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Psychê

ISSN: 1415-1138
clinica@psycheweb.com.br
Universidade São Marcos
Brasil

Sequeira Conselheiro, Vania


Reseña de "O vínculo inédito" de Radmila Zygouris
Psychê, vol. VII, núm. 12, dezembro, 2003, pp. 192-194
Universidade São Marcos
São Paulo, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=30701217

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ZYGOURIS, Radmila. O vínculo inédito. São Paulo: Escuta,


2003. 80p. ISBN 8571372101.

Para além da transferência: e não ouvir meu analisando, que pedia des-
o vínculo inédito culpas por estar ali. Em alguns momentos
presente demais, por fazer interpretações
á muitos anos dedico-me ao estudo da baseadas em associações minhas, ligadas à
H psicanálise. Olho para trás e vejo que
passei anos tentando desvendar o metapsí-
minha história – esta obviamente muito
maior do que minha história como analista.
quico, dedicando-me à compreensão minu- Radmila me fez repensar sobre minha
ciosa de conceitos fundamentais à clínica, relação com a psicanálise, e sobre o ofício
aprendendo sobre uma presença feita de de ser analista. Em seus escritos, conferên-
ausência, a estar ali com o analisando, sem cias e seminários clínicos, lembra-nos que
preencher vazios, pronta a silenciar, a es- análise é um empreendimento humano –
cutar o silêncio, a interpretar, a trazer a não por falha nossa, mas por condição, sine
outra cena, de preferência a do paciente e qua non, que as duas pessoas envolvidas
não a minha. Enfim, conseguindo lidar com estejam implicadas e presentes o suficiente,
minhas fantasias de forma que não fizes- para além da rigidez da técnica.
sem tanto barulho a ponto de me impedir Neste livro – O vínculo inédito – Rad-
de escutar o outro. Processo longo e difícil mila diz que uma análise pode ser mais que
esse de estar sempre atenta e à escuta de isso: pode ser um encontro. Porém, vamos
algo que transcende e remete ao já vivido. com calma, é preciso entender esse texto
Foram longos anos nesse processo, e como continuidade de um raciocínio iniciado
quando me deparei com os textos de Rad- em outro: “O amor paradoxal ou a promessa
mila Zygouris fiquei encantada com sua flui- de separação” (Pulsões de Vida).
dez; achava que aquilo não era possível a Naquele texto a autora convida-nos a
uma psicanalista. Li em 1998 Ah! As belas pensar sobre a necessidade de reinventar a
lições!, e o reli diversas vezes, mantendo-o psicanálise a cada paciente; a ver de forma
ainda como livro de cabeceira. Radmila me crítica os diversos tipos de transferência:
fez ver que havia enrijecimento na minha edípica, traumática, acéfala, invertida etc,
formação como psicanalista; sem dúvida, e aponta algo presente em uma análise,
um aprofundamento conceitual me fez ca- além da reprodução, uma verdadeira pro-
minhar bastante. No entanto, sentia-me dução, algo inédito, uma ex periência inau-
presa, culpada toda vez que – sem querer? gural. Tem a coragem de anunciar que é
– eu estava presente demais em algum aten- possível acontecer coisas que não são da or-
dimento, em alguma interpretação, pon- dem da transferência, projeção, repetição...
tuação ou construção. Fui então perceben- Algo pode acontecer no entre-dois, a partir
do que tinha medo de fazer barulho demais da transferência, e também no encontro

