história, raça ou classe; e uma negação da
equivalência da propriedade e do poder político. Além disso, visando a
dessacralização dos pressupostos civilizacionais da violência colonial,
a era dos socialismos africanos floresceu. Amiúde brilhantes a nível
formal, estes funcionavam e existiam como textos marcados pelas fan-
tasias de um novo advento ilusório da história. No âmbito das suas
articulações concretas nas formações sociais, revelaram ser, ao longo

ii8 V.Y. Mudimbe A Ideia de Africa


dos anos, meros desvios dos projectos marxistas que alegavam insti-
tuir. O rigor do discurso materialista de Nkrumah foi acompanhado de
uma das mais medíocres ditaduras políticas; com o passar dos anos,
o ensaio socialista de Sekou Touré acabou por ser apenas uma ordem
autocrática cujo esforço, em última análise, confundiu todos os inves-
timentos e as figuras marxistas que justificara inicialmente; o conceito
de Ujaama, de Nyerere, cujo socialismo estatal deveria trazer melhorias,
apenas exibiu as contradições dos mecanismos burocráticos que asfixi-
avam as classes privadas de direitos civis; finalmente, a elegância das
leituras de Marx e Engels realizadas por Senghor constitui um simples
objecto de exegeses sapientes orientadas para eruditos, na esteira de
Althusser ou Jean-Yves Galvez.
Contrariamente ao clamor racista e às teses originadas por análises
condescendentes, este fracasso, a meu ver, não é exclusivo dos in-
telectuais africanos. Com efeito, é possível relacioná-lo com o próprio
fracasso do Africanismo marxista e das suas inconsistências episte-
mológicas. Seja como for, importa realçar que os mitos do socialismo
africano e do Africanismo marxista apresentam o mesmo local de ori-
gem: um espaço circunscrito que, no pensamento marxista, estipula e
celebra os poderes da "revolução", determina os direitos e os conflitos
de pessoas concretas que compõem esta totalidade que é o proletari-
ado sem rosto e, sobretudo, organiza as suas missões. A partir desse
local, definiram-se sonhos e sistemas que insistiram exclusivamente -
e, por vezes, continuam a fazê-lo - no direito à diferença e nas virtudes
da alteridade com vista a estabelecer a autonomia da cultura africana,
assim como o progresso económico e técnico. Por exemplo: a respeitabi-
lidade de uma história africana reconquistada pelo Africanismo das
margens do primitivismo, no âmbito do qual a ciência colonial a in-
serira, consente, nos dias de hoje, relatos duvidosos sobre os faraós.
Do mesmo modo, o desdém incómodo e, amiúde, desatento de uma
economia política que invoca curvas relativistas como princípios de
trabalho, explica a impaciência metodológica que se torna norma e na
qual as limitações da história substituem as metáforas sobre a tradição
africana, sem qualquer precaução epistemológica. Uma simplificação
desta natureza não se detém numa filosofia que - "africanizada" graças
a alguns missionários e aos seus discípulos - se esquece das metáforas
de conceitos e analogias permitidas em expressões como "ontologia
banto" ou "metafísica dogon", e que funciona cada vez mais numa rela-
ção de necessidade entre o significante e o significado que manipula.
Em simultâneo, assiste-se à utilização de determinadas palavras-
-chave que dominaram o panorama dos Estudos Africanos durante
trinta anos - negritude, personalidade negra, autenticidade, etc. - e

II. Que Ideia de Africa?I{69


que, sem excepção, emanam directamente do pressuposto marxista
da centralidade do indivíduo enquanto agente histórico. Decerto que
o paradigma marxista se cruzou com as tentações idealistas dos mis-
sionários, os primeiros a introduzir métodos adequados para dotarem
as suas mensagens de uma dimensão autóctone, tendo em vista uma
melhor assimilação. Afigura-se igualmente verdade que o paradigma
marxista prohferou na década de 1950, num espaço já conquistado
por um Africanismo crítico mas liberal: o de um Georges Balandier e
a sua "Sociologia da África Negra", altamente provocatória, ou de Jan
Vasina, cujo conceito de história oral submeteu a ideologia institucio-
nal a uma prova pelo fogo. Estas intersecções não invalidam a minha
tese, muito pelo contrário. Contribuíram para a descentralização da
credibilidade da ciência colonial. No espaço remanescente, o convite
marxista tornar-se-ia um desejo da possibilidade de um novo começo;
e o marxismo, tanto nas ciências sociais quanto na política, cimentar-
-se-ia como uma coincidência providencial e uma marca da libertação.
Assistiu-se ao raiar de novas marcas, de desvios metodológicos e de
uma comoção ideológica certamente discreta mas eficaz que abririam
caminho a um processo histórico. Estou convicto de que causaram im-
pacto. Com efeito, na década de 1960, o vocabulário da crítica da razão
colonial era marxista, assim como o das independências africanas e
dos programas de não-alinhamento. Os regimes, os movimentos pro-
gressistas e os seus líderes eram marxistas. Os interlocuteurs valables
("os representantes autorizados") em África também eram marxistas
ou, pelo menos, empunhavam uma sintaxe de teor marxista; a maio-
ria dos africanistas respeitados e aceites em África e no Ocidente era
marxista ou, pelo menos, simpatizante da doutrina; a disciplina do fu-
turo ora cativante ora aterrorizadora - a economia política - era marxista.
O que este adjectivo cristaliza nestas expressões e nas atitudes que
escamoteia não revela nada em comum, salvo uma vontade prolixa de
ser-se a si próprio e o recurso obscuro a um assombro primordial: so-
mos, no fundo, todos iguais na força do nosso nascimento e na morte.
Em suma, somos marionetas num teatro absurdo de fantoches cuja
racionalidade básica poderia, pelo menos em termos teóricos, tornar
a comunhão do nosso destino e a precariedade da nossa condição
humana uma realidade.
O fracasso extraordinário do paradigma marxista tem uma explica-
ção. No seu todo, os discursos inovadores formaram um objecto vago e
instável, proposto mas nunca realmente nomeado; indicado mas sem-
pre ausente; amplificado mas, a cada momento, abafado por adjecti-
vos confusos que o mantinham velado. Há aqui qualquer coisa que
sugere nitidamente uma mistificação. É certo que alguns líderes

ii8V.Y.MudimbeA Ideia de Africa


políticos africanos poderiam ter sido desviados do seu caminho, ou
melhor, ter acreditado que a disposição das grelhas de uma alteridade
racial, tal como está, seria uma afirmação marxista fomentadora de
uma sociedade socialista em termos de organização do poder e da
produção. É difícil crer que a maioria dos africanistas - africanos e
ocidentais - tivesse escorregado nessa abstrusidade. Especificamente
preocupados com a experiência de que a conquista de África por um
sociahsmo "de semblante humano" enalteceria a sociedade em nome
dos direitos à subjectividade, não poderiam ignorar o facto de que
o esforço, os resultados dos seus bons ofícios e o conjunto das suas
fórmulas intencionalmente técnicas turvavam algo de essencial. No
pensamento marxista, o momento subjectivo é necessariamente anu-
lado por outro de cariz objectivo e, ao mesmo tempo, uma memória
da história e das sequências dialécticas. Para ser mais rigoroso - e
remetendo para as afirmações tecidas por Marx em 1879 perante o
Partido Democrata Social da Alemanha, que encontrara refúgio em
Zurique - advogo que a luta de classes constitui a força propulsora
da história, mas que nem o acaso nem os riscos inerentes à condição
dos indivíduos, membros singulares dessa classe, são história. O ma-
terialismo histórico não é uma figuração subjectiva nem um apelo a
atitudes individuais e psicológicas mas antes, e sobretudo, uma lei e
um foco de pressão e configuração que coagem entre si na escada da
história.
Jean-Paul Sartre percebeu-o de imediato e afirmou-o com clareza:
primeiro em Orfeu Negro, no qual demonstra que o desejo de diferença
sentido pelo negro está destinado à autodestruição em nome da dialéc-
tica, embora seja entendido como uma recusa da tese da supremacia
branca; e posteriormente em Critique de la raison dialectique, na qual
redefine os limites da liberdade, corrigindo de um modo radical o ro-
mantismo das escolhas absolutas apresentadas como valor exemplar
e insolvência do indivíduo em O Ser e o Nada. Em África, Léopold Sédar
Senghor é, muito provavelmente, o único teórico que esteve atento aos
contrastes dos dois momentos da tese marxista desde o início: a rude-
za decisiva do direito à alteridade, que constitui o momento subjectivo
por excelência e, logo a seguir, a sua absorção no esplendor da subjec-
tividade e no abismo da história. A violência sugerida pela transição
do primeiro para o segundo momento, bem como a força de redução
do último, justificariam as razões da saída de Aimê Césaire do Partido
Comunista francês.
Trinta anos após o afastamento de Aimê Césaire, é provável que as
tensões pareçam estar mais definidas. Por outro lado, as escolhas de
Césaire e de Senghor tornaram-se duas incógnitas. Por essa mesma

II. Que Ideia de Africa?I{69


razão, a ordem do discurso africanista reveste-se de uma ambivalência:
não terá, então, abrangido o mesmo conjunto? Se a condição subjectiva
do sujeito africano personificado por Senghor e Césaire parecia feliz
e respeitável na década de 1960, terá sido apenas devido à necessi-
dade de dar espaço à violência da objectividade que inflamaria até à
médula, acabando por destruí-la? Perguntas inócuas? De modo algum!
Africanos generosos e ingénuos leram as obras dos africanistas marxis-
tas, ou releram Marx, Engels, Mao, muitas vezes em edições baratas
provenientes da União Soviética, sendo que, para um grupo considerável,
não faltaram motivos para êxtase nestas discussões silenciosas ocorri-
das entre 1955 e 1965. Na realidade, estes "diálogos" nada mais eram
do que o eco dos incitamentos explícitos à violência, preconizada em
obras que despertaram a consciência política destes africanos em
nome da alteridade cultural. Em resumo, as suas leituras foram adul-
teradas desde logo pela "má-fé" - no sentido sartriano - dos apelos à
alteridade histórica e cultural. Em nome de uma lealdade incondicio-
nal a Marx, houve quem recorresse às armas para combater o estado
neocolonial ou prejudicar os socialismos africanos, acabando por ser
derrotado, como é evidente.
Numa espécie de contra-ataque a estas apostas perdidas, seguiram-se
novas e veementes exortações que repetiram a lição marxista na sua
objectividade irredutível. Surgiram regimes políticos - tais como os
de Angola, Benim e Congo - e novas associações, designadamente as
responsáveis por reunir os marxistas africanos. Estes apelos eram mo-
bilizados contra os comentários políticos e as atitudes que valoriza-
vam a subjectividade e as marcas idealistas da diferença, alegando, por
outro lado, envidar esforços no sentido da aplicação rígida e rigorosa
do código socialista. Enfim, as variantes discutíveis em torno do tema
"Marx, o europeu do século XIX, não conhecia África" deram lugar a
outro: "Marx, o guia universal".
Esta transição foi importante na medida em que informou, suposta-
mente, as tendências mais agressivas da investigação contemporânea,
bem como alguns dos debates ideológicos mais frutíferos, como os
suscitados por Paulin Hountondji na filosofia, Majhemout Diop sobre a
noção de classe e A. Dieng sobre a questão marxista enquanto problema
africano. Foi igualmente realçado que esta transição ou conversão
implicaria, em última instância, uma recuperação notável da histori-
cidade ocidental. O período colonial fundou esta historicidade como
disponibilidade de capital. Em prol da universalidade de Marx, esta foi
instaurada, por fim e em plena luz do dia, como um requisito dos códi-
gos marxista e socialista, depois do vocabulário hipócrita utilizado nos
últimos trinta anos. Que símbolo!

ii8V.Y.MudimbeA Ideia de Africa


Na obra Marx, the West, and Africa, Bogumil Jewsiewicki dedica-se a
esta questão fulcral, entre muitas outras. As acepções destes três ter-
mos saturados e opacos, as relações no seio das quais se definem mu-
tuamente e as arquitecturas teóricas ou concretas que autorizaram,
não são evidentes nem simples. Urgia descrever a natureza teatral
destes conceitos, decifrar a sua polissemia e os valores que ganham
ou perdem consoante o contexto. Jewsiewicki fá-lo com competência
e uma mestria fruto de largos anos de estudo acerca do significado
destes conceitos enquanto recursos e paciência. O leitor atento da sua
monografia partilhará da mesma opinião. Jewsiewicki apresenta um
estudo que se afigura também um proclamar das contradições e incon-
sistências intelectuais, em parte responsáveis pela presente crise na
ciência africanista e pelos fracassos na renovação do espaço político
africano no rescaldo da experiência colonial. Tal como tentei fazê-lo
nas páginas anteriores, obriga-nos a repensar a história africana do
marxismo e a confrontá-la com os princípios do relativismo.
Talvez seja agora o momento para proceder a uma releitura cuidada
de Economic Life of Primitive Peoples (1940), de Herskovits, e a uma
reanálise da dicotomia básica entre a vida antes da máquina e a vida
depois da máquina, entre o "estranho" e o "familiar."
Na sua conhecida obra Cultural Relativism (1972), Herskovits sublinha
que o relativismo cultural - ou seja, uma abordagem anti-etnocêntrica
à alteridade - deve ser entendido como um método, uma filosofia e
uma prática.
Como método, o relativismo engloba o princípio da nossa ciência (ou seja, a antro-
pologia) segundo o qual, no estudo de uma cultura, procura-se alcançar o maior
grau de objectividade possível; não julgar os modos de comportamento que são ob-
jecto de descrição, nem tentar alterá-los. Na realidade, pretende-se compreender
as sanções do comportamento em termos das relações estabelecidas no seio da
própria cultura, abstendo-se de interpretações baseadas num quadro de referên-
cia pré-concebido. O relativismo enquanto filosofia incide sobre a natureza dos va-
lores culturais e ainda sobre as implicações de uma epistemologia emanante de
um reconhecimento do poder do condicionamento enculturativo na formação do
pensamento e do comportamento. Os seus aspectos práticos incluem a aplicação
- a prática - dos princípios filosóficos resultantes do método, num panorama mais
alargado e transcultural do mundo. (Herskovits, 1972, pp. 38-39].

Por conseguinte, o projecto promove expressamente a necessidade


de formular afirmações que se integrem no contexto dos termos e das
experiências entendidas e apreendidas pelo actor, denunciando, com
a máxima clareza, a parcialidade do preconceito. A exigência de uma

II. Que Ideia de Africa?I{69


abordagem desta natureza no Africanismo actualiza uma tarefa her-
menêutica que visa interrogar a realidade da "distância temporal" e da
"alteridade" com um rigor semelhante ao do aventado por Hans-Georg
Gadamer a propósito da consciência histórica:
- Devemos elevar os preconceitos que regem a compreensão a um
nível consciente e, dessa forma, reconhecer a possibilidade da mani-
festação, por direito próprio, de "outras metas" a partir da tradição -
o que mais não é do que reconhecer a possibilidade de compreender
uma coisa como alteridade.
- [...] o que exige um esforço de compreensão é aquilo que se mani-
festa de antemão e por si mesmo na sua alteridade. [...] é necessário
constatar que toda a compreensão começa com o facto de algo nos
interpelar. E, uma vez que conhecemos agora o significado exacto
desta afirmação, reivindicamos ipso facto a colocação dos preconcei-
tos entre parênteses. Assim, chegamos à nossa primeira conclusão:
a colocação entre parênteses dos nossos juízos em geral, e natural-
mente dos nossos próprios preconceitos em primeiro lugar, acabará
por impor exigências de uma reflexão radical sobre a ideia de inter-
rogação enquanto tal [Gadamer, 1979, pp. 156-57).
A identidade das tarefas que reclamo ao associar a meditação de
Gadamer sobre o problema da consciência histórica ao relativismo
de Herskovits pode estar igualmente reflectida nas semelhanças exis-
tentes entre história e antropologia. Claude Lévi-Strauss assinalou-as
e serviu-se delas para postular as duas disciplinas como as duas faces
do mesmo Jano:
[...] a diferença fundamental entre as duas disciplinas não reside no assunto, no ob-
jectivo ou no método. Partilham o mesmo assunto, a vida social; o mesmo objectivo,
uma compreensão mais aprofundada do homem; e, de facto, o mesmo método, uma
vez que apenas a proporção das técnicas de investigação varia. Diferem mormente
nas perspectivas complementares adoptadas: a história organiza os seus dados relati-
vos às expressões conscientes da vida social, ao passo que a antropologia procede à
análise dos seus fundamentos inconscientes. (1963, p. 18).

O termo Einfühlung, que significa "sensibilidade", está patente no


relativismo cultural de Herskovits e faz-me recordar de uma tentação
extraordinária enfrentada pelo missionário belga Placide Tempels, na
década de 1940 - uma era caracterizada pelo predomínio dos modelos
reducionistas na antropologia. De modo a pronunciar-se sobre o outro
com sensatez, a tentação consistia precisamente numa fusão - numa
identificação com o outro de tal ordem que culminava na transformação

ii8 V.Y. Mudimbe A Ideia de Africa


nesse outro [pelo menos, uma vez). Não obstante a sua legitimidade,
um projecto deste cariz e os seus procedimentos de Einfühiung são
essencialmente difíceis de compreender, pelo menos em princípio.
Parecem ter como pressupostos, no mínimo, duas teses ambiciosas. A
primeira remete para a possibilidade de uma fusão do Eu com o Outro,
que, superando ou negando o carácter indeterminado e imprevisível
do Eu, propõe que o Eu pode realmente conhecer o Outro. Num texto
poderoso, Sartre aludiu a algumas das dificuldades mais relevantes e
contraditórias desta tese [1956, p. 353].
O segundo problema emana da transparência questionável do
objecto da antropologia. Para Herskovits, o ser humano enquanto ob-
jecto de conhecimento e ciência afigura-se um dado óbvio justificado
pela história e a dinâmica do espaço cultural. Como tal, atribui pouca
importância às "invariantes culturais" de Schmidt numa perspectiva
comparativa ou à teoria da "indeterminação" de Edel "pois a dificul-
dade cingir-se-ia a questões semânticas" (Herskovits, 1972, pp. 56-
-57].
De resto, o problema parece ser análogo ao de apurar a base mais adequada para
a dedução dos princípios gerais do comportamento humano em termos da relação
entre a forma e o processo. Nesta matéria, a questão é clara [...], a experiência espe-
cífica de cada sociedade confere uma expressão formal e historicamente singular aos
processos subjacentes, que desempenham um papel activo na formação do destino
de todos os grupos humanos. (Herskovits, 1972, p. 57, minha ênfase].

Em síntese, Herskovits privilegia a centralidade da cultura como to-


talidade, em detrimento da consciência individual. Consequentemente,
uma dinâmica social colectiva parece constituir uma espécie de consciên-
cia de uma sociedade, no plano diacrónico ou sincrónico. Nesse sen-
tido, verifica-se uma confirmação clara da configuração tradicional da
antropologia, isto é, nas imediações da biologia e fisiologia do século
XIX. Todavia, Herkskovits insiste que o objecto de estudo da "sua abor-
dagem transcultural" é o "Homem por inteiro" [sua ênfase], à luz das
diferenças e semelhanças entre as sociedades, e os processos através
dos quais os vários povos têm de alcançar esses fins que todos eles
devem alcançar, visando a sua sobrevivência e a sua adaptação aos am-
bientes naturais e sociais que os rodeiam" [Herskovits, 1972, p. 108].
Uma pergunta mantém-se: em que consiste este "Homem por inteiro"!
De que modo foi concebido enquanto objecto possível de conhecimen-
to e ciência, e a partir de que espaço epistemológico e cultural?
Centrando-se nas variações das hipóteses sobre este "Homem por
inteiro", Herskovits considera as interpretações deturpadas como

II. Que Ideia de Africa?I{69


dependentes de atitudes inapropriadas, tomando como exemplo o
paradoxo da história da antropologia: "Os primeiros estudantes do
homem", observa Herskovits, "[...] realçaram o conceito de 'natureza
humana' para que, no fundo, pudessem organizar as discrepâncias
observadas numa mesma gaveta. Posteriormente, foi conferido um
maior destaque a essas diferenças mas, uma vez mais, com o intuito de
demonstrar quão diversas podiam ser as manifestações das tendên-
cias humanas comuns" (Herskovits, 1972, p. 57]. Ou, como acontece
com o "Homem" antes e depois da máquina, Herskovits antagoniza as
experiências e agrupa as culturas consoante o tipo das suas tecnolo-
gias (Herskovits, 1940, p. 22].
Aparentemente, o conceito de "Homem por inteiro" não se baseia
numa distinção nítida entre, por um lado, o objecto e o sujeito de uma
cultura, de uma língua, de um pensamento e, por outro, o sujeito e o
objecto do discurso antropológico. Aliás, a meu ver, o conceito actu-
aliza um truísmo da antropologia física da época, principalmente nas
primeiras obras de Herskovits: para conhecer o Homem (com letra
maiúscula), é indispensável conhecer as variedades, as diferenças e
as semelhanças do homem. O contributo de Herskovits em Man and
His World (1929) constitui um exemplo concreto. No capítulo da sua
autoria intitulado "The Civilizations of Prehistory", Herskovits uti-
liza reiteradamente afirmações como: "não sabemos dizer que tipo
de homem viveu nos primórdios da pré-história" (1929, p. 108); "O
Homem do período pré-chelense exibia traços civilizacionais reduzidos
e devem ter sido necessárias centenas de gerações até chegar a este
estádio" (1929, p. 110); "Estamos certos de que o homem paleolítico
viveu em África [...] (1929, p. 127); "o maior contributo do homem
neolítico para a civilização humana foi o de aprender a domesticar as
plantas e os animais" (1929, p. 130, minha ênfase).
O facto de Herskovits estar ciente do problema (e da complexidade
da pergunta "O que é o homem?" - uma pergunta fundamental que re-
porta à antropologia de Kant) torna-se manifesto quando consideramos
o declínio dos conceitos de civilização e cultura no singular e no plural;
em regra, o singular postula a unidade da humanidade, e o plural, a
sua diversidade e variação cultural. A imagem mais expressiva da arte
da dupla linguagem de Herskovits encontra-se na sua breve crítica de
1961 a Henry E. Garret, um professor de psicologia que considerava
as diferenças e as desigualdades raciais factos empíricos, os quais es-
tavam a ser alvo de contestação por um conluio de apóstolos do "Dog-
ma Igualitário". Os argumentos de Garret, publicados numa edição da
Perspectives in Biology and Medicine (Outono de 1961) constituem
um exemplo do que Herskovits apelida de "imperialismo clássico"

ii8V.Y.MudimbeA Ideia de Africa


(1972, p. 73) noutra ocasião. A crítica de Herslíovits traça duas ordens
de reflexão diferentes e complementares. Por um lado, existe um ar-
gumento explicitamente ético que, em nome da "ciência" e da "razão",
defende a existência de uma historicidade própria de cada grupo hu-
mano e até de cada indivíduo. Esta historicidade pode justificar as
diferenças entre culturas e entre indivíduos, embora "nenhuma prova
cientificamente válida tenha sido apresentada no sentido de demonstrar
que essas diferenças, seja em termos de inteligência geral seja em ter-
mos de aptidões específicas, estão relacionadas com a raça" (1972, p.
115). Por outro lado, uma ordem mais discreta, fortemente constrin-
gida mas implícita, alude a uma questão epistemológica importante,
susceptível de ser ilustrada através de uma afirmação de Foucault: "A
cultura ocidental constitui, sob o nome do homem, um ser que, por um
único e mesmo jogo de razões, deve ser um domínio positivo de saber
e não pode ser um objecto de ciência" (Foucault, 1973, pp. 366-67).
Essencialmente relacionado com valores, o relativismo cultural é,
diacrónica ou sincronicamente, "uma abordagem à questão da nature-
za e do papel dos valores na cultura", conforme constatado habilmente
por Herskovits (1972, p. 14). Como tal, define-se a si mesmo como
uma interrogação vívida do etnocentrismo:
O cerne do relativismo cultural corresponde à disciplina social que resulta do respeito
pelas diferenças - do respeito mútuo. O destaque conferido à legitimidade de vários
modos de vida, e não apenas de um, constitui uma afirmação dos valores em cada
cultura. Essa ênfase pretende compreender e harmonizar metas em vez de julgar e
destruir aquelas que não se encaixam nas nossas. A história cultural diz-nos que,
por mais importante que seja discernir e estudar os paralelismos nas civilizações
humanas, não é menos importante discernir e estudar as diferentes formas engen-
dradas pelo homem com vista a satisfazer as suas necessidades (1972, p. 33).

Na esteira de Kluckhonn, Herskovits acreditava que "a doutrina


segundo a qual a ciência está alheada dos valores [...] constitui uma
herança perniciosa que provém de Kant e outros pensadores (1972, p.
42). A obra The Human Factor in Changing Africa (Herskovits, 1967)
corresponde, provavelmente, ao exemplo mais concreto desta con-
vicção, mormente os dois capítulos acerca da redescoberta e integra-
ção.
Acrescentemos então ao debate o estruturalismo, a outra principal
corrente relativista no âmbito da antropologia. Numa leitura cuidada
do estruturalismo, após explanar sobre o modo linguístico e a sua
transposição nas obras Antropologia Estrutural (1963) e Pensamento
Selvagem (1966), de Claude Lévi-Strauss, Paul Ricoeur reflecte sobre a

Que Ideia de África?


obra Theology of the Historical Tradition of Israel, do teólogo alemão
Gerhard von Rad, e tece a seguinte observação:
Deparamo-nos com uma concepção teológica exactamente inversa à do totemismo
e que, por ser inversa, sugere uma relação inversa entre diacronia e sincronia e foca
o problema da relação entre a compreensão estrutural e a compreensão hermenêu-
tica com maior urgência (Ricoeur, 1974, p. 45).

Esta afirmação brota tanto de uma crítica metodológica do estruturalis-


mo quanto de uma tese filosófica. Segundo Paul Ricoeur, a crítica
demonstra que "a consciência da validade de um método [...] é indis-
sociável da consciência dos seus limites" [Ricoeur, 1974, p. 44). Para
Ricoeur, estes limites seriam de dois tipos: "por um lado [...] a transição
para o pensamento selvagem é efectuada por graça de um exemplo que
já é demasiado favorável e que constitui, porventura, uma excepção em
vez de um exemplo. Por outro lado, a meu ver, a transição de uma ciên-
cia estrutural para uma filosofia estruturalista não é muito satisfatória
nem muito coerente" [Ricoeur, 1974, p. 45). Se a minha interpretação
da leitura crítica de Ricoeur sobre Antropologia Estrutural e Pensamento
Selvagem de Lévi-Strauss estiver correcta, o exemplo que permite a
primeira transição é a tese de Lévi-Strauss segundo a qual as relações
de parentesco constituem uma linguagem ou, simbolicamente, as re-
gras do casamento constituem as "palavras do grupo", para utilizar
expressão de Lévi-Strauss [Lévi-Strauss, 1963, p. 61; Ricoeur, 1974,
p. 36). Quanto à segunda transição, a sua fragilidade, no entender de
Ricoeur, prende-se com o conceito lévi-straussiano de bricolagem.
Eis a pergunta do filósofo francês:
Não terá [Lévi-Strauss] embusteado ao estabelecer uma associação entre o estado
do pensamento selvagem e uma área cultural - em particular, a da "ilusão totémica"
- na qual as disposições são mais importantes do que o conteúdo, na qual o pensa-
mento é, de facto, bricolagem, lidando com um material heterogéneo, com re-
talhos de significado? Este livro nunca coloca a questão da unidade do pensamento
mítico. A inclusão de todo o pensamento selvagem na generalização constitui um
dado adquirido. Agora, questiono-me sobre se a base mítica da qual nós (ocidentais)
provimos - com os seus núcleos semítico (egípcio, babilónio, aramaico, hebraico),
proto-helénico e indo-europeu - se presta facilmente à mesma operação; ou melhor,
e sublinho este ponto, decerto que se presta a esta operação, mas será que o faz total-
mente? (Ricoeur, 1974, pp. 40-41; minha ênfase).

O efeito global deste raciocínio é importante pois implica dois problemas


essenciais. Em primeiro lugar, a "unidade" presumida pelo conceito de

ii8V.Y.MudimbeA Ideia de Africa


"pensamento selvagem" não está comprovada. Nesse sentido, a obra
Dahomean Narrative, de Melville e Frances Herskovits, seria apenas
um exemplo de uma bricolagem bem-Iocalizada. Em segundo lugar, se
o "pensamento selvagem" é uma mera construção hipotética cuja uni-
dade teórica é desafiada peia tensão entre bricolagens contraditórias
e bricolagens concretas, bem espacializadas, de que modo poderia ser
utilizado como uma medida para efeitos de comparação com a base da
qual nasceu a tradição ocidental?
Permitam-me que me detenha neste ponto para analisar a últi-
ma frase da minha citação de Ricceur. Será que a base mítica da qual
provêm os ocidentais se presta inteiramente ao mesmo tipo de opera-
ção que o pensamento mítico cultural não-ocidental? Enquanto hipó-
tese, poderíamos adoptar a ideia de Herskovits segundo a qual o mito é
uma narrativa cultural, "entendida como uma consequência da capaci-
dade linguística do homem e do seu fascínio por continuidades sim-
bólicas. Porém, enquanto facto cultural, encontra igualmente uma ex-
pressão dinâmica na interacção entre os estímulos externos recebidos
por um povo e a inovação surgida internamente" [Herskovits, 1972,
p. 240]. Além disso, nos seus estudos controversos e brilhantes, Ed-
mund Leach demonstrou que as narrativas bíblicas se podem prestar
à análise estrutural [1980; Leach e Aycock, 1983]. Apesar de Georges
Dumézil ter rejeitado o conceito de estruturalismo e se ter declarado
um não-estruturalista [Dumézil, 1980, p. 11, n. 17], as suas obras tam-
bém revelam de um modo convincente a imposição, nas experiências
históricas e culturais indo-europeias, de tipologias, sistemas de trans-
formações e padrões semelhantes aos produzidos pela análise estru-
tural em sociedades não-ocidentais [ver, por exemplo, Dumézil, 1980].
The Drunken King [1982], de Luc de Heusch, constitui uma das primei-
ras análises estruturalistas sistemáticas aplicadas aos mitos bantos e
fundamenta a sua metodologia nas lições de Lévi-Strauss e Dumézil.
Estes factos parecem enfraquecer a afirmação sólida de Ricceur, pelo
menos em parte.
Todavia, no que se refere à tradição histórica de Israel, Ricceur
afirma identificar um conjunto de historicidades que parecem ser
inexistentes nas culturas e sociedades totémicas [Ricceur, 1974, pp.
45-56], acabando por distinguir três. A primeira historicidade, a de um
tempo escondido, expõe a acção de Yahweh na saga mítica da história
de Israel. A segunda, a da tradição, edifica-se sobre a autoridade do
tempo escondido. Através de leituras e interpretações sucessivas
desta autoridade, a tradição apreende o seu passado e o seu futuro, re-
flectindo-os como uma Heilsgeschichte. Por fim, recorrendo à lingua-
gem de von Rad, Ricceur descreve a historicidade da hermenêutica

II. Que Ideia de Africa?I{69


como "Entfaltung, 'desenrolar' ou 'desenvolvimento' para designar a
tarefa de uma teologia do Antigo Testamento que obedece ao carácter
histórico tripartido do Heilige Geschichte (o nível dos acontecimentos
fundadores), o Überlieferungen (o nível da constituição das tradições)
e, finalmente, a identidade de Israel (o nível de uma tradição consti-
tuída) " (Ricoeur, 1974, p. 47).
Apesar de esta teoria fazer sentido, como poderemos passar das
histórias fundadoras de Abraão, Isaac ou Jacó para o conceito de uma
Heilsgeschichte sem a aceitação prévia de que estes acontecimentos
fundadores comprovam efectivamente esse conceito? É a fé na con-
fissão, alargada em demasia pelas narrativas e subsequentemente
pelo poder dos comentários e das interpretações, que, alcançando
de forma progressiva uma confissão mínima, justifica e confirma
prontamente a sacralidade de um tempo escondido e transforma-o,
primeiro, em marcas do querigma de Deus e, segundo, em história e
escatologia.
Verifica-se, então, um paradoxo: a pertinência da leitura de Paul
Ricceur reside apenas no facto de poder ser entendida no âmbito da
economia de uma tradição documentada e explicada na perspectiva
de um cristão ocidental. Por outro lado, é o próprio fundamento desta
tradição, e sobretudo o postulado da singularidade e especificidade da
história de Israel, que confere significado à hermenêutica de Ricoeur e
à sua ambição. Estamos efectivamente perante uma espécie de círculo
fortemente fechado, cuja expansão assenta no exagerar da sua própria
importância a partir da lógica interna de um diálogo entre os seus dife-
rentes níveis de significado. De facto, das margens do Cristianismo, ou
melhor, das margens de uma história ocidental que institucionalizou o
Cristianismo, como não pensar que se trata apenas de uma exegese de
uma tradição bem-Iocalizada e tautológica, aparentemente incapaz de
imaginar a própria possibilidade da sua exterioridade, nomeadamente
a possibilidade de, nas suas margens, outras tradições históricas serem
igualmente credíveis, significativas, respeitáveis e sustentadas por
historicidades relativamente bem-delineadas?
Nos enunciados filosóficos de Herskovits, encontrei motivos para
acreditar na verdade como uma meta. Outras tradições fora do espaço
ocidental, do Cristianismo e dos seus procedimentos institucionaliza-
dos, assim como das filosofias secularizadas contemporâneas, também
glosam sobre os seus próprios tempos escondidos e todas, cada uma
à sua maneira, testemunham as suas próprias historicidades. Serão
duas, três ou quatro historicidades? O que deveria realmente importar
é o desafio subjacente a esta interrogação. Conforme observado por
Herskovits com propriedade:

A Ideia de África
subsiste o desafio de trazer os conceitos e as hipóteses até ao laboratório do campo
transcultural, e de testar o seu valor de generahzação ou extrair novas generaliza-
ções. Porventura, a palavra "desafio" é demasiado austera para o nosso significado
implícito. Na tradição do saber humanístico, trata-se de um convite à descoberta de
recursos vastos, susceptíveis de nos informar e deleitar em prol da literatura e do
pensamento mundiais. (Herskovits, 1972, p. 241).

Se encarado com seriedade, este último convite só poderá destruir o


Africanismo clássico - ou, em todo o caso, colidir com os seus quadros
conceptuais e os seus limites. No caso da antropologia africana, a
investigação de Jean-Loup Amselle confirma-o categoricamente.

Uma Crítica à "Razão Etnológica"


Em Logiques métisses [1990), Amselle pretende questionar os pres-
supostos teóricos da "razão etnológica" e equacionar a possibilidade
de uma inversão da perspectiva antropológica. No fundo. Logiques
métisses constitui uma crítica à "razão etnológica", a qual, por definição,
separa sempre os elementos do seu contexto, submete-os a um pro-
cesso de estetização e, em seguida, recorre às suas supostas diferenças
para classificar tipos de conjuntos políticos, económicos ou religiosos.
Por conseguinte, no tocante a África, evidenciamos certas dicotomias
clássicas, designadamente Estado e sociedades segmentárias, mercado
e economias de subsistência. Islamismo ou Cristianismo e paganismo,
etc. Amselle apresenta a "raison métisse" como uma razão contrária a
esta "razão" que percorre a história do pensamento ocidental, qual fio
de Ariadne. Ao invés de diferenciar e dividir, esta razão seria a prova
da "indistinção" ou do sincretismo original dos elementos numa to-
talidade social, resolvendo, pelo menos, o dilema que opõe a "univer-
salidade dos direitos do homem" ao "relativismo cultural". Trata-se de
um dilema que, em matéria de valores políticos, actualiza a tensão e
o contraste entre a universalidade enquanto totalitarismo e o relativis-
mo cultural enquanto manifestação da democracia. Amselle escreve o
seguinte:
Toute notre démarche consistera [...] à montrer que le relativisme culturel suppose
l'exercice d'un regard à la fois proche et éloigné sur des entités sociales qui sont en
réalité mouvantes et ont été préalablement extraites de leur contexte par l'opération
conjointe des voyageurs, des missionaires et des militaires (Amselle, 1990, p. 10).
0 nosso método, no seu todo, consiste em demonstrar que o relativismo cultural
supõe o exercício de um olhar, ao mesmo tempo próximo e distante, sobre as

II. Que Ideia de Africa? I {69


entidades sociais, que, na realidade, são mutáveis e foram previamente retiradas do
seu contexto pela acção conjunta dos viajantes, missionários e militares.

A estratégia do método compreende duas vertentes: por um lado, a


recusa de reduzir as culturas africanas e o conjunto das suas práticas
sociais e negociações a uma essência estática; e, por outro lado, a reavalia-
ção crítica da política da universalidade.
Logiques métisses, uma colectânea de nove ensaios, apresenta uma
unidade coerente graças à organização temática do conteúdo, inspira-
da em anos de trabalho no terreno e de investigação na África Ociden-
tal. Os primeiros dois capítulos incidem, respectivamente, na noção
de "razão etnológica" e na realidade das tensões internas aplicável
a todas as culturas. O seu enfoque recai, sucessivamente, sobre a
história da "razão etnológica", as suas práticas ideológicas e, numa in-
versão teológica e crítica, nos conflitos e nas negociações culturais que
suscitam, sempre e em toda a parte, transformações identitárias nas
colectividades. O terceiro capítulo descreve um sistema concreto de
transformações (Peul, Bambara, Malinke), ao passo que o quarto capí-
tulo formula teorias a partir da reflexão sobre determinados conceitos
elementares da antropologia política, tal como utilizados e aplicados,
muito em particular, desde a publicação da obra de 1940 intituladay4/r/-
can Political Systems, coordenada por M. Fortes e E. E. Evans-Pritchard.
O debate prossegue de um modo mais ilustrativo nos capítulos cinco
e seis, nos quais o autor contesta ambas as tipologias da antropologia
política e das classificações etnográficas com base em dois estudos de
caso, gwanan e jitumu. Os últimos três capítulos - sobre o paganismo
branco, a identidade cultural e o modelo cultural, a compreensão e a
acção, respectivamente - reintroduzem o debate num quadro histórico
mais alargado dos confrontos políticos e culturais: a quem cabe definir
"etnicidades", "identidades", "diferenças"? Onde encontrá-las como
essências puras, de modo a confirmar a sua existência original?
A colectânea aborda uma série de assuntos fulcrais, nomeadamente a
eficiência do modelo da universalidade. Este modelo apoia-se no pressu-
posto de que a sua racionalidade constitui um paradigma abrangente,
explicado por um quadro idêntico ao das seqüências dialécticas nas
ciências em que estas se afiguram factos observados: acção e reacção
em mecânica; diferencial e integral em matemática; combinação e dis-
sociação de elementos em química; positivo e negativo em física. A
partir deste modelo rígido, os marxistas (por exemplo, Lenine, 1967)
postularam a luta de classes como a rede equivalente na ciência so-
cial, estendendo assim a ordem da eficiência (e necessidade) das rela-
ções dialécticas para o domínio das ciências sociais. Tratar-se-á de

ii8 V.Y. Mudimbe A Ideia de Africa


um processo análogo de expansão teórica quando - a propósito do
Estado em África - constatamos, após Amselle, que a política de Afri-
can Political Systems, primeiro, actualiza uma transferência de redes
conceptuais e, segundo, descreve os "sistemas africanos", criando um
modelo que explica a razão pela qual a ordem colonial só poderá ser
a concretização destes sistemas regionais? Com efeito, a distinção ma-
gistral entre sociedades "segmentárias" e sociedades dotadas de um
poder político centralizado ou Estado - para utilizar uma expressão de
Amselle: "uma redução e desarticulação dos tipos africanos prê-colo-
niais" - pode ser crucial para a compreensão da lógica da "Regra Indi-
recta" e de outras políticas coloniais. A reanálise dos regimes teóricos
intrínsecos aos fundamentos da antropologia e ao poder desta distin-
ção seria, seguramente, um empreendimento inútil, pelo menos para
os especialistas. Porém, uma revisão desta natureza poderia informar
os leitores não-especializados acerca de dois aspectos: por um lado, o
facto de a antropologia e o colonialismo se reflectirem entre si e, por
outro, o modo como as práticas antropológicas africanas operam num
método confiante, um método que esclarece o supostamente desconheci-
do (o segmentário) na sua diferença absoluta, define-o através de con-
ceitos como a evolução e, no mesmo movimento, isola as variedades
políticas africanas numa grelha elaborada com base em conhecimen-
tos adquiridos noutro lado.
A segunda questão essencial postula uma alternativa. Assumindo-se
contra as implicações essencialistas (a par da projecção totalitária) da
tentação universalista, Amselle sugere uma abordagem diferente:
L'analyse en termes de logiques métisses permet au contraire d'échapper à la ques-
tion de l'origine et de faire l'hypothèse d'une régression à l'infini. Il ne s'agit plus
de se demander ce qui est premier, du segmentaire ou de l'État, du paganisme ou
de l'islam, de l'oral ou de l'écrit, mais de postuler un syncrétisme originaire, un
mélange dont il est impossible de dissocier les parties. (Amselle, 1990, p. 248).

Uma análise assente na lógica métisse permite, pelo contrário, eludir


a questão da origem e formular a hipótese de uma regressão sem fim.
Nesse sentido, já não se trata de aferir o que surgiu primeiro, o seg-
mentário ou o Estado, o paganismo ou o Islamismo, o oral ou o escrito,
mas de postular um sincretismo original, uma miscelânea na qual seja
impossível a dissociação das partes.
Por conseguinte, no caso da África Ocidental, Amselle consegue
demonstrar a presença do Estado no segmentário, do Islamismo no
paganismo e do escrito no oral. O argumento está devidamente fun-
damentado e afigura-se credível, transcendendo, em larga medida, o

II. Que Ideia de Africa? I {69


contexto das invenções mistificadas de "identidades culturais" e "étni-
cas" na história intelectual da antropologia africana ocidental. Desafia
directamente a prática da antropologia em si mesma, sobretudo a sua
"razão", cujas categorias básicas - tais como ethnos vs. polis, selvagem/
bárbaro vs. civilizado, primitivo vs. desenvolvido, etc. - se revestem
de uma irrelevância absoluta. No meu entender, seria expectável que
alguns analistas se interrogassem sobre o carácter irregular da desco-
berta de "elementos" modernos numa cultura "tradicional" entre os
intelectuais pós-modernos, mormente os que se inserem em socie-
dades de transição. Uma vez que veicula expressamente a violência da
memória da razão "etnológica", esta pergunta significativa constitui a
prova de que a tese de Amselle está basicamente correcta.
Todavia, subsiste outra questão: a obra Logiques métisses suscita a
possibilidade de uma antropologia dos poderes. Tratar-se-á realmente
de uma antropologia (como deseja o autor) ou outra coisa, como
história, por exemplo?
Após a demonstração extraordinária de Amselle, poder-se-ia afir-
mar, em tom de polémica, que a verdadeira missão dos discípulos de
Herskovits e Lévi-Strauss deveria consistir na luta pela promoção do
relativismo cultural. Contudo, não creio que a harmonia e o poder
ilusórios de uma verdade que nega as suas próprias marcas e signifi-
cações mereça, pelo menos em princípio, uma posição tão radical nos
dias que correm (ou depois de Derrida). Com efeito, a lição de Herskovits
tornou-se mais construtiva, assumindo-se como uma alegoria não
só para os diálogos transculturais, mas também para a definição dos
caminhos possíveis no sentido dos níveis de verdade numa dada cul-
tura. Os discursos sobre o empírico e o escatológico, assim como as
condições de construção de um discurso verdadeiro, participam na
unidade inimaginável de uma Verdade impossível. Enquanto mediações,
transmitem e significam a existência absoluta e a ausência absoluta
da Verdade. Nesse sentido, os nossos discursos, numa pluralidade e
ambiguidade viabilizadas por Herskovits e outros, testemunham uma
actividade de representação que em si mesma lida com a nossa situa-
ção colectiva. Conforme afirmado em tempos por Walter Benjamin, "Es
existiert bereits ais ein sich-Darstellendes": a Verdade representa-se
sempre a si própria.

Da "Arte Primitiva" aos "Memoriae Loci"


Por mais incrível que pareça, a arte, em particular a chamada arte
primitiva, constitui o melhor reflexo da ideia de África na consciência

ii8 V.Y. Mudimbe A Ideia de Africa


contemporânea. Com efeito, se aceitarmos a declaração de Edmund
Leach segundo a qual "a noção de artista é uma noção europeia", a
justaposição das duas palavras - "primitiva" e "arte" - parece realçar
um paradoxo. Porém, será possível conceber uma obra de arte sem um
criador, sem o artista que a executou? Ponderemos sobre esta questão.
Desde o século XVIII, o conceito de primitivismo, precisamente o de
arte "primitiva", pauta-se por uma relação de necessidade com a maio-
ria das produções não-ocidentais e, sobretudo, das da Oceânia e de
Africa. Mas porquê "primitiva"? A obra History ofArt (1986), de H. W.
Janson, inclui uma observação cuja actualidade se mantém:
"'Primitivo' é uma palavra um tanto ou quanto infeliz [...]. Ainda assim, nenhum
outro termo será mais adequado. Continuemos, portanto, a utilizar 'primitivo' como
um rótulo conveniente para designar um modo de vida que atravessou a Revolução
Neolítica, mas não mostra quaisquer sinais de acompanhar a evolução das civiliza-
ções 'históricas'", (citado em Price, 1989, p. 1).

Todavia, o impacto desta "arte primitiva" em determinados artistas


europeus, nomeadamente Gauguin, Klee, Picasso e outros, propiciou
novos usos interessantes. Popularizadas na obra Primitivism in Modem
An, de Robert Goldwater, publicada pela primeira vez em 1938, ex-
pressões como "arte primitiva na Europa", "romântico", "primitivismo
intelectual" e "primitivismo subconsciente" pressupõem uma cumpli-
cidade entre as chamadas produções primitivas e a arte moderna eu-
ropeia, uma arte decadente no entender de alguns críticos que a com-
paravam, sem hesitações, a criações infantis. Além de uma referência
espacial e estética a culturas longínquas e pouco conhecidas, importa
mencionar que o conceito foi alargado a ponto de incluir no seu título
indefinido elementos tão diversos como as pinturas populares, os de-
senhos infantis e, ainda, determinadas correntes europeias. Parafrase-
ando a afirmação humorística de Max Deri, todos injectam uma alegria
imprescindível numa cultura europeia em declínio (Deri, 1921).
Em suma, é possível constatar que o conceito de arte primitiva reúne
e, ao mesmo tempo, veicula duas ordens de significado. Por um lado, a
mais recente supera a ruptura entre o "civilizado" e o "selvagem", rotu-
lando de "primitivo" diversas produções das escolas artísticas "moder-
nas" que, supostamente, teriam restaurado uma noção de natureza,
simplicidade e clareza na tradição ocidental e promovido obras dota-
das de três características principais no plano estético: uma unidade
simétrica da totalidade, uma estilização nítida e uma ênfase da super-
fície. Sob este ponto de vista, Constantin Brancusi, Franz Mare, Henri
Matisse, Pablo Picasso, André Derain e Maurice de Vlaminck, entre

II. Que Ideia de Africa?I{69


outros, são, sem sombra de dúvida, artistas "primitivos". Não só se movi-
mentavam num círculo de contracultura simbolicamente análogo ao
das "sociedades primitivas", como também, e mais importante ainda,
se sentiam orgulhosos em considerar as obras dessas sociedades uma
fonte de inspiração, e procediam a uma reavaliação tanto das técnicas
e dos estilos tradicionais ocidentais quanto das suas próprias percep-
ções, atitudes e estéticas, com o intuito de "digerir a arte primitiva"
pacientemente e forjar uma nova arte (Goldwater, 1986]. Conforme
mencionado por Kandinsky, renunciaram à importância do exterior
em nome das "verdades interiores" [Kandinsky, 1914).
A segunda ordem de significado, de resto a condição primordial que
engendrou os significados anteriormente discutidos, abarca, pelo
menos, dois conjuntos complementares. O primeiro é manifestamente
influenciado pelos postulados de Darwin relativos à evolução das espé-
cies (ver também Guernier, 1952). Trata-se igualmente do mais antigo
e envolve uma fusão nebulosa entre a "arte primitiva" e a arte arcaica,
na acepção mais estrita da palavra. Nesse sentido, os seus produtores
e as suas culturas testemunhariam os primórdios das civilizações hu-
manas. As seguintes citações retiradas da obra Primitive Art in Civilized
Places (1989a, p. 2), de Sally Price, dispensam explicações:
Estamos a lidar com as artes de povos cujo conhecimento mecânico é escasso - os
povos sem rodas (Hooper e Burland, 1953).
A arte primitiva é produzida por povos que não desenvolveram qualquer forma de
escrita (Christensen, 1955).
Quanto ao termo... à falta de outro mais bem conseguido, este passou a designar a
arte das sociedades sem classes (Moberg, 1984-85).

jacob Epstein, Mother and Child, 1913. Mármore.


Museu de Arte Moderna, Nova Iorque, doação de A. Conger Goodyear

ii8 V.Y. Mudimbe A Ideia de Africa


Nos séculos XVIII e XIX, sem contemplar os séculos anteriores, esta
"arte", ou melhor, os objectos designados pelo termo "arte" eram, em
regra, entendidos como o resultado de um nível inferior de consecução,
comparativamente às produções artísticas do Ocidente, e conferiam
uma visibilidade concreta ao desvio entre a sensibilidade e criativi-
dade estéticas do Ocidente e do remanescente. Essa "arte" foi alvo de
depreciação em virtude do seu carácter "primitivo" face às obras "civi-
lizadas" [ver, por exemplo, Tylor, 1871). Porém, em finais do século XIX
e inícios do século XX, as obras menosprezadas do "primitivismo" viri-
am a introduzir novas sequências estéticas ao contribuírem para uma
revolução profunda na tradição ocidental, exemplificada por Gauguin
e a escola de Pont-Aven, pelo percurso de Picasso e, em termos mais
gerais, pelas correntes artísticas do construtivismo, cubismo, purismo
e expressionismo.

Joan Miró, Painting. 1933. Óleo sobre tela.


Museu de Arte Moderna, Nova Iorque, doação do Conselho Consultivo.

A "integração" da arte "primitiva" concretiza-se por meio de duas


operações. A primeira corresponde à "etnologização" das produções
de origem ultramarina. Isoladas como um desvio, estas produções
eram, de facto, diferentes. Como entendê-las à luz da tradição ociden-
tal? Tylor (1871) constitui, porventura, o melhor representante des-
ta perspectiva "etnologista" ao relacionar o desenvolvimento técnico
das artes materiais, além de outros factores, com o desenvolvimento
das mentalidades que confirmam posteriormente a inferioridade do
primitivo". O título completo do seu livro sintetiza perfeitamente a
sua posição: Primitive Culture, Researches into the Development of

II. Que Ideia de Africa? I {69


Mythology, Philosophy, Religion, Language, Art and Custom. A operação
de etnologização consiste em retirar um dado do seu enquadramento
concreto (as referências contextuais destinam-se somente para identi-
ficar o dado como uma entidade e não um elemento de um todo cultural),
analisá-lo (diferenciando-o, de facto, do resto), classificar as suas pro-
priedades e o seu modelo e, por fim, atribuir-lhe uma etiqueta, a par
de uma localização específica de acordo com uma dada latitude, lon-
gitude, tribo, etc. Na qualidade de artefacto dotado de uma etiqueta, a
obra pode ser então arquivada, recuperada e subsumida às grelhas do
estudo etnográfico. Porém, é possível insinuar outra componente. Du-
rante o processo, desde a primeira fase da análise até à última fase de
significação, poderá ocorrer outra operação: a estetização. Nos estudos
etnográficos, o estatuto de arte é atribuído ou recusado a uma produção
consoante critérios externos; com efeito, a fim de pertencer ao reino das
realizações artísticas, uma dada obra tem de apresentar características
e restrições visíveis, tecnicamente susceptíveis de serem situadas numa
escala cronológica determinada pela experiência ocidental. Daí a dis-
tinção entre objecto artístico e artefacto etnográfico. Contudo, importa
frisar que a operação de estetização pode precipitar-se sobre o "objecto
primitivo" com ilusões, decepções ou até esclarecimentos de indivídu-
os excepcionalmente sensíveis que procuram alternativas fora da sua
própria tradição. O "bárbaro" torna-se uma alternativa, como é o caso de
Gauguin, que, seduzido pela epifania da diferença, pôde proclamar que
"a arte primitiva é um leite nutritivo"; e, num tom mais provocatório: "o
erro está na arte grega, não obstante a sua beleza."

Paul Gauguin, Oferendas de Gratidão, c. 1891-93. Xilogravura.


Museu de Arte Moderna, Nova Iorque. Colecção de Lillie P. Bliss.

ii8 V.Y. Mudimbe A Ideia de Africa


Como é sabido, Gauguin foi uma figura marginalizada e psicologica-
mente instável. A maioria dos indivíduos "sensatos" da época subscre-
via o parecer de Tylor Na obra Letter on the Usefulness of Ethnographic
Museums (1843], Siebold já havia identificado uma urgência política: os
objectos produzidos pelos "primitivos" constituíam uma explicação da
sua diferença, além de um meio eficaz para os conhecer tendo em vista
a sua subjugação. O projecto de Siebold integra e justifica uma visão
reducionista antiga. A inclusão de objectos ultramarinos em museus,
em "espaços etnográficos" do Ocidente impõe-se como uma necessi-
dade para expor as culturas ultramarinas, apresentá-las à população
metropolitana e atrair o interesse de financeiros com capacidade para
investir nas colónias. A vocação da etnologia e o colonialismo estão
maravilhosamente emaranhados na mesma lógica. Mas Siebold não é
responsável pela sua invenção porquanto a sua voz é consentânea com
as suposições imperialistas de um ambiente intelectual já existente,
que, na segunda metade do século XIX, conduziu à partilha de África.

Constantin Brancusi, Little French Girl, c. 1914-18. Madeira.


Museu Solomon R. Guggenheim, Nova Iorque, doação. Património de Katherine S. Dreier,
1953. Fotografia: David Heald © The Solomon R. Guggenheim Foundation, Nova Iorque.]

Os museus etnográficos foram o palco da articulação entre a etnolo-


gia e o colonialismo. Firmavam-se nas mesmas premissas, que con-
corriam para o mesmo objectivo, isto é, a conversão dos territórios
ultramarinos ao si-mesmo e à imaginação ocidentais. Nesse sentido, os
•nuseus etnográficos assumem-se como a negatividade de uma dialéc-
tica e, como tal, as representações que promovem devem ser negadas a
longo prazo. Á semelhança das pinturas rupestres, os museus e os seus

II. Que Ideia de Africa? I {69


acervos continuam a revelar um passado "primitivo". Assistiu-se, en-
tretanto, a uma proliferação dos museus etnográficos: 1856, Berlim,
criação de uma secção etnográfica no Museu de Antiguidades; 1857,
Oslo, criação de um museu de etnografia na Universidade de Oslo;
1866-76 e 1877, organização dos museus de Yale e Harvard Peabody;
1869-74, Nova Iorque, Museu Americano de História Natural; 1878,
Paris, Le Trocadéro; 1881, Cambridge, Museu de Arqueologia e Etno-
logia da Universidade de Cambridge; 1891, Gotemburgo, Museu
de Etnografia; 1893, Chicago, Museu de Etnografia de Field; 1897,
Tervuren, Exposição sobre o Congo; 1899, Filadélfia, Museu da Uni-
versidade.
O empreendimento do museu etnográfico abraçou uma abordagem
histórica, aprofundando a necessidade de uma memória relativa a uma
civilização europeia arcaica e expondo, consequentemente, os moti-
vos para a descodificação de objectos primitivos e exóticos enquanto
símbolos e marcas contemporâneos de uma antiguidade ocidental.
Nos anos seguintes, alguns artistas europeus começam a questionar
o cariz efectivamente "primitivo" da "arte primitiva" ao congregarem
nas suas criações as representações aprendidas dos chamados "primi-
tivos", a sua própria consciência historiográfica e as reivindicações de
uma liberdade criativa. O que se traduziu numa reavaliação e num pro-
testo contra uma tradição artística e, mormente, o conceito de obra-
-prima enquanto "objecto de trabalho executado por um aprendiz com o
propósito de demonstrar o domínio adequado da sua arte - embora
a ascensão a "mestre" acarretasse privilégios financeiros e outros -;
porém, no sentido moderno da palavra, existe uma conotação que
extravasa a técnica manual" (Burgin, 1986, p. 153). Não obstante a sua
fidelidade para com o seu "lar insular" (em termos referenciais visando
um espaço coesivo para as suas imaginações), Georges Braque, Mare
Chagall, Max Ernst, Paul Gauguin, Amedeo Modigliani, Pablo Picasso,
entre outros, rompem com a tradição da sua certidão de nascimento
artística. Além disso, ao invés de se colocarem sob a autoridade de um
mestre respeitado e bem-individualizado, transcendem essa venera-
ção ritualista e aventam uma inspiração alimentada pelo impensável:
os modelos "primitivos" anónimos que aliam, em silêncio, um génio
sem-nome e uma produção.
O desafio inerente à divulgação dos objectos "primitivos" como arte é
indissociável de duas questões fundamentais: serão arte, em que sen-
tido e segundo que grelha estética de avaliação? Em alternativa, não
poderão ser considerados memoriae loci, locais de memória que teste-
munham e ilustram o espaço da sua origem? Para efeitos metodológicos,
ambas as questões podem ser enquadradas no âmbito da tensão entre

ii8 V.Y. Mudimbe A Ideia de Africa


a história de arte e a antropologia. A primeira privilegia a sua própria
cultura e o seu espaço histórico ao passo que a última se debruça so-
bre outras culturas e sociedades. Além disso, foi salientado por Robert
Goldwater (1986) que a história de arte se promove a si mesma como
uma técnica capaz de analisar e valorizar os seus objectos dentro de
uma dada tradição artística. A sua relação com as produções não-oci-
dentais assenta numa base analógica, como é o caso da comparação
entre a arte medieval ocidental e a arte africana. Jan Vansina (1984) in-
siste nesta ideia mas não desenvolve as suas conseqüências. Consideremos
um exemplo: tal como desenvolvido por Franz Olbrechts na década de
1940, o alargamento do método analítico de avaliação de uma obra de
arte, formulado por Morelli, ao estudo da arte no Congo parece apon-
tar para uma tese bastante controversa: a universalidade dos métodos
da história de arte; a demonstração e ilustração convincentes das suas
regras por parte da tradição ocidental, tornando exeqüível a sua apli-
cação a qualquer outra tradição existente.

Pablo Picasso, Les Demoiselles d'Avignon. 1907. Óleo sobre tela.


Museu de Arte Moderna, Nova Iorque. Adquirido por intermédio do Legado de Lillie P. Bliss.

A etnologização e a estetização destes "objectos trabalhados" de ori-


gem ultramarina - de agora em diante, será esta a qualificação utiliza-
da para designá-los - afiguram-se problemáticas. Oferecidos, amiúde
comprados, e, por vezes, simplesmente saqueados, estes objectos tra-
balhados, talvez ainda preservando o "primitivo" e adquiridos com o
zelo de conhecer e coleccionar, acabam por ter como destino final o
museu etnográfico. Qual o seu significado nesse novo contexto, além
da apreciação geralmente negativa acerca das culturas que os criaram?

II. Que Ideia de Africa?I{69


Amedeo Modigliani, Head. 1915. Pedra calcária. Museu de Arte Moderna, Nova Iorque.]

Ao olhar para objectos de arte com tipos de "identidades" claramente distintas,


descobrimos que o valor calculado (uma combinação de notoriedade artística e
avaliação financeira) tende a manifestar uma relação inversa com o grau de por-
menor constante nas respectivas legendas. Em regra, a explicação sobre um "ob-
jecto etnográfico" nos museus sobrelotados de antropologia é apresentada numa
prosa extensa visando iniciar o público no esoterismo da sua manufactura, utiliza-
ção, função social e do seu significado religioso. Se esse mesmo objecto for seleccio-
nado para ser exposto num museu de arte, é natural que a sua avaliação financeira
suba, que seja colocado num espaço mais privilegiado (ou seja, que a desordem das
peças concorrentes despareça) e que praticamente toda a informação didáctica seja
eliminada. O isolamento de um objecto em relação a outros objectos e a contextu-
alizações prolixas está intimamente relacionado com o Valor Trata-se, sem dúvida,
do princípio reconhecido e explorado pelos negociantes quando expõem as suas
colecções com apenas um pequeno autocolante em cada peça remetendo para o
número que poderá ser consultado discretamente pelos clientes, a fim de tomarem
conhecimento do preço de um dado artigo cuja aquisição estão a ponderar. No en-
tender das pessoas, o continuum desde o artefacto etnográfico até ao objecto de
arte está claramente associado a uma escala de valor monetário crescente e a uma
transição da função (definida genericamente) para a estética enquanto critério de
avaliação; no concernente à exposição, todos estes factores correlacionam-se com
uma contextualização escrita cada vez mais críptica. (Price, 1989, p. 84).

Qual a memória representada por estas produções em exibição? Há


quem diga que constituem vestígios de exórdios absolutos. Porém, al-
guns dos artistas mais criativos dos últimos cento e cinquenta anos
ii8 V.Y. Mudimbe A Ideia de Africa
estiveram obcecados por elas. Neste caso específico, estaremos pe-
rante uma vontade consciente de retomar um passado perdido, uma
vontade de recuperar feitos pré-históricos? Ou, de acordo com um
ponto de vista diferente e mais metafórico, poderemos afirmar que
a revolução "primitivista" na arte ocidental actualizou uma nova
perspectiva, na esteira dos historiadores ocidentais que passaram
de uma história escrita segundo uma visão aristocrata para uma
história que realça o horizonte das pessoas comuns?
"Objectos de arte" ou "artefactos etnográficos", ambos pertencem
a espaços específicos. Inseridos no seu contexto original, aquilo que
podem significar é necessariamente incomensurável, comparado com
aquilo que devem representar numa parede ou num pedestal do mu-
seu. No seu próprio contexto, estes objectos são, em sentido estrito,
vestígios de outra coisa e funcionam como elementos vivos de uma
"reserva material", correspondendo, em síntese, ao equivalente mate-
rial de um acervo da vida quotidiana. Tenho em mente determinados
"grotescos alexandrinos" - nomeadamente Marble Hunchback (um
sinal de sorte na Grécia e Roma Antigas) ou Slave Boy with Lantern do
Museu Metropolitano de Arte de Nova Iorque, e comparo-os com cer-
tas obras africanas reproduzidas no livro editado em 1985 por Susan
Vogel e Francine N'Diaye, sobretudo, com a Figura Hermafrodita de
Dogon (Mali) da Aldeia Yaya. O que é arte e o que não é arte? Ou, colo-
cando de modo mais simples, o que é belo, falso ou feio? Com efeito, ã
luz da posição adoptada, que nada tem de inocente, os problemas da
autenticidade e a questão mais ambígua de elucidar sobre a existência
efectiva de uma arte africana tornam-se arbitrárias. Efectivamente, o
que designa o conceito de arte e em função de que perspectiva?
Em 1986, na qualidade de comentador de um painel da African
Studies Association, abordei a questão e, com prudência, decidi
cingi-la àquilo que realmente é: uma pergunta simples [African Studies
Review, n.s 23, 1986, pp. 3-4), uma pergunta que pode ser utiliza-
da para interrogar qualquer tradição artística. No caso africano,
por exemplo, do ponto de vista histórico, assiste-nos o direito - por
razões óbvias - de perguntar a partir de que momento os "objec-
tos trabalhados africanos" se tornaram "objectos de arte". Porém,
são poucos os académicos que aceitam a exigência de meditar sobre
articulações que, primeiro, etnologizaram esses "objectos trabalha-
dos" e, depois, estetizaram alguns ao transferirem-nos dos museus de
história natural para os museus de arte ou, em certos casos, da "flo-
resta" para o sol monetário das galerias de arte. Estas operações e a
sua história conduziram à divisão e subdivisão quase ad infinitum dos
processos e métodos de classificação desses objectos. Desde o período

Que Ideia de África?


dos "fetiches" e outros "machados de guerra indígenas" no século XVI,
passando pela concepção de "objectos trabalhados" africanos enquan-
to artigos puramente funcionais e descritos como meios simples que
testemunham a transparência da tradição primitiva e a representação
dos seus "corpos" [objectos, totens, símbolos, alegorias, etc.), até aos
debates actuais, às grelhas analíticas e às estéticas resultantes, a origi-
nalidade destes "objectos trabalhados" pode ter sido descurada em
virtude da ênfase que estas operações conferem à diferença. Como tal,
receio que a natureza possível de qualquer obra de arte tenha passado
despercebida.

Figura Hermafrodita. Madeira. Dogon, Mali. Expedição de Paulme-Lifszyc, 1935.


Museu do Homem, Falais Chaiilot, Paris.

