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ARTE E COMUNIDADE: PROJETOS DE INTERVENÇÃO

ARTÍSTICA E INCLUSÃO SOCIAL

ART AND COMMUNITY: ARTISTIC INTERVENTION AND SOCIAL


INCLUSION PROJECTS

Teresa Palma Rodrigues


CIEBA

Resumo: O presente texto debruça-se sobre dois projetos que partem de temáticas relacionadas
com problemas espec icos de uma população, habitante em Marvila Lisboa , tais como a íalta de
sentimento de pertença, o isolamento dos idosos, o desemprego, falta de perspetivas de vida dos
jovens, ou a exclusão social. Salienta-se o papel íundamental da coniança, do compromisso, da dis-
ponibilidade e da lexibilidade que o artista deverá ter ao aîir dentro da comunidade. Pretende-se
demonstrar que benefícios poderão trazer as práticas artísticas a uma comunidade.

Palavras-Chave: arte, comunidade, inclusão social.

Abstract: This text presents two projects based on themes related to speciic problems of a population
living in Marvila (Lisbon), such as: lack of sense of belonging, isolation of older people, unemployment,
lack of future life perspectives for young people, or social exclusion. The key role of the trust, commit-
ment, availability and lexibility that the artist should have, when acting within the community, is empha-
sized. It is intended to demonstrate what beneits artistic practices can bring to a community.

Keywords: art, community, social inclusion.

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As mais-valias da aplicação de metodologias propriamente uma estética (CREHAN, 2011).


artísticas a diversas áreas, tais como a educa- Ainda hoje, mais do que uma heteroîenei-
ção, a saúde e o bem-estar, estão amplamente dade de resultados estilísticos ou estéticos, as
estudadas e conirmadas. Tamb m não restam abordaîens art sticas que lorescem dentro de
dúvidas de que a indústria cultural, o consumo comunidades, partilham entre si os modos ope-
de produtos e serviços artísticos é gerador de rativos. Os resultados provêm da modelação e
emprego e pode funcionar como fator de atra- da adequação desses modos operativos às di-
ção tur stica ”U“”‘S, , seja em contextos íerentes comunidades e às particulares caracte-
rurais, seja em contextos urbanos. ‘stas são evi- r sticas, necessidades, ou desejos dos elemen-
dências deste nosso tempo, tão marcado pela tos que as compõem.
fácil mobilidade e pela procura constante de Quando nos referimos a “artes comunitárias”,
diversão e de diversidade. partilhamos a ideia de que este termo alude a
Mas para os que não têm acesso à arte, nem um conjunto de atividades criativas e art sticas,
possibilidade de usufruir da oferta cultural, tan- implementadas de modo a que os grupos locais
tas vezes apenas disponível nos centros das estejam coletivamente envolvidos, no sentido
grandes cidades, ou a preços muito elevados de potenciar o desenvolvimento de cada indívi-
para aqueles cujas m dicas quantias que tra- duo, do grupo e da comunidade (CAFE/COMBAT
zem diariamente na “algibeira” ditam, sem qual- POVERTY AGENCY, 1995)
quer hesitação, quais as prioridades de investi- Segundo Hugo Cruz, conhecido pelo traba-
mento). Como lhes fazer chegar a arte e quais os lho realizado junto de reclusos da cadeia de
benefícios que daí poderiam advir? Custóias (no Porto), coordenador do Núcleo de
Numa perspectiva de partilha da nossa pró- Teatro do Oprimido do Porto e diretor artístico
pria experiência pessoal e artística, em ques- da Pele - Espaço de Contacto Social e Cultural,
tões relacionadas com a arte e a comunidade, o crescente aparecimento, em Portugal, de prá-
apresentamos aqui dois projetos que se encon- ticas art sticas comunitárias e de projetos ar-
tram em execução em Marvila, uma das maiores tísticos que visam a inclusão social, prende-se
freguesias da cidade de Lisboa. São eles: a Feira com a orientação das linhas de inanciamento,
da Lavra e as oicinas de artes plásticas do Pro- que quase obriga os artistas a fazerem trabalho
jeto TransHumâncias - Artes em trânsito. com comunidades” (CRUZ apud PEREIRA, 2015).
A pr pria situação inanceira que Portuîal atra-
As “artes comunitárias” vessa, leva a uma procura de novas respostas
O termo “artes comunitárias” surgiu com aos obstáculos do quotidiano que se colocam
îrande pujança em meados dos anos , no seio aos artistas, o que vai fomentando soluções
das artes visuais, do teatro, do ilme, do v deo, in ditas no que diz respeito às práticas artistas
da gravura e da música, nos Estados Unidos, que, muitas vezes, não passam pelo caminho
bem como em numerosos países da Europa, mais óbvio, ou previsível.
como aponta Kate Crehan (2011) em Community ‘ntre alîuns desses proîramas de inancia-
Art: An Anthropological Perspective. Nesta mes- mento, estão o programa PARTIS e o BIP/ZIP.
ma obra, a autora refere que, na prática, o que O programa PARTIS – Práticas Artísticas para
deinia as artes comunitárias no seu conjunto, a Inclusão Social, da Fundação Calouste Gul-
era muito mais uma partilha de ethos, do que benkian, que teve início em 2015, constitui-se

