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Revista SUPERIOR

TRIBUNAL
DE JUSTIÇA
PUBLICAÇÃO OFICIAL
Revista VOLUME 265 - TOMO 1
SUPERIOR
TRIBUNAL
DE JUSTIÇA

ANO 34
JANEIRO/FEVEREIRO/MARÇO 2022
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Gabinete do Ministro Diretor da Revista

Diretor
Ministro Benedito Gonçalves
Chefe de Gabinete
Marilisa Gomes do Amaral
Servidores
Gerson Prado da Silva
Hekelson Bitencourt Viana da Costa
Maria Angélica Neves Sant’Ana
Rosa Christina Penido Alves Sturm
Técnico em Secretariado
Ruthe Wanessa Cardoso de Souza
Mensageiro
Francisco Rondinely Ferreira da Cruz

Superior Tribunal de Justiça


www.stj.jus.br, revista@stj.jus.br
Gabinete do Ministro Diretor da Revista
Setor de Administração Federal Sul, Quadra 6, Lote 1,
Bloco C, 2º Andar, Sala C-240, Brasília-DF, 70095-900
Telefone (61) 3319-8055

Revista do Superior Tribunal de Justiça - n. 1 (set. 1989) -. Brasília : STJ, 1989 -.Periodicidade varia:
Mensal, do n. 1 (set. 1989) ao n. 202 (jun. 2006), Trimestral a partir do n. 203 (jul/ago/set. 2006).

Repositório Oficial da Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Nome do editor varia:


Superior Tribunal de Justiça/Editora Brasília Jurídica, set. 1989 a dez. 1998; Superior Tribunal
de Justiça/Editora Consulex Ltda, jan. 1999 a dez. 2003; Superior Tribunal de Justiça/ Editora
Brasília Jurídica, jan. 2004 a jun. 2006; Superior Tribunal de Justiça, jul/ago/set 2006-.

Disponível também em versão eletrônica:

https://ww2.stj.jus.br/web/revista/eletronica/publicacao/?aplicacao=revista.eletronica.

ISSN 0103-4286.

1. Direito, Brasil. 2. Jurisprudência, periódico, Brasil. I. Brasil. Superior Tribunal de Justiça (STJ).
II. Título.
CDU 340.142 (81) (05)
Revista
MINISTRO BENEDITO GONÇALVES
SUPERIOR
TRIBUNAL
DE JUSTIÇA

Diretor
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Plenário

Ministro Humberto Eustáquio Soares Martins (Presidente)


Ministro Jorge Mussi (Vice-Presidente e Corregedor-Geral do CJF)
Ministro Felix Fischer
Ministro Francisco Cândido de Melo Falcão Neto
Ministra Fátima Nancy Andrighi
Ministra Laurita Hilário Vaz
Ministro João Otávio de Noronha
Ministra Maria Thereza Rocha de Assis Moura (Corregedora Nacional de Justiça)
Ministro Antonio Herman de Vasconcellos e Benjamin
Ministro Geraldo Og Nicéas Marques Fernandes (Diretor-Geral da ENFAM)
Ministro Luis Felipe Salomão
Ministro Mauro Luiz Campbell Marques
Ministro Benedito Gonçalves (Diretor da Revista)
Ministro Raul Araújo Filho
Ministro Paulo de Tarso Vieira Sanseverino
Ministra Maria Isabel Diniz Gallotti Rodrigues
Ministro Antonio Carlos Ferreira
Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva
Ministro Sebastião Alves dos Reis Júnior
Ministro Marco Aurélio Gastaldi Buzzi
Ministro Marco Aurélio Bellizze Oliveira
Ministra Assusete Dumont Reis Magalhães
Ministro Sérgio Luíz Kukina
Ministro Paulo Dias de Moura Ribeiro (Ouvidor)
Ministra Regina Helena Costa (Ouvidora Substituta)
Ministro Rogerio Schietti Machado Cruz
Ministro Luiz Alberto Gurgel de Faria
Ministro Reynaldo Soares da Fonseca
Ministro Marcelo Navarro Ribeiro Dantas
Ministro Antonio Saldanha Palheiro
Ministro Joel Ilan Paciornik

Resolução n. 19/1995-STJ, art. 3º.


RISTJ, arts. 21, III e VI; 22, § 1º, e 23.
CORTE ESPECIAL (Sessões às 1ª e 3ª quartas-feiras do mês)

Ministro Humberto Martins (Presidente)


Ministro Jorge Mussi (Vice-Presidente)
Ministro Felix Fischer
Ministro Francisco Falcão
Ministra Nancy Andrighi
Ministra Laurita Vaz
Ministro João Otávio de Noronha
Ministra Maria Thereza de Assis Moura
Ministro Herman Benjamin
Ministro Og Fernandes
Ministro Luis Felipe Salomão
Ministro Mauro Campbell Marques
Ministro Benedito Gonçalves
Ministro Raul Araújo
Ministro Paulo de Tarso Sanseverino
Ministra Isabel Gallotti*

PRIMEIRA SEÇÃO (Sessões às 2ª e 4ª quartas-feiras do mês)

Ministro Sérgio Kukina (Presidente)

PRIMEIRA TURMA (Sessões às terças-feiras e 1ª e 3ª quintas-feiras do mês)

Ministro Benedito Gonçalves (Presidente)


Ministro Sérgio Kukina
Ministra Regina Helena Costa
Ministro Gurgel de Faria
Ministro Manoel de Oliveira Erhardt**

* Em substituição Min. Felix Fischer


** Desembargador Convocado
SEGUNDA TURMA (Sessões às terças-feiras e 1ª e 3ª quintas-feiras do mês)

Ministro Mauro Campbell Marques (Presidente)


Ministro Francisco Falcão
Ministro Herman Benjamin
Ministro Og Fernandes
Ministra Assusete Magalhães

SEGUNDA SEÇÃO (Sessões às 2ª e 4ª quartas-feiras do mês)

Ministro Antonio Carlos Ferreira (Presidente)

TERCEIRA TURMA (Sessões às terças-feiras e 1ª e 3ª quintas-feiras do mês)

Ministro Paulo de Tarso Sanseverino (Presidente)


Ministra Nancy Andrighi
Ministro Villas Bôas Cueva
Ministro Marco Aurélio Bellizze
Ministro Moura Ribeiro

QUARTA TURMA (Sessões às terças-feiras e 1ª e 3ª quintas-feiras do mês)

Ministro Luis Felipe Salomão (Presidente)


Ministro Raul Araújo
Ministra Isabel Gallotti
Ministro Antonio Carlos Ferreira
Ministro Marco Buzzi
TERCEIRA SEÇÃO (Sessões às 2ª e 4ª quartas-feiras do mês)

Ministro Reynaldo Soares da Fonseca (Presidente)

QUINTA TURMA (Sessões às terças-feiras e 1ª e 3ª quintas-feiras do mês)

Ministro Joel Ilan Paciornik (Presidente)


Ministro Felix Fischer
Ministro João Otávio de Noronha
Ministro Reynaldo Soares da Fonseca
Ministro Ribeiro Dantas
Ministro Jesuíno Aparecido Rissato *

SEXTA TURMA (Sessões às terças-feiras e 1ª e 3ª quintas-feiras do mês)

Ministra Laurita Vaz (Presidente)


Ministro Sebastião Reis Júnior
Ministro Rogerio Schietti Cruz
Ministro Antonio Saldanha Palheiro
Ministro Olindo Herculano de Menezes*

* Desembargador Convocado
COMISSÕES PERMANENTES

COMISSÃO DE COORDENAÇÃO

Ministro Marco Buzzi (Presidente)


Ministra Regina Helena Costa
Ministro Gurgel de Faria
Ministro Ribeiro Dantas (Suplente)

COMISSÃO DE DOCUMENTAÇÃO

Ministro Og Fernandes (Presidente)