Maurice Merleau-Ponty chamou a nossa atenção para o facto de


existirem criações voluntárias e involuntárias (1973) cujos exemplos
estão presentes na poesia e na criatividade da escrita automática im-
provisada. Com efeito, até podemos invocar a beleza (na forma, no
estilo e no propósito) dos graffiti (por exemplo, durante a revolta
estudantil francesa em Maio de 1968). Consideremos ainda os de-
senhos infantis, até há pouco tempo catalogados de ingênuos por
não corresponderem significativamente à percepção "objectivista"
da "perspectiva bidimensional" dos adultos (a qual, aliás, "não pode
ser apresentada como uma expressão do mundo que apreendemos e,
portanto, não pode assumir uma conformidade privilegiada com o ob-
jecto", conforme constatou Merleau-Ponty). Curiosamente, as chama-
das "artes primitivas" foram aglomeradas com as produções infantis,

ii8 V.Y. Mudimbe A Ideia de Africa


sendo agora possível descodificar tal absurdo. O seu objectivo era o de
reforçar a diferença entre as expressões "brutas" e a "arte" ou "um
estilo canónico" (entendido como um continuum histórico e uma ex-
pressão que domestica e transcende a banalidade da natureza). Tal
como demonstrado pelos impressionistas e cubistas, e remetendo
para a crítica de Merleau-Ponty a André Malraux, os sentidos e os
dados dos sentidos sofreram mudanças ao longo dos séculos, sendo
"indubitável que a perspectiva clássica [europeia] não constitui a lei
do comportamento perceptivo" (1973).
O verdadeiro problema poderá residir noutro aspecto: no sonho e na
linguagem do artista. Independentemente de serem africanos ou euro-
peus, a questão primordial aplica-se a todos: não contam com nenhum
"mestre" da verdade além da sua percepção. Recorrendo ao termo de
Husserl, estão desprovidos de uma Stiftung, que, segundo Merleau-
-Ponty, constitui uma fundação, uma instituição indicando "primeiro,
a fecundidade ilimitada de cada presente que, exactamente por ser
único e transitório, nunca pode deixar de ter sido e, portanto, de ser
universalmente." No que se refere às criatividades africanas, acalento a
esperança de que a exposição de 1991 intitulada Africa Explores: 20th
Century African Art, organizada pelo Centro de Arte Africana de Nova
Iorque, tenha demonstrado a variedade de estilos individuais e sub-
jectivos, para lá dos preconceitos de outrora em matéria de funcionali-
dade e anonimato das produções artísticas.
Malraux demonstra eximiamente [realçou Merleau-Ponty] que, para nós, aquilo que
torna um quadro um "Vermeer" não é o facto de ter sido pintado em tempos pelo
homem Vermeer. É o facto de incorporar a "estrutura de Vermeer" ou de falar a lin-
guagem de Vermeer, observando o sistema de equivalências segundo o qual cada
elemento, à semelhança de cem ponteiros em cem mostradores, assinala o mesmo
desvio. (Merleau-Ponty, 1973, p. 70)

Podemos - e é chegado o momento de nós, críticos e estudantes da


arte africana, o fazermos também - ler e tentar esclarecer os discursos
presentes nos quadros, as linguagens contraditórias das esculturas, as
texturas dos batiques e, a propósito das obras de Thomas Mukomberan-
wa, Iba N'Diaye, Trigo Piula ou Twins Seven-Seven procurar, nomeada-
mente, descodificar e divulgar a riqueza de uma linguagem susceptível
de ser abafada pelos museus, uma consequência habitual da estabili-
zação que encetam. Além disso, importa abordar um segundo problema
fundamental concernente a qualquer obra de arte, seja africana ou eu-
ropeia, asiática ou oceânica: o significado da sua canonização. Talvez
será prudente concordar com o parecer de Merleau-Ponty:

II. Que Ideia de Africa?I{69


o Museu oferece-nos uma falsa consciência, a consciência de um ladrão. Ocasional-
mente, sentimos que estas obras não estavam destinadas a acabar entre estas pare-
des vazias para o deleite dos que passeiam ao Domingo, das crianças nas suas tardes
livres ou dos intelectuais de Segunda-Feira. Temos a vaga sensação de que algo se
perdeu e que as reuniões de solteironas, o silêncio tumular e o respeito dos pigmeus
não compõem o verdadeiro ambiente da arte. (Merleau-Ponty, 1973, p. 72).

Por conseguinte, a fim de descodificar estes objectos - uma tarefa


ambiciosa e, ao mesmo tempo, totalmente ridícula - podemos recorrer
a três critérios, pelo menos. O primeiro corresponde ao meio sociocul-
tural e permite identificar os objectos trabalhados consoante os seus
produtores: foram, ou são, feitos por recolectores, pescadores, pas-
tores, agricultores? O segundo critério diz respeito às relações sociais
da produção e possibilita, dentro da mesma cultura, discernir ou analisar
a título complementar a arte palaciana e, por exemplo, a arte dos
ferreiros, curandeiros, membros de sociedades secretas, mulheres,
etc. O terceiro corresponde ao critério da função e visa classificar estes
objectos de acordo com a sua utilização: adivinhação, ritos funerários,
entretenimento, vida quotidiana, religião, magia, etc. Através desta
abordagem tripartida, seria possível considerar os objectos no con-
texto do seu verdadeiro legado e superar as deficiências da etnologiza-
ção e da esteticização dos objectos realizadas pelos antropólogos. Tal
como sublinhado por Robert Brain numa afirmação genérica constante
no princípio da sua obra Art and Society in Africa:
Em África, a arte participou sempre na vida do povo, manifestando-se nos vários
quadrantes dos seus mundos, desde o trabalho até ao lazer, passando pela fé; toda-
via, praticamente todos os estudos gerais elaborados por historiadores de arte ou
etnólogos incidem sobretudo no encanto estético da obra de arte ou nas especifici-
dades do estilo e da forma. (Brain, 1980).

Pelo menos na África Central, estes objectos desempenham um pa-


pel bastante intrincado no seu contexto original, contrariamente ao
apregoado por ideias negligentes que lhes atribuem, apenas e só, um
carácter funcional. De facto, o seu ser consolida uma herança, ou
melhor, concilia dois significados esplêndidos. Por um lado, por força
da vontade da sociedade, destinam-se a uma tarefa específica, estando
assim dotados de uma dimensão funcional e utilitária. Uma cadeira é
uma cadeira e é construída para servir de assento, independentemente
de ser de metal ou madeira, muito ornamentada ou simples. Da mesma
forma, a utilização de uma tigela de marfim ou madeira, ou de um tam-
bor com uma decoração rica ou pobre, afigura-se evidente, mesmo se o

ii8 V.Y. Mudimbe A Ideia de Africa


artigo estiver reservado a uma categoria especial de indivíduos ou as-
sociado a actividades, rituais ou conjuntos de símbolos específicos. Por
outro lado, na sua materialidade, desde o objecto mais sofisticado (por
exemplo, um recipiente para cerimônias igbo, um banco de madeira do-
gon sustentado por duplas de nommos ou um banco normal do chefe
luba) ao objecto aparentemente mais simples e banal (por exemplo,
uma caneca kuba, uma cabaça fulani, um saco de couro hausa], todos
espelham (para aqueles que são realmente capazes de compreender)
a continuidade de uma tradição e as suas transformações sucessivas.
São concebidos e experienciados dessa forma no seu meio, embora
não de uma forma explícita por parte de todos os membros da comu-
nidade, o que não se trata de um facto excepcional. Quantos cristãos
praticantes no Ocidente, aquando da sua visita a basílicas e igrejas
antigas, conseguem compreender as pinturas cujo elemento central
é o peixe? Regra geral, o guia tem de explicar esta presença miste-
riosa, remontando a um símbolo muito antigo e à palavra grega para
peixe ['IxOva) que, se lida letra a letra, corresponde à introdução de
uma declaração da fé: Jesus Cristo, Filho de Deus e Salvador.
De facto, os objectos trabalhados africanos denotam uma dimensão
"arquivística" aliada a uma função comemorativa. Imprimem na sua
própria sociedade um discurso silencioso e, simultaneamente, en-
quanto locais de memória, recitam em silêncio o seu próprio passado
e o da sociedade que os originou. Pensemos num exemplo concreto.
Partindo da comparação de três tambores da África Central com um
formato básico semelhante - trata-se de "um tambor da aldeia kuba,
um tambor real kuba e um tambor da aldeia dos seus vizinhos ociden-
tais, os lele", Jan Vasina tece as seguintes observações:
A diferença é notória em termos de execução. O tambor kuba, pertencente à, e uti-
lizado pela, aldeia, exibe apenas uma modesta faixa de decoração. Em regra, o tam-
bor lele está coberto por entalhes ornamentais num padrão muito fino e inclui um
rosto humano na lateral; também este tambor opulento só pertence à aldeia e só é
utilizado na aldeia. Porém, ao contrário das aldeias kuba, as aldeias lele constituíam
unidades soberanas. Eram, amiúde, mais extensas e sempre mais orgulhosas, e os
tambores demonstram-no. O tambor real kuba está coberto por padrões decorati-
vos de entalhe profundo, além de embutidos em cobre, contas e caurins. Era bas-
tante mais ornamentado do que o tambor lele e ilustrava a instituição da realeza,
embora um tambor dinástico como este fosse o emblema de um só rei e não o tam-
bor da própria realeza. (Vansina, 1984, p. 47).

Independentemente do sugerido por esta perspectiva intensamente


cartesiana - não imporá a análise sobre os objectos africanos e a sua

II. Que Ideia de Africa?I{69


distribuição geográfica uma grelha que reproduza os seus próprios
paradigmas locais? - importa notar que o projecto de Vansina pode-
ria, por exemplo, ser alargado para efeitos de uma comparação entre
os Luba, Lulua, Songhye, Sanga, Bemba e Lunda. Dado o tambor e os
restantes objectos serem resquícios comemorativos, a análise da dis-
tribuição das características do estilo e dos tipos de decoração poderia
contribuir para um mapa de traços culturais bem-localizados e uma
demonstração do modo como estes traços, apesar das suas semelhanças,
enclavinham-se a si próprios em diferenças construídas [Delange,
1967). Uma reconstrução meticulosa desta natureza, se realizada
devidamente, conduziria a estudos comparativos profícuos de diferen-
tes tradições "primitivas", apontando ainda para a história como uma
necessidade, ou melhor, para as histórias como respostas às memórias
testemunhadas pelos objectos. Com efeito, em cada enclave cultural,
os objectos trabalhados desvendam espontaneamente, na sua forma e
no seu simbolismo, meios, técnicas, gestos e rituais transmitidos pelo
mestre ao aprendiz. Uma cronologia permite remontar à origem de um
objecto trabalhado e, por vezes, até uma pequena alteração introdu-
zida pelo artista traduz uma história.
O conceito de aprendiz é delicado. Em regra, o discípulo está inscrito
numa genealogia previamente definida [Brain, 1980). Não se toma
simplesmente a decisão de ser um artífice. Da mesma forma, a pro-
fissão de ferreiro é determinada à nascença em certas sociedades da
África Ocidental. Outro exemplo: com receio de perderem todo um cor-
po de conhecimento devido a doenças endémicas, guerras ou catástrofes
naturais, os meus antepassados, os Songye, em vez de instituírem ge-
nealogias familiares e dependerem assim dos indivíduos para a preser-
vação das memórias antigas, procederam à especialização de cidades
inteiras: uma no conhecimento esotérico do grupo, outra em entalhe,
uma terceira noutro domínio, e assim sucessivamente. Em muitas so-
ciedades, pelo simples facto de se casar com um ferreiro, uma mulher
sabe que será uma oleira e especialista em determinados procedimen-
tos cirúrgicos, designadamente a circuncisão e a escarificação.
Chegado a este ponto, o leitor poderá retorquir: disse realmente
história? Existirá, de facto, um elemento passível de associar com
rigor os objectos trabalhados à sua génese e, ao mesmo tempo, inte-
grar os seus testemunhos numa história da sociedade que os produz?
Não serão estes objectos vestígios de uma prática antiga em declínio,
no quadro da vulgarização de objectos de segunda categoria destina-
dos a turistas e lojas de aeroporto?
Alvitraria que os meios da maioria dos objectos trabalhados podem
ser datados [Vansina, 1984, pp. 33-40) e, por isso, inseridos numa

ii8 V.Y. Mudimbe A Ideia de Africa


moldura cronológica, com excepção dos objectos em pedra, têxtil e
metais não-ferrosos. Além disso, as tradições orais locais e os rituais
situam temporalmente alguns dos objectos de um modo voluntário. No
nível de generalização a que esta apresentação esteve até agora sujeita,
posso acrescentar que essas indicações temporais devem ser utilizadas
criticamente, sobretudo em articulação com informações provenien-
tes de dados arqueológicos, a fim de permitir construções históricas
credíveis. Contudo, uma vez que os vários objectos trabalhados são fei-
tos com materiais perecíveis, designadamente madeira, barro, couro,
têxtil ou esteira, o desafio adquire contornos diferentes. Se aceitarmos
que o objecto é, muitas vezes, um índex do seu próprio passado, que
imaginação técnica poderá ser capaz de datar os objectos trabalhados
e remontar aos primórdios do seu conceito? De facto, o objecto tra-
balhado constitui uma memória viva que reproduz o seu destino con-
ceptual e cultural nas suas próprias imagens concretas e sucessivas,
testemunhando, frequente e explicitamente, uma vontade de recordar
ou esquecer determinadas coisas. Restituir aos objectos trabalhados
o seu próprio passado a partir do contexto da sua própria sociedade
significa efectivamente reviver a actividade histórica e a recuperação
de uma cultura com a sua dinâmica e beleza exemplar.
Trata-se, definitivamente, de uma inversão do sonho de Siebold.
Além disso, indica o modo como os "primitivos" podem digerir - e di-
geriram, pelo menos, intelectualmente (ver, por exemplo, Ajayi, 1969;
Diop, 1960; Ki-Zerbo, 1972; Mveng, 1965) - o Ocidente e as suas
mitologias.
O que pretendo explicar é simples: enquanto memórias de um local,
os objectos trabalhados - sejam desenhos, escarificações ou inclusi-
vamente corpos pintados, como no caso da África Oriental e Central
- perpetuam a iminência de uma perspectiva e dos seus limites, no
sentido estrito. Esta função de preservação não exclui a revisão ou a
reinterpretação dos cânones. Os especialistas da memória criam,
inventam e transformam, mas também obedecem fielmente, à sua
vocação e responsabilidade: transmitir um legado, registar as suas ob-
sessões e preservar o seu passado. Podemos designar este processo de
prática social da história e aplicar as afirmações de Pierre Nora acerca
dos locais de memória: "o medo de um desaparecimento rápido e de-
finitivo conjuga-se com a ansiedade face ao significado do presente e à
incerteza face ao futuro no sentido de oferecer o testemunho mais hu-
milde, o vestígio mais modesto, a dignidade potencial do memorável"
(Nora, 1989, p. 13).

II. Que Ideia de Africa? I {69


III. O Poder
do Paradigma Grego
Para Jacques e Claude Garelli
Tal como os Egípcios têm um clima que lhes é próprio e o
seu rio é diferente de todos os outros rios, assim instituíram
costumes e leis na sua maioria contrários aos do resto da
humanidade.

- Heródoto, II, 35

Amazonas, bárbaros e monstros


Procurando explicar a sua ambição intelectual, Michel Foucault
escreveu que "estudava os enunciados no limite que os separa do não-
-dito, na instância que os faz emergir à exclusão de todos os outros. A
nossa tarefa não consiste em dar voz ao silêncio que os rodeia, nem
em descobrir tudo aquilo que, neles ou junto deles, permaneceu em
silêncio ou foi reduzido ao silêncio" [Foucault, 1982, p. 119). Gostaria
de poder reanalisar aquilo que foi dito na tradição grega a respeito dos
chamados barbaroi e das oiorpata. Sinto-me imensamente em dívida
para com Foucault, mesmo se os meus estudos estiverem mais orien-
tados para afirmações que enunciam separações naquilo que dizem.
Foucault estava bem ciente da inexistência de uma história do silêncio,
o que não implica que seja impossível escrever uma história das ex-
periências silenciadas. A sua posição é bastante clara nesta matéria: "a
descrição de um enunciado não consiste [...] em reconhecer o não-dito
cujo lugar ocupa; nem no modo de reduzi-lo a um texto silencioso e co-
mum; pelo contrário, trata-se de descobrir qual a posição singular que
ocupa, quais as ramificações no sistema de formações que permitem
demarcar a sua localização, e de que forma se isola na dispersão geral
dos enunciados" (1982, p. 119).
Optei por analisar o "lugar singular" ocupado pelos agrioi (selva-
gens), pelos barbaroi (bárbaros) e pelas oiorpata (assassinas de ho-
mens) nos textos de determinados escritores clássicos (mormente
Heródoto, Diodoro Sículo, Estrabão e Plínio). Na minha leitura e
III. o Poder do Paradigma Grego 103

L
selecção dos excertos, procurei, de facto, escapar à tentação de psi-
cologizar de modo a que a minha exegese fosse uma "reprodução"
quase literal do original, "redescrevendo-o" na sua própria "violência
textual".

Mapeamento das margens


No final do primeiro parágrafo do Livro III, Diodoro Sículo explica
o seu objectivo: descrever os Etíopes, os Líbios e os Atlantes (III, I, 3).
No concernente à sua localização geográfica, é possível remeter para a
afirmação inaugural do Livro V da História Natural de Plínio: "Africam
Graeci Libyam appellavere et mare ante eam Libycum. Aegypto finitur."
["Os Gregos atribuíram a África o nome de Líbia e designam de Líbio o
mar que jaz em frente. É confinada pelo Egipto".] Esta indicação traduz
uma divisão que remonta à época de Heródoto (IV, 145-67). Durante
o século I, em particular após a vitória de César sobre o exército de
Pompeu na cidade de Tapso em 46 a.C., África denomina o território
de Cartago. A oriente, é delimitada pela província de Cirenaica e a oci-
dente, pelas duas Mauritânias. A reorganização administrativa de 27
a.C. integra a Africa Nova (Numídia) e a Africa Antiqua, definindo três
regiões principais: dioecesis Hipponiensis, dioecesis Numidica e dioece-
sis Hadrumentina. As primeiras duas estão sob a tutela de um legatus
enquanto a terceira é governada por um procurator (Mommsen e Mar-
quardt, 1892, XL 11; Mommsen, 1921).
Enquanto parte do Império Romano, a costa africana caracteriza-se
por ser forte culturalmente mas fraca politicamente (Benabou, 1976).
Numa lépida descrição, Plínio localiza-a apresentando as duas Mau-
ritânias, o Monte Atlas [fabulosissimum], a primeira incursão romana
pela região noroeste do continente sob o principado de Cláudio, a cos-
ta de Tânger e Argélia, a Numídia, a África propriamente dita - regia
et quae propriar vocetur Africa est - a região da Tunísia e de Tripoli,
o golfo de Cabes e Sirte, a província de Cirenaica e quae sequitur re-
gio Mareotis Libya appellatur Aegypto contermina ["a região seguinte
é denominada de Líbia Mareota fazendo fronteira com o Egipto"] (V,
VI, 39).
É interessante observar que o mapa etnográfico de Plínio avança
para oriente enquanto o de Heródoto, escrito cinco séculos antes,
prossegue para ocidente, iniciando-se com a etnografia dos Adir-
máquidas, os habitantes da região mais próxima do Egipto (VI, 168).
Quando comparados minuciosamente, ambos os mapas revelam
diferenças e semelhanças notórias. Antes de proceder á sua análise.

ii8V.Y.MudimbeA Ideia de Africa


atentemos no mapa etnográfico de Heródoto, o qual inclui uma enu-
meração de grupos étnicos cuja caracterização assenta em traços, usos
e costumes ou histórias particulares de que o historiador tomara
conhecimento através de outros povos. Trata-se de um relato por-
menorizado desde as fronteiras egípcias até ao lago Tritónis, e cada
comunidade é claramente tipificada com base em determinados para-
digmas essenciais: habitação, locus social, alimentação, características
físicas e matrimónio. Assim, é possível extrair de Heródoto a seguinte
lista composta por dezasseis grupos.

Mapa do mundo no tempo de Heródoto, 440 a.C. Reproduzido, com autorização dos editores
e da Loeb Classical Library, de Heródoto, I, Livros l-ll, tradução de A. D. Godiey,
Harvard University Press, Cambridge, Mass.

L Adirmáquidas vivem perto do Egipto vestem-se como os restantes Líbios; as mulheres


(IV, 168) usam uma pulseira de bronze em cada uma
das pernas e têm cabelos compridos; de en-
tre o povo líbio, são os únicos que levam ã
presença do rei as donzelas prestes a casar.
2. Gilígamas habitam a região situada a é a região do sílfio; os seus usos e costumes
(IV, 169) ocidente, até à ilha de Afrodí- não são "extraordinários".
sia
3. Asbistas habitam para lá de Cirene usam quadrigas e tentam imitar os usos e
(IV, 170) costumes dos Cireneus.
4. Áusquisas vivem na região para lá de usos e costumes dos Cireneus.
(IV, 171) Barce, que vai dar ao mar
próximo de Evespérides
5. Bacales habitam a região central da usos e costumes dos Cireneus.
(IV, 171) terra dos Áusquisas
6- Nasamões povo numeroso situado a apanham gafanhotos e são particularmente
(IV, 172) ocidente dos Áusquisas promíscuos; culto dos antepassados; enterram
os seus mortos sentados,
Ganfasantes vivem num sítio repleto de não têm armas de guerra e não sabem de-
(IV, 174) animais selvagens, em di- fender-se.
recção ao vento a sul

L III. o Poder do Paradigma Grego 103


8. Maças habitam junto ao mar, para cortam o cabelo de um lado e de outro rente
(IV, 175) ocidente; uma floresta den-à pele mas no meio deixam crescer uma
sa circunda o rio Cínipe crista.
9. Gindanes seguem-se aos Maças as mulheres colocam um anel no tornozelo
(IV, 176) por cada homem a quem se unem.
10. Lotófagos habitam num promontório alimentam-se exclusivamente do fruto do
(IV, 177} que entra no mar próximo loto.
dos Gindanes
11.Máclies habitam a região do lago os Lacedemónios estabeleceram uma coló-
(IV, 179] Tritónis nia na ilha; tal como os seus vizinhos, tam-
bém usam o loto embora menos.
12. Áusees habitam à volta do lago enquanto os Máclies usam os cabelos com-
(IV, 180] Tritónis pridos atrás da cabeça, os Áusees usam-no à
frente; são promíscuos.
13. Amónios vivem no interior da Líbia praticam ritos de adoração a Zeus Tebano.
(IV, 181] que é habitada por animais
selvagens
14. Garamantes a dez dias de caminho de os bois pastam às arrecuas e costumam per-
(IV, 183} Augilos seguir os trogloditas etiopes que dão gritos
agudos como os morcegos.
15.Atarantes a dez dias de caminho dos não têm nome próprio; amaldiçoam o sol
(IV, 184} Garamantes excessivo que os queima.
16. Atlantes habitam na região do Monte não comem nenhuma espécie de ser vivo e
[IV, 184} Atlas nunca têm sonhos.

Para Heródoto, a região do lago Tritónis constitui um ponto de referên-


cia cujas alusões míticas gregas remontam aos Argonautas (IV, 179) e
cujos sacríficos, usos e costumes estão em linha com a tradição grega
(IV, 189). Trata-se de uma região "civilizada". Curiosamente, com Dio-
doro Sículo (III, 53, 6), o lago passa a ser associado a uma região de
barbárie povoada por Amazonas. Em todo o caso, Heródoto menciona
o território onde "os que vivem à volta do lago Tritónis sacrificam
sobretudo a Atena e depois dela a Tritão e a Posídon (IV, 188).
Quanto aos grupos situados a ocidente do lago, o relato de Heródoto
adquire contornos nebulosos. Após descrever os Áusees (IV, 191),
sublinha que, de entre os "Nômadas líbios", foram mencionados
aqueles que vivem junto ao mar. A localização dos Amónios, dos Ga-
ramantes e de outros povos é então calculada através do número de
dias de viagem necessários para alcançar a respectiva região. Nada
sabe acerca dos povos que se seguem aos Atlantes: "Até estes Atlan-
tes, consigo mencionar os nomes dos que habitam na faixa de areia,
mas tal já não acontece a partir daí" (IV, 185). Fazendo essa res-
salva, Heródoto efectua um retrato etnográfico cuidadoso dos dois
grupos principais de Líbios: a oriente e ocidente do rio Tritão. A
primeira região, confinada pelo Egipto, é plana e arenosa (IV, 191)
e ostenta uma variedade considerável de animais. Além dos exis-
tentes noutras paragens, encontram-se gazelas, burros com chifres,
antílopes do tamanho de um boi, raposas, hienas, porcos-espinhos,

ii8 V.Y. Mudimbe A Ideia de Africa


carneiros selvagens, chacais, panteras, crocodilos terrestres, ser-
pentes apenas com um chifre, etc. (IV, 192). Os povos são nômadas
(IV, 186), vivem em casas portáteis (IV, 190), comem carne e bebem
leite mas nunca se alimentam de carne de vaca nem criam porcos
(IV, 188). Alguns sacrificam ao sol e à lua (IV, 186); outros pres-
tam homenagem a ísis e enterram os mortos segundo os preceitos
gregos (IV, 190). O ocidente do lago Tritónis é montanhoso, coberto
de arvoredos e repleto de animais selvagens e criaturas fabulosas
("segundo dizem os Líbios").
Aí existem serpentes gigantescas, leões, elefantes, ursos, áspides, burros com chi-
fres, cinocéfalos e acéfalos com olhos no peito [...] existem ainda homens e mulheres
selvagens e muitos outros animais que não são fabulosos. (IV, 191).

Os habitantes exibem determinadas práticas curiosas, tais como


queimar, com lã de ovelha engordurada, as veias no cimo da cabeça
ou nas têmporas das crianças quando estas atingem os quatro anos,
e utilizar urina de bode para curar queimaduras. Contudo, em termos
gerais, são um povo exemplarmente saudável (IV, 187). Heródoto enu-
mera quatro grupos principais. Os Máxies, "que dizem ser descenden-
tes dos homens de Tróia", são lavradores, têm casas, untam o corpo
com vermelhão e deixam crescer o cabelo do lado direito da cabeça,
cortando o do lado esquerdo (IV, 191). Aos Máxies seguem-se os Za-
veces, "entre os quais são as mulheres que levam os carros para a
guerra" (IV, 193). Os Gizantes, por seu turno, também pintam o corpo
com vermelhão, produzem mel e comem macacos (IV, 194). Por fim, os
Cartaginenses comercializam ouro com os homens que habitam numa
região para lá das Colunas de Hércules (IV, 195-96).
Após delinear este quadro geral, Heródoto conclui. Sublinha que os
seus conhecimentos se esgotaram - "São estes os Líbios em relação
aos quais podemos referir o nome" (IV, 197) - e apresenta uma apre-
ciação global das raças:
Algo mais posso ainda dizer acerca desta terra. Tanto quanto se sabe, é habitada por
quatro raças apenas: duas destas raças são autóctones e as restantes duas não.
Os autóctones são os Líbios e os Etíopes, uns habitam para norte e os outros para
sul da Líbia. Os Fenícios e os Gregos são forasteiros que se estabeleceram mais tarde
na região. (IV, 197].

A crônica de Plínio respeita normas distintas, prosseguindo do


ocidente para o oriente, especificamente desde a Mauritânia até às
regiões orientais mais remotas da Líbia; e desde o sul do Egipto até

L III. o Poder do Paradigma Grego 103


aos centros etíopes de Napata e Meroe. Os países, as regiões e os povos
apresentados por Plínio no seu mapa etnográfico podem ser divididos
em dois grupos principais: os não-marcados (com influências gregas e
romanas] e os marcados ou exóticos.
Não-marcados Marcados

Da Mauritânia ao rio Cebu, à colônia de Banasa e A região de Atlas: incolarum neminem inter-
à cidade de Salé (HA/, V, i, 1-5): existe uma série de diu cerni, silere omnia ["não se vislumbra ne-
cidades romanas - oppida - assim como aldeias nhum habitante, o silêncio impera"] (HN, V, i,
autônomas e acolhedoras. 6). Spatium ad eum immensum incertumque
["É uma região de vastas dimensões e inex-
plorada"] {HN, V, i, 7). Do Monte Atlas para
ocidente: território selvagem e florestas
densas {HN,V,\, 8-16).
A costa: sita oppidum ex adverso Malacae in His- A província de Tingitana, habitada por Mou-
pania situm, Syphacis regia, alterius iam Maure- ros, Massesilos, Getulos, Baniurae, Nesimi.
tania [A cidade real do Rei Sifax jaz defronte de Produz elefantes [HN, V, i, 17).
Málaga, em Espanha, e corresponde à segunda
Mauritânia"] (HN,V, i, 18).
Numídia (ou Metagonita): uma região de Nôma- O deserto, seguido da região dos Garaman-
d a s {vero nômades a permutandis pabulis, mapalia tes, para lá dos habitantes de Phasania e
sua, hoc est domos, HN, V, ii, 22). [O seu povo (é Fezão no Saara: excipiunt saltus repleti fer-
denominado de) Nômada devido ao seu hábito de raram multitudine, et introrsus elephanto-
mudar constantemente de pastagens, levando as rum solitudines ["Existem florestas repletas
suas mapalia, ou seja, as suas casas consigo.] Esta de uma multiplicidade de animais selvagens,
região não produz nada de extraordinário a não além de paradeiros isolados de elefantes"]
ser mármore e animais selvagens. (HN, V, iv, 26).
A África propriamente dita (Tunísia e Tripoli) A costa do deserto e os seus habitantes:
engloba também a região de Bizâncio com uma os Marmáridas [desde El Bareton a Sirte
fertilitatis eximiae, cum centesima fruge agricolis Maior), seguidos dos Acrauceles, Nasamões,
fenus reddente terra ["com uma fertilidade excep- Asbistas, Maças e Amantes que constroem
cional cujo solo rende aos agricultores o cêntu- casas de sal-gema no deserto onde vivem
p l o " ] ( H N , V, iii, 2 5 ) . Ad hunc finem África a fluvio {HN, V, v, 34).
Ampsaga popuius DXVI habet qui Romano pareant
império ["entre o rio Ampsago e esta fronteira,
África é composta por 516 povos que assumem
fidelidade a Roma"] [HN, V, iv, 29).
0 distrito de Cirenaica ou Pentapolitana regio [a A sudoeste dos Amantes, os habitantes de
região das cinco cidades] marcada pelas tradições cavernas, a Montanha Negra, seguida da
gregas (HN,V,v, 31). região dos Garamantes. Ad Garamantes iter
inexplicabile adhuc fuit ["Até ao momento,
não foi possível chegar à região dos Gara-
mantes" (WW,V,v,38).
Líbia Mareota confinada pelo Egipto: regio Mareo- Povos do interior (para sul): Getulos, Líbios
tis Libya appellatur Aegypto contermina ( H N , V, v, egípcios, Etíopes brancos, Perorses, etc. Para
39). leste: habitantes de cavernas, tribos etíopes,
egipãs, Sátiros, pemilongos, etc {HN, V, viii, 46).
Egipto: próxima Africae incolitur Aegyptus, intror- Etiópia: et de mensura eius varia prodidere
sus ad meridiem recedens donec a tergo praeten- ["A sua extensão foi tema de vários relatos"]
dantur Aethiopes ["0 Egipto é a região habitada (HN,V,xxxv, 183).
vizinha de África, estendendo-se para sul e para o usos e costumes dos Cireneus.
interior onde faz fronteira com os Etíopes na reta-
guarda"] (HN, V, ix, 48).

Quando lemos atentamente o relato de Plínio, a oposição não-marca-


dos/marcados faz sentido, na medida em que remete para a sua própria
avaliação dos povos e descrição das regiões em função da presença ou

ii8V.Y.MudimbeA Ideia de Africa


ausência romana. Um dos exemplos mais marcantes poderá residir
na sua observação sobre a Etiópia e a cidade de Napata: nec tamen
arma Romana ibi solitudinem fecerunt ["Não foi o exército romano
que transformou a região num deserto"] [HN, VI, xxxv, 182). Consta-
ta-se igualmente que o seu mapa geográfico especifica as colónias e
povoações romanas, descrevendo os grupos étnicos de acordo com a
sua fidelidade política: oposição ou autonomia face ao poder romano.
Neste caso, a geografia reproduz a expansão do Império Romano de
um modo bastante concreto: reinos e colónias conquistados da Mau-
ritânia (Traducta Julia, Julia Constantia, Zuli, Lixus, Babba, Valentia,
etc.); cidades romanizadas na costa do Mediterrâneo (Portus Magnus,
Oppidum Norum, Tipasa, Rusguniae, Rusucurium, Rusazus, Igilgili,
etc.); postos avançados nas margens do Saara (Augusta, Timici, Tiga-
vae, etc.); e centros romanos em Numídia, África e Cirenaica. Recorde-se
ainda as palavras de Plínio acerca da província africana:

Ad hunc finem Africa a fluvio Ampsaga populos DXVI habet qui Romano pareant
império; in his colonias sex, praeter iam dietas Uthinam, Thuburbi, oppida civium
Romanorum XV, ex quibus in mediterrâneo dicenda Absuritanum, Abutucense, etc.
[HN, V, iv, 29)

Entre o rio Ampsago e esta fronteira, África é composta por 516 povos que assumem
fidelidade a Roma. Estes incluem seis colónias Uthina e Thuburbi, além das anteri-
ormente mencionadas; 15 aldeias com cidadania romana, entre as quais importa
referir as de Absurae, Abutucum, etc., situadas no interior

À luz do contexto deste espaço "colonizado", que simbolicamente


equivale à região do lago Tritónis de Heródoto, identificamos uma
geografia bem-definida da monstruosidade, isto é, o espaço que com-
preende locais desconhecidos e os seus habitantes. No século V, Heró-
doto afirmou: "quanto à fertilidade, não me parece que a Líbia seja
importante a ponto de ser comparada com a Ásia e com a Europa, ex-
ceptuando a região que tem o mesmo nome que o seu rio: Cínipe" (IV,
198). Meio século depois, Plínio descreve a região com base nas trans-
formações ocasionadas pela presença romana: Cipião Emiliano, que
colocou uma frota de embarcações ao serviço do historiador Políbio
{HN, V, i, 9], Suetónio Paulino, o primeiro general romano a atravessar
a cordilheira do Atlas {HN, V, i, 14) e a expansão das colónias com os
primeiros imperadores. Ainda assim, a geografia da monstruosidade

L
de Plínio espelha fielmente a descrição de Heródoto, embora com
niaior minúcia. Á concepção geográfica global formulada por Heró-
doto em relação aos monstros - cinocéfalos e acéfalos (IV, 191) - que
habitam a região oriental da Líbia opõe-se o quadro curioso de Plínio

III. o Poder do Paradigma Grego 109


referente às "tribos" situadas numa região indefinida à volta do Nigri
fluvio eadem natura quae Nilo ["o rio Negro cuja natureza é igual à do
Nilo"] [HN, V, viii, 44): os povos de Atlas sem nome; os habitantes de
cavernas sem uma língua comum e que sobrevivem à base de carne
de cobras; os Garamantes desprovidos do costume do matrimônio; os
Blémies que são acéfalos e, tal como indicado por Heródoto, têm as bo-
cas e os olhos no peito; os Sátiros; e os pernilongos {HN, V, VIII, 45-46).
Quanto ao território etíope e às suas características, Plínio não é
mais específico que Heródoto: "O parecer mais verdadeiro pertence
àqueles que distinguem duas Etiópias para lá do deserto africano e,
sobretudo, a Homero, que estipula que os Etíopes estão divididos em
duas secções, a oriental e a ocidental" {HN, V, viii, 43).
O Livro III de Diodoro Sículo constitui um dos textos antigos mais
meticulosos no tratamento dos Etíopes. Esta obra apresenta, de um
modo ordenado, a história do país e alguns costumes aparentemente
de origem etíope. A história interliga-se, de facto, com a mitologia e
a autoridade dos escritores gregos. Segundo estas fontes, os Etíopes
foram "os primeiros de todos os humanos" [III, ii, 1) e receberam a
designação de autóctones. São os primeiros humanos a ser gerados
pela terra, os primeiros a aprender como honrar os deuses, "os seus
sacrifícios são os que mais agradam os céus" e "sempre gozaram de um
estado de liberdade e paz nas suas comunidades." Fundadores da cul-
tura humana, os Etíopes enviaram colonos para o Egipto numa altura
em que "o Egipto não era uma terra como actualmente, mas um mar"
[in, iii, 2): "[De acordo com os historiadores] os Egípcios são colonos
enviados pelos Etíopes e a colônia teve em Osíris o seu líder" [III, iii, 2).
Diodoro invocou a escrita sagrada [hierática), as ordens sacerdotais e
a crença na divindade dos reis como sinais da influência etíope sobre
os costumes egípcios [III, iii, 4-7).
A etnografia de Diodoro relativa aos costumes etíopes é bastante
selectiva, centrando-se na figura do rei e nos poderes absolutos dos
sacerdotes, posteriormente abolidos por Ergamenes, um soberano
que beneficiara de uma educação grega [III, v-vii). Diodoro explora so-
bretudo a região de Napata, a capital, a ilha vizinha de Meroe e a região
contígua ao Egipto, acrescentando que: "existem igualmente muitas
outras tribos etíopes" [III, viii, 8). Além disso, faz referência ao facto de
que "na sua maioria, mormente as que vivem junto ao rio, elas exibem
uma cor negra, um nariz achatado e cabelos lanosos" [III, viii, 2). A sua
afirmação geral é veemente e categórica: "quanto ao espírito, são to-
talmente bárbaras e reflectem a natureza de um animal selvagem nos
seus modos de vida, mais do que no seu temperamento", aditando que
"quando encaradas à luz dos nossos próprios usos e costumes, deno-
tam um contraste impressionante devido ao seu modo de falar [...] e ao
ii8 V.Y. Mudimbe A Ideia de Africa
facto de não cultivarem as práticas da vida civilizada, tal como existem
entre o resto da humanidade" (III, viii, 3], Segundo Diodoro, alguns
destes Etiopes alimentam-se dos frutos que colhem e outros de loto.
Existe também quem se alimente das raízes das canas, mas a maioria
sobrevive à base de carne, leite e queijo dos seus rebanhos. Poucos sa-
bem manusear um arco. No concernente à religião, os povos da região
situada acima de Meroe adoptam duas posições filosóficas distintas.
Uns acreditam na natureza eterna e imorredoura do "sol e da lua e do
universo no seu todo". Outros discordam e alguns simplesmente não
acreditam nos deuses (III, ix, 2).
O texto de Diodoro reflecte uma tensão entre a sua leitura mítica
da gênese dos Etiopes e a sua interpretação etnográfica dos hábitos e
costumes locais. Por um lado, temos o país abençoado que constitui o
berço do Homem e os "Etiopes perfeitos" estimados pelos deuses (III,
ii, 3-4) e, por outro, a descrição de um pais cujos usos e costumes dife-
rem largamente dos do resto da humanidade.
Em termos de conteúdo, não existe um consenso absoluto entre as
três narrativas analisadas até ao momento. Porém, é possível discernir
dois níveis de paralelismo notáveis. Em primeiro lugar, determinadas
marcas sociais como o matrimônio, a alimentação, a habitação, o ves-
tuário, os nomes ou a religião formam uma espécie de quadro de dife-
renças culturais que permite classificar as sociedades humanas. Em
segundo lugar, certos paradigmas referenciais funcionam como points
de repères: a região do lago Tritónis e a sua cultura grega para a narra-
tiva de Heródoto, a distribuição das povoações romanas para o relato
de Plínio e a intervenção de Ergamenes, que recebera uma educação
grega, na história da Etiópia para Diodoro Sículo. Relativamente ao
conteúdo em si, a introdução subtil das geografias das monstruosidades
ilustram uma procura pelo maravilhoso e um gosto pelo bizarro. Em
todo o caso, as minhas notas sobre estas narrativas alumiam a idéia de
que a oposição entre a civilidade grega ou romana e a barbárie mate-
rializa-se através da sua localização num mapa. Todo um conjunto de
oposições adjectivais, designadamente as sugeridas pelo paradigma
da luz (da civilização) contra o da escuridão (da barbárie), cria e apon-
ta para um desvio. O contraste qualifica tanto uma distância quanto
uma ligação difícil, veiculando amiúde uma postulação e uma estra-
tégia - ou seja, uma "manipulação do poder tornada viável a partir do
momento em que é possível isolar um sujeito com vontade e poder
[•••]" (De Certeau, 1984, pp. 35-36) - conforme se verifica na tensão
entre os skotioi e os "adultos". Em Creta, os jovens eram denomina-
dos de skotioi pois, em função da sua faixa etária, pertenciam ao mun-
do das mulheres e viviam "dentro" dos seus alojamentos, sendo por
isso considerados membros de um mundo "fechado", por oposição ao

L III. o Poder do Paradigma Grego 103


mundo "aberto" dos cidadãos adultos. O significado básico de skotios
é "escuridão" e a palavra ocorre com frequência em expressões que
qualificam indivíduos "no escuro", a viver "em segredo", em suma, "na
margem" da politeia ou da condição e dos direitos da cidadania plena.

O lugar das Oiorpata e a política do conhecimento


o mapa constitui um projecto científico dotado, ocasionalmente, de
aplicações políticas. De qualquer modo, corresponde ao outro lado,
à visão técnica das percepções subjectivas. Totaliza o conhecimento,
calcula as distâncias e organiza os lugares consoante modelos glo-
balizantes. É igualmente provido de uma história própria. O cosmos
de Anaximandro é um mapa. O seu cálculo da altura da Terra e a sua
descrição da configuração e posição do planeta estão reflectidos no
que comummente se designa de mapa jónio, o qual é completado e de-
senvolvido por Heródoto, de acordo com a concepção de um dos seus
antecessores, Hecateu de Mileto. Com base nas suas viagens e nos seus
conhecimentos, Heródoto escarneceu da ingenuidade dos geógrafos
antigos mas não do empreendimento em si ou da sua utilidade. A
sua geografia fixa os barbaroi e os agríoi nos seus devidos "lugares" e,
em concomitância, articula uma geografia cultural e metafórica [uma
combinação das muthoi ou histórias que ouvira) sobre a primeira. O
método utilizado para este segundo nível de narração consiste, por
vezes, na reservado mentis.

Martin de Vos, Allegory ofAfrica. Século XVI. Stedelijk Pretenkabinet


(Sala municipal de impressão], Antuérpia, Bélgica.

ii8V.Y.MudimbeA Ideia de Africa


Heródoto sublinha: "Não direi se esta ou aquela história é verdadei-
ra" (1, 5]. No respeitante às histórias egípcias, insiste: "estas histórias
destinam-se àqueles que acreditam em fábulas: quanto a mim, tenho
por regra [...] registar aquilo que me é transmitido tal como o ouvi"
(111,123).
Os termos barbaroi e agrioi integram o vocabulário geral da politeia
grega. O primeiro significa "forasteiro" e designa um "não-falante
do grego". O segundo significa "bárbaro, selvagem" e apresenta uma
ligação etimológica com agros, "campo". Nesse sentido, agros opõe-se
especificamente ao termo "casa" ou oikos, "um local de habitação" e
símbolo dos laços familiares, o qual é utilizado numa acepção figura-
tiva para designar uma família, os bens domésticos, uma casa reinante.
Oikos significa ainda "cidade natal" e "pertença a uma comunidade"
(definida por uma tradição, cultura ou condição) significado esse
patente numa palavra da mesma família, oikumene, que indica a região
habitada dos Gregos, em contraste com os países bárbaros e, por
extensão, a totalidade do mundo habitado conhecido pelos Gregos. Em
resumo, na sua dicotomia face aos valores paradigmáticos e etnocên-
tricos de oikos [domus em latim), agros constitui o homólogo exacto
dos termos latinos/orest/cus e silvaticus (Benveniste, 1973, p. 257).
Com o intuito de reflectir sobre a complexidade da dialéctica en-
tre o interior e o exterior, o doméstico e o estrangeiro, o civilizado e
o selvagem, comecemos por analisar o termo Oiorpata de Heródoto.
É rara a sua ocorrência na literatura e parece ter sido introduzida no
grego pela acção de Heródoto. A palavra designa mulheres guerreiras,
conhecidas como Amazonas desde os tempos dos Gregos. O conceito
de Amazona corresponde, em bom rigor, a uma metonímia. A palavra
é composta pelo prefixo "a" que exprime privação e pelo substantivo
mazos (ou mastos] que significa "seio" definindo assim uma mutilação.
Conta a lenda que estas mulheres costumavam queimar um dos seios
de modo a não terem qualquer obstrução no manuseamento do arco
e do dardo. Amazonides é um epíteto atribuído à deusa Ártemis (por
exemplo, Pausânias, 4, 31, 8), a caçadora virgem e irmã de Apoio, cujo
célebre templo foi construído em Éfeso supostamente por Amazonas.
O termo Oiorpata também é uma imagem de origem cita, conforme
explica Heródoto:
Os Citas denominam as Amazonas de Oiorpata, palavra que, em grego, significa
"assassinas de homens", pois na língua cita, oior quer dizer 'homem' e pata 'matar'
[...] (IV, 110).

A história desenrola-se em três momentos principais. O primeiro


abarca o encontro e a batalha (IV, 110-11) com os Citas. O acordo de

L III. o Poder do Paradigma Grego 103


paz que se sucede (IV, 111) resulta de uma descoberta: os cadáveres
das Oiorpata no campo de batalha revelam o seu género e os Citas to-
mam conhecimento do facto de os seus inimigos serem mulheres. Por
fim, uma divisão do lugar (IV, 112-117) duplica uma especialização
dos espaços entre os Citas e as Oiorpata, as quais organizam uma so-
ciedade ginecocrática intolerante, na qual é "costume que nenhuma
moça se case antes de ter matado um inimigo" (IV, 117).
A fábula parece intensificar um modelo disciplinar silencioso. Efec-
tivamente, a ordem grega está dotada de uma economia civil com di-
reitos e deveres bem definidos. A politeia inculca-se como um sistema
normativo onde as práticas sociais são determinadas por procedimen-
tos tradicionais e jurídicos. A separação entre os géneros (no ensino,
na iniciação, nas responsabilidades) pode ser um elemento-chave para
a compreensão da economia global.
Baseando-se sobretudo nos elementos da tradição mítica, )ean-Pierre Vernant pro-
cedeu à análise de diferentes festivais religiosos e resumiu as suas constatações do
seguinte modo: "Se, para os rapazes, os rituais de mudança de condição significam
a transição para o estatuto de guerreiro, para as raparigas a eles associadas nesses
mesmos rituais e amiúde sujeitas a um período de isolamento, as provas iniciáticas
constituem uma preparação para a união sexual no matrimónio. Mais uma vez, a
associação, que também se traduz numa oposição, entre guerra e casamento é
inequívoca. O casamento é para a rapariga o que a guerra é para o rapaz: ambos assi-
nalam a concretização das suas respectivas naturezas, ao eliminar um estado em que
ainda preservam determinadas características do outro." (Vidal-Naquet, in Gordon,
1982, p. 174; minha ênfase).

As Oiorpata desestabilizam esta economia não por matarem os ho-


mens, mas simplesmente por existirem. Encontram a sua realização
humana na autonomia política e em expedições bélicas contra os seus
inimigos. Como tal, negam o paradigma grego da condição de uma
"mulher boa" que, segundo a lei de 451 a.C. promulgada por Péricles,
deveria ser uma filha respeitável de um cidadão e tornar-se mãe de ci-
dadãos. Com efeito, as mulheres desempenhavam funções importantes
em rituais civis de relevo, tais como o Arretophoria e as celebrações em
honra de Ártemis (Vidal-Naquet, in Gordon, 1982, p. 179). Podiam or-
ganizar-se numa politeia gunaikorí, inclusivamente na polis. Porém, a
regra de base parece residir na oposição entre oikos e polis. A primeira
representa o interior, o feminino, a condição e a possibilidade da con-
tinuidade da politeia; a última remete para o exterior, o masculino, o
paradigma da preservação (e, por conseguinte, do regime da guerra)
da politeia.

ii8 V.Y. Mudimbe A Ideia de Africa


A batalha entre os Citas e as Oiorpata reforça esta tensão. Heródoto
era um homem culto e conhecia as histórias das Amazonas em situa-
ção de guerra (contra Belerofonte, Hércules, Teseu). Tinha em mente
o confronto entre Aquiles e Pentesileia, a rainha das Amazonas, hu-
milhada e morta por Aquiles que descobriu, simultaneamente, sentir
admiração e amor por uma inimiga tão corajosa. A descrição cuidada
de Heródoto da batalha cita reproduz um problema grego. Somente
os homens vão para a guerra. Nesse caso, qual o destino das mulheres
que violam tal lei e, por conseguinte, perturbam a ordem da polis?
Analisemos aprofundadamente a descrição do acontecimento apre-
sentado por Heródoto. São retratados os contextos em que as práticas
quotidianas das Oiorpata se tornam objectos de curiosidade e formam
progressivamente um inventário que se traduz numa economia inver-
tida da polis grega. As Oiorpata são capturadas em terra e feitas pri-
sioneiras numa embarcação. Revoltam-se, matam a tripulação e, dado
não terem conhecimentos de navegação, abandonam o navio ã mercê
das ondas e dos ventos até que este atraca na região dos Citas livres.
A descrição veicula uma série de qualificações. As Oiorpata começam
por estar situadas num barco e caracterizam-se pela carência de uma
techne básica. Chegam à região que cerca o lago Meótis e provocam
espanto entre os Citas devido ã estranheza da sua língua, do seu trajo,
da sua raça e, sobretudo, dos seus costumes. Após decidirem rumar
a uma região inabitada, as Oiorpata reúnem uma manada de cavalos,
montam-nos e pilham o território. Os Citas reagem pelo que a guerra
estala. A seguir à batalha, a narrativa de Heródoto organiza a vida e os
costumes das Oiorpata nas margens do território e dos modos de vida
culturais dos Citas. Os anciãos ordenam os jovens citas que seduzam
as Oiorpata numa missão que visa integrar estas "mulheres estranhas"
na linhagem dos Citas; pois "foi esta a decisão tomada pelos Citas com
o objectivo de terem filhos delas" (IV, 111). O plano parece chegar a
bom porto. Os jovens juntam-se às Amazonas no seu acampamento
com "nada mais do que as armas e os cavalos, e vivem como as mulheres
através da caça e do saque", o que propicia a criação de laços amisto-
sos. As mulheres aceitam os homens e incluem-nos nas suas vidas e na
sua ordem social. Passam a viver juntos, sendo que "cada homem tinha
por mulher aquela com quem tivera relações primeiro" (IV, 114).
Esta narração é extremamente interessante, no sentido em que for-
mula uma afirmação acerca de uma ordem cultural sob o cenário de
uma história. Recapitulemos as implicações simbólicas do seu desen-
volvimento. Em primeiro lugar, o leitor depara-se com uma inversão
sexual. Obedecendo à vontade dos anciãos, os jovens armam tendas
nas imediações do território das Amazonas e imitam todas as suas

II). O Poder do Paradigma Grego


acções escrupulosamente. "Se as mulheres os perseguissem, deveriam
fugir sem combate; e quando elas desistissem, deveriam regressar e
estabelecer-se junto delas" (IV, 111]. Os jovens são instados a "femi-
nizar-se" ao passo que as Amazonas simbolizam o que na polis consti-
tui uma "masculinidade" normativa e, neste caso, um thelukrates ou
poder e domínio das mulheres (Vidal-Naquet, 1986, p. 209). A tensão
intensifica outras dicotomias: os jovens {neotatoí) encontram-se numa
posição estruturalmente análoga à dos skotioi (jovens não-adultos vis-
tos como ainda estando na escuridão), os azostoi ("os desprovidos
de armas") ou os egdysmenoi ("os desprovidos de roupa") de Dreros
(Vidal-Naquet, 1986, pp. 116-17). Por conseguinte, a narrativa define
um paradigma. Conforme observou Vidal-Naquet a respeito do festival
de Festo, conhecido como Ekdysia ("tirar a roupa"), "nesta situação, a
etiologia corresponde a uma história sobre uma rapariga que se tor-
nou um rapaz - estabelecendo uma ligação entre dois conjuntos rapaz:
rapariga e nu: armado" (Vidal-Naquet, 1986, p. 117).
No plano simbólico, os jovens citas tornam-se raparigas e sofrem a
inversão de uma "lei" nas margens do território das Oiorpata. Nesta
fase, o matrimônio tem para eles (enquanto objectivo) o mesmo sig-
nificado da guerra para as Oiorpata (enquanto vocação). Depois de as
mulheres os testarem e concluírem que não representam qualquer
perigo, a sua inclusão na vida das Amazonas funciona como uma con-
sumação do ritual de mudança de condição. Os jovens passam a estar
plenamente integrados numa economia social marcada pela inversão
da ordem do modelo ateniense da politeia. Com efeito, os neotatoi pon-
deram reverter novamente essa ordem, convidando as suas parceiras
a juntarem-se à tradição cita e, portanto, a evoluírem. "Tratemos de
voltar ao nosso povo para permanecermos com ele; e as nossas mulheres
serão vocês e nenhumas outras" (IV, 114). As Oiorpata recusam a
proposta, invocando as diferenças culturais existentes entre elas e as
mulheres citas: "Nós manejamos o arco, lançamos o dardo, montamos
a cavalo, mas não aprendemos as tarefas das mulheres; e as mulheres
do vosso povo não fazem nada disto que enumerámos, antes se ocu-
pam de trabalhos femininos sem saírem dos carros, nem para irem à
caça nem para qualquer outro fim" (IV, 114).

ii8V.Y.MudimbeA Ideia de Africa


JllÁ
V

Mémnon com um homem negro. Vaso grego, século VI a.C. Direitos reservados
do Museu Britânico, Londres.

A distinção não remete para características psicológicas, mas antes


para traços culturais que separam dois modos de vida diferentes.
Simultaneamente, as Oiorpata estabelecem uma divisão radical entre
duas comunidades femininas: "Portanto, não seria possível chegarmos
a um entendimento". Verifica-se a rejeição de uma "civilização" nas
suas práticas sociais e culturais. As Oiorpata aceitam ser esposas dos
jovens e apresentam uma proposta: "se querem ser dignos do título de
homens [dikaioi), devem ir ao encontro das vossas famílias, tomar pos-
se dos bens que vos cabem e depois regressar, para vivermos a nossa
vida à parte." Os jovens concordam. Segue-se outro pedido: "Mas dado
que acham bem manter-nos por mulheres, acompanhem-nos nesta
decisão: vamos, partamos desta terra, atravessemos o rio Tánais e pas-
semos a morar do outro lado" (IV, 115]. E juntos fazem caminho em
direcção a nascente durante três dias e outros três no sentido norte.

L III. o Poder do Paradigma Grego 103


Mémnon com duas Amazonas. Vaso grego, século VI a.C. À direita: pormenor
Direitos reservados do Museu Britânico, Londres.

A recusa da "civilização" está agora completa. Os homens subme-


teram-se ao domínio das mulheres. Do ponto de vista aristotélico, esta
situação teria como correspondente a obediência do senhor ao seu es-
cravo ou a subjugação da alma ao corpo, que, segundo Heródoto, é ilus-
trada por Argos após a sua derrota em Esparta (IV, 77,83). Os neotatoi
citas só são considerados dikaioi (homens) pelas mulheres e no seio
de um thelukrates. Trata-se do terror supremo para o homem, ou seja,
- recorrendo ao conceito de Lacan - o desaparecimento [aphanisis]
de uma diferença que constitui igualmente um "direito para" um ou
outro, mas não para ambos [como representado no vel (ou) utilizado
em lógica simbólica]. Para utilizar as categorias de Aristóteles, serão
mulheres ou homens, rectos ou curvos, quadrados ou oblongos?
Em todo o caso, aquilo que esta nova entidade sociocultural constitui
é, concomitantemente, inacreditável e incrível. O lugar das Oiorpata
nas fronteiras do território cita deixa de existir enquanto local geográ-
fico e arrasta-se para o interior da floresta, incorporando o verdadeiro
agros ou uma zona de monstruosidade paradigmática. O facto de as
Oiorpata se terem fixado nas margens do território dos Citas já se as-
sume como uma marca. Para os Gregos, os Citas viviam nos limites
do espaço humano. Eram quase selvagens e, nesse sentido, podiam
conviver com canibais e vegetarianos, categorias monstruosas que,
no fundo, são idênticas. "O vegetariano não é menos inumano que o
canibal" (Vidal-Naquet, in Gordon, 1982, p. 87). Como tal, havia lugar
para "assassinas de homens" e uma ginecocracia escondida algures no

ii8 V.Y. Mudimbe A Ideia de Africa


agros, a três dias de caminho em direcção a nascente e outros três no
sentido norte a partir do rio Tánais.
Além disso, é oportuno subhnhar que, no início da história, a em-
barcação assinala uma primeira ruptura em relação ao lugar grego.
A ligação é expungida com a morte da tripulação e a incapacidade das
Oiorpata em substituí-la como mestres da techne marítima. No lugar
cita, as Oiorpata são reveladas como mulheres (e enquanto mulheres,
tornam-se objectos de um desejo colectivo para uma continuidade
étnica). Porém, é precisamente neste momento que elas asseveram a
sua diferença radical e optam por conservar o seu próprio desígnio,
mudando-se para fora das fronteiras do território cita. Por fim, se o
propósito da história consiste em retratar as Oiorpata como delin-
quentes culturais que vivem nas margens absolutas da oikoumene, há
que ressalvar o seguinte aspecto: "a língua das mulheres, os homens
não conseguiam aprendê-la, mas as mulheres, pelo contrário, perce-
beram a dos maridos" (IV, 114).

Os bárbaros, as mulheres e a cidade


A nível da estrutura, a história, no seu todo, pode ser entendida
como a antítese do relato de Diodoro Sículo no século I. As suas Ama-
zonas estão sediadas em África (III, 52,4) e, a partir das informações
facultadas, temos conhecimento de que a narrativa contempla um
Dioniso, um africano (cc 66.4-73.8), além do estilo paradigmático
grego. Neste contexto, África aparece como o berço das Amazonas:
"Na Líbia, existiam várias raças de mulheres belicosas e admiradas
pelo seu vigor másculo" (III, 52,4). "Praticam as artes da guerra", são
soldados no exército e "uniam-se aos homens para efeitos de procri-
ação". Elas estão no poder: são governantes da cidade, magistradas
e políticos responsáveis pelo Estado. Quanto aos homens, Diodoro
frisa que são:
como as nossas mulheres casadas, passam os dias em casa, executando as ordens
que lhes foram dadas pelas esposas; não participam em nenhuma campanha militar
ou cargo público nem exercem a liberdade de expressão. (Ill, 53,1-2).

Vivem na região do lago Tritónis (III, 53, 4) cuja localização, no en-


tender de Diodoro, também "está próxima da Etiópia". Se acreditarmos
na visão do historiador, estas Amazonas são "uma raça superior em
valentia e anseiam pela guerra" (III, 53, 6). Segundo este relato, pare-
cem "dominar a maior parte do Norte de África sob a liderança da sua

L III. o Poder do Paradigma Grego 103


mítica Rainha-General, Mirina - que celebrara um acordo com Hórus,
Rei do Egipto e filho de ísis" (III, 55, 4) - antes de ser aniquilada por
Hércules. De acordo com Diodoro, assiste-se igualmente ao desapare-
cimento do espaço originário e da raça das Amazonas (III, 55, 3).
A narrativa de Diodoro assume-se como um caso notável, pois inverte
o relato de Heródoto. Por exemplo, Diodoro afirma que as suas Ama-
zonas líbias "surgiram muito antes no tempo e concretizaram feitos
admiráveis" (III, 52,1]. Também ao contrário das Oiorpata de Heródo-
to, que optam por se recolher na floresta acompanhadas dos homens
que adquiriram recentemente, as conquistas de Mirina estendem-se
até aos confins do espaço "civilizado", na seqüência da subjugação da
maior parte do Norte de África. Por meio de amizades, diplomacia ou
guerra, ela domina o Egipto, a Arábia, a Síria, a Cilícia, a Frígia, etc.;
em seguida, ataca e coloniza Lesbos (e funda Mitilene em honra da
sua irmã guerreira com o mesmo nome), retirando-se, por fim e tal
como era seu desejo, em Cibele ou "a Mãe dos Deuses", atribuindo à
ilha o nome de Samotrácia, termo que significa "ilha sagrada" em grego
(III, 55, 7-9). Em síntese, as Amazonas de Heródoto são fugitivas que
abandonam a cultura grega em prol do primitivismo enquanto Mirina
e o seu povo, na história de Diodoro, partem das margens da cultura
grega (o lago Tritónis) com o objectivo de conquistar e civilizar a ilha
da "Mãe dos Deuses", a Samotrácia.
Conforme descreve Heródoto, o modelo das mulheres "primitivas", as
quais se situam fora da oikoumene e exibem uma relação íntima com a
natureza, está igualmente ilustrado na exposição de Estrabão referente às
mulheres samnitas. Encontram-se isoladas numa pequena ilha a nor-
deste do rio Líger que separa a Aquitânia da Bélgica. No continente, os
seus vizinhos imediatos são os Celtas que costumavam sacrificar hu-
manos e realizar outras monstruosidades, entretanto abolidas pelos
Romanos (4,4, 5). De acordo com Estrabão, citando Posídon, "nenhum
homem pisa o solo da ilha [das mulheres], embora as mulheres saiam
de lá num barco para ter relações com homens e depois regressem
novamente" (4, 4, 6). Ao invés das Oiorpata, totalmente donas do seu
destino, as mulheres samnitas "são possuídas por Dioniso e tornam
este deus benevolente, apaziguando-o com iniciações místicas e outras
actividades sagradas."
O padrão destas histórias é extraordinário, na medida em que apre-
senta a topologia de um itinerário da delinqüência e metaforiza-o.
Desde o mar Mediterrâneo até ao território dos Citas, passando pelas
áreas incultas onde as Oiorpata organizam a sua própria ordem, o
itinerário delineia um trajecto de partida que se assume como um
questionamento da polis e uma rejeição da sua história e tradição.

ii8 V.Y. Mudimbe A Ideia de Africa


Inversamente, as mulheres samnitas são delinquentes culturais desde
o início da história. Revelam a sua delinquência ao divulgá-la junto dos
habitantes de um local pacificado e espacializado pelos Romanos: elas
necessitam dos homens, mas não da sua politeia. A distância física
existente entre elas e o continente é, em si, um factor objectivo de auto-
-exclusão de um mapa "civilizado". O exército feminino líbio de Mirina,
pelo contrário, traça um mapa e impõe uma nova ordem cultural.
Na sua descrição dos montanhescos que vivem no Norte da Ibéria
(Galaicos, Astures, Cântabros, etc.), Estrabão estabelece uma associa-
ção entre a distância (em relação ao centro romano) e as características
psicológicas dos marginais, sublinhando que a melhoria dos bárbaros
deveu-se apenas ao domínio colonial romano da distância geográfica,
dando-lhes a conhecer a "sociabilidade" e a "humanidade":
A intratabilidade e a selvajaria que caracterizam estes povos não emanaram apenas
da sua participação em guerras, mas também do seu afastamento; devido à extensão
da viagem até às suas terras, seja por mar ou terra, e à dificuldade em estabelecer
comunicação, perderam o instinto da sociabilidade e da humanidade. Porém, este
sentimento de intratabilidade e selvajaria diminuiu no entrementes graças à paz e à
convivência com os Romanos. (3, 3, 8).