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como uma base de apoio para inúmeros pro- a e comunidade. Eugène van Erven, numa en-
jetos que t m vindo a ser desenvolvidos e que trevista recente, refere: “This work, community
utilizam a arte como meio de intervenção no art, is all about relationships and trust, trust-
seio de grupos em situação de vulnerabilidade ing each other that no one will exploit or abuse
ou exclusão social. Também o programa BIP/ the other. (…) Is building networks and it takes
ZIP, da Câmara Municipal de Lisboa, dedicado time…” (KOK, 2017).
aos bairros e zonas consideradas de interven- O tempo, que van Erven assinala, é igual-
ção prioritária, embora não esteja direcionado mente indispensável. É necessário tempo para
de raiz para o desenvolvimento de projetos que estabelecer uma relação forte e sincera com a
envolvam práticas artísticas, tem contado com comunidade e para criar um vínculo e um com-
m ltiplas aç es e atividades cuja abordaîem promisso com todos os parceiros envolvidos. É
junto das comunidades mais desíavorecidas, necessário tempo para conhecer as reais pre-
tem sido íeita justamente com o recurso às ar- ocupações, expectativas e aspirações de cada
tes. uma das pessoas envolvidas e do grupo, em
As artes não serão um antídoto milagroso geral.
contra a pobreza, mas poderão capacitar os Os conceitos e procedimentos desenvolvidos
indivíduos, fazendo-os descobrir novas compe- no âmbito dessa espécie de categoria artística
tências e ampliando-lhes o leque de possibilida- um pouco indeinida que a arte comunitária
des de trabalho, dando-lhes a conhecer novas (dada a diversidade das propostas e o esbati-
áreas de interesse. mento das fronteiras entre as várias vertentes
de criação) apontam, ou deverão apontar, qua-
O artista e a comunidade se sempre, para a resolução de problemas es-
Trabalhar com a comunidade é adaptar as pec icos e para a exploração de temáticas que
ideias do artista e a sua abordaîem prática, às vão ao encontro dos verdadeiros interesses e
ideias e à realidade da comunidade com a qual quest es que emirjam no seio da comunidade.
o artista trabalha. Na maior parte das vezes, incluem processos
A ação do artista na comunidade nunca de- colaborativos que estimulam a participação
verá ser resultante de uma imposição, mas sim (COMBAT POVERTY AGENCY, 1993).
de uma composição das ideias e expectativas Com isto, não pretendemos dizer que o artista
da comunidade com as do artista; isto é, deve não deva trazer novos temas de trabalho e rele-
resultar do desenvolvimento de estratégias de xão e novas propostas artísticas; mas é neces-
trabalho em equipa, da conjuîação e partilha sário ponderar se, de facto, esses temas e essas
de experiências e saberes, o que, invariavelmen- propostas interessam realmente à comunidade,
te, exige uma postura de humildade e não uma ou se apenas servem os interesses e desígnios
atitude egocêntrica, por parte desse mesmo do próprio artista. O êxito e os frutos deste tipo
artista. de colaboração, assentam também no sucesso
A preocupação deste último deverá centrar- partilhado (DREESZEN, 1987).
se na ação dentro da comunidade e não sobre
a comunidade. Promover encontros
A coniança m tua e a criação de laços são Num recente ilme de animação da Disney, a
dados fundamentais na relação entre o artista adolescente Moana (2016) recebe da sua avó, os

