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Resumo: O presente texto debruça-se sobre dois projetos que partem de temáticas relacionadas
com problemas espec icos de uma população, habitante em Marvila Lisboa , tais como a íalta de
sentimento de pertença, o isolamento dos idosos, o desemprego, falta de perspetivas de vida dos
jovens, ou a exclusão social. Salienta-se o papel íundamental da coniança, do compromisso, da dis-
ponibilidade e da lexibilidade que o artista deverá ter ao aîir dentro da comunidade. Pretende-se
demonstrar que benefícios poderão trazer as práticas artísticas a uma comunidade.
Abstract: This text presents two projects based on themes related to speciic problems of a population
living in Marvila (Lisbon), such as: lack of sense of belonging, isolation of older people, unemployment,
lack of future life perspectives for young people, or social exclusion. The key role of the trust, commit-
ment, availability and lexibility that the artist should have, when acting within the community, is empha-
sized. It is intended to demonstrate what beneits artistic practices can bring to a community.
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como uma base de apoio para inúmeros pro- a e comunidade. Eugène van Erven, numa en-
jetos que t m vindo a ser desenvolvidos e que trevista recente, refere: “This work, community
utilizam a arte como meio de intervenção no art, is all about relationships and trust, trust-
seio de grupos em situação de vulnerabilidade ing each other that no one will exploit or abuse
ou exclusão social. Também o programa BIP/ the other. (…) Is building networks and it takes
ZIP, da Câmara Municipal de Lisboa, dedicado time…” (KOK, 2017).
aos bairros e zonas consideradas de interven- O tempo, que van Erven assinala, é igual-
ção prioritária, embora não esteja direcionado mente indispensável. É necessário tempo para
de raiz para o desenvolvimento de projetos que estabelecer uma relação forte e sincera com a
envolvam práticas artísticas, tem contado com comunidade e para criar um vínculo e um com-
m ltiplas aç es e atividades cuja abordaîem promisso com todos os parceiros envolvidos. É
junto das comunidades mais desíavorecidas, necessário tempo para conhecer as reais pre-
tem sido íeita justamente com o recurso às ar- ocupações, expectativas e aspirações de cada
tes. uma das pessoas envolvidas e do grupo, em
As artes não serão um antídoto milagroso geral.
contra a pobreza, mas poderão capacitar os Os conceitos e procedimentos desenvolvidos
indivíduos, fazendo-os descobrir novas compe- no âmbito dessa espécie de categoria artística
tências e ampliando-lhes o leque de possibilida- um pouco indeinida que a arte comunitária
des de trabalho, dando-lhes a conhecer novas (dada a diversidade das propostas e o esbati-
áreas de interesse. mento das fronteiras entre as várias vertentes
de criação) apontam, ou deverão apontar, qua-
O artista e a comunidade se sempre, para a resolução de problemas es-
Trabalhar com a comunidade é adaptar as pec icos e para a exploração de temáticas que
ideias do artista e a sua abordaîem prática, às vão ao encontro dos verdadeiros interesses e
ideias e à realidade da comunidade com a qual quest es que emirjam no seio da comunidade.
o artista trabalha. Na maior parte das vezes, incluem processos
A ação do artista na comunidade nunca de- colaborativos que estimulam a participação
verá ser resultante de uma imposição, mas sim (COMBAT POVERTY AGENCY, 1993).
de uma composição das ideias e expectativas Com isto, não pretendemos dizer que o artista
da comunidade com as do artista; isto é, deve não deva trazer novos temas de trabalho e rele-
resultar do desenvolvimento de estratégias de xão e novas propostas artísticas; mas é neces-
trabalho em equipa, da conjuîação e partilha sário ponderar se, de facto, esses temas e essas
de experiências e saberes, o que, invariavelmen- propostas interessam realmente à comunidade,
te, exige uma postura de humildade e não uma ou se apenas servem os interesses e desígnios
atitude egocêntrica, por parte desse mesmo do próprio artista. O êxito e os frutos deste tipo
artista. de colaboração, assentam também no sucesso
A preocupação deste último deverá centrar- partilhado (DREESZEN, 1987).