Esta observação aplicar-se-ia afortiori aos povos de regiões situadas


para lá dos territórios sob o jugo de bárbaros identificados. O geógrafo
reúne-os num mapa procedendo à sua denominação ou localização
espacial em função de uma cidade conhecida. Heródoto escreve recor-
rentemente: "São estes os povos cujos nomes podemos referir".
Como já vimos, a geografia de Plínio consiste numa lista topológica
de nomes que ele próprio qualifica tendo como parâmetro a distân-
cia em relação às cidades romanas, oppida, ou colónias. Plínio define
explicitamente uma correlação entre distância e selvajaria. A título
exemplificativo, acerca da cidade de Meroe e a ilha de Tados em Áfri-
ca - uma região que fora governada por diversas mulheres {regnare
feminam Candacem, quod nomen multis iam annis ad reginas transis-
set [HN, VI, XXXV, 186) - Plínio reporta a existência da raça de Etéria
(que, posteriormente, adquiriu a designação de Atalanta em textos
greco-romanos e, por fim, de Étiops), acrescentando o seguinte: "não
e de todo surpreendente o facto de os distritos mais periféricos desta
região produzirem monstruosidades humanas e animais" [animalium
hominumque monstificas effigies...] (HN, VI, xxxv, 187). Neste caso, o

L
clima é referido como uma explicação suplementar. Todavia, a distân-
cia geográfica constituiu, desde sempre, o critério de medição e classi-
ficação. Plínio começa por tecer o seguinte enunciado sobre os nomes

o Poder do Paradigma Grego


das comunidades que vivem na Líbia: "os nomes dos seus povos e das
suas cidades são absolutamente impossíveis de pronunciar [nomina
vel maxime sunt ínneffabilia], excepto para os nativos" (HN, V, i, 1). É
possível encontrar uma afirmação semelhante na descrição de Estra-
bão acerca dos grupos étnicos que habitam a Cantábria e dos Vascões
na Europa: "Eximo-me de facultar muitos nomes, esquivando-me à
incómoda tarefa de os escrever - a menos que seja agradável para
alguém ouvir 'Pleutaurans', 'Bardyetans', 'Allotrigans', e outros nomes
ainda menos aprazíveis e importantes do que estes" (3, 3, 7).
Por conseguinte, torna-se mais claro que os dotes linguísticos das
Oiorpata descritos por Heródoto revestem-se de ambiguidade. Com
efeito, elas tiveram de aprender a língua ou, pelo menos, de se fazer
entender num contexto sociocultural mais alargado (grego) ou mais
reduzido (cita). Os neotatoi citas, por seu turno, não se depararam com
tal necessidade. Foram efectivamente classificados de bárbaros a viver
nas margens extremas da oikoumene, mas ainda eram seres humanos,
não obstante a estranheza da sua cultura e dos seus costumes. Para
que as Oiorpata não fossem rejeitadas no primitivismo absoluto da na-
tureza e figurassem num mapa da humanidade, tal como concebido
pelo paradigma grego, houve, pelo menos, um preço a pagar: uma acul-
turação linguística.
Na prática, a aculturação consistia numa conversão radical ao modelo
de vida grego ou romano e implicava, por exemplo, abandonar a língua
original, tornar-se membro da politeia grega ou romana e, se possível,
adquirir os direitos de cidadania na polis ou urbs. Somente uma con-
versão desta natureza conferiria as virtudes da docilidade [emeron] e
da civilidade [politikon) aos indivíduos.
No concernente aos Cântabros, Estrabão escreve que, na sua cultura,
"existem [...] aspectos que, apesar de não serem uma marca civiliza-
cional, talvez não sejam bárbaros." Um deles corresponde ao "costume
vigente entre os Cântabros segundo o qual os maridos concedem dotes
às suas mulheres, as filhas são constituídas herdeiras e os irmãos são
casados pelas irmãs" (3, 4, 18). Trata-se de um exemplo manifesto de
um thelukrates que, na acepção de Estrabão, não é uma marca "civili-
zacional" (3,4,18).
Na medida em que se assume como um problema, o domínio das
mulheres só poderá existir nas margens da politikon grega ou romana,
à semelhança de uma cidade governada por Douloi (escravos). Basta
pensar na célebre afirmação de Aristóteles incluída na Poética: "Uma
mulher pode ser boa bem como o escravo, embora aquela seja talvez
um ser inferior e este um ser inteiramente inútil" (15, 1454a, 20-22).
Pierre Vidal-Naquet desenvolve esta tese e demonstra magistralmente

i
A Ideia de Africa
dois pontos: em primeiro lugar, apesar das diferenças que estão en-
volvidas, "a cidade grega, na sua forma clássica, caracterizava-se por
uma dupla exclusão: a exclusão das mulheres, o que a tornava um
'clube de homens'; e a exclusão dos escravos, o que a tornava um 'clube
de cidadãos'. (Podemos até considerá-la uma exclusão tripartida em
virtude da ostracização dos estrangeiros; contudo, não restam dúvidas
de que o tratamento dos escravos corresponde ao tratamento dos es-
trangeiros levado ao extremo.)" (In Gordon, 1982, p. 188). Em segundo
lugar, "independentemente de nos referirmos às Amazonas ou aos Lí-
cios, é a polis grega, tal clube de homens, que é objecto de definição em
termos do seu oposto por parte dos seus historiadores e 'etnógrafos'
[...]. A afirmação de Heródoto segundo a qual as instituições do Egipto
são exactamente contrárias às dos Gregos (2, 35) afigura-se um exem-
plo magnífico desta técnica de inversão ou reversão" (In Gordon, 1982,
p. 190).
A ginecocracia das Oiorpata e a mítica dulocracia de uma cidade de
escravos (sempre localizada fora das fronteiras da Grécia - ver Vidal-
Naquet in Gordon, 1982, p. 189) são inversões estruturais do paradig-
ma grego relativo à civilização e organização do poder. A base desta
filosofia pode ser sintetizada em duas fórmulas: as mulheres estão
para os homens como os escravos estão para os cidadãos; uma gine-
cocracia ou dulocracia está para a polis/urbs como a barbárie ou a sel-
vajaria está para a politikon.
Segundo Simónides, a politikon é um locus de conhecimento, conferindo
ao verbo dokein um poder superior ao do termo religioso e tradicional,
aletheia. O homem é formado pela cidade (que o educa, cria e reali-
za). Simónides escreve: TTOAIO" 'avôpa ô l ô a c T K e l . Conforme observado
por M. Detienne, "dokein corresponde, de facto, a um termo técnico do
vocabulário político. Trata-se de um verbo exemplar de decisão políti-
ca" (1967, p. 117). Simónides foi o primeiro poeta a celebrar os feitos
dos cidadãos que se sacrificaram em nome da cidade ou a honraram
através das suas acções. Assistiu-se, na época, ao despontar de um
novo conceito relativo ao "homem saudável", ilustrado pelos heróis na-
cionais, os atletas e, claro, os corajosos colonos que levaram a cabo a
expansão da politikon e dos seus valores em territórios estrangeiros. A
partir do século V, uma concepção democrática e acentuadamente secu-
lar procedeu à definição de normas intelectuais, entrelaçando o termo
dokein com o seu parente etimológico, doxa, o único modo de conhecer
as coisas, que, segundo Platão e Aristóteles, sofreu uma adaptação a fim
de acomodar um mundo contingente e ambíguo (ver Aubenque 1963;
Detienne 1967). O campo semântico da politikon estabelece o espaço
prático da verdade através de conceitos como politikos (o que é próprio

II). O Poder do Paradigma Grego


de um cidadão], politikos (o modo de agir de um cidadão], politika (os
assuntos civis] e politai (os grupos sociais organizados de cidadãos
integrados numa comunidade].
As narrativas consagradas às margens e à exterioridade do clube dos
politai reflectem diferenças avaliadas em função de um cânone central.
Segundo M. I. Finley:
A história daquilo que se designa, convencionalmente, de "colonização" grega [cor-
responde], na realidade, à história da expansão grega, entre cerca de 1000 e 550
a.C., para a Ásia Menor e as regiões costeiras à volta do Mar Negro a oriente, assim
como para o sul da Itália, a Sicília e os territórios do Mediterrâneo a ocidente.
Dispersa por uma plêiade de escritores, desde Heródoto a Eusébio, a tradição grega
é composta por um quadro cronológico (cujas datas são bastante rigorosas na fase
final], uma propaganda anacrônica em nome do oráculo de Delfos, e anedotas.
Nessa base, não foi possível qualquer tipo de história da colonização. (Finley, 1987,
p. 95, minha ênfase]

Abordemos com brevidade uma interpretação antiga relativamente


à análise da produção do conhecimento sobre as margens da politikon.
Na sua Geographia, Estrabão alude a três processos principais, a res-
peito de Espanha. O primeiro consiste no método de Homero, pau-
tado pela manipulação de lendas e factos históricos (por exemplo, a
expedição de Hércules e dos Fenícios na Ibéria] e pela sua transforma-
ção numa estrutura mítica, como é o caso da Ilíada (3, 2,13]. Homero
transitou "do domínio dos factos históricos para o domínio da arte
criativa e da invenção mítica com o qual os poetas estão sobejamente
familiarizados." O paladino da segunda prática é Heródoto, o relatador
(3, 2, 14]. Em último lugar, temos a prática romana orientada para a
expansão da sua própria civilitas (modo de vida, língua e direitos; por
exemplo, sobre os turdetanos, 3, 2,15].
Paralelamente a estas práticas concretas, Estrabão tece comentários
explícitos (3, 4, 19] sobre a credibilidade destes discursos culturais e
classifica o seu grau de pertinência. Em termos hierárquicos, os me-
nos credíveis ocupam os lugares dianteiros: os discursos "de todas as
nações bárbaras, longínquas e reduzidas em extensão ou divididas".
"Os seus relatos não são plausíveis nem numerosos." A distância rela-
tivamente ao patrono grego propicia relatos escassos e incertos. De
qualquer modo, segundo as palavras de Estrabão: "Quanto às nações
mais afastadas dos Gregos, a nossa ignorância é ainda maior, como é
evidente." Sucede-se uma segunda categoria de relatos e discursos, a
romana. Estrabão admite que os Romanos sabem documentar e frisa
a sua predilecção pelo autoconhecimento; porém, no cômputo geral,

ii8V.Y.MudimbeA Ideia de Africa


desvaloriza o seu projecto arquivístico, dado tratar-se de uma fraca
imitação da prática grega. Estrabão constata que: "Os historiadores
romanos imitam os Gregos, mas não levam essa imitação muito longe.
Por conseguinte, sempre que os Gregos deixam lacunas, todo esse
colmatar realizado pelo segundo grupo de escritores é insignificante -
sobretudo porque a maioria dos nomes célebres são gregos." O único
discurso credível e plausível seria então o grego - à luz da classificação
de Estrabão, só assim poderia ser. O geógrafo declara-o com bastante
beleza: "com efeito, estas informações abundam nos nossos ouvidos
[isto é, o conhecimento sobre regiões, migrações, divisões geográficas,
etc.] pela acção de muitos, mormente dos Gregos, que se tornaram nos
mais loquazes dos homens."
O nominável que circula nas margens de um conhecimento espacializado
parece espelhar o inominável da existência quotidiana. O desvio que
revela enquanto conhecimento acerca dos agrioi, dos barbaroi ou das
oiorpata já existe, sendo, ao mesmo tempo, explícito e negado nas
regiões onde determinados membros da cidade se encontram confina-
dos ou se vêem obrigados a retirar-se. O paradigma de Aristóteles em
matéria de matrimônio, que está para a rapariga como a guerra está
para o rapaz, duplica a servitude do doulos como uma antítese da liber-
dade do cidadão. No quadro desta racionalidade e do seu funciona-
mento, uma classificação geral do inominável e das monstruosidades
[a viver na escuridão que rodeia a polis) reflecte-se a si própria numa
série de transformações possíveis que se afiguram cômicas.
Aos olhos de Estrabão, "é possível considerar as expedições gregas
nas nações bárbaras como um resultado da repartição das últimas em
divisões e soberanias insignificantes, que, por força da sua auto-su-
ficiência, não estabeleciam qualquer contacto umas com as outras; por
conseguinte, viam-se impotentes perante os invasores vindos de fora"
(3, 4, 5). Li este excerto várias vezes de modo a certificar-me de que o
compreendi inteiramente, sabendo que, no século V, a cidade situada
ao longo do vale de Atenas ou Esparta era um estado autônomo. Não,
a afirmação está correcta e resume devidamente o significado de um
"lugar" enquanto esquema referencial que assombra uma tradição e o
seu conhecimento. Graças a estas articulações, um determinado espaço
- o grego - tornou-se um princípio global de organização do conhe-
cimento e das culturas. Até os meus processos de leitura parecem de-
pender da explicação dessa experiência que invadiu as nossas vidas
quotidianas. Os Gregos errantes, os Romanos conquistadores e, pos-
teriormente, Lafiteau no século XVIII, depararam-se com esta questão
de "uma ciência dos bárbaros", que não poderia incluir os Gregos como
uma categoria comparativa [Vidal-Naquet, 1986, p. 126 ff; Padgen,

L III. o Poder do Paradigma Grego 103


1982, pp. 198-209). A antropologia aplicada do presente século corro-
borou a análise de Estrabão, definindo o seu projecto como uma recu-
peração científica das políticas grega e romana. A propósito dos povos
que habitam na fronteira do Ródano, Estrabão fez o seguinte comen-
tário, que poderá servir de metáfora concludente da minha leitura:
"predomina o nome dos Cavares, o qual já é utilizado pelos povos para
designar todos os bárbaros dessa região do país - não, eles deixaram
de ser bárbaros; na sua maioria, foram transformados em Romanos,
tanto no seu discurso quanto no seu modo de viver, e alguns na sua
vida cívica também" (4, 2,12).
Eis o triunfo da politikon e da politeia numa acção cultural de con-
quista marcada pela conversão. Porém, não será igualmente uma
questão de medo face aos agrioi, às oiorpata e a outros monstros, ou
seja, o medo da diferença?

Black Athena
Por fim, gostaria de regressar a uma questão crucial: o título Black Athena.
Devo reconhecer que o sugeri inicialmente como um dos títulos possíveis mas,
após uma reflexão mais aprofundada, foi meu desejo alterá-lo. Porém, o meu
editor insistiu em mantê-lo, argumentando: "Os negros já não vendem.
As mulheres já não vendem. Mas as mulheres negras ainda vendem."
- M. Bernal, Arethusa, Outono de 1989, p. 32

Os volumes da obra Black Athena, com o subtítulo The Afroasiatic Roots


of Classical Civilization, da autoria de Martin Bernal, são um acontecimen-
to. O primeiro volume (1987) centra-se em "The Fabrication of Ancient
Greece 1785-1985" (A Fabricação da Grécia Antiga 1785-1985), ao
passo que o segundo volume (1991) incide sobre "The Archaeologi-
cal Documentary Evidence" (As Provas Documentais e Arqueológicas).
Outros serão trazidos a lume e, a não ser que se verifique uma pro-
funda mudança psicológica, corroborarão a tese desenvolvida até ao
momento por Bernal relativamente a duas matérias: as origens
da Grécia e as suas implicações. A teoria de Bernal assenta diligente-
mente na hipótese de dois modelos contraditórios sobre as origens
gregas: um modelo antigo e o seu oposto, o modelo ariano. O modelo
antigo "defendia que os primeiros habitantes da Grécia foram os Pelas-
gos e outras tribos primitivas, entretanto submetidos a um processo
civilizacional pelos colonos egípcios e fenícios que, durante a 'era
dos heróis', exerceram o seu domínio sobre diversas regiões do país"
(1991, p. 1). O segundo modelo, designado de ariano, surgiu no saber
europeu nos finais do século XVIII e advogava que "a civilização grega
126 V.Y. Mudimbe A Ideia de Africa

i
foi o produto da mistura de culturas, na seqüência de uma conquis-
ta encetada no norte por Gregos pertencentes aos primeiros povos
'pré-helénicos' e falantes das línguas indo-europeias" (1991, p. 1).
Trata-se de um projecto ambicioso. O volume de 1987 começa por
distinguir um modelo de um paradigma. Um modelo é artificial e ar-
bitrário, assumindo-se como "um esquema reduzido e simplificado de
uma realidade complexa" (1987, p. 3). Assim, com base nesta definição,
um modelo pode ser mais produtivo ou fiável do que outro "em termos
da sua capacidade de explicar as particularidades da 'realidade' que
é analisada" (1987, p. 3). Para Bernal, um paradigma corresponde a
"modelos ou padrões de pensamento generalizados que são aplicados
a vários aspectos, ou todos, da 'realidade' tal como é apreendida por
um indivíduo ou uma comunidade" (1987, p. 3]. Tendo esclarecido a
distinção entre modelo e paradigma, passemos ã tese central de
Bernal: a destituição do modelo ariano. Bernal escreve o seguinte:
Se a razão estiver do meu lado quando exorto à destituição do modelo ariano e à
sua substituição por um modelo antigo revisto, será necessário repensar as bases
fundamentais da "civilização ocidental" e ainda reconhecer a presença do racismo
e do 'chauvinismo continental' em toda a nossa historiografia, ou filosofia de es-
crever a história. O modelo antigo não apresentava lacunas "internas" de relevo ou
insuficiências na sua competência explicativa. Foi derrubado por motivos externos.
Considerar a Grécia o fruto da miscigenação de europeus nativos com africanos e
semitas colonizadores teria sido absolutamente impensável para os românticos e
racistas dos séculos XVIII e XIX, sobretudo porque a Grécia era entendida como o
epitome da Europa e a sua infância pura. Por conseguinte, urgiu derrubar o modelo
antigo e substituí-lo por outro mais aceitável. (1987, p. 2).

Os principais eixos comerciais no Deserto do Saara entre os séculos VIII e XVI


e as aventuras da incursão islâmica na bilad al-sudan ou "terra dos negros".
Desenho segundo (texto incompleto no original).

L III. o Poder do Paradigma Grego 103


Bernal promove um "modelo antigo revisto", segundo o qual "[o Egipto]
é essencialmente africano, embora os egípcios antigos [não partilhassem
semelhanças] com os africanos ocidentais de hoje" (1987, p. 437).
Acrescenta ainda que: "a minha convicção no êxito do modelo antigo
revisto num futuro relativamente próximo prende-se com um motivo
fulcral, ou seja, o desaparecimento [actual] de grande parte dos ali-
cerces políticos e intelectuais do modelo ariano no seio dos círculos
acadêmicos liberais" (1987, p. 437).
A própria dicotomia entre os modelos antigo e ariano pode causar
perplexidade. Após a leitura do primeiro volume para um dos meus
seminários, Denise McCoskey, uma estudante norte-americana licen-
ciada em Estudos Clássicos, rememorou a contestabilidade da tensão
entre os adjectivos "antigo" e "ariano", afirmando o seguinte, e com
razão:
Embora politicamente importante para Bernal, a oposição entre antigo e ariano
afigura-se desde logo problemática. É por de mais evidente que a estratégia uti-
lizada sugere que o saber no período "ariano" era racista e o saber dos antigos não.
Contudo, trata-se de um pressuposto melindroso, embora nunca abordado satisfa-
toriamente por Bernal [...] que, por vezes, se vê forçado a reconhecer que os autores
gregos omitiram as influências africanas/fenícias [...] e que os primeiros eruditos da
modernidade criticaram os princípios do modelo ariano durante a sua formulação.

Bernal anuncia o seu propósito com uma clareza admirável: redesco-


brir, se possível, uma "natureza" plausível de Atena através da exposição
do modelo antigo revisto. O primeiro volume constitui uma tentativa
de esclarecer a sua teoria em dez capítulos, os quais podem ser agru-
pados em função de três temas principais: a existência do modelo an-
tigo (capítulo 1,2 e 3], a ascensão e o triunfo do modelo ariano (capítu-
los 4, 5, 6 e 7], a concorrência entre os dois modelos, o anti-semitismo
e o racismo (capítulos 8, 9 e 10).
Nos três capítulos inaugurais, Bernal procura demonstrar com
concisão tanto o facto quanto os efeitos do modelo antigo, partindo
de uma perspectiva histórica que começa por tocar em dois pontos
complexos: em primeiro lugar, os Pelasgos ou Proto-gregos, que,
afirma Bernal, teriam sido, segundo Heródoto, "colonizados e em
certa medida assimilados culturalmente pelas invasões egípcias"
Bernal define-os como "povos falantes das línguas indo-europeias"
mas descura o problema suscitado pelo enunciado de Heródoto,
segundo o qual os Pelasgos eram uma "população não-falante do
grego". Em todo o caso, apoiando-se em provas surpreendentes,
Bernal reitera que os Egípcios ensinaram-nos o culto da adoração

8,6V.Y.MudimbeA Ideia de África


aos deuses. A sua miscigenação com os Helenos terá ocorrido algures
no segundo milênio a.C. A segunda questão prende-se com os Jónios
que viviam na costa da Anatólia, os quais foram assimilados aos Pelas-
gos por Heródoto. A conjugação de ambos os aspectos visa atestar o
facto de uma colonização (cultural) por parte dos Egípcios e dos Mé-
dio-orientais. Com efeito, Bernal centra as suas atenções nos papéis
civilizacionais de determinados forasteiros como Dánaos (do Egipto)
e Cadmo (de Sídon), sendo que a sua leitura aprofundada de As Supli-
cantes de Esquilo lhe oferece os instrumentos necessários para uma
argumentação sólida a favor de um modelo antigo.
Bernal alude igualmente a testemunhos antigos, recorrendo, por
exemplo, ao depoimento de Heródoto que "extraiu costumes gregos do
Oriente em geral e do Egipto em particular" (1987, p. 100). Conforme
afirmado por Heródoto:
Nunca aceitarei que as cerimônias do mesmo teor realizadas na Grécia e no Egipto
sejam uma mera coincidência - se assim fosse, os nossos ritos teriam sido mais
gregos no seu carácter e menos recentes na sua origem. Nem mesmo consentirei
que os egípcios adquiriram este costume ou qualquer outro da Grécia (Heródoto,
11, pp. 55-58).

O nacionalismo de Tucídides, que rejeita todas as marcas civilizacio-


nais dos forasteiros, designadamente de Dánaos, Cadmo ou Cécrops,
fornece elementos que sustentam a realidade do modelo antigo.
Isócrates admite-a. Platão, seu rival, que se dedicou ao estudo do Egip-
to por volta de 390 a.C., foi profundamente influenciado pela cultura
egípcia. Citado por Bernal, Karl Marx constata que: "A República de
Platão, na medida em que trata da divisão do trabalho, é simplesmente
uma idealização ateniense do sistema de castas egípcio" [in Bernal,
1987, p. 106). Aristóteles nutria um imenso fascínio pelo Egipto e o
poder dos seus sacerdotes, os inventores das mathematikai technai,
as artes matemáticas. Acresce ainda que os factores cristãos teste-
munharam a contrario o poder do modelo antigo. Seguem-se duas
metáforas: "Em 390 a.C., o templo de Serápis e a vasta biblioteca de
Alexandria que lhe estava adjacente foram destruídos por uma turba
de cristãos; vinte e cinco anos mais tarde, a bela e brilhante Hipácia,
filósofa e matemática, foi terrivelmente assassinada na mesma cidade
por um grupo de monges instigados por São Cirilo. Estes dois actos
assinalam o fim do paganismo egípcio e o início da idade das trevas
cristã" (1987, pp. 121-22). Porém, o impacto egípcio prolongou-se até
ao século XVIII. O Renascimento apreciava o Egipto, considerando-o
"a fonte original e criativa, e a Grécia a portadora tardia de uma quota

III. O Poder do Paradigma Grego 139


da sabedoria egípcia e oriental, pelo que a veracidade do modelo an-
tigo não provocou celeuma" (1987, p. 160). Nos séculos XVII e XVIII,
o hermetismo, o rosacrucianismo e a franco-maçonaria assinalaram
o triunfo do modelo antigo. Um dos exemplos mais flagrantes foi um
sacerdote católico romano, o jesuíta alemão, Athanasius Kircher, a an-
títese irônica de São Cirilo. Astrólogo, cabalista e hermetista, Kircher
acreditava que a cultura egípcia antiga era uma prisca theologia e uma
prisca sapientia. Do ponto de vista de Kircher, englobava tanto a anun-
ciação de Jesus (em Hermes Trismegistos) quanto a representação do
Cristianismo numa filosofia que viabilizou a racionalidade grega.
A expedição de 1798 de Napoleão ao Egipto monopolizou e, em si-
multâneo, desafiou esta herança. Os motivos que justificaram o em-
preendimento também forneceram explicações sobre o modo como o
modelo antigo teria de ser contestado. Segundo Bernal:
Não [...] restam dúvidas de que [Napoleão] esteve profundamente envolvido em
assuntos maçónicos, que vários membros dessa sociedade ocupavam os altos es-
calões hierárquicos do seu exército e que a maçonaria "floresceu exponencialmente"
durante o seu reinado. [...]
Sob diversos aspectos, os intrincados levantamentos, mapas e desenhos, a par do
saque de objectos e monumentos culturais destinados ao embelezamento de Fran-
ça, são um primeiro exemplo do modelo-padrão do estudo e da reificação assente
na investigação científica que se tornaria a insígnia do imperialismo europeu [...].
Por outro lado, abundavam ainda os vestígios da atitude antiga face ao Egipto e, entre
os membros científicos da Expedição, vigorava a crença de que poderiam aprender
factos essenciais sobre o mundo e a sua própria cultura através do Egipto, e não
apenas aspectos exóticos para completar o conhecimento - e o domínio - ocidental
de África e da Ásia. (1987, p. 184).

Na realidade, a expedição simboliza o fim do modelo antigo e, segundo


as análises de Bernal, o início do modelo ariano.
O argumento a favor do modelo antigo é complexo e denso. A
demonstração evidencia necessariamente um teor mais histórico do
que filológico, reunindo, com engenho, provas díspares mas concor-
dantes para a sua tese central. Contudo, certas questões sensíveis rela-
cionadas com a credibilidade dos textos utilizados são por vezes descu-
radas. A convicção depositada por Heródoto no modelo antigo pode
constituir um bom exemplo. Bernal relativiza as acusações de Plutarco
dirigidas a Heródoto por engrandecer os bárbaros, constantes em De
Herodoti Malignitate. É do nosso conhecimento que Heródoto visitou
o Egipto provavelmente depois de 460 a.C. e que as suas histórias so-
bre as Guerras Médicas satisfazem uma expectativa popular, ou seja.

11,6 V.Y. Mudimbe A Ideia de África


veiculam um saber aceitável e aceite pelo povo. No início dos seus rela-
tos, Heródoto faz uma advertência aos seus leitores: "Pela minha parte,
não direi se esta ou aquela história é verdadeira" (Heródoto, 1,5). Além
disso, na introdução da sua "etnografia" do Egipto, afirma que: "Assim
os Egípcios instituíram costumes e leis na sua maioria contrários aos
do resto da humanidade" (Heródoto, II, 35]. Com efeito, o historiador
afirma distinguir entre muthoi (lendas) e factos, estabelecendo uma
diferença entre aquilo que viu e aquilo que lhe foi contado. Todavia,
por uma questão de técnica, acrescenta as prosthekas, ou histórias,
cuja inclusão visa agradar o público, apesar de estarem relacionadas
com o tópico. No Livro IV, ao longo da sua descrição da geografia e
do povo que habita a ocidente do Lago Tritónis, Heródoto retrata um
museu de monstruosidades, desde cinocéfalos e acéfalos com olhos no
peito até humanos sem nome, que não sonham, etc. (IV, 197 e passim.)
Qual a credibilidade deste apresentador? Em detrimento de Plutarco
que o apelidou de "mestre das mentiras" podemos optar por acredi-
tar em Estrabão, que o descreve como um mero relatador, alguém que
katagrapsai (Estrabão, 3, 2,14), toma nota de tudo, inclusivamente de
histórias absurdas e tolas. Pela sua parte, Heródoto deixa o seguinte
aviso: "Não sei qual poderá ser a verdade, mas relato a história tal
como me foi contada." Nesse sentido, receio que Bernal não tenha
adoptado uma posição suficientemente crítica quanto às declarações
de Heródoto. Na sua putativa defesa a favor do historiador, Dionísio
de Halicarnasso, falecido a 7 a.C., na realidade censura-o ao eviden-
ciar que a) a sua principal preocupação residia na escolha de tópicos
susceptíveis de agradar o público (contrariamente a Tucidides que ou-
sou descrever a guerra tal como aconteceu); b) sabia vender as suas
histórias adoptando uma posição nacionalista no início - os bárbaros
estão errados e são culpados - e humilhando estes forasteiros no final
(contrariamente à perspectiva de Tucidides, impopular mas dotada de
um maior rigor científico, a qual começa com uma exposição do de-
clínio grego e remata com uma descrição da oposição mortífera que di-
vidiu os lacedemónios e os atenienses); e c) se dedicava a um interesse
popular: quem está certo e quem está errado, sabendo a priori
que lhe cabia provar que os bárbaros estavam errados. Tucidides, por
seu turno, adopta uma ordem cronológica na sua análise da Guerra do
Peloponeso a fim de elaborar uma ktema es aei, uma lição com base
nos acontecimentos.
Efectivamente, a credibilidade de Heródoto está associada a um
outro aspecto de maior relevância: a própria prática da história e
da sua filosofia. Tucidides (I, 22) e Políbio (por exemplo, IX, 2, 5) es-
tavam convencidos de que a história e o seu estudo deveriam ter um

II. o Poderdo ParadigmaGrego


propósito prático, uma opinião igualmente partilhada por Aristóteles.
Esta concepção de uma história factual e didáctica não corresponde à
história de Heródoto, nem certamente à de Isócrates e dos seus dis-
cípulos. Salvo certos casos excepcionais como Políbio e poucos outros,
os historiadores romanos do século I não obedeciam aos requisitos
de um Tucídides. Nesse sentido, a história almejava deleitar e incidia,
por regra, em acontecimentos entusiasmantes, exóticos e dramáticos,
amiúde inventados. Desde a prática de Heródoto no século V, passando
pelos objectivos de Tucídides, que consistiam em transmitir uma visão
clara do sucedido, até às narrativas do século I de Diodoro Sículo, a es-
crita da história foi permeável a um conjunto de "filosofias" mutáveis
que manipulam a informação abstraída dos textos antigos.
Apesar de esta perspectiva e a minha crítica não prejudicarem o argu-
mento de Bernal relativo ao modelo antigo, apontam, pelo menos, para
a vantagem de uma crítica histórica mais cuidadosa dos textos consulta-
dos. Não me refiro sequer às exigências actuais da história, mas antes à
consciência crítica já realizada pelos antigos, designadamente Tucídides
e Políbio. Este último, nas suas Histórias, pinta requisitos explícitos: a)
polypragmosyne, ou um empenhamento sólido na pesquisa individual,
b) empeiria, ou uma experiência empírica concreta, c) emphasis, ou o
processo de transmissão de um dado saber ao leitor.
O segundo tema da obra de Bernal consiste na rejeição do modelo
antigo e a promoção do modelo ariano. O sexto capítulo associa esta
reconversão à "helenomania" alemã, preconizada por Friedrich August
Wolf, Wilhelm von Humboldt, Hegel, Marx, A. H. L. Hereen e Barthold
Niebuhr, que participaram directa ou indirectamente na preparação
de um "ataque violento contra o modelo antigo" [1987, p. 294]. Por
conseguinte, segundo Bernal, o colapso do modelo antigo desenrola-se
no século XIX. O Oriente tornou-se a "infância" da humanidade e a Gré-
cia, um "milagre". Afigura-se irónico o facto de Karl Marx, o interna-
cionalista, constar entre as figuras que negaram o impacto egípcio so-
bre a Grécia clássica. O académico francês Petit-Radel e o alemão Karl
Otfried Müller viriam a fazer investidas sistemáticas contra o modelo
antigo:
Niebuhr legitimou a rejeição das fontes antigas e introduziu os modelos francês e
italiano da conquista do norte na Antiguidade. Müller removeu o modelo antigo da
Grécia. Porém, o trabalho dos linguistas é mais influente do que qualquer destes
dois porquanto associou o grego ao sânscrito e caracterizou o grego de língua
indo-europeia. Houve a necessidade de fornecer uma explicação histórica sobre
esta relação, a qual foi suprida pelo modelo das conquistas do norte da Ásia Central.
Assim, importa estabelecer uma distinção clara entre a queda do modelo antigo.

129V.Y.MudimbeAldeiade Africa
cuja explicação se cinge a factores externos - ou seja, pressões políticas e sociais - e
a ascensão do modelo ariano, dotado de uma componente interna significativa - por
outras palavras, os avanços do próprio saber desempenharam um papel importante
na evolução do novo modelo. (Bernal, 1987, p. 330).

De acordo com Bernal, esta revolução enquadra-se num determina-


do contexto: os lingüistas do Romantismo, o interesse sobre o berço da
filologia indo-europeia e a ascensão da índia, sobretudo o caso amoro-
so com o sânscrito. "Graças ao vínculo lingüístico, foi possível encarar a
língua e cultura indianas como elementos exóticos e familiares, se não
mesmo ancestrais. [...] Este laço - e o conhecimento de que, através da
tradição indiana, os brâmanes eram descendentes de conquistadores
'arianos' provenientes das terras altas da Ásia Central - ajustou-se na
perfeição à crença do Romantismo alemão segundo a qual a origem da
humanidade e da raça caucasiana são as montanhas da Ásia Central"
[Bernal, 1987, p. 229). Isto teria sido apenas uma marca e uma con-
seqüência das "hostilidades face ao Egipto", exemplificadas pelo casa-
mento do Cristianismo e da Grécia contra o Egipto "pagão" e ilustradas
por determinados eruditos, nomeadamente Erasmo que, no século
XVI, confundiu hermetismo e Egipto, e Lutero que se insurgiu contra
Roma recorrendo a um "Testamento Grego". Acresce ainda a ideia de
"progresso" com a qual a Europa se identifica, e o processo do pensa-
mento racial que, em última instância, conduzirá à tematização do
racismo de Gobineau. A Europa e, por extensão, a Grécia não poderiam
ter bebido as influências egípcias.
Esta hipótese leva-nos directamente ao terceiro tema da obra de Ber-
nal: o anti-semitismo e o racismo. De acordo com Bernal, estas atitudes
"desenvolveram-se após a década de 1650 [...] tendo sido fortemente
reforçadas pela crescente colonização da América do Norte, com as
suas políticas gêmeas de extermínio dos povos ameríndios e de es-
cravatura dos africanos" [1987, pp. 201-2). Na realidade, conceitos
como "inferioridade racial" e "inclinação servil" não eram novidade,
já haviam sido utilizados por Aristóteles. Foram apenas repensados
num contexto diferente. Locke, Hume, Kant e Hegel, entre vários
outros deram o seu contributo no sentido de os prover de uma expli-
cação. Bernal realça que, no seu cruzamento com o Romantismo, o
racismo pode ser entendido como uma das "forças subjacentes à des-
tituição do modelo antigo". A procura de raízes autênticas explicaria
em larga medida, entre 1740 e 1880, o nascimento da filologia "indo-
-europeia", "o caso amoroso com o sânscrito" e a "lingüística român-
tica" de Friedrich Schlegel. Ao longo das décadas de 1920 e 1930,
a influência semítica foi progressivamente rejeitada, assistindo-se

III. O Poder do Paradigma Grego 139


à imposição de um arianismo normativo, exemplificado por Gordon
Childe, John Myres ou S. A. Cook, para quem os semitas foram meros
"intermediários, copiando os modelos estrangeiros..., reformulando
aquilo que perfilham... e deixando a sua marca naquilo que transmitem
para o exterior" (Cook in Bernal, 1987, p. 390).
Pese embora a minha concordância com a análise de Bernal a respeito
do impacto do racismo (a par de outros factores como o Cristianismo,
o mito do progresso e o Romantismo) sobre a queda do modelo antigo,
professaria uma maior prudência no concernente à história do racismo,
diferenciando "pensamento racial" de "racismo". Esta distinção reve-
la-se fulcral e pode acarretar consequências significativas para o re-
lato de Bernal acerca da hostilidade contra o Egipto no século XVIII.
Deixemos de lado a questão complexa relativa à intelecção grega das
raças, sobretudo a de Aristóteles e a sua exploração por parte de teólo-
gos cristãos até inícios do século XVIII.
A França setecentista (a fim de contrastar com o relevo conferido
por Bernal à Alemanha) caracteriza-se por um paradigma curioso
que opõe uma "raça de aristocratas" a uma "nação de cidadãos". Este
é, de facto, promovido pelos aristocratas cuja objecção aos movimen-
tos democráticos se alicerça em razões óbvias. Ao invocar o direito
perpétuo de conquista dos francos, oriundos da Alemanha e respon-
sáveis pela colonização dos Gauleses romanizados e decadentes, o
Conde de Boulainvilliers estava a patentear um "pensamento racial".
Na véspera da Revolução Francesa, o Conde Dubuat-Nançay propôs
uma sociedade internacional de nobres, argumentando que a origem
verdadeira da civilização e cultura francesas era alemã. No final da
década de 1780, o Conde de Montlosier opôs-se aos Gauleses com um
desprezo de tal ordem (apelidando-os de mestiços de raças nascidas
da escravatura) que o revolucionário abade Sièyes sugeriu, no seu
panfleto de 1789 intitulado Qu'est-ce que le Tiers-État?, que o Conde
e os seus seguidores fossem recambiados "para as florestas alemãs de
onde eram originários." Arthur de Gobineau, também Conde, integra
esta tradição e assinala objectivamente a transição do "pensamento
racial" para o "racismo". Essai sur l'inégalité des races foi publicado em
1853 e contempla a ideia de que França engloba duas "raças" diferen-
tes, os Gauleses (antigos escravos romanos) e os descendentes de uma
aristocracia alemã. Partindo desta premissa, de Gobineau comenta e
desenvolve as suas teses principais: a) a existência de uma ligação
entre a degeneração de uma raça e a decadência de uma civilização;
b) em todas as miscigenações, a raça inferior torna-se dominante; c) a
raça dos "príncipes" ou "arianos" está biologicamente em risco de ex-
tinção. O Essai alega fornecer os fundamentos científicos do racismo.

131V.Y.MudimbeAldeiade Africa
A história do "pensamento racial" deve ser separada do "racismo"
científico, preconizado por figuras como De Gobineau em meados do
século XIX. Ironicamente, a história incrível do racismo teve lugar em
França quando os nobres prussianos, sob a liderança de Frederico
II, combateram a ascensão da sua própria burguesia nacional. No
século XVIII, o Romantismo alemão surgiu introduzindo conceitos
como "raízes originais", "laços familiares", "personalidade inata" e
"pureza da linhagem". Porém, conforme apontado por Hannah Arendt
em Imperialismo, a segunda parte da obra As Origens do Totalitarismo
(1968), o pensamento racial é exterior a esta nobreza, enquanto o
racismo faz parte de uma cultura e de uma civilização. Segundo este
ponto de vista, o nazismo não foi acidental.
O segundo volume de Bernal apresenta os fundamentos da tese
constante no primeiro volume através de uma produção de "provas
arqueológicas e documentais" que atende à causa do seu "modelo an-
tigo revisto". Sumariamente, Bernal advoga de um modo convincente
que o "espaço mediterrâneo" constituía um espaço aberto e, nesse sen-
tido, promove uma tese difusionista por oposição à tese isolacionista
desenvolvida pelo modelo ariano. Enquanto marcas e provas, Bernal
debruça-se, em primeiro lugar, sobre a interligação das narrativas mi-
tológicas do Egipto e da Beócia (por exemplo, Sémele e Alcmena, Zeus
e Ámon, Atena Itónia e Atena Alalcomeneia, Posídon e Set, a origem
de Hércules, etc.). Em segundo lugar, descreve a influência do Egipto
sobre a Beócia e o Peloponeso no terceiro milênio a.C., a par da relação
susceptível de ser estabelecida entre Creta e o Egipto durante o Mé-
dio Império Egípcio, entre 2100 e 1730 a.C. Em terceiro lugar, reflecte
sobre os escassos vestígios arqueológicos e documentais a respeito
das campanhas de Sesóstris e das expedições do seu filho em África e
na Ásia (tal como referidas na inscrição de Mit Rabina). Com efeito, a
"idéia da marcha triunfante de um africano 'civilizado' não só pelo su-
doeste asiático como também pelas regiões de uma Europa 'bárbara'"
(1991, p. 273) parece seduzir Bernal. O seu argumento de que alguns
Hicsos, que haviam conquistado Creta e possivelmente Tera, eram fa-
lantes semitas (enquanto os restantes eram falantes indo-arianos ou
indo-iranianos) é mais apodíctico, e a sua explicação sobre a existência
de contactos econômicos e culturais entre o Egipto, a Mesopotâmia e o
Egeu a partir do século XV a.C. revela-se absolutamente esclarecedora.
A Pax Aegyptiaca terá imperado no Mediterrâneo oriental durante o
reinado de Tutmósis III, após 1470 a.C.
O período de formação da cultura grega deve sofrer um recuo [...] até aos séculos
XVlll e XVll a.C., na era dos Hicsos - retratada nos murais de Tera. É muito provável

III. O Poder do Paradigma Grego 139


que a amálgama das influências indo-europeias locais, egípcias e levantinas, à qual
se atribui a designação de civilização grega, tenha ocorrido primeiro neste período
e de forma duradoura. (1991, p. 494}

Ao avaliar o seu projecto, e sobretudo o segundo volume, Bernal sa-


lienta dois aspectos dignos de nota: em primeiro lugar, afirma que "o
maior e único vitupério deste volume [...] é o esforço aprimorado de
ressuscitar as campanhas levadas a cabo no norte durante a XII dinas-
tia do faraó Sesóstris [- um 'faraó negro' - cujas [...)] vastas conquistas
eram aceites como verdade até ao final do século XVIII" (1991, p. 524).
Quanto à influência egípcia, acrescenta: "o único aspecto controverso
do meu trabalho [...] consiste em encarar as pretensões egípcias em
matéria de conhecimento, actividades e suserania relativamente ao
Egeu com uma literalidade e seriedade superiores ao habitual" (1991,
p. 526). Através da promoção deste modelo antigo revisto, Martin
Bernal inscreve-se conscientemente numa tradição intelectual recen-
te, observando que: "desde o final da década de 1960 [...], o modelo
ariano extremo - que tornou 'a história da Grécia e as suas ligações
com o Egipto e o Levante consentâneas com a visão do mundo oito-
centista e, em particular, o seu racismo sistemático" - está a ser alvo
de fortes investidas, sobretudo de judeus e semitas. O importante pa-
pel desempenhado pelos canaanites e fenícios na formação da Grécia
Antiga beneficia agora de um reconhecimento progressivo" (1987, p.
442). Em termos políticos, Bernal considera situar-se "no espectro da
erudição negra" (1987, p. 437), a par de W. E. B. Dubois e Ah Mazrui.
No cômputo geral, os eruditos negros censuraram Bernal pela subvalo-
rização dos contributos do falecido Cheikh Anta Diop, um físico nuclear
e egiptólogo senegalês. Diop recebe apenas uma menção num parágrafo
do volume de 1987 como alguém que "escreveu prolificamente sobre o
que considerava ser a relação integral entre a África negra e o Egipto,
tendo adoptando, em regra, o modelo antigo da história grega no decor-
rer desse processo" (1987, p. 435). O projecto de Bernal contempla os
padrões difusionistas que se expandiram para norte, oeste e este a par-
tir do Egipto, tal como representado nos seus mapas 1, 2 e 3 (1991, pp.
531, 533 e 534). Nas suas controversas pubhcações, Diop dedicou-se
sobretudo às interacções entre o sul e o norte. Este ângulo diferente
pode justificar a subexploração de outros potenciais "aliados" influentes
por parte de Bernal, tais como Sir James Prazer e outros antropólogos
e egiptólogos - designadamente E. A. Wallis Budge, Charles G. Seligman
e Henri Frankfort que se mostraram perplexos face "às semelhanças
incríveis" entre o Egipto e alguns dos nossos contemporâneos africanos
em termos de cultura material e espiritual, (in Ray, 1991, p. 184).

11,6 V.Y. Mudimbe A Ideia de África


Myth, Ritual and Kíngship in Buganda, da autoria de Benjamin Ray,
constitui uma obra significativa e marcante sobre o Buganda, a qual
está dividida em sete capítulos. O primeiro analisa os primórdios da
etnografia no século XIX e inícios do século XX. Não obstante o reconhe-
cimento dos contributos de viajantes, missionários e oficiais coloniais,
Ray opta por centrar as suas atenções em Sir Apolo Kaggwa (1869-
-1927), o primeiro regente do reino, no reverendo John Roscoe (1981-
-1932), um missionário da CMS no Buganda, e na influência de Sir
James Fazer. De acordo com Ray: "o conjunto dos escritos de Roscoe e
Kaggwa formam um retrato bidimensional e singular do Buganda de
finais do século XIX, o qual é descrito de um modo indígena nas obras
de Kaggwa em língua luganda e apresentado sistematicamente na et-
nografia de Roscoe, em linha com a concepção etnográfica e teórica
de Prazer" (1991, p. 23). O primeiro capítulo de Ray é uma exposição
fascinante a respeito da produção do conhecimento etnográfico do
Buganda. Frazer, que nunca viajara até África, foi o grande pensador que
orientou Roscoe (e, por extensão, Kaggwa), moldando as suas
descrições e interpretações em matéria de práticas rituais (nascimen-
to, matrimónio, morte, etc.), homicídio ritual, realeza, etc. De resto, The
Golden Bough foi o espelho do qual emanou o conhecimento etnográ-
fico e antropológico do Buganda.
Ray prossegue para uma apresentação do advento mítico do Bugan-
da com Kintu, a origem da realeza e o significado do corpo do rei.
A progressão é exemplar: parte "de Kintu - o patriarca para Kintu - o
fundador real" (1991, p. 74) ou, digamos, de uma leitura das narra-
tivas míticas para interpretações históricas sobre o Buganda. O ter-
ceiro capítulo corresponde à exposição de uma teoria do simbolismo
do corpo real. Ao longo do seu estudo acerca da realeza do Buganda
(ou Kabakaship, o rei é conhecido como Kabaka), Ray faculta parece-
res relativos às interacções simbólicas e históricas entre o antepas-
sado primordial e o Kabaka existente. Ambas as ordens reproduzem
igualmente outras ordens complementares: o mito ou lendas [Lugero)
que alumiam os primórdios, e as narrativas históricas {Byafaayo) que
testemunham a fundação do reino algures no final do século XIII. Mas
em que sentido serão as Byafaayo e as Lugero diferentes, e quais as
características que permitem classificá-las de históricas?
Curiosamente, a ruptura com o mítico está personificada no mesmo
Kintu que realizou a génese de uma cultura. Trata-se de um acontecimen-
to fulcral. Afigura-se oportuno sublinhar que, segundo um conjunto de
estudantes da África Central e Austral (por exemplo, Aléxis Kagame),
Kintu (designação de um ser desprovido de inteligência, de facto, como
um ser-em-si) integra um quadro de categorias linguísticas básicas que

II.oPoderdo ParadigmaGrego
incluiria Muntu, ou ser dotado de inteligência, Hantu, que indica "tempo"
e "espaço", e Kuntu, que expressa modalidades. Uma análise dos dados
lingüísticos do sul do Buganda e da região dos Grandes Lagos teria en-
riquecido a descrição de Ray a respeito da transformação personificada
por Kintu. Enquanto símbolo do Estado, o Kabaka era acolhido como "o
mais sagrado", o que explica a ambigüidade do seu corpo. Ray apresenta
descrições satisfatórias sobre esta ambigüidade a propósito dos códigos
de etiqueta, o corpo real, os meios reais, etc. Em Écrits sur Ia royauté
sacrée (1987) e The Drunken King (1982), Luc de Heusch observou e
estudou os mesmos fenômenos nas regiões de língua banta.
Nos capítulos seguintes, Ray trata de três temas interdependentes:
os santuários reais, o regicídio e o homicídio ritual, e, o Buganda e o
Antigo Egipto. Os santuários reais espacializam o poder político cuja
presença na terra está associada ao simbolismo do corpo do rei. No
capítulo final, o autor analisa com cautela "as especulações e as pro-
vas" acerca de uma ligação entre o Buganda e o Antigo Egipto. Centran-
do-se nos argumentos de E. A. Wallis Budge sobre a origem africana da
religião egípcia e na teoria racial de Charles G. Seligman, Ray constata
"a existência efectiva de semelhanças consideráveis entre o Buganda
e Antigo Egipto, algumas das quais bastante impressionantes" (1991,
p. 197) e acrescenta com demasiada sisudez que: "o problema dos
estudos comparativos de Budge, Seligman e Frankfort reside no facto
de estarem enredados em questões de teor histórico, antropológico e
interpretativo, tornando-os pouco esclarecedores" (1991, p. 199).
Quanto à Grécia Antiga e ã sua experiência multicultural, Bernal descurou
"outros aliados", nomeadamente Englebert Mveng, um padre jesuíta dos
Camarões que estudou em França e escreveu Les Sources grecques de
Thistoire négro-africaine (1972), assim como um livro maravilhoso intitu-
lado La Grèce antique devantla Négritude (1973) de Alain Bourgeois.
O empreendimento de Bernal ilustra a forma como a prática cientí-
fica está igualmente dotada de uma dimensão política, e o autor tem
perfeita consciência disso. Nas suas réplicas às críticas tecidas por de-
terminados classicistas, Bernal confessou candidamente no número
especial de Outono de 1989 da revista Arethusa, que o seu projecto foi
possível graças ao "retrocesso do anti-semitismo", acrescentando:
[...] se um negro afirmasse aquilo que proponho nos meus livros, a sua recepção
seria bastante diferente. Os enunciados seriam considerados parciais e partidários,
propulsores de um nacionalismo negro e, por conseguinte, postos de lado.
As minhas idéias permanecem tão escandalosas que estou convencido de que, se não
tivesse todas as cartas a meu favor, não teria beneficiado sequer de uma primeira
audiência, na qualidade de seu proponente. Contudo, o facto de ser branco, do sexo

11,6 V.Y. Mudimbe A Ideia de África


masculino, de meia-idade e pertencente à classe média, mas também um britânico
na América, concedeu-me um tom de universalidade e autoridade que é totalmente
espúrio. Mas ele existe! Por isso, quero agradecer às minhas estrelas da sorte em
vez de qualquer talento que possa possuir por ter chegado até aqui, mesmo se não
conseguir ir mais longe. [Arethusa, Outono de 1989, p. 20)

Frisei algumas das minhas discordâncias com as leituras, as inter-


pretações e o método de Bernal. Embora compreenda a importância
política do seu trabalho, tenho receio de que o seu projecto e a sua
utilidade possam ser, e provavelmente serão, manipulados pelos seus
apoiantes mais sofisticados e menos críticos por razões alheias à ciên-
cia e à procura pela verdade. Posto isto, devo admitir que, seja do nosso
agrado ou não, o empreendimento de Bernal influenciará profunda-
mente a percepção do século vindouro acerca das origens da civiliza-
ção grega e do papel do Antigo Egipto. Com efeito, o seu projecto ilus-
tra a inversão daquilo que viabilizou e firmou o tráfico de escravos do
século XV: o imperialismo e o colonialismo cujo triunfo no século XIX e
no presente século é tão bem demonstrado pelo seu produto natural, o
nazismo das décadas de 1930 e 1940.

III. O Poder do Paradigma Grego 139


IV. A Domesticação e
o Conflito das Memórias
... um humanismo robusto não começa com o indivíduo, mas
coloca o mundo antes da vida, a vida antes do homem,
e o respeito pelo próximo antes do interesse pessoal: e [...]
nenhuma espécie, nem mesmo a nossa, pode servir-se do facto
de estar nesta terra há um ou dois milênios - pois, em todo o
caso, a estadia do Homem aqui chegará um dia ao fim - para se
apropriar do mundo como se este fosse um objecto
e comportar-se nele sem decência ou discrição.

- Claude Lévi-Strauss, The Origin of Table Manners, p. 508

Em 1876, decorreu um encontro sobre a geografia internacional em


Bruxelas, Bélgica. De entre os seus objectivos, foram estipulados três
projectos principais: a exploração da África Central, a implantação da
civilização europeia na região e um compromisso claro em combater
as práticas de escravatura ainda vigentes.
Leopoldo II, rei dos belgas, tinha interesse no Egipto pois, no seu
entender, este constituía uma excelente porta de entrada para África.
Durante a convenção, foram vários os que mencionaram as actividades
do explorador Coronel Gordon na região do Nilo e uma das suas declara-
ções, proferida em Outubro de 1876, pairava nas salas da conferência:
a melhor forma de colocar um término à prática de escravatura con-
siste em construir uma boa estrada entre Cartum e o Cairo e "ilumi-
nar" estas regiões. Provavelmente por incitação do rei, Lambermont,
seu ajudante, tentou contactar o coronel. Entretanto, o comitê belga
da Associação Internacional Africana (AIA) promoveu expedições em
África pela costa oriental. Com o aval de Leopoldo, a Comissão de Estu-
dos do Alto Congo organizou, em 1877, uma expedição conduzida pelo
norte-americano Henry Morton Stanley com o intuito de estabelecer
os primeiros postos avançados de um império em ascensão. Em 1882,
munido de um grupo suplementar de belgas, Stanley ocupou toda a
região do Rio Congo, desde Uele até Cassai. A oriente, outras carava-
nas da AIA - designadamente as lideradas por Dhanis, Chattin, Pon-
thier e Lothaire - exploraram a região dos Grandes Lagos, atacaram

IIiIV.A Domesticação e o Conflito das Memórias iai


as posições estratégicas dos árabes e conquistaram os seus camara-
das nativos, designados de "arabizados", ou seja, povos assimilados
aos costumes árabes. Quando a AIA foi, por fim, reconhecida oficial-
mente pela Conferência de Berlim (1848-85) e Leopoldo proclamado
soberano do Estado Independente do Congo, uma parte significativa
da África Central que já havia sido conquistada e passada a pente fino
pelos mercenários de Leopoldo.
O Vaticano seguiu atentamente as actividades da AIA. A 14 de Outu-
bro de 1876, o Papa Pio IX (1846-78), o pontífice que assistiu à extin-
ção dos estados papais, já havia manifestado, por escrito, ao Barão de
Anethan, o representante belga no Vaticano, o seu apreço benevolente
e solidário para com a missão civilizadora de Leopoldo II [Corresp.
Dipl., 1976-78, p. 27). De resto, na sequência da perda do seu poder
temporal na Europa, o Vaticano ainda nutria a expectativa de propa-
gar o Cristianismo noutros locais, sendo que, em África, contava com
o empreendimento de Leopoldo. De facto, existia um "Vicariato Apos-
tólico na África Central" desde 1848, organizado e constituído por
missionários italianos de Verona cujo líder era o Bispo Comboni. Na
óptica do Vaticano, o apostolado de "Comboni e seus confrades" seria
obviamente vantajoso para a AIA e, por outro lado, o Papa entendia
que os missionários poderiam contribuir para a obra [de Leopoldo]
(Roeykens, 1957, p. 60).
O Cardeal Franchi, prefeito da Sacra Congregatio de Propaganda Fide
(Congregação para a Evangelização dos Povos), acreditava piamente
na conveniência de uma colaboração entre a Igreja e o projecto colonial
de Leopoldo. Em 1878, o Bispo Lavigerie, um jovem ambicioso, enviou
uma comunicação secreta ao Vaticano precisamente sobre esta maté-
ria. Pio IX falecera a 7 de Fevereiro desse ano. O chanceler da Áustria,
Metternich, um político longânime que o conhecia bem, descreveu
Pio IX como um homem "bondoso, sereno e totalmente desprovido
de bom senso." Terá sido ele a alimentar o sonho do Bispo Lavigerie
acerca da possibilidade de construir um reino cristão na África Central?
O seu sucessor. Leão XIII, leu a comunicação de Lavigerie. Diz-se que
Leão XIII era inteligente o bastante para conseguir imaginar o mundo
através da janela do Vaticano, ao invés de lidar com a realidade directa-
mente. Seja como for, impressionado com a comunicação, abençoou o
projecto de Lavigerie, incumbindo-o da evangelização e conversão da
África Equatorial por meio da emissão de um decreto datado de 24 de
Fevereiro de 1878. A saga missionária inicia-se de imediato. A 22 de
Abril do mesmo ano, o primeiro contingente de "Padres Brancos" -
os discípulos de Lavigerie eram assim conhecidos devido aos hábitos
brancos que envergavam - partiram de Marselha. Nove meses depois.

138V.Y.MudimbeAldeiade Africa
exactamente no dia 22 de Janeiro de 1879, chegaram a Ujiji e, em Julho,
o Rei Rumoke do Burundi recebeu-os amistosamente, autorizando a
inauguração de uma missão católica. A primeira missão católica no
Congo foi instituída a 25 de Novembro na costa oriental do Lago Tan-
ganica, perto da foz do Rio Luwela em Masanze.
Por motivos políticos, Leopoldo almejava dispor somente de mis-
sionários belgas no seu reino africano pois, supostamente, identificar-
-se-iam com maior prontidão ao Catolicismo e o nacionahsmo belga.
Lavigerie, então cardeal, aceitou este intento e a próxima caravana
de Padres Brancos que partiu de Marselha em Julho de 1891 rumo
ao Congo incluía apenas belgas, entre os quais um jovem eloquente
chamado Victor Roelens. A esta primeira expedição "sagrada" exclu-
sivamente belga sucederam-se outras cuja missão era similar: labutar
pela conversão da África Central em colaboração com os colonos de
Leopoldo através de uma transformação do seu espaço, dos seus habi-
tantes e das suas culturas. Fazendo referência apenas às missões exis-
tentes na região antes de 1911, salientemos os Scheutistas em 1888,
as Irmãs da Caridade de Gent em 1892, os Jesuítas em 1893, os Tra-
pistas de Westmalle e as "Irmãs Brancas" [o homólogo feminino dos
Padres Brancos] em 1895, as Franciscanas Missionárias de Maria em
1896, os Padres do Sagrado Coração de Jesus em 1897, os Norbertinos
de Tangerloo em 1898, os Redentoristas em 1899, os Espiritanos em
1907, os Irmãos Cristãos em 1909, os Beneditinos e os Capuchinhos
em 1910 e os Dominicanos, Salesianos, Maristas e as Irmãs da Cruz de
Liège em 1911. Várias outras Ordens religiosas seguir-se-iam a este
exército sagrado. Em todo o caso, o número de missionários floresceu.
Em 1909, havia 191 sacerdotes católicos no Congo. Em 1920, chega-
ram aos 471, mais 11 escolásticos, 175 irmãos e 13 auxiliares laicos.
Em 1930, verificou-se um aumento exponencial: 639 sacerdotes, 16
escolásticos, 252 irmãos e 27 auxiliares laicos. Além disso, as Ordens
de irmãos desprovidas de uma componente sacerdotal ascenderam a
59 membros em 1920,110 em 1930 e 701 em 1939. Quanto às freiras,
a evolução quantitativa revela-se igualmente surpreendente: 283 mis-
sionárias em 1920, 618 em 1930 e 1631 em 1939 (ver De Moreau,
1944].
Estes números traduzem um movimento incrível: uma vontade de
converter, transformar e mudar radicalmente um espaço e os seus ha-
bitantes. Em nome da fé (o Catolicismo] e de um apelo nacionalista
(a expansão da Bélgica], jovens belgas de ambos os sexos rumaram à
África Central, impelidos pela crença de que poderiam engendrar uma
ruptura histórica na consciência e no espaço dos africanos. Designar
este acontecimento de "imperialismo" não fornece - nem pode fornecer

IIiIV.A Domesticação e o Conflito das Memórias iai


- uma explicação cabal. Podemos discorrer expeditamente sobre a
conjugação curiosa entre os planos do Vaticano [incluindo as frustra-
ções após a perda dos estados pontifícios com Pio IX) e as ambições
expansionistas de Leopoldo. Um empirismo lógico desta natureza pa-
rece confundir doxa [sim, os missionários participaram no processo de
colonização, facto ilustrado pelas vagas da sua integração no edifício
de um Congo Belga, Lda.), e episteme, ou uma configuração intelectual
global [com efeito, o processo, no seu todo, também é susceptível de
ser interpretado como uma necessidade histórica no sentido em que
a necessidade se reflectiu nos princípios dúbios das "Leis Naturais"
que, por sua vez, a justificaram). A maioria dos missionários não eram
cultos o suficiente nem despendiam de tempo para ponderar acerca
destes paradoxos que manchavam a sua generosidade. De qualquer
modo, atentando nas acções de Victor Roelens, demonstrarei que esse
paradoxo denota um aspecto muito simples: a história, no nosso caso
a história colonial, explora as chamadas leis científicas a fim de for-
mular a sua prática, mas só se reporta a essas mesmas leis quando
estas podem ser invocadas como causas que justificam os parâ-
metros divinos - por exemplo, a legalidade. Em síntese, segundo
Paul Veyne: "reunir a causalidade da experiência e a causalidade da
ciência sob uma mesma lógica é afirmar uma verdade demasiado
pobre; é ser incapaz de reconhecer o fosso que separa a doxa da
episteme" [1984, p. 166).
A chegada dos missionários ao Congo foi acompanhada do aper-
feiçoamento e da criação de uma organização administrativa ecle-
siástica. Um decreto papal de 11 de Maio de 1888 instituiu um Vicari-
ato do Congo Belga independente do Vicariato do Alto Congo, criado a
3 de Dezembro de 1886. Em 1911, já existiam dez regiões eclesiásticas
divididas de acordo com as ordens religiosas em actividade no Congo
Belga: 1. Vicariato do Congo [Scheutistas, Trapistas de Westmalle,
Padres de Mille-Hille); 2. Vicariato de Stanley Falls [Padres do Sagrado
Coração de Jesus); 3. Vicariato do Alto Congo ["Padres Brancos"); 4.
Comunidade de Matadi [Redentoristas); 5. Comunidade de Kwango
[Jesuítas); 6. Comunidade do Alto Cassai [Scheutistas); 7. Comunidade
de Ubangi [Capuchinhos); 8. Comunidade de Uele [Norbertinos e
Dominicanos); 8. Comunidade de Katanga do Norte [Espiritanos); 10.
Comunidade de Katanga [Beneditinos).
Sempre que possível, as ordens femininas trabalham com os seus
homólogos masculinos. Como tal, as Beneditinas, Franciscanas, Tra-
pistas ou as Irmãs Brancas trabalham com os seus correspondentes
masculinos nas mesmas zonas eclesiásticas. Todavia, existem casos
excepcionais, designadamente as Irmãs da Caridade de Gent que

140V.Y.MudimbeAldeiade Africa
trabalharam no Vicariato do Congo com os Scheutlstas, na Comuni-
dade de Matadi com os Redentoristas e em Katanga com os Benedi-
tinos.
Resumidamente, a divisão das ordens e a consequente especializa-
ção das regiões assumem um significado importante: a necessidade de
respeitar, pelo menos em principio, carismas e vocações específicos de
acordo com o preconizado por uma tradição religiosa. É possível pro-
ceder a uma descrição estereotipada de algumas dessas vocações: um
Beneditino, em regra contemplativo, obedece ao regime da oração e do
trabalho, vivendo num mosteiro isolado do mundo; um Dominicano,
embora monge, é um homem de acção, versado na filosofia e teologia
cristãs de modo a defender e ilustrar intelectualmente a pertinência do
Cristianismo; um Franciscano, seguindo a tradição de São Francisco,
tende a testemunhar a magnificência da criação de Deus e, por meio de
uma vida de pobreza, ilumina a glória e a liberdade dos filhos de Deus;
conforme têm sido encarados, e bem, os Jesuítas são soldados que,
perinde ac cadaver, dão o melhor de si para promover o Catolicismo; os
Scheutistas, cuja organização data do século XIX, correspondem a uma
comunidade de homens que realizam uma autopreparação rigorosa
como missionários em países estrangeiros, à semelhança dos Padres
Brancos e das Irmãs Brancas. Segundo o Direito Canónico e a Tradição,
a maioria destas Ordens são conhecidas como Ordens religiosas e dife-
rem do clero secular que, na Europa, é habitualmente responsável pela
vida espiritual dos cristãos, pela actividade das paróquias e por grande
parte do trabalho encetado nas dioceses católicas. As Ordens apenas
intervêm em assuntos mundanos mediante um mandato excepcio-
nal emitido pelo bispo local. Num espaço católico usual, estas Ordens
acompanham as suas próprias missões e integram a Igreja através do
exercício de ministérios especializados: os Beneditinos são monges de
clausura; os Dominicanos, teólogos respeitados; os Jesuítas, excelen-
tes pedagogos e cientistas; os Redentoristas, pregadores especializa-
dos em retiros (até recentemente, o seu estilo era bastante afrontoso:
eram conhecidos pela sua perícia em representações visuais e verbais
do inferno que se destinavam a realentar os fiéis). Em suma, a nível
paroquial, a vida normal da Igreja Católica no Ocidente não estava nas
mãos das Ordens religiosas ou, para me servir de uma expressão téc-
nica, dos Regrantes; ao invés, os assuntos paroquiais estavam sob a
alçada do clero secular - o clero que não faz votos monásticos e está
directamente dependente do bispo local.
Eis o drama político da África Central. Em 1911, o Congo Belga
estava repartido em dez regiões eclesiásticas, tal como menciona-
do anteriormente. Consideremos três pontos: em primeiro lugar, a

IV. A Domesticação e o Conflito das Memórias iai

II i
distribuição abrangeu uma geografia política coincidente com o reino
de Leopoldo em África. Em segundo lugar, os que actuavam como
missionários eram católicos, estando espiritualmente dependentes
de Roma. Além disso, eram quase todos de nacionalidade belga. Por
conseguinte, Roma e Leopoldo incumbiram-nos de executar na África
Central as obrigações da Igreja e os objectivos políticos do rei belga,
que também era o soberano do estado africano. Em terceiro lugar, o
território africano foi submetido, em termos analíticos, às represen-
tações espirituais das ordens religiosas, e obrigado a adoptar padrões
restritivos: os convertidos de Cassai identificavam-se com o horizonte
de referência scheutista, os de Kwilu com o jesuíta, os do nordeste com
o dominicano, os do leste com o do Padre Branco, e os de Katanga com
o espiritano no norte, o beneditino no sul, e assim sucessivamente.
Contrariamente ao que se possa pensar, trata-se de uma questão
fulcral porquanto aborda um eixo basilar das políticas de conversão. O
acto da conversão traduz-se num conjunto de etapas de entre as quais
serão identificadas, no mínimo, três: 1) existe um símbolo de referên-
cia, neste caso um ser humano, que fala em nome do poder político
e da verdade absoluta. 2) O discurso utilizado nessa comunicação é
dotado de um carácter edificante e de uma espiritualidade, remeten-
do, em todo o caso, para uma verdade absoluta; a sua eficácia pode ser
política e católica [conferindo-lhe um carácter credível, convincente];
porém, adopta um estilo que torna o discurso específico e apelativo,
afirmando o seu poder. As tentativas de explicar a especificidade de
discursos tão diversos resultam na imposição de determinadas pas-
sagens controversas e medíocres no plano simbólico: o brilhantismo
é dominicano; a eficiência, scheutista; o engenho, do Padre Branco; a
paciência, beneditina; o poder intelectual, jesuíta, etc. 3] O processo
de alienação constitui a fase em que o convertido - individualmente
uma "criança" - assume a identidade de um estilo que lhe é imposto
a ponto de o exibir como parte integrante da sua própria natureza; a
conversão funcionou assim na perfeição: a "criança" é agora candidata
à assimilação na medida em que já existe enquanto entidade forjada
para reflectir uma essência cristã e um estilo, seja ele dominicano,
beneditino ou jesuíta.
Estas três etapas são meras construções teóricas e entram em
conflito com outros factores, designadamente o local de nascimento
[rural ou urbano], a origem étnica, e o tipo de educação. Contudo, o
mais surpreendente é a necessidade de considerar zelosamente estas
três etapas da conversão e os seus padrões simbólicos, a fim de com-
preender a política da independência africana na década de 1960. Foi
afirmado, e bem, que a maioria dos políticos da década de 1960 na

11,6 V.Y. Mudimbe A Ideia de África


África Central eram antigos missionários. Todavia, os cientistas políti-
cos realçaram os factores "tribais", sendo ainda possível que outros
factores estivessem igualmente a participar noutro jogo importante.
De qualquer modo, o Congo foi cobaia numa experiência interessante
e a sua geografia transformada numa espécie de tabuleiro de xadrez
espiritual, no qual cada unidade ou quadrado era ocupado por um
estilo religioso definido.
Quão real foi o impacto destas "idiossincrasias"? Pensemos, pelo
menos, numa aliança política intrigante que parece ter emanado de
um contexto socio-religioso. Na primeira República congolesa, alguns
dos políticos mais poderosos da altura, designadamente Joseph Kasa-
-Vubu, chefe de estado, Joseph Ngalula, Albert Kalondji, Joseph-Albert
Cardinal Malula e Auguste Mabika-Kalanda eram antigos estudantes
dos Scheutistas. Costumavam reunir-se com regularidade como "anti-
gos estudantes dos Scheutistas" e partilhavam entre si uma linguagem
"comum", apesar das suas diferenças ideológicas. Por outro lado, como
explicar o facto de que, aquando da constituição do governo de Adula,
sob a égide da intervenção das Nações Unidas no Congo, vários dos
seus membros eram antigos seminaristas que haviam sido admitidos
no movimento rosacruciano?