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conselhos, os saberes e o estímulo crucial para São múltiplos os exemplos de histórias que
que toda a ação se desenrole e a torne a heroína reúnem avós e netos, porém este recente blo-
do seu povo (uma pequena tribo polinésia, re- ckbuster traz-nos os encantos do espírito da
sidente numa paradisíaca ilha perdida no meio aldeia, das pequenas comunidades rurais ou
do oceano). O segredo que Tala, a avó, revela a piscatórias, nas quais o saber-fazer, as tradições,
Moana, é que é importante ela ser ela própria as superstições ou as lendas eram passadas de
(Gentile, 2016), encontrar o seu verdadeiro ser, geração em geração, por vezes na simplicidade
o seu dom, para poder desaiar e desestabilizar de uma cantiga, ou numa conversa, durante um
a estrutura rígida e conformada com que a sua passeio pelo campo.
pequena comunidade lida com os obstáculos. Nas comunidades urbanas, por seu turno, a
O ilme Moana relembra-nos o importante dimensão territorial e demoîráica, a heteroîe-
papel dos avós; porém não apenas daqueles neidade dos grupos de indivíduos e a diversida-
avós “modernos” que são exemplo de energia de de origens culturais e étnicas, ou a variedade
e jovialidade; mas também daqueles avós com de proveni ncias îeoîráicas, não permite a to-
tempo, com vagar, para ouvirem e serem ou- tal coesão e convivência dos elementos da po-
vidos; dos av s que já se esqueceram que são pulação. Todos esses íatores conduzem à dii-
úteis, mas que ainda têm algo das suas vidas culdade em encontrar pontos de contacto entre
e da sua experiência acumulada para contar e vizinhos, entre diferentes gerações e diferentes
partilhar. modos de vida dentro de uma sociedade urba-

Figura 01. Imagens


da primeira edição
da Feira da Lavra,
. ’otoîraias
de Rodrigo Betten-
court da Câmara e
Nara Miranda)

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Figura 02. Parque
Hortícola do Vale
de Chelas (Fonte:
própria, 2014).

na. Desse modo, torna-se essencial promover e é um evento que tem vindo a ganhar expres-
encontros entre os diferentes membros de uma são na comunidade. Não poderá ser designado
comunidade. propriamente como um projeto art stico, mas
O primeiro projeto que é dado a conhecer resulta de um impulso de criação que parte do
neste artigo, intitula-se Feira da Lavra (Figura 01) processo de uma pesquisa artística e teórica
e foi por nós pensado, antes de mais, como um que desenvolvemos acerca de um terreno es-
veículo de promoção de encontros intergeracio- pec ico situado, precisamente, na íreîuesia de
nais. Marvila. Esta freguesia constitui-se como um
A Feira da Lavra consiste num passeio comu- território de múltiplos contrastes, composto
nitário pelas hortas urbanas do Parque Hortíco- por diferentes bairros, alguns com sérias pro-
la do Vale de Chelas. Vem na sequência do nos- blemáticas a nível social (pobreza, desemprego,
so envolvimento com o Grupo Comunitário do exclusão social, entre outras).
Bairro da Flamenga1 (antiga Zona N1 de Chelas) O nome do evento partiu da ideia de “feira”
como lugar de lazer e diversão popular.
1 O Grupo Comunitário da Flamenga é um grupo constituído Sendo o Parque Hortícola do Vale de Chelas
por habitantes e pelas instituições que trabalham no bairro,
entre elas estão a AMI (Assistência Médica Internacional), a
(Figura 02) um local contíguo ao local onde se
CERCI (Cooperativa de Educação e Reabilitação de Cidadãos realiza semanalmente a Feira do Relógio2, hou-
com Incapacidades), a Gebalis (empresa de Lisboa respon-
sável pela promoção e gestão de imóveis de habitação Casa dos Direitos Sociais da Câmara Municipal de Lisboa e a
social), a PSP (Polícia de Segurança Pública), o Centro Social Fraternidade Irmãzinhas de Jesus.
Comunitário da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, a 2 A Feira do Relógio é um mercado de rua que se realiza to-