Ministro Antonio Carlos Ferreira
Ministro Antonio Saldanha Palheiro
Ministro Joel Ilan Paciornik (Suplente)

COMISSÃO DE REGIMENTO INTERNO

Ministro Mauro Campbell Marques (Presidente)


Ministra Isabel Gallotti
Ministro Sérgio Kukina
Ministro Reynaldo Soares da Fonseca
Ministro Moura Ribeiro
Ministro Antonio Saldanha Palheiro

COMISSÃO DE JURISPRUDÊNCIA

Ministro Felix Fischer (Presidente)


Ministro Benedito Gonçalves
Ministro Villas Bôas Cueva
Ministro Sebastião Reis Júnior
Ministro Marco Aurélio Bellizze
Ministro Gurgel de Faria

COMISSÃO GESTORA DE PRECEDENTES

Ministro Paulo de Tarso Sanseverino (Presidente)


Ministra Assusete Magalhães
Ministro Rogerio Schietti Cruz
Ministro Moura Ribeiro (Suplente)
CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL (Sessão à 1ª sexta-feira do mês)

Ministro Humberto Martins (Presidente)


Ministro Jorge Mussi (Corregedor-Geral da Justiça Federal)

Membros Efetivos
Ministro Marco Buzzi (Vice-Corregedor)
Ministro Marco Aurélio Bellizze
Ministra Assusete Magalhães
Ministro Sérgio Kukina

Membros Suplentes
Ministro Moura Ribeiro
Ministra Regina Helena Costa
Ministro Rogerio Schietti Cruz
Ministro Gurgel de Faria

ESCOLA NACIONAL DE FORMAÇÃO E APERFEIÇOAMENTO DE MAGISTRADOS -


ENFAM

Ministro Og Fernandes (Diretor-Geral)


Ministro Benedito Gonçalves (Vice-Diretor)
Ministro Jorge Mussi (Diretor do CEJ/CJF)
Ministro Raul Araújo
Ministro Paulo de Tarso Sanseverino

MEMBROS DO TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL

Ministro Mauro Campbell Marques (Corregedor-Geral)


Ministro Benedito Gonçalves (Efetivo)
Ministro Raul Araújo (1º Substituto)
Ministro Paulo de Tarso Sanseverino (2º Substituto)
SUMÁRIO
JURISPRUDÊNCIA

TOMO 1

CORTE ESPECIAL .................................................................................................................. 23

AgInt na CR 16.908-PT - Rel. Min. Humberto Martins .....................................25


Carta rogatória - Intimação prévia efetivada - Remessa dos autos à Justiça
Federal - Desnecessidade.

AgInt na SLS 2.925-MT - Rel. Min. Presidente do STJ ......................................28


Suspensão de liminar - Deferimento - Grave lesão à ordem pública - Comprovação
- Política de vacinação - Combate Covid-19.

PRIMEIRA SEÇÃO ................................................................................................................. 35

AgInt no CC - 174.764-MA - Rel. Min. Mauro Campbell Marques ...................37


Competência - Ação de improbidade administrativa - Justiça Estadual.

MS 28.124-DF - Rel. Min. Mauro Campbell Marques ........................................50


Energia elétrica - Participação em leilão - Custo Variável Unitário (CVU) -
Fixação de limite.

RMS 64.531-MT- Rel. Min. Og Fernandes .........................................................69


Incidente de Assunção de Competência (IAC) - Competência de foro - Resolução
n. 9/2019-TJMT.

REsp 1.878.849-TO - Rel. Min. Manoel Erhardt .................................................92


(Desembargador convocado do TRF-5ª Região)
Servidor público estadual - Lei Complementar n. 101/2000, art. 22, parágrafo
único, I - Progressão funcional - Direito subjetivo do servidor - Requisitos legais
preenchidos.
REsp 1.937.821-SP - Rel. Min. Gurgel de Faria .................................................113
Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) - Base de cálculo - CTN,
arts. 35 e 38.

PRIMEIRA TURMA .............................................................................................................. 137

AREsp 1.904.780-SP - Rel. Min. Gurgel de Faria ..............................................139


Imposto sobre Serviços (ISS) - Alegação de decadência - CTN, art. 173, I.

AgInt no RMS 67.723-SC - Rel. Min. Sérgio Kukina ........................................144


Concurso público - Candidata aprovada em primeiro lugar - Discricionariedade
administrativa.

RMS 56.528-DF - Rel. Min. Benedito Gonçalves ..............................................153


Contrato administrativo - Fornecimento de serviços - Pagamento - Ordem
cronológica - Lei n. 8.666/1993, art. 5º.

RMS 67.416-SE - Rel. Min. Sérgio Kukina ........................................................162


Magistrado - Licença para Capacitação no Exterior - Direito líquido e certo -
Ausência - Gratificação pelo Exercício Cumulado de Jurisdição ou Acumulação
de Acervo Processual - Retribuição por Direção de Fórum - Vantagens de caráter
eventual e temporário.

REsp 1.222.547-RS - Rel. Min. Regina Helena Costa........................................174


Imposto de Renda de Pessoa Jurídica (IRPJ) - Contribuição Social sobre o Lucro
Líquido (CSLL) - Base de cálculo - Não incidência - Incentivo fiscal.

REsp 1.709.727-SE - Rel. Min. Benedito Gonçalves..........................................201


Responsabilidade civil do Estado - Acidente de trânsito - Rodovia estadual
- Óbito - Dano material - Fixação - Dano moral - Majoração - Dever de
conservação e sinalização da via pública - Omissão estatal.

SEGUNDA TURMA .............................................................................................................. 221

AgRg no AgRg no AREsp 480.379-PB - Rel. Min. Assusete Magalhães ..........223


Servidor público federal - Funasa - Indenização de campo - Lei n. 8.216/1991,
art. 16 - Lei n. 8.270/1991, art. 15.
RMS 57.943-DF - Rel. Min. Francisco Falcão....................................................264
Mandado de segurança - Ato do Controlador-Geral do Distrito Federal -
Competência jurisdicional.
RMS 66.794-AM - Rel. Min. Francisco Falcão ..................................................270
Contrato de concessão - Intervenção - Alegação de nulidades - Direito líquido
e certo - Ausência.

SEGUNDA SEÇÃO ............................................................................................................... 279

AR 4.590-PR - Rel. Min. Maria Isabel Gallotti ..................................................281


Ação rescisória - Procedência - Ação de prestação de contas - Segunda fase -
Contrato de abertura de crédito em conta corrente.
CC 181.190-AC - Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze ..........................................320
Conflito de competência - Não conhecimento - Exceção de pré-executividade -
Rejeição - Execução fiscal contra empresa em recuperação judicial.

TERCEIRA TURMA .............................................................................................................. 339

RMS 66.683-MG - Rel. Min. Nancy Andrighi ..................................................341


Prisão civil - Devedor de alimentos.
REsp 1.727.950-RJ - Rel. Min. Moura Ribeiro...................................................350
Obra musical - Remasterização - Lei n. 9.610/1998.
REsp 1.827.060-SP - Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino ..............................387
Incorporação imobiliária - Atraso na entrega da obra - Responsabilidade solidária.
REsp 1.841.953-PR - Rel. Min. Nancy Andrighi ...............................................404
Dano moral - Processo de separação judicial.
REsp 1.930.256-SP - Rel. p/ acórdão Min. Marco Aurélio Bellizze ...................418
Divulgação indevida de materiais fotográficos - Internet - Marco Civil da
Internet, art. 21.
REsp 1.947.652-GO - Rel. Min. Moura Ribeiro ................................................454

Obra musical - Direito autoral - Lei n. 9.610/1998.

QUARTA TURMA ................................................................................................................. 471

REsp 1.237.567-MT - Rel. Min. Marco Buzzi ...................................................473

Ação desconstitutiva - Contrato de arrendamento rural - Extinção do processo


sem julgamento do mérito - Ilegitimidade ativa ad causam - NCPC, art. 485,
VI.