Victor Roelens enquanto paradigma


Á primeira vista, nada, absolutamente nada, teria preparado Victor
Roelens para se tornar, em parte alguma, um monumento histórico.
Nasceu a 21 de Julho de 1858, perto do Château des Comtes de Jonghe
dArdoye, onde o seu pai era jardineiro. Victor tomou consciência das
suas origens a uma tenra idade. Era pobre, tinha de trabalhar ardu-
amente e, ainda assim, conseguiu conciliar uma sensação profunda de
não-pertença com uma conduta sóbria e o seu encanto pela natureza.
N. Antoine, um dos seus admiradores, escreveu que "desde a sua ju-
ventude até ao fim dos seus dias, [Roelens] nutriu uma paixão pela
vida rústica e pelo trabalho, a par de um amor por flores, cultivando-as
com carinho." Roelens ingressou na Universidade de Tielt. Em 1880,
após um ano no seminário em Roulers, mudou-se para o noviciado
dos Padres Brancos na Argélia, na Maison-Carrée. Tinha na altura
22 anos de idade. A 8 de Setembro de 1884, aos 26 anos, foi no-
meado padre pelo Cardeal Lavigerie e, a partir desse momento, Victor
Roelens iniciou uma vida de nomadismo. Auxiliava com recorrência
o Cardeal Lavigerie nas comissões do combate à escravatura, tra-
balhava na organização de uma pedagogia dos Padres Brancos em

IIiIV.A Domesticação e o Conflito das Memórias iai


Woluwé-Saint-Lambert e ensinava teologia em Saint Ann, um semi-
nário importante em Jerusalém. Em 1891, Roelens integrou a caravana
que deixou Marselha no dia 4 Julho com destino à África Central via
Zanzibar.
Por essa altura, os "Padres Brancos" estavam totalmente estabeleci-
dos na África Oriental. A AIA permitira inclusivamente o estabeleci-
mento das suas primeiras missões: Karema e Mpala. Nesse mesmo ano,
outra caravana estava a caminho da região e era composta por antigos
zuavos pontifícios que Lavigerie convertera para a sua causa africana.
O seu destino era a região de Tanganica onde pretendiam combater
o tráfico árabe de escravos. A 27 de Janeiro de 1890, o Capitão Jou-
bert, destacado em Mpala, levara a cabo uma investida militar contra
Katele, o chefe dos Murumbi e um aliado dos árabes. A primeira ex-
pedição contra a escravatura, liderada pelo Capitão Jacques, chegou
a Mpala poucas semanas antes do grupo do Padre Marquês, adminis-
trador apostólico, do qual constava Victor Roelens. A 16 de Março de
1892, Roelens fundou a Saint Louis de Kimbaka com a assistência do
Padre Stanislas. No ano seguinte, em virtude de um confronto entre o
Estado Independente e os árabes, ambos os missionários dirigiram-se
para Kirungu onde fundaram Baudoinville. Nesse mesmo ano, Roelens
foi nomeado administrador apostólico do Vicariato do Alto Congo por
Roma, tornando-se bispo em 1896. Até então, a actividade global da
sua Ordem já havia produzido efeitos, pelo menos em termos estatísti-
cos. A região contava com duas paróquias de missão, 750 cristãos e
4771 catecúmenos.
Roelens observava, explicava e justificava tudo. Trata-se de um com-
plexo sobejamente conhecido: a compensação de uma insegurança
motivada pelas origens por uma afirmação sistemática da competên-
cia. Roelens revê-se numa competência projectada: tem de ser perfeito
ou, em todo o caso, satisfazer as exigências inerentes à condição de
indivíduo civilizado, sacerdote competente e missionário exemplar.
Em 1893, o Bispo LeChaptois, superior de Roelens, convida-o a
transferir-se para Kimbaka, num planalto das montanhas de Marungu.
Kimbaka não era uma região segura, sofrendo ataques sucessivos dos
traficantes de escravos. Baptizado de Baudoinville em homenagem
ao príncipe belga falecido recentemente, o novo centro não era muito
longe - na realidade, estava apenas a escassos quilómetros de distân-
cia - de Saint Louis do Murumbi, residência do Capitão Joubert, um
antigo zuavo que prestava apoio secular aos Padres Brancos. A 8 de
Maio de 1893, Roelens e o seu novo assistente, o Irmão François, passam
a sua primeira noite no planalto de Marungu, acordando, no dia seguinte,
absolutamente espantados: o clima fresco e um tanto marítimo que

11,6 V.Y. Mudimbe A Ideia d e África


imperara durante a noite, conquistou-os. Começam a erigir a missão
e, em três semanas, já têm ao seu dispor as infra-estruturas básicas,
designadamente a residência, um orfanato e uma igreja com espaço
para 800 pessoas, levando os missionários a responsabilizarem-se
pelo futuro e a vida da aldeia através da criação de oficinas, terreiros e
projectos diversos.
A vida da aldeia passou a estar subordinada à agenda dos mis-
sionários. Depois do espaço, reorganizado de acordo com uma nova
memória representada pela Igreja, os missionários assumem de ime-
diato o controlo do tempo e das suas categorias. É instituída uma eco-
nomia religiosa dos dias, das semanas, dos meses e dos anos segundo
um calendário litúrgico, bem como um novo regime diário de rituais
específicos. Enquanto entidade, a aldeia ganha vida de madrugada, as
orações da manhã sucedem-se à missa e, logo a seguir, tem lugar a
"instrução cristã". Homens, mulheres, crianças, cristãos e catecúme-
nos: cada grupo dispõe de um programa, de um professor e de uma
mensagem próprios. A tarde é consagrada a outro tipo de trabalho -
agricultura ou construção, consoante as estações do ano - até às 18
horas, altura da oração obrigatória da tarde. Segue-se o jantar e a realização
de actividades recreativas até ao recolher, às 21 horas. Os missionários
regraram tudo. Na verdade, fuma-se e dança-se mas, a fim de evitar
"problemas morais" (uma ingenuidade incrível], os homens e as
mulheres não podem dançar juntos.
Em 1898, cinco anos após a chegada de Victor Roelens, Baudoinville
era uma cidade pequena com edifícios imponentes para o clero, um
dispensário, dois orfanatos, cinco escolas para rapazes e quatro para
raparigas. Os missionários ainda despendiam recursos consideráveis
na "compra" da liberdade dos escravos. Oficialmente, para o governo,
o tráfico de escravos já não era praticado desde 1894. Porém, a reali-
dade é bastante diferente e muito mais complexa. Por exemplo, Roelens
escreve que bastam 50 francos para cuidar de uma jovem escrava e de
que precisa de 10 750 francos para 250 antigos jovens escravos.
As nossas jovens pupilas vivem com muito pouco. A cada dois meses, oferecemos
a cada uma 1,50 a 2 metros de tecido de algodão branco. As mais engenhosas con-
seguem vestir-se de um modo mais ou menos satisfatório. [...] No que se refere à
alimentação, recebem diariamente, ao meio-dia, algumas batatas-doces ou raízes de
mandioca [...]. É a primeira refeição do dia. À noite, cada uma recebe uma tigela com
farinha de milho ou mandioca que acompanham com feijão. Duas vezes por semana,
é-lhes oferecido sal. Nas festividades importantes, tentamos dar-lhes alguns peixes
pequenos que elas apreciam bastante.

IIiIV.A Domesticação e o Conflito das Memórias iai


Será uma vida assim uma bênção, mesmo para alguém acabado de
ser libertado da escravatura? A nova ordem desenvolvida teoricamente
pelo filho do jardineiro e materializada na sua diocese obedecia a grelhas
complexas. Por conseguinte, para Victor Roelens, o lugar atribuído na
igreja deveria corresponder ao estatuto do indivíduo. O altar e o seu
espaço - terribilis locus - deveriam estar reservados ao clero; segue-se o
espaço reservado aos brancos; a nave central estava destinada aos cris-
tãos negros; por fim, a nave secundária era ocupada pelos catecúmenos
para que, recorrendo às palavras de Victor Roelens, "se sintam excluídos
da celebração do mais sagrado dos mistérios e, assim, experimentem
com maior acutilância a sua inferioridade face aos cristãos".
Este excerto ilustra o projecto da conversão. Não se trata apenas de
um sonho, mas de uma política que incute uma disciplina nos seres,
no espaço e no tempo em nome de modelos implícitos. Victor Roelens
teceu a seguinte afirmação de relevo: "Neste momento, Mpala e Bau-
doinville fazem-me lembrar uma boa paróquia em Flandres." Sonhos,
modelos e política simplesmente se fundem. Por que haveriam de ser
separados? O aparente investimento excessivo num sentido pode ser
interpretado como uma lacuna num sistema diferente. A antropologia
aborda a história natural e a teologia católica; por outro lado, o direito
de colonizar, conforme vivido por Roelens, combina teorias em maté-
ria de evolução das espécies, lei natural e imperialismo.
Dois exemplos adicionais testemunham a coincidência paradoxal e
surpreendente das duas diferentes ordens. Primeiro, em 1895, acom-
panhado do Padre De Beerst, cerca de 20 assistentes e uma dúzia de
marinheiros, Roelens deixou Baudoinville com o objectivo de explorar
a região de Kivu, que, nesse ano, fora percorrida, pela primeira vez,
por um europeu, o Barão Von Gõtsen. Após navegar no lago Tanganica
durante uma semana, Victor chega a Uvira, um posto militar do Estado,
de onde caminha com o seu grupo rumo à foz do rio Udjiji, decidindo
posteriormente alcançar as montanhas que separam a região de Kivu
do Tanganica. Infelizmente, os contactos diários com os povos locais
são infrutíferos; além disso, os revoltosos tomam de assalto a região
entre Maniema e Tanganica. Extenuados, os seus assistentes decidem
abandonar a expedição. Trata-se claramente de uma rebelião. Fisica-
mente doente e febril, Roelens capitula e a caravana regressa a Baudo-
inville. Victor Roelens e o seu pequeno exército estavam a uns escas-
sos 30 quilómetros de distância da sua meta, tendo já percorrido 600
quilómetros quando optaram por desistir.
Um segundo exemplo ilustrativo da complexidade política de Roelens
pode ser extraído de uma carta. Em Abril de 1990, Charles Lemaire,
membro belga de uma missão científica, agradeceu por escrito a Victor

146V.Y.MudimbeAldeiade Africa
Roelens pela sua estadia em Baudoinville. A carta enaltece Roelens e
os seus colaboradores. Os seus esforços colectivos simbolizam algo de
muito excepcional: são criadores de maravilhas [agricultores, constru-
tores, arquitectos, advogados, médicos, etc.). Criadores de monumen-
tos, tais como a Igreja Romana de Mpala, e construtores de catedrais,
estes Padres Brancos também são jardineiros, cozinheiros exímios e,
claro, bons companheiros. A sua conversão do espaço africano foi de
tal ordem que reproduziram o território flamengo:
Ce sont des jardiniers modèles. Le potager de la mission de Baudoinville est unique;
on y trouve tout ce que l'on désire, même des pommes de terre d'Europe. C'est là
que fut planté le premier caféier. Les Pères se font d'ailleurs un plaisir d'envoyer
leurs produits aux avoisinants de l'État Indépendant. Aussi faudrait-il entendre
parler d'eux les agents de l'État. J'ai mangé à Baudoinville du pain gris délicieux, de
ce savoureux pain flamand, large comme deux, et ferme.
[Os padres] são cozinheiros exemplares. A horta da missão de Baudoinville é ex-
traordinária. Podemos encontrar tudo o que desejarmos, inclusivamente batatas da
Europa. O primeiro cafeeiro foi aí plantado. Os padres retiram uma satisfação ma-
liciosa na oferenda dos seus produtos aos agentes do Estado Independente. Devía-
mos então ouvir o que dizem esses agentes do Estado sobre os Padres. Em Baudoin-
ville, comi um delicioso pão preto, um saboroso pão flamengo do tamanho de dois,
e muito consistente.

A mão-de-obra é barata, na realidade, gratuita: os antigos escravos


são, por assim dizer, aproveitados e, em contrapartida, recebem uma
educação religiosa que lhes permite chegar, alguns anos depois, ao
baptismo cristão e, após o rito, à condição de cidadãos da cidade mis-
sionária. A obra exaltada por Lemaire expande-se. A partir de 1877, as
Irmãs Brancas complementam o trabalho dos seus homólogos mascu-
linos, cuidando das mulheres nativas e exercendo funções nos dispen-
sários e hospitais. De 1899 em diante, a região ocidental e, depois, a
setentrional são sistematicamente exploradas pelos sacerdotes de Vic-
tor, verificando-se a inauguração de novas missões. Entre 1908 e 1916,
Roelens empenha-se na região de Maniema, onde os seus homens fun-
dam novas missões: Katana em 1908, Lulenga em 1910, Bobandana
em 1912, Niemba em 1913. Graças aos seus investimentos e projectos
arquitectónicos - a igreja, as residências para missionários, as escolas,
os hospitais, etc. - reconstituem um modelo medieval: um centro reli-
gioso é exortado a transformar uma região. Representa e projecta uma
ideia, uma visão e os seus valores. A história de uma conquista torna-
-se a história africana, divulgando-se a si própria como um caminho
providencial e uma reprodução da civilização.

IIiIV.A Domesticação e o Conflito das Memórias iai


Em 1898, Victor Roelens propusera ao Padre Huys, então director
do sistema de ensino do seu vicariato, a organização de um seminário
menor, visando a preparação de candidatos nativos para o sacerdócio
católico, o qual foi estabelecido em Lusaca. Em 1929, foi inaugurado
um segundo seminário em Mugeri. Entretanto, a 21 de Julho de 1917,
Stefano Kaoze, um congolês, tornou-se o primeiro padre católico a ser
ordenado na África Central. A partir desse momento, a conversão
africana seria pensada nos moldes de uma colaboração entre os Pa-
dres Brancos e os seus pupilos negros e, a longo prazo, como uma
questão de sucessão: os nativos tornam-se os seus próprios agentes
de transformação espiritual.
Terá sido Victor Roelens bem-sucedido na sua missão? Consideremos
o homem. Uma fotografia tirada no início da década de 1940, altura
da aposentação de Roelens e da sua substituição pelo seu coadjutor, o
Bispo Morlion, desvenda uma personalidade ambígua. Este filho de um
jardineiro flamengo posa, qual aristocrata de idade vetusta. O cabelo
é escasso. Um olhar vago contempla a câmara. Exibe rugas discretas
no rosto e sombras escuras e concêntricas à volta dos olhos. A idade
avançada - Victor tem mais de 80 anos - acentuou o seu nariz aquilino.
A boca e os lábios são praticamente invisíveis devido à sua barba farta,
longa e branca, de feição assaz missionária. Victor enverga o hábito
dos Padres Brancos com a característica túnica do Norte de África. As
cinco medalhas penduradas ao peito disputam a atenção com a sua
exuberante cruz peitoral. O homem ostenta uma postura majestosa e o
conjunto global evoca a catadura dos conquistadores.
Roelens aposentou-se do cargo de bispo em Setembro de 1941, com
83 anos de idade. O seu sucessor herdou um projecto poderoso que,
apesar de uma parte considerável se ter tornado um vicariato autóno-
mo, contava, em termos de recursos humanos, com 97 missionários
(36 sacerdotes, 13 irmãos, 48 irmãs); 620 colaboradores locais (18
sacerdotes, 11 irmãs, 539 catequistas do sexo masculino e 52 catequis-
tas do sexo feminino); 13 seminaristas principais e 86 seminaristas
menores; 53 349 cristãos e 14 084 catecúmenos. Em Junho de 1945,
o vicariato incluía mais de 700 escolas, 16 dispensários, 6 hospitais, 3
maternidades, 5 asilos e 2 orfanatos. Ao abandonar o seu posto, Victor
rememorava:
Não creio que alguma vez tenha tido, na minha pobre cabeça, uma ideia original,
verdadeiramente minha. Desde tenra idade, fui sempre muito curioso: queria ver
toda a gente, saber tudo. Ouvi e observei tudo com muita atenção e as ideias desco-
bertas algures que entendia serem úteis para este país, solicitei aos meus colabora-
dores que as concretizassem através da sua adaptação ao meio.

148V.Y.MudimbeAldeia de Africa
Tácticas e Estratégias de Domesticação
Leopoldo almejava domesticar o seu estado africano com o auxílio
dos missionários católicos belgas. Mesmo assim, teria de contemplar
outros programas, designadamente os concebidos por alguns dos seus
amigos protestantes que participaram na Conferência de Bruxelas (ver
Roeykens, 1957). Além disso, a própria Bélgica era palco de um forte
movimento anticatólico, representado, entre outros, pela Association
Libérale de Bruxelles, que visava combater a transposição de ideolo-
gias religiosas para a África Central. Os franco-mações também acom-
panhavam o projecto colonial com atenção. Segundo Victor Roelens, a
franco-maçonaria constituía um opositor activo do empreendimento
missionário. Um certo A. Sluys, antigo director das Écoles Normales
de Bruxelles, terá afirmado numa conferência maçónica internacional
realizada em Paris que "o maior inimigo do povo é o clericalismo e
caso [este] não seja eliminado pela raiz, não haverá uma solução para
a questão social" [Crand Orient de Belgique, 1900, fase. III, p. 217). Em
1897, devido a uma indiscrição, os missionários na África Central toma-
ram conhecimento da iniciação maçónica de um explorador candidato,
durante a qual foi enfatizada a necessidade de exercer um impacto ma-
çónico sobre "as acções e os projectos morais" de candidatos a cargos
no Congo. O seu pânico adensou-se quando souberam do encontro do
Grande Oriente da Bélgica a 25 de Dezembro de 1900, presidido por
G. Rogers, o Grão-Mestre. Um dos assuntos tratados dizia respeito às
formas de abrandar a actividade missionária católica no Congo. Se-
gundo Roeykens, as minutas incluíam afirmações como: "do ponto de
vista da civilização real, a conversão dos negros ao catolicismo não
constitui um progresso verdadeiro nem uma etapa necessária"; "em
termos de crença, os dogmas da Igreja ou de Roma não correspondem
a um estado superior pelo que não devem substituir as superstições
dos negros"; "moralmente, ninguém deveria ter de escolher entre [a
superstição negra e a superstição do sacerdote católico romano], são
equivalentes e devem ser combatidas na totalidade" (ver Roeykens).
Victor Roelens acreditava na conspiração maçónica. Em 1913, estu-
dou minuciosamente a lista de nomeados para os tribunais do Congo
Belga e constatou que a maioria era anticatólica, à excepção de três
elementos católicos. Três escândalos convenceram-no de que estava
certo. A administração colonial local instaurou três acções judiciais:
uma contra o prefeito apostólico de Cassai, um bispo, por infanticí-
dio; e as restantes duas contra um padre redentorista e um jesuíta
por abuso sexual. Roelens glosou sobre o que considerava ser uma
perseguição e uma "guerra insultuosa" (1913, p. 15). A Igreja estava

IIiIV.A Domesticação e o Conflito das Memórias iai


convicta de que os escândalos e os ataques provinham de núcleos ma-
çónicos existentes em Léopoldville, Elisabethville, Stanleyville e Boma.
Em Bruxelas, o ministro das colónias procurava evitar atritos entre a
sua administração e a Igreja. Roelens veio a público no dia 5 de Fe-
vereiro de 1913 ao atacar o governo no Le Patriote, argumentando que
a boa vontade oficial do governo não protege as missões dos tormen-
tos e das humilhações do quotidiano. No dia seguinte, o ministro belga
ripostou no mesmo jornal e contestou o rigor das declarações de Roelens.
A 7 de Fevereiro, Roelens contra-atacou, mantendo o cerne das suas
afirmações. A contenda transformou-se num escândalo público. Nos
dias 12 e 14 de Fevereiro, o ministro foi chamado a defender a sua
posição perante o parlamento e, quatro dias depois, Roelens salien-
tou a sua frustração num jornal da Antuérpia, Le Matin, referindo-se à
atmosfera hostil contra as missões católicas que acreditava existir no
Congo. Na edição de 23 de Fevereiro do La Presse e de 27 de Fevereiro
do Le Patriote, prosseguiu com a sua campanha, reivindicando "la
liberté de l'apostolat au Congo", a liberdade de conversão. 0 embate
entre Roelens e o então ministro, Renkin, tornou-se pessoal.
Tanto na Igreja quanto nas esferas políticas, vários elementos ten-
deram a não fazer caso dos dois protagonistas. Felizmente para
Roelens, a 1 de Março, os Superiores das Ordens e Congregações
Católicas que trabalhavam no Congo juntaram-se para o defender e
aludiram expressamente à existência de uma conspiração maçónica.
Numa resposta publicada no Le XXe siècle, o ministro envidou esfor-
ços infrutuosos no sentido de esclarecer as questões que haviam sido
alvo de disputa, estabelecendo a diferença entre políticas coloniais,
problemas administrativos em matéria de organização de uma coló-
nia e a sua política para uma colaboração com as missões católicas.
Inflamado, Roelens respondeu a 6 de Março no Le Patriote. O caso as-
sumiu proporções exageradas, pelo que Roma interveio com discrição
amainando os dois oponentes. Porém, foi nesse momento que o Padre
Thydrat, o Provincial dos Jesuítas, entrou publicamente na discussão
com um panfleto destinado a "defender as missões de Kwango" e a
criticar a legalidade administrativa colonial que, no fundo, acabou por
ser uma "hostilidade anti-religiosa". Seguiu-se a reacção do ministro
através da publicação do seu próprio panfleto no qual explicava as
exigências de uma política colonial.

150V.Y.MudimbeAldeia de Africa
África pré-colonial. De M. Kwamena-Poh, J. Tosh, R. Waller, M. Tidy, African History in Maps,
Reino Unido: Longman, 1982. Direitos reservados de Longman Group UK Ltd.

Africa colonial. De M. Kwamena-Poh, J. Tosh, R. Waller, M. Tidy, African History in Maps,


Reino Unido: Longman, 1982. Direitos reservados de Longman Group UK Ltd.

0 debate revela uma questão subjacente: o significado do direito de

i
colonizar. Em termos específicos, será a objectividade ou um contexto

IV. A Domesticação e o Conflito das Memórias 155


imparcial e verdadeiro que permite distinguir claramente os "saberes"
reais, fundamentados e justificados de meros pareceres? Concreta-
mente, deverão as exigências de eficiência no quadro da colonização
reconhecer a possibilidade de políticas alternativas, ideologicamente
concorrentes, justificadas na "conversão" da colónia? Aparentemente,
o Estado não temia a possibilidade de relativismos críticos e, por con-
seguinte, aceitaria o contributo dos maçons contanto que, por exem-
plo, o direito de colonizar e os postulados essenciais fossem preserva-
dos como puras referências. Acresce que, no entender da Igreja, essa
postura representava um desafio explícito susceptível de prejudicar
os seus princípios totalitários. Em termos gerais, o seu programa pode
ser sintetizado numa única frase: a conversão ao Ocidente é isomórfica
com a conversão ao Cristianismo e, nesse sentido, a aceitação de ideo-
logias cristãs não-estabelecidas na prática colonizadora significaria
colocar em causa os próprios alicerces do direito de colonizar.

África independente antes de 1975. De M. Kwamena-Poh, J. Tosh, R. Waller, M. Tidy, African His-
tory in Maps, Reino Unido: Longman, 1982. Direitos reservados de Longman Group UK Ltd.

Trata-se de uma questão importante uma vez que demonstra pre-


cisamente que a prática colonial deveria ser regida por uma objectivi-
dade "científica" e neutra exterior aos seus agentes. Nesse sentido, o
colonialismo é, presumivelmente, uma ciência. A discussão de Roelens
e Renkins manifesta-se e realiza-se a si própria enquanto produto
de uma tensão entre um projecto de "convicções justificadas" e um

156 V.Y. Mudimbe Aldeia de Africa


projecto de "pareceres" observada na filosofia das ciências. Recente-
mente, Sandra Harding constatou que:
A insistência na separação entre estas duas posições epistemológicas, entre aqueles
que sustentam categoricamente a objectividade isenta de valores e aqueles que
defendem o relativismo crítico - uma dicotomia, infelizmente, consentida por di-
versos críticos da objectividade e pelos seus defensores -, tornou a objectividade
isenta de valores bastante mais apelativa para os cientistas naturais e sociais do que
é suposto. Além disso, torna o relativismo crítico mais progressista do que efectiva-
mente é. Certos críticos da ideia convencional de objectividade acolheram o rela-
tivismo crítico abertamente. Outros dispuseram-se a tolerá-lo como sendo o preço
a pagar pelo reconhecimento da ineficácia prática, da proliferação de contradições
conceptuais confusas, e da regressão política decorrentes da tentativa de alcançar
uma objectividade definida em termos da neutralidade de valores. Contudo, mesmo
se a adopção do relativismo crítico fizer sentido na antropologia e noutras ciências
sociais, afigura-se absurda enquanto posição epistemológica na física ou na biolo-
gia. O que significaria a defesa de que nenhum padrão razoável pode ou poderia,
em princípio, ser encontrado a fim de arbitrar entre a afirmação de uma cultura
segundo a qual a terra é plana e a afirmação de outra cultura segundo a qual terra é
redonda? (Harding, 1991, p. 139).

Todavia, e paradoxalmente, o absurdo descrito por Harding não foi


encarado nestes moldes pelo acervo colonial, à semelhança da maioria
das ciências sociais, sendo celebrado, ao invés, como um progresso,
ou melhor, uma ruptura epistemológica desde o colonialismo até ao
pós-colonialismo. Mas não percamos de vista o objectivismo de Roelens
e as suas consequências para a conversão do espaço e das mentes
africanos. Alicerça-se numa convicção inabalável na verdade absoluta
personificada pela Igreja, sendo que essa verdade, subsequentemente,
justifica a utilidade e a coerência de uma ciência aplicada da conversão.
A título ilustrativo, consideremos o seguinte exemplo. Em 1932, o
Monsenhor Dellepiane, recentemente nomeado Delegado Apostólico
no Congo por Roma, convocou a primeira reunião plenária dos Ordi-
naires des Missions du Congo-Belge et du Ruanda-Urundi, ou seja, todos
os bispos com um vicariato ou uma prefeitura a seu cargo. Perante a
notícia de terem um representante permanente do Papa em Léopold-
ville, as missões católicas, sob a liderança de Victor Roelens, decidiram
construir um palácio para o Delegado Apostólico. A 18 de Outubro de
1932, os Ordinaires des Missions reuniram-se, enquanto organismo,
com o Delegado Apostólico em Léopoldville pela primeira vez. No dis-
curso proferido em nome dos seus colegas, Roelens, o decano do gru-
po, começa por declarar a sua submissão ao representante do Papa,
l

IV. A Domesticação e o Conflito das Memórias 185


asseverando a "profunda veneração" e "afeição filial" do seu colectivo
para com o "ilustre Pontífice Rei" e concede a residência ao Delegado
como símbolo do respeito da população, branca e negra, pelo Pontí-
fice (Roelens, 1932, Actes, p. 20). Comovido, Dellepiane homenageia
os bispos pela sua fidelidade à Igreja e aceita a oferenda em nome do
Vaticano. Três dias depois, interromperá uma sessão dos Ordinaires
para comunicar uma mensagem oficial de Roma expressando a sua
gratidão, assinada por Eugênio Cardinal Pacelli.
Roelens também inaugurou as sessões deste primeiro encontro dos
Ordinaires com um relatório substancial a respeito da constituição de
um "Clergé Indigène", um clero local católico. Durante vários anos, o
documento exerceu um impacto tremendo sobre as políticas oficiais
relativas à educação do clero na África Central. A expressão "Clergé In-
digène" afigura-se, em si, neutra e traduz apenas um clero local, autóc-
tone. Fazia parte da linguagem missionária da região encontrando
uma aceitação tácita a partir de 1898, quando Roelens incumbiu o Pa-
dre Huys de organizar o primeiro seminário menor. O primeiro mem-
bro do "Clergé Indigène" foi ordenado a 21 de Julho de 1917. A própria
data reveste-se de simbolismo porquanto assinala também o Dia da
Independência da Bélgica e, nesse sentido, aos olhos de Roelens, só
poderia estar dotada de um significado especial: uma integração na
ordem do sacerdócio católico revela igualmente uma assimilação à or-
dem política dominante pelo que ambos os processos não podem ser
antitéticos. Por conseguinte, o simbolismo da data da consagração do
primeiro membro do "Clergé Indigène" representa tanto um acelera-
dor de transformações religiosas e sociais quanto um travão profundo
e ambíguo. Com efeito, o conceito de um "Clergé Indigène" atribui ni-
tidamente virtudes específicas, unidade e didactismo a todos os seus
membros: devem ser negros, estar unidos pelo patrocínio dos seus
educadores e, em princípio durante os séculos vindouros, dependen-
tes de superiores brancos assim como de um magisterium estrangeiro
responsável pela sua conversão e por garantir a sua ortodoxia.
É este o projecto desenvolvido por Roelens perante aos seus pares.
O Cristianismo enquanto fonte e meio para a salvação e o Cristianismo
enquanto fonte e meio para a renovação africana não podem ser sepa-
rados dado partilharem do mesmo objectivo: a vida cristã e a civili-
zação universal. Nesse sentido, a educação e promoção rigorosas de
um "Clergé Indigène", de "nativos" que arraigam nos seus corpos e nos
seus espíritos este programa didáctico, assumem-se como condição
sine qua non para a missão da conversão.
Como procederia este sistema relativamente à engendração social
dos membros deste futuro grupo? Por um lado, Roelens [Actes, 1932)

asS V.Y. Mudimbe A Idéia de África


expõe normas de selecção de rapazes assentes nas suas apetências e
capacidades intelectuais, morais e espirituais. Deveriam ser obser-
vados, cuidadosamente analisados e seleccionados desde cedo. Os
escolhidos seriam submetidos a um novo modelo de vida, totalmente
isolado do seu meio normal. Seguiam-se então três etapas: o semi-
nário menor com a duração de oito anos (mais ou menos) ou o equiva-
lente aos últimos dois anos do ensino primário acrescidos de seis anos
do ensino secundário; o seminário maior com a duração de seis anos
(mais ou menos), incluindo dois anos de filosofia e quatro de teologia;
por fim, um estágio de um ou dois anos numa comunidade católica
sob o patrocínio de sacerdotes europeus. A primeira fase da educação,
o seminário menor, cumpria obrigatoriamente três princípios funda-
mentais:
a) A sua localização e ordenamento espacial seriam "adaptadas" à
"psicologia" dos centro-africanos (o que, na realidade, se traduziu
numa estilização e "reconstrução" de um modo de vida supostamente
tradicional, caracterizada pela subordinação aos imperativos cristãos
e à vigilância). Os edifícios do seminário não eram tradicionais nem
modernos dado conjugarem, por exemplo, construções de lama e elec-
tricidade. Os seminaristas viviam em isolamento absoluto e podiam
dispor, por vezes, de uma estação de correios ou de comboios a alguns
quilómetros de distância. O ritmo da vida quotidiana pautava-se por
um horário totalmente arredado da vida rural ou urbana.
b) O seminário menor, na verdade um internato, fixava-se obriga-
toriamente longe da vida moderna ("éloigné de 'tout centre euro-
péen et en dehors du grand mouvement commercial et industriel'");
o objectivo consistia na domesticação dos estudantes recorrendo
às "inclinações" da sua natureza e convertendo integralmente o seu
comportamento em novos hábitos pois, segundo Roelens, "seule
l'habitude est stable chez nos Noirs", apenas os hábitos são estáveis
nos "nossos" negros. Esta fórmula é acompanhada de estratégias de
domesticação muito específicas, as quais serão desenvolvidas nas
páginas que se seguem.
c) Uma política global de aculturação situava os escolhidos entre os
seus irmãos negros e os colonos brancos, sem reduzi-los a um grupo
ou outro. Caso a sua condição e o seu comportamento fossem reduzi-
dos aos de um negro, o projecto geraria seres frustrados, propensos
a desenvolver uma filosofia negativa ("ce qui les rendrait mécontents
de leur situation"); e caso fossem assimilados precocemente à comu-
nidade branca, poderiam tornar-se pretensiosos, exigentes e mar-
ginalizados ("ce qui les rendrait prétentieux, exigeants et en ferait
des déclassés").

l IV. A Domesticação e o Conflito das Memórias 185


Ao longo deste extenso período de aculturação, cuja duração média
era de 15 anos, o candidato aprende como se tornar "um corpo dócil",
no sentido foucaultiano. A estrutura do seminário apresenta uma
dimensão panóptica devido a três factores primaciais: o espaço, que
reproduz um modelo monástico, a repartição do tempo e a formação
de uma consciência transparente.
Primeiro, o espaço. Trata-se de um nenhures situado na floresta.
No Congo, as regiões de Kabwe, Kafubu, Lusaca, Mayidi e Mugeri, por
exemplo, figuram nos mapas coloniais como entidades eclesiásticas.
Geograficamente, localizam-se fora da vida real e assumem-se como
sistemas por direito próprio; formam uma ordem monástica ou car-
cerária tanto na sua arquitectura quanto na organização dos seus
edifícios, que incluem, em regra, cinco componentes principais e dis-
tintas: a capela, uma área para as aulas, a residência dos professores,
os refeitórios e os dormitórios. Fechado sobre si próprio e sem ligação
com o mundo exterior, o seminário é ainda um espaço masculino e es-
partano na medida em que debela, por vocação, qualquer dissonância
e apenas admite o estritamente necessário.
Segundo, o tempo. A distribuição do tempo baseia-se na regra de
ouro monástica dos oito por três: oito horas de oração, oito horas de
dormida, e oito horas de actividades profanas, designadamente o es-
tudo, o trabalho manual, o desporto e o lazer. Os seminaristas não são
monges pelo que o seu horário espelha a sua condição. Segue-se um
modelo baseado nas actividades diárias normais realizadas na maio-
ria dos seminários menores do Congo entre 1930 e 1960: 5:30, hora
de acordar; 6:00, meditação na capela; 6:15, missa; 6:45, estudo; 7:30,
pequeno-almoço; 8:00, aulas; 12:00, meio-dia, angelus e exame de
consciência; 12:30, almoço; 13:00, lazer; 14:00, aulas; 16:00, trabalho
manual; 17:00, estudo e orientação espiritual; 19:00, jantar e lazer;
20:00, oração da noite e último exame de consciência; 20:30, estudo;
21:30, hora de deitar.
Por fim, a transparência da consciência. O seminário procura destruir
por completo uma individualidade a fim de "reinventar" uma nova
com recurso a três técnicas essenciais: a) três auto-análises diárias,
antes da meditação da manhã, após o angelus ao meio-dia e antes da
oração da noite; b) um sistema sofisticado de autovigilância espiritual,
incluindo uma confissão semanal [durante a qual o candidato enfrenta
os seus pecados e os transmite em confidência a um confessor) e uma
orientação espiritual quinzenal na qual o candidato partilha as suas
incertezas, tentações e fraquezas a um "mestre espiritual", recebendo con-
selhos em troca; c) dois outros sistemas habituais de renovação espiri-
tual: um retiro anual, no início ou no final de cada ano académico, que

176V.Y.MudimbeA Ideia de Africa


obriga o estudante a reflectir sobre a sua vocação, assim como um apelo
explícito a uma mudança individual sistemática no Inverno, aquando do
Advento, e na Primavera, durante a Quaresma, em resposta à mensagem
e ao simbolismo da Natividade e da Ressureição de Cristo.
Os exames de consciência, a confissão, a missa diária da manhã e a
oração da noite iniciam-se com a recitação da Confiteor. O recitante
confessa a Deus, o Omnipotente, à Virgem Maria, aos Anjos e Santos,
mas também a vobis fratrís, "vós meus irmãos", que é culpado pois
peccavi nimis cogitatione, verbo, et opere, "pequei muitas vezes por
pensamentos [cogitatione), palavras [verbo] e actos [opere]". A coerên-
cia exigida por esta desconstrução espiritual é absoluta: o suplicante
expõe-se por completo. Pecou por intenções, palavras e actos, sujei-
tando-se a uma perfeita humilhação pública: mea culpa, mea culpa,
mea maxima culpa, "por minha culpa, minha tão grande culpa". E este
ritual de auto-infamação é realizado, no mínimo, três vezes por dia.
Por conseguinte, o espaço, o tempo e a transparência da consciência
constituem elementos "cruciais" de um plano de domesticação. Será
esta operação diferente da conduzida na Europa no âmbito da educa-
ção dos sacerdotes católicos? Não, no sentido em que os seminaristas
europeus pertencem a uma ordem instituída do Cristianismo e, por-
tanto, as técnicas utilizadas para a sua confirmação no modelo sacerdo-
tal são diferentes a nível organizacional: se forem submetidos a um
espaço monástico e a uma colonização do tempo praticamente idên-
tica, estes já se encontram algures na sua experiência passada; estão
a incorporar uma tradição que é sua. De qualquer modo, dispõem da
autorização de sair do espaço do seminário, pelo menos, para férias;
além do mais, contrariamente aos seus homólogos africanos, os pro-
cedimentos europeus em matéria de ensino não se traduzem numa
conversão obrigatória e absoluta das individualidades e da sua psico-
logia mas antes numa simples conformação a um paradigma que faz
parte da sua cultura.
Roelens frisa este ponto na apresentação da sua política de promoção
de um "Clergé Indigène", considerando que esperar um nível idêntico
de desempenho e determinação revela ingenuidade. Em 1893, "treze
candidatos ingressaram em estudos para o sacerdócio. Ano após ano,
outros chegaram e nós perseverámos. Dos cerca de 200 que iniciaram
os seus estudos para o sacerdócio, somente dez tiveram êxito. Alguém
que conheça os negros apenas superficialmente, dirá que é muito pou-
co, mas quem os conhece profundamente afirmará que é muito. 'É um
milagre da graça [...]'" (1932, p. 44]. De facto, trata-se de uma verda-
deiro milagre se considerarmos que estes candidatos assistiam a aulas
de aritmética, geometria, filosofia, etc., em latim.

l IV. A Domesticação e o Conflito das Memórias 185


A política de conversão de Roelens é passível de ser sintetizada numa
imagem. Segundo diversas testemunhas, Roelens sentia orgulho em
referir o conselho dado pelo Rei Alberto a Stefano Kaoze, o primeiro
padre "nativo", que o próprio apresentara ao rei como seu secretário:
"Agora és sacerdote na Igreja evangelizadora, regressa ao teu país para
servir; os negros aguardam o progresso e a verdade da parte do 'Clergé
Indigène'" (Masson, 1936, p. 80).

A conversão enquanto programa


Corre o ano de 1947. O Reverendíssimo Padre Bernard Mels exerce
a função de Provincial dos missionários scheutistas no Congo. Per-
tence a uma nova geração de missionários. No rescaldo da Segunda
Guerra Mundial, o effort de guerre imposto aos habitantes desgastou o
país. Refreados pela administração colonial, os motins de Luluabourg
deixaram recordações nítidas e pungentes. Uma carta de protesto
redigida por um grupo de évolués (uma classe média ocidentalizada
que, em termos sociológicos, se situa entre os senhores brancos e
as massas africanas) sobre o significado deste distúrbio político de
carácter excepcional circula clandestinamente entre negros e bran-
cos. Não obstante a estrutura aparentemente monolítica da ideologia
e política administrativas, novas vozes começam a fazer-se ouvir, na
maioria sub-reptícias e críticas dos métodos utilizados tendo em vista
a transformação do país. No que se refere às suas próprias políticas de
construção de uma classe média, a administração concordara, por fim,
em oferecer um brinquedo aos évolués para que se pudessem mani-
festar: La Voix du Congolais. Podiam escrever a seu belo prazer; com
efeito, no caso de serem aceites, os seus textos - em regra, sobre temas
aparentemente inofensivos, tais como a vida tradicional e os costumes,
a política de assimilação ou ficção - eram verificados e revistos escru-
pulosamente por um conselho editorial antes da publicação. O jornal
não pretendia instigar ao questionamento dos actuais governantes do
país, mas antes erguer-se como símbolo de uma comunidade belgo-
-congolesa que ainda estaria por vir. Contudo, a sua própria praticabili-
dade interfere com políticas antigas há muito estabelecidas e procede
a uma revisão parcial das mesmas. A partir desse momento, por uma
questão de princípio, a possibilidade de os negros assumirem o papel
de interlocutores é aceite, por vezes a contragosto. Mas quais negros?
No vicariato católico de Cassai, a implantação do Cristianismo decorreu
de modo consistente desde a última década do século XIX. Após a guerra,
os missionários começaram a levar em conta o descontentamento dos

16/, V.Y. Mudimbe A Ideia de Africa


seus seguidores. Será que alguma coisa correu mal? E o que poderá ser
feito para corrigir essa situação? Foi neste contexto que Bernard Mels
proferiu uma série de palestras aos seus colegas scheutistas, entre
Setembro de 1946 e Fevereiro de 1947, analisando a síndrome da crise
política na colónia e o seu impacto no programa de evangelização.
Podemos salientar dois aspectos fulcrais no pensamento de Mels: a
necessidade de uma reconversão da filosofia missionária, e uma nova
pedagogia que deveria contemplar uma psicologia do contacto de
culturas com seriedade. O conceito de crise e o seu relativismo históri-
co constituem o leitmotiv:
[Ao] lermos os anais da história de diferentes povos, afigura-se surpreendente o
facto de todos os historiadores considerarem a sua época uma época de crise, uma
ruptura histórica. Ainda assim, a explicação é simples: com efeito, cada comunidade,
cada país evolui constantemente, verificando-se, a todo o momento, problemas séri-
os e excessos que resultam em adversidades. Aqui no Congo, falamos actualmente
de "evolução", de "revolução" e, amiúde, a impressão transmitida é a de que a situa-
ção está a agravar-se e que se avizinham tempos ainda mais complicados. Vicissi-
tudes - sempre as tivemos e sempre as teremos. (Mels, 1946-47, p. 1).

Na óptica de Mels, o conceito de crise, no seu sentido mais lato, não


constitui sequer um escândalo. Pelo contrário, faz parte da história e
confirma a história da colonização. A presença europeia em África in-
voca-o explicitamente nas transformações que propiciou: Mels reitera
que houve, de facto, uma evolução, criando ou exacerbando rupturas
sociais aparentemente revolucionárias: "uma comunidade começa a
inquietar-se, perturbando as marcas de uma escravatura física e es-
piritual antiga" (Mels, 1946-47, p. 2). Para efeitos da sua intelecção, o
processo parece-lhe inevitável, dada a impossibilidade de simular uma
oposição entre ciência e história. De resto, os motins, os panfletos dos
évolués ou as políticas coloniais são factos individualizados pelo que o
seu conhecimento aprofundado exige uma compreensão sólida que os
associa obrigatoriamente a uma ordem universal do saber.
Em seguida, Mels discorre sobre os motivos subjacentes ao mal-estar
social no Congo, indicando três factores primaciais. Em primeiro lugar,
o fosso entre negros e brancos. Em segundo lugar, o despedaçamento
das tradições africanas no quadro da colonização, que, ao promover
novos modos de vida, seria responsável por um sentimento de insegu-
rança no espírito de vários negros. Num tom cínico, Mels acrescenta
que esta situação fora alcançada provavelmente graças ao empreen-
dimento missionário: "Nós, missionários, podemos sentir orgulho [da
nossa obra], apesar dos avisos de certos antropólogos e burocratas

l IV. A Domesticação e o Conflito das Memórias 185


que entram em êxtase ao estar na presença dos chamados 'maravilho-
sos costumes ancestrais'" (1946-47, p. 4). O terceiro factor apontado
por Mels diz respeito à divisão entre ricos [Beati possedentes) e po-
bres, poderosos e impotentes, remetendo a questão directamente para
os problemas das novas classes sociais e, muito em particular, da orga-
nização social da produção ao abrigo da colonização.
Para Mels, estes três factores ou estas três explicações são fulcrais
para um entendimento da crise social, além de justificarem uma
mudança na política e nas estratégias da acção missionária; em termos
programáticos, como dar seguimento à evangelização sem compro-
meter o investimento do passado? Na perspectiva de Mels, a tentação
mais óbvia seria um afastamento em relação ao contexto sociopolítico
global cingindo as actividades aos compromissos religiosos e sacerdo-
tais. Ao invés, Mels advoga que os missionários devem prosseguir com
a sua participação activa em programas destinados ao aperfeiçoamen-
to humano através do cultivo do interesse nos indivíduos que servem,
da adaptação das actividades missionárias às novas condições soci-
ológicas e do acompanhamento diligente da constituição progressiva
do novo grupo social de évolués, procedendo igualmente a uma actu-
alização concreta da doutrina oficial da Igreja no concernente à classe
operária.
Todavia, Mels considera que o verdadeiro problema reside na tensão
e separação entre negros e brancos; trata-se, em suma, de uma questão
de diferença racial. O seu discurso aceita-a como um dado adquirido,
como um facto que só pode ser superado através da graça cristã e,
sob este ponto de vista, Mels exorta os missionários a inscreverem-
-se num sacrifício e numa abnegação perpétuos, acrescentando que:
"facilmente nos tornamos dominadores no Congo, [o que aparenta ser
a servilidade] dos negros, a nossa própria natureza arrogante incita-
-nos constantemente a esse estado" (Mels, 1946-47, p. 12). Ao enfatizar
a tensão entre as comunidades negras e brancas, Mels pretende con-
servar a coerência inicial que serve de base para o sentido de missão
e rectificar as suas práticas e os seus procedimentos concretos, alvi-
trando que a nova operação deve depender da experiência originária
mas com o intuito de redireccionar a perspectiva da missão. De entre
uma panóplia de novas medidas de acção, identificamos propostas
para um novo modelo de escola dominical orientada para o autode-
senvolvimento dos alunos, encontros frequentes de jovens como uma
prática diversiva a fim de aplicar os princípios da ética cristã, sessões
para évolués nas quais o missionário desempenharia o papel de par-
ceiro igualitário na construção de uma nova sociedade, a par de retiros
mensais ou trimestrais para os membros da "Acção Católica".

16/, V.Y. Mudimbe A Ideia de Africa


As instruções de Mels anunciam um novo modo de procedimento.
Importa realçar que esses novos modos de procedimento - ou se,
preferirmos, de reconversão - "são análogos a 'instruções de utiliza-
ção' e forjam uma actividade na máquina por meio de uma estratifi-
cação de tipos de funcionamento distintos e interferentes" [De Cer-
teau, 1984, p. 80). Com efeito, as instruções insistem em duas acções
complementares: por um lado, a necessidade de manter e propagar
os princípios básicos da tradição cristã e, por outro, a vantagem de
os missionários, juntamente com os seus parceiros, os évolués, as-
sumirem o papel de descobridores de um novo futuro: "Não podemos
descartar esta oportunidade; agarremo-la com as duas mãos para evi-
tar possíveis arrependimentos [...]. É também esse o nosso dever en-
quanto missionários. Cabe-nos a nós sermos os educadores do 'nosso'
povo" [Mels, 1946-47, p. 6). Mas quais serão os alvos? De acordo com
Mels, em primeiro lugar, as crianças pois são "fáceis de pastorear" e
susceptíveis de serem influenciadas por uma "personalidade forte".
No entender de Mels, um projecto de normalização, uma organização
panóptica, poderia transformar as propensões adquiridas hereditari-
amente pelas crianças [1946-47, pp. 43-44). Em segundo lugar, os pro-
fessores, considerados colaboradores importantes que não devem ser
confundidos com os cozinheiros e outros serventes: devem participar
em todos empreendimentos escolásticos e para-escolásticos embora
não sejam de fiar. Mels insiste que o missionário deve ser um "pai"
para o professor nativo. Por fim, a categoria geral e vaga dos cristãos
que aguardam um novo tipo de dinamismo. Segundo Mels, trata-se de
um corpo frágil, composto por dois grupos indignos de confiança: os
idosos devido à sua profunda superstição e as mulheres pois são
"desprovidas de vontade".
Estamos perante um cenário desfigurador: a missão racionahza o seu
novo papel e reformula novas tácticas: afinal, "eles" são nossos irmãos
e nossas irmãs, como guiá-los para a salvação sem incorrer na sua hu-
milhação? Uma vocação confronta-se a si própria nesta pergunta, que
remete manifestamente para uma nova forma de produção cultural:
qual a nova ideia de África a promover? A actividade missionária e os seus
postulados teóricos invertem o passado. A colonização e a conversão
de um espaço e dos seus habitantes preservam o objectivo: a civili-
zação. Contudo, assiste-se à reconfiguração dos próprios métodos e à
elaboração de novas estratégias no sentido de preparar uma sucessão:
é possível que "eles" tenham de prosseguir com a nossa missão; como
garantir um caminho ortodoxo? Para Mels, a resposta é simples: au-
toconversão e autenticidade, frisando que: "nós [missionários] escan-
dalizamos os negros mais do que podemos imaginar. Para prová-lo.

IV. A Domesticação e o Conflito das Memórias 185

l
basta recolher as impressões que guardam de nós, as quais, infeliz-
mente, nem sempre são falsas" [1946-47, p. 34]. Por conseguinte, o
missionário torna-se o objecto da conversão, é o detentor da verdade e
define os percursos espirituais. Porém, conforme observado por Mels,
cabe agora ao missionário reaprender não o seu material de base mas
antes a sintaxe e o vocabulário utilizados para veiculá-lo.
Registam-se conversões de ordem linguística e sociológica. O mis-
sionário passa a discursar menos e, sobretudo, a ouvir o convertido
e, seguramente, o évolué, agora um interlocuteur valable. Neste caso, a
importância reside não apenas naquilo que é transmitido mas também
no modo como é comunicado, tendo o último adquirido uma maior
relevância. Com efeito, a deficiência do projecto colonial no seu todo
encontra-se precisamente neste aspecto. O ensinamento de Mels di-
rigido aos seus colegas scheutistas constitui, de facto, uma táctica -
nada menos do que a arte do fraco: como sobreviver? Como manter a
legitimidade da nossa presença e a sua visão? As técnicas de adaptação
sugeridas testemunham um problema colonial de teor geral.
Quanto maior o poder, menor será a mobilização de uma parte dos seus meios ao
serviço do artifício; é perigoso utilizar forças consideráveis em prol das aparências;
este género de "demonstração" é, em regra, inútil e "a seriedade da necessidade
amarga confere tanta urgência às acções directas que não deixa espaço para este
tipo de jogo". Aplicamos as nossas forças, não corremos riscos com logros. O poder
está sujeito à sua própria visibilidade. O embuste, pelo contrário, é possível para os
fracos, constituindo, amiúde, a sua única oportunidade, um "último recurso": 'quan-
to mais fracas as forças à disposição do estratega, maior será a sua propensão para
recorrer ao artifício". Por outras palavras: mais a estratégia adquire os contornos de
uma táctica. [De Certeau, 1984, p. 37)

Mels está no poder por aquilo que representa e simboliza. Não pre-
cisa de provar a sua eficácia pois tem perfeita consciência daquilo que
personifica enquanto branco, colono e missionário. As tácticas desen-
volvidas nas suas instruções vão ao encontro de uma política acentua-
damente prática: como articular a primazia da missão segundo novos
moldes. Consequentemente, surgem novas regras, enunciam-se novas
normas sobre o modo de lidar com os negros em geral, e aplicam-se no-
vas tácticas em matéria de diálogo e comportamento junto dos évolués,
que, apesar da sua posição sociológica, ou porventura por causa dela,
Mels parece desprezar. De acordo com as suas próprias palavras, o pro-
cesso é "humilhante", mas "sejamos objectivos, não nos devemos guiar
pelos nossos sentimentos [...] em relação a estes "negros" arrogantes.
A nossa missão consiste em ensiná-los [...] e não devemos alimentar a

A Ideia de África
antipatia que, por vezes, sentimos instintivamente a seu respeito [...]"
(1946-47, pp. 27-28)
Em comparação com Roelens, Mels é um "moderno". Permitam-me
uma breve descrição dos seus contextos geográficos e missionários,
confrontando, em seguida, as instruções de Mels com as de Roelens,
escritas largos anos antes aquando do período da conquista.
Os Padres Brancos já se encontravam a trabalhar no Congo Oriental
quando os Scheutistas começaram a implementar as suas missões na
região ocidental. Um decreto papal de 11 de Maio de 1888 instituiu
o Vicariato do Congo Belga, composto por Scheutistas. Entre 1888 e
1908, a missão perdeu 38 membros que faleceram por força da sua
incapacidade de adaptação ao meio. Entretanto, assistiu-se a uma ex-
pansão frutífera com a construção de Berghe-Sainte Marie, Nouvelle
Anvers, Kalala Merode Salvator, Tshilunda Hemptinne Saint Benoît,
Lusambo Saint Trudon e Thielen Saint Jacques. Além disso, à
semelhança dos Padres Brancos na região oriental, os Scheutistas
combateram os traficantes de escravos e "adquiriram" órfãos e anti-
gos escravos, os quais, já convertidos, constituíam o núcleo dos postos
missionários. Em colaboração com o Estado colonial, os Scheutistas
inauguraram instituições especificamente dedicadas a crianças órfãs
em Boma e Nouvelle Anvers em 1892.
Importa sublinhar que, ao contrário dos Padres Brancos, os Scheutis-
tas, de entre os quais 33 eram missionários em 1903, tinham naciona-
lidade belga. Concretizaram o sonho do Rei Leopoldo II, que, em 1876,
havia convidado esta nova ordem belga, cujo alvo era o Extremo Ori-
ente, a participar na colonização da Bacia do Congo. Aliás, foi precisa-
mente na Mongólia, sob a liderança do Abade E. Verbist, o fundador
da Ordem, que os Scheutistas decidiram tornaram-se colonizadores no
Congo.
A colaboração privilegiada entre o Estado e a Ordem exerceu um
impacto significativo sobre a política de evangelização na Bacia do
Congo. Por exemplo, as missões estavam isentas do pagamento de im-
postos. Um decreto de 26 de Dezembro de 1888 estipula as normas
de cooperação entre o Estado e as missões. Leopoldo II transmite com
bastante clareza quais os missionários da sua eleição ao escrever a
Lambermont que: "o Estado deve favorecer tanto quanto possível os
missionários belgas" (Cuypers, 1970, p. 33). Um decreto datado de 16
de Julho de 1890 veio a confirmar este estatuto privilegiado [Bulletin
de l'État Indépendant du Congo, 1890, p. 13). As missões, de preferên-
cia belgas, beneficiam de três tipos de vantagens. Em primeiro lugar,
subsídios especiais concedidos pelo Estado, trimestralmente, pelo
menos no início. Assim, a partir de 1888, os Scheutistas recebem um

l IV. A Domesticação e o Conflito das Memórias 185


subsídio trimestral regular como compensação do trabalho realizado
nas escolas congolesas. Em 1890, tem lugar a confirmação da isenção
de impostos, sendo que o Estado, consoante determinadas situações,
aceita financiar a totalidade dos custos - relacionados com o combate
ao tráfico de escravos e a educação de crianças órfãs. (Cuypers, 1970,
p. 36). O segundo tipo de compromisso reveste-se de maior importân-
cia: o Estado promete construir a primeira "missão" para todas as
Ordens. Contudo, na prática, não existe homogeneidade. Por exemplo,
em 1892, os Jesuítas contam com o Estado para o fornecimento do
edifício e do recheio. Porém, os Trapistas são mais beneficiados do que
os Jesuítas. Por fim, a terceira vantagem: em princípio, o Estado assume
a responsabilidade de cobrir todos os custos da viagem dos mis-
sionários belgas desde a Europa até ao seu posto em África.
A oposição entre Mels e Roelens deve ser entendida à luz deste con-
texto. Ambos eram belgas mas pertenciam a períodos ligeiramente
diferentes no processo de colonização. Ambos eram belgas mas Roelens
era líder de uma Ordem que incluía elementos de outras nacionali-
dades, ao passo que, para Mels, a questão de dispor de missionários
belgas perdera a sua pertinência. Finalmente, verifica-se uma última
diferença: Roelens discursou na fundação de um projecto e Mels pro-
curou revê-lo anos mais tarde, a fim de participar naquilo que pare-
cia ser a "inevitabilidade" da história: os negros exigiam dignidade e
igualdade.
Nas suas Instructions, Roelens descreveu a visão de uma era: uma
psicologia dos negros baseada na "nossa experiência e na experiência
de terceiros que se dedicaram especificamente ao estudo dos negros."
Todavia, o seu "negro" confirmou o estereótipo: um ser imerso na na-
tureza, de má índole, preguiçoso, impulsivo, supersticioso, dominado
pelas paixões, incapaz de raciocinar, cuja ultima ratio rerum seria o
hábito enquanto costume e natureza. Roelens constatou igualmente
qualidades "naturais" a serem trabalhadas pelos missionários, tendo
em vista a transformação dos negros, as quais incluíam um sentido
nato de honestidade, justiça, gentileza, ligação à família, generosidade
e respeito para com os que estão no poder.
Trata-se, efectivamente, de generalizações fáceis e controversas pro-
venientes do acervo colonial, as quais justificam a colonização como
exploração e obra civilizadora. Na verdade, a propósito do projecto da
missão cristã, considerou-se que: na qualidade de uma suposição a
priori do empreendimento, estas generalizações exigiam uma estraté-
gia orientada para uma transformação radical de uma natureza cor-
rompida que se assume como um desperdício (um excesso e um peca-
do), um desafio (o inimaginável) e um crime (a negação da civilização)

16/, V.Y. Mudimbe A Ideia de Africa


perante o Cristianismo. Nesse sentido, corresponde a uma estratégia
didáctica visando a "domesticação" dos espíritos e uma engenharia
social destinada a produzir "novos" seres. Roelens descreve-as nas
suas Instructions sublinhando cinco elementos fundamentais: 1) a
aplicação de um método adequado (com efeito, "eles" são, ao mesmo
tempo, crianças - portanto, inocentes - e "primitivos" completamente
corrompidos); 2) a focalização na "sua" razão de modo a adaptá-la ao
"seu" comportamento; 3) a manipulação da imaginação e do poder
afectivo a fim de desenvolver uma nova vontade de conhecimento; 4)
a promoção de novos tipos de hábitos "colectivos" e "individuais"; 5)
a introdução dos princípios do trabalho regular e constante na rotina.
Estes pontos concorrem para uma estratégia global de práticas coloni-
ais que pretendem criar uma conversão. Veiculam postulados implíci-
tos (por exemplo, a superioridade de um modo de ser, a primazia da
razão, etc., que traduzem a racionalidade do programa da conversão),
a par de princípios explícitos (o recurso à imaginação para alterar
práticas de raciocínio ou desenvolver novos hábitos assentes numa
economia de expansão).
As Instructions aparentemente liberais de Mels não contradizem as
posições problemáticas de Roelens. Parecem enquadrar-se na mesma
política de conversão e, de facto, assim o é. Na realidade, as estratégias
"não 'aplicam' princípios ou regras; procedem a uma selecção dos mes-
mos visando construir o repertório das suas operações" (De Certeau,
1984, p. 54). É possível analisar a modificação superficial da lingua-
gem estereotipada de Roelens que Mels leva a cabo, atentando no re-
curso a determinados procedimentos, nomeadamente o multi-ateísmo
(verifica-se uma adaptação das designações de "paganismo" ou "selva-
jaria" do vocabulário de Roelens ao contexto de Mels, as quais sofrem,
amiúde, uma metaforização através de conceitos como tradição, cos-
tume, práticas antigas); a substituibilidade (patente na ideia de évolués,
que, em última instância, dará origem à noção de interlocuteurs valables
no final dos anos 50); o eufemismo (de facto, Roelens não se coibia de
utilizar palavras como "primitivo", "selvagem", etc., inserindo-as numa
estratégia de domesticação, como se se estivesse a referir a animais;
no final da década de 1940, Mels adaptou a sua linguagem, evitando
expressões que pudessem parecer insultuosas, pese embora a sua
adesão aos fundamentos da filosofia de Roelens); e a analogia (que
permite a refundação constante de ordens de comparação: a título de
exemplo, para Roelens, a colonização e a evangelização estavam
inscritas numa grelha evolutiva elementar ao passo que Mels, por
outro lado, sabia como utilizar postulados e metáforas difundidos
pelas correntes difusionista e funcionalista da antropologia).
l

IV. A Domesticação e o Conflito das Memórias 185


Em síntese, remetendo para Michel de Certeau que, na esteira do tra-
balho de Pierre Bourdieu, resumiu devidamente estas práticas (1984,
pp. 45-60), Roelens e Mels eram estrategas na política de domesticação
do espírito africano e da criação de uma nova ideia de África. Inteligen-
tes e intelectuais (graças à sua educação e experiência), multilingues
(por necessidade e ambição) e poderosos (devido ao estatuto que go-
zavam na sua Ordem, na Igreja e no Congo), sabiam quais as tácticas
a utilizar e como implementar as suas estratégias de modo a inverter
as ordens culturais africanas. Com efeito, as estratégias simplesmente
"jogam com todas as possibilidades oferecidas pela tradição, utilizan-
do uma tradição em detrimento da outra, compensando uma através
da outra. Ao tirar vantagem da superfície flexível que cobre o núcleo
duro, elas forjam a sua própria relevância dentro desta rede" (De Cer-
teau, 1984, p. 54).

Geografia e Memórias
Conforme verificado nas páginas anteriores, a experiência colonial
caracteriza-se pelo confronto de dois tipos de sociedades, cada uma
provida de uma memória específica. Coerente e monolítico, o sistema
colonial é sustentado pelas suas práticas expansionistas, deparan-
do-se com uma multitude de formações sociais africanas dotadas de
memórias distintas e, amiúde, particularistas que competem entre si.
Por conseguinte, no final do século XIX, a colonização vincula de um
modo estreito memórias colectivas diferentes e, por vezes, antagóni-
cas oriundas de uma variedade de culturas africanas. Oferecendo e im-
pondo a conveniência da sua própria memória, a colonização afiança
aos colonizados o sonho de um enriquecimento gradual. De que modo
se concretiza esta transformação de memórias africanas tão diversas?
Quais os argumentos a utilizar por uma política colonial marcada pela
manipulação dos desejos, no sentido de realçar convincentemente as
vantagens da conversão a uma nova memória que, em concomitância,
deve inaugurar uma ordem social profundamente nova?