se na ação dentro da comunidade e não sobre
a comunidade. Promover encontros
A coniança m tua e a criação de laços são Num recente ilme de animação da Disney, a
dados fundamentais na relação entre o artista adolescente Moana (2016) recebe da sua avó, os
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conselhos, os saberes e o estímulo crucial para São múltiplos os exemplos de histórias que
que toda a ação se desenrole e a torne a heroína reúnem avós e netos, porém este recente blo-
do seu povo (uma pequena tribo polinésia, re- ckbuster traz-nos os encantos do espírito da
sidente numa paradisíaca ilha perdida no meio aldeia, das pequenas comunidades rurais ou
do oceano). O segredo que Tala, a avó, revela a piscatórias, nas quais o saber-fazer, as tradições,
Moana, é que é importante ela ser ela própria as superstições ou as lendas eram passadas de
(Gentile, 2016), encontrar o seu verdadeiro ser, geração em geração, por vezes na simplicidade
o seu dom, para poder desaiar e desestabilizar de uma cantiga, ou numa conversa, durante um
a estrutura rígida e conformada com que a sua passeio pelo campo.
pequena comunidade lida com os obstáculos. Nas comunidades urbanas, por seu turno, a
O ilme Moana relembra-nos o importante dimensão territorial e demoîráica, a heteroîe-
papel dos avós; porém não apenas daqueles neidade dos grupos de indivíduos e a diversida-
avós “modernos” que são exemplo de energia de de origens culturais e étnicas, ou a variedade
e jovialidade; mas também daqueles avós com de proveni ncias îeoîráicas, não permite a to-
tempo, com vagar, para ouvirem e serem ou- tal coesão e convivência dos elementos da po-
vidos; dos av s que já se esqueceram que são pulação. Todos esses íatores conduzem à dii-
úteis, mas que ainda têm algo das suas vidas culdade em encontrar pontos de contacto entre
e da sua experiência acumulada para contar e vizinhos, entre diferentes gerações e diferentes
partilhar. modos de vida dentro de uma sociedade urba-
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Figura 02. Parque
Hortícola do Vale
de Chelas (Fonte:
própria, 2014).
na. Desse modo, torna-se essencial promover e é um evento que tem vindo a ganhar expres-
encontros entre os diferentes membros de uma são na comunidade. Não poderá ser designado
comunidade. propriamente como um projeto art stico, mas
O primeiro projeto que é dado a conhecer resulta de um impulso de criação que parte do
neste artigo, intitula-se Feira da Lavra (Figura 01) processo de uma pesquisa artística e teórica
e foi por nós pensado, antes de mais, como um que desenvolvemos acerca de um terreno es-
veículo de promoção de encontros intergeracio- pec ico situado, precisamente, na íreîuesia de
nais. Marvila. Esta freguesia constitui-se como um
A Feira da Lavra consiste num passeio comu- território de múltiplos contrastes, composto
nitário pelas hortas urbanas do Parque Hortíco- por diferentes bairros, alguns com sérias pro-
la do Vale de Chelas. Vem na sequência do nos- blemáticas a nível social (pobreza, desemprego,
so envolvimento com o Grupo Comunitário do exclusão social, entre outras).
Bairro da Flamenga1 (antiga Zona N1 de Chelas) O nome do evento partiu da ideia de “feira”
como lugar de lazer e diversão popular.
1 O Grupo Comunitário da Flamenga é um grupo constituído Sendo o Parque Hortícola do Vale de Chelas
por habitantes e pelas instituições que trabalham no bairro,
entre elas estão a AMI (Assistência Médica Internacional), a
(Figura 02) um local contíguo ao local onde se
CERCI (Cooperativa de Educação e Reabilitação de Cidadãos realiza semanalmente a Feira do Relógio2, hou-
com Incapacidades), a Gebalis (empresa de Lisboa respon-
sável pela promoção e gestão de imóveis de habitação Casa dos Direitos Sociais da Câmara Municipal de Lisboa e a
social), a PSP (Polícia de Segurança Pública), o Centro Social Fraternidade Irmãzinhas de Jesus.
Comunitário da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, a 2 A Feira do Relógio é um mercado de rua que se realiza to-
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ve a intenção de que a palavra “feira” remetesse denominar os horticultores desta zona) é uma
também para a ideia de um acontecimento ur- esp cie de luîar de mem ria que poucos jovens
bano, efémero e cíclico. de Lisboa conhecem, mas é um património ima-
‘scolhemos a palavra lavra pelo seu siînii- terial de que os mais velhos são portadores e
cado liîado à aîricultura; mas tamb m por este cujas t cnicas de trabalho ainda dominam.
termo se assemelhar à palavra ladra , remeten- O desaio lançado à população do Bairro da
do para a Feira da Ladra. Esta última é um mer- ’lamenîa para se juntar ao “rupo èomunitário
cado de rua, uma emblemática feira da cidade neste passeio, foi então difundido através de
de Lisboa cuja oriîem remonta à Idade M dia e cartazes aixados em luîares estrat îicos, com
onde se vendem velharias, antiguidades e ou- a colaboração de moradores e entidades locais.