REsp 1.334.097-RJ - Rel. Min. Luis Felipe Salomão ..........................................495

Indenização - Cabimento - Chacina da Candelária - Programa de televisão.

REsp 1.450.667-PR - Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira ...................................550

Cédula de produto rural financeira - Lei n. 8.929/1994, art. 4º-A - Título -


Resgate - Indicação do índice de preços.

REsp 1.545.217-PR - Rel. p/ acórdão Min. Maria Isabel Gallotti ......................562

Previdência privada - Casamento - Dissolução.

REsp 1.783.269-MG - Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira .................................620

Responsabilidade civil - Dano moral - Menor de idade - Rede social - Publicação


ofensiva.

REsp 1.789.505-SP - Rel. Min. Marco Buzzi .....................................................643

Bem de família - Contrato de locação comercial - Caução - Penhora.

REsp 1.914.596-RJ - Rel. Min. Luis Felipe Salomão ..........................................655

Veiculação de notícias ofensivas - Identificação dos usuários responsáveis.

TOMO 2
TERCEIRA SEÇÃO ............................................................................................................... 697

CC 172.669-DF - Rel. Min. Ribeiro Dantas.......................................................699

Conflito interno e negativo de competência - Prevenção - RISTJ, arts. 71 e 72,


I e II.
QUINTA TURMA .................................................................................................................. 707

AgRg no AgRg no AREsp 1.883.043-DF - .......................................................709


Rel. p/ acórdão Min. João Otávio de Noronha

Tribunal do Júri - CPP, art. 482, parágrafo único - Julgamento - Nulidade


absoluta - Quesitação deficiente.

AgRg no AgRg no RHC 141.350-PR - Rel. Min. .............................................775


Jesuíno Rissato (Desembargador Convocado do TJDFT)

Agravo regimental - Lei n. 8.038/1990, art. 39 - Reconsideração parcial - RISTJ,


art. 258, § 3º.

AgRg no AREsp 1.877.128-DF - ......................................................................796


Rel. p/ acórdão Min. Reynaldo Soares da Fonseca

Apelação - Crime de trânsito - Laudo complementar - Nulidade. AgRg no


AREsp n. 1.877.128 - DF.

AgRg no HC 721.090-TO- Rel. Min. Joel Ilan Paciornik ..................................819

Decisão monocrática - CPC, art. 932 - CPP, art. 3º - Princípio da colegialidade


- Ofensa - Não ocorrência.

AgRg nos EDcl no REsp - 1.925.770-RJ............................................................837


Rel. Min. Jesuíno Rissato (Desembargador Convocado do TJDFT)

Operação Cadeia Velha - Crime de corrupção passiva - Organização criminosa


- Súmula n. 7-STJ.

HC 684.254-MG - Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca ................................891

Foro por prerrogativa de função - Crime comum - Princípio da Especialidade.

RHC 153.528-SP - Rel. Min. Ribeiro Dantas ....................................................918

Crime contra a economia popular - Acusado foragido - CPP, art. 316, parágrafo
único - Pirâmide financeira - Prisão preventiva - Revisão periódica.

RMS 66.734-SP - Rel. Min. João Otávio de Noronha ........................................928

Inquérito policial - Arquivamento - CPP, art. 28 - Homologação judicial.


SEXTA TURMA..................................................................................................................... 737

AgRg no AREsp 1.360.839-RJ - Rel. Min. Sebastião Reis Júnior ......................939


Prova derivada - Contaminação - Interceptação telefônica - Fundamentação -
Necessidade.
AgRg no REsp 1.329.642-AM - Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro .............963
Restituição das coisas apreendidas - CPP, art. 123 - Prazo de 90 dias - Natureza
processual.
HC 626.983-PR - Rel. Min. Olindo Menezes ....................................................967
(Desembargador Convocado do TRF 1ª Região)
Internet - Marco Civil da Internet - Registro de conexão - Registro de acesso.
HC n. 626.983 - PR.
HC 663.055-MT - Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz ..........................................986
Crime de porte ilegal de arma de fogo de uso permitido - Crime de tráfico de
drogas - Domicílio do acusado - Violação - Provas - Ilicitude.
HC 712.781-RJ - Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz ........................................... 1010
Crime de roubo majorado - Absolvição - CPP, art. 226 - Crime de corrupção de
menores
RHC 133.177-PI - Rel. Min. Laurita Vaz ......................................................... 1046
Denúncia - Recebimento - Ação penal - CPP, art. 41 - Justa causa.
RMS 54.177-RJ - Rel. Min. Olindo Menezes................................................... 1063
(Desembargador Convocado do TRF 1ª Região)
Operação Saqueador - Bloqueio de ativos financeiros das empresas - Crime de
lavagem de dinheiro.
REsp 1.825.022-MG - Rel. Min. Sebastião Reis Júnior .................................... 1083
Tribunal do Júri - Perícia oficial - Tese de nulidade afastada.
REsp 1.956.133-DF - Rel. Min. Laurita Vaz .................................................... 1110
Execução penal - Novo crime - Prescrição da pretensão executória.
ÍNDICE ANALÍTICO ............................................................................................................ 1117

ÍNDICE SISTEMÁTICO ........................................................................................................ 1133

SIGLAS E ABREVIATURAS ................................................................................................. 1139

REPOSITÓRIOS AUTORIZADOS E CREDENCIADOS PELO SUPERIOR TRIBUNAL DE


JUSTIÇA ............................................................................................................................. 1145
Jurisprudência
Corte Especial
AGRAVO INTERNO NA CARTA ROGATÓRIA N. 16.908-EX
(2021/0325836-6)

Relator: Ministro Humberto Martins


Agravante: Andrea Silva Anjos
Advogado: Defensoria Pública da União - Curador Especial
Outro Nome: Andrea da Silva Anjos Pereira
Advogado: Defensoria Pública da União - Curador Especial
Agravado: Noberto Agostinho Marques Timoteo
Jusrogante: Tribunal Judicial da Comarca de Santarém - Juizo de Execução
do Entrocamento - Juiz 1
A.Central: Ministério da Justiça e Segurança Pública

EMENTA

Agravo interno na carta rogatória. Intimação prévia efetivada.


Devolução dos autos à Justiça rogante ante o cumprimento da
diligência.
Considera-se consumada a diligência requerida pela Justiça
rogante quando a parte interessada, devidamente intimada, apõe
sua assinatura atestando o recebimento da carta. É desnecessária,
portanto, a remessa dos autos à Justiça Federal, devendo a comissão
ser devolvida à Justiça rogante por intermédio da autoridade central
competente.
Agravo interno improvido.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas,


acordam os Ministros da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, por
unanimidade, negar provimento ao recurso, nos termos do voto do Sr. Ministro
Relator.
Os Srs. Ministros Francisco Falcão, Nancy Andrighi, Laurita Vaz, João
Otávio de Noronha, Maria Thereza de Assis Moura, Herman Benjamin,
Og Fernandes, Luis Felipe Salomão, Mauro Campbell Marques, Benedito
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Gonçalves, Raul Araújo, Paulo de Tarso Sanseverino e Maria Isabel Gallotti


votaram com o Sr. Ministro Relator.
Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Jorge Mussi.
Brasília (DF), 22 de março de 2022 (data do julgamento).
Ministro Jorge Mussi, Presidente
Ministro Humberto Martins, Relator