Um modelo espacial: Le Centre Extra-Coutumier


d'Elisabethville
Em Le Centre Extra-Coutumier d'Elisabethville (1950), o discurso
de F. Grevisse reflecte a sua condição de funcionário público colonial
e historiador da região de Katanga. Na sua obra, Grevisse analisa a

A Ideia de África
política belga responsável pela implementação eficaz de um conjunto
de políticas de delimitação e domesticação. Este novo corpo "social",
recentemente definido, era composto por africanos que deveriam
personificar um começo absoluto da história, sendo o Centre Extra-
-Coutumier [C.E.C.) o local exclusivo para colmatar o fosso entre a
memória tradicional e uma memória radicalmente reconstruída.
Sob a direcção do Governador Heenan e de alguns colonos "ilumina-
dos", o C.E.C. adquiriu os contornos de uma experiência e foi transformado
numa "comunidade nativa", constituindo, desde a sua concepção, uma
memória experimental ou, em bom rigor, um entrelaçamento de elemen-
tos africanos e coloniais. Esta nova memória emergente correspondia,
de facto, a uma força dinâmica cuja transformação se pautou por uma
série de exigências relacionadas com a finalidade da escola colonial,
uma nova administração profundamente hierárquica, e a presença de
uma vigilância policial secreta e permanente, que funcionava como
uma força de coacção. Entendia-se que a missão da escola era a de ga-
rantir a educação das massas. Essa educação, conduzida ao abrigo dos
termos dos programas oficiais de 1889 e 1930, visava a promoção de
um novo sistema de valores. Na prática, a escola fomentava uma nova
Weltanschauung, a par de uma ideologia assente na tradição judaico-
-cristã. Aos estudantes, era-lhes ensinada uma moral baseada nos va-
lores familiares e na responsabilidade cívica. Após completarem os
seus estudos, tornavam-se oficiais menores da administração colonial
ou trabalhadores especializados dentro do Centro - constituindo, assim,
a classe média de que os belgas necessitavam.
A estrutura administrativa do C.E.C inspirou-se em elementos do estilo
indirecto do domínio colonial britânico e do estilo directo dos franceses.
Um administrador colonial (que subia hierarquicamente desde a função
de agente territorial até ao cargo de chefe do C.E.C) era responsável pela
administração dos interesses de uma variedade de conselhos e exer-
cia controlo sobre a polícia, o orçamento e os africanos que trabalha-
vam no C.E.C. Estes africanos tinham uma dupla função. Por um lado,
estavam incumbidos de transmitir e executar políticas relativas a meios
concretos de conversão social e cultural. Nesta capacidade, transmitiam
as informações dos oficiais coloniais superiores à população do Centro.
Por outro lado, facultavam notícias acerca de diversas actividades, as-
sim como dos problemas que delas poderiam resultar afectando os pro-
cessos de conversão. Como tal, o volume de formalidades administrati-
vas do C.E.C e o tédio dos jovens burocratas africanos, bem versados nos
acrônimos complexos que iniciavam cada carta e cada relatório, eviden-
ciava uma ordem subjacente - a ordem da conversão. Cabia ao chefe do
C.E.C organizar diariamente este processo de conversão, mas não sem

l IV. A Domesticação e o Conflito das Memórias 185


o crivo do Comité Protecteur du Centre, que "a pour mission de veiller
à l'amélioration des conditions morales et matérielles d'existence des
habitants du ou des centres" ([o Comité] procura zelar pela melhoria
das condições morais e materiais da vida dos habitantes do Centro), e
"a le droit d'inspecter le centre en tout temps afin d'être tenu informe
de la gestion du patrimoine" ([o Comité] tem o direito de inspeccionar o
Centro em qualquer altura de modo a manter-se ao corrente do estado
do patrimônio) (K. Mabanza, 1979, p. 142).
Este desejo de transformação é por demais evidente no sistema de
justiça e na distribuição de diversas profissões pelos habitantes do
Centro. A 15 de Abril de 1886, foi emitido um decreto estabelecen-
do uma jurisdição especial para os congoleses fixados nos centres
extra-coutumiers. Esta jurisdição estava, ao mesmo tempo, separada
das jurisdições africanas tradicionais e situada no próprio perímetro
do sistema de justiça organizada para os colonos. Em 1932, num co-
mentário sobre o decreto, A. Sohier observou que o sistema judicial
do centro era, no seu todo, manifestamente polêmico: desrespeitava
os sistemas tradicionais africanos e não estava de facto subordinado
aos princípios da lei colonial (1949). Quanto à polícia, duas divisões
distintas, nomeadamente a polícia geral de serviço permanente e uma
unidade de investigação de carácter mais especializado, eram respon-
sáveis pela manutenção da ordem e da moral. A primeira constituía
uma presença visível na vida quotidiana dos habitantes do C.E.C. O seu
duplo foi criado a breve trecho sob a forma de uma unidade especial,
a polícia judicial, sob o comando da hierarquia judicial colonial e a
unidade invisível de investigação. Cabia à última vigiar todos os indi-
víduos e movimentos sociais que representassem uma ameaça directa
ou indirecta ao espaço e à memória em construção. Esta força policial
ocupava-se não só de criminosos como de qualquer pessoa que se
destacasse das massas anônimas dos habitantes do C.E.C.
Segundo P. Minon, aquando da criação do Centro, em 1932, a popu-
lação ascendia aos 9000 habitantes, aumentando para 440 000 na
década de 1950 (Minon, 1957). Quando Grevisse publicou o seu estudo
sobre Elisabethville em 1950, esta população era composta por uma
multiplicidade de origens étnicas: cerca de 44% provinha da província
de Katanga, 39% de Cassai, e o remanescente de países vizinhos como
Angola, Rodésia, Niassalândia, Ruanda-Burundi e ainda outros da África
Ocidental. Esta diversidade genética era, em si, um problema cultural,
constituindo a base para a promoção do desenvolvimento de uma nova
memória, ou do fomento de dissensões no seio do ambiente humano por
parte das autoridades coloniais em caso de ameaça à sua função ou au-
toridade. De facto, esta diversidade cultural apontou para a coexistência

176V.Y.MudimbeA Ideia de Africa


de uma variedade de costumes no mesmo espaço. O espaço físico do
Centro, dividido entre os subgrupos etnolinguísticos, era palco de uma
competição sociológica travada pelas diferentes línguas, designada-
mente bemba, sanga, suaíli e luba, a par dos diversos sistemas de
descendência matrilinear e patrilinear. Esta diversidade e os conflitos
que lhe estão inerentes seriam adensados em períodos de crise política.
Todavia, a partir da década de 1930, o objectivo colonial é passível
de ser definido como a invenção de uma nova cultura coesa. No C.E.C.,
esta cultura era notória em três níveis distintos. Em primeiro lugar, a
imposição ipso facto da sucessão patrilinear enquanto único modelo
e projecto conforme às normas cristãs. Os matrimónios cristãos e a
sucessão patrilinear simbolizavam a integração na ordem colonial. Em
segundo lugar, a organização hierárquica das línguas, com o francês, a
língua do "mestre", a ocupar o topo da pirâmide. Apesar de os povos
colonizados terem autorização para falar francês, a língua era "pro-
priedade" da elite e o seu conhecimento distribuído com muita cau-
tela. No entender dos povos colonizados que almejavam o seu estatuto
social, o francês revelava-se um meio de ascensão social e de prestí-
gio. Enquanto as línguas africanas [bemba, sanga, songye, luba, etc.)
eram faladas no Centro - por exemplo, em reuniões de associações
linguísticas lideradas pelo Padre Coussement desde 1925 - o francês
era a língua utilizada nos debates e nas comunicações da Sociedade
Clerical - criada pelo mesmo missionário - bem como nas associações
médicas. Além disso, era a língua adoptada nos encontros do Cercle
Saint Benoit, cuja missão, segundo o Bispo Jean-Félix de Hemptinne,
Vicário Apostólico de Katanga, era a de "réunir les évolués régulière-
ment en une ambiance saine," e "leur donner un complément de forma-
tion humaine et intellectuelle" (reunir os évolués regularmente numa
atmosfera saudável e oferecer-lhes uma formação humana e intelectual
complementar). Como meio de comunicação, o francês significava uma
cultura transformada num índex absoluto da civilização. No plano soci-
ológico, venceu todas as diferenças étnicas dentro dos limites do Cen-
tro e criou uma união de évolués (isto é, de negros em plena transição
dos costumes étnicos para uma nova cultura), sob o olhar atento do
colonizador e do missionário. Nesse sentido, o francês correspondia a
um domínio onde as tradições africanas eram activamente delapidadas
com vista a permitir o desenvolvimento de uma nova memória.
O suaíli era a segunda língua da hierarquia, sendo utilizada para o
ensino geral na escolaridade primária e constituindo a língua quase-
-oficial do Centro. Adoptada pela administração para fins comuni-
cacionais com os habitantes, o suaíli tornou-se a língua "comum" e,
portanto, confirmou a condição do Centro enquanto corpo autónomo.

l IV. A Domesticação e o Conflito das Memórias 185


separado das aldeias circundantes onde se falavam outras línguas étnicas.
Caracterizou uma nova cultura colonial e urbana, na medida em que era
utilizado em todo o sistema de ensino, nas igrejas, na administração e na
vida quotidiana. Por um lado, o suaíli negava a existência de diferenças
étnicas e sociais, reunindo e representando a totalidade da população de
acordo com o seu sistema de representação. Por outro lado, verificava-se
uma demarcação do Centro. A sua configuração e o seu papel distinguiam
o seu espaço dos restantes territórios adjacentes de um modo acentuado.
No concernente ao prestígio dentro do Centro, o suaíli situava-se entre o
francês, no topo da hierarquia linguística, e as restantes línguas africanas
na base da pirâmide. Estas "outras" línguas estavam directamente ligadas
a um lugar de prestígio e poder inferiores no sistema social. Porém, para-
doxalmente, a apreensão desta inferioridade não propiciou uma perda
completa de poder. Em virtude da sua relação estreita com os factores
que ditavam a distribuição global da população do Centro em termos de
nomenclatura genética (ou seja, bemba, hemba, luba, sanga, etc.], e com
a representação proporcional dos povos pertencentes a vários grupos
profissionais, estas línguas e culturas divergentes competiam amiúde por
uma maior proeminência, sendo que esta disputa gerava ocasionalmente
um confronto, ou uma espécie de guerra étnica. A administração colonial
podia utilizar esta rivalidade como uma arma; a tensão constante era
susceptível de ser manipulada politicamente. Todavia, uma política desta
natureza pode sair cara: Moise Tshombe, um produto de raça pura da
cultura évolué serviu-se dela friamente durante os alvores da inde-
pendência no Congo Belga em 1960.
O terceiro nível no qual a invenção de uma nova memória colonial
era manifesta correspondia ã profissionalização dos habitantes, a qual
ilustrava a construção progressiva das classes sociais. Na sua obra,
que inclui a descrição de um dos pontos de viragem mais significati-
vos no desenrolar deste processo, Grevisse constatou a existência de
seis categorias profissionais principais: a] empregados de escritório,
enfermeiros, etc.; b] trabalhadores qualificados da construção civil; c]
serventes; d] técnicos não-profissionais; e] comerciantes; f] artesãos
independentes. A partir desta lista de profissões, podemos identificar
a evolução de três categorias sociais principais: a] técnicos ao serviço
da administração ou de uma das novas instituições, tais como bancos,
hospitais, serviços judiciais, fábricas, etc.; aqueles que conseguiam
alcançar ardilosamente os escalões mais baixos da estrutura do poder
colonial; b] uma pequena burguesia envolvida nos negócios (comer-
ciantes, artesãos, etc.], que capitalizava com as necessidades internas
do C.E.C, e o seu poder ideológico na região; c] uma classe operária
acabada de nascer atraída pelo sistema.

A Ideia de África
Importa salientar que este sistema organizacional denotava a
existência de uma "economia" de conversão cultural na qual as nor-
mas do mercado, designadamente a concorrência, a qualidade in-
dividual enquanto produto da nova cultura, a capacidade de gerar
lucro, etc., controlavam e regulavam a integração gradual dos indi-
víduos considerados "aptos" para domesticação. Encurralado en-
tre duas memórias, o évoluant do Centro tentava provar que havia
conseguido reprimir a memória africana tradicional nos seus pensa-
mentos, na sua vida e no seu trabalho, estando, por isso, aberto à
assimilação numa nova memória. O início da sua própria história, a
par da sua consciência individual, deveria coincidir com o sistema
colonial. Mais concretamente, um conjunto de procedimentos e tes-
tes de selecção eram constantemente aplicados obrigando o évoluant
a sujeitar-se a esta transformação. As escolas e as igrejas procediam
a uma avaliação contínua das capacidades intelectuais, no sentido
de facilitar uma selecção criteriosa de potenciais candidatos, desde
a primeira infância, para inserção na nova hierarquia profissional.
Acresce ainda que a vigilância ininterrupta levada a cabo pelas forças
de investigação exercia um controlo reforçado sobre as reacções dos
candidatos face às exigências diárias dos novos códigos éticos, profis-
sionais e culturais.
Na verdade, os três níveis referidos - os matrimónios cristãos e a
sucessão patrilinear, a hierarquia linguística e a profissionalização -,
discriminados em separado por motivos analíticos, complementam-se
entre si. Visam a conversão a uma nova ordem, ou seja, a eliminação
da tradição e a produção do convertido no seio da "modernidade". A
título de exemplo, segundo o Padre Coussement, o objectivo da con-
versão do Cercle Saint-Benoit, era, desde a década de 1930, o de re-
duzir as constrições étnicas consideradas negativas, além de combater
o racismo contra negros e a oposição à colonização e à evangelização
(Coussement, 1932). A capa de uma pequena revista contemporânea
dos évolués do Cercle Saint-Benoit constitui possivelmente um sím-
bolo do projecto da conversão: uma faixa celebra a esperança de uma
comunhão entre brancos e negros em nome de uma cruz que especifi-
ca determinadas condições: solidariedade, fraternidade, compreensão
mútua e respeito recíproco (Grevisse, 1950, p. 362).

O lugar vazio: a ordem declarada


A metamorfose de uma memória, designadamente aquela que se
verifica num território colonial africano, não constitui uma mera

l IV. A Domesticação e o Conflito das Memórias 185


ocorrência simbólica. Decorre ao longo de um processo de neu-
tralização, (rejcriação e reorganização de um local, da sua geografia,
e dos valores que permitiam a uma tradição distingui-la. O princípio
da "terra nullius", que concedia aos príncipes cristãos o direito de es-
poliar os povos não-europeus e transformar as suas histórias, ostenta
este significado desde o século XV. Inculcado no sistema de valores
ensinado pelas escolas e fomentado no seio da civilização europeia,
o princípio da conversão encontrou a sua expressão concreta na colo-
nização dos "pagãos". Neste gesto colonial, a metamorfose de uma
memória constituía um dever moral inexorável e, sem dúvida, uma
força de domínio que, a par do seu homólogo, a subjugação, assinala
a transformação de uma memória cuja reconstrução testemunha esta
mesma violência.
Graças à designação do lugar, todos estes valores convergiam mag-
nificamente. Entre 1885 e 1935, assistiu-se a uma política colonial da
toponímia cujo funcionamento era consentâneo com outros modelos de
colonização. Graças aos seus novos nomes, as regiões africanas trans-
formaram-se em marcas de fidelidade monárquica. Albertville substi-
tuiu Kalemie, Baudoinville substituiu Moba e Léopoldville substituiu
Kinshasa. Outros nomes proclamavam a memória viva do período das
explorações, tais como Baningville (Bandundu), Coquilhatville [Mban-
daka) e Stanleyville (Kisangani). Outros funcionavam como duplos
ou substitutos de localidades europeias. O posto de Kwilu-Ngongo
tornou-se Moerbeke. A crítica relativa a esta prática e este "desbap-
tizado", ocorridos no Zaire entre 1965 e 1970, nunca reivindicou - e
na verdade, nem poderia tê-lo feito -, em nome da autenticidade
histórica e espacial, a redescoberta e a restituição da memória antiga
a um estado real e primário através do restabelecimento e da recupe-
ração de nomes antigos. Afinal, a toponímia colonial não só constituiu
uma reorganização profunda de um local antigo e da sua configura-
ção política como também apontou, sobretudo, para a invenção de um
novo local e corpo cujos rumos e movimentos espelhavam uma nova
economia política. A acção dos missionários católicos constituiu um
bom exemplo na medida em que, a partir de 1875, pejaram o mapa
geográfico com tropismos semânticos. Estes nomes codificados eram
indicadores do progresso da sua actividade, comprovando a implanta-
ção de uma nova ordem. Cingindo-nos a alguns postos estabelecidos
pelos missionários de Scheut em Cassai, encontramos determinados
exemplos como Hemptinne-Saint Benoit, Kabwe-Christ Roí, Katende-
-Saint Trudon, Mikalayi-Saint Joseph, etc. O termo ou nome africano
sucumbia directamente à graça e ao poder da conversão. Aposto ao
nome de um santo, assumia a função de adjectivo e perdia o seu estatuto

176 V.Y. Mudimbe A Ideia de Africa


de nome próprio. Deste modo, permitia estabelecer a distinção entre
Panda-Saint Joseph no sudoeste de Katanga (em Likai] e Mikalayi-
-Saint Joseph em Cassai, por exemplo.
Conforme observado recentemente por Michel de Certeau, o nome
próprio vasculha os bolsos de valores familiares ou escondidos.
A melhor forma de descrever este fenómeno é através do exemplo
da "caminhada", que, no entender de De Certeau, resulta, paradoxal-
mente, de factores externos - tenho de ir ali, necessito disto por este
ou aquele motivo, etc., - os quais se impõem sobre o indivíduo que
avança para o exterior de si ou da sua casa. Porém, a caminhada
corresponde igualmente a uma espacialização e ampliação de um es-
paço interior, em conformidade com as convicções interiores viabili-
zadas pelo acto. Este é o meu jardim, a minha, rua, a minha aldeia, a
minha região, etc.
A título exemplificativo, consideremos o nome próprio "Kapolowe".
Kapolowe é uma localidade situada entre Likasi e Lubumbashi. Tra-
ta-se de uma pequena estação ferroviária no caminho entre Ndola e
Port Franqui (Ilebo). A 30 de Junho de 1960, enquanto o Congo Belga
celebrava o desfecho de uma era assinalando a supressão do seu ad-
jectivo, um amigo beneditino deixou-me na entrada sul de Jadotville.
Instintivamente, decidi caminhar até Kapolowe. Era final de tarde pelo
que esperava chegar ã estação de Kapolowe por volta da meia-noite.
Caminhei vagarosamente. Estava in situ e continuei em frente, satis-
feito por conseguir nomear as ligações concretas entre, por um lado, a
ordem imposta pela conquista e a metamorfose da zona que atraves-
sava e, por outro, as marcas e os sinais de um passado (i/n avant) ca-
pazes de repetir e recitar, naquela noite, a sua alteridade, a qual se
prende com as experiências violadas. No nome Congo Belga, o adjec-
tivo que desapareceu constitui um símbolo, e o consequente espaço
vazio é inscrito na história que estava então apenas no princípio. Não
obstante, é evidente que a prova da ruptura, se é que existiu de facto
uma ruptura, não reside no desaparecimento do adjectivo nem nas
novas marcas geradas pela sua supressão. O que persiste como teste-
munha da ruptura é o corpo que vive ou sobrevive como transcrição
da metamorfose.
Kapolowe evoca imagens de outros locais, designadamente de Mpa-
la. Isto deve-se não só ao facto de ambas as cidades terem sido um
produto das missões católicas e de, em termos económicos, a sua sub-
sistência depender sobretudo da pesca, mas também pelo facto de o
seu espaço estar organizado de modo semelhante. Num dos extremos,
encontra-se a missão com os seus diversos edifícios (a residência dos
sacerdotes, a igreja, a casa das Irmãs, a escola, etc.). Do outro lado.

l IV. A Domesticação e o Conflito das Memórias 185


jaz a aldeia que, nos dois casos, se resume a uma única rua principal,
cabanas e algumas lojas. Entre as duas áreas, existe um espaço vazio,
uma zona de grande interesse vagamente definida. Não é um jardim,
nem uma floresta. Não é um conjunto de canteiros, nem uma desordem
completa. Causa exaspero porquanto revela uma separação. Apresenta
um cariz táctico, pois repete e ilustra de um modo concreto a di-
visão clássica de uma cidade colonial, tal como acontece em Elisabeth-
ville: Limits-Sud Avenue. O simbolismo desta distância e separação
entre áreas para negros e áreas para brancos parece evocar, paradoxal-
mente, uma ligação entre ambas as extremidades. Por outras palavras, o
sul poderá um dia ser o norte, ou seja, poderá um dia reflectir a ordem e
os valores do norte ao moldar-se a si próprio no norte, o que, como sabe-
mos, é geograficamente impossível. Contudo, a ideologia do desenvolvi-
mento reside neste espaço ambíguo, na qualidade de sonho e desafio.
No caso vertente, a separação racial enquanto elemento geográfico en-
contra o seu sentido na metáfora que resulta da combinação simbólica
de dois nomes, um africano e um europeu, o de Kapolowe-Saint Gerard,
como um novo local.
Atentemos noutro exemplo: a aldeia de Mpala, que parece represen-
tar uma espécie de absoluto. Historicamente, Mpala é um "acréscimo":
sobreviveu graças à fortaleza Emile Storms, herdada pela missão dos
Padres Brancos em 1885. Os edifícios da missão caracterizavam-se
pela sua considerável envergadura. À primeira vista, aparentam ser
sólidos, amplos e fechados sobre si próprios. As torres são evocativas
dos regimentos de guardas de outrora, e as linhas de tiro reflectem
o propósito original do forte. O edifício é uma sinédoque: determina
o seu próprio espaço assim como o projecto que o viabilizara inicial-
mente. Consideremos as seguintes imagens: as práticas da escrava-
tura levadas a cabo pelos povos arabizados que exploraram a região
no século XIX; o projecto missionário que se seguiu como uma etapa
na construção do Reino Cristão sonhado pelo Cardeal Lavigerie; e, por
fim, a missão católica, talhada segundo o modelo de um forte político,
emitindo a sua própria moeda e organizando a sua própria protecção
militar. Com efeito, acolheu os protegidos da Igreja e da Bélgica (cuja
designação simbólica é "nação-mãe"); resistiu aos ataques e tiros de
canhão das tropas alemãs provenientes do outro lado do lago que sepa-
ra o Congo Belga da África Oriental Alemã, durante a Primeira Guerra
Mundial; e, em 1918, celebrou um histórico Te Deum no final de uma
guerra europeia com a qual a missão se identificara de corpo e alma,
literalmente.
Por conseguinte, a Missão de Mpala, enquanto marca política e re-
ligiosa, reflecte uma expansão semântica que transcende uma mera

asS V.Y. Mudimbe A Idéia de África


anexação de um território à paróquia católica. A igreja e os seus de-
pendentes são fragmentos de um projecto espacial veiculado como um
local de uma nova memória, ou melhor, uma memória dimanante dos
processos de conversão. Esta nova memória colectiva é indissociável
de um local e de uma tradição. Assume-se como operação e processo
de uma dupla causalidade, sendo, ao mesmo tempo, ad extram e ad
intram. Assim, independentemente da riqueza ou carência das
associações históricas, esta memória funciona como um denomina-
dor comum no qual convergem influências antagónicas, concorrentes
e incompatíveis, bem como tensões. Em Mpala, as causas externas
constituem os factores determinantes, na medida em que são respon-
sáveis pelo poder eclesiástico e pela importância concedida à ideolo-
gia colonial.
Paradoxalmente, o cenário geográfico da missão de Mpala desenca-
deia outra imagem: a do assíndeto. O último rompe os laços que man-
têm a coesão da continuidade diacrónica dos acontecimentos e apaga
aquilo que reúne, qual conjunção, a coerência da nova memória. Os
laços que, antes da independência, funcionavam como uma ligação
lógica entre, por exemplo, o Rio Lufuko, a aldeia, e a igreja da missão,
serão destrinçados após a década de 1960. De facto, os missionários
europeus abandonaram um projecto e um catequista zairense, ga-
rantindo assim a concretização do exacto oposto das aspirações do
Tenente Storms, dos Padres Brancos Moinet e Moncet e do Capitão
Joubert, que motivaram a fundação da fortaleza. Consequentemente,
por um lado, os diversos elementos do Império e da Conquista insti-
tuíram-se como marcas de uma civilização contrária à escravatura e
ao paganismo e desenvolveram-se, em concomitância, num solo fértil
para expressões míticas. Por outro lado, no extremo oposto do perío-
do abrangido, um velho catequista vela pelos vastos edifícios aban-
donados, deixando transparecer uma preocupação profunda com a
esperança absurda da sua própria conversão à lei da conquista, e à
memória subjacente a esta visão. São-lhe impostas como condições
necessárias ã sua integração no reino de uma nova estrutura de
poder

l IV. A Domesticação e o Conflito das Memórias 185


Mpala, 1975. Fotografia e Direitos de Autor de Allen Roberts e Christopher Davis.

Mpala, a outra ordem. Fotografia e Direitos de Autor de Allen Roberts e Christopher Davis.

Outro exemplo do assíndeto, porventura mais evidente, pode ser


facilmente extraído daquilo que o próprio cenário sugere. Imaginemos
que parto da "missão" rumo à "aldeia" de Mpala, do norte para o sul.

176 V.Y. Mudimbe A Ideia de Africa


Atrás de mim, ficam a missão, o Cabo Tembwe e o delta do Rio Lufuko.
A minha frente, estão a aldeia e, ao longe, o Monte Nzawa, que domina o
horizonte meridional e ressalta da floresta que se prolonga para oeste.
Devido à sua conversão ao Cristianismo, os habitantes de Mpala aban-
donaram oficialmente o espírito da terra, que vive em Nzawa. Após um
século de transformações paulatinas, o norte constitui o corpo exemplar
por excelência, com os seus sinos reguladores da vida, do trabalho e da
oração, e as suas paredes de pedra. Dotado de novos valores económi-
cos, culturais e espirituais, este norte substituiu o sistema antigo de
valores que coordenara anteriormente a actividade no sul. Esta modi-
ficação assumiu-se, e assume-se até hoje, como uma ruptura, ilustra-
da pelas atitudes arrogantes face às culturas africanas, consideradas
imperfeitas. Seja em termos de modernização, desenvolvimento ou, a
partir da década de 1970, condenação de um retrocesso, os comentári-
os sobre a transformação do cenário de Mpala são sempre concebidos
negativamente e apresentados no lugar de, ou numa referência silen-
ciosa a, um domínio ou sistema apelidado de tradicional representado,
por exemplo, pela divindade Nzawa.

Emil Nolde. The Missionary. 1912. Óleo sobre tela. Colecção de Berthold Glauerdt, Solingen.

A ruptura ou o desvio traduzido pela oposição entre norte e sul em


Mpala (patente nas promessas da escola no sector do norte, e na sua
discrepância em relação aos valores e argumentos simbólicos adquiri-
dos por quem recebe instrução na floresta do sul) demonstra que, na
realidade, o assíndeto marca uma ruptura positiva num plano progressista.

l IV. A Domesticação e o Conflito das Memórias 185


Em termos aparentes e reais, a fragmentação do tempo corresponde
à divisão no cenário de Mpala que, até à década de 1960, opôs dois
conjuntos de formas e símbolos: o norte e o sul, o futuro e o passado,
a modernidade e a tradição. Se analisada com rigor, esta dicotomia deixa
transparecer o contexto para um encontro entre o assíndeto e a siné-
doque. O "mais" do todo apresentado pela sinédoque, mobilizando
laços, conjuntos e expansão, corresponde ao "menos" do assíndeto e
aos seus jogos de separação e fragmentação.
Os povos colonizados e a sua sociedade beneficiavam pouco da as-
similação cultural entre o norte e o sul promovida por este espaço,
sendo possível imaginar uma mediação ou, inclusivamente, um poder
de subversão na presença do sul, do antigo, ou melhor, do que cor-
respondia, ali, ã ordem da "civilização". O novo poder viu-se forçado
a construir uma nova sociedade tendo em vista o seu estabelecimen-
to. Tal como referido anteriormente, em Mpala assim como noutras
regiões do Congo, a renovação do cenário assenta em três paradigmas
primaciais: a religião e o código ético cristão (crenças e práticas); um
ensino cingido ao básico (leitura, escrita, e aritmética), complemen-
tado, em situações excepcionais, com o estudo da língua francesa; e
a promoção do trabalho manual e da sua utilidade para os congole-
ses. Este programa oficial demonstra o seu valor durante a década de
1930. Em L'Enseignment des Indigènes au Congo Belge (1931), E. De
Jonghe queixa-se do negro que perdeu as suas raízes e se considera
igual ou superior ao branco.
Por conseguinte, uma eventual convergência entre os símbolos
modernos e tradicionais torna-se concebível na aldeia, o ponto inter-
mediário entre as marcas totalitárias "da Missão" no norte e "da flo-
resta" no sul (Roberts e Maurer, 1985). A título de exemplo, na região
de Mpala, as cabanas são rectangulares e construídas com terra batida
ou, por vezes, blocos de cimento. Esta forma geométrica é um texto
recente cuja estrutura integra o método antigo de construção adop-
tado por Emile Storms e os primeiros Padres Brancos, ainda visível na
palha utilizada na construção do telhado bem como no polimento e na
madeira moldada utilizada na construção das paredes. Contudo, esta
forma rectangular, bastante comum nos dias de hoje, provém original-
mente do alargamento de um modelo arquitectónico suaíli, promovido
pela missão e pelas autoridades coloniais na viragem do século. Substitui
a cabana redonda dos Tabwas coberta por um telhado cónico (Roberts
e Maurer, 1985), a qual parece ter sido fielmente reproduzida nos de-
senhos de Léon Dardenne (1865-1912), realizados durante a missão
científica de Charles Lemaire em Katanga entre 1889 e 1900.

16/, V.Y. Mudimbe A Ideia de Africa


Um conflito entre memórias
Conforme admitido pelos próprios, tanto o colonizador quanto o
missionário estão convictos de que a promoção de um modelo para
habitações ventiladas por meios alternativos e, sobretudo, indepen-
dentes do local da aldeia antiga é o preço a pagar para garantir a sobre-
vivência da conversão da memória colectiva africana. O que, de facto, é
verdade. Como tal, Kapolowe e Mpala são modelos de uma actividade
mais geral, devidamente ilustrada pela importância e o propósito do
Centre Extra-Coutumier d'ElisabethvilIe. Uma habitação rectangular,
aberta ao mundo exterior e às suas influências, substitui a aldeia circu-
lar. A concentração dos vários elementos tradicionais veicula as dife-
rentes funções da interdependência interiorizada, desencadeando, em
simultâneo, uma obrigação comunal [auxílio mútuo, protecção, soli-
dariedade, etc.) e interacções sociais específicas dentro da localidade
de um espaço fechado comum.
Relativamente à construção de uma nova memória colectiva, a missão
procedeu à reformulação da coerência espacial, ao introduzir um novo
tipo de organização na qual cada função deve corresponder a um lugar
específico e cada vertente de uma actividade, a um local particular,
preservando-se rigorosamente a ordem temporal. Por conseguinte, a
geografia da aldeia deixa de ser o mero reflexo de um método de con-
versão. Devido à força das circunstâncias e à necessidade, a ordem anti-
ga deve renunciar ao seu próprio movimento, a fim de dominar o proces-
so de autotransformação, indicativo de progresso. As rotinas diárias
também sofrem alterações pelo que as práticas quotidianas passam a
cumprir as exigências da modernidade. A conversão à ética cristã, ao
poder da escola ou a uma nova hierarquia social e linguística faz parte
desta transformação da memória colectiva. Verifica-se uma tendência
em considerar o crivei e o memorável como a negação do antigo ou
primitivo. Por exemplo, não é apenas o cimento por oposição ao poli-
mento ou alumínio [ou, por vezes, ao ferro galvanizado) por oposição
ao telhado de palha que sugere, para o bem e para o mal, a possibili-
dade de uma nova origem, mas também a tensão suscitada pelo espaço
entre a missão e a aldeia. A promessa da integração [com o objectivo da
melhoria do nível de vida) traduz-se na dispersão e desintegração do
espaço especificamente africano. Com efeito, a aldeia original cresce
através da homogeneização da diversidade étnica e linguística inicial.
Surgem novos habitantes, seduzidos pelas promessas oferecidas pelo
novo Centro. Assiste-se à invenção de uma nova cultura, no seio de um
espaço dotado de dimensões inusuais a nível cultural, inspirada nos
contributos da missão e do núcleo aldeão, sem ser um nem outro. Mais

l IV. A Domesticação e o Conflito das Memórias 185


cedo ou mais tarde, em virtude dos seus costumes e das suas neces-
sidades, terá de fazer face ao poder da missão e desafiar a autoridade
da aldeia original.
Nesta topologia, analisamos o conflito das memórias. A fim de es-
clarecer a questão, importa estudar a tensão entre a missão e a aldeia
e, em seguida, os dilemas do évoluant situado entre as duas zonas.
Em primeiro lugar, tal como já foi afirmado, a aldeia, localizada num
dos extremos, constitui quase sempre a marca de outra coisa, de uma
tradição que, na linguagem da conversão, está em contradição com a
memória apresentada pela missão. Conforme demonstrado analiti-
camente por J. L. Litt [1970, pp. 55-61), a aldeia representa o local
onde inúmeros tipos de proposições se misturam. Por um lado, há os
argumentos a favor da necessidade da conversão, que desenvolvem ou
comentam os estereótipos do "selvagem" e da "degeneração". Perante
uma multiplicidade de pressões, a aldeia considera-se a si própria o
local que deve ser eliminado em nome da civilização, chegando efec-
tivamente a incorporar os moldes da abnegação de uma população
ou raça "marginal". Esta "ausência de civilização" tem de ser "substi-
tuída" (Litt, 1970, p. 55). Por outro lado, entre 1930 e 1932, alguns
raros autores começaram a pronunciar-se acerca da civilização negra,
reconhecendo a sua humanidade e reflectindo sobre as lacunas de
determinadas doutrinas "civilizadoras" e do preconceito da suprema-
cia racial branca, como no caso do Jesuíta belga, Swartenbroeks (ver
Litt, 1970). Trata-se, obviamente, de excepções à regra, as quais não
contradizem a missão de civilização nem os benefícios decorrentes da
conversão. Até este novo discurso sobre a aldeia produz somente um
certo excesso reaccionário que justifica implicitamente o esforço colo-
nial e a empresa missionária. Os documentos do período são unânimes
quanto a este aspecto. A vida da aldeia está imersa em "materialismo" e
"aviltamento", evidencia um "progresso social lento", e encontra-se sob
a "influência desmoralizadora, se não perniciosa, da família". Em todo
o caso, aparenta ser "escrava dos apetites e instintos da sua vida", "de
mau temperamento", "impulsiva e versátil". No âmbito religioso, as suas
práticas e crenças advêm da "bruxaria" e da "crença na magia", o que
"não corresponde ao plano divino da redenção". Em termos intelectuais,
considera-se que o negro da aldeia é incapaz de distinguir as relações
"entre os fenómenos observados e as suas causas"; parte-se do princípio
de que carece de "faculdades racionais" e de uma "inteligência muito
profunda", vivendo "nas sombras da ignorância" [Litt, 1970).
Este esquema justifica a missão enquanto elemento necessário para
a consecução do desenvolvimento humano, contemplando, simultânea
e discretamente, as vantagens económicas/o valor do projecto. Em 1930,

176 V.Y. Mudimbe A Ideia de Africa


o Padre J. J. Lambin S.J. descreveu com clareza a complementaridade
destes dois aspectos da colonização por ocasião do Terceiro Congresso
Colonial. O seu discurso assenta em dois princípios da Lei Natural, tal
como entendida pelos pensadores cristãos da época: 1] o direito de
explorar a riqueza concedida por Deus a toda a humanidade e 2) a lei
natural da solidariedade entre os homens. Na prática diária, o coloni-
zador e o missionário tendem a conferir uma maior ênfase ao segundo
princípio, demonstrando assim a generosidade das suas acções que
conduziram ao desenvolvimento da aldeia. No mesmo acto, minimiza-
vam, em regra, a violência do primeiro princípio. A partir da Segunda
Guerra Mundial, os évoluants, a par dos nacionalistas na seqüência
da Conferência de Bandoeng, tendiam, pelo contrário, a questionar e
criticar a aplicação do primeiro princípio, abstraindo-se da realização
eficaz do segundo. Foi, efectivamente, o sistema educativo que os
"habilitou" a manifestar-se.
Importa frisar que, entre 1930 e 1945, o évoluant africano preferiu
quase sempre a missão em detrimento da aldeia. Na realidade, não
se tratava bem de uma escolha dada a tensão entre a "noite" das pro-
fundezas carnais da aldeia e o "dia" da missão, banhada pela sua luz
salutar, segundo as descrições da literatura colonial. O évoluant inte-
riorizava amiúde as marcas materiais do novo poder, desde logo vi-
síveis: os novos códigos de vida éticos e sociais, a hierarquia lingüística
(alguns nativos eram tão bem versados em latim que se expressavam,
muitas vezes, melhor nessa língua do que em francês), e a coreografia
capitalista do lucro e da concorrência.
O grupo apelidado de "clero nativo", na década de 1930, é o caso
mais exemplar deste tipo de évoluant. Baudoinville (Moba) presenciou
o seu nascimento em 1917, aquando da ordenação sacerdotal de Ste-
fano Kaoze, o primeiro sacerdote católico da África Central. As regiões
orientais do Congo Belga evidenciavam um número considerável de
clérigos nativos, os quais passavam com freqüência por Mpala e Moba
rumando depois para outros locais. Exerceram uma influência deci-
siva sobre o significado atribuído à missão, constituindo, até hoje, a
personificação da mesma. Tanto no plano literal quanto no figurativo,
elucidam os jogos e as alianças entre a missão e os sistemas antigos.
São as marcas vivas da assimilação, facto claramente ilustrado pela sua
integração nas comunidades dos Padres Brancos e na sua função de
missionários entre o seu próprio povo. Estão acima dos colonizadores
brancos que não sejam os seus superiores eclesiásticos na estrutura
da Igreja Católica, o que, por si só, se reveste de suma importância,
pois implica uma dissociação entre as políticas coloniais e as da Igreja
Católica, apesar das áreas mal definidas que as uniam.

IV. A Domesticação e o Conflito das Memórias 185

l
Todavia, em bom rigor, as políticas da Igreja Católica não colidiam
com o projecto colonial. Assentaram apenas, numa fase inicial, nos
dois princípios do direito à colonização e nas metáforas da conversão,
tendo elegido a assimilação como símbolo de uma identidade cristã
e uma nova memória, a partir da década de 1920. Decerto que as ac-
tividades dos Padres Brancos na região oriental do Congo Belga e no
Ruanda-Burundi parecem contrariar o espírito conservador de um
Monsignor de Hemptinne em Katanga. Porém, na região ocidental, em
Kwango, os Jesuítas belgas, designadamente J. J. Lambin em 1931 e H.
Vanderyst a partir de 1927, ponderaram a criação de um ensino supe-
rior específico que oferecesse aos habitantes locais a oportunidade de
garantir a sua própria conversão económica e espiritual (Litt, 1970).
Em 1935, num breve artigo publicado em La Revue de 1'Aucam (n.^ 2,
1935, pp. 44-59) na Lovaina, N. Nimal, também Jesuíta, advogou uma
hipótese totalmente inaceitável aos olhos das autoridades coloniais:
o direito à soberania como consequência do direito à exploração e
vice-versa. Será possível que, caso as vozes destes Jesuítas liberais
tivessem definido o programa colonial de 1933-1935 em diante, jun-
tamente com as actividades dos Padres Brancos na região oriental, o
futuro do Congo Belga tivesse sido diferente? Não sabemos.
Seja como for, a partir da década de 1930, os jesuítas envidam esfor-
ços, tendo em vista a construção de uma "elite" moral capaz de "elevar"
a sociedade nativa, em conformidade com as políticas coloniais. A for-
mação da elite médica constitui um bom exemplo. Desde a sua criação
em 1926, a Formulae (Fundação Médica da Universidade da Lovaina
no Congo) insistiu em determinados objectivos fundamentais: primei-
ro, a promoção dos valores profissionais; segundo, a inculcação dos
valores católicos e morais; terceiro, a formação de um esprit de corps;
e, por fim, o fomento de um sentido de responsabilidade para com as
massas. Consequentemente, esta elite representava, por um lado, a consti-
tuição de um grupo que, mais cedo ou mais tarde, seria convocado a
formar uma classe social distinta e simbolizava, por outro, a transição
da memória antiga para as promessas da história colonial, simples-
mente por existir. A sua tarefa primordial consistia na transformação
radical da sociedade congolesa num novo sonho.
Cada memória remete tanto para a vida quanto para uma história em
constante movimento. Nesse sentido, longe de serem antagónicas, é
óbvio que as duas memórias "africanas" - a antiga e a colonial - exibem
uma relação de complementaridade. Na tensão entre os dois pólos, os
évoluants lobrigaram um paradigma bastante normal que, em si, reve-
la ser totalmente neutro. Estas duas memórias significam apenas que a
transformação social e as correspondentes relações sociais dependem de
uma certa descontinuidade, indicada pelo surgimento de um novo tipo
176V.Y.MudimbeA Ideia de Africa
de consciência. Absolutamente nada nos impede de imaginar que a
passagem de uma memória para a outra, tal como ilustrada pelo C.E.C.,
poderia ter ocorrido sem a intervenção da colonização. Contudo, é um
facto que a mesma teve lugar no âmbito da colonização na África Cen-
tral. Paradoxalmente, em virtude deste contexto que a viabilizou e a
justifica, esta transformação parece suspicaz, pois implica a rejeição
da memória antiga. Assim, é possível compreender de que modo ideo-
logias tão díspares e até contraditórias como sejam o Pan-Africanismo,
a negritude e o "consciencismo", poderiam, em concomitância e num
ímpeto idêntico, opor-se ao colonialismo e apelar à modernização e
à miscigenação. Também se torna claro o motivo pelo qual qualquer
iniciativa análoga à do projecto zairense da década de 1970, assente na
promoção da autenticidade enquanto alternativa a uma modernidade
pós-colonial, crítica e rigorosa, está condenada a ser rejeitada como o
cúmulo de um simplismo extremo. É fácil concordar que a moderni-
dade não está idealmente simbolizada nos "fortes" de Mpala e nem
tão-pouco contemplada nas políticas de conversão que regiam o C.E.C
de Elisabethville. De resto, a tensão entre "a Missão" em Kapolowe e
a nova cidade nascida do pesadelo da independência não constitui
obrigatoriamente um indicador mais sólido de modernidade. Em função
da necessidade econômica e de uma reorganização do poder político,
urgiu fundir as duas memórias, a fim de projectar uma promessa de
modernidade e africanidade. Deveríamos focar-nos na produção deste
"pius être", que ilustra a nossa evolução melhor do que qualquer consciên-
cia ou liberdade.

A Economia das Memórias Conflituantes


o conflito das memórias pode ser concretamente observado na vida
quotidiana dos povos. Permitam-me que esclareça este ponto, incidin-
do em dois dos seus "reflexos", aquilo que é repercutido enquanto
imagem e interpretação da realidade: em primeiro lugar, através da
análise da tensão entre o real e o imaginário no discurso político do
Zaire; em segundo lugar, através da leitura crítica de duas exegeses
acerca do kimbanguismo, uma igreja sincrética da África Central.
Avanço com uma hipótese a respeito das relações entre o discurso
político e a práxis no Zaire, assente num critério amplamente aceite
que identifica três momentos primaciais na história do país: o período
colonial, a Primeira República [1960-1965] e o seu oposto, o regime
de Mobutu, o qual recebeu a designação de Segunda República des-
de o seu arranque em 1965. Será possível confirmar estas distinções
através da identificação nítida de três períodos discursivos à luz de

l IV. A Domesticação e o Conflito das Memórias 185


uma perspectiva capaz de distinguir a presença de temas e metáforas
contraditórios e, assim, caracterizar e legitimar a especificidade destes
três tipos de discurso político que ilustram três modelos diferentes de
programas políticos? As seguintes interrogações afiguram-se legíti-
mas: não estarão a ser forçadas portas já abertas? Tratar-se-á de um
projecto útil e qual o seu propósito? Não deveremos aceitar as provas
históricas e as mensagens totalmente cristalinas que anunciam o des-
fecho de um período e a inauguração de outro? O discurso do período
da independência assumiu-se declaradamente como uma negação de
um logos colonial, e o idioma de Mobutu agiu sempre nas fronteiras do
"novo" e do "original".
Não pretendo discutir o significado socio-histórico destas descon-
tinuidades. A partir dos seus significados e das suas implicações, gos-
taria, ao invés, de circunscrever e definir o seu local, situar as suas ima-
gens no plano da sua possibilidade e motivação e, por fim, propor uma
interpretação no concernente à sua racionalidade interna.
O meu verdadeiro enfoque será o discurso de Mobutu, que, para lá
da sua desordem aparente, de alterações temáticas e de apropria-
ções ideológicas contraditórias, individualiza um locus com bastante
precisão, identifica as suas determinações paradoxais e descortina a
sua loucura estrutural. Por outras palavras, a minha resposta à per-
gunta de Crawford Young que deu título à obra "Zaïre: Is There a
State?" (1984), é afirmativa. Trata-se de um Estado isomorfo com uma
máquina sociolinguística - o "mobutismo" - dentro da qual uma so-
ciedade de discurso se reproduz a si própria há mais de vinte e cinco
anos e cujos traços mais notórios são: a) uma linguagem que reivin-
dica uma novidade absoluta apesar de corresponder, no fundo, a uma
miscelânea de imagens que repetem, de um modo encantatório, de-
sejos e projectos já delineados durante o domínio colonial e a Primei-
ra República; a originalidade e a novidade desta linguagem residem
no seu estilo directo, simples e fervoroso que condensa o tempo e os
períodos históricos confundindo, em simultâneo, sonhos políticos com
diagnósticos socioeconómicos e exigências objectivas em matéria de
desenvolvimento; b) uma linguagem que se considera um idioma
explanatório de projectos e contingências de cariz socioeconómico e
ainda uma imagem reveladora de uma nova cultura africana autóno-
ma; contudo, na sua intenção e expressão, constitui uma elisão ex-
plícita, consciente e sistemática da realidade; c) uma linguagem que se
define através do curioso paradigma da clareza militar, da franqueza

i
e da continuidade de objectivos; apesar de esta afirmação estar fun-
damentada, é também possível lobrigar a sucessão e as transformações
confusas de figuras retóricas que apresentam uma relação directa com

Aldeia de África
uma centralização e descentralização extraordinariamente constantes
dos mitos mais profícuos do nacionalismo e dos assuntos mais contro-
versos das políticas coloniais.
O mobutismo afigura-se um sistema organizado cujo funcionamento
e articulação se firma na representação. Torce e retorce figuras e ima-
gens, analogias e semelhanças em construções figurativas que simu-
lam a realidade, em vez de a traduzir ou representar. A sua legitimi-
dade advém de uma ruptura política efectiva mas ambígua: o golpe de
estado de 1965. Os seus objectivos de transformação social e desen-
volvimento são puras metáforas, estimulando narrativas parabólicas
nas quais as próprias noções de continuidade e descontinuidade, colo-
nialismo e anticolonialismo, desenvolvimento e recessão, entre outros,
não parecem estar providos de outro sentido se não o conferido por
uma ortodoxia que se visa a si própria e modifica as suas referências
normativas, com o intuito de preservar a sua credibilidade enquanto
mediação e formulação da situação real do país. Em termos de ciên-
cia política, o mobutismo, uma sociedade de discurso totalitária, surge
como um absurdo completo (Young, 1978,1984). Todavia, adoptando
uma perspectiva diferente, K. Ilunga (1984) descreve a forma orgânica
do mobutismo, em termos psicológicos, como uma experiência repleta
de valor e dotada de aplicações tanto operacionais quanto estruturais.
Caso esteja correcto, Ilunga deu azo a um complexo sociológico que
poderá durar mais do que o esperado. Concretamente, esta sociedade
de discurso espelharia as suas próprias consequências: um espaço
teatral onde podemos ler uma utilização simples de uma relação orde-
nante, que opõe o mais forte ao mais fraco na maior tradição colonialista
que reproduziu a dialéctica do senhor e do escravo. Remetendo para
o comentário de Michel Serres sobre um paradigma clássico: o mais
forte tem sempre razão: "la raison du plus fort est toujours la meil-
leure", a manipulação da ordem é tal que engendra igualmente uma
confusão entre o significado-efeito e o significado-afecto no discurso
político. Eis o esquema de Serres (1979):

Limite absoluto Relação ordenante Modelo


0 mais forte Mais forte-mais fraco Biológico
0 melhor Melhor-pior Ético
Origem Montante-jusante Espacial
Causa-efeito Racional
Pureza-mistura Físico
Rei Dominador-súbdito Político
Nascimento-morte Antes-depois Temporal
Antepassado-descendente Genealógico
Protector-protegido Social
Máximo Maior-menor Estrutura ordenada

IV. A Domesticação e o Conflito das Memórias 189


Servindo-me das categorias de Serres, um majorante e um minorante
estão frente a frente neste espaço de jogo. Antes de 1960, o primeiro é
branco e conquistador, o segundo, negro e conquistado. O idioma ma-
jorante institucionaliza estas dicotomias básicas em modelos políticos
e biológicos antagónicos. Uma ordem fundada nos limites absolutos
do conquistador organiza o espaço colonial para que tudo seja clas-
sificado em função de um equilíbrio binário global. A polarização do
equilíbrio pauta-se por metáforas/pontos reguladores e extremos: por
um lado, a selvajaria identificada com o conquistado e, por outro, a
civilização personificada pelo conquistador e o seu projecto. Por con-
seguinte, o último detém o direito e o controlo absolutos quer sobre a
nova organização do espaço que reduziu à sua historicidade, quer so-
bre os campos enunciativos, os quais explicam o "porquê" da sua respon-
sabilidade histórica e alumiam, a partir da sua própria memória, o
processo de colonização, ou seja, um processo de reorganização de um
espaço humano forasteiro e dos seus habitantes. Como tal, é possível
afirmar com segurança que, no período da colonização, um campo dis-
cursivo sobrepõe-se a uma saga empírica, valida o empreendimento
através de figuras poderosas [luz vs. obscuridade, saúde vs. doença,
vitalidade vs. degenerescência], e formula infinitamente os direitos do
mais forte e os procedimentos para a consecução da sua missão e dos
seus objectivos. Em rigor, podemos aludir ao paradigma da fábula: "A
razão do mais forte é sempre a melhor". Porém, importa frisar que, ao
maximizar de facto o poder do mais forte através dos seus modelos, o
paradigma, no âmbito da experiência colonial, também os associa aos
procedimentos de sistematização e transferência dos feitos da "origem"
para a colónia. Dominer pour Servir e outros temas binários fundadores
do modelo colonial são figuras completamente autónomas, apesar de
exibirem uma relação de obediência recíproca com os esquemas empíri-
cos de transformação do espaço africano. Nesse sentido, partindo do
questionamento da lógica recorrente dos enunciados e da sua relevân-
cia, é possível afirmar que estes definem as normas e os limites abso-
lutos para uma distribuição e divisão específicas dos papéis dentro de
uma narrativa ou de uma história em construção, pese embora as suas
eventuais lacunas internas em termos de inferências lógicas.
O modo de ser deste tipo de narrativa/história apresenta, no fundo,
uma natureza paradoxal. A sua coerência depende da "relação orde-
nante": quo nihil majus cogitari potest, segundo afirmou Serres acerca
da fábula.
A fábula constitui uma definição operacional perfeita - perfeita na medida em que
está isenta de qualquer psicologismo - da hipocrisia. Com efeito, o termo "hipocrisia"

A Ideia de África
vem do verbo julgar, escolher, decidir, e do prefixo "debaixo". Por outras palavras, se
o desejo for a vitória, é necessário desempenhar o papel do minorante. Imagino que
todas as fábulas funcionem de um modo análogo, pela metamorfose que represen-
tam. [Serres, 1979, pp. 266-67).

Assim, o discurso político da independência revela-se um exemplo


adequado da fábula. Demonstra que o espaço colonial é um espaço
de jogo, sendo que a dicotomia das relações ordenantes não encerra
a narrativa/história. Nesse sentido, ao longo da Primeira República,
um novo discurso pretende contemplar a esfera das liberdades e das
potencialidades que foram negadas através dos privilégios do projecto
colonial. Gostaria de reforçar a particularidade desta interrogação,
que, na sua economia explícita e sustentada, se define a si própria
como uma reinterpretação do jogo. O mais fraco sublinha o carácter
absurdo da dicotomia e contesta a sequência dos modelos, sobretudo
o biológico e o ético. Em termos concretos, uma releitura tanto das
relações recíprocas entre as estratégias políticas e discursivas, e as
correlações entre figuras e fórmulas relativiza o significado axiomáti-
co dos modelos. Os actos e as imagens da sua fundação abrem um novo
horizonte (Matumele, 1976). A independência enquanto mito reorga-
niza a narrativa colonial com os seus próprios enunciados e critérios,
como no comentário de Lumumba: "le soleil rejaillit dans ce pays pour
faire face à I'obscurantisme séculaire du régime colonial" (Van Lierde,
1963, p. 193) (o sol está a nascer neste país, ocupando o lugar do obscu-
rantismo secular do colonialismo). Por conseguinte, existe a possibi-
lidade de reordenar o espaço de jogo em termos de "uma estratégia
garantidamente vencedora" (Serres, 1979, p. 275) e a transferência da
responsabilidade histórica, dentro dos aspectos positivos da herança
colonial.
Desde 1965 até à década de 1980, o discurso de Mobutu assumiu
a forma de uma inversão radical, ao definir-se a si próprio como um
conjunto de lições doutrinárias e culturais regidas por dois princípios
fundamentais: um princípio da descontinuidade e um princípio da in-
terioridade. O primeiro realça as diferenças existentes entre as práti-
cas políticas anteriores (período colonial e Primeira República) e os
esquemas de Mobutu; o segundo designa uma série de novas articula-
ções ideológicas [Rétroussons Manchisme ou confiança em si-mesmo,
nationalisme authentique e Mobutuismé) que, supostamente, traçam
novos mitos fundadores visando - finalmente - uma libertação genuí-
na face a todas as dependências. Embora tenha representado uma ten-
tativa de promoção de uma teoria de sucessão política e económica de-
pendente das novas condições do nacionalismo cultural [I'idéoIogie de

IV. A Domesticação e o Conflito das Memórias 189


I'authenticite], este novo discurso constituiu um risco duplo, desde a
sua implantação. Enfrentou os problemas socioeconómicos concretos
de modo inadequado e caracterizou-se a si próprio mais pelo seu esti-
lo verbal do que pelos seus programas. Além disso, mostrou-se incom-
patível com as implicações mais evidentes da sua própria narrativa.
Por exemplo: a) O paradigma "herança colonial vs. independência"
estabeleceu a importância dos pais da independência, muito em par-
ticular de Lumumba [héros national), sendo que esta nova normativi-
dade política (os novos caminhos para a saúde e o desenvolvimento),
por outro lado, se instituiu como a rejeição absoluta da moléstia
representada pelos objectivos políticos da Primeira República, b) A
estratégia orientada para uma nova autonomia nacional é descrita nos
termos de numa inspiração religiosa: um Guia-Messias inaugura um
projecto de transformações sociais (Moto na moto abongisa) dentro
de um espaço fundamentalmente capitalista, partindo do princípio
(teórico) de que estas não constituem regras intrínsecas do jogo, nem
campos enunciativos específicos para a expressão dos princípios
organizadores do poder e da produção: "ni à gauche, ni à droite, ni
même au centre", nem à esquerda, nem à direita, nem mesmo ao cen-
tro. E este sonho fabuloso estipula argumentos visando a conformi-
dade com a autenticidade africana e, através do "Manifeste de la Nsele",
a promoção de pressupostos quase socialistas para a emergência de
uma nova sociedade.
Neste contexto particular, os enunciados governativos só podem ter
um valor religioso. Não podem responder por uma realidade social da
qual estão divorciados exactamente por força da sua contradição
interna. Por outro lado, apenas fazem sentido no quadro daquilo que
viabiliza a sua existência: uma exclusão radical da diversidade dis-
cursiva que, ao definir a configuração de uma sociedade de discurso
(MPR: o estado-partido de Mobutu, Mouvement Populaire de la Révo-
lution, o Movimento Popular da Revolução), identifica o movimento
com a sua fonte e origem religiosas, o Guia-Messias: "le Mobutisme est
constitué par I'ensemble des paroles et des actes du Guide Mobutu!"
("o mobutismo é composto pelo conjunto dos discursos e das acções
de Mobutu, o Guia!").
Como tal, poder-se-ia discutir se o mobutismo constitui uma doutri-
na que proporciona objectivos bem definidos e apresenta, ao longo do
tempo, uma identidade de propósitos e uma racionalidade governa-
tiva. Em todo o caso, no meu entender, existe um aspecto indiscutível:
o disííurso do mobutismo insiste na soberania do seu ser sem reve-
lar as razões da sua existência ou as suas ligações com as realidades
que alega tomar em linha de conta. Quanto à interrogação da Primeira

21,6V.Y.MudimbeA Ideia de Africa


República acerca dos limites coloniais absolutos, substitui a articula-
ção desses mesmos limites, numa dramatização das suas formas colo-
niais. Um conjunto completo de imagens, emanantes da tradição afri-
cana mais controversa, descortina a majestade do rei e anuncia as suas
virtudes através de três tipos de exegese:
a) um modelo temporal comenta a oposição "antes vs. depois" e
revela a magnificência da centralização do poder do MPR enquanto
designação e compromisso de uma salvação;
b) uma exegese genealógica da relação "antepassado vs. descenden-
te" explicita o isomorfismo entre este modelo teórico e uma configu-
ração africana mítica;
c) uma exegese social demonstra em que medida o modelo pater-
nalista "protector vs. protegido" organiza a pirâmide do MPR como
uma "comunidade" de interesse.
Em síntese, um drama discursivo assume-se como a marca de uma
realidade social. Todavia, não dá voz a essa realidade refreando, pelo
contrário, os seus paradoxos e as suas contradições. Por conseguinte,
verifica-se a eliminação de falhas concretas, a transformação de erros
em vitórias e o encobrimento de fracassos. A título de exemplo, a espo-
liação oficial dos bens e empresas pertencentes a estrangeiros consti-
tui "um processo de zairização", sendo legitimada como uma "medida
nacionalista" destinada à promoção nacional das empresas privadas
de média dimensão. O seu fracasso, que humilha o estado-partido e
força o regime a chamar os estrangeiros de volta, recebe o nome mara-
vilhoso de "retrocesso", enquanto decisão política regulamentada e
assente na ideologia pragmática do MPR. Na mesma linha, as mudan-
ças imprevisíveis de figuras significativas - do "nationalisme" para o
"nationalisme authentique", deste para a "autenticidade" e a respectiva
"radicalização", chegando, por fim, ao "mobutismo" - revelam que tudo
acontece como se o objectivo único e derradeiro do estado-partido
fosse a colocação de imagens e palavras na ordem de um discurso.
Acalento a esperança de que a minha hipótese define uma perspec-
tiva original quanto às fronteiras precárias das distinções clássicas
desde a era colonial até ao mobutismo. Mobutu substituiu a crítica
dos modelos coloniais levada a cabo pelos pais da independência pela
implementação de uma sociedade de discurso cujos motivos e objecti-
vos residem no seu próprio ser, descurando a identificação das tensões
sociais e a elaboração de políticas orientadas para o domínio dos pro-
cessos de produção e das relações sociais de produção, assim como do
seu impacto sobre a organização do poder tendo em vista uma trans-
formação imprescindível. A preservação deste discurso resulta do

IV. A Domesticação e o Conflito das Memórias 189


embate de várias memórias, nas suas formas mitológicas: por exem-
plo, a memória antiga, supostamente tradicional, contra a herdada do
colonialismo; os sonhos da Primeira República contra os pressupos-
tos de Mobutu; as lições do capitalismo contra uma ordem das coisas
mítica africana. A realidade aparenta estar emudecida. Um discurso
adquire uma função formidável: a de produzir um reflexo duma reali-
dade inexistente, em nome de uma memória que ele próprio inventa
ao postulá-la como estando explicada por uma origem absoluta e pela
pragmaticidade das circunstâncias contemporâneas.
Uma segunda ilustração do conflito das memórias pode ser extraída
de duas obras: L'Église du Prophète Kimbangu (1983) de Susan Asch e
Modern Kongo Prophets [1983] de Wyatt MacGaffey. Ambos os autores
são norte-americanos; Ash encontra-se no terceiro ano de estudos so-
bre kimbanguismo e MacGaffey no quarto. Apresentam exegeses de
um desempenho de primeiro nível, que constitui uma interpretação de
uma revelação religiosa nativa e bem-localizada, assim como das suas
apropriações sucessivas por parte dos seguidores de Kimbangu, um
profeta do Congo. Nesse sentido, as suas exegeses afirmam traduzir e,
em concomitância, explicar cientificamente determinados sucedidos
assim como o que foi posto em marcha após o momento inicial. É pos-
sível aventar que os dois autores realizam dois projectos: o primeiro
corresponde a uma descrição [aliás, uma tradução do ser-ali) do kim-
banguismo e da sua memória local; o segundo explicita um tipo dife-
rente de memória, associada a uma disciplina - a antropologia - as-
sim como às suas operações e aos seus contextos epistemológicos. O
diálogo alternado coloca em contacto uma prática e língua quotidianas
com procedimentos técnicos de espacialização dos saberes. Neste caso
particular, os saberes parecem marcados por memórias em profundo
conflito que se relacionam com as experiências religiosas africanas, o
Cristianismo e a sua história, o encontro e os procedimentos destas
duas correntes, além das suas paixões e políticas contraditórias.
O livro de Susan Asch suscita o nosso interesse logo à partida. O seu
objectivo consiste em descrever os sessenta anos [1921-1981] da
Igreja Kimbanguista no Zaire: a sua génese, o seu desenvolvimento, a
sua organização e a sua ambição. Conforme avançado por Asch, o seu
método é essencialmente interdisciplinar e recorre ã história, à demo-
grafia, à sociologia, à antropologia, à ciência política, à economia e à te-
ologia [1983, p. 285]. Com efeito, Asch ambiciona demais e de menos.
Opta por uma abordagem diacrónica ao kimbanguismo no quadro da
história do Zaire e, ao mesmo tempo, o seu estudo constitui uma
espécie de intelecção socio-antropológica desta igreja independente
africana. O que é muito, provavelmente demais, para alguém que, como

21,6V.Y.MudimbeA Ideia de Africa


é evidente, apesar de um conhecimento académico sólido sobre o tema,
não parece dominar nenhuma língua zairense, não viveu no país (à
excepção de breves estadias) e não parece dispor de conhecimentos
alargados sobre os antecedentes culturais que sustém o kimbanguismo.
A investigação não está enraizada num contexto antropológico credível
e exaustivo.
Os desígnios da obra de Asch afiguram-se demasiado limitados na
medida em que se trata de um projecto bastante modesto: descrever
a história de Simon Kimbangu desde o período da colonização até
às vésperas da independência e a formação da Igreja Kimbanguis-
ta: L'Église de Jésus-Chhst sur Terre par le Prophète Simon Kimbangu
(E.J.C.S.K) [1983). A primeira parte constitui uma exposição da história
política do kimbanguismo, já devidamente descrita por j. Chômé
[1959), D. Feci [1972), A. Gills [i960); M. Sinda [1972), entre outros. A
consistência do relato de Asch prende-se exclusivamente com o facto
de contemplar a década de 1980 e de considerar o kimbanguismo uma
nova ortodoxia.
A segunda parte do livro é mais original e bastante intrigante. Asch
procede à análise das duas faces da religião kimbanguista, fazendo
uma distinção entre "kimbanguismo oficial" e "kimbanguismo dos
kimbanguistas". O primeiro remete para uma organização de orienta-
ção protestante promovida pelos oficiais da igreja e o segundo refere-
-se a uma religião popular, largamente influenciada por crenças tradi-
cionais, amiúde antagónicas aos ensinamentos normativos da Igreja.
A terceira secção corresponde a uma avaliação crítica dos programas
socioeconómicos do kimbanguismo no Zaire. Segundo Asch, este
programa foi concebido com o intuito de competir com os feitos ma-
teriais das Igrejas Católica Romana e Protestante Unida [ECZ). Em
suma, os temas principais da investigação de Asch são as relações
entre o Estado e a Igreja na era colonial, o kimbanguismo no período
colonial, e a sua transformação e ambição socioeconómica após a in-
dependência.
Podemos tecer vários comentários favoráveis sobre o modo como
Asch trata o seu objecto de estudo. O seu livro baseia-se numa ampla
investigação de fontes sólidas constantes em determinados arquivos
e, sobretudo, nas suas curtas viagens ao Zaire. Situa, de forma con-
vincente, o kimbanguismo num contexto colonial e pós-colonial mais
vasto. Por fim, o livro está bem organizado e é graficamente apelativo.
Infelizmente, do ponto de vista das memórias com as quais lida, o
valor da análise de Asch é afectado negativamente por lacunas
consideráveis. Embora envide esforços notáveis no sentido de com-
preender o kimbanguismo à luz de contextos kimbanguistas africanos,

IV. A Domesticação e o Conflito das Memórias 189


a leitura do seu trabalho leva-nos a interrogar se a autora alguma vez
entendeu o significado passado (e presente) da religião, e desta religião
em específico, para os Bacongo em particular e para os habitantes do
Congo Belga em geral. Por exemplo, a discrepância identificada entre a
religião oficial e a popular pode ter um significado diferente do sugeri-
do pela autora. Da mesma maneira, nos casos de Bandundu, Equateur,
Shaba-Katanga e das duas Cassais, a diferença em termos de crenças,
práticas e políticas que se mostra incapaz de compreender pode ser
explicada com maior simplicidade através de factores de ordem cul-
tural em vez dos critérios sociológicos utilizados no livro. Em segundo
lugar, na medida em que o kimbanguismo é uma religião, afigura-se ex-
pectável a inclusão de um capítulo devidamente documentado sobre a
sua teologia. Porém, não podemos considerar a rápida análise acerca
da ambigüidade dos conceitos do Espírito Santo e do Profeta [1983,
pp. 113-115) uma apresentação satisfatória da teologia kimbanguista.
O seu argumento relativo à identificação de Simon Kimbangu com o Es-
pírito Santo [1983, p. 176) reveste-se de importância mas deveria ter
sido estudado e validado cuidadosamente. O silêncio da autora sobre
contributos úteis e recentes que poderiam ter sido proveitosos para a
sua investigação constitui outro aspecto susceptível de ser questiona-
do. Asch escreve que, segundo A. Geuns, existem mais de 600 livros e
artigos sobre o kimbanguismo [1983, p. 43), mas isso não é razão para
negligenciar contributos que, caso tivessem sido consultados, teriam
modificado determinadas generalizações indefinidas e vulgares [ver
1983, pp. 45-51). É lamentável que Asch não tenha contemplado o tra-
balho de J.M. Janzen em The Tradition of Renewal on Kongo Religion [In
N.S. Booth [ed.), African Religions, 1977) e, sobretudo, a obra de Janzen
e W. MacGaffey, An Anthology of Kongo Religion [University of Kansas
Publications in Anthropology, 1974), os quais poderiam ter orientado
a sua tese de modo a aferir se, no plano da memória, o kimbanguismo
constitui um movimento estritamente religioso, uma instituição políti-
ca ou ambos. Por fim, o modo como Asch fundamenta os seus argu-
mentos causará alguma perplexidade junto dos leitores mais atentos.
Por exemplo, a autora cita as suas fontes [1983, p. 274) quando dis-
corre sobre a beleza da região de Kivu [muito importante!), mas es-
quece-se de fazê-lo em relação a dados excepcionais, designadamente
a disputa ocorrida em Lubumbashi, no ano de 1974, entre o Estado do
Zaire, a Igreja Católica Romana e o E.J.C.S.K [Igreja Kimbanguista) para
a aquisição da prisão onde Kimbangu estava detido [1983, p. 171) e o
modo como a E.J.C.S.K conseguiu adquirir a propriedade.
A obra de Asch é bem-intencionada mas, infelizmente, não acres-
centa nada de novo aos estudantes que se dedicam ao kimbanguismo.