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ve a intenção de que a palavra “feira” remetesse denominar os horticultores desta zona) é uma
também para a ideia de um acontecimento ur- esp cie de luîar de mem ria que poucos jovens
bano, efémero e cíclico. de Lisboa conhecem, mas é um património ima-
‘scolhemos a palavra lavra pelo seu siînii- terial de que os mais velhos são portadores e
cado liîado à aîricultura; mas tamb m por este cujas t cnicas de trabalho ainda dominam.
termo se assemelhar à palavra ladra , remeten- O desaio lançado à população do Bairro da
do para a Feira da Ladra. Esta última é um mer- ’lamenîa para se juntar ao “rupo èomunitário
cado de rua, uma emblemática feira da cidade neste passeio, foi então difundido através de
de Lisboa cuja oriîem remonta à Idade M dia e cartazes aixados em luîares estrat îicos, com
onde se vendem velharias, antiguidades e ou- a colaboração de moradores e entidades locais.
tros objetos em seîunda mão. Na segunda edição da Feira da Lavra (Figura
Assim, Feira da Lavra foi pensada como um 03), realizada em 2016, os participantes vieram
momento e um lugar de encontro da comuni- da “Porta Amiga”, da AMI de Chelas, do Centro
dade, um evento que servisse para reavivar me- de Formação da CERCI e do Centro de Dia do
mórias antigas nos mais velhos e que proporcio- Centro Social Comunitário da Flamenga, da
nasse novas descobertas e conhecimentos aos Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (institui-
mais novos. ção que possui um leque variado de utentes de
‘ste projeto tem como objetivos îerais pro- diferentes grupos etários).
mover a coesão social, a participação ativa da Grande parte da população de Marvila, tem as
população e o desenvolvimento do sentimento suas raízes no campo. São homens e mulheres
de pertença (ou pertencimento) ao Bairro da vindos de um antigo Portugal rural, quase total-
Flamenga e ao território de Marvila de uma for- mente desaparecido, onde, apesar da pobreza,
ma mais abrangente. prevaleciam os laços de vizinhança, o espírito
Em toda a organização do evento, foi funda- solidário de interajuda e de íraternidade.
mental a colaboração e o apoio de Nara Miran- O processo de “desruralização”, que o geógra-
da, uma moradora conhecida de todos no bair- fo Álvaro Domingues aborda no seu livro Vida no
ro, uma referência pelo seu ativismo e sentido Campo (2011), é uma realidade neste país, que
de cidadania. tem feito esquecer práticas e modos de vida
‘m conjunto e com o apoio do “rupo èomu- ancestrais e levado à descaracterização dos
nitário do Bairro da Flamenga e das entidades territórios e das paisagens, o que resulta numa
nele envolvidas, planeámos um percurso pelas espécie de “luto crónico” (DOMINGUES, 2011, p.
várias hortas do Parque, para que este lugar no 61) e de sentimentos de abandono, solidão ou
bairro pudesse vir a ser entendido como mais ansiedade, que começaram por se fazer sentir
um possível local de passeio e de lazer e um mais nos grandes núcleos urbanos, mas que
potenciador de convivência intergeracional e depressa alastraram às restantes zonas de Por-
interétnica. tugal.
A “horta”, ou o “quintal” (como gostam de É, portanto, muito interessante observar, nes-
tes passeios organizados, a alegria que os mais
dos os domingos na Avenida Santo Condestável, em Marvila velhos manifestam por terem a possibilidade de
(Lisboa). Nesse dia da semana, a grande avenida encerra
explicar, aos mais novos, coisas que estes des-
ao tráfego automóvel e transforma-se numa espécie de
camelódromo. conhecem acerca da horticultura e do mundo

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Figura 03. Imagens
rural. da segunda edição
O modo como se sentem em casa; o brilho da Feira da Lavra,
. ’otoîraias
nos olhos ao identiicarem cada pequena has-
de Nara Miranda)
te de planta; o dar a cheirar, uns aos outros, di-
ferentes raminhos de ervas aromáticas, é para
os mais velhos um reacender de lembranças de
infância e, para os mais novos, uma nova des-
coberta.