DJe 24.3.2022

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Humberto Martins: Cuida-se de agravo interno interposto


pela Defensoria Pública da União, no exercício da curadoria de Andrea Silva Anjos,
contra a decisão que concedeu o exequatur sem encaminhar a carta rogatória à
Justiça Federal e determinou a devolução dos autos à Justiça rogante sob o
argumento de que, como o pedido de cooperação restringia-se à intimação da
parte interessada de decisão relativa à ação de execução e ciência de documentos
judiciais, consumara-se a comissão com a intimação efetuada via carta de ordem
intimatória (fls. 31-33).
A carta de ordem intimatória foi cumprida no dia 21/10/2021 (fls. 32-33).
Transcorreu in albis o prazo para apresentação da impugnação (fl. 34).
A Defensoria Pública da União, curadora especial da parte interessada,
não se opôs à concessão do exequatur (fls. 36-37). O Ministério Público Federal
opinou pela devolução do processo à origem, cumprida a diligência rogada
(fls. 41-42). O Presidente do STJ concedeu o exequatur sem remessa dos autos
à Justiça Federal e determinou a devolução dos autos à Justiça rogante pelos
seguintes fundamentos (fls. 44-45):

Conforme entendimento deste Superior Tribunal de Justiça é desnecessária a


remessa dos autos à Justiça Federal quando a parte é devidamente intimada:
Agravo interno na carta rogatória. Intimação por carta de ordem intimatória.
Devolução dos autos à Justiça rogante ante o cumprimento da diligência.
1. Considera-se consumada a diligência requerida pela Justiça rogante quando
a parte interessada, devidamente intimada mediante carta de ordem intimatória,
apõe assinatura no próprio mandado e recebe a contrafé oferecida pelo oficial de
Justiça, hipótese em que é desnecessária a remessa dos autos à Justiça Federal,

26
Jurisprudência da CORTE ESPECIAL

devendo a comissão ser devolvida à Justiça rogante por intermédio da autoridade


central competente.
2. Agravo interno desprovido. Diante do êxito na intimação pessoal da parte
interessada (fls. XX XX), considero consumado o objeto da comissão. Pelo exposto,
determino a devolução dos autos à Justiça rogante.
(AgInt na Carta Rogatória n. 12.371 - EX (2017/0195590-9).
Pelo exposto, diante do êxito na intimação pessoal da parte interessada,
considero consumado o objeto da comissão. Assim, tendo em vista o seu devido
cumprimento e com fulcro no art. 216-X do Regimento Interno do Superior
Tribunal de Justiça, determino a devolução dos autos à Justiça rogante por
intermédio da autoridade central.

Contra essa decisão, foi interposto o presente agravo interno.


A agravante alega que (fl. 50):

No presente caso - além de nenhum dos demais requisitos restar cumprido


-, apesar de constar o nome da parte interessada escrito a caneta no AR, há
fundadas dúvidas de que seja a assinatura da parte interessa. Veja-se que o nome
está apenas escrito em letra de forma, sem que possua as características típicas de
uma assinatura.

O Ministério Público Federal não se pronunciou.


É, no essencial, o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Humberto Martins (Relator): O agravo interno não merece


prosperar.
Verifica-se que a parte interessada foi devidamente intimada, tendo aposto
sua assinatura e confirmado, assim, o recebimento da intimação (fls. 32-33).
Assim, ficou demonstrada que a parte interessada tomou conhecimento
do conteúdo da carta rogatória e dos documentos encaminhados pela Justiça
rogante.
A propósito, confira-se julgado da Corte Especial do STJ:

Agravo interno na carta rogatória. Intimação prévia, via postal. Aviso de


recebimento assinado pelo próprio interessado. Devolução dos autos à Justiça
rogante ante o cumprimento da diligência. Agravo interno desprovido.

RSTJ, a. 34, (265): 23-33, Janeiro/Março 2022 27


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

1. Como a parte Interessada assinou o aviso de recebimento da intimação


prévia, conclui-se que esteja ciente da notificação objeto da rogatória, uma vez
que acompanhada de cópia integral dos autos.
2. Consumada a diligência requerida, desnecessária a remessa dos autos à
Justiça Federal, motivo pelo qual eles devem ser devolvidos à Justiça rogante, por
intermédio da autoridade central competente.
3. Agravo interno desprovido. (AgInt na CR n. 11.262, relatora Ministra Laurita
Vaz, Corte Especial, DJe de 14/9/2017.)

Assim, cumprida a diligência requerida, é desnecessária a remessa dos


autos à Justiça Federal, razão pela qual deve ser mantida a decisão agravada,
que determinou a devolução dos autos à Justiça rogante por intermédio da
autoridade central competente.
Ante o exposto, nego provimento ao agravo interno.
É como penso. É como voto.

AGRAVO INTERNO NA SUSPENSÃO DE LIMINAR E DE SENTENÇA N.


2.925-MT (2021/0123084-6)

Relator: Ministro Presidente do STJ


Agravante: Ministerio Publico do Estado de Mato Grosso
Agravado: Município de Cuiabá
Advogado: Allison Akerley da Silva - MT008930
Requerido: Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso

EMENTA

Agravo interno na suspensão de liminar e de sentença. Lesão


à saúde e à ordem pública administrativa reconhecida. Política
de vacinação. Combate Covid-19. Ausência de impugnação dos
fundamentos da decisão recorrida.
1. São insuficientes ao cumprimento do dever de dialeticidade
recursal as alegações genéricas de inconformismo, devendo a parte,

28
Jurisprudência da CORTE ESPECIAL

de forma clara, objetiva e concreta, demonstrar o desacerto da decisão


impugnada. Precedentes.
2. O deferimento do pedido de suspensão está condicionado à
demonstração de interesse público e para evitar grave lesão à ordem,
à saúde, à segurança ou à economia pública. Como no caso dos autos,
é de ser deferida a excepcional medida de suspensão de liminar para
evitar que sejam postas em risco a ordem administrativa.
3. Durante o combate à pandemia de covid-19, a presunção da
legitimidade dos atos administrativos deve ser preservada de modo
a evitar desordem na lógica de funcionamento regular do Estado na
prestação dos serviços de saúde.
4. A suspensão de liminar e de sentença é medida excepcional
que não tem natureza jurídica de recurso, razão pela qual não propicia
a devolução do conhecimento da matéria para eventual reforma.
Agravo interno improvido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,


acordam os Ministros da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça,
por unanimidade, negar provimento ao agravo, nos termos do voto do Sr.
Ministro Relator. Os Srs. Ministros Nancy Andrighi, Laurita Vaz, João Otávio
de Noronha, Maria Thereza de Assis Moura, Herman Benjamin, Luis Felipe
Salomão, Benedito Gonçalves, Raul Araújo, Maria Isabel Gallotti e Sérgio
Kukina votaram com o Sr. Ministro Relator.
Ausentes, justificadamente, os Srs. Ministros Francisco Falcão, Og
Fernandes, Mauro Campbell Marques e Paulo de Tarso Sanseverino.
Licenciado o Sr. Ministro Felix Fischer.
Convocado o Sr. Ministro Sérgio Kukina.
Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Jorge Mussi.
Brasília (DF), 16 de março de 2022 (data do julgamento).
Ministro Jorge Mussi, Presidente
Ministro Humberto Martins, Relator

DJe 5.4.2022

RSTJ, a. 34, (265): 23-33, Janeiro/Março 2022 29


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Humberto Martins: Cuida-se de agravo interno interposto


pelo Ministério Público do Estado de Mato Grosso contra a decisão de fls. 175-
178, que acolheu o pedido de suspensão de liminar e de sentença pleiteado
pelo Município de Cuiabá (MT) determinando a suspensão de decisão liminar
proferida nos autos da Ação Civil Pública n. 1011427-36.2021.8.11.0041,
que havia determinado a criação de, no mínimo, 10 novos postos de vacinação
contra covid-19 para o grupo prioritário de idosos, no prazo de 3 dias úteis,
indicando os bairros a serem atendidos, bem como a forma como a vacinação
deveria ocorrer.
O referido agravo faz referência a processo que tramita no âmbito da Vara
Especializada em Ação Civil Pública e Popular de Cuiabá, proposta pela 34ª
Promotoria de Justiça Cível do Ministério Público do Estado de Mato Grosso,
que requereu a criação de novos postos de vacinação contra a covid-19 naquele
município.
O Juízo de primeiro grau deferiu o pedido ministerial, que motivou
o ajuizamento da Suspensão de Liminar e de Sentença n. 1006534-
28.2021.8.11.0000 no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado de Mato
Grosso. Por entender estarem ausentes os pressupostos da suspensão de liminar,
a presidência daquela corte indeferiu o pedido (fls. 44-52).
Em face dessa decisão, o Município de Cuiabá manejou o pedido de
contracautela no qual alegou lesão à ordem administrativa e à saúde pública.
Acolhido o pedido feito pelo ente municipal, o Ministério Público do
Estado de Mato Grosso manejou o presente recurso (fls. 183-194), sustentando
a inadmissibilidade da suspensão de liminar por ausência de lesão aos institutos
de proteção previstos na Lei n. 8.437/1992 bem como por estarem presentes o
fumus boni iures e o periculum in mora na medida liminar requerida ao Juízo de
primeiro grau.
O agravado apresentou impugnação ao presente recurso às fls. 198-204.
É, no essencial, o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Humberto Martins (Relator): O Ministério Público do


Estado de Mato Grosso, irresignado com a decisão de fls. 175-178, que acolheu
o pedido de suspensão de decisão pleiteado pelo Município de Cuiabá, que

30
Jurisprudência da CORTE ESPECIAL

determinou a suspensão dos efeitos da decisão proferida pela Justiça mato-


grossense, manejou o presente agravo interno.
Da análise da peça recursal não se encontram alegações a contestar os
fundamentos utilizados que reconheceram grave risco à ordem e à saúde públicas
que alicerçaram a decisão recorrida.
É cabível a suspensão de liminar em ações movidas contra o Poder
Público sempre que houver presente manifesto interesse público ou flagrante
ilegitimidade e para evitar grave lesão à ordem e a saúde públicas, como foi
demonstrado no presente caso, no qual se constatou interferência judicial
na política pública de imunização da covid-19 em implementação pela
municipalidade.
A peça recursal busca reiterar fundamentos vinculados ao mérito da ação
principal, momento no qual registrei o entendimento de que “a escolha e a
forma de realização do plano de imunização adotado pelo Município requerente
se deu de acordo com planejamento realizado pelo corpo técnico da secretaria
municipal de saúde que inclusive levou em consideração a composição amigável
formalizada nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1003497-
90.2021.8.11.0000, intermediada pela Central de Conciliação e Mediação do
Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso”.
Nesse sentido, o agravante não apresentou impugnação específica dos
fundamentos utilizados na decisão recorrida, motivo pelo qual, seguindo o
entendimento do Superior Tribunal de Justiça, em atenção ao princípio da
dialeticidade recursal, é o caso de não conhecimento do presente recurso, uma
vez que as razões recursais devem infirmar os fundamentos da decisão cuja
alteração se pretende.
Para exemplificar, citem-se os seguintes julgados: AgInt no MS n. 26.142/
DF, Primeira Seção, relator Ministro Sérgio Kukina, DJe de 16/9/2020; AgInt
no AREsp n. 1.705.956/RS, Primeira Turma, relator Ministro Napoleão Nunes
Maia, DJe de 16/10/2020; AgInt no AREsp n. 1.722.459/SP, Terceira Turma,
relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, DJe de 30/11/2020; AgInt no AREsp
n. 522.019/RJ, Quarta Turma, relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, DJe
de 30/11/2020; e AgRg nos EDcl no AREsp n. 1.683.909/AM, Sexta Turma,
relator Ministro Sebastião Reis Júnior, DJe de 29/10/2020.
Superado este fato, as questões apresentadas no presente recurso vinculam-
se à não concordância do ente ministerial com a política vacinal implementada
pelo Município de Cuiabá objetivando o combate da covid-19.

RSTJ, a. 34, (265): 23-33, Janeiro/Março 2022 31


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Neste sentido, a decisão impugnada foi firme ao estabelecer:

[...]
No presente caso, há que se consignar que a questão ora em análise traz
semelhança com os processos já analisados nas Suspensões de Liminar e
de Sentença n. 2.918 e 2.922, portanto já apreciada por esta presidência
recentemente.
Diferencia-se o fato de que, naqueles processos, a questão tratou sobre o
combate à pandemia causada pela covid-19, mais especificamente sobre a
destinação de leitos de UTI regulados pelo ente municipal e estadual. Já neste
caso, o pedido apresentado pelo Município de Cuiabá diz respeito à interferência
judicial na política pública de imunização da covid-19 que está sendo
implementada pela municipalidade.
A questão de fundo, portanto, refere-se à lesão ao Sistema de Saúde do
Município de Cuiabá, que, em razão da liminar judicial deferida, se vê obrigado
a alterar o plano municipal de vacinação elaborado pela autoridade sanitária
municipal, que previu a realização da referida imunização em 3 fases. Reitero
que, com relação às decisões por mim proferidas no que diz respeito à pandemia
de covid-19, entendo que não se pode permitir que seja retirada dos atos
administrativos do Poder Executivo a presunção da legitimidade ou veracidade,
sob pena de se desordenar a lógica de funcionamento regular do Estado na
prestação do serviço de saúde.
O requerente informa que atualmente o Município de Cuiabá conta com 5
polos de vacinação, funcionando de acordo com as seguintes regras; Centro de
eventos do Pantanal, destinado ao atendimento de idosos acima de 65 anos
e trabalhadores da saúde; Sesc Balneário, para atendimento de idosos acima
de 65 anos e trabalhadores da saúde no modelo tradicional; Sesi Papa, para
atendimento de idosos em veículos pelo sistema “drive thru”, com espaço pós
vacina; UFMT, para atendimento de trabalhadores da saúde pelo sistema “drive
thru”; Assembleia Legislativa do Estado de Mato Grosso, para atendimento de
idosos acima de 65 anos e trabalhadores da saúde.
Destaque ainda a informação de que, na data do requerimento, o município já
havia aplicado 107.486 doses de vacina, sendo 80.532 referentes à primeira dose
e 26.954 referentes à segunda, tendo ainda cumprido com a reserva de segunda
dose determinada pelas diretrizes e critérios técnicos para a organização do
processo de imunização.
Considerando os prejuízos à saúde ocasionados por decisões liminares que,
em razão da sua natureza unipessoal, não consideram os fatores gerais que
interferem no Sistema de Saúde como um todo, o Conselho Nacional de Justiça
editou recentemente a Recomendação n. 92/2021 com o objetivo de orientar os
magistrados, à luz da independência funcional, a atuar na pandemia de covid-19,

32
Jurisprudência da CORTE ESPECIAL

de forma a fortalecer o sistema brasileiro de saúde, com observância à isonomia e


em atenção aos preceitos veiculados pela Lei de Introdução às Normas do Direito
Brasileiro.
[...].

Neste sentido, tendo em vista a comprovação de grave lesão à ordem


pública e o manifesto interesse público reconhecido, entendo que deve ser
mantida a decisão na qual foi deferido o pedido de contracautela.
Ante o exposto, nego provimento ao agravo interno.
É como penso. É como voto.

RSTJ, a. 34, (265): 23-33, Janeiro/Março 2022 33


Primeira Seção
AGRAVO INTERNO NO CONFLITO DE COMPETÊNCIA N. 174.764-MA
(2020/0234871-0)

Relator: Ministro Mauro Campbell Marques


Agravante: Ministério Público Federal
Agravado: José Eliomar da Costa Dias
Advogados: Carlos Sérgio de Carvalho Barros - MA004947
Eveline Silva Nunes - MA005332
Agravado: Município de Água Doce do Maranhão
Advogado: Marcos Paulo Sousa Campelo - PI005273
Suscitante: Juízo de Direito da 1ª Vara de Araioses - MA
Suscitado: Juízo Federal da 3ª Vara Cível de São Luís - SJ/MA

EMENTA

Processual Civil. Agravo interno no conflito de competência.


Conflito negativo de competência instaurado entre Juízos estadual
e federal. Ação de improbidade administrativa ajuizada por ente
municipal em razão de irregularidades em prestação de contas de verbas
federais. Mitigação das Súmulas 208/STJ e 209/STJ. Competência
cível da Justiça Federal (art. 109, I, da CF) absoluta em razão da
pessoa. Ausência de ente federal em qualquer dos polos da relação
processual. Jurisprudência do STJ. Competência da Justiça Estadual.
Agravo interno não provido.
1. No caso dos autos, o Município de Água Doce do Maranhão/
MA ajuizou ação de improbidade administrativa contra José Eliomar
da Costa Dias, em razão de irregularidades na prestação de contas de
verbas federais decorrentes de convênio firmado com o PRONAT.
2. A competência para processar e julgar ações de ressarcimento
ao erário e de improbidade administrativa, relacionadas à eventuais
irregularidades na utilização ou prestação de contas de repasses de
verbas federais aos demais entes federativos, estava sendo dirimida por
esta Corte Superior sob o enfoque das Súmulas 208/STJ (“Compete
à Justiça Federal processar e julgar prefeito municipal por desvio de
verba sujeita à prestação de contas perante órgão federal”) e 209/STJ
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

(“Compete à Justiça Estadual processar e julgar prefeito por desvio de


verba transferida e incorporada ao patrimônio municipal”).
3. O art. 109, I, da Constituição Federal prevê, de maneira geral,
a competência cível da Justiça Federal, delimitada objetivamente em
razão da efetiva presença da União, entidade autárquica ou empresa
pública federal, na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes
na relação processual. Estabelece, portanto, competência absoluta
em razão da pessoa (ratione personae), configurada pela presença dos
entes elencados no dispositivo constitucional na relação processual,
independentemente da natureza da relação jurídica litigiosa.
4. Por outro lado, o art. 109, VI, da Constituição Federal dispõe
sobre a competência penal da Justiça Federal, especificamente para
os crimes praticados em detrimento de bens, serviços ou interesse
da União, entidades autárquicas ou empresas públicas. Assim, para
reconhecer a competência, em regra, bastaria o simples interesse da
União, inexistindo a necessidade da efetiva presença em qualquer dos
polos da demanda.
5. Nesse contexto, a aplicação dos referidos enunciados sumulares,
em processos de natureza cível, tem sido mitigada no âmbito deste
Tribunal Superior. A Segunda Turma afirmou a necessidade de uma
distinção (distinguishing) na aplicação das Súmulas 208 e 209 do STJ,
no âmbito cível, pois tais enunciados provêm da Terceira Seção deste
Superior Tribunal, e versam hipóteses de fixação da competência em
matéria penal, em que basta o interesse da União ou de suas autarquias
para deslocar a competência para a Justiça Federal, nos termos do
inciso IV do art. 109 da CF. Logo adiante concluiu que a competência
da Justiça Federal, em matéria cível, é aquela prevista no art. 109, I, da
Constituição Federal, que tem por base critério objetivo, sendo fixada
tão só em razão dos figurantes da relação processual, prescindindo
da análise da matéria discutida na lide (excertos da ementa do REsp
1.325.491/BA, Rel. Ministro Og Fernandes, Segunda Turma, julgado
em 05/06/2014, DJe 25/06/2014).
6. Assim, nas ações de ressarcimento ao erário e improbidade
administrativa ajuizadas em face de eventuais irregularidades
praticadas na utilização ou prestação de contas de valores decorrentes
de convênio federal, o simples fato das verbas estarem sujeitas à

38
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO

prestação de contas perante o Tribunal de Contas da União, por si só,


não justifica a competência da Justiça Federal.
7. O Supremo Tribunal Federal já afirmou que o fato dos valores
envolvidos transferidos pela União para os demais entes federativos
estarem eventualmente sujeitos à fiscalização do Tribunal de Contas
da União não é capaz de alterar a competência, pois a competência
cível da Justiça Federal exige o efetivo cumprimento da regra prevista
no art. 109, I, da Constituição Federal.
8. Igualmente, a mera transferência e incorporação ao patrimônio
municipal de verba desviada, no âmbito civil, não pode impor de
maneira absoluta a competência da Justiça Estadual. Se houver
manifestação de interesse jurídico por ente federal que justifique a
presença no processo, (v.g. União ou Ministério Público Federal)
regularmente reconhecido pelo Juízo Federal nos termos da Súmula
150/STJ, a competência para processar e julgar a ação civil de
improbidade administrativa será da Justiça Federal.
9. Em síntese, é possível afirmar que a competência cível da
Justiça Federal, especialmente nos casos similares à hipótese dos
autos, é definida em razão da presença das pessoas jurídicas de direito
público previstas no art. 109, I, da CF na relação processual, seja
como autora, ré, assistente ou oponente e não em razão da natureza
da verba federal sujeita à fiscalização da Corte de Contas da União.
Precedentes: AgInt no CC 167.313/SE, Rel. Ministro Francisco Falcão,
Primeira Seção, julgado em 11/03/2020, DJe 16/03/2020; AgInt no
CC 157.365/PI, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira
Seção, julgado em 12/02/2020, DJe 21/02/2020; AgInt nos EDcl no
CC 163.382/PA, Rel. Ministro Herman Benjamin, Primeira Seção,
julgado em 27/11/2019, DJe 07/05/2020; AgRg no CC 133.619/PA,
Rel. Ministro Sérgio Kukina, Primeira Seção, julgado em 09/05/2018,
DJe 16/05/2018.
10. No caso dos autos, não figura em nenhum dos pólos da
relação processual ente federal indicado no art. 109, I, da Constituição
Federal, o que afasta a competência da Justiça Federal para processar
e julgar a referida ação. Ademais, não existe nenhuma manifestação
de interesse em integrar o processo por parte de ente federal e o Juízo
Federal consignou que o interesse que prevalece restringe-se à órbita

RSTJ, a. 34, (265): 35-136, Janeiro/Março 2022 39


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

do Município autor, o que atrai a competência da Justiça Estadual


para processar e julgar a demanda.
11. Agravo interno não provido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos esses autos em que são partes as acima


indicadas, acordam os Ministros da Primeira Seção do Superior Tribunal de
Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas, o seguinte resultado
de julgamento: “A Primeira Seção, por unanimidade, negou provimento ao
agravo interno, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator.”
Os Srs. Ministros Benedito Gonçalves, Assusete Magalhães, Regina
Helena Costa, Gurgel de Faria, Manoel Erhardt (Desembargador convocado
do TRF-5ª Região), Francisco Falcão e Herman Benjamin votaram com o Sr.
Ministro Relator.
Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Sérgio Kukina.
Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Og Fernandes.
Brasília (DF), 09 de fevereiro de 2022 (data do julgamento).
Ministro Mauro Campbell Marques, Relator

DJe 17.2.2022

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Mauro Campbell Marques: Trata-se de agravo interno


interposto pelo Ministério Público Federal em face de decisão desta Relatoria
assim ementada:

Processual Civil e Constitucional. Conflito negativo de competência instaurado


entre Juízos estadual e federal. Ação de improbidade administrativa ajuizada por ente
municipal em razão de irregularidades em prestação de contas de verbas federais.
Mitigação das Súmulas 208/STJ e 209/STJ. Competência cível da Justiça Federal (art.
109, I, da CF) absoluta em razão da pessoa. Ausência de ente federal em qualquer dos
polos da relação processual. Jurisprudência do STJ. Competência da Justiça Estadual

Nas razões do agravo interno, sustenta o agravante que “Muito embora a


Primeira Seção desse STJ venha utilizando a técnica do distinguishing para mitigar

40
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO

os Enunciados supramencionados, entende-se que a presença de ente federal não


pode ser o único apoio objetivo para a manutenção da causa na Justiça Federal. Isso
porque a União, lamentável e frequentemente desvia-se do propósito de fiscalizar a
prestação de contas e a correta aplicação de suas próprias verbas, em claro descaso com
a res publica e com os seus próprios interesses, que são indisponíveis e, portanto, não
comportam renúncia. Nesse quadro, o que determina a fixação da competência não é a
presença da União ou dos demais entes públicos federais na demanda, mas o objeto em
lide” (e-STJ, fl. 308).
Houve apresentação de contraminuta.
É o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Mauro Campbell Marques (Relator): Inicialmente, é


necessário consignar que o presente processo atrai a incidência do Enunciado
Administrativo n. 4/STJ: “Nos feitos de competência cível originária e recursal do
STJ, os atos processuais que vierem a ser praticados por julgadores, partes, Ministério
Público, procuradores, serventuários e auxiliares da Justiça, a partir de 18 de março
de 2016, deverão observar os novos procedimentos trazidos pelo CPC/2015, sem
prejuízo do disposto em legislação processual especial”.
A pretensão não comporta acolhimento.
No caso dos autos, o Município de Água Doce do Maranhão/MA ajuizou
ação de improbidade administrativa contra José Eliomar da Costa Dias, em
razão de irregularidades na prestação de contas de verbas federais decorrentes de
convênio firmado com o PRONAT.
A competência para processar e julgar ações de ressarcimento ao erário
e de improbidade administrativa, relacionadas à eventuais irregularidades na
utilização ou prestação de contas de repasses de verbas federais aos demais entes
federativos, estava sendo dirimida por esta Corte Superior sob o enfoque das
Súmulas 208/STJ (“Compete à Justiça Federal processar e julgar prefeito municipal
por desvio de verba sujeita à prestação de contas perante órgão federal”) e 209/
STJ (“Compete à Justiça Estadual processar e julgar prefeito por desvio de verba
transferida e incorporada ao patrimônio municipal”).
O art. 109, I, da Constituição Federal prevê, de maneira geral, a
competência cível da Justiça Federal, delimitada objetivamente em razão da

RSTJ, a. 34, (265): 35-136, Janeiro/Março 2022 41


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

efetiva presença da União, entidade autárquica ou empresa pública federal, na


condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes na relação processual.
Estabelece, portanto, competência absoluta em razão da pessoa (ratione
personae), configurada pela presença dos entes elencados no dispositivo
constitucional na relação processual, independentemente da natureza da relação
jurídica litigiosa.
Por outro lado, o art. 109, VI, da Constituição Federal dispõe sobre a
competência penal da Justiça Federal, especificamente para os crimes praticados
em detrimento de bens, serviços ou interesse da União, entidades autárquicas
ou empresas públicas. Assim, para reconhecer a competência, em regra, bastaria
o simples interesse da União, inexistindo a necessidade da efetiva presença em
qualquer dos polos da demanda.
Nesse contexto, a aplicação dos referidos enunciados sumulares, em
processos de natureza cível, tem sido mitigada no âmbito deste Tribunal Superior.
A Segunda Turma afirmou a necessidade de uma distinção (distinguishing) na
aplicação das Súmulas 208 e 209 do STJ, no âmbito cível, pois tais enunciados
provêm da Terceira Seção deste Superior Tribunal, e versam hipóteses de fixação
da competência em matéria penal, em que basta o interesse da União ou de
suas autarquias para deslocar a competência para a Justiça Federal, nos termos
do inciso IV do art. 109 da CF. Logo adiante concluiu que a competência da
Justiça Federal, em matéria cível, é aquela prevista no art. 109, I, da Constituição
Federal, que tem por base critério objetivo, sendo fixada tão só em razão dos
figurantes da relação processual, prescindindo da análise da matéria discutida na
lide (excertos da ementa do REsp 1.325.491/BA, Rel. Ministro Og Fernandes,
Segunda Turma, julgado em 05/06/2014, DJe 25/06/2014).
No mesmo sentido, os recentes julgados da Primeira Seção desta Corte
Superior:

Processual Civil e Administrativo. Agravo regimental no conflito de


competência. Conflito negativo de competência instaurado entre Juízos estadual
e federal. Ação civil pública por ato de improbidade administrativa ajuizada por
município contra ex-prefeito. Irregularidades na aplicação de verbas oriundas do
FUNDEB. Inocorrência de complementação da União ao FUNDEB, no período das
irregularidades. Ausência de interesse da União reconhecida, pela Justiça Federal.
Art. 109, I, da Constituição Federal. Competência absoluta, em razão da pessoa.
Competência da Justiça Estadual para o julgamento do feito. Agravo regimental
improvido.

42
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO

I. Conflito de Competência suscitado nos autos de Ação Civil Pública ajuizada


pelo Município de Itapeva/SP, na qual postula a condenação de ex-Prefeito
pela prática de atos de improbidade administrativa, consubstanciados em
irregularidades na aplicação de verbas do FUNDEB, recebidas pelo Município, no
ano de 2004.
II. Nos termos da jurisprudência do STJ, (a) “a competência da Justiça Federal,
prevista no art. 109, I, da Constituição Federal, é fixada, em regra, em razão da
pessoa (competência ratione personae), levando-se em conta não a natureza da
lide, mas, sim, a identidade das partes na relação processual” (STJ, CC 105.196/
RJ, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Seção, DJe de 22/02/2010); e (b)
“deve-se observar uma distinção (distinguishing) na aplicação das Súmulas 208
e 209 do STJ, no âmbito cível. Isso porque tais enunciados provêm da Terceira
Seção deste Superior Tribunal, e versam hipóteses de fixação da competência
em matéria penal, em que basta o interesse da União ou de suas autarquias para
deslocar a competência para a Justiça Federal, nos termos do inciso IV do art. 109
da CF” (STJ, REsp 1.325.491/BA, Rel. Ministro Og Fernandes, Segunda Turma, DJe de
25/06/2014).
III. No caso, nenhum dos entes elencados no art. 109, I, da Constituição Federal
figura na relação processual, seja como autor, réu, assistente ou oponente e,
remetidos os autos à Justiça Federal, fora afastado, de forma expressa, o interesse
da União no julgamento do feito, pois, no período dos fatos apurados, não houve
complementação ao FUNDEB com verbas federais. Assim, compete ao Juízo
Estadual, suscitante, o julgamento do feito (Súmulas 150, 224 e 254/STJ).
IV. Agravo Regimental improvido.
(AgRg no CC 124.862/SP, Rel. Ministra Assusete Magalhães, Primeira Seção,
julgado em 24/02/2016, DJe 15/03/2016)

Processual Civil e Constitucional. Conflito negativo de competência instaurado


entre Juízos estadual e federal. Ação de ressarcimento de danos ao erário ajuizada
por município em face de ex-prefeito. Mitigação das Súmulas 208/STJ e 209/STJ.
Competência cível da Justiça Federal (art. 109, I, da CF). Competência absoluta em
razão da pessoa. Precedentes do STJ. Competência da Justiça Estadual.
1. No caso dos autos, o Município de Riachão do Jacuípe/BA ajuizou ação de
reparação de danos ao patrimônio público contra o espólio de Valfredo Carneiro
de Matos (ex-prefeito do município), em razão de irregularidades na prestação
de contas de verbas federais decorrentes de convênio firmado entre a União (por
meio do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação - FNDE) e o município
autor.
2. A competência para processar e julgar ações de ressarcimento ao erário
e de improbidade administrativa relacionadas à eventuais irregularidades na
utilização ou prestação de contas de repasses de verbas federais aos demais entes
federativos tem sido dirimida por esta Corte Superior sob o enfoque das Súmulas

RSTJ, a. 34, (265): 35-136, Janeiro/Março 2022 43


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

208/STJ (“Compete à Justiça Federal processar e julgar prefeito municipal por


desvio de verba sujeita à prestação de contas perante órgão federal”) e 209/
STJ (“Compete à Justiça Estadual processar e julgar prefeito por desvio de verba
transferida e incorporada ao patrimônio municipal”).
3. O art. 109, I, da Constituição Federal estabelece, de maneira geral, a
competência cível da Justiça Federal, delimitada objetivamente em razão da
efetiva presença da União, entidade autárquica ou empresa pública federal,
na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes na relação processual.
Estabelece, portanto, competência absoluta em razão da pessoa (ratione
personae), configurada pela presença dos entes elencados no dispositivo
constitucional na relação processual, independentemente da natureza da relação
jurídica litigiosa. Por outro lado, o art. 109, VI, da Constituição Federal dispõe
sobre a competência penal da Justiça Federal, especificamente para os crimes
praticados em detrimento de bens, serviços ou interesse da União, entidades
autárquicas ou empresas públicas. Assim, para reconhecer a competência, em
regra, bastaria o simples interesse da União, inexistindo a necessidade da efetiva
presença em qualquer dos polos da relação jurídica litigiosa.
4. A aplicação dos referidos enunciados sumulares, em processos de
natureza cível, tem sido mitigada no âmbito deste Tribunal Superior. A Segunda
Turma afirmou a necessidade de uma “distinção (distinguishing) na aplicação
das Súmulas 208 e 209 do STJ, no âmbito cível”, pois “tais enunciados provêm
da Terceira Seção deste Superior Tribunal, e versam hipóteses de fixação da
competência em matéria penal, em que basta o interesse da União ou de suas
autarquias para deslocar a competência para a Justiça Federal, nos termos do
inciso IV do art. 109 da CF”. Logo adiante concluiu que a “competência da Justiça
Federal, em matéria cível, é aquela prevista no art. 109, I, da Constituição Federal,
que tem por base critério objetivo, sendo fixada tão só em razão dos figurantes da
relação processual, prescindindo da análise da matéria discutida na lide” (excertos
da ementa do REsp 1.325.491/BA, Rel. Ministro Og Fernandes, Segunda Turma,
julgado em 05/06/2014, DJe 25/06/2014). No mesmo sentido, o recente julgado
da Primeira Seção deste Tribunal Superior: (CC 131.323/TO, Rel. Ministro Napoleão
Nunes Maia Filho, Primeira Seção, julgado em 25/03/2015, DJe 06/04/2015).
5. Assim, nas ações de ressarcimento ao erário e de improbidade administrativa
ajuizadas em face de eventuais irregularidades praticadas na utilização ou
prestação de contas de valores decorrentes de convênio federal, o simples fato
das verbas estarem sujeitas à prestação de contas perante o Tribunal de Contas da
União, por si só, não justifica a competência da Justiça Federal.
6. O Supremo Tribunal Federal já afirmou que o fato dos valores envolvidos
transferidos pela União para os demais entes federativos estarem eventualmente
sujeitos à fiscalização do Tribunal de Contas da União não é capaz de alterar
a competência, pois a competência cível da Justiça Federal exige o efetivo
cumprimento da regra prevista no art. 109, I, da Constituição Federal: (RE 589.840
AgR, Relator(a): Min. Cármen Lúcia, Primeira Turma, julgado em 10/05/2011, DJe-
099 divulg 25-05-2011 public 26-05-2011 Ement vol-02530-02 pp-00308).

44
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO

7. Igualmente, a mera transferência e incorporação ao patrimônio municipal


de verba desviada, no âmbito civil, não pode impor de maneira absoluta a
competência da Justiça Estadual. Se houver manifestação de interesse jurídico
por ente federal que justifique a presença no processo, (v.g. União ou Ministério
Público Federal) regularmente reconhecido pelo Juízo Federal nos termos da
Súmula 150/STJ, a competência para processar e julgar a ação civil de improbidade
administrativa será da Justiça Federal.
8. Em síntese, é possível afirmar que a competência cível da Justiça Federal,
especialmente nos casos similares à hipótese dos autos, é definida em razão da
presença das pessoas jurídicas de direito público previstas no art. 109, I, da CF na
relação processual, seja como autora, ré, assistente ou oponente e não em razão
da natureza da verba federal sujeita à fiscalização da Corte de Contas da União.
9. No caso dos autos, não figura em nenhum dos pólos da relação processual
ente federal indicado no art. 109, I, da Constituição Federal, e a União, regularmente
intimada, manifestou a ausência de interesse em integrar a lide, o que afasta a
competência da Justiça Federal para processar e julgar a referida ação.
10. Sobre o tema: AgRg no CC 109.103/CE, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia
Filho, Primeira Seção, DJe 13/10/2011; CC 109.594/AM, Rel. Ministro Luiz Fux,
Primeira Seção, DJe 22/09/2010; CC 64.869/AL, Rel. Min. Eliana Calmon, Primeira
Seção, DJ de 12.2.2007; CC 48.336/SP, Rel. Min. Castro Meira, Primeira Seção, DJ de
13.3.2006; AgRg no CC 41.308/SP, Rel. Min. Denise Arruda, Primeira Seção, DJ de
30.5.2005.
11. Conflito de competência conhecido para declarar a competência do Juízo
Estadual.
(CC 142.354/BA, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Primeira Seção,
julgado em 23/09/2015, DJe 30/09/2015)

Processual Civil e Administrativo. Conflito negativo de competência. Ação de


improbidade. Irregularidades na prestação de contas. Aplicação de verbas da
Fundação Nacional de Saúde-FUNASA. Até então, há a ausência de manifestação
expressa da União quanto ao interesse em integrar à lide. Súmula 150/STJ. Art.
109, I da CF/88. Rationae personae. Competência da Justiça Estadual.
1. Hipótese em que, malgrado se refira à ACP por ausência de prestação de
contas a órgão do Governo Federal, tendo em vista recursos por ele providos
através de Convênio, houve a incorporação da verba no patrimônio do Município,
o que, em tese, implica em conflito entre as Súmulas 208 e 209/STJ.
2. Nos termos da jurisprudência desta Casa, caracteriza-se o interesse da União
quando a verba objeto do litígio é oriunda do Erário Federal e sujeita à prestação
de contas e fiscalização por órgão federal, nos termos da Súmula 208/STJ.
3. Deve-se, no entanto, observar uma distinção na aplicação das Súmulas
208 e 209 do STJ, no âmbito cível, visto que tais enunciados provêm da Terceira

RSTJ, a. 34, (265): 35-136, Janeiro/Março 2022 45


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Seção deste Superior Tribunal, e versam hipóteses de fixação da competência


em matéria penal, em que basta o interesse da União ou de suas autarquias para
deslocar a competência para a Justiça Federal, nos termos do inciso IV do art. 109
da CF.
4. O art. 109 da CF/88 elenca a competência da Justiça Federal em um rol
taxativo que, em seu inciso I, menciona as causas a serem julgadas pelo juízo
federal em razão da pessoa, competindo a este último decidir sobre a existência
(ou não) de interesse jurídico que justifique, no processo, a presença da União,
suas autarquias ou empresas públicas, conforme dispõe a Súmula 150 do STJ.
5. Hipótese em que não há nos autos manifestação de interesse na causa de
qualquer um desses entes elencados no dispositivo constitucional.
6. Assim, a despeito da Súmula 208 do STJ, a competência absoluta enunciada
no art. 109, I, da CF faz alusão, de forma clara e objetiva, às partes envolvidas no
processo, tornando despicienda, dessa maneira, a análise da matéria discutida