196 V.Y. Mudimbe A Idéia de Africa

i
Além disso, no seu imbróglio, ilustra magnificamente as memórias
conflituantes do kimbanguismo.
Modern Kongo Prophets, de Wyatt MacGaffey, uma obra pertencen-
te à colecção "African Systems of Thought", dirige-se aos africanistas
e aos estudantes de religião comparada. O livro visa, em específico,
uma "apresentação adequada do kimbanguismo", exigindo, segundo o
autor, "uma revisão de grande parte da literatura existente que versa
sobre o assunto e uma reconstrução de determinadas ferramentas da
antropologia da religião" (1983, p. xi). O quadro teórico é estabelecido
por paradigmas metodológicos vigorosos, porventura demasiado am-
biciosos:
o presente estudo procura discernir entre as representações de acontecimentos
nas categorias da ciência social e esses mesmos acontecimentos tal como en-
tendidos pelos Bacongo [...]. Esta distinção é digna desta tentativa embora, na
prática, seja impossível sustentar uma segregação radical. Por mais compassivo
que seja o antropólogo, o projecto que empreende é seu e não dos povos em
nome dos quais se propõe falar. Em segundo lugar, a potencial incompatibilidade
de ambas as perspectivas não deve ser amplificada; são, muitas vezes, congruentes.
(1983, p.xii)

O livro divide-se em três partes. Na primeira, MacGaffey lança um


novo olhar sobre a etnografia da conversão no Congo, analisando o
profetismo congolês no contexto da "conversão moderna dos Bacongo
ao Cristianismo e, especialmente, ao Cristianismo Protestante (Bap-
tista]." O relato explica um processo socio-histórico de aculturação e,
ao mesmo tempo, inclui uma síntese vívida do surgimento dos profe-
tismos enquanto heresias políticas e religiosas que, em última instân-
cia, se transformaram em novas ortodoxias. Em seguida, MacGaffey
descreve as igrejas no Congo moderno, sublinhando a sua relativa
força e alguns dos factores sociológicos que as determinam, tais como
o emprego e a educação, além de factores de ordem política e étnica.
Na segunda parte, o leitor depara-se com uma análise meticulosa do
Congo enquanto sociedade plural, uma sociedade na qual estão incor-
porados dois modelos diferentes: o kimundele (sistema europeu) e o
kindombe (sistema africano). O domínio de MacGaffey sobre a litera-
tura e o contexto "congolês-zairense" é irrepreensível e o argumento
de que o profetismo resulta de sistemas e ideologias conflituantes está
bem conseguido. Mesmo assim, esta análise deixa algumas perguntas
em suspenso. Por um lado, é manifesto que o estudo de MacGaffey in-
cide sobre a desordem, seja a partir do kimundele e da sua memória,
seja do contexto do kindombe, o que implica o desencadeamento de

IV. A Domesticação e o Conflito das Memórias 189


desequilíbrios sociais e, portanto, de mudanças eventuais e perigosas.
Por outro lado, segundo um dos postulados básicos do livro, dado os
Bacongo carecerem "de uma ideologia de progresso ou modernização,
estão cientes da simultaneidade do conjunto das estruturas que or-
ganizam as suas vidas, apesar de a sua própria ideologia impor uma
ideia a esse respeito, pelo menos, tão enganadora como a 'moderniza-
ção'" (1983, p. 16). Estes dois factos significam que estamos perante
uma sociedade que, recorrendo ao vocabulário de Claude Lévi-Strauss,
estaria entre o tipo estritamente "frio" e o tipo firmemente "quente".
Por conseguinte, as constatações de MacGaffey parecem menos satis-
fatórias porquanto ocultam, em vez de esclarecer, o significado social
do profetismo do Congo e as suas memórias como "entropia", como
desordem. Por fim, na terceira parte, MacGaffey analisa determinadas
perspectivas do Congo, centrando-se na cosmologia, na cura, e nos
quadros socio-religiosos do profetismo. A candura dos esboços auto-
biográficos fornece informações estimulantes acerca do envolvimento do
autor na sua investigação pelo que começamos então a perceber em que
sentido este livro é "inovador". A análise subjectiva mas devidamente
documentada da relação entre Mputu (o Ocidente), o tráfico de escra-
vos, e o Catolicismo (1983, p. 130-40), constitui uma obra de arte so-
bre a tensão dialéctica entre os métodos e as categorias das ciências
sociais e, por outro lado, as interpretações congolesas da história.
Admiro os apontamentos em primeira mão de MacGaffey sobre a
cultura e as subculturas do Congo, a par da excelência da sua escrita
acerca do profetismo no Congo. Neste livro que versa sobre a prática
das memórias do Congo, MacGaffey optou por rejeitar o conceito de
aberração social, realçar o profetismo como um acontecimento e pro-
mover uma integração da psicologia e da sociologia tendo em vista a
interpretação das personalidades dos profetas. É este o grandeur de
um antropólogo. Pergunto-me se uma parte considerável daquilo que
o autor entende ser uma visão e um comportamento profético - por
exemplo, Ndo Mvuzi (1983, pp. 236-43) - não deveria ter sido tratado
simplesmente em termos psicopatológicos.

194 V.Y. Mudimbe A Idéia de Africa i


V. Reprendre
Ó canaviais entrelaçados, que a fome nunca se abata sobre vós
Que nunca sejais colocados à venda no mercado
Que ninguém desconheça o vosso criador
Que nunca sejais pisados por nenhum homem indigno.

- Cantiga de trabalho de mulheres anônimas. Somália


(Loughran etal., 1986, p. 59).

Enunciações e Estratégias nas Artes Africanas


Contemporâneas
Tenciono utilizar a palavra reprendre - estranhamente difícil de tra-
duzir - como uma imagem da actividade contemporânea da arte afri-
cana. O primeiro sentido prende-se com a retomada de uma tradição
interrompida, não por um desejo de pureza, o que testemunharia
apenas as imaginações de antepassados mortos, mas de um modo que
espelha as condições actuais. Em segundo lugar, reprendre sugere uma
avaliação metódica, o começo efectivo do trabalho do artista com uma
apreciação das ferramentas, dos meios e dos projectos artísticos no
seio de um contexto social transformado pelo colonialismo e, posteri-
ormente, pelas correntes, as influências e as tendências vindas de fora.
Por fim, reprendre propõe uma pausa, uma meditação, uma reflexão
sobre o significado dos dois exercícios anteriores.
Todavia, no caso de o artista africano percorrer, consciente ou in-
conscientemente, estas etapas cruciais na criação artística, os obser-
vadores do trabalho acabado, mesmo os mais atentos, podem acabar
por furoar vestígios, camadas e símbolos susceptíveis de qualificar a
obra como estando integrada numa determinada corrente na indefini-
da esfera da "arte primitiva". Ingênuo, inconformado e, por vezes, par-
cial, este tipo de olhar engloba, amiúde, dois pressupostos a phori, um
relativo ao próprio conceito de arte ocidental e ao seu alargamento
dúbio às obras não-ocidentais, e outro que presume a imutabilidade, a
estase, das artes não-ocidentais (ver Price, 1989). Porém, existe uma
história, ou melhor, existem histórias das artes africanas que contradizem

V. Reprendre 199
estas conjecturas. Na sua obra Art History in África (1984), Jan Van-
sina procede a uma análise convincente da multiplicidade dos proces-
sos artísticos no continente, das readaptações e transformações dos
métodos e das técnicas aí existentes, da dinâmica da aculturação e da
difusão, além do seu impacto na criatividade. Acresce que, nos dias
de hoje, não existe "uma" arte africana. As correntes senegalesas dife-
rem das da Nigéria, da Tanzânia ou de Moçambique, e cada uma delas
encontra-se mergulhada no seu próprio contexto sociocultural. Mes-
mo nas obras-primas tradicionais (ver, por exemplo, Vogel e N'Diaye,
1985), a presença de estilos regionais e a variedade das suas histórias
são manifestas.

Busto de um rei. c. 1750. Ashanti. Gana.

Embora o presente estudo seja omisso quanto a esses movimentos


históricos, procuro apontar ritmos, tendências e descontinuidades
abrangentes que se prolongam desde um período de ruptura recente
do qual emanaram novos tipos de imaginações artísticas. No cômputo
global, ao invés das sucessões causais, o meu interesse recai sobre os
novos limites artísticos, os desvios da inspiração e aquilo que podemos
apelidar de sistema "arquitectónico" - uma ordem subjacente, pas-
sível de justificar determinadas semelhanças básicas entre estilos re-
gionais que exibem diversidades, complexidades e incompatibilidades
espantosas. Esta ordem levou certos analistas a supor um "complexo
criativo" unificador e ancestral em África. Optei por uma abordagem

21,6V.Y.MudimbeA Ideia de Africa


dotada de um pendor mais sociológico que, apesar do seu enfoque na
história, visa, sobretudo, as incidências da conversão, os padrões da
descontinuidade e as influências contraditórias ou complementares.
Parto da reconversão radical das artes africanas nos contextos coloni-
ais para o seu subsequente desenvolvimento. Esta descrição constitui
um panorama genérico e pretende evitar a mistificação de pormeno-
res técnicos no debate sobre tendências artísticas abrangentes e
obras específicas. Parece privilegiar a escultura e a pintura, mas isso
deve-se apenas a questões de ilustração; a análise pode ser alargada
ao batique, à cerâmica, ã gravura, à pintura sobre vidro, e assim por
diante. Por fim, gostaria de frisar que a minha abordagem firma-se
num a priori teórico referente ao estatuto de uma obra de arte: sugiro
que consideremos as obras de arte africanas como textos literários, ou
seja, fenómenos (narrativos] linguísticos e circuitos discursivos (ver
Kristeva, 1980). Espero que a minha análise demonstre a proficuidade
de tal abordagem.

A questão de uma imaginação "nilótica"


Segundo as palavras de Pierre Romain-Desfossés "detectamos nos
nossos pintores catangueses precisamente um complexo asiático, o
que nos permite utilizar a etiqueta do nilótico" (Cornet et al. 1989, pp.
68-69]. Nesta declaração magnífica que associa geografia, raça e arte
o fundador do ateliê de arte "Le Hangar", em Elisabethville (actual-
mente Lubumbashi, Zaire], procura explicar a originalidade da imagi-
nação artística dos seus alunos africanos. De nacionalidade francesa,
Romain-Desfossés chegou ao Congo após a última guerra europeia aí
permanecendo, cativado pelo que considerava ser um potencial artísti-
co extraordinário, e organizando uma oficina para um grupo de estu-
dantes criteriosamente seleccionados. O seu programa encontra-se
sintetizado nesta observação: "devemos opor-nos com veemência aos
métodos destinados a extirpar a personalidade [africana] em benefí-
cio de uma estética homogeneizante dos mestres brancos" (Cornet et
ai, 1989, p. 66].
O projecto de Romain-Desfossés, cujo zelo missionário desencadeou
o surgimento de uma generosidade notável, fez convergir os quadran-
tes político e artístico no sentido da formação de uma nova estética.
Porém, atribuía a origem desta estética, a par da criatividade dos seus
alunos em geral, a um "complexo asiático", uma "etiqueta nilótica". A
tarefa que Romain-Desfossés delineou para si próprio consistia em re-
activar esta memória estética, antiga e imutável, junto dos seus alunos.

V. Reprendre 201
Independentemente das suas implicações técnicas, este conceito
afigura-se importante enquanto referência a uma configuração per-
dida e interrompida ou, pelo menos, ofuscada pela história. Sugere
uma espécie de inconsciente estético, partilhado pelos africanos
subsaarianos, passível de ser despertado por uma procura disci-
plinada, sensível e paciente. Em 1957, Frank McEwen, fundador de
uma galeria nacional em Salisbury, Rodésia (actualmente Harare,
Zimbabwe), fez uma sugestão semelhante recorrendo a uma me-
táfora: "Uma das características mais bizarras e inexplicáveis veri-
fica-se nas fases iniciais do desenvolvimento, pelas quais muitos
artistas atravessam em virtude da sua reflexão conceptual e mesmo
simbólica, mas nunca estilística, da arte da civilização antiga, mor-
mente a pré-colombiana. Designamo-la de "período mexicano" que
evolui, por fim, para um estilo altamente individualista" (McEwen
1970, p. 16). Quer se trate de uma "etiqueta nilótica" quer de um
"período mexicano", a expressão parece descrever algo que Carl
Jung teria apelidado de "imagem arquetípica", "no fundo, um con-
teúdo inconsciente que sofre uma alteração ao tornar-se consciente
e ao ser apreendido, e cuja cor provém da consciência individual
dentro da qual se manifesta". Jung prossegue: "O termo 'arquétipo'
[...] aplica-se apenas indirectamente às representações colectivas,
dado designar somente os conteúdos psíquicos que ainda não foram
submetidos à elaboração consciente, sendo, por isso, um dado ime-
diato da experiência psíquica" (Jung, 1980, p. 5).
Todavia, no respeitante à sua "etiqueta nilótica", é provável que Ro-
main-Desfossés tivesse outro aspecto em mente - um dado extrema-
mente antigo, uma espécie de teia perdida, totalmente esquecida, mas
ainda viva e bem enterrada no inconsciente. Além disso, estava con-
vencido de que as obras dos seus melhores discípulos - Bela, Kalela,
Mwenze Kibwanga, Pilipili - confirmavam a sua existência. Porém, o
conceito de um complexo "nilótico" primitivo ou outro revela-se bas-
tante questionável. Talvez seja mais prudente considerar que estes
jovens artistas inventaram uma textura e um estilo originais dado es-
tarem situados no cruzamento entre as tradições locais e a moderni-
dade artística de Romain-Desfossés. Exibiam, por um lado, a influência
luminosa e inescapável da vida aldeã e, por outro, o olhar e o discurso
menos neutros do seu professor. Romain-Desfossés desempenhava a
função de pai (chamava os seus alunos de "meus filhos" e cuidava do
seu bem-estar físico e emocional), mestre (entendia que a sua missão
era ensiná-los a "ver") e guia numa nova disciplina: "a pintura... consti-
tui uma nova arte que trazemos aos africanos negros." Segundo Wim
Toebosch, Romain-Desfossés sonhava em recriar um novo universo

A Ideia de Africa

i
artístico: "Em vez de dar instruções ou impor critérios ou princípios,
pede simplesmente aos seus alunos, aos seus filhos como lhes chama-
va, que explorem com os olhos, estudem o mundo circundante e tentem
compreender a sua totalidade, mas também a sua essência, sem reme-
ter para nenhuma noção de credo - ou de superstição" (Toebosch, in
Cornet et a/., 1989, p. 66).
Ademais, os pareceres de Romain-Desfossés em matéria de história
de arte afiguravam-se bastante categóricos. Era um romântico e
celebrava a criatividade dos seus alunos enquanto fruto de "fontes
puras e virentes", por oposição ao que denominava de "decadência
ocidental", "snobismo" e "loucura" - apenas alguns artistas euro-
peus, como Picasso, Braque e afins eram poupados a estes rótulos.
Uma fotografia a preto e branco da sua "família" constitui o melhor
exemplo do modo como Romain-Desfossés imaginava o novo mun-
do artístico que procurava criar: os africanos estão colocados numa
disposição subtil, formando uma espécie de quadrado, com Romain-
-Desfossés, o único branco da fotografia, no centro. O equilíbrio ni-
miamente bem organizado entre a esquerda e a direita, a frente e a
retaguarda, o posicionamento geométrico dos indivíduos sentados, a
exploração da natureza - tudo é calculado para produzir um sentido
de comunhão, amizade e amor unindo o "pai" branco e os seus "filhos"
negros. A floresta densa em torno do grupo e as duas bananeiras plan-
tadas junto dele parecem ter como propósito o estabelecimento de
uma progressão gradual da natureza para a cultura e o inverso - uma
regressão das sensibilidades do mestre e guia, através dos jovens ar-
tistas que o rodeiam quase religiosamente, para a noite da simbólica
floresta invicta. Sob uma perspectiva freudiana, este caso presta-se à
identificação de uma vontade de dominar uma topografia psíquica e
de uma catexia ou concentração de energia nessa busca. Por fim, veri-
fica-se o cruzamento tranquilo dos olhares: a deferência respeitadora
dos olhares dos alunos recaindo sobre o mestre, como se estivessem
a aguardar um oráculo; e os próprios olhos de Romain-Desfossés que
parecem desfocados, como se estivessem semicerrados em medita-
ção. Ou estará ele a olhar para os três alunos à esquerda do grupo, ou
para a sua própria mão direita, ligeiramente erguida? Seja como for,
a característica mais marcante do seu rosto branco é o seu sorriso
enigmático, o pai, o mestre, o guia detentor de um segredo que só
será revelado no momento oportuno.

V. Reprendre 203
Pierre Romain-Desfossés com os seus discípulos. Foto cedida pela Jeune Afrique.
O Museu de Arte Africana, Nova Iorque.

A composição da fotografia constitui um retrato bem conseguido da


moldura espiritual do ateliê de arte "L'Hangar" de Elisabethville e do
seu epígono, a "L'Ecole de Lubumbashi." A fotografia corresponde a
uma representação extraordinária das intersecções simbólicas da ofi-
cina, entre as concepções socioculturais deixadas pelo colonialismo e
a nova política da aculturação. Romain-Desfossés assume-se como um
paradigma. A constelação artística que representa cruza as fronteiras
de, pelo menos, duas tradições, duas ordens de diferença, sendo que o
objectivo da arte inspirada por si consistia em revelar o desejo de um
novo sujeito, emanante de uma relação frágil entre topografias psíqui-
cas radicalmente diferentes.
Romain-Desfossés não foi o único a incorporar uma ambição desta
natureza. O frade belga Mare Stanislas (Victor Wallenda], por exemplo,
fundou a School Saint Luc em Gombe-Matadi (Baixo-Zaire) em 1943,
a qual foi transferida para Léopoldville (actualmente Kinshasa, Zaire)
em 1949 e transformada na Academia de Belas Artes em 1957. Em
virtude da sua firme convicção na teoria de uma "imaginação estética
africana inata", Wallenda, durante o seu longo mandato enquanto di-
rector da instituição, obrigou os seus alunos a inspirarem-se apenas
em "obras tradicionais", garantindo que não estavam expostos à arte
europeia e ainda menos a livros sobre história de arte. Frank McEwen,
fundador de uma oficina no Museu de Harare (uma extensão da

21,6 V.Y. Mudimbe A Ideia de Africa


Galeria Nacional da Rodésia que abriu em 1957), exerceu igualmente
um papel análogo. Os seus princípios educacionais fundavam-se numa
recusa em "corromper" os artistas africanos através da sua exposição
à "influência das escolas de arte ocidentais" [Mount 1973, p. 119).
Margaret Trow^ell, directora da Makerere School of Art no Uganda, a
par de Pierre Lods e Rolf Italiander da Poto-Poto School em Brazza-
ville, partilhavam da mesma filosofia. Outros nomes podem ser acres-
centados, designadamente o de Tome Blomfield, que organizou uma
oficina destinada a trabalhadores desempregados na sua quinta em
Tengenenge (Zimbabwe); Cecil Todd, um modernista resoluto que,
na década de 1960, expunha obrigatoriamente os seus alunos de
Makerere [Uganda) e, mais tarde, da Universidade do Benim [Nigéria)
à arte moderna europeia; e, entre o conservadorismo de Romain-Des-
fossés e Wallenda e o modernismo mais recente de Todd, os padres
Kevin Carrol e Sean O'Mahoney da Sociedade da Missão Africana que
trabalharam, desde 1947, com os artesãos do loruba com o intuito de
promover uma arte que conjugasse "idéias europeias com formas
africanas" [Mount, 1973, p. 32). Além disso, todos os colegas bran-
cos de Romain-Desfossés apresentavam vários aspectos em comum:
assumiram conscientemente o papel e as funções da figura paternal;
acreditavam numa imaginação estética africana inata, profundamente
diferente da europeia e convidavam os artistas locais em cujo poten-
cial acreditavam a fazer parte de uma disciplina capaz de gerar novos
argumentos e novas idéias, assim como um terreno de criatividade
novo e aculturado, através da perscrutação de memórias esquecidas
ou ofuscadas.

Entre duas tradições


Marshall W. Mount identificou quatro categorias primaciais da arte
contemporânea africana [Mount, 1989). A primeira corresponde aos
estilos tradicionais sobreviventes, exemplificados em determinadas
práticas como a fundição de latão no Benim, o entalhe em madeira
dos Ashanti no Gana e a tecelagem no Abomei na República do
Benim. A segunda categoria remete para a arte inspirada nas missões
cristãs. Na costa ocidental e, sobretudo, na África Central, este tipo de
produção remonta aos primeiros contactos com os portugueses em
finais do século XV e inícios do século XVI; na década de 1950, esta
arte religiosa beneficiou de um estímulo graças ao apoio prestado
pelas paróquias cristãs às oficinas dos artistas. Nesse sentido, trata-se
de uma arte apologética, na medida em que visa defender e ilustrar o

V. Reprendre 205
Cristianismo, adaptando-se ao contexto africano. Quanto às produções
- crucifixos, esculturas, telas retratando temas bíblicos, portas entalha-
das, e outras - estas são, em regra, utilizadas para decorar as igrejas,
os edifícios paroquiais e as escolas. A terceira engloba a categoria da
arte dos souvenirs - "arte para turistas" ou "arte de aeroporto" (ver
Jules-Rosette, 1984). O objectivo destes trabalhos é o de agradar os
europeus; segundo as palavras de um entalhador da África Oriental:
"Descobrimos aquilo de que os [europeus] gostam. Produzimos aquilo
de que gostam quando temos fome" (Mount, 1989, p. 39). Por último,
uma nova arte emergente que exige "técnicas desconhecidas ou raras
na arte africana tradicional". Mount escreve o seguinte: "A representa-
ção deste novo tema evidencia uma variedade estilística. Tanto existem
obras produzidas de acordo com padrões conservadores e académicos
quanto pinturas abstractas reminiscentes da corrente do expressionis-
mo abstracto. Contudo, uma porção considerável desta nova arte afri-
cana situa-se entre estes dois pólos estilísticos e, consequentemente,
elude a observância rigorosa de ambos" (Mount, 1989, pp. 62-63).
As classificações pedagógicas de Mount revelam-se úteis para uma
primeira abordagem às artes africanas. Todavia, a sua clareza e apa-
rente coerência não têm em conta, naturalmente, a complexidade de
géneros, escolas de pensamento e tradições artísticas em África. A título
exemplificativo, podemos interrogar-nos se as obras de Mwenze Kib-
wanga, Pilipili (discípulos de Romain-Desfossés) e Thomas Mukarobgwa
(um aluno de McEwen) pertencem à primeira ou quarta categorias
da classificação de Mount. E quanto ao batique da África Oriental ou
à souwer senegalesa, a tradição da pintura sobre vidro? Além disso,
regista-se um segundo problema importante: em que categoria incluir
a "arte popular"? Apesar de estas produções testemunharem tendên-
cias emergentes, somente uma minoria dos seus produtores ingres-
saram em escolas de arte, sendo o número de "beneficiários de bolsas
de estudo atribuídas pelo governo em escolas de arte estrangeiras"
ainda mais escasso (Mount, 1989, p. 62), à semelhança dos vários
artistas que constam da quarta categoria de Mount. Acresce que, em
bom rigor, a arte popular não é inspirada pelas missões cristãs, em-
bora alguns dos seus criadores trabalhem sobre temas cristãos. Face
à impossibilidade de ignorar a modernidade desta arte, esta insere-se,
em princípio, na quarta categoria de Mount. Ainda assim, os motivos
de uma lista imponente de obras de arte popular inspiram-se clara-
mente em objectos tradicionais. O que fazer?
A classificação de Mount pode ser objecto de uma revisão de acordo
com uma ideia mais simples: a complementaridade das tradições em
todas as categorias que distingue. No entender do professor austríaco

21,6V.Y.MudimbeA Ideia de Africa


Ulli Beier, esta complementaridade constitui uma das marcas mais
significativas do "contacto de culturas afro-europeu":
Deixou de ser possível olhar para a arte africana e detectar apenas um processo de
desintegração célere e contínuo. Agora podemos constatar que a arte africana respon-
deu às convulsões sociais e políticas ocorridas em todo o continente. O artista africano
não se deixou fossilizar. Novos tipos de artistas dão expressão a novas idéias, trabalham
para clientes diferentes, desempenham novas funções. Ao aceitar o desafio da Europa,
o artista africano não hesita em adoptar novos materiais, encontrar inspiração na arte
estrangeira, procurar um novo papel social. Assiste-se à emergência de novas formas,
novos estilos e novas personalidades por toda a parte sendo que esta arte africana
contemporânea está rapidamente a tornar-se tão rica e variada como as convenções
artísticas mais rígidas de várias gerações atrás. (Beier, 1968, p. 14).

Como tal, assiste-se a uma aculturação estética entre, por um lado, o


conjunto das representações e inspirações africanas, dos seus diversos
circuitos discursivos que manifestam a sua essência e traçam os seus
percursos e, por outro, o europeu que se revela familiar e estranho
para o artista africano, significando, em concomitância, um novo ponto
de partida. O primeiro pertence ao tecido cultural, local e obstinado,
reproduzindo Weltanschauungs regionais de um modo demonstrativo
ou decorativo, naïf ou sofisticado. O último deve ser postulado como
uma concepção de ordem mais intelectual e sociológica.
O artista formado nas oficinas e escolas de arte da era colonial esteve
exposto a programas curriculares que ditaram reflexões e respostas
poderosas. Mesmo nas instituições de maior conservadorismo, a edu-
cação era sinônimo de conversão ou, pelo menos, de uma abertura a
outra tradição cultural. Para a globalidade destes artistas, a realidade
orgânica de uma modernidade encontrava-se consubstanciada nos
discursos, nos valores, na estética e na economia de troca do colonialis-
mo. Por conseguinte, podemos deixar-nos seduzir pelo sistema geral
de oposições entre as duas tradições, formulado por Edmund Leach, e
avançar com a hipótese da existência de uma competição discreta en-
tre ambas: quanto mais tradicional a inspiração para uma obra de arte,
menos a sua configuração e o seu estilo globais permitem uma aferição
clara das características das suas formas, do seu conteúdo e das com-
petências técnicas do artífice; inversamente, quanto mais ocidentalizada
a obra, mais fácil será a identificação destes elementos constituintes
por parte do observador. Embora brilhante, a sugestão de Leach, infe-
lizmente, descura a questão complexa dos estilos, das "propriedades
formais de uma obra de arte", que constituem a especificidade central
de uma tradição artística (ver Focillon, 1934 e Vansina, 1984).

V. Reprendre 207
A distinção de três correntes principais (e não categorias) nas artes
africanas contemporâneas pode ser efectuada com base em dois con-
juntos de critérios - internos (estilo, motivos, tema e conteúdo da obra
de arte) e externos (o contexto da sua criação e respectiva história
cultural, o meio sociológico e o desígnio do artista). Trata-se de uma
corrente inspirada na tradição, uma corrente modernista e uma arte
popular. Quanto à arte religiosa cristã, a arte turística e outras tendên-
cias afins, devem situar-se entre a correntes inspirada na tradição e a
modernista.
Ambas as correntes visam, por um lado, revitalizar os estilos, os mo-
tivos e os temas de outrora, trazer o passado para junto de nós, como
no caso das escolas fundadas por Romain-Desfossés, McEwen e
Victor Wallenda; por outro lado, buscam uma estética nova e moder-
na, uma inscrição consciente de um ambiente cultural moderno (como
no caso de Limidi Fakeye da Nigéria). Pese embora a sua aparente dis-
paridade, estas duas ambições são, na realidade, bastante compatíveis.
A terceira corrente - a arte popular recente - desenvolvida nos anos
da independência é paralela à arte de pendor modernista. Contudo, a
arte modernista apresenta uma dimensão mais intelectual, sendo, em
regra, produzida por artistas cultos, cujas obras exploram uma lin-
guagem académica adquirida na escola de arte. Além da sua proeza
artística, estas obras evidenciam igualmente uma importância monetária
porquanto se destinam sobretudo para venda. Com efeito, nos países
africanos, tanto as obras modernistas quanto as inspiradas na tradição
funcionam como "bens de exportação" para o mercado internacional.
A terceira corrente corresponde à arte popular, sendo entendida
como a antítese destes fastígios da aculturação estética. Em geral, os
seus artistas são autodidactas, utilizam materiais baratos e pintam
para as pessoas comuns nas margens da burguesia local (como muitos
dos próprios artistas) e não para efeitos de exportação. Os estilos, os
motivos e os temas da arte popular alegorizam as percepções asso-
ciadas ao senso comum; no estilo formal naïf, comentam vividamente
acontecimentos históricos, questões de cariz social e as dificuldades
culturais enfrentadas pelos povos rurais e pela classe trabalhadora
(ver, por exemplo, Fabian e Szombati-Fabian, 1980). Ao contrário de
uma "alta" cultura sancionada por uma autoridade internacional e
pela respeitabilidade dos géneros artísticos europeus, a arte popular
apresenta uma estrutura assente num conjunto de formações discur-
sivas regionais cujos significados, códigos, estatuto, distribuição e con-
sumo são muito específicos dos diferentes locais de onde emergem.
Em síntese, enquanto a arte modernista e a arte inspirada na tradição
reflectem os valores culturais mais elevados tal como definidos e.

21,6 V.Y. Mudimbe A Ideia de Africa


supostamente, vividos pelos círculos internos da sociedade africana
aculturada, a arte popular, produzida na periferia dessa mesma so-
ciedade, analisa, interpreta e ocasionalmente contesta esses valores
ao perturbar o seu carácter explícito, desafiar a sua discursividade e
proporcionar a circulação de novas leituras dos acontecimentos fun-
dadores, das mitologias e das injustiças sociais, bem como as repre-
sentações populares de uma história da alienação [ver, por exemplo,
Beier, 1968 e Jewsiewicki, 1989b).

Reagrupamento
Ainda me recordo da exposição de tapeçarias senegalesas na Wally
Findlay Galleries, Nova Iorque, em 1983, assim como da exposição mais
recente intitulada Contemporary African Artists no Studio Museum de
Harlem, Nova Iorque, em 1990. 0 aspecto mais surpreendente de ambas
as exposições prendeu-se com os estilos modernistas das suas colecções.
Na apresentação das peças senegalesas, James R. Borynack, presidente
da Wally Findlay Galleries, salientou que "a totalidade das [obras] en-
contra-se impregnada de uma espécie de retrospecção mitológica que
parece emanar do inconsciente colectivo" [Boiynack 1983, p. 4; Catál.
CARS); a introdução ao catálogo, por sua vez, louva as tapeçarias en-
quanto validação de "uma estética africana autêntica" [Borynack 1983,
p. 6; Catál. CARS). A técnica da tapeçaria provém da École National
dAubusson de França e a execução das peças pautava-se por uma ob-
servância fiel dos cânones de Aubusson, pelo menos entre 1964 e a déca-
da de 1970. Porém, os motivos destes trabalhos sofreram uma alteração
discreta que coincidiu com a introdução dos temas da "negritude" por
volta da década de 1960. A influência pessoal de Léopold Sédar Senghor,
então presidente do Senegal, patrono das Manufactures Sénégalaises e o
teórico mais conhecido da negritude, estava patente em várias peças de
homenagem aos estilos antigos. A cor, a linha e o movimento uniam-se e
separavam-se como se estivessem a ser lavrados por um ritmo virante.
Aliás, o empreendimento correspondia a uma ilustração imponente da
idéia de Senghor acerca da Escola de Dacar: "uma herança cultural afri-
cana", uma "estética do sentimento", "imagens imersas em ritmo" [Axt e
Babacar Sy, 1989, p. 19). Um crítico poderá indagar se as referidas peças,
que afirmavam exibir as virtudes de uma fonte estética antiga em ebu-
lição, se prestam à classificação de variantes da arte tradicional. Para o
artista e escritor Issa Samb [Axt e Babacar Sy, 1989, pp. 129-30), o êxito
das tapeçarias senegalesas nesta matéria, e o da Escola de Dacar em
geral, não deixa margem para dúvidas. Contudo, Samb, não obstante a

V. Reprendre 209
sua relutância em navegar contra qualquer espécie de crítica, receia que
a crítica habitual "desmascare e, ao mesmo tempo, defraude o sistema
sobre o qual a 'École de Dakar" se alicerça", por salientar a herança afri-
cana do objecto em vez da individualidade do artista. "A crítica confunde
a denotação no sentido em que as exposições que circulam pelo mundo
denotam efectivamente a Negritude mas conotam algo bastante dife-
rente. E este 'bastante diferente' é essencialmente indefinível, trata-se
da psique dos pintores" [Axt e Babacar Sy, 1989, p. 130).
A exposição Contemporary African Artists não foi imune a este problema:
quão verdadeiramente "africana é a arte africana moderna"? [Catál.
CAA, 1990, p. 36). Salvo o autodidacta Nicholas Mukomberanwa do
Zimbabwe, todos os artistas representados na exposição - El Anatsui
[Gana), Youssouf Bath (Costa do Marfim), Ablade Glover (Gana), Tapfu-
ma Gutsa (Zimbabwe), Rosemary Karuga (Quénia), Souleymane Keita
(Senegal), Nicholas Mukomberanwa, Henry Munyaradzi (Zimbabwe) e
Bruce Onobrakpeya (Nigéria) - ingressaram em instituições especializa-
das em África ou no estrangeiro; a maioria pertence a uma segunda
geração na esfera artística e, caso haja uma identificação consciente com
os primórdios da arte africana, estes artistas sabem como subvertê-la
e sujeitá-la aos seus próprios processos criativos. De facto, descobrem
no passado africano simplesmente uma arte que os precedeu, uma
arte bela e feia. Apesar de constituir uma fonte inspiração, o passado
não os agrilhoa. Gutsa, por exemplo, distancia-se de um modo bastan-
te consciente da sua cultura shona e respectivas convenções através
da exploração de temas estrangeiros (designadamente nas obras The
Guitar, 1988, em madeira, papel de jornal e serpentina, e The Mask,
the Dancer, 1989, em serpentina, aço e madeira). Chembere Mukadzi
(1988-1989; serpentina), da autoria de Mukomberanwa, exprime uma
agenda política contemporânea dos direitos das mulheres.
A posição ideológica do artista senegalês, Iba N'Diaye, reflecte a ati-
tude de um conjunto de artistas contemporâneos:
Não faço qualquer tenção de estar na moda. Alguns europeus, em busca de emoções
exóticas, esperam que lhes ofereça folclore. Recuso-me a fazê-lo - caso contrário,
existiria apenas em função das suas ideias segregacionistas acerca do artista
africano. (Catál. IN 1 e IN 2).

N'Diaye invoca um direito à subjectividade pessoal e à prática


individual. Porque deverá o artista estar condenado a uma mera
reprodução de outras narrativas?
Como é óbvio, a declaração contundente de N'Diaye evoca o célebre
lamento de William Fagg: "estamos perante a morte de tudo aquilo que

21,6V.Y.MudimbeA Ideia de Africa


a arte africana tem de melhor" (Catál. IN 1 e IN 2). Acresce que o perío-
do da independência em África promoveu transformações e mutações
socioculturais profundas. Mas porque devemos decidir a priori que a
arte antiga é superior? Segundo Ulli Beier, a declaração de Fagg "descreve
o fenômeno trágico sobejamente conhecido em África. For todo o conti-
nente, os entalhadores pousam as suas ferramentas. Os rituais que
inspiraram o artista estão a desaparecer. Outrora seus patronos, os
reis perderam o seu poder" (Beier, 1968, p. 3). E então? Apesar da sua
violência, esta descontinuidade não significa obrigatoriamente o fim
da arte africana; pelo contrário, parece que os modelos antigos estão
a ser readaptados fertilmente. Mesmo Beier encontra peças notáveis,
que evolvem "entre dois mundos", de artistas como o fundidor de latão
tradicional de loruba, Yemi Bisiri, o entalhador de madeira do Benim,
Ovia Idah, e o entalhador muçulmano, Lamidi Fakeye. Noutra ocasião,
elogia as obras da década de 1960 da autoria de Twins Seven-Seven,
Muraina Oyelami, Adebisi Fabunmi, Jacob Afolabi, Rufus Ogundele e
outros da escola de Oshogbo cuja arte - e isto era inédito para a época
- não se destinava apenas ao mercado ocidental. Este trabalho reflec-
tiu um desejo de dizer e ilustrar algo de novo, de transcender a crise
das sociedades e artes tribais desorganizadas pelo impacto da cultura
europeia, e de manifestar uma nova consciência. Tal como afirmado
por N'Diaye,
Para mim, a pintura constitui uma urgência interior, uma necessidade de me expres-
sar tentando, ao mesmo tempo, ser claro acerca das minhas intenções relativamente
a assuntos que me afectaram - de me dedicar aos problemas vitais, aos problemas
da nossa existência. (Catál. IN 1 e IN 2)

As telas de N'Diaye contêm a explosão do real. Por vezes, as pintu-


ras enunciam uma narrativa intensa de violência - um sacrifício ritual
na série Tabaski, sacrifice du mouton (Tabaski, sacrifício do cordeiro,
1970-1987), ou uma surpresa assustadora em Juan de Pareja agressé
parles chiens (Juan de Pareja ameaçado por cães, 1985-1986). Quanto
aos artistas da geração mais jovem de pintores, Sokari Douglas Camp,
da Nigéria, evidencia um fascínio pela vida quotidiana do seu povo, os
Kalabari do Delta do Niger, cujas tradições são veiculadas nas com-
posições fascinantes da artista. Fodé Gamara, do Senegal, urde danças
cromáticas intricadas que ilustram outro jogo de cores na sua ilha na-
tal da Goreia: o azul do mar, da Goreia, das viagens, em contraste com
o encarnado do medo, da violência (Catál. RFT, pp. 35-39). Goreia, um
posto avançado do tráfico de escravos no Oceano Atlântico! Por fim, as
combinações cósmicas de Ouattara, da Costa do Marfim, reiteram as

V. Reprendre 211
antigas mitologias senufo e dogon em traços, blocos e espaços vazios
repletos de simbolismo (Catál. O]. Trazem-me igualmente à memória
o misticismo mais pacífico e domesticado de outro jovem pintor, o
senegalês Ery Camara.
Este trabalho contínuo, assim como as várias obras-primas entretan-
to produzidas, começou, em bom rigor, nos ateliês da era colonial. As
novas gerações aprenderam com os êxitos e os fracassos dessas ofi-
cinas-laboratórios, interrogando, em concomitância, as suas próprias
artes tradicionais. Os artistas da geração actual são filhos de duas
tradições, de dois mundos, e desafiam-nos através da fusão de mecanis-
mos e máscaras, máquinas e memórias dos deuses.

Arte popular
A expressão "arte popular" engloba, no mínimo, três significados dis-
tintos. Primeiro, a arte popular pode corresponder apenas à arte que
beneficia do aplauso, da benevolência e da aprovação de uma dada co-
munidade; neste sentido, as máscaras tradicionais dos Dogon do Mali,
as pinturas abstractas de Pilipili e as esculturas figurativas de Twins
Seven-Seven são populares. O termo pode igualmente remeter para a
arte que representa o povo comum: de acordo com o moçambicano
Malangatana, "para mim, a arte constitui uma expressão colectiva pro-
veniente dos usos e costumes do povo e contribui para a sua evolução
social, mental, cultural e política" (Alpers, 1988, p. 85). Por fim, existe
ainda uma arte popular adequada e destinada a uma inteligência medío-
cre e a um gosto trivial. A descrição pode afigurar-se pejorativa mas
esta arte pode ser consideravelmente sofisticada, como acontece na
arte publicitária concebida para a manipulação das massas.
Geralmente, o termo "arte popular africana" é utilizado para aludir
ao último significado. Os artistas que produzem este tipo de trabalho
incluem Anthony Akoto e Ofori Danso do Gana e Cheri Samba e Kalume
do Zaire. A sua arte não constitui um resíduo da arte tradicional nem
uma ramificação da corrente inspirada na tradição e da corrente
modernista na arte contemporânea. Tal como exemplificado pela im-
portância da pintura não-figurativa patente em ambas, estas tendên-
cias são menos miméticas ou representativas do que simbólicas. Por
exemplo, o significado de uma máscara dos Maconde da Tanzânia, de
uma tela do artista nigeriano Bruce Onobrakpeya ou do zambiano
Henry Tayali, ou de uma escultura de Bernhard Matemera do Zimbabwe
provém das suas marcas estruturantes, marcas que se conjugam entre
si e com marcas exteriores à obra, a fim de sugerir coincidências de
valores e ideias. Estas obras são dotadas de uma dimensão polissémica

21,6V.Y.MudimbeA Ideia de Africa


e simbólica. Por outro lado, a arte de Akoto, Danso e Samba, con-
siderada popular em virtude dos seus meios, da textura das suas telas,
das sequências narrativas apresentadas, e das suas mensagens popu-
listas é, basicamente, mimética, podendo parecer, prima fade, quase
monossémica. As obras desta natureza veiculam uma mensagem, pro-
cedendo à manipulação, disposição e combinação de marcas de modo
a apresentarem uma declaração inequívoca. O recurso à linguagem
escrita - frequente nas pinturas de Samba - faz parte desta ambição
por uma clareza militante, uma negação dos princípios polissémicos,
associativos e abertos da maioria das obras de arte. Por conseguinte,
a arte popular, na sua essência, apresenta um carácter anti-visionário
e anti-imaginativo. Em que medida podemos efectivamente classificar
estas obras de arte visual?
Trata-se precisamente do desafio da arte popular que, amiúde, assume
a forma de uma narrativa visual, a qual efectua uma retransmissão de
acontecimentos, fenómenos e assuntos já conhecidos do espectador
(ver Fabian e Szombati-Fabian, 1980). La Mort historique de Lumum-
ba (A morte histórica de Lumumba, década de 1970) e Héro National
Lumumba (década de 1970), de Tshibumba Kanda-Matulu, ou Lutte
contre les moustiques (Batalha contra os mosquitos, 1989), de Samba,
constituem simplesmente novas versões de acontecimentos e assun-
tos familiares de outros meios - ou, inclusivamente, de outra arte. To-
davia, estas telas revelam uma novidade: os temas são ritualizados e
reificados, as suas estruturas complexas, transformadas numa moldu-
ra arrumada, transparente e límpida. Cada uma delas ergue-se então
como um discurso fechado. Esta ritualização reveste-se de uma
importância considerável, na medida que proporciona uma transmi-
gração de símbolos: partindo da complexidade da história, de uma
experiência cultural concreta, o artista escolhe o elemento capaz de
se manifestar mais claramente. O artista procede à essencialização
do acontecimento, ou melhor, à sua simbolização - e nesse caso, a
referência à monossemia da arte popular poderá ter sido precipitada.
Com efeito, a mensagem do caminho para a morte em Héro National
Lumumba, de Patrice Lumumba, é ambígua. A clareza exterior da pin-
tura não impede o observador de extrair uma multiplicidade de sig-
nificados: a dignidade do herói nacionalista, a relação simbólica entre
o helicóptero construído no ocidente e os três oficiais catangueses, a
moralidade dos soldados ao serviço de um estado capaz de perpetrar
um crime desta natureza, a presença física dos próprios belgas, e as-
sim por diante. Da moldura ressaltam significados, sugestões e ima-
gens, a história vai ao encontro dos símbolos que figuram na mente
de um observador "popular" com uma eficiência impossível de ser
alcançada até pelo melhor livro.

V. Reprendre 213
A arte popular tanto é narrativa como arte. A gramática do seu con-
teúdo, a sua lógica cromática e a economia das suas composições es-
capam à maioria das restrições da arte académica. Testemunha um
elemento particular: a prática da vida quotidiana. E fá-lo num estilo
original - isto é, tem como "significado a recriação do mundo segundo
os valores do homem que o descobre" (Merleau-Ponty, 1973, p. 59).

Tshibumba Kanda-Matuiu, Patrice Lumumba, em Héro National Lumumba. Década de 1970.


Colecção de Bogumil Jewsiewicki, com autorização.

T r.TUTWlCIWlf I , i 3t t£ fAIJ MOM


»IhjAMTQUF v i MAIS
J^KMKMTUC W;
K ME S I M M .

Chéri Samba, Lutte contre les moustiques. 1989. Tinta sobre tela. Zaire.
Colecção de Raymond J. Learsay, com autorização. Curadoria de E. Kujawski.

Aldeia de Africa
Um espaço aberto
II faudra, avant de revêtir le bleu de chauffe du mécanicien,
que nous mettions notre âme en lieu sûr [Antes de voltar a vestir o fato-macaco do
mecânico, é necessário colocar a nossa alma num local seguro.)

Cheikh Hamidou Kane, 1961

Dorcas MacClintock, viajante e curadora associada do Museu Pea-


body de História Natural, Universidade de Yale, tem um encontro for-
tuito com Ugo Mochi, um artista italiano douto em perfis. Trata-se de
um episódio corriqueiro. Porém, MacClintock descobre África e acaba
por publicar a obra African Images (1984], com fotografias de Mochi.
Os autores gostariam que o livro fosse uma janela com vista para a
paisagem africana e apresentam-no como "um olhar sobre os animais
em África"; e os animais são efectivamente vistos na sua plenitude en-
quanto seres vivos e não-humanos, tal como consta do dicionário.
O enfoque de MacClintock e Mochi não reside no carácter real destes
animais africanos, mas antes no impacto visual destes "seres" inseri-
dos no quadro das suas paisagens. Segundo MacClintock,
Em nenhum lugar do mundo a beleza da forma animal, moldada ao longo do tempo
pela função física e o ambiente, é tão manifesta. Os mamíferos ungulados, sempre
atentos aos predadores, revelam tensão no brilho de um olho, na atitude de alerta,
no posicionamento da cabeça ou na curvatura do pescoço, no bater de uma pata
dianteira no chão ou na sacudidela de uma cauda. Também os predadores estão
tensos quando caçam, aguardam numa emboscada ou perseguem velozmente a sua
presa. Outras vezes, flanam no calor do dia. Existe beleza tanto na cor quanto na
forma. Certos animais evidenciam uma evolução nos padrões - riscas, manchas e
pintas - que interrompem o contorno do corpo ou servem de camuflagem. Outros
animais apresentam marcas conspícuas na face, nas orelhas ou nas pernas que lhes
permitem ser reconhecidos junto dos elementos da sua espécie, realçam o humor
ou a intenção, ou que são exibidas em demonstrações de domínio entre rivais. (Mac-
Clintock, 1984, p. xii)

Na visão desta observadora, a beleza de uma paisagem é reorganiza-


da em função dos critérios de uma arte "natural". De facto, MacClintock
afirma contar a verdade sobre uma ordem claramente vista por si.
Porém, os seus enunciados resultam de uma grelha de sentimentos (o
que não quer dizer - será necessário acrescentá-lo? - que sejam
fictícios). Teoricamente, as suas declarações podem ser verificadas

V. Reprendre 215
por qualquer um, contudo, o conjunto poético apresentado constitui
uma tradução daquilo que a autora apreendeu. Através do desejo esté-
tico, o olhar estiliza aquilo que é apreendido e devolve ao observador
o seu próprio investimento.
Ao contrário do que possa parecer, as paisagens naturais não bro-
tam da natureza: é no olhar do observador que os animais africanos
nos seus espaços são transformados em objectos estéticos e adquirem
um estatuto semiótico, assumindo-se como narrativas do natural. Por
exemplo, na floresta, a fisionomia e os hábitos dos antílopes bongo
assemelham-se a constituintes de um discurso: as "riscas que osten-
tam no corpo fundem-se com padrões estreitos de luz solar a fim de
tornar a sua forma de antílope quase invisível. [...] Quando um bongo
pressente perigo, congela. Em seguida, desprotege-se e desaparece
como por magia" (MacClintock, 1984, pp. 2-3]. Cefalófos, ocapis, dris,
porcos-espinhos, porcos e outros animais têm discursos próprios. Nos
rios, nas bacias lacustres e nas paredes do vale do Rift, MacClintock
identifica variações nos circuitos discursivos que encontrara nas
florestas: babuínos majestosos socializam em famílias ou caminham
sozinhos, pequenos exércitos de porcos do mato atacam as plantações
da aldeia sob a lua; grupos de flamingos e pelicanos leves, elegantes e
coloridos voam ou alimentam-se. Em charcos e pântanos, é possível
"ler" as actividades dos sitatungas, macacos colobus, inhacosos, croco-
dilos e hipopótamos. Não será a sua actividade de cariz escriturai, as-
severando um tipo de existência e a beleza da narrativa? Outros textos
discursivos são observáveis na mata e nas savanas: os movimentos e
as vidas sociais dos elefantes, rinocerontes negros e facocheros ou das
palancas negras e vermelhas e elandes; a graciosidade e majestade das
girafas, a beleza das nialas; e, claro, o júbilo de uma variedade
admirável de pássaros.
Podem as paisagens "naturais" africanas ser pensadas como textos,
pinturas? Será que se apresentam ao observador como fenómenos
linguísticos e pictóricos destinados a ser lidos, compreendidos e des-
frutados? Constituem elas um conjunto incrível de estilos discursivos
encantadores? Importa relembrar que o estilo de uma narrativa nasce
de um contexto - que, conforme observado por Maurice Merleau-Pon-
ty, "o estilo não pode ser entendido como um objecto pois continua
a não ser nada e só se tornará visível no trabalho" (1973, p. 59]. Por
conseguinte, o "estilo" dos animais que habitam no seu ambiente natu-
ral não constitui evidentemente "um meio de representação" (como
poderia sê-lo?], emanando, ao invés, do intercâmbio entre as paisa-
gens e os animais africanos e os olhos do observador. No seu epílogo,
MacClintock sonha acordada:

21,6 V.Y. Mudimbe A Ideia de Africa


Com os seus céus vastos e horizontes longínquos, África evoca uma sensação selva-
gem, livre e prodigiosa. Trata-se de uma região que ecoa o passado no qual a ordem
natural prevalece e os dias estão isentos do tempo. [...]
Na sombra delicada e primaveril de uma acácia, uma gazela-girafa pasta, chicote-
ando a cauda, sacudindo as orelhas e fincando as patas dianteiras nos arbustos. Um
pequeno dik-dik, cujos olhos gigantescos rodeados de branco fazem lembrar um
rato, olha fixa e timidamente por entre o bosque cerrado. Um elefante ameaça com
o funar das enormes orelhas repletas de veias, o brandir das defesas, o ensaiar da
tromba e o baloiçar, qual pêndulo, da sua pata dianteira de um lado para o outro.
(1984, p. 140).

Um projecto de habitação. J.P. Bourdier e Trinh T. Minh-ha, African Spaces. Nova Iorque:
African Publishing Company, Homes and Meier, 1985.

0 primeiro parágrafo reconstrói (inconscientemente) uma imagem


antiga de África; o segundo consolida-a. Todavia, dado a imagem
representar uma possível pintura ou narrativa "natural" africana com
credibilidade, a questão relativa à verdade da imagem não se afigura
importante. É exótica, verdadeira e pode ser uma falsificação - uma
imitação de uma figura antiga de uma outra narrativa alheia. Mesmo
assim, o seu significado preserva, contudo, a sua pertinência pois sus-
tenta a mimese de uma percepção que se imita a si própria naquilo que
estiliza, sucumbindo à beleza por ela inventada.
Como é sabido desde Husserl, se nenhuma modelação pode transcender
o seu espaço, o seu contexto e a sua linguagem (Husserl, 1970, pp. 370-71),

V. Reprendre 217
é necessário postular uma relação entre os estilos africanos e o seu contexto
natural. A linguagem de MacClintock não evidencia uma relação deste cariz
- um impulso franciscano que transmuta cada imagem numa narrativa
celebrando a beleza e a alegria na natureza. Outro passo seria uma
tentativa de reconstruir as interacções complexas entre os meios físico
e humano e a sua transição para a arte. Ulli Beier descreveu magistral-
mente esta interacção na sua discussão acerca do Clube Mbari Mbayo
em Oshogbo [1968, pp. 101-11). Numa linha bastante diferente, Jean-
-Paul Bourdier e Trinh T. Minh-ha [1985), centrando-se na arquitectura
vernacular na região do Sahel no Burquina Faso, demonstraram como
a cultura gurunsi domesticou esteticamente um meio natural, no qual
integrou com coerência uma organização espacial de complexos e as
actividades humanas da vida quotidiana.

Trigo Puila, Materna, 1984. Óleo sobre tela. Congo. Museu de Arte Africana, Nova Iorque.

21,6 V.Y. Mudimbe A Ideia de Africa


Toucado feminino Chi Wara. IMadeira e metal. Artista bamana, Mali.
Museu do Homem, Palais Chaillot, Paris.

As imagens da vida quotidiana constam igualmente dos murais das


mulheres ndebele de Pretória, nos quais, conforme explica Margaret
Courtney-Clarke, "os desenhos abstractos tradicionais se fundiram
com formas representativas visando a criação de uma arte singular e
altamente estilizada que combina os elementos do passado com as re-
alidades do presente" (1986, p. 23]. Se a aculturação apresenta laivos
de necessidade numa actividade artística como a das mulheres nde-
bele, também suporta a continuidade de rituais, técnicas e costumes
antigos. Além disso, esta arte não só se insere numa tradição como
também abraça a luz clara da região de Kwandebele. Eis uma articu-
lação: o espaço, o tempo e a tradição humana interrelacionam-se. Os
animais magnificamente estilizados por MacClintock encontram os
seus homólogos, as suas variações estilísticas, em determinadas nar-
rativas, nomeadamente as pinturas de peixes ou crocodilos da autoria
de Pilipili; as esculturas de elefantes, leopardos e pássaros à venda em
lojas para turistas; e ainda - por que não? - em obras-primas malianas
como o toucado-antílope bamana ou a máscara-antílope dogon (ver
Vogel e N'Diaye, 1985]. Os complexos gurunsi ilustram uma coerên-
cia estética entre os meios humano e natural; os murais das mulheres

V. Reprendre 219
ndebele demonstram uma tradição em evolução. Nesse sentido, é pos-
sível constatar que a obra de arte "não é concebida de forma isolada,
nalgum laboratório privado cuja chave só pertence [ao artista]. Isto
também significa que [...] a obra não constitui uma sentença arbitrária,
relacionando-se sempre com o seu mundo, como se o princípio das
equivalências através do qual manifesta o mundo estivesse sempre
enterrado nela" [Merleau-Ponty, 1973, p. 61]. De acordo com as pala-
vras de Michel Leiris, é necessário "conceber a abordagem global face
às artes africanas não tanto como 'uma história das artes e dos esti-
los' mas sobretudo como a demanda pelos, e o ajustamento da forma
espácio-temporal aos, 'produtos visíveis de uma dada história da so-
ciedade'" (In Perrois, 1989, p. 526).

Conjugação
Os murais das mulheres ndebele apresentam uma socio-história es-
pecífica, porém, a dada altura, passam a fazer parte da permanência
mutável das imaginações artísticas, cânones e técnicas tradicionais
africanos, o que se verifica, designadamente, em peças de diferentes
regiões da África Central e Ocidental produzidas entre finais do
século XVII e inícios do século XX, inseridas na categoria de arte "ex-
tinta" pelos especialistas. Não obstante a diversidade dos seus estilos
e das suas morfologias, preservam características soltas em comum: à
semelhança da maioria das obras de arte tradicionais, os seus autores
são anónimos e, nesse sentido, dá-se uma fusão da consciência do
criador com o grupo social; podem ainda ser associadas a diversos câ-
nones, correntes e conjuntos de símbolos culturais de carácter global.
Enquanto africano, identifico-me com as referidas peças através de
uma dupla articulação. Por um lado, detecto uma estrutura de sig-
nificado comum que lhes confere uma dimensão de pertença a uma
única economia cultural. Além disso, por outro lado, observo, em cada
uma delas, características regionais, por exemplo, a observância de
costumes formais nas máscaras grebo da Costa do Marfim que se
afiguram alheios aos das placas do Benim. A primeira articulação é
altamente subjectiva e espelha o clima ideológico de África desde a
década de 1960, um período marcado pela promoção do conceito de
unidade cultural africana em livros como The Mind ofAfrica (1966) de
Willy Abraham, LVnité culturelle de I'Afrique noire (1960) de Cheikh
Anta Diop, e em várias outras sedes. A segunda resposta depende das
constatações dos antropólogos e dos historiadores de arte e permite a
exploração da individualidade de cada artista: as formas morfológicas.

A Ideia de Africa

i
as características geométricas, as técnicas cromáticas e os simbolismos
próprios do seu vocabulário.
Na dialéctica entre ambas as articulações, a extinção das correntes
artísticas do passado deixa de ser uma oclusão. Com efeito, posso atri-
buir um poder inspirador aos estilos antigos e analisar os padrões e
estilos acentuadamente idiossincráticos de obras mais recentes. Surge
uma continuidade criativa, transcendendo as rupturas objectivas
descritas pelos especialistas de laboratório. No meu entender, as más-
caras dogon de meados do século XX de origem maliana e as máscaras
maconde de inícios do século XX de origem tanzaniana integram a
mesma ordem cultural [In Vogel e N'Diaye 1985). Podem ser vistas
e admiradas não apenas em termos da sua diferença, mas também
enquanto variações que reflectem as transformações dos arquétipos
numa imaginação elementar. E por que não relacionar a máscara-antí-
lope dogon de meados do século XX com as componentes da paisagem
africana, as quais causaram estupefacção junto de inúmeros artistas
africanos antes das conclusões de Dorcas MacClintock? Esta sugestão
estabelece uma ponte entre as várias formas e os vários estilos da arte
africana ao longo do tempo, e os equivalentes na natureza.

Mukishi wa pwo. Mulher idealizada como símbolo da mãe mítica primordial.


Madeira, fibra. Tshokwe, Zaire.

V. Reprendre 221
Segundo os especialistas, as práticas dos artistas tradicionais revestem-
-se de interesse na medida em que os seus trabalhos, apesar de não
serem realistas, contribuem para definição do significado da realidade.
Facultam metonímias e metáforas para seres, objectos, acontecimentos
e forças naturais concretas no mundo e, em concomitância, realizam
uma abstracção do mundo. A sua introdução perfeita nas vidas normais
dos povos africanos levou os estudantes de arte africana a concluírem
- com um certo grau de preguiça - que esta arte é essencialmente fun-
cional. Esta conclusão apaga a complexidade dos significados simbóli-
cos e alegóricos da arte. A título exemplificativo, a máscara constitui
uma reificação clara de um significante, mas remete também para
outras ordens de significado sem as quais seria inútil.
Ao contrário da arte tradicional, a arte popular contemporânea as-
sume algumas das virtudes do realismo, promovendo as suas imagens
como reflexos de uma cultura moderna e da sua história. Privilegiando
a política do significado, procede à consolidação do seu realismo com
aspectos éticos [como no caso de Samba) ou, em termos mais gerais,
com diversas funções sociológicas, distanciando-se assim da activi-
dade simbólica e decorativa que, desde a década de 1940, tipifica as
correntes do ateliê e das escolas de arte.

Em Síntese
As três correntes da arte africana actual - inspirada na tradição,
modernista e popular - são recentes: os exemplos mais antigos datam
do primeiro quartel do presente século. Nesse sentido, existe a tenta-
ção de relacionar a sua gênese com o impacto da era colonial; porém,
vários dos seus temas e motivos - reproduções de crucifixos e Madon-
nas, referências bíblicas e assim por diante, por toda a costa ociden-
tal do continente - fazem partem de uma história de aculturação que
remonta aos séculos XV e XVI. Encaradas à luz da história, a distinção
entre a corrente inspirada na tradição e a corrente modernista nas
artes africanas contemporâneas, apesar da sua utilidade para efeitos
de análise, indica, em última instância, uma espécie de encanto face
à arte tradicional. Pois, na verdade, estas duas correntes constituem
uma única tendência. Primeiro, em ambos os casos, as obras são cria-
das sobretudo em ateliês e escolas de arte, e mesmo quando são da
autoria de artistas autodidactas ilustram a aculturação colonial das
sociedades africanas; segundo, ao contrário das obras de arte tradi-
cionais, ambas revelam a consciência, a identidade artística dos seus
criadores; e terceiro, a sua razão de ser reside na criação da beleza, em
detrimento da imitação da realidade.

222 V.Y. Mudimbe A Idéia de Africa i


o primeiro destes três traços comuns descreve o contexto sociocul-
tural de uma nova imaginação artística. O segundo é filosófico, apon-
tando para uma revolução espiritual e intelectual profunda e a sua
nova legitimidade num meio social aculturado. O terceiro é de ordem
estética e foca as duas correntes: ambas englobam processos interpre-
tativos e simbólicos de codificação do mundo exterior em vez de repre-
sentar mimeticamente a realidade. Acresce que os impulsos inspirados
pela tradição e os impulsos modernistas convergem, amiúde, na obra
de um único artista, designadamente Malangatana, N'Diaye ou Twins
Seven-Seven.
As obras de arte popular situam-se algures entre estas duas corren-
tes. Aludem, com frequência, a uma determinada região e à sua história.
Enquanto narrativas, desconstroem a memória da sua história sob a
perspectiva de um único individuo. Em muitos aspectos, as artes popu-
lares, sobretudo a pintura, estão estruturadas como histoire immédiate,
recorrendo à expressão de Benoît Verhaegen; captam literalmente
histórias e acontecimentos normais e banais (um mercado, uma festa,
um acontecimento político), a violência e a tragédia (uma guerra civil,
um assassinato), ou motivos mitológicos, por exemplo Mami Wata.
Nas suas manifestações extremas, as artes populares aproximam-se
da publicidade e propaganda.

Mami Wata. Colecção de Bogumil Jewsiewicki, com autorização.

V. Reprendre 223
Os artistas propõem uma visão antagónica às regras académicas da
representação e técnicas orientadas para a concretização "do belo".
Procuram veicular uma mensagem clara; proclamam a virtude da ver-
dade sociológica e histórica e tentam nomear e revelar o inominável e
o tabu. As lacunas técnicas tornam-se marcas de originalidade. O ar-
tista emerge como o herói "indisciplinável" que desafia as instituições
sociais, incluindo as práticas artísticas, sobretudo as de teor académi-
co. Porém, este "indivíduo subversor", que, por vezes, ataca uma dada
tradição e as suas correntes modernas, personifica manifestamente o
locus do seu confronto. Na arte popular, a política da mimese insere no
território "maternal" da tradição uma prática que questiona a arte e
a história em nome do sujeito. Trata-se de um trabalho que pretende
reunir a arte, o passado e os sonhos da comunidade para um futuro
melhor.