Criar interligações
O seîundo projeto que îostar amos de apre-
sentar, o projeto TransHumâncias – Artes em
Trânsito, coordenado por Dora Vicente e pro-
movido pela AMBA (Associação de Moradores
do Bairro das Amendoeiras) em parceria com
o “rupo de Teatro èontra Senso. ‘ste projeto
obteve inanciamento para a sua concretização
na edição do programa BIP/ZIP de 2016, e está,
neste momento, em plena execução.
Tem por inalidade a criação de interliîações
entre os indivíduos, os bairros3, as culturas e
etnias, bem como o passado e o presente do
território, através de diferentes modos de ex-
pressão artística que relembrem não só o pas- da componente plástica, através da pintura ou
sado rural de Marvila e da população autóctone, de trabalhos manuais.
mas também o dos migrantes que ao longo dos No contexto das artes visuais, foi-nos pedido
tempos aqui se íoram ixando, vindos de outras por Dora Vicente que desenvolvêssemos uma
paragens e em diferentes períodos históricos, s rie de oicinas, de participação îratuita, diri-
em busca de trabalho e melhores condições de gidas a diferentes grupos etários, com base nas
vida. experi ncias e viv ncias que já havíamos adqui-
As práticas artísticas desenvolvidas no âm- rido, na condição de artista e habitante, através
bito do TransHumâncias, vão desde a dança, ao do contacto com o Bairro da Flamenga.
teatro, à performance e às artes visuais. O obje- Foram constituídos três grupos: o dos adultos
tivo inal realizar um íestival que contará com com mais de anos , o dos jovens e adoles-
apresentações dos grupos envolvidos, para as centes (entre os 13 e os 20 anos) e o das crianças
quais se tem trabalhado durante o ano, ao nível (dos 6 aos 12 anos).
das coreoîraias, da cenoîraia, dos iîurinos e A temática destas oicinas tem as hortas
como ponto de partida, elas são um elemento
3 A paisagem de Marvila é, toda ela, fragmentada por muito presente e de inegável relevância na pai-
diíerentes n cleos de ediicado, de certa íorma isolados e
sagem urbana de Chelas (Marvila, Lisboa). Deste
distantes entre si, possuindo acentuados contrastes, como
havíamos referido anteriormente. modo, explorando as memórias da cultura agrí-

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cola deste antigo arrabalde da capital, dando nova população industrial.


eníoque às quest es do aproveitamento da ter- Essa primeira geração de manufaturas estava
ra em meio urbano e àquilo que esta nos pode sobretudo liîada à ind stria t xtil, pelo que se
dar como alimento, estas oicinas tentam, atra- instalaram diversas estamparias, tinturarias e
v s de exerc cios plásticos e pict ricos, conjuîar ains, ao lonîo do Vale de èhelas. Por esta razão,
o passado rural e industrial de Marvila, com a a abordaîem das oicinas centrou-se na estam-
realidade atual (os bairros de habitação social e pagem de tecido com técnicas artesanais, atra-
precária, a cultura Hip Hop, etc.). vés de carimbos feitos com legumes, utilizando
No s culo (I(, a proximidade do rio Tejo, em cenouras, batatas, couves, laranjas, pimentos,
particular do Mar da Palha e a chegada da linha entre outros vegetais (Figura 04) que habitual-
de caminho de ferro foram requisitos determi- mente se encontram nas hortas.
nantes para que a ind stria se ixasse possante- éeste modo, íoi poss vel conjuîar e entrecru-
mente em Marvila. Estavam garantidas as aces- zar dois elementos marcantes da identidade e
sibilidades, o transporte de matérias-primas e a memória da freguesia de Marvila, a memória e
facilidade de comercialização de produtos. identidade operária e a memória e identidade
Logo a partir do século XVIII, os terrenos agrí- rural, expressas na forma de elementos, cores
colas, tão característicos deste território, povo- e s mbolos visuais que, aos jovens da íreîuesia,
ado por quintas e antigos conventos nos séculos faz sentido explorar.
anteriores, foram sendo invadidos não só pelas A ideia seria que, a partir desses tecidos es-
unidades manufatureiras, mas também pela tampados, as senhoras da oicina de adultos
(com idades compreendidas entre os 62 e os 89
anos) pudessem costurar retalhos desses teci-
dos na roupas que os jovens irão utilizar no seu
espetáculo, a apresentar no festival TransHu-
mâncias, no intuito de estabelecer uma efetiva
união de esíorços para atinîir um objetivo co-
mum, aproveitando os recursos humanos e as
valências desse grupo, maioritariamente cons-
tituído por avós.
Nas áreas da dança, da performance (condu-
zidas por Dora Vicente) e do teatro (orientado
por Miguel Mestre do Grupo de Teatro Contra
Senso , os jovens íoram incentivados a perîun-
tar aos seus pais e avós como tinha sido a sua
vinda para o bairro ou para a freguesia; como
Figura 04. Estampa- era na altura em que chegaram; de onde vieram
gem com vegetais e do que vinham à procura; o que encontraram
(frutos e legumes)
desenvolvidos
e como olham hoje em dia para este territ rio.
na oicina com os A intenção foi desencadear o diálogo entre as
jovens. ’otoîraias várias gerações e o confronto de ideias acerca
de Dora Vicente)
do bairro onde todos vivem.

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É na conjuîação das viv ncias dos mais velhos ou está preparada para receber. É necessário
e dos mais novos, dos moradores mais antigos e tempo, em todos os aspetos: ter disponibilida-
dos mais recentes, das inlu ncias externas, do de; ser tolerante para aceitar as diferenças e
modo como são vistos por quem está de fora, paciente para compreender, aceitar e valorizar
que se estabelece a identidade de um território. as distintas capacidades dos elementos do gru-
A identidade não é um conceito fechado e cris- po; e é necessária permanência e continuidade
talizado, é algo orgânico que se vai formando. A para îanhar coniança e estabelecer um
identidade , tal como disse Stuart ”all, deini- compromisso sincero de parte a parte.
da historicamente e não biologicamente” (HALL, A arte pode contribuir para o bem-estar e para
2004, p. 12). E a História é feita de relações entre a inclusão social se, por meio das suas ações, os
acontecimentos e relações entre pessoas. membros da comunidade descobrirem novas
potencialidades de revalorização das suas fa-
Consideraç es inais culdades e compet ncias que talvez já estives-
A arte pode ser um motor para pensar sobre sem esquecidas, ou que nunca tivessem sido
a identidade de bairro, para promover impro- descobertas); se adquirirem novos sentimentos
váveis relações, fortalecer laços de vizinhança e de pertença e se encontrarem, ou recuperarem,
estabelecer pontos de contacto entre os mem- ainidades, îostos e aptid es em comum.
bros de uma população, ou de uma comunida- Alguns dos benefícios das atividades e expres-
de urbana. sões artísticas são o prazer da autodescoberta,
A arte também pode ser entendida como uma através do fazer e do experimentar, e o despertar
forma de conhecimento que traduz e materiali- da curiosidade pela novidade do mundo, pelo
za uma multiplicidade de modos de sentir e de muito que ainda existe por ver, sentir, tocar, ou-
expressar o mundo. A herança cultural de cada vir e comunicar.
indivíduo, o seu percurso e as memórias que
consigo transporta, condicionam a percepção Referências
daquilo que o rodeia e, consequentemente, o CAFE/COMBAT POVERTY AGENCY. Creating a
seu sentir. Diference Report of the Community Arts Pilot
As práticas artísticas em comunidade, Programme 1993-1994. Dublin: Community Art
quando sinceras no seu prop sito e lex veis na For Everyone/Combat Poverty Agency, 1995.
sua aplicação e adequação aos contextos em COMBAT POVERTY AGENCY. Creating Change:
que se inserem, podem ser um veículo para a A strategy for developmental community arts.
implementação de novos hábitos culturais, no- Dublin: Combat Poverty Agency, 1993.
vas hipóteses de relação dos indivíduos entre si, CREHAN, Kate. Community Art: An Anthro-
e de novas descobertas acerca de si mesmos, pological Perspective. 1. ed. Oxford, New York:
pelas respostas que são dadas aos desaios pro- Berg, 2011.
postos e aos obstáculos que se colocam tanto DOMINGUES, Álvaro. Vida no Campo. Porto:
aos artistas como a cada um dos membros da Dafne Editora, 2011.
comunidade. DREESZEN, Craig. Intersections II: Communi-
É necessário o artista estar consciente de que ty Arts and Education Collaborations. Chicago:
por vezes, aquilo que tem para dar como criador, Arts Extension Service, 1987.
não aquilo que a comunidade necessita, deseja GENTILE, Olivia. In Moana, Grandma knows

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farol

best. The Grandparent Efect. 12 mai. 2016.


éispon vel em <http //îrandparentefect.com/
in-moana-grandma-knows-best>. Acesso em:
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Clements, Don Hall. Produção: Osnat Shurer e
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Studios. Distribuído por Walt Disney Motion Pic-
tures.
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