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possível além dela. Afirma que a análise só deixa marcas, e está além da transferência;
é eficiente quando chega a suscitar algo novo, ligado, talvez estreitamente, a übertragem,
diferente do vivido. Confronta-nos com um ao arco de ida e vinda entre duas pessoas
grande incômodo: até onde a interpretação que existem, estão presentes, e estão em
e a transferência são indispensáveis ao bom relação. Diferenciar o que é transferência
andamento da análise, e quando passamos a do que pode ser nomeado como vínculo é o
usá-las como escudo de defesa do analista? trabalho fundamental da autora nesse livro.
O enquadre analítico é feito de procedimen- A transferência deve ser interpreta-
tos e regras, que escondem a singularida- da; o vínculo não se interpreta, é o lugar
de do analista, mas algo dela permanece, dos sentires, onde voz, olhar e corpo são
apesar de todo cuidado. E Radmila convi- elementos presentes, constitutivos, e en-
da-nos a assumir que “a psicanálise é como tram na zona dos fluxos de pulsão de vida,
dinamite, e tendemos freqüentemente a porque o vínculo faz laço, une um ao outro.
esquecê-lo. Trabalhamos não apenas com A transferência deve ter um fim; o vínculo
palavras, mas com nossos corpos, nossa li- não, ele escapa à promessa de separação,
bido, nossas histórias, nossas geografias pois excede o campo da análise, podendo e
secretas” (1999, p. 89). ou não durar, igual a tudo na vida.
Neste livro sobre o vínculo, afirma que O vínculo nasce da análise e não é to-
reduzir tudo o que acontece em uma análi- talmente espontâneo, porque pertence ao
se à transferência é pura defesa, porque é campo analítico, não se trata de um vínculo
obvio que algo escapa, e escapa aos dois mundano, mas de algo inédito, originário
envolvidos; transcende porque não temos na relação analítica, o que deveria assegu-
como controlar totalmente o que somos, o rar que o analista não abusasse disso. Para
que nossa presença real pode produzir. In- que o vínculo advenha, é preciso a presen-
troduz ainda a noção de um vínculo que pode ça real do analista, o rompimento da repe-
nascer do campo da experiência analítica, tição, já que é algo diferente dela; é fluxo e
mas que não decorre da interpretação e decorre de uma experiência única. A análise
nem deve ser interpretado: “ele se vive, pulsa, tem vida própria, dada pela relação
ele é o embasamento efetivo da singulari- entre-dois, e pode gerar um encontro, que
dade de dois corpos em presença” (2003, não se estabelece com qualquer um, nem
p. 18). Inaugura uma discussão entre por obrigação contratual. “Então, o que fa-
transferência e vínculo. zer, ao mesmo tempo, acolher e dar expres-
Nesse momento, acho interessante re- são ao vínculo, trabalhar a transferência e
tomar que transferência é a tradução do permanecer, na medida do possível, ao lado
termo alemão Übertragung – com signifi- da pulsão de vida e do princípio de prazer,
cado plástico e reversível, apontando as sem negar a importância do princípio de
possibilidades de transposição de um con- realidade e da crueldade pulsional?” (p. 58).
texto a outro, e tem sua origem ligada ao Radmila arrisca indicar um caminho
termo Übertragem: “arco que mantém aceso possível à análise, além da remissão dos
o processo de ida e vinda, seja temporal- sintomas, ou da elaboração da castração;
mente, entre o passado e a atualidade, seja aposta que nesse estar junto de dois cor-
geograficamente, entre o longe e o perto, pos pode haver o surgimento do livre pen-
ou de uma pessoa a outra” (Hanns, 1996, sar, da experiência sensível do pensamen-
p. 412). Radmila amplia os horizontes para to, lá onde Isso pensa... pode advir algo
a compreensão daquilo que é vivido, que novo, um insight, o einfall de que Freud

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falava, algo que despenca sobre nós como E porque acredito (assim como ou-
raio fulgurante (p. 61). tros) que vale a pena o risco, já que pode-
Sinto que tenho muito trabalho pela mos sair de uma análise muito diferentes
frente, para reformular o que me faz ques- de como entramos, fica o convite: quem
tão como psicanalista. Radmila abala o que mais se arrisca?
tentei solidificar durante anos, mas fico feliz
pela confirmação da percepção de que existe Referências Bibliográficas
algo único e verdadeiro, inerente à análise,
HANS, Luiz A. Dicionário comentado do alemão de
que não se trata de um excesso de existên- Freud. Rio de Janeiro: Imago,1996.
cia, mas de algo que deixa marcas, que une
duas pessoas, mesmo que não estejam mais ZYGOURIS, Radmila. Ah! As belas lições!. São Paulo:
juntas, em uma análise. Primeiramente um Escuta, 1999.
estranhamento, o que não passa desaperce-
Vania Conselheiro Sequeira
bido a nenhum psicanalista; depois um re-
conhecimento, intuitivo, de que a análise Psicóloga Clínica e Social; Doutoranda em
comporta algo peculiar, um encontro de duas Ciências Sociais (PUC-SP); Professora de Pes-
subjetividades irredutível a interpretações. quisa em Psicologia Social e Psicologia
E afinal, a constatação de que uma análise é Institucional; Supervisora de Estágios em Psico-
logia Comunitária e Institucional; Conselheira
um empreendimento de alto risco: “Qual é o
do CRP/SP desde 1998.
imbecil que vai sustentar que uma psicaná-
lise não é perigosa?” (1999, p. 96). e-mail: vaniasequeira@terra.com.br

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