Literatura africana: mito ou realidade?


Inúmeros livros e artigos versam sobre literatura africana. Descrevem
o que hoje é geralmente aceite como uma literatura "jovem" escrita
nas línguas africanas ou europeias e a experiência oral tradicional dos
africanos negros, apesar de estas literaturas serem muito antigas:
a literatura oral ou orature remonta à própria fundação das comu-
nidades humanas; quanto à escrita, colocando de parte as questões
complexas relativas aos caracteres africanos, importa salientar rapi-
damente que o dicionário de Donald Herdeck [1973] inclui uma apre-
sentação de autores africanos [African Authors: A Companion to
Black African Writing). Os primeiros autores africanos mencionados
viveram nos séculos VI e VIII a.C.: Antar [ca. 550-615] da Arábia e Abu
Dulama Ibn al-Djaun [ca. 720-777]. A título de curiosidade, posso re-
cuar ainda mais na história e enumerar diversos norte-africanos que
escreviam em grego e latim na oikumene grega ou romana. Durante
vários séculos, desde o século I até ao final do século III, a literatura
cristã é dominada quase totalmente por pensadores de origem afri-
cana. Visando uma maior precisão e um enfoque sobre a tradição la-
tina, ao longo de mais de dois séculos, precisamente entre o período
da primeira versão da Bíblia, datada de cerca de 160 a.C. pelos espe-
cialistas, durante o reinado de Marco Aurélio, e o final do século III,
os escritores africanos são os que contribuem com maior relevância
para a formação do pensamento cristão. Tertuliano, Minúcio, Félix,
Cipriano, Comodiano, Arnóbio, Lactâncio e outros pensadores meno-
res provêm de África. O que teria sido da tradição cristã sem o seu

21,6V.Y.MudimbeA Ideia de Africa


contributo? Antecederam e prepararam caminho para um Agostinho
de Hipona, um africano e um dos pensadores mais determinantes da
história do Cristianismo.
É possível recuar ainda mais no tempo. Em 1979, num livro espe-
cializado intitulado África et Roma (Acta Omnium Gentium ac Natio-
num Conventus Latinis Litteris Linguaeque Fovendis, Roma: L'Erma di
Bretschneider), publiquei um pequeno artigo sobre um escritor pouco
conhecido chamado Pioro. Viveu durante os reinados dos imperadores
romanos Domiciano e Adriano, em finais do século I e inícios do século
II. Na seqüência do que entendera ser um fracasso literário colossal,
abandonou Roma e decidiu estabelecer-se em Tarragona onde travou
conhecimento com um viajante que o identificara. O estrangeiro inter-
pelou o escritor com uma afirmação extraordinária: "Sois então Floro,
o africano, que quiséramos por unanimidade coroar [como o melhor
poeta em Roma]! Infelizmente, o Imperador rejeitou a nossa decisão.
Nada tinha contra a vossa tenra idade; simplesmente não queria atri-
buir a coroa de Júpiter a África." Não se trata de uma bela história?
Em todo o caso, permitam-me frisar que a classificação dos autores
por ordem cronológica elaborada por Herdeck dá-nos uma idéia da
riqueza e da diversidade dos contributos africanos. Podemos referir
quatro escritores negros anteriores ao século XVIII: Juan Latino,
natural da Guiné que viveu em Espanha e escreveu versos em latim;
Mahmud Kati, Ahamd Baba e Abdulrahman as-Sadi, naturais do Mali
e que escreveram contos em árabe. Tanto quanto sei, o primeiro texto
poético em somali foi publicado por Ugaas Raage por volta de 1730;
em meados do século XVIII, foram igualmente publicados versos em
suaíli, por Abdallah Saiyid da África Oriental.
Esta digressão é um sinal. O tratamento do conceito de literatura
africana exige cautela. Uma literatura tão antiga apresenta implicações
históricas e reporta ao próprio conceito de África. Além disso, importa
ter presente que alguns escritores africanos têm vindo a escrever em
línguas africanas desde o século XVIII. Regra geral, quando se mani-
festam sobre este tema, os especialistas em literatura africana privile-
giam o início do presente século e associam a promoção da literatura
africana em línguas africanas e estrangeiras à experiência colonial,
que ditou a divisão do continente inculcando novas línguas, muito em
particular, o francês, o inglês, o português, o espanhol e assim por di-
ante. Carecemos de uma história da literatura em línguas africanas.
Existem alguns livros sobre a matéria, mas baseiam-se sobretudo na
epistemologia colonial e na sua actividade política orientada para a
conversão dos africanos. Por conseguinte, a literatura africana remete
tanto para um corpo de textos de autores conhecidos quanto para

V. Reprendre 225
discursos autónomos que dão continuidade a reservatórios suces-
sivos de imaginações supostamente desconhecidas. Trata-se de uma
questão problemática que ainda não foi abordada de um modo con-
vincente pelos especialistas de estudos africanos. Ora, é a visão destes
corpos existentes de textos escritos e discursos orais que justifica uma
parte considerável da generosidade intelectual daqueles que acredi-
tam em África, assim como a actividade puramente estética daqueles
que utilizam estes textos como objectos por força de uma curiosidade
exótica ou de requisitos literários e ideológicos. Poder-se-á pensar que
a crítica literária africana se desenvolveu não tanto como uma neces-
sidade ou um projecto original no quadro de uma tradição académica
que questiona a abundância dos discursos, mas sobretudo como uma
consequência de um processo de invenção e organização de outra coi-
sa.
Podemos encarar aqui uma hipótese e um desejo? Por um lado, gos-
taria de apontar as condições em que a literatura africana é, actual-
mente, concebível e, por outro, formular, em termos de empreendi-
mentos possíveis, as perspectivas a partir das quais os comentários
e as análises em matéria de discursos africanos podem constituir um
meio de compreensão da experiência africana segundo um prisma
mais profícuo. Será possível estabelecer uma norma explicativa quanto
à natureza concreta da literatura africana de modo a relacioná-la com
as restantes literaturas, e sem veicular esta sensação desconfortável
de que ela corresponde, de alguma maneira, a uma imitação autóctone
de outra coisa, ou a uma reprodução adaptada dos géneros importa-
dos do Ocidente e dos respectivos imbróglios? Esta pergunta pode ser
respondida à luz de novas perspectivas. Na minha óptica, até ao mo-
mento, a crítica literária tradicional e, inclusivamente, a interpretação
ideológica dos discursos assentes numa perspectiva afrocêntrica não
proporcionaram os contributos implicados nas suas premissas. Toda-
via, é precisamente esta impotência que viabiliza a detecção dos sinais
de novas interpretações possíveis sobre a literatura e os discursos
africanos (ver Chinweizu etal, 1983).
Como produto, a literatura africana é uma invenção recente, sendo
que os autores, os críticos e os especialistas na matéria tendem a ofe-
recer resistência a este facto. O seu interesse em relação a esta literatura
não reside naquilo que ela é enquanto discurso e naquilo que pode
significar, na variedade dos seus acontecimentos e da sua significação,
num contexto mais alargado de outros discursos regionais ou locais,
mas antes na sua importância enquanto espelho de outra coisa, por
exemplo, a luta política africana, os processos de aculturação e os ob-
jectivos em termos de direitos do homem. Esta orientação deve-se ao

A Ideia de Africa

i
facto de o mundo da literatura reflectir e ser sustentado pelo universo
real, sobretudo as relações sociais de produção e o impacto silencioso
das marcas ideológicas. Assim, o mundo literário poderia, de facto,
ser um espaço mítico; porém, parece revelar a experiência concreta
das comunidades humanas. Por exemplo, a obra de Lilyan Kesteloot
que versa sobre a origem da literatura da Negritude (1965) e o estudo
de Jean Wagner sobre a literatura negra nos Estados Unidos (1962)
são ambos legítimos enquanto críticas literárias e socio-históricas. Na
mesma linha, as considerações de Janheinz Jahn sobre a literatura neo-
-africana (1961, 1968) ilustram o valor simbólico e a racionalidade
intelectual e sociológica das culturas negras.
Contudo, aquilo que estes monumentos fornecem com maior evi-
dência são, por um lado, processos de promoção de construções e,
por outro, processos de limitação do significado e da multiplicidade
dos discursos. Graças a estes livros, a arte e o significado dos discur-
sos africanos são comentados, celebrados e comprados com base no
seu valor, enquanto indicações de regras funcionais de criatividade.
Contudo, estas regras não correspondem às referências eficientes que
constituem o fundamento da validade académica dos projectos de
Kesteloot e Jahn. São marcas da possibilidade de um conceito recente
de literatura africana, uma "invenção" sobre a qual Jahn, Kesteloot,
Wagner e a maioria dos críticos literários e autores podem trabalhar
e viver.
Decerto que os alunos de Michel Foucault já perceberam onde quero
chegar. Na obra A Ordem do Discurso, o então Professor de História
dos Sistemas de Pensamento no Collège de France identificou três
tipos principais de regras de exclusão (Foucault 1982, pp. 215-27):
1) Procedimentos externos como o interdito ("tabu do objecto, ritual
da circunstância, direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala",
p. 216), a oposição entre razão e loucura e a vontade de verdade (que
integra os elementos precedentes e ordena-os num projecto). 2) Pro-
cedimentos internos de controlo de discursos, procedimentos directa-
mente relacionados com os "princípios de classificação, ordenamento
e distribuição": ou seja, o comentário que significa filologia em termos
de reconstrução e leitura de textos primários, e ainda crítica literária
enquanto exercício intelectual perante dados documentos; em segun-
do lugar, o autor como um centro de coerência, ponto de referência e
tema da unidade das suas obras; por fim, a organização das disciplinas
na qual, segundo Foucault, "o que é suposto à partida não é um sentido
que precisa de ser redescoberto, nem uma identidade que deve ser
repetida; mas antes aquilo que é requerido para a construção de novos
enunciados" (p. 223). O terceiro tipo de procedimento de exclusão inclui

V. Reprendre 227
sistemas de rarefacção dos discursos tais como o ritual que "define a
qualificação que devem possuir os indivíduos que falam" (p. 225); as
sociedades de discurso - para ter uma idéia mais esclarecedora do con-
ceito, basta pensar nas revistas de Estudos Africanos e nas suas políti-
cas em matéria de promoção de artigos, investigações e nomes; e, por
fim, a apropriação social dos discursos em relação à qual Foucault apre-
senta o exemplo da educação como "o instrumento graças ao qual todo
o indivíduo, numa sociedade como a nossa, pode ter acesso a qualquer
tipo de discurso" (p. 227).
Afigura-se evidente que este quadro de sistemas de exclusão pode
funcionar como uma ordem para novas iniciativas intelectuais que
deveriam, em concomitância, testar as considerações de Foucault e
interrogar a padronização e homogeneização da chamada literatura
africana face à suposta desordem dos discursos africanos em geral.
Recorrerei a alguns exemplos para me explicar melhor, a) O trabalho
de Aimé Césaire pode ser entendido como uma criação contra os pro-
cedimentos do(s) interdito(s) e a separação da razão. O terror e a vio-
lência patentes na obra de Césaire testemunham estes procedimentos
de um modo mais acentuado, comparativamente às dimensões vitalis-
tas e genitalistas observadas por Sartre em Orfeu Negro. Como tal, em
vez de simbolizar um "Orfeu negro", este trabalho poderia significar
uma forma de questionamento da vontade de verdade, b) Foi aventada
a existência de duas explicações sociológicas principais para a gê-
nese da literatura africana em línguas europeias: primeiro, o facto de
esta literatura ser uma conseqüência directa da colonização; segundo,
o facto de ter sido viabilizada pelo sistema de ensino ocidental. Por
outras palavras, estas explicações sugerem que as obras literárias afri-
canas e os comentários tecidos a seu respeito dependem das normas
europeias relativas às apropriações sociais dos discursos, podendo,
em concomitância, ser justificadas por essas mesmas normas. Por
conseguinte, esta literatura, se fizer sentido, fá-lo-ia apenas na medida
em que estas condições externas de possibilidade determinam o seu
estatuto de literatura, c) É possível afirmar que a mera existência desta
nova literatura africana advém do alargamento das sociedades de dis-
curso ocidentais a África. Assim, apesar das exortações realizadas nos
últimos anos no sentido de uma perspectiva afrocêntrica, a linguagem
das nossas concordâncias e discordâncias podem caracterizar-se, no
fundo, por uma coerência óbvia e surpreendente: um espaço episte-
mológico.
Qual o interesse em contestar estas hipóteses? Em termos de perspec-
tivas teóricas, é óbvio que estas hipóteses, em princípio, confirmariam
ou invalidariam a proposição de Foucault: "Presumo que em toda a

21,6V.Y.MudimbeA Ideia de Africa


sociedade a produção do discurso é simultaneamente controlada, selec-
cionada, organizada e redistribuída em função de um determinado
número de procedimentos cujo papel consiste em afastar os seus
poderes e perigos, lidar com acontecimentos aleatórios, eludir a sua
pesada e temível materialidade" [Foucault, 1982, p. 216). Além disso,
poderá ser vantajoso recorrer a esta hipótese para descobrir se pro-
cessos análogos de controlo dos discursos funcionam ou não em África
e em que condições.
Segundo a minha própria hipótese, duas regras de exclusão princi-
pais contribuíram profundamente para a "invenção" e organização da
literatura africana: os conceitos de comentário e autor, tal como uti-
lizados pelos mitos do Africanismo desde o século XVIII. Tylor e Lévy-
-Bruhl cingem as suas indagações à questão da evolução. Conse-
quentemente, solucionam os seus interesses científicos e intelectuais
na leitura das experiências não-ocidentais como discursos fragmenta-
dos e corpos tanto anónimos quanto estranhos. No século XIX, os tex-
tos antropológicos traduziram-se em comentários sobre organizações
silenciosas e irracionais, reforçando dois aspectos cruciais: os ante-
cedentes dos teóricos e o relativo anonimato dos objectos dos estudos.
No primeiro caso, o comentário descreve a história da humanidade a
partir da exterioridade de uma história africana silenciosa e exótica.
Abordemos brevemente dois exemplos paradoxais de Einfühlung. No
início do presente século, Frobénio poderia vaguear pela África negra
através da leitura de Pigafetta e dos relatos dos viajantes portugueses,
em vez de ouvir atentamente os africanos. Nas décadas de 1920 e de
1930, Wilhelm Schmidt, na Áustria, depois dos seus inúmeros anteces-
sores germanófonos, deu o seu contributo para a antropologia pressu-
pondo uma inexistência absoluta de textos cuja autoria é identificada
nas sociedades africanas.
Porém, a nova realidade de um "autor africano" no sentido ociden-
tal emergiu no seio da violência destes comentários sobre exotismo,
através do significado ideológico da relação dialéctica entre civiliza-
ção e primitivismo. Na década de 1940, por exemplo, enquanto Mareei
Griaule (1948), numa espécie de revelação, reconheceu Ogotommêli
como sujeito de um conhecimento que recebera e estava evidente-
mente a interpretar no seu próprio discurso, Placide Tempels (1949)
ainda privilegiava a oposição clássica e explorava a chamada ruptura
entre a sabedoria anónima dos Bantos tradicionais e a corrupção moral
dos évolués, essas cópias defeituosas do individualismo europeu.
A ruptura indica o fundamento daquilo que, depois de Jack Goody
(1977), se pode apelidar de "grande dicotomia", porquanto estipula,
no saber actual, tipos de estruturas económicas e situações sociais.

V. Reprendre 229
assim como a nossa esfera familiar da literatura africana. É possível
identificar as seguintes tensões ou lacunas em termos de oposições
binárias: no plano económico, a sociedade agrária dominada pelas
estruturas económicas de subsistência versus os processos altamente
sofisticados das relações de produção e sociais da civilização urbana e
dos mercados internacionais; no plano sociocultural, o meio oral e con-
suetudinário classificado de monocultura versus os contextos pluricul-
turais e complexos das grandes cidades; no plano das superestruturas
religiosas, sociedades caracterizadas por uma integração do sagrado e
do profano versus sociedades cujo funcionamento assenta na divisão
entre o sagrado e o profano. Não será um exagero da minha parte afir-
mar que a maioria dos nossos compêndios e das nossas monografias
incidem mormente sobre esta dicotomia e as suas marcas, ao invés de
analisar as complexidades dos discursos africanos. Consideremos os
melhores, a fim de descortinar os pressupostos básicos da dicotomia.
Primeiro: as formas e o conteúdo da literatura oral devem teste-
munhar e traduzir uma experiência monocultural que, até ao momen-
to, continua a ser designada de civilização "primitiva" em antropologia.
Segundo: em virtude dos processos de ocidentalização e cristianiza-
ção associados ao domínio colonial, emergiram duas novas formas de
expressão - literatura escrita em línguas africanas e europeias - que
descrevem as contradições e os problemas inerentes à metamorfose
traduzida pela colonização. Terceiro: esta conversão promoveu textos
de autor, que, embora sejam fundamentalmente diferentes dos do pas-
sado, não representam um hiato no concernente às experiências afri-
canas vitais. Quarto: a noção de literatura neo-africana assinala uma
dimensão sociológica e histórica interna mas não significa, nem pode
significar, que a sua possibilidade poderia residir para lá da exteriori-
dade desta mesma literatura.
Aprendemos como conviver com estes pressupostos contraditórios.
De facto, constituem normas e sistemas dado serem, ao mesmo tem-
po, referências paradoxais das nossas actividades profissionais e dos
acontecimentos que tornam concebíveis as nossas praxes literárias.
Além disso, consoante o estado de espírito, estas normas permitem-
-nos todas as liberdades que desejarmos. Partindo dessas normas, podemos,
hoje, decidir que as obras de Chinua Achebe e de E. Mphahlele são
componentes intrínsecas da literatura inglesa, e as de Senghor, Rabe-
mananjara ou Camara Laye da literatura francesa. E, amanhã, podería-
mos demonstrar com a mesma convicção exactamente o contrário e
celebrar os nossos autores como espelhos de uma autenticidade afri-
cana. Com pessimismo, rememoro as palavras de Northrop Frye: "a
literatura, à semelhança dos restantes domínios, contém uma teoria e

21,6V.Y.MudimbeA Ideia de Africa


uma prática: os poemas, as peças de teatro e os romances constituem
o lado prático e o núcleo da crítica corresponde à teoria da literatura"
(1975, p. 206). Que teoria consistente poderia apoiar as liberdades
fantásticas das nossas investigações em literatura africana, se, pelo
menos, por um lado, chegarmos a um consenso quanto à urgência da
análise das condições da existência desta literatura e, por outro, des-
cartarmos a hipótese de que a crítica africana poderá não ser, de todo,
uma prática africana? Christopher Miller e Bernadette Cailler abordam
esta problemática em dois livros polémicos que gostaria de analisar
segundo uma perspectiva psicanalítica.

Literatura de referência
Porém, começámos a aperceber-nos de que as feridas infligidas
no corpo da nossa civilização são feridas que necessitamos tratar,
mas com uma maior profundidade do que tem sido feito até agora.

- Marc Glassman (Border/Lines [Toronto, Canadá] 15 [1989], p. 25)

Le sujet n'est sujet que d'être assujettissement


synchronique dans le champ de l'Autre.

- Jacques Lacan (Seminário, 20 de Maio de 1964)

Uma célebre história poderá servir de introdução a determinados


problemas cruciais relacionados com a idéia de África enquanto "dife-
rença" nos estudos acadêmicos, de hoje, sobre literatura africana.
Era um dia como outro qualquer no consultório de um psicanalista
francês extremamente reputado. De hora em hora, um doente sai e
outro entra. Estamos perante um ritual. O notável homem está ciente
do seu papel: confortavelmente sentado numa poltrona ao canto, con-
descendente mas sincero, ouve com generosidade os seus doentes, um
após o outro. Nesse dia, sente-se relativamente cansado. Porém, como
de costume, as suas assistentes fazem um trabalho extraordinário com
a gestão das chegadas e saídas dos doentes. As horas passam. Por volta
das 17:00 horas, o último doente, um obsessivo, ainda se encontra no
divã: loquaz e orgulhoso da fluência do seu discurso, comenta exaus-
tivamente alguns dos seus voos verbais. Quando a consulta termina,
levanta-se bastante satisfeito consigo próprio e com o seu desempenho

V. Reprendre 231
e, olhando para o psicanalista sereno e acomodado na sua poltrona,
conclui: "Foi uma sessão maravilhosa não foi?" Silêncio. Hesitante, o
doente recolhe-se e repete as palavras finais do ritual, escolhidas pelo
próprio psicanalista: "Muito bem; hoje ficamos por aqui." Silêncio. Há
qualquer coisa de errado. O psicanalista está anormalmente distante
e indiferente. Estará a dormir? Não, mas está muito pálido, muito frio.
As assistentes entram e assumem o controlo da situação. Chamam um
médico que, ao chegar, examina o corpo. O diagnóstico não deixa dúvi-
das: o psicanalista está morto há mais de três horas.
A história, tal como contada por mim, é um resumo do relato de Serge
Leclaire na obra Démasquer le Réel (1971), um conjunto de ensaios
sobre o objecto de psicanálise. Conforme demonstra Leclaire, trata-se
de uma história relevante na medida em que narra um tipo específico
de desejo de morte. O doente deseja a morte do psicanalista tal como
nós, consciente ou inconscientemente, desejamos a morte de quem
está no poder. Pelo menos em princípio, esse desejo não evidencia
qualquer espécie de ligação ao amor ou ao ódio; em rigor, manifesta-
-se junto ou além do significado desses sentimentos. A história ilustra
uma fantasia alimentada por vários doentes confinados numa "relação
analítica" e que, por todo o mundo, agem simbolicamente sobre ela.
Com o intuito de alumiar este argumento, Leclaire menciona outro
caso, desta vez verídico, no qual é possível constatar os efeitos de rico-
chete da primeira história. Trata-se novamente de um psicanalista
parisiense que recebe um doente, mas num contexto particular: o
analisante ingressa em sessões de análise a título de "formação" para
que ele próprio se possa tornar analista. Assim, por um lado, temos
um "guia" e, por outro, um "discípulo" que terá de enfrentar os seus
pesadelos para aceder à profissão. Um dia, na última sessão, o nosso
discípulo-doente tece comentários sobre a história que resumi ante-
riormente. O "mestre-guia" reage num tom mal-humorado: "E acha
graça ã história não é?" O discípulo encolhe os outros: "Por que não?"
Este aditamento permite-nos colher os ensinamentos da história
mais facilmente e identificar dois temas principais. Primeiro, ao imagi-
nar a morte do elemento poderoso de uma relação, o que verdadeira-
mente se deseja é matá-lo. Nesse sentido, quem for capaz de descodi-
ficar a história poderá afirmar, "Quer realmente matar o seu 'mestre'"?
Ou, num tom mais dramático: "Tem realmente desejado a morte do seu
pai?" Porém, a história ilustra ainda outro aspecto, ou seja, o facto de o
psicanalista incorporar o silêncio. É pago para ouvir e, ocasionalmente,
para orientar, mas não para falar. Corresponde exactamente ao oposto
de um professor. Por conseguinte, o psicanalista é um especialista num
"silêncio mortífero", que, segundo Leclaire, constitui simplesmente o

21,6V.Y.MudimbeA Ideia de Africa


símbolo da morte na maioria dos nossos sonhos. Por outro lado, é pos-
sível levantar outra questão: e o doente? Deitado no divã, está, amiúde,
em silêncio, como uma coisa morta à espera que alguém "a" coloque
noutro sítio, no devido lugar. Não será o doente o significado mais
óbvio da morte?

O exercício da palavra
É interessante observar que, quando a noção de morte, seja ela real
ou simbólica, emerge numa relação psicanalítica, o analista reme-
terá sempre, em princípio, para três respostas principais: desejo ou
medo da morte, identificação com a morte, representação simbólica
da morte.
Iniciarei a minha reflexão sobre as "teorias africanas" fazendo referên-
cia a dois enunciados de Leclaire que resumem a minha apresentação.
[As traduções são da minha autoria).
Seguramente que, se o analista está em silêncio, também existem decerto doentes
que fingem estar mortos [...] assumindo que o fazem. Tal situação pode prolongar-se
bastante no tempo (1971, p. 124).
Em poucas palavras, considero que, do ponto de vista do assunto em discussão, o
interesse dos analistas, excepto Freud, privilegiou sobretudo o tema da morte como
se a sua tematização permitisse velá-la com maior êxito. A nossa proposta, pelo
contrário, consiste [...] na reintrodução da questão da morte, tal como é vivida, por
exemplo, por doentes obsessivos. [1971, p. 127).

A obra Theories of Africans (1990), da autoria de Christopher Miller,


ilustra aquilo que se poderia descrever de pesadelos obsessivos sobre
uma morte possivelmente real ou simbólica. Porém, o facto de se poder
tratar de uma obsessão fundada, na sequência do tráfico de escravos
e da exploração colonial, e na era da pós-independência neocolonial
contemporânea, não constitui o tema do projecto. O objecto de inves-
tigação de Miller encontra-se bem delimitado e incide sobre a "Litera-
tura Francófona e a Antropologia". Ainda assim, sugere imagens sus-
ceptíveis de serem descodificadas pelas três respostas do psicanalista
quando confrontado com um doente obsessivo.
Em primeiro lugar, verifica-se o medo da morte [simbólica ou real)
que se manifesta num desejo de desaparecimento do "pai": afinal,
que sabe ele acerca dos meus problemas? O que está ainda aqui a
fazer? O discurso do pai não vai ao encontro da minha experiência,
parece-me totalmente absurdo e, por isso, não posso argumentar em seu

V. Reprendre 233
favor. Nesta perspectiva, a rejeição da crítica ocidental, exemplifi-
cada tão amargamente pelos nigerianos Chinweizu, Jemie e Madubuike
na sua obra Toward the Decolonization of African Literature (1983),
transforma-se numa marca transparente: deseja - e como! - a morte
dos pais simbólicos. Em segundo lugar, o próprio fundamento das
ideologias africanas mais significativas denota uma identificação com
a morte: "Negritude", "personalidade africana", "Pan-Africanismo". Re-
firo-me à identificação - por boas razões, além de muito respeitáveis
e sagradas - com milhões de vítimas do tráfico de escravos e à iden-
tificação com os que resistiram ao processo de colonização, acabando
por ser chacinados. Esta identificação vai de mãos dadas com formas
de introjecção e incorporação, que constituem marcas explícitas e
antagônicas de um desejo e de uma recusa de morrer. Contudo, estas
ideologias africanas de auto-afirmação vêem-se igualmente assom-
bradas pelo espectro da morte cultural que associam, por exemplo,
às políticas francesas de assimilação. Resta-nos, por fim, contemplar a
representação simbólica da morte, o silêncio do conquistado que, no
divã do psicanalista, retratam outro silêncio, o silêncio colossal e torpe
dos homens que se mostram incapazes de explicar aos seus filhos o
que acontecera. Aqueles que cederam enfrentam agora dúvidas acerca
da sua pessoa, querem saber o que há de errado com eles e deparam-se
com uma pergunta terrível: será que o outro, o conquistador ou colo-
nizador, tem uma solução para o seu problema? Com efeito, tem uma.
Mas afigura-se oportuno sublinhar outra questão. Um segundo silêncio
assustador que perdura na economia geral das novas palavras, línguas
e teorias africanas que comentam sobre a catástrofe e articulam outros
objectos de desejo através de novas formas: as mulheres africanas pa-
recem não se pronunciar. Em todo o caso, a sua presença na literatura
francófona caracterizou-se, até recentemente, pelo silêncio.
Pretendo, primeiro, apresentar uma visão geral da obra de Miller,
regressando posteriormente a estas questões levantadas pelo autor.
O livro compreende seis secções. Intitulada "Reading through Western
Eyes" [Ler através do olhar ocidental], a primeira corresponde à in-
trodução e versa sobre as principais questões teóricas que predomi-
nam na indagação intelectual mais alargada de Miller, de entre as
quais, duas se revestem de uma importância central, nomeadamente a
utilidade da antropologia e do dialogismo.
Ao pensar programaticamente sobre as abordagens ocidentais à literatura africana,
chego a uma hipótese fundamental em torno da qual se desenvolverá este livro: uma
leitura justa das literaturas africanas sob uma perspectiva ocidental exige uma relação
de diálogo, e mesmo de dependência, com a antropologia. A demonstração desta tese

21,6V.Y.MudimbeA Ideia de Africa


parte da premissa de que uma literatura correcta não resulta da ignorância e que os
saberes dos ocidentais sobre África são simplesmente escassos. (Miller, 1990, p. 4).
Se a antropologia adquirir uma dimensão dialógica, impregnada com as complexi-
dades e contradições de sistemas de pensamento em interacção, todos sairão a
ganhar. A aniquilação de uma transparência falsa pode dificultar a "procura" do
significado de um "símbolo" mas os significados por nós construídos serão, em
consequência, mais valiosos. Porém, em caso de renúncia da descrição e da repre-
sentação, em caso de uma alteração total do foco da etnografia do observado para
o observador, o seu valor de uso enquanto interlocutora da crítica das literaturas
africanas perder-se-á. (Miller, 1990, p. 27).

A ideia de aliar a antropologia e a literatura africana em bloco afigura-


-se original. Até ao presente, os especialistas conceberam esta colabora-
ção apenas entre a antropologia e a literatura oral. Miller vai mais longe
pois o seu objectivo expresso de estabelecer um diálogo entre a litera-
tura e a antropologia representa um avanço face àqueles que exaltam a
antropologia como um espelho dos contextos e das realidades africanas.
A segunda secção, "Ethnicity and Ethics" [Etnicidade e ética], é inau-
gurada com uma análise conceptual da "etnicidade" e da sua relação
com a "ética" e o "ethos". Miller advoga que "a etnicidade e a ética
constituem efectivamente o topos central na crítica da literatura
africana" e aventa uma distinção "entre etnografias que são 'éticas'
e aquelas que carecem de uma crítica ética". Em seguida, aplica esta
conclusão à crítica marxista da etnicidade, tal como ilustrada sobre-
tudo numa obra colectiva editada por Georg M. Gugelberger, Marxism
and African Literature (1985). Na óptica de Miller, esta colectânea de
ensaios tende a conter e a descartar a etnicidade.
Trata-se de uma questão fundamental, pois Miller estabelece uma
ligação explícita entre as teorias de Amílcar Cabral e Frantz Fanon
e questões de vida e de morte. Recorre ao exemplo daquilo que de-
nomina de "A Cadeia da Guiné" e glosa sobre a execução do escritor
e artista Kéita Fodeba, que "segundo o que se sabe, não foi acusa-
do de etnicidade partidária, excepto no sentido etimológico, pois
Sékou Touré transformara-o num idólatra, num pagão, num exilado
de um reino onde imperava um único discurso" (pp. 61-62). Com
efeito, Miller estabelece uma distinção entre a "utilização local e
'pragmática' da ideologia marxista na acepção hipócrita" por Sékou
Touré e, por exemplo, o livro de Gugelberger, a violência invocada
por Fanon como um meio para alcançar a liberdade política, e a
loucura política de Sékou Touré. Importa frisar que Miller adopta
uma posição crítica relativamente a esta eventual interpretação do
seu argumento:

V. Reprendre 235
A sequência de acontecimentos que descrevi continua aberta a uma variedade de
interpretações, e não apresento o destino de Kétia Fodeba como uma consequência
necessária das teorias do marxismo ou de Fanon, nem como uma história cuja moral
consiste na impossibilidade de mudar as coisas [...]. Será que o engolfamento de
Sékou Touré no discurso marxista e fanoniano torna Fanon responsável pelo reino
de terror na Guiné? A questão evoca os debates acerca da relação de Nietzsche com
o nazismo: até que ponto será o autor responsável pelas leituras e tresleituras dos
seus textos? Através de uma leitura completa e sensata dos textos de Fanon,
poderemos descortinar um sistema "aberto" que foi incorrectamente "fechado" pe-
los críticos; porém, o problema que me causa inquietação é precisamente o modo
como os paradoxos textuais na escrita de Fanon foram traduzidos numa opressão
política inequívoca por um "tresleitor" como Sékou Touré. [Miller 1990, p. 62).

Trata-se de uma questão pertinente: se permitirmos que Fanon seja


dolosamente implicado pela relação putativa (e na verdade bastante
mistificadora) entre a sua obra e a acção de Sékou Touré, qual será o
limite em termos da imputação de responsabilidades e da acusação
das pessoas? Quem condenar - Aristóteles, ou os seus discípulos eu-
ropeus que fabricaram, em seu nome, teorias elaboradas em prol do
tráfico de escravos? Quem acusar - São Paulo e Tomás de Aquino, por
um lado, ou as ideologias e práticas misóginas e centenárias das igre-
jas cristãs, por outro? Quem vilipendiar - os antropólogos culturais
dos séculos XIX e XX que inventaram as tribos e os modelos africanos
ou os seus discípulos africanos que exploraram estes artifícios para as
suas políticas criminosas de "autenticidade"?
Abordei, noutra ocasião, as ambiguidades intelectuais e políticas
assim como a generosidade de marxistas de formação francesa. Em
termos gerais, não correspondem à caricatura descrita por Miller. Ao
contrário da maioria dos colonos, dos africanistas não-marxistas e de
outros missionários enviados por Deus, os marxistas tiveram a cora-
gem de retirar as lições do seu compromisso africano em toda a sua
ingenuidade, na praça pública.
Em todo o caso, a complexidade e fealdade da questão conduzem-
-nos até ao nosso ponto de partida. Sabemos agora que o filho deseja
a morte do pai, o escravo deseja a morte do seu senhor, o colonizado
deseja a morte do colonizador, o doente deseja a morte do psicanalista,
uma ideia bem ilustrada no trabalho de Fanon. Todavia, como exteri-
orizar esse desejo? Sartre, por exemplo, avançou com uma alternativa
num texto controverso e pouco conhecido intitulado Between Existen-
tialism and Marxism [1974, pp. 189-223). Ademais, o que pensar e o
que fazer quando, em nome de uma vontade de verdade irresponsável,
este desejo se transforma em actos de pura loucura? Prudentemente,

21,6 V.Y. Mudimbe A Ideia de Africa


Miller centra-se nos fundamentos. Contra o discurso de Fanon sobre
o direito à violência e a sua aplicação "desprovida de ética" por parte
de Sékou Touré, Miller sublinha que "o ético seria uma relação dialéc-
tica entre uma verdade transcendental e o respeito pelo outro, pela
diferença. Um si-mesmo que se relaciona consigo próprio evidencia
poucos problemas éticos. Neste sentido, não existe uma ética verda-
deira sem a etnicidade, sem a presença inquietante e confusa do outro"
[Miller, 1990, p. 63).
O terceiro capítulo versa sobre a oralidade através da literacia
["Orality through Literacy"), centrando-se na arte verbal dos Mandé
["Mande Verbal Art"). O capítulo 4 analisa o contexto antropológico e o
conteúdo da conhecida obra L'Enfant noir, de Camara Laye; o capítulo
5 baseia-se em Les Soleils des Indépendances, de Ahmandou Kourouma,
para uma crítica da ideologia "francófona" e estuda analiticamente a
política interna do próprio livro; por fim, o último capítulo da obra
de Miller é consagrado às escritoras senegalesas ["Senegalese Women
Writers"). O autor realça que estes estudos de caso são a sua "resposta
à amarra do relativismo" e "tanto um reflexo do seu meio quanto um
reflexo do campo discursivo existente nos estudos africanos". Miller
tece outra afirmação significativa, segundo a qual "não almeja transcender
ou abandonar o cenário académico norte-americano mas, a partir do
seu interior, [...] procurar encetar um diálogo com outro domínio,
cujas questões e cuja linguagem são parcialmente e problematica-
mente diferentes: a África francófona" [1990, p. 67). No cômputo geral,
os estudos tratam "a ética da projecção" com elegância e, através de
um conhecimento teórico brilhante, debruçam-se sobre o que Miller
apelida de "diferença entre a projecção para outra pessoa ou outro
povo" [1990, p. 296).
Três problemas de relevo informam o projecto de Miller, o qual
se desenvolve na rubrica das teorias dos africanos, encontrando,
porém, a seu coerência numa leitura específica dessas teorias à me-
dida que brotam do seu contexto. O primeiro problema reside na
ideia de África tal como estabelecida por um conjunto de "etnici-
dades" ou diferenças. Pelo menos na literatura académica contem-
porânea, o conceito de "etnicidade" representa uma corrente recente
que [contrariamente ao conceito de 1960 relativo a uma África unida
culturalmente) enfatiza a alteridade de determinadas entidades cul-
turais básicas, definidas por uma língua e uma história particular.
O segundo problema emana do primeiro: o facto de a antropologia
- ou melhor, um acervo antropológico - constituir um recurso ne-
cessário para a descodificação das "etnicidades" e da "complexidade
das questões culturais em África e a sua tradução para a intelecção

V. Reprendre 237
ocidental" (1990, p. 5]. Por fim, o último problema afigura-se ex-
tremamente sensível: a política da morte simbólica e, infelizmente,
concreta que se espelha com recorrência no debate de Miller acerca
das etnografias e projecções éticas.
"Pensar de um modo antropológico significa a validar a etnicidade
como categoria, o que se tornou uma ideia problemática", escreve Miller
(1990, p. 31). Talvez valha a pena sublinhar que por "antropologia",
neste e noutros casos. Miller se refere à antropologia cultural, uma
tradição que abraça as escolas evolucionista, difusionista e funciona-
lista. Tal como advoguei noutro contexto, as origens da antropologia
cultural residem no desejo ocidental de descobrir o seu próprio pas-
sado, construindo um percurso imaginário que começa com os chama-
dos primitivos e culmina com os feitos da civilização europeia. Mesmo
as correntes antropológicas que rejeitam ostensivamente tais noções
podem continuar a ser impregnadas por este telos oculto. Todavia, gos-
taria de insistir que estas preocupações não contrariam a tradição kan-
tiana da antropologia filosófica - como, por exemplo, na validação da
diferença na filosofia do Outro, de Emmanuel Levinas. (Embora pareça
estranho, alvitraria ainda que a antropologia estruturalista associada
a Claude Lévi-Strauss pertence plenamente a esta tradição kantiana.)
Miller correlaciona "etnicidade" e "alteridade"; e, remetendo para a
desconstrução do conceito de "etnicidade africana" de Jean-Loup Am-
selle. Miller admite que as etnias africanas foram "construídas pelos
colonizadores a fim de dividir para conquistar". Em seguida, levanta
uma questão: "Será que isto significa que a etnicidade em si constitui
uma ilusão, uma categoria inútil de interpretação?" O autor prefere
manter este conceito "para investigar as noções de identidade e dife-
rença", definindo-o como "um sentido de identidade e diferença entre
os povos, alicerçado numa origem e ascendência ficcionais e sujeito às
forças da política, do comércio, da língua e da cultura religiosa" (1990,
pp. 34-35). Ainda assim, a fragilidade do conceito torna-se manifesta
na própria leitura de Miller acerca do "espaço" cultural dos Mandé e
no seu reconhecimento de que "as fontes etnográficas sobre os Mandé
- desde finais do século XIX até aos finais da década de 1980" - estão
repletas de questiúnculas terminológicas e discórdias substantivas"
(1990, p. 75). Por que motivo escolheu então Miller manter um con-
ceito cujo valor ele próprio questionou?
A resposta encontra-se na fé que deposita na antropologia - ou
tratar-se-á de uma "resignação atentamente céptica"? Miller escreve
que "em termos do seu valor facial, a minha hipótese significa apenas
que qualquer leitor não-africano (ou mesmo um leitor africano per-
tencente a uma área cultural distinta) que procure atravessar o fosso

21,6 V.Y. Mudimbe A Ideia de Africa


informativo existente entre ele próprio e um texto africano ver-se-á
muito provavelmente obrigado a consultar livros de antropologia" [1990,
p. 4]. Miller está perfeitamente ciente dos riscos inerentes a esta abor-
dagem. Em primeiro lugar, as representações encontradas no acervo
antropológico não constituem a introdução mais adequada ou fiável às
imagens africanas da alteridade. Conforme admite Miller, o "acesso a
sistemas não-ocidentais" que parece oferecer é "mediado por uma dis-
ciplina criada e controlada pelo Ocidente". Em segundo lugar, porém,
as tensões e mudanças de natureza ideológica e metodológica asso-
ciadas à transição do modelo evolucionista para os modelos fimcionalista
e estruturalista na antropologia são de tal ordem que, ao longo do
tempo, acabaram por transformar a disciplina e as suas representa-
ções em absoluto. E Miller tem conhecimento disso. Pese embora a sua
aceitação da antropologia, evidencia uma posição bastante crítica em
relação à sua autoridade. Constata que na política do início da era da
pré-independência, a antropologia constituía a "forma mais poderosa
do discurso colonial". Se a sua confiança na antropologia acarreta
[segundo as suas palavras] uma "rendição a esse paradoxo", chamaria
atenção para o facto de não implicar a rendição da nossa consciên-
cia crítica, segundo a qual as fontes e leituras antropológicas de Miller
podem nem sempre ser credíveis. O autor reconhece que "recorrer à
antropologia significa atrair problemas."
Outras questões emanam do privilégio concedido por Miller à antro-
pologia cultural e não, por exemplo, à história. Ainda me pergunto o
que teria acontecido se Miller tivesse assumido o risco de incluir nas
suas análises, explícita e sistematicamente, a perspectiva da antropolo-
gia filosófica em vez da antropologia cultural. Seja como for, a sequên-
cia cronológica dos assuntos abordados - a arte verbal dos Mandé,
L'Enfant noir de Laye; Les Soleils des Indépendances de Kourouma e as
escritoras senegalesas - assenta na perfeição a uma concepção históri-
ca da literatura francófona. Além disso, em vez de reflectir simples-
mente sobre os valores mudos e os confrontos socioculturais que são
a salvaguarda das antropologias estáticas, os seus tópicos propõem,
descrevem e revelam uma história africana específica em construção.
Permitam-me que ponha de lado estes assuntos complexos para me
dedicar aos quatro capítulos antropológico-literários. O autor explora
um conjunto de questões delicadas acerca da origem dos textos e da
prise de parole das senegalesas, ao mesmo tempo que urde teorias so-
bre as personagens e a complexidade sociocultural de determinados
textos. Podemos então evocar novamente a nossa preocupação analíti-
ca inicial. Segundo Leclaire:

V. Reprendre 239
Alguém, à frente de outro alguém, fala. Interroga aquilo que ele é. No seu modo
idiossincrático, pergunta-se a si próprio como se sente, com uma felicidade
(ou infelicidade) desigual, em ser alguém mais ou menos identificado, situa-se a
si próprio em relação aos outros, mortos ou vivos; por sua vez, que tipo de vazio
criaria o seu desaparecimento, ou que lugar ocupa a sua presença? (Leclaire, 1968,
p.175).

Este quelqu'un (alguém) é múltiplo. Com efeito, apresenta um relato


do diálogo de Christopher Miller com os escritores africanos francó-
fonos sobre os quais glosa. O quelqu'un pode igualmente servir como
uma figura para o modo como os leitores de Miller se podem situar
numa conversa com o autor e definir um discurso no discurso de
Miller, tal como estou a fazer neste ensaio. Os leitores também podem
introduzir na conversa o seu próprio entendimento dos textos e con-
textos principais utilizados por Miller. Em todo o caso, ao chegarem
ao fim de Theories of Africans, os leitores estarão cientes daquilo que
a foram sujeitos. Podem, de várias maneiras, rejeitar ou integrar to-
tal ou parcialmente uma interpretação relativa a uma representação
primária, o "complexo zero" que Camara Laye e Ahmadou Kourouma
alegam narrar. Seja como for, terão de enfrentar a antropologia e, se
forem pacientes, cenários intelectuais sobre a evolução dos seres
humanos a propósito de L'Enfant noir.
Servindo-me das análises de Miller, gostaria de me debruçar sobre
três motivos conexos relacionados com o poder e a morte simbólica,
com o intuito de demonstrar a pujança do contributo de Miller para a
esfera da literatura africana. Os motivos correspondem à metáfora da
infância africana, à marca do poder masculino patente na língua fran-
cesa e à voz renegada das mulheres africanas como a outra face de um
cânone social e intelectual.
Em L'Enfant noir, a criança africana enuncia marcas e regras de uma
ordem cultural, contando-nos como é bom viver em comunhão dentro
do que parece ser uma afinidade excepcional entre cultura e natureza.
Estará a mentir? Tal como observado por vários críticos, é provável
que sim. Estará a jogar com um mito "político"? Não é impossível. No
texto de Laye, a visão da infância assume-se como um cenário român-
tico cujos movimentos secretos e cujo equilíbrio compõem um quadro
fabuloso. Tratar-se-á de uma armadilha, uma vez que o objecto con-
creto supostamente confrontado pela história não é referido com pre-
cisão? Não celebrará a narrativa de Camara Laye um espaço mítico, um
ambiente idealizado? Existem marcas contrárias, como são o caso das
tecnologias ocidentais. Todavia, no seu todo, a narrativa simplesmente
ornamenta uma experiência imaginada, imediata, primitiva e nula na

21,6 V.Y. Mudimbe A Ideia de Africa


qual um rapaz inteligente utiliza a sua infância como uma tentativa
de poder e conjuga, no seu campo stretto, os jogos intrincados dos
adultos com os seus próprios jogos. Mas será a criança ou o escritor
que manipula o leitor? Christopher Miller imputa a responsabilidade
ao escritor pela criação de uma "metáfora arguta, uma táctica utilizada
para ganhar influência e, em última instância, um comentário irônico
sobre a política do saber" (1990, p. 128).
Dedicado à mãe, o livro encerra uma revelação surpreendente
sobre a relação entre o pai e o filho: "Deixei o meu pai demasiado
cedo". O comentário de Miller não descura este elemento: o narrador
"indica uma razão muito simples, muito significativa: deixou o seu
pai demasiado cedo. O pai simboliza o saber; nas páginas seguintes,
começará a revelar parte do seu saber secreto ao seu filho" (1990, p.
134). Como podemos adivinhar desde logo, na perspectiva do filho,
o segredo supremo é o próprio nome do pai. Neste rasto da sua ori-
gem e, assim, de uma possível identificação com aquilo que o tornou
possível, o filho pode tornar-se como o seu pai. Miller explica a com-
plexidade do desejo:
A identidade da figura do pai, le nom du père, é a condição relativamente à qual o
narrador aspira e parece não conseguir ter acesso. No excerto de Le Maître de Ia
parole referente a Fran Gamara, Gamara Laye dedicava-se ao mesmo problema da
origem, da identidade e da condição. Ser um "pai-criança" [faden] significa ter ou
procurar uma determinada relação com o totem do pai. Nesse sentido, ao lermos
sobre a relação do antepassado com uma cobra em Le Maître de Ia parole, apre-
sentando uma explicação genealógica acerca da relação totémica, estaremos mais
aptos para prosseguir com a leitura de L'Enfant noir. (1990, p. 142).

Deste modo, a brincadeira da criança com uma serpente na história


transforma-se numa metáfora. Deverá matá-la, para que finalmente
possa conhecer os segredos do pai ou (concordando com Freud e
colocando a questão em termos teóricos) para que possa superar o
complexo de Édipo? Miller insiste correctamente que, neste caso es-
pecífico, "a identificação é total no quadro do que Freud designa de
realidade física, e a sua explicação do 'retorno do totemismo na in-
fância' enquanto uma manifestação atávica do complexo de Édipo é
susceptível de ser aplicada a uma leitura de L'Enfant noir." Isto suscita
uma série de problemas consideráveis. Partindo de Totem e Tabu de
Freud, é possível seguir as análises de Miller sobre as hipóteses - de
Malinowski, Lévi-Strauss, o casai Ortigue, etc. - re|ativas a Édipo e à
evolução dos seres humanos. No final, deparamo-nos com o seguinte
enunciado de Miller:

V. Reprendre 241
Entre os Mandé, o totem pareceria ser, de facto, "aquilo que resta de uma totali-
dade diminuída", sendo que a totalidade corresponde aos sistemas organizados
de relações, costumes e crenças que remetem para os dias gloriosos do império.
A epopeia de Sundiata constitui a principal lembrança da última plenitude; a arte
verbal dos griots visa ressuscitar a totalidade mas é suspeita de a diminuir. O to-
temismo corresponde a outra lembrança. [1990, p. 154)

Segue-se o caso de Les Soleils des Indépendances, de Ahmadou


Kourouma. Miller caracteriza-o de "romance antropológico", afir-
mando que "nos momentos em que o narrador personificado emerge
e relembra o leitor do seu saber superior, verifica-se a exposição de
uma estrutura autoritária e a sua sujeição à ironia; ironia pois a au-
toridade deste narrador-personagem está limitada pelo intercâmbio
dialógico em que participa com o leitor" (1990, p. 224]. Podemos
contemplar outra possibilidade: Les Soleils des Indépendances
constitui um romance sociológico sobre um passado que enfrenta
um presente, inscrevendo a sua agenda política em função de novas
resoluções de desigualdade e diferenças. Neste caso, a língua fran-
cesa torna-se um símbolo de poder. Enfrentá-la e desestruturá-la em
nome de uma "africanidade"? - que tentação! Pela sua parte, Miller,
após uma análise escrupulosa da ideologia da francofonia, comenta
os modos de africanização e dialectização do francês, patentes em
Kourouma, em nome daquilo que proponho designar de "complexo
zero". O facto de um livro desta natureza ser celebrado pela franco-
fonia pode assumir-se como um mistério. Porém, são estes os caprichos
da história. Miller cita a esperança manifestada por Senghor de que
a sua "participação como um dos 'imortais' da Academia Francesa
lhe permitirá 'trabalhar sobre [...] a miscigenação da língua francesa
[...]. Espero introduzir no dicionário da Academia Francesa palavras
como 'négritude'" (1990, p. 199]. Kourouma exteriorizou este senti-
mento na sua dialectização do francês, inscrevendo-o como o ponto
de cruzamento da política tradicional antiga dos Mandé e dos novos
sonhos de modernidade, entretanto despedaçados.
O prazer de falar, o dom da palavra, descortina o jogo de múltiplas
vozes, representando símbolos destruídos, urdindo ironias sobre as
línguas - e, assim, sobre o limite, a origem; em suma, este discurso
relaciona-se com o luto de um objecto perdido, uma identificação
com uma figura morta mas significante. Miller comenta o desfecho
do romance de Kourouma: "apesar da perda de uma utopia mandé na
terra, a sugestão é a de que ela sobrevive no pensamento. A política
pertencerá às novas estruturas mas a cultura manter-se-á inalterada"
(1990, p. 239].

21,6V.Y.MudimbeA Ideia de Africa


Por fim, Miller aborda a ausência das mulheres na literatura francó-
fona: "A ausência gritante de romancistas mulheres antes de 1976 - o
silêncio ensurdecedor - rege qualquer abordagem sobre este tópico e
exige uma explicação" (1990, p. 247). Há motivos para esta ausência.
De entre os mais visíveis, destacam-se os padrões de controlo na Áfri-
ca pré-colonial e colonial, a política colonial da literacia e a "aventura
ambígua da educação." Gostaria de insistir brevemente numa correla-
ção. Miller salienta várias vezes que a obra de Gamara Laye é dedicada
à mãe. Com efeito, a dedicatória destina-se não só à mãe, Dâman, mas
a todas as mulheres negras, a todas as mães africanas: "Femme noire,
femme africaine, ô toi ma mère je pense à toi." "Mulher negra, mulher
africana, oh tu, minha mãe, penso em ti." Importa agora realçar que
na cultura, o discurso é apresentado como feminino. Numa síntese de
Gens de Ia parole e Paroles très anciennes de Sory Gamara, Miller ob-
serva o seguinte:
0 seu retrato dos gêneros como estando em conflito na cultura mandé, e das mulheres
como sendo subordinadas e mudas ('um cidadão que é um menor eterno') é con-
firmado e desenvolvido na sua obra seguinte. Paroles très anciennes. Neste estudo
etnopsicanalítico da cultura mandé. Gamara interpreta a circuncisão, a caça, a agri-
cultura e a poligamia enquanto estratégias simbólicas por meio das quais o herói
masculino mandé (agindo sob o pavilhão da fadenya, pai-infância) procura passar
por cima da mulher e engendrar-se a si próprio (1990, p. 263).

Por conseguinte, se, no plano simbólico, o discurso é feminino, a cul-


tura será masculina e as suas origens estarão nas mãos de especialis-
tas assexuados e neutros, os griots. Neste quadro, o pai personifica a lei
que o herói de L'Enfant noir gostaria de ter enfrentado mais cedo, con-
forme vimos. Sensível aos privilégios da mãe, mas sujeito às exigências
determinantes da cultura, o herói congrega dois pólos conflituantes: é
o "objecto" amado de uma mãe e a "criança" de uma cultura, ou seja, o
"filho" do seu pai. Será possível então, a título hipotético, imaginar que
o autor, ao romancear-se a si próprio e ao dedicar o livro à mãe, está
a formular de uma forma muito decisiva o que Jacques Lacan desig-
nou de relação da mãe com o discurso do pai? Mais um passo e o pai
deixa de ser a "referência recusada" ou, estritamente, o "recusado" e
o "referido" que, na mente do herói (e do autor), é a antítese da figura
central, carinhosa e equilibradora da mãe-génitrix.
Este espaço de conflito exibe uma ausência notória que pode, de fac-
to, explicar o "silêncio ensurdecedor" das mulheres descrito por Miller:
a ausência da génitrix da mãe e da sua ordem. Esta ausência será evo-
cada como um elemento-chave para a minha leitura de Conquérants de

V. Reprendre 239
Ia nuit nue: Edouard Glissant et l'H(h)istoire antillaise (1988) da auto-
ria de Bernadette Cailler.

A morte dos pais falsos


Na conclusão do seu estudo sobre Glissant, Bernadette Cailler constata
que o escritor caribenho "pretende resolver a crise do espaço psíqui-
co no qual reside a aventura caribenha do texto" (1988, p. 172). Em
causa está a experiência da história para alguém que foi excluído dos
próprios arquivos da história. Para uma pessoa como Glissant, que não
tem outra alternativa senão pensar segundo os moldes da tradição
francesa e que, ainda assim, não se pode esquecer do facto de os seus
antepassados terem chegado às Caraíbas na qualidade de escravos,
qual o significado de ser um intelectual e reflectir sobre o sentido da
história? Na acepção de Cailler, esta crise "encontra-se profundamente
enraizada na morte dos pais (pais falsos), os produtores de discursos
previamente codificados; uma crise em que os discursos do amor são
degradados por buracos em todos os lados, e os mitos da filiação se
tornam indistintos; uma crise em que a ligação exige sofrimento, uma
receptividade ao faz-de-conta diariamente" (1988, p. 172). A tese é
fascinante.
Em primeiro lugar, gostaria de esclarecer o conceito de pai falso
passando, em seguida, para uma análise crítica da obra de Cailler, no
sentido de aferir o seu interesse e a sua pertinência através do desen-
volvimento de certas questões levantadas pela autora dentro do registo
psicanalítico que adoptou.
Consideremos algumas das complexidades da relação da criança
com o pai. Em nome dos privilégios do sangue, da antigüidade e da
tradição, é o nosso pai que nos chama nas nossas fantasias, inserin-
do-nos numa ordem de deveres e ambições concebida por uma
memória antiga por ele representada. O pai constitui a tradição, cor-
responde ao que veio antes e personifica a lei da sobrevivência e a
marca do futuro. Eis a sua exortação: Não tenhas medo, filho, este é o
passado do nosso povo.
Assim, a biografia do pai assume-se como uma espécie de história.
É concedida à sua palavra uma perpetuidade que nos acompanha de
lugar em lugar, ao longo dos anos, tornando-se a memória do mundo.
Daí o fardo das gerações veiculado pela frase: "Eu sou teu pai". Es-
magada por esta autoridade, a criança recolhe-se para uma posição de
fraqueza almejando, ao mesmo tempo, afirmar uma nova autoridade e
a voz das novas sendas do futuro. Todavia, um discurso soberano como

21,6V.Y.MudimbeA Ideia de Africa


o do pai traduz manifestamente uma recusa mortal face ao desejo de
poder da criança: "Procurarei noutro lado" pensa a criança, e assim
levanta suspeitas ditando uma releitura da memória familiar. "E se o
meu pai estiver errado?"
E se o pai a quem nos submetemos for um impostor: um pai falso
que usurpou injustamente a posição de autoridade? O que acontece ao
filho? Relativamente ao estatuto da memória: se confrontarmos o pai
falso que nos impôs uma palavra falsa, que tipo de memória estaremos
a rejeitar? A África Negra colonizada há muito que se encontra nesta
situação: tendo sido instruída com base em manuais que falam dos
"nossos antepassados, os Gauleses", o que acontece quando se desco-
bre que esses antepassados não foram os Gauleses? Mantemo-nos em
silêncio - ou gritamos até à rouquidão? Quais as implicações para uma
prática e uma política do património e da tradição?
Recorrendo ao modelo psicanalítico para a deslocação histórica do
sujeito colonial, Cailler apresenta uma figura interessante de paterni-
dade, poder e memória. Quem é realmente o meu pai? O que está por
trás desta pergunta transcende a simples miragem de tentar identifi-
car, por exemplo, o inventor da esferográfica ou do filtro do cigarro.
Trata-se, de facto, de uma questão de auto-inserção numa genealogia
do sangue, e de autodefinição como descendente de uma memória
que faz parte de uma história específica; e para alguém como Glis-
sant, corresponde à tarefa de tentar articular uma continuidade, uma
história, uma cultura. O livro de Cailler indica reiteradamente o que
está em jogo: Onde está o pai? Como designá-lo e ao seu poder? Deverá
a memória da criança corresponder à memória do pai e o seu discurso
conforme ao discurso do pai?
Para efeitos de iniciação à obra de Glissant, Cailler começa por evo-
car uma imagem do desânimo, a figura do maroon, ou seja, do escravo
fugitivo, pois o seu objectivo consiste em traçar a experiência histórica
do maroon na viagem singular de Glissant. Bernadette Cailler desen-
volve longamente a questão da experiência histórica através de uma
releitura de um capítulo de David Patrick Geggus (incluído na obra
Slavery, War and Revolution, 1982) e de dois livros de Richard Price
[Maroon Societies, 1973, e First-Time: The Historical Vision of an Afro-
-American People, 1983], além dos testemunhos de escritores mais
antigos, designadamente Moreau de Saint-Méry, César de Rochefort,
Jean-Baptiste Dutertre, e Jean-Baptiste Labat. Sumariamente, a epo-
peia do escravo fugitivo simboliza a negação da escravatura, pelo que
será considerada nesses termos. Será a fuga do escravo simplesmente
uma evasão em busca de uma nova sorte ou, como tal tem sido lou-
vada, um acto político que rejeita em absoluto a servidão: liberdade

V. Reprendre 245
ou morte? De acordo com Cailler, "actualmente, investigadores sérios
concordam em considerar o amor pela liberdade a primeira prioridade
entre as causas da fuga dos escravos". Assim, a autora pode revelar a
emoção dos seus sacríficos excepcionais: "arraigadas nas primeiras e
expressivas negritudes [o escravo suicida que engole a língua, o es-
cravo que se atira ao mar, o sufocamento dos filhos...), as histórias dos
escravos fugitivos tiveram de ser e devem ser escritas um dia" (1988,
p. 66).
Reflectindo sobre este nível histórico das fugas dos escravos, a au-
tora descreve em pormenor um caminho simbólico e político percor-
rido por Edouard Glissant enquanto uma nova marca do escravo fugi-
tivo. Oriundo de uma família respeitada em Bezaudin, estudante em
Lamentin e posteriormente no Lycée Schoelcher em Fort-de-France,
Glissant rumou para França em 1946, onde cursou filosofia e etnolo-
gia. Cailler destaca alguns dos conhecimentos travados por Glissant
ao longo do seu percurso. Por exemplo, Aimé Césaire foi seu profes-
sor no Lycée Schoelcher. No início da década de 1940, "aparentemente.
Glissant nutria um forte desejo de se manter afastado da Negritude de
Césaire [...]" (1988, p. 40); e, já em França, "parece que viveu de uma
forma bastante isolada [...]; certas páginas de Soleil de la Conscience,
um ensaio poético publicado em 1955, evocam esta adaptação difícil à
paisagem francesa; são páginas introspectivas que evidenciam desde
logo toda a ambiguidade da relação com o Outro, mas também a força
da 'intenção poética' que resiste ao impasse, à errância sem destino e
à segregação" (1988, p. 41).
A questão é apresentada de um modo simples: em que medida a
descrição da biografia de Glissant reproduz a paixão dos históricos
escravos fugitivos e os riscos que correram? De entre os amigos ou
conhecidos de Glissant, contavam-se intelectuais negros como René
Depestre, Frantz Fanon e o escritor argelino, Kateb Yacine. Porém,
Glissant também era um intelectual francês, cuja dissertação para o
Diplome d'études supérieures versava sobre poetas franceses, nomeada-
mente Césaire, Reverdy, Char e Claudel. E, ainda assim, Césaire consta
entre eles: não validará a sua presença a ordem do séquito?
A fim de estabelecer um paralelismo entre o caminho percorrido
por Glissant e o do escravo fugitivo, Cailler insta efectivamente o leitor
a saltar da vida do autor para os seus textos, que sofrem uma trans-
formação a partir da década de 1950. Mas não precisamos de parar
em Glissant. Frantz Fanon, por exemplo, seria um escravo fugitivo de
primeira linha. Poderíamos igualmente aludir a figuras mais evoca-
tivas, tais como o cubano Esteban Montejo, um escravo fugitivo com
mais de 100 anos que, na obra de Miguel Barnet (1968), afirma que.

21,6 V.Y. Mudimbe A Ideia de Africa


para ele, a fuga era um espírito, um chamamento. A correspondência
estabelecida por Cailler entre o itinerário do intelectual caribenho e
o do escravo fugitivo visa celebrar o primeiro, através da referência
ao martírio do último. Contudo, importa notar que se as palavras de
Glissant emanam da fuga dos escravos, tal prende-se com a sua re-
sistência contra o virar silencioso das páginas de uma história. Em
termos metafóricos, Fanon reproduziu o gesto de Montejo. Glissant,
num movimento diferente, prefere manter o significado textual de um
discurso oral sobre a liberdade.
Porém, Cailler sugere que o escravo fugitivo seja entendido como
um "negador", ou seja, uma "metonímia" (1988, 59n.30). Desta vez,
é possível estabelecer uma ponte entre as duas histórias que foram
divididas. O primeiro gênero estipula a memória do passado na
história escrita dos historiadores. Nesse sentido, os próprios testes
de Glissant em relação à história podem ser sobrepostos ao tempo
histórico e à versão da história representada pelo discurso do "pai".
Por conseguinte, não se trata de uma situação acidental, caso a marca
principal do segundo negador reflicta a sombra de Hegel. Segundo
Glissant,
Verdadeiramente, a existência de cada história (e, por conseguinte, cada concepção
da Razão da História nela projectada) exclui de um modo marcado as restantes:
facto que me consola por ter sido excluído do movimento histórico por Hegel.
"O que entendemos propriamente por África, é um mundo anistórico e subdesen-
volvido, totalmente prisioneiro do espírito natural, cujo lugar permanece no limiar
da história universal." Neste caso, a totalização da Razão era menos poética e sagaz
que o relativismo tolerante de Montaigne. A investigação hegeliana do mundo, tão
maravilhosamente sistemática e vantajosa para as metodologias ocidentais, esbarra
amiúde contra as minudências em que o interesse assaz vigoroso de Montaigne é
praticado. (In Cailler, 1988, p. 54).

Perante esta acareação, Cailler desenvolve quatro respostas primaci-


ais. Em primeiro lugar, a reflexão de Glissant sobre o tema da história
provém do "interior do triângulo intercontinental; para quem medita
sobre o assunto, o que é acrescentado às visões europeia e africana so-
bre África são as visões europeia, americana, africana, e efectivamente
planetárias das Caraíbas; todos estes elementos toldam a visão das
Caraíbas sobre o seu passado, sendo que o seu Antepassado continua
por definir e a importância - ou o absurdo - do 'outro lado das águas'
ainda não encontrou a sua verdadeira dimensão" (1988, p. 55).
Em segundo lugar, afigura-se oportuno sublinhar que a busca de
Glissant pelas suas raízes traduz-se numa procura por uma história

V. Reprendre 247
negada ou, pelo menos, pouco conhecida: "de que modo viveram os
africanos do passado a sua percepção da História?" Todavia, face a
uma historiografia desta natureza, face ao legado da filosofia hegeliana,
detectamos uma ansiedade profunda:
A obra de Glissant evidencia uma tensão constante entre o sentimento de impotên-
cia, a tristeza perante a "lacuna" histórica, e a convicção de que a derradeira ne-
cessidade não consiste no conhecimento dos "factos", mas antes na aquisição de
um sentimento de continuação, começando com "uma nova onda de recursos", ou,
conforme afirma novamente, com um "registo": como se a escassez documental
pudesse, todavia, servir de rampa de lançamento para uma meditação, profícua
para todos, sobre aquilo que constitui a consciência colectiva. (Cailler, 1988, p. 56).