tros objetos em seîunda mão. Na segunda edição da Feira da Lavra (Figura
Assim, Feira da Lavra foi pensada como um 03), realizada em 2016, os participantes vieram
momento e um lugar de encontro da comuni- da “Porta Amiga”, da AMI de Chelas, do Centro
dade, um evento que servisse para reavivar me- de Formação da CERCI e do Centro de Dia do
mórias antigas nos mais velhos e que proporcio- Centro Social Comunitário da Flamenga, da
nasse novas descobertas e conhecimentos aos Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (institui-
mais novos. ção que possui um leque variado de utentes de
‘ste projeto tem como objetivos îerais pro- diferentes grupos etários).
mover a coesão social, a participação ativa da Grande parte da população de Marvila, tem as
população e o desenvolvimento do sentimento suas raízes no campo. São homens e mulheres
de pertença (ou pertencimento) ao Bairro da vindos de um antigo Portugal rural, quase total-
Flamenga e ao território de Marvila de uma for- mente desaparecido, onde, apesar da pobreza,
ma mais abrangente. prevaleciam os laços de vizinhança, o espírito
Em toda a organização do evento, foi funda- solidário de interajuda e de íraternidade.
mental a colaboração e o apoio de Nara Miran- O processo de “desruralização”, que o geógra-
da, uma moradora conhecida de todos no bair- fo Álvaro Domingues aborda no seu livro Vida no
ro, uma referência pelo seu ativismo e sentido Campo (2011), é uma realidade neste país, que
de cidadania. tem feito esquecer práticas e modos de vida
‘m conjunto e com o apoio do “rupo èomu- ancestrais e levado à descaracterização dos
nitário do Bairro da Flamenga e das entidades territórios e das paisagens, o que resulta numa
nele envolvidas, planeámos um percurso pelas espécie de “luto crónico” (DOMINGUES, 2011, p.
várias hortas do Parque, para que este lugar no 61) e de sentimentos de abandono, solidão ou
bairro pudesse vir a ser entendido como mais ansiedade, que começaram por se fazer sentir
um possível local de passeio e de lazer e um mais nos grandes núcleos urbanos, mas que
potenciador de convivência intergeracional e depressa alastraram às restantes zonas de Por-
interétnica. tugal.
A “horta”, ou o “quintal” (como gostam de É, portanto, muito interessante observar, nes-
tes passeios organizados, a alegria que os mais
dos os domingos na Avenida Santo Condestável, em Marvila velhos manifestam por terem a possibilidade de
(Lisboa). Nesse dia da semana, a grande avenida encerra
explicar, aos mais novos, coisas que estes des-
ao tráfego automóvel e transforma-se numa espécie de
camelódromo. conhecem acerca da horticultura e do mundo
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Figura 03. Imagens
rural. da segunda edição
O modo como se sentem em casa; o brilho da Feira da Lavra,
. ’otoîraias
nos olhos ao identiicarem cada pequena has-
de Nara Miranda)
te de planta; o dar a cheirar, uns aos outros, di-
ferentes raminhos de ervas aromáticas, é para
os mais velhos um reacender de lembranças de
infância e, para os mais novos, uma nova des-
coberta.
Criar interligações
O seîundo projeto que îostar amos de apre-
sentar, o projeto TransHumâncias – Artes em
Trânsito, coordenado por Dora Vicente e pro-
movido pela AMBA (Associação de Moradores
do Bairro das Amendoeiras) em parceria com
o “rupo de Teatro èontra Senso. ‘ste projeto
obteve inanciamento para a sua concretização
na edição do programa BIP/ZIP de 2016, e está,
neste momento, em plena execução.
Tem por inalidade a criação de interliîações
entre os indivíduos, os bairros3, as culturas e
etnias, bem como o passado e o presente do
território, através de diferentes modos de ex-
pressão artística que relembrem não só o pas- da componente plástica, através da pintura ou
sado rural de Marvila e da população autóctone, de trabalhos manuais.
mas também o dos migrantes que ao longo dos No contexto das artes visuais, foi-nos pedido
tempos aqui se íoram ixando, vindos de outras por Dora Vicente que desenvolvêssemos uma
paragens e em diferentes períodos históricos, s rie de oicinas, de participação îratuita, diri-
em busca de trabalho e melhores condições de gidas a diferentes grupos etários, com base nas
vida. experi ncias e viv ncias que já havíamos adqui-
As práticas artísticas desenvolvidas no âm- rido, na condição de artista e habitante, através
bito do TransHumâncias, vão desde a dança, ao do contacto com o Bairro da Flamenga.