Aqui reside a explicação da importância aparentemente conferida


por Glissant ao nós, a primeira pessoa do plural, como uma "realidade
concreta ou noção abstracta", tanto a montante quanto a jusante de um
sentimento real de desamparo.
Gostaria de me deter um pouco neste ponto a fim de levantar algu-
mas questões. Em primeiro lugar, importa realçar que Hegel esmaga
Marx nesta leitura de Glissant. O enunciado de Hegel parece suscitar
um certo desespero. Não podemos mencionar uma história silencio-
sa, na medida em que só pode ser pensada em função de um modelo
hegeliano no qual África é um vazio. Como então retratar a incursão de
Hegel pelo pensamento africanista? Podemos recorrer a Marx. Ou, se
este nos causar medo, invocar, pelo menos, Bergson, que nos ensinou
que a criatividade é comparável a um jogo de paciência.
Talvez o sentimento de desamparo que percorre o discurso de Glis-
sant não advenha tanto da história que o autor deseja e que se vê,
porém, impossibilitado de satisfazer, mas sobretudo da própria procu-
ra pela história negada. "Pais falsos", mestres de um discurso soberano e
eficaz - um tipo de eficácia patente no discurso dos patriarcas bíblicos
- teriam, de facto, condenado essa busca de antemão. Em todo o caso,
o projecto parece definir-se como uma função de carência, ou seja (ci-
tando Serge Leclaire), como aquilo que finge ser e se afirma "no lugar
de", o espaço vazio existente entre "o que nunca foi alcançado" e "o que
é constituído desde toda a eternidade" (Leclaire, 1968, p. 144).
Permitam-me que sugira uma abordagem alternativa. Talvez pos-
samos considerar as pretensões desta história como um repositório
de verdades. Podemos, por exemplo, na esteira de Husserl, declarar e
aceitar que a afirmação de uma verdade é simplesmente a declaração
de uma proposição subjectiva que reflecte apenas as nossas experiên-
cias individuais - e que, por conseguinte, esta força normativa não

2/,8 V.Y. Mudimbe A Idéia de África


passa de uma miragem. De que credibilidade gozaria ainda a história
caribenha ou africana no esquema hegeliano e vice-versa? Mas, como
é evidente, não necessitamos de um cepticismo tão implacável e da
"verdade" para duvidar da "geografia" intelectual de Hegel e das suas
consequências. Por outro lado, não devemos permitir que um cepticismo
mais consciencioso invalide, no nível ingénuo onde me encontro, a
pertinência do jogo que estou a delinear, através da oposição entre o
panorama hegeliano e a dúvida radical de Husserl.
Levei ao extremo as tensões identificadas por Bernadette Cailler na
obra de Glissant. Poderei ser criticado por negar a possibilidade de
alguma coerência histórica. E, de uma forma geral, estaria mais incli-
nado em conceber a história, toda a história, como uma invenção do
presente. Independentemente daquilo que o historiador distingue no
passado enquanto modos de comportamento, sistemas ou instituições
- temos cada vez mais consciência disso graças às palavras de Paul
Veyne em particular (por exemplo, 1984) - é em função do presente
que o historiador lhes atribui importância e os compreende. Nesta
perspectiva, o pesadelo de Glissant pode ser dissipado. Não só incor-
pora como também escreve a história de um modo que lhe permite
criar para si próprio uma visão distintiva e, portanto, um objecto de
saber.
Entre a noite e a claridade, a memória eleva-se como uma marca -
ou, voltando ao termo de Cailler, como um negador. Cailler enuncia e
analisa outros negadores: a personagem, a terra, o texto, os quais são,
todavia, reunidos pela memória na medida em que a praia e a língua
podem fornecer um inventário de uma consciência.
Nas Caraíbas, a consciência do passado passa necessariamente por uma contem-
plação da "referência" (acte imageant], imposta por uma redacção estrangeira da
História; por conseguinte, passa não só pela ausência de documentos mas também
pela presença de certos documentos que devem, todavia, exercer a sua função a
fim de voltar a encarrilar a força propulsora da história (e as forças propulsoras de
outras histórias, relacionadas com este aspecto, no limiar de "novas" civilizações
das quais serão todas indubitavelmente beneficiárias no futuro, como é de prever).
(1988, p. 133)

À luz deste contexto, surge uma questão: como narrar o horror e


com que motivo? Com amargura, Glissant observa superlativamente:
"Quem reunir forças e tiver paciência para autopsiar-se a si próprio,
deixará páginas imortais sobre o assunto. A escravatura não deixa
documentos para trás, não deixa uma única imagem coerente de si
própria para a posteridade" (In Cailler, 1988, p. 134).

V. Reprendre 249
Contudo, a memória subsiste, mestre e soberana trabalhando o ma-
terial do passado, designando sujeitos e objectos de desejo. Na escrita
que consegue reflecti-la, torna-se uma proposição de uma vontade
de verdade e de uma história que ainda está para vir. Segundo Cailler,
"Não a obra, mas sim um capítulo de um relato propulsor e instigador,
o texto, pouco a pouco, entre a 'noite' e o 'dia', a 'história' e a 'ficção', o
'referente' e a 'referência' fará com que o leitor vislumbre a identidade
narrativa de um povo em acção. É a construção desta identidade, den-
tro dos seus próprios limites, entre a terra sonhada e a terra real" que
a autora pretende descrever (1988, p. 142).
Neste livro extraordinário, Bernadette Cailler demonstra com êxito o
lugar de ambigüidade onde a caribenidade e a negritude se cruzam.
A recusa em ser reduzido à história do Outro é definida como um para-
doxo: questiona a sua própria criatividade no espaço do Outro, e, em
concomitância, encontra as suas razões na alteridade de uma memória
e experiência que são concebíveis apenas em função do Outro. Esta ar-
madilha desacreditou a negritude. Porém, Cailler garante que o choque
ideológico representado pelo trabalho de Glissant pertence a outra di-
mensão. Apontaria não só para uma rejeição de todos balbúcios mimé-
ticos, mas também para um confronto com um pai (falso). Recorrendo
a uma feliz expressão de Jacques Derrida, este último ocupa "o lugar
da forma, da linguagem formal. Este lugar é insustentável e, nesse sen-
tido, resta-lhe (ao pai) tentar ocupá-lo para efeitos formais, falando
apenas nesta medida a linguagem do pai" (Derrida, 1983, p. 285).
Creio que [escreve Cailler] "a obra [de Glissant] pretende resolver a crise do espaço
psíquico, no qual reside a aventura caribenha do texto, da seguinte forma: um processo
de auto-organização inserido num jogo de sistemas abertos. Esta crise encontra-se
profundamente enraizada na morte dos pais (pais falsos), os produtores de discur-
sos previamente codificados; uma crise em que os discursos do amor são degra-
dados por buracos em todos os lados, e os mitos da filiação se tornam indistintos;
uma crise em que a ligação exige sofrimento, uma receptividade ao imaginário
diariamente. (1988, p. 172)

Não obstante, graças à experiência diária do discurso caribenho ou


africano, à abertura para o faz-de-conta, verifica-se o estabelecimento
de outro reino e de um regime singular: os do poder e do amor dos
avós e, sobretudo da avó, amiúde interpretada e definida como a de-
positária e a matriz da memória da família, do grupo social e da co-
munidade. Além disso, segundo Jung, ela transcenderia o arquétipo da
mãe visto pertencer ao universo das deusas e dos deuses (Jung, 1980,
p. 81). Ao ser, de facto, a mãe da mãe, a avó é a grandiosa, ou seja.

21,6V.Y.MudimbeA Ideia de Africa


a grande mãe que consegue reunir dentro de si o saber positivo
(sabedoria) e o saber negativo (bruxaria). Personificaria todas as fór-
mulas do poder, a par das suas virtudes fabulosas e misteriosas (Jung,
1980, p. 102). Por outro lado, através da "relação de jocosidade",
confirmada nas Caraíbas e em África, a qual liga a avó aos seus netos,
ela significa, sob o signo de representação, a materialização de uma
continuidade escorreita. Nesse sentido, o discurso da avó constitui
uma re-actualização do que foi e do que será novamente, enquanto tes-
temunho e, ao mesmo tempo, jogo da história. Embora esteja consci-
ente deste facto (por exemplo, p. 112), infelizmente, Cailler não deduz
com clareza a conclusão a retirar: o reino da avó corresponde à outra
face da presença do pai (falso ou verdadeiro, pouco importa), cujo poder
é alvo de contestação no sorriso e na memória da avó. No contexto
psicanalítico, é sabido que a evidenciação desta carência de ordem
literal (significante) constitui a essência da cura, conforme sugerido
por Serge Leclaire na sua obra Démasquer le Réel (1971). Por signifi-
cante, Leclaire entende "o fenómeno da estrutura, o jogo de combi-
nação das letras (significantes), que constitui a armadura de todas as
construções representativas (ou significados)." Ademais, "o trabalho
do psicanalista não se destina a viabilizar a sua absorção no jogo
literal (significante) mas trazer para a luz do dia a carência que consti-
tui a sua força propulsora e, em certo sentido, a sua 'causa absoluta'"
(Leclaire, 1971, p. 23).
Miller e Cailler desempenharam de um modo soberbo a tarefa terapêu-
tica de trazer ao de cima o receio da morte e da história que tormenta
a literatura "negra". As análises que apresentam são exemplares, es-
tando à altura da latitude dos textos dos autores a ponto de se identifi-
carem com eles. São merecedores da nossa atenção enquanto modelos
de uma releitura dos escritores caribenhos e africanos.

Terá Dito Filosofia "Africana"?


A tese desenvolvida por Kwasi Wiredu na investigação em curso
sobre a filosofia akan (ver Mudimbe, 1992) engloba três momentos.
Começa por analisar aquilo que considera ser um denominador comum
e subtil em termos conceptuais entre os naturalistas e os seus oposi-
tores na tradição filosófica ocidental, exactamente ao centrar as suas
atenções numa grelha de contrastes (material vs. não-material, natu-
ral vs. não-natural, natureza vs. sobre-natureza). Em segundo lugar, ao
aplicar esta grelha à sua esfera, afirma que nenhum destes contrastes
é inteligível no pensamento akan. Em seguida, realiza um estudo da

V. Reprendre 251
cosmologia akan, concluindo que o pensamento akan é empírico e que
o povo akan acredita que a ordem percorre a criação [ver Mudimbe,
1992). Será que esta conclusão confirma a hipótese geral de Placide
Tempels [1949) sobre a ontologia dos "povos primitivos" ou as teses
principais de Kagame acerca dos Banyaruanda, desde La Philosophie
bantu-rwandaise de l'être [1956) até La Philosophie bantu comparée
[1976)? Em determinados aspectos específicos, diverge dos paradig-
mas de R. Horton [1981) em "African Traditional Thought and Western
Science".
Não pretendo questionar a credibilidade destas teses e hipóteses
que atravessam a análise de Wiredu relativa à mundividência akan.
Gostaria apenas de insistir em três questões de método, a fim de escla-
recer os procedimentos intelectuais que contribuem para a conclusão
de Wiredu e o seu projecto filosófico.
Em primeiro lugar, em que sentido poderemos afirmar que o projecto
de Wiredu veicula a mundividência akan de acordo com uma interpre-
tação apropriada? A título provisório, coloquemos entre parênteses dois
problemas: o instrumentarium filosófico que permite a análise do autor
e a minha crítica, e a noção de descolonização conceptual de Wiredu.
A distinção entre apropriado e inapropriado revela-se útil numa
perspectiva filosófica. Segundo o ponto de vista da filosofia moral, por
exemplo, uma boa leitura significa espremer um entendimento ético
positivo a partir de um conjunto de símbolos, enunciados ou regras
de comportamento. Por outras palavras, o filósofo pode investigar um
sistema cultural e as suas positividades a fim de abordar as seguintes
questões: Por que estamos aqui? Quais as verdadeiras razões subja-
centes às motivações e acções dos Akan? Será a pessoa akan assim e
assado? Por conseguinte, a leitura do significado simbólico ou real se-
ria não só descritivo como também normativo. Por outras palavras,
os valores que o filósofo ganês ou inglês projecta nos dados e na con-
clusão, reflectem, de alguma maneira, um conjunto de pressupostos
iniciais discretos. Por outro lado, em ciência, e mesmo na filosofia, uma
conotação diferente emana da expressão "interpretação apropriada".
Antes da mecânica quântica, os cientistas aceitavam, em regra, as leis
de Newton. Nesse sentido, a obtenção da verdade derradeira dependia
da precisão instrumental, acreditando-se que, com o aperfeiçoamento
dos instrumentos das experiências, o cientista seria capaz de alcançar
a simultaneidade entre imagens reais e virtuais. Em termos metafísicos,
os símbolos que mediavam entre o cientista e os supostos transcenden-
tais desapareceriam, e o cientista veria uma realidade nua, livre. Em
comparação com o filósofo, o cientista newtoniano poderá adoptar
uma posição não-normativa.

21,6V.Y.MudimbeA Ideia de Africa


Existe uma última noção de "uma interpretação apropriada" que se
situa algures entre o cientista social e o filósofo. Encontra-se mara-
vilhosamente exemplificada na obra de Claude Lévi-Strauss, um filó-
sofo de formação e um antropólogo de profissão. Dispondo de tempo
suficiente para analisar e compreender uma cultura estrangeira, um
antropólogo pode, em princípio, traduzir o conteúdo de tudo o que
seja um conjunto de símbolos ou um conjunto de rituais e mitos para
o sistema de grelhas simbólicas e culturais. De qualquer modo, Lévi-
-Strauss, no caso dos ameríndios, e Luc de Heusch, no caso dos africa-
nos banto, defendem que a influência das tendências subjectivas, as
quais complicam necessariamente a tradução do antropólogo, deve
ser aceite como outro reflexo da actividade intelectual, da sua univer-
salidade e, por isso, igualmente merecedora de atenção.
Nesse sentido, a avaliação de uma leitura apropriada ou inapropri-
ada em função da divisão cartesiana entre o subjectivo e o objectivo
deve constituir uma evidência. As proposições de Wiredu devem ser
entendidas no quadro da circulação de um instrumentarium filosófico
pós-cartesiano e na representação por ele pressuposta. A fim de es-
clarecer esta questão, recorrerei à metáfora dos modos à mesa. Um
indivíduo franco-americano, perfeitamente instruído, contou-me a
seguinte história há pouco tempo. Estava ã mesa com a sua família
francesa. Pegou no pão, tirou um pedaço delicadamente e voltou a
colocá-lo na mesa, sem reparar que o tinha deixado virado para baixo,
o que em certos meios franceses é um sinal de desagrado com a refeição
e um insulto para o anfitrião.
Na leitura de Wiredu sobre a mundividência akan, o anfitrião correspon-
de ao akan comum, que, no meu entender, se veria reflectido na inter-
pretação subjectiva de Wiredu acerca da sua própria Weltanschauung.
Espanta-me que Wiredu não proceda a uma distinção nítida entre
saber e pensamento akan no seu projecto. Com efeito, no concernente à
mundividência akan, deve ser possível separar o saber enquanto
"Verstand", ou seja, um conjunto de princípios e normas verificáveis
para o domínio do significado das coisas, do pensamento enquanto
"Vernunft", ou o impulso para o saber. Esta distinção kantiana, ao mes-
mo tempo, clara e implícita na reflexão de Wiredu acerca dos conceitos
de okra e sensum, permitiria explicar a quem pertence a mundividên-
cia apreendida através da análise de Wiredu.
Fazendo referência a outro exemplo, podemos comparar o projec-
to de Wiredu em matéria de identificação da sua subjectividade com
uma cultura ao empreendimento prudente de Henri Maurier, que re-
centemente atribuiu ao seu livro o título de Philosophy of Black Africa
(1976) [Filosofia da África Negra] ao invés de Filosofia Africana Negra.

V. Reprendre 253
Esta distinção permitiu-lhe descrever criticamente o espaço de um
exercício filosófico em relação às práticas africanas da vida quotidiana.
Quanto a mim, o processo, encetado por Wiredu, de apropriação de
significados que definem um presente relativamente a um tempo e a
um espaço designa-se de invenção, nas duas acepções do termo lati-
no: in+venire, indo ao encontro de e, ao mesmo tempo, descobrindo e
apropriando-se daquilo que Michel de Certeau apelidou simpaticamente
de contrato com outro ser. Centremo-nos no maravilhoso "pecado" de
Wiredu e nas suas afirmações sobre um ser determinado, o Ser Su-
premo. Zomba gentilmente da invenção inconsistente de J.J. Maquet
relativa a um deus ruandês transcendente, supostamente incorpóreo.
Estabeleceu uma oposição entre este deus e o deus do pensamento
cosmológico akan, um antepassado idealizado an indefinitum. Ora,
conheci outros deuses incorpóreos, em livros: o do povo Mongo con-
forme descrito por Hulstaert (1980) ou do povo Luba conforme descri-
to por Van Canaeghem (1956). A solução para problema não está - e
receio que não poderá simplesmente estar - na aplicação da oposição
entre seres e fenómenos físicos e quase-físicos. Suponho que, aos olhos
de um sapateiro, podemos realmente indagar sobre o motivo pelo qual
antropólogos competentes como Hulstaert (1980) e Van Canaeghem
(1956), entre outros, forjaram deuses incorpóreos enquanto os estu-
dantes africanos de filosofia - como no caso de Tshiamalenga (1977
a, b e 1980) e Wiredu - exibem uma tendência para detectar apenas
um modelo antropocêntrico de deuses africanos. Estou ciente de que
podemos invocar a exigência do rigor e da consciência epistemológica.
Porém, gostaria de poder compreender a inconsistência metodológica
de Aléxis Kagame (1956, 1976), que optou por arriscar e construir a
sua filosofia com base num corpus linguístico, evidenciando ainda uma
concórdia notável com os antropólogos. Sobre esta matéria, afigura-se
importante levantar a seguinte questão: qual o motivo da nossa re-
lutância em acompanhar e confiar nos antropólogos? Provavelmente,
Kagame era mais uma espécie de antropólogo do que um metafísico.
Por outras palavras, pela honra dos povos akan, inscreveria, na
esteira de Foucault, o discurso filosófico nas suas próprias margens
obrigando-o a enfrentar práticas discursivas de carácter não-filosófico
- trata-se da minha segunda questão relativa ao método. Como possível
exemplo, podemos invocar a manipulação levada a cabo por Clifford
Geertz da noção de "descrição densa" de Gilbert Ryle. Eis o tema:
A piscadela é simplesmente a contracção mecânica de um olho. Porém, contrair um
olho pode não ter qualquer significado ao passo que uma piscadela, mecanicamente
idêntica, implica a iniciação de algum tipo de conspiração. Outra possibilidade é a de

21,6 V.Y. Mudimbe A Ideia de Africa


alguém piscar o olho de um modo exagerado para parodiar o(a) seu (sua] amigo(a),
após constatar uma tentativa de piscadela discreta por parte desse(a) amigo(a).
Como consequência, a acção mecânica de contrair um olho adquire outro signifi-
cado. A descrição densa exige ao etnógrafo a capacidade de interpretar a distinção
entre todas as contracções diferentes com base na função que desempenham num
dado contexto. (Geertz, 1973].

Após esta celebração da antropologia, importa esclarecer que não


sou um empirista. Encaro o empirismo com bastante desconfiança, na
medida em que constitui uma espécie de simplificação do fenómeno
sobre o qual comenta. Em termos concretos, a afirmação de que a cos-
mologia akan é aquilo que não é afigura-se válida, pese embora a
expressão aparentemente ambivalente. Com efeito, na minha óptica,
corresponde a um discurso produzido por uma multiplicidade de seres
que se destina a esses mesmos seres. Além disso, em sentido estrito e
recorrendo ao vocabulário sartriano, estes seres não podem ser apenas
aquilo que são. A sua redução ao estatuto de um vago ser-em-si, tal
como o fazem os etnofilósofos comuns, constitui uma impossibilidade.
Por outras palavras, é meu profundo desejo que Wiredu pudesse pro-
nunciar-se com maior clareza a partir da sua própria localidade exis-
tencial como sujeito. De um modo mais abstracto, diria que o Cogito
representa um modo de pensamento radical e consciente de si mesmo,
passível de ser desenvolvido num discurso em que a auto-invenção e
as suas ramificações se podem tornar esquemas da ciência social.
Insisto, por conseguinte, num paradoxo, e trata-se da minha última
questão de método, a qual remete para a mediação linguística: Wiredu
fala uma "língua britânica". Estou a lê-lo em "francês". Quais as conse-
quências para a mundividência akan em particular e para a filosofia
"africana" em geral? O conceito de alienação referido na sua exortação a
uma descolonização conceptual pode ser utilizado a propósito do nosso
diálogo complexo. Porém, talvez seja uma armadilha maravilhosa.
Aquilo que está em jogo parece ser uma questão de método, sobretudo.
Segundo creio, esta resume-se às nossas próprias escolhas subjectivas
para pensar a prática filosófica em África. Assim, o nosso desacordo
testemunha as nossas próprias convicções: a filosofia enquanto pensa-
mento crítico, mesmo sobre os Akan, só pode ser antidogmática pois,
tal como afirmado outrora por um colega, constitui sempre uma luta
contínua pelo significado, necessariamente insegura, incerta e, por isso,
resistente a todos os resultados e axiomas, até os seus.
Actualmente, exerço as funções de editor-chefe de uma enciclopédia
de religiões e filosofia africanas na qual Wiredu assume um papel
predominante, o que me vinculou ao próprio conceito de filosofia

V. Reprendre 255
"africana". Permitam-me que reformule esta ambição de praticar
filosofia em África; ou, mais especificamente, a ambição dos filósofos
que por acaso são negros. De facto, resta-me somente aludir à minha
própria experiência e, portanto, à minha própria subjectividade.
Um colega africano na École Pratique des Hautes Études en Sciences
Sociales de Paris tem trabalhado, há alguns anos, como editor no pro-
jecto de uma enciclopédia de culturas africanas. Em virtude do seu
âmbito e da sua ambição, o empreendimento traz à memória duas
colecções históricas de proporções monumentais: a Cambridge History
ofAfrica composta por vários volumes (1975) e a colecção da UNESCO.
No domínio da literatura, Ambroise Kom, dos Camarões, editou re-
centemente um dicionário enciclopédico de literatura africana. Neste
momento, nos Estados Unidos, Ruth Stone está a editar uma enciclopé-
dia de música africana na Universidade de Indiana, que irá concorrer
com outro projecto da mesma natureza apoiado pela UNESCO; e John
Johnson, também da Universidade de Indiana, está a editar uma enci-
clopédia de folclore africano. Quando, há quatro anos, recebi o convite
da Garland Publishing Company para assumir o cargo de editor-chefe
de uma enciclopédia de religiões e filosofia africanas, pensei em ga-
rantir a colaboração de académicos conceituados nos domínios das
humanidades africanas, das ciências sociais e da teologia. De entre as
personalidades por mim contactadas estava John Middleton, Profes-
sor Emérito de Antropologia da Universidade de Yale, a quem dirigi
um convite para integrar o conselho editorial. Na sua resposta infor-
mou-me de que aceitava participar no projecto e que, em princípio,
seríamos concorrentes pois estava a desempenhar as funções de edi-
tor-chefe de uma enciclopédia da Simon and Schuster sobre a África
Subsariana.
Obviamente que algo estava a acontecer e, a meu ver, tratava-se de
uma situação simultaneamente paradoxal e interessante. Todas es-
tas enciclopédias estavam dotadas de um determinado significado
em termos de uma reavaliação do nosso saber sobre África, e de uma
produção de um saber novo e actualizado. O acontecimento afigura-se
surpreendente se tivermos em linha de conta um conjunto de factores:
a recessão; o número limitado de africanistas comparados ao exército
de especialistas sobre a civilização europeia; a crise e os orçamentos
reduzidos dos centros e programas de estudos africanos e afro-ameri-
canos. O paradoxo assume a forma de uma pergunta - ou melhor, sus-
cita uma série de perguntas: a) Como explicar a presente ocorrência
de investimentos económicos e financeiros desta natureza? b) Que
tipo de urgência exigiria um esforço destes? c) Será possível aventar
que determinados editores se transformaram, qual milagre, em servos

21,6 V.Y. Mudimbe A Ideia de Africa


laboriosos do saber a ponto de promoverem, ou melhor, de tentar con-
ferir visibilidade a uma nova vontade de verdade que alguns de nós
poderíamos reportar às tendências responsáveis pela organização dos
nossos domínios de actuação desde finais da década de 1940 e inícios
da década de 1950? Com intuito de mencionar apenas alguns nomes
nos estudos africanos, penso em antropólogos e sociólogos como
Mareei Griaule, Georges Balandier, Luc de Heusch e Victor Turner; his-
toriadores como Catherine Coquery-Vidrovitch, Joseph Ki-Zerbo, Jean
Suret-Canale e Jan Vasina; filólogos como Alain Bourgeois, Engelbert
Mveng, e Frank Snowden; teólogos como Henri Gravrand, John Mbi-
ti e Vincent Mulago; filósofos como Placide Tempels, Alexis Kagame,
Frantz Crahay, Paulin Hountondji; e, claro, de ideólogos como Cheikh
Anta Diop, Jomo Kenyatta, Kw^ame Nkrumah, Julius Nyerere, Jean-Paul
Sartre e Léopold Sédar Senghor.
Deveremos acreditar num milagre? Como explicar o interesse, a
dedicação e a generosidade dos editores? Uma vez que, por formação
e vocação, recusamos milagres [Timeo Danaos et dona ferentes), nos
Estados Unidos, a maioria de nós, editores-chefes de enciclopédias
africanas, optámos pelo princípio da colaboração, em detrimento da
regra capitalista da concorrência: consultamo-nos uns aos outros so-
bre os nossos projectos, trocamos informações e até integramos os
nossos respectivos conselhos consultivos.

Questões de método, questões de filosofia


Na qualidade de editor-chefe da enciclopédia de religiões e filosofia
africanas, deparo-me, mormente, com três pesadelos, a] Problemas de
cariz intelectual e ideológico. Como organizar este novo saber sobre
as religiões e a filosofia africanas? Ademais, como separar, neste cor-
pus, os saberes africanos (saber em geral) dos conhecimentos (saber
organizado em disciplinas e devidamente especificado - por exemplo,
matemática, geografia ou filosofia)? b) Problemas de história e episte-
mologia, na acepção particular descrita e ilustrada por Louis Althusser
a respeito de Marx. A título exemplificativo, como passar de uma
generalidade um, que constitui o êxtase de uma confusão na qual a
ciência e a ideologia se misturam, para uma generalidade três, ou uma
nova ciência ou um novo saber, graças à generalidade dois, ou uma
ciência prática e crítica? Permitam-me que esclareça este ponto. A
prática "etnofilosófica" na filosofia africana (ou seja, a convicção de que
existe "lá fora", na vida quotidiana, uma filosofia implícita susceptível
de ser revelada por um observador atento através do recurso a um

V. Reprendre 257
instrumentarium filosófico rigoroso), conforme realizada por Placide
Tempels e os seus discípulos, demonstra um culto da diferença desidioso
mas sincero. Ao reconhecer este facto, creio que poderemos inscrever, na
enciclopédia, este momento e a sua ingenuidade na história da filosofia
africana da mesma forma com que consideramos os pré-socráticos os
antepassados da filosofia grega, c) Por fim, problemas de ordem filosó-
fica, os quais já foram mencionados.
Deverei sublinhar que a filosofia, na acepção grega da sua génese
e no verdadeiro significado da sua tradição, assim como nas suas práti-
cas contemporâneas, se define a si própria como saber e disciplina, da
mesma maneira como nós entendemos a história, a economia, a astro-
nomia e a botânica enquanto saberes? Todavia, corresponde também a
muito mais do que esse tipo específico de saber determinado. Podemos,
por exemplo, pensar na definição metafórica da filosofia como uma ár-
vore, apresentada por Descartes. Não poderemos contemplar a possi-
bilidade de considerar a filosofia como aquele discurso susceptível de
transcender dialogicamente três níveis complementares, remetendo
para o trabalho de Paul Ricoeur: a) o nível dos discursos e das interpre-
tações dos acontecimentos fundadores de uma cultura; b) o nível de
discursos de peritos que realizam práticas disciplinares ou, por outras
palavras, aquilo que pode ser considerado como discursos científicos; c)
por último, um terceiro nível, designadamente o da filosofia. Que fique
bem claro: por filosofia, entendo um discurso explícito, crítico, autocríti-
co e sistemático assente na linguagem e na experiência do primeiro e
do segundo níveis, com os quais não se funde, apesar de não se verifi-
car uma relação totalmente autónoma, porquanto foram esses mesmos
níveis que tornaram a filosofia possível e concebível inicialmente.
De facto, podemos indagar acerca dos princípios metodológicos basi-
lares que organizariam não apenas as religiões e a filosofia africanas na
sua economia geral como também a tabela de entradas, o seu número,
as variações em termos de extensão, além da sua complementaridade.
Seleccionei dois princípios essenciais: quanto ao primeiro, caracteri-
za-se por ser clássico e inspirado na obra centenária, French Vocabu-
laire technique et critique de la philosophie, comummente designado
de Laiande (o nome do seu primeiro editor) nos círculos francófonos.
O princípio estipula o seguinte: apresentar descrições semânticas que
esclarecem um determinado conceito, evitando em absoluto qualquer
confusão, erro ou sofisma. As definições deveriam estar cultural e his-
toricamente fundamentadas. Com efeito, citando Laiande novamente
numa alusão a Schopenhauer, a filosofia que afirma estar desprovida
de apriorismos constitui um charlatanismo filosófico. No meu caso,
devo reconhecer dois a priori: um etnográfico e outro técnico.

21,6 V.Y. Mudimbe A Ideia de Africa


Nas suas duas acepções, a filosofia africana (enquanto uma disciplina
crítica, autocrítica e sistemática e uma Weltanschauung) remete
obrigatoriamente para contextos etnográficos e, conforme sublinhado
noutra ocasião, a um contexto epistemológico que distingue saber de
conhecimento. Numa nota à sua tradução inglesa de A Arqueologia do
Saber, do falecido Michel Foucault, M. Sheridan Smith realça que "o
termo inglês 'knowledge' corresponde à tradução dos termos franceses
'connaissance' e 'savoir'. Connaissance indica [...] a um determinado
corpus de conhecimento, a uma determinada disciplina - biologia ou
economia, por exemplo. Ao savoir, normalmente definido como o
conhecimento em geral, a totalidade de connaissances, Foucault con-
fere uma dimensão subjacente em vez de global." Tornando esta dife-
renciação ainda mais complexa, Foucault especifica que "por connais-
sance, refiro-me à relação do sujeito ao objecto e às regras formais
que a regem. Savoir corresponde às condições necessárias num dado
período para que este ou aquele tipo de objecto seja dado ao connais-
sance, e para que este ou aquele enunciado seja formulado" (1982, p.
15], No fundo, a distinção no francês advém da divisão de duas áreas
conceptuais bem-definidas nas línguas românicas. O savoir em francês,
por exemplo, equivale ao espanhol saber e ao italiano sapere. Signifi-
cam 'possuir o conhecimento de, ser capaz de, ter consciência de'. Por
outro lado, connaissance, um substantivo relacionado com o verbo con-
naître, tem como equivalentes conocimiento e conocer em espanhol, a
par de conoscenza e conoscere em italiano, cujos significados básicos
são "saber, distinguir, fazer ideia ou ter noção de."
O segundo a priori, de cariz técnico, emana das directrizes de André
Jacob presente na sua Encyclopédie philosophique, publicada recente-
mente. Afigura-se estritamente organizacional: a) apresentar um máxi-
mo de entradas conceptuais dentro de um espaço mínimo e, ao fazê-lo,
respeitar os requisitos em matéria de inteligibilidade e eficiência intelec-
tual; b) alcançar uma distribuição racional entre o clássico e o contem-
porâneo, o conhecido e o desconhecido da tradição filosófica. Neste pon-
to, recordo-me do desejo de Michel Foucault emy4 Ordem do Discurso: se
a filosofia deve iniciar-se como discurso absoluto, o que acontecerá no
caso da história, e que início é este que começa com um indivíduo singu-
lar, numa sociedade e numa classe social, no meio de uma luta?" Ambos
os princípios são já, em si, programáticos e manifestam alguns dos as-
pectos mais complexos com que me vi confrontado: a) a universalidade
de determinados conceitos (finitude vs. infinitude, bem vs. mal, etc.); b)
a pertinência de comparações baseadas em textos traduzidos; c) o con-
ceito de etnocentrismo como uma marca da incomensurabilidade entre
textos e culturas, e ainda como uma interrogação. Frisando este último

V. Reprendre 259
ponto: nós, todos nós, falamos e analisamos as situações a partir de um
dado local, e contestar este facto em específico já constitui por si uma
questão importante. Uma solução simples seria considerar a prática
concreta da etnografia.

A filosofia e a prática da etnografia


The Missionaty and the Diviner, de Michael C. Kirwen (1987), consti-
tui uma ilustração exemplar e perturbadora. Na sua introdução
ao livro, Laurenti Magesa observa que este "aborda o que será, por-
ventura, uma das preocupações mais centrais da teologia africana nos
dias de hoje. Numa perspectiva cristã, qual o valor da automanifesta-
ção divina pré-cristã em África?" (Kirwen, 1987, p. vii). Trata-se de um
livro inserido na problemática da teologia africana da enculturação.
Michael C. Kirwen, um missionário Maryknoll na Tanzânia desde 1963,
relata a sua experiência pessoal, escrevendo o seguinte:
Vivo em África, como missionário, há mais de vinte anos e ao longo desse período
os meus amigos africanos imprimiram em mim marcas e alterações profundas. Não
me "converti" a uma religião diferente do Cristianismo, mas, graças aos seus ensi-
namentos, passei a compreender e a viver a minha religião de um modo diferente e
mais pleno. Na verdade, muitos dos meus amigos africanos converteram-se ao Cris-
tianismo; sentir-me-ia envergonhado se isso não implicasse um aprofundamento
da sua estima pelas suas próprias crenças africanas visando o seu aperfeiçoamento
humano. (1987, p. xiv).

O livro em questão corresponde a uma ferramenta pedagógica: uma


introdução às práticas missionárias em África no tempo presente.
Kirwen enceta uma conversa com um médico adivinho-bruxo sobre
certos temas como a ideia de Deus, a fonte do mal, a adivinhação, a
recordação ou a ressurreição, entre outros. Os diálogos são contextu-
alizados e privilegiam uma epistemologia explicitamente pluralista,
procurando seguir "o estilo conversacional [...de] um adivinho Luo
da Aldeia de Nyambogo na região de Mara Norte, Tanzânia" (Kirwen,
1987, p. xxv). Contudo, estamos perante uma montagem: "o adivinho
presente no livro é uma figura composta", mas "os locais e as cenas
patentes no livro são descrições de sítios e acontecimentos reais."
"Além disso, as conversas apresentadas [...] são inspiradas em dis-
cussões verdadeiras; não são inventadas" (Kirwen, 1987, p. xxiv). Por
outro lado, importa notar que o autor insiste na singularidade do seu
método dialógico:

21,6 V.Y. Mudimbe A Ideia de Africa


[As] palavras, apreciações e observações [do adivinho] foram retiradas de sessões
de investigação importantes que realizei - juntamente com os meus estudantes e
informadores africanos - contando com a participação de vários líderes religiosos
africanos durante um período de 10 anos, entre 1974 e 1984.
Os comentários incluídos em cada capítulo visam definir os aspectos e dilemas per-
tinentes suscitados pelas conversas, os quais se afiguram relevantes para os cristãos
do mundo ocidental. Uma reflexão desta natureza representa um tipo de missão
inversa na qual a teologia africana tradicional desafia, critica e enriquece a teologia
cristã ocidental. (Kirwen, 1987, pp. xxiv-xxv).

A obra recebeu elogios na Tanzânia. Segundo Joseph T. Agbasiere do


Centro Pastoral Gaba, "trata-se de um livro devidamente fundamenta-
do (...) cuja leitura é recomendada a todos os agentes pastorais sérios
e teólogos transculturais". B. A. Rwezaura, da Universidade de Dar es
Salaam, por seu turno, acrescenta que "Kirwen conjugou habilmente
um conhecimento profundo sobre a teologia cristã, os vários anos em
que trabalhou produtivamente como pastor na Tanzânia e uma busca
sistemática e incansável por explicações empíricas para a coexistência
intricada entre o Cristianismo e as religiões indígenas africanas."
A nossa tendência seria confiar nestes especialistas apesar de o mé-
todo utilizado por Kirwen retirar a sua força de técnicas concordistas
que parecem confundir os documentos da revelação, o vouloirdire, ou a
mensagem dos deuses, atribuídos a duas tradições radicalmente dife-
rentes, e o vouloir dire, ou o significado apreendido, que funda as cren-
ças de Kirwen e dos seus colegas africanos. Seja como for, a montagem
deu origem a um ensaio que, na realidade, é ficcional. Poderia ter sido
igualmente transformado num romance, e a sua credibilidade e o seu
gládio sairiam intactos. Com efeito, tanto o ensaio quanto o potencial
romance situar-se-iam num ponto de cruzamento entre as crenças
e práticas religiosas e sociais africanas, e a imaginação poética e as
técnicas teológicas de Michael Kirwen. Partindo de uma perspectiva
estritamente etnográfica, creio ser possível, em princípio, apreender
e descrever em qualquer sociedade as ligações e as formas de articu-
lação existentes entre o pensamento (/e pense) e o formulável, entre
aquilo que foi pensado e aquilo que foi ou pode ser formulado, e a sua
relação com aquilo que foi exteriorizado e deve ser observável em tra-
ços socio-históricos. Uma análise desta natureza permite classificar e
explicar a inteligibilidade dos comportamentos, face a representações
culturais localizadas e, assim, na verdadeira tradição da antropologia
cultural, descrever redes autóctones de saberes e conhecimentos
locais. IVlonografias recentes e inteligentes ilustraram este ponto de
um modo brilhante, de entre as quais citarei três: West African Sufi:

V. Reprendre 261
The Religious Heritage and Spiritual Search ofCerno Bokar SaalifTaal
(1984), de Louis Brenner, que corresponde a uma exploração da "de-
manda espiritual de Cerno Bokar" e, nas palavras de Brenner, "um es-
tudo sobre a interacção entre, por um lado, a influência do seu ambiente
social e religioso e, por outro, a sua ânsia pessoal de encontrar a 'Ver-
dade'"; Social Facts and Fabrications: 'Customary' Law on Kilimanjaro
1888-1980 (1986), que, no fundo, versa sobre lacunas e descontinui-
dades entre "a lei praticada na vida de um povo (os Chaga) e a lei prati-
cada nos tribunais"; e Moral Imagination in Kaguru Modes of Thought
(1986), que reúne a prática da vida quotidiana, as representações e os
procedimentos dos Kaguru para a formação de conceitos morais.
Apesar de, à semelhança das línguas românicas, distinguir entre os
conceitos de "pensamento" e "conhecimento", a língua inglesa, no que
se refere ao último, não separa os valores especializados de dois con-
juntos complementares de conceitos: por um lado, savoir, saber, sapere,
e por outro, connaître, conocer e conoscere. É possível imaginar o meu
problema. Trata-se de uma questão fulcral no que diz respeito à enci-
clopédia. De facto, verifica-se a oposição de duas ordens conceptuais,
seja de uma forma implícita ou explícita. A primeira, provavelmente a
ordem mais visível, refere-se a, e articula, análises históricas e antropológi-
cas sobre as transformações que proporcionaram uma nova geografia
continental e promoveram novos sistemas de saberes e conhecimento
em África, sobretudo a partir do contacto com o Ocidente. Estas no-
vas sequências enfrentaram, despedaçaram ou simplesmente desar-
ticularam formas e práticas antigas do conhecimento. O facto de estas
formas consideradas "tradicionais" não terem desaparecido deve ser
óbvio ao atentarmos nas contradições actuais que existem por todo
o continente, sobretudo entre os processos de produção e as relações
sociais de produção, entre a organização do poder e da produção e,
por outro lado, os discursos políticos. Com efeito, as culturas africanas
dispuseram e dispõem de saberes e conhecimentos próprios, os quais
estão inscritos em, e dependentes de, tradições. Todavia, creio que se-
ria ilusório encetar em busca por tradições africanas originárias, puras
e definitivamente fixas, mesmo no período pré-colonial. A propósito
da herança africana [Consciencism, 1960), era o entender de Nkrumah
que a experiência colonial e o seu poderoso legado exemplificavam
algo que, em termos de conhecimento e experiência, ocorria desde
séculos, designadamente aquilo que os franceses designam de métis-
sage (miscigenação), na acepção desenvolvida por Jean-Loup Amselle
recentemente na sua obra La Raison Métisse (1990). A realidade das
miscigenações desafia a ideia de tradição enquanto essência pura
que testemunha o seu próprio ser originário. Na sua obra Paths in the

21,6V.Y.MudimbeA Ideia de Africa


Rainforests: Toward a History of Political Tradition in Equatorial Africa
[1990), Jan Vasina demonstrou recentemente e de um modo convin-
cente que as tradições não são fixas: constituem, de facto, continuidades,
mas também descontinuidades; são "processos", "desenvolvimentos
únicos que emanam de princípios básicos e estáticos." Em suma, con-
forme explicado por Jan Vasina:
as tradições são processos que se regulam a si próprios. São compostas por um cor-
po colectivo mutável e herdado de representações cognitivas e físicas partilhadas
pelos seus membros. As representações cognitivas são o núcleo porquanto infor-
mam a intelecção do mundo físico e elaboram inovações, com o intuito de atribuir
um significado a circunstâncias mutáveis no reino físico, concretizando-o em ter-
mos dos princípios orientadores da tradição. Essas inovações, por sua vez, alteram
a substância do próprio mundo cognitivo. [Vasina, 1990, pp. 259-60]

Por conseguinte, só podemos estar dispostos a reconhecer descon-


tinuidades históricas e intelectuais, rupturas sociais e negociações
políticas das tradições africanas. As formações discursivas em África
ou noutro local não constituem genealogias escorreitas de saberes e
conhecimento, oferecendo antes tabelas de dissensões de ordem in-
telectual e epistemológica que demonstram aculturações fabulosas.

Uma prática africana da filosofia


Em nome da filosofia, ou melhor, em fidelidade à prática rigorosa da
disciplina, o meu colega e amigo Kwasi Wiredu, do Gana, tem vindo
a questionar, ao longo dos últimos anos, a concepção do universo
advogada pelos Akans. O seu argumento primacial assenta em três as-
pectos. Em primeiro lugar, procede à separação entre os naturalistas e
os seus opositores na prática filosófica ocidental, o que, logicamente,
postula interpretações antagônicas acerca de determinadas dicotomias
binárias, tais como natural versus não-natural, material versus não-ma-
terial, natural versus sobrenatural, etc. Em segundo lugar, a partir das
deduções resultantes da análise anterior, Wiredu pode afirmar que es-
tas oposições não são inteligíveis na concepção akan. Todavia, contrari-
amente à afirmação de Wiredu - também ele um filósofo de formação
ocidental - tecem comentários e fornecem explicações a seu respeito
aos seus companheiros akan e a todos nós, e em nome da filosofia, ale-
gam transcender pelo menos duas tradições, a ocidental e a sua própria.
Por fim, centrando-se na cosmologia akan, Wiredu descreve as suas
características principais: trata-se de um conjunto empírico baseado

V. Reprendre 263
na crença de que existe uma ordem inerente à criação. Com efeito,
podemos interrogar-nos sobre se esta ordem não constitui uma modelo
reconstruído de uma proto-prática que Wiredu pensa ter encontrado
na sua investigação. Ao longo do seu projecto, evita com prudência uma
diferenciação clara entre saber e pensamento, apesar de referi-la na ten-
são que forja entre okra e sansum, na qual, ingenuamente, tenderia a
identificar a oposição kantiana entre Verstand e Vernunft.
A prática filosófica de Wiredu ou da enciclopédia desafia os limites
que circunscrevem os conhecimentos, as suas migrações e as suas
capacidades de alteração e transformação das memórias. Desde que
comecei o meu trabalho no projecto da enciclopédia, fui inundado pela
certeza de ser "colonizado" por três tipos principais de conhecimentos
antigos. O primeiro corresponde a um conhecimento {saberes e conhe-
cimentos) que depende de um poder político: expande-se "em nome
do Pai, do Filho e do Espírito Santo"; ou, segundo a revelação absoluta
do Corão: esta é a Palavra de Deus ao Seu Profeta. No âmbito dos es-
tudos de Pierre Bourdieu, trata-se de um conhecimento que maximiza
a riqueza material e simbólica dos profetas e dos missionários. O se-
gundo tipo é de natureza genealógica: por que motivo devo remontar
a Platão ou Santo Agostinho para abordar a história intelectual das
culturas africanas? O que me leva ao último tipo de conhecimento que
me afronta: em termos metodológicos, caracteriza-se por ser secular
e, por definição, utilizável devido à sua eficiência e às moralidades dos
seus efeitos no meu pensamento. Refiro-me, por exemplo, ao conheci-
mento de disciplinas como a antropologia e a história.
Para mim, a totalidade destes conhecimentos parece funcionar como
uma ficção. Serão reais? Em todo o caso, a meu ver, apresentam uma
natureza idêntica à dos mitos magnificamente analisados por Luc de
Heusch na sua obra The Drunken King [1982]. Todavia, não consigo
imaginar a enciclopédia que estou a dirigir sem eles. Em The Practice
of Everyday Life [1984], Michel de Certeau observou com propriedade
que "o postulado antigo da invisibilidade do real foi substituído pelo
postulado da sua visibilidade. O panorama sociocultural moderno
refere-se a um "mito". Este panorama define o referente social através
da sua visibilidade [e, portanto, da sua representatividade científica
ou política]; articula sobre este novo postulado [a convicção de que o
real é visível] a possibilidade do nosso saber, das nossas observações,
das nossas demonstrações e das nossas práticas".
Nesta obra, procurei explicar que a desordem epistemológica e in-
telectual representada pela minha leitura também constitui, efectiva-
mente, uma questão política. O saber articulado na futura enciclopé-
dia testemunhará uma vontade de verdade e, como tal, pode ser desde
logo pleiteado.

21,6 V.Y. Mudimbe A Ideia de Africa


Coda
On demandait à Socrate d'où il était. 11 ne répondait pas:
d'Athènes; mais: du monde. Lui, qui avait son imagination plus
pleine et plus étendu, embrassait l'univers comme sa ville, jetait
ses connaissances, sa société et ses affections à tout le genre
humain, non pas comme nous qui ne regardons que sous nous.

- Montaigne, Essais, 2, p. 26

São estas as histórias para os meus filhos. Podem afigurar-se difí-


ceis, mas na realidade não o são. Tudo depende do modo como são
contadas. Poderão perguntar-me: porquê estas e não outras? E por
que motivo reduzi, de facto, a um parecer subjectivo a complexidade
dos significados possíveis inerentes aos vários capítulos? Quererá isto
dizer que a minha reflexão optou claramente por não ir além deste
exercício e, no que se refere à prática dos estudos africanos, quais as
suas implicações, sobretudo quando realizada por um africano?
As minhas histórias contêm vazios. Afigura-se evidente o facto de
ter organizado temas e motivos, períodos históricos e discursos com a
finalidade de transmitir aos meus filhos, e aos elementos da sua gera-
ção que leiam estas páginas, aquilo que, no meu entender, constitui a
dimensão mais importante de uma alienação e o exercício das suas for-
mulações. Em caso de embate contra um oponente que, explorando os
meus maiores pesadelos, argumentasse, por exemplo, na voz do inimigo
invisível de Michel Foucault, que "é como se tivesse utilizado, em vez de
um trabalho empírico e sério [...], dois ou três temas que, na verdade,
constituem extrapolações em vez de princípios necessários," diria o
seguinte: ao falar aos meus filhos, tenho falado comigo próprio; tenho
reflectido sobre alienações, e as interpretações que as viabilizaram em
"linguagens" reais e concretas; o meu empreendimento baseou-se na
recuperação das lições aprendidas com personalidades pertencentes a
uma geração anterior à minha, entre as quais, o meu antigo professor,
Willy Bal, Emérito da Universidade da Lovaina, a quem também dedico
a presente obra. Na minha própria acção de contar histórias, incorporo
efectivamente um desejo silencioso: falando como que em suspenso

Coda 265
entre discursos passados e o silêncio de uma promessa, optei por não
excluir associações (em termos de analogias possíveis) e muito me-
nos impor uma genealogia intelectual (em termos de interpretação
de tradições e idéias; analisando, deslocando, expondo e resistindo a
este passado; estas idéias nas quais as genealogias, por sua vez, se
reflectem).
Suspenso entre, e alheio a, dois momentos - na realidade, o meu pas-
sado e o meu depois - tinha consciência de que poderia evidenciar
com rigor o tema kantiano da permanência e, nas contradições do meu
compromisso metodológico, me identificar com todas as perguntas
que, ad vallem, poderiam incidir sobre aquilo que Willy Bal tem en-
frentado há anos.
Na sua comunicação de 9 de Junho de 1990, dirigida à Academia
Belga, sobre "Confidences d'un Wallon 'wallonnant' et 'tiers-mondi-
aliste'", Willy Bal glosa sobre a prática da sua disciplina através de
uma reflexão a respeito da sua vida e do seu meio humano, expondo
uma análise que, para muitos, poderá funcionar como uma ilustração
da fusão entre o Mesmo e o Outro, graças a uma vontade consciente
de reunir numa afinidade memórias aparentemente diferentes e até
antagônicas.
Vejo todos estes homens despojados da sua humanidade, sendo, em seguida, regis-
tados e considerados meros "bocados de ébano". Ouço o Grande Rei Cristão a lançar
as suas embarcações numa conquista "de almas e especiarias". O velame carnal das
almas pode ser exaurido pelo escorbuto e pela disenteria, pois, em todo o caso, a
alma beneficia da salvação pela graça do baptismo. Porém, as especiarias devem
chegar em segurança ao porto, com o seu sabor garantido, prontas para desencalhar
o tesouro real. Ilha da Goreia: o pôr-do-sol sobre um mar agitado, contemplado
por entre as grades da clausura. Quem contará, um dia, o segredo ou desespero
penetrante daqueles corações de madeira de ébano?
Percorro assim a esterilidade dos registos, dos arquivos, das relações, da história,
que evidenciam uma acentuada reserva face aos "pequenos" numa tentativa de
decifrar o palimpseste dos camponeses. Contudo, tacteio igualmente na matéria
viva das minhas próprias memórias, daquilo que vi, ouvi e vivi.
Tenho a felicidade de dispor de duas memórias: uma imediata, próxima, crua, for-
jada pela experiência, incrustada, por vezes, como dolorosos depósitos de cálcio
nos meus ossos, nas minhas articulações, nos meus músculos, nas minhas mãos; a
memória de um pastor, um lenhador, um ceifador, um cativo, um camarada.
E depois uma memória profunda, distante, celular, uma memória do salmão a na-
dar contra as correntes e sobre as represas até alcançar as águas da desova, uma
memória secreta amarrada a uma pedra de calcário, decifrando o sussurro da água
subterrânea que irriga os meus genes.

2/,8 V.Y. Mudimbe A Idéia de África


Sigo em frente, desta forma, reconstruindo um Terceiro Mundo global, do Norte e
do Sul, do passado e do presente, das nossas aldeias e dos longínquos quilombos da
Amazónia, das tradicionais aldeias de cabanas, das favelas, dos musseques, desde a
minha terra natal de Odrimont até à Bahia de todos os santos [e de todos os peca-
dos), tão cara a Jorge Amado.
Todos estes camponeses, com ou sem terra, apegados ou arrancados da terra, cos-
tumavam falar, e ainda falam. Alguns, os enraizados, têm, até hoje (ou tiveram, até
muito recentemente), como único meio de comunicações diárias as suas línguas
tradicionais, locais e regionais. Em regra, estes sistemas comunicacionais não são
legitimados pelos poderes vigentes e, por essa razão, não recebem a designação de
língua. Outros, os imigrantes desenraizados e errantes, pessoas que procuram um
meio de sobrevivência, são obrigados a encontrar uma forma de comunicar com
humanos dotados de uma superioridade económica, militar e técnica. As línguas
pidgin correspondem ã economia dos balcões coloniais do litoral, das transacções
puramente comerciais. A economia da plantação, assente primeiro na escravatura e
na miscigenação, ditou o surgimento do chamado crioulo vernáculo. A colonização
e o neocolonialismo da era moderna travaram conhecimento com outras línguas e
culturas de poder e prestígio desiguais, cujo resultado é a interferência linguística,
tal como verificada na África Negra. Outro resultado consiste em coordenar uma
aproximação dos meios de comunicações quando a necessidade e a urgência de
comunicar transcendem largamente as possibilidades de aprendizagem. Daí o nas-
cimento do français-tiraillou, petit nègre ou do pretoguês de Luanda. Por vezes,
verifica-se a formação subsequente de uma língua intermediária, de que é exemplo
o francês "popular" da Costa do Marfim.
Em suma, a variedade desempenha, no seu todo, um papel, esse mosaico de línguas
de todas as proveniências e de todas as funções, as quais, segundo as latitudes e os
continentes, eram comummente designadas por autores franceses sinceros de sécu-
los anteriores através de fórmulas tão sintéticas quanto simétricas e desprovidas
de encanto: "o patoá dos selvagens, o patoá dos negros, o patoá dos camponeses."
O competente filólogo, J. Marouzeau, definiu a palavra "patoá" (que, como nota, é
específica do francês não tendo um equivalente exacto em nenhuma outra língua
europeia que seja do meu conhecimento) nestes moldes: "Este termo designa, em
regra, as línguas locais utilizadas por uma população considerada inferior àquela
que representa a língua comum e circunjacente."
Era isto que vos estava a dizer: selvagens, negros e camponeses... (Bal, 1990, pp.
112-14).

Partindo desta formulação magnífica de Willy Bal, poderei afirmar


simplesmente que o presente livro assenta numa construção para a
qual tendi através de enunciados e descrições de uma "ideia" polis-
sémica de África, convencido de que as suas interpretações (no colo-
nialismo, por exemplo] não coincidem com a complexidade das regras

267
da sua formação. Isto se, de facto, após Bal, aceitarmos o rigor de con-
ceber a diferença com seriedade e nos submetermos às exigências tan-
to de uma análise regressiva quanto de um confronto e acompanha-
mento das figuras constritivas desta idéia até aos nossos dias. Procurei
demonstrar e definir a formação desta idéia e a sua complexidade,
sublinhando assim os seus aspectos nas apreensões cognitivas. O facto
de este livro começar e terminar como um monólogo subjectivo acerca
de memórias e interpretações aponta igualmente para uma forma de
tratamento e interpretação da história dos conceitos. Em termos mais
prosaicos, conforme referido por Jack Goody, será que a escrita desta
história a torna também um acontecimento moderno? Com efeito,
A escrita oferece-nos o ensejo de [...] um monólogo, muitas vezes impedido pela
comunicação oral. Permite ao indivíduo "expressar" os seus pensamentos minucio-
samente, sem interrupção, corrigindo e apagando, segundo determinadas fórmulas
apropriadas. Evidentemente que este propósito requer não apenas um modo de
escrita, mas uma escrita cursiva e os instrumentos específicos que propiciam um
registo célebre. Para efeitos de registo de um discurso interno ou externo, pensa-
mentos ou fala, a caneta e o papel são manifestamente melhores do que o estilete
e o barro, tal como a estenografia é mais eficiente do que a escrita por extenso, e a
máquina de escrever eléctrica mais eficiente do que a manual. (Goody, 1977, p. 160).

É possível constatar que, actualmente, ainda existe uma idéia de


África. No continente, esta é concebida à luz das dissociações coloniais,
articulando-se como uma releitura do passado e uma demanda con-
temporânea por uma identidade. Nas suas manifestações prudentes,
esta idéia assume-se como uma afirmação de um projecto nascido de
uma combinação de elementos diferentes e, amiúde, contraditórios,
designadamente as tradições africanas, o Islão, a colonização e o Cris-
tianismo, reunidos por Ali Mazrui na sua série The Africans: A Triple
Heritage. Nas suas operações, esta idéia é igualmente produto de ne-
gociações práticas e enunciativas complexas entre, por um lado, as
noções polissémicas de raça, ethnos, nação, indivíduo e humanidade
(nesse sentido, dificilmente poderá ser reduzida a uma essência], e,
por outro, os povos que utilizam, delimitam ou lidam com estes ter-
mos. Com efeito, a qualificação desta idéia pauta-se por conjuntos de
memórias compósitas, que constituem sistemas gratuitos de remi-
niscência. Convergem elementos e experiências diversos, permitindo
enfatizar determinados aspectos e, voluntária ou involuntariamente,
esquecer ou, pelo menos, minimizar outros.
Neste livro, a seqüência de análises centrou-se em duas questões im-
portantes e primaciais: em primeiro lugar, a tematização greco-romana

2/,8 V.Y. Mudimbe A Idéia de África


da alteridade e a sua articulação em determinados conceitos como
"barbárie" e "selvajaria"; em segundo lugar, o processo intricado
através do qual a idéia de África foi organizada na Europa. Em todo
o caso, a constatação de que, desde o século XV, a vontade de verdade
na Europa parece abraçar, na perfeição, uma vontade de poder revela-
-se perturbadora. Cadenceiam e justificam-se mutuamente e, em três
momentos extraordinários recentes, também se comprometeram
mutuamente: o tráfico de escravos, o colonialismo e o nazismo. Com
a bênção das mais altas instâncias religiosas e intelectuais, a expan-
são da Europa além-mar iguala-se à da escravatura e da sua prática
em nome da civilização e do Cristianismo. Esse mesmo desígnio dita a
implementação das regras do colonialismo no século XIX por parte da
Europa, gerando, a partir do seu próprio quadro histórico e cultural,
um conjunto de modelações inquietantes, entre as quais o nazismo,
no século XX. Estas monstruosidades exerceram um impacto sobre a
idéia de África. Nesse sentido, podemos reflectir sobre as semelhanças
e ligações estruturais que exibem com a vontade ocidental de saber e
a vontade de poder. Os casos do tráfico de escravos e do colonialismo
parecem óbvios. Quanto ao nazismo, que, em certa medida, constitui
uma síntese de ambos, permitam-me citar apenas o parecer contro-
verso, radical e veemente de Aimé Césaire:
Seria profícuo estudar clinicamente e em pormenor o comportamento de Hitler e
do hitlerianismo, assim como revelar ao burguês do século XX, tão distinto, tão hu-
manista, tão cristão, que ele alberga dentro de si um Hitler silencioso, que Hitler
habita nele, que Hitler constitui o seu demônio, que se ele vitupera, é por falta de
lógica, e, em suma, o que ele não perdoa em Hitler não é crime em si, o crime con-
tra o homem, não é a humilhação do homem em si mesmo, mas sim o crime contra
o homem branco, a humilhação do homem branco, a aplicação de procedimentos
colonialistas na Europa, que, até ao momento, se destinavam apenas aos árabes na
Argélia, aos coolies na índia e aos negros da África. (Césaire, 1955, p. 12).

A fim de sintetizar os pontos essenciais do presente livro, dois as-


pectos afiguram-se manifestos. O primeiro prende-se com a com-
plexidade da idéia de África e as práticas discursivas múltiplas e
contraditórias que suscitou, as quais, a meu ver, não estão de todo
explicadas com clareza e rigor, ou mesmo sugeridas, neste contribu-
to. Gostaria de acreditar que, pese embora as suas limitações, o meu
enfoque em textos perfeitamente não-representativos (tais como a
fábula de Hércules, e o tratado de Burton sobre a melancolia) e em
questões essencialmente teóricas (como no caso do relativismo
cultural e da arte primitiva) demonstra, pelo menos, um modo de

269
extrair uma idéia de África a partir de uma literatura vasta e de de-
bates complexos.
A segunda questão diz respeito à reacção face a "esta" idéia de África.
Por exemplo, conferi destaque a uma grecomania negra, uma vez que
me parecia ilustrativa de uma revolta contra a representação ocidental
de si própria e dos outros. Com efeito, esta revolta desenrola-se numa
das esferas mais importantes e frágeis da cultura ocidental. Em nome
da filologia e da história, a revolta articulou os seus argumentos como
um desafio para uma interpretação mais correcta da história grega,
para um entendimento mais credível da gênese da civilização ociden-
tal.
A idéia de África apresentada neste livro pode parecer, de facto, de-
masiado dependente de textos ocidentais. Mesmo assim, no meu en-
tender, trata-se de uma escolha sensata. A fim de compreender a or-
ganização arqueológica desta idéia de África e das suas ressonâncias,
creio ser impossível não tomar em linha de conta a literatura ocidental
e, em particular, a sua culminação no "acervo colonial". Concordo com
a possibilidade de partir de um contexto africano e identificar os seus
próprios efeitos. Contudo, receio que uma perspectiva desta natureza
acarretaria uma minimização do significado dos seus próprios instru-
mentos conceptuais. É verdade que o tráfico de escravos ou a coloni-
zação do continente seriam vistos de um modo diferente, mas, no seu
todo, essas visões perderiam a sua coerência histórica e conceptual.
Conforme observado por Immanuel Wallerstein: "a economia mundial
capitalista, ao colocar a questão sobre se um conjunto de idéias, ou um
modo de pensamento, é universal [europeu] ou africano apenas nos
faz regressar ao duplo vínculo forjado pelo próprio sistema. Para nos
libertarmos deste duplo vínculo, é necessário tirar partido das con-
tradições do próprio sistema de modo a contorná-lo" (1988, p. 332).
Contar histórias constitui uma forma de desarticular as pretensões
de um autor, bem como de reformular as supostas derivações lógicas
até de uma prova matemática. De facto, a história organiza os seus
próprios alicerces, as suas operações, os seus objectivos e as suas an-
tecipações. O mestre da representação de contar histórias é o ouvinte
que, quando enfastiado, pode parar a qualquer momento ou simples-
mente deixar de ouvir. Circulando na minha biblioteca imaginária, que
inclui os melhores e os piores livros sobre a idéia de África, escolhi
o meu próprio caminho, o que me levou para lá das fronteiras clas-
sicamente históricas (em termos de referências e textos) e, ao mesmo
tempo, manteve-me com firmeza naquilo que corresponde a uma linha
de desolação. Na sua transparência, independentemente do ângulo
adoptado, a vontade de verdade desta história (que alega regressar

21,6V.Y.MudimbeA Ideia de Africa


aos gregos) exemplifica um paradigma negativo: qualquer vontade
de verdade bem-sucedida, convertida num conhecimento dominante
e realizada como um projecto imperialista (interno ou externo geo-
graficamente), pode transformar-se numa vontade de preconceitos,
divisões e destruições "essencialistas". Espero que as minhas histórias
sobre a idéia de África tenham demonstrado este aspecto e, em con-
comitância, esclarecido a singularidade desta idéia.
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21,6 V.Y. Mudimbe A Ideia de Africa


Nesta colecção:
o Antigo e o Moderno. A Produção do Saber
na África Contemporânea
Paulin J. Hountondji
A Invenção de África. Gnose, Filosofia e a
Ordem do Conhecimento
V.Y. Mudimbe
Sociologia das Brazzavilles Negras
Georges Balandier
Restituir a História às Sociedades Africa-
nas. Promover as Ciências Sociais na África
Negra
Jean-Marc Ela
África Insubmissa. Cristianismo, Poder e
Estado na Sociedade Pós-colonial
Achille Mbembe
E se a África Recusasse o Desenvolvimento?
Axelle Kabou
O Sentido da Luta Contra o Africanismo
Eurocentrista
Théophile Obenga
A Idéia de África
V. Y. Mudimbe
Este livro, uma continuação da aclamada obra A Invenção de
África, de V. Y. Mudimbe, traça a "ideia" de África em função de
diversos contextos históricos e geográficos desde a antiguidade
grega até ao presente. Mudimbe centra-se em dois aspectos
principais: a tematização greco-romana do outro e a sua articu-
lação em conceitos como a barbárie e a selvajaria e o processo
complexo que moldou a ideia de África, tal como os europeus a
entendem. África é descrita como um paradigma da diferença
no considerável espaço intelectual abrangido. Partindo de uma
reflexão sobre a tradução francesa, datada do século XVII, da
obra ícones do grego Filóstrato, Mudimbe tece considerações
sobre as ligações gregas ao continente africano, o paradigma
grego e o seu poder, e a política da memória. Em capítulos
específicos, é efectuada uma crítica à recuperação dos textos
gregos por parte de académicos negros e uma análise da activi-
dade contemporânea na arte africana. Trata-se de uma obra
fundamental para todos aqueles que se interessam pela construção
de culturas.

"Os rigorosos relatos de Mudimbe acerca


de discursos africanistas tão diversos como o relativismo cultural
de Herskovits e a afrocentricidade contemporânea trazem
a lume os objectivos que lhe estão inerentes
e os contextos em que foram produzidos."
Ivan Karp

9789S986ÇÇ1

apoio:

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