teatro, à performance e às artes visuais. O obje- Foram constituídos três grupos: o dos adultos
tivo inal realizar um íestival que contará com com mais de anos , o dos jovens e adoles-
apresentações dos grupos envolvidos, para as centes (entre os 13 e os 20 anos) e o das crianças
quais se tem trabalhado durante o ano, ao nível (dos 6 aos 12 anos).
das coreoîraias, da cenoîraia, dos iîurinos e A temática destas oicinas tem as hortas
como ponto de partida, elas são um elemento
3 A paisagem de Marvila é, toda ela, fragmentada por muito presente e de inegável relevância na pai-
diíerentes n cleos de ediicado, de certa íorma isolados e
sagem urbana de Chelas (Marvila, Lisboa). Deste
distantes entre si, possuindo acentuados contrastes, como
havíamos referido anteriormente. modo, explorando as memórias da cultura agrí-
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É na conjuîação das viv ncias dos mais velhos ou está preparada para receber. É necessário
e dos mais novos, dos moradores mais antigos e tempo, em todos os aspetos: ter disponibilida-
dos mais recentes, das inlu ncias externas, do de; ser tolerante para aceitar as diferenças e
modo como são vistos por quem está de fora, paciente para compreender, aceitar e valorizar
que se estabelece a identidade de um território. as distintas capacidades dos elementos do gru-
A identidade não é um conceito fechado e cris- po; e é necessária permanência e continuidade
talizado, é algo orgânico que se vai formando. A para îanhar coniança e estabelecer um
identidade , tal como disse Stuart ”all, deini- compromisso sincero de parte a parte.
da historicamente e não biologicamente” (HALL, A arte pode contribuir para o bem-estar e para
2004, p. 12). E a História é feita de relações entre a inclusão social se, por meio das suas ações, os
acontecimentos e relações entre pessoas. membros da comunidade descobrirem novas
potencialidades de revalorização das suas fa-
Consideraç es inais culdades e compet ncias que talvez já estives-
A arte pode ser um motor para pensar sobre sem esquecidas, ou que nunca tivessem sido
a identidade de bairro, para promover impro- descobertas); se adquirirem novos sentimentos
váveis relações, fortalecer laços de vizinhança e de pertença e se encontrarem, ou recuperarem,
estabelecer pontos de contacto entre os mem- ainidades, îostos e aptid es em comum.
bros de uma população, ou de uma comunida- Alguns dos benefícios das atividades e expres-
de urbana. sões artísticas são o prazer da autodescoberta,
A arte também pode ser entendida como uma através do fazer e do experimentar, e o despertar
forma de conhecimento que traduz e materiali- da curiosidade pela novidade do mundo, pelo
za uma multiplicidade de modos de sentir e de muito que ainda existe por ver, sentir, tocar, ou-
expressar o mundo. A herança cultural de cada vir e comunicar.
indivíduo, o seu percurso e as memórias que
consigo transporta, condicionam a percepção Referências
daquilo que o rodeia e, consequentemente, o CAFE/COMBAT POVERTY AGENCY. Creating a
seu sentir. Diference Report of the Community Arts Pilot
As práticas artísticas em comunidade, Programme 1993-1994. Dublin: Community Art
quando sinceras no seu prop sito e lex veis na For Everyone/Combat Poverty Agency, 1995.
sua aplicação e adequação aos contextos em COMBAT POVERTY AGENCY. Creating Change:
que se inserem, podem ser um veículo para a A strategy for developmental community arts.
implementação de novos hábitos culturais, no- Dublin: Combat Poverty Agency, 1993.
vas hipóteses de relação dos indivíduos entre si, CREHAN, Kate. Community Art: An Anthro-
e de novas descobertas acerca de si mesmos, pological Perspective. 1. ed. Oxford, New York:
pelas respostas que são dadas aos desaios pro- Berg, 2011.
postos e aos obstáculos que se colocam tanto DOMINGUES, Álvaro. Vida no Campo. Porto:
aos artistas como a cada um dos membros da Dafne Editora, 2011.
comunidade. DREESZEN, Craig. Intersections II: Communi-
É necessário o artista estar consciente de que ty Arts and Education Collaborations. Chicago:
por vezes, aquilo que tem para dar como criador, Arts Extension Service, 1987.
não aquilo que a comunidade necessita, deseja GENTILE, Olivia. In Moana, Grandma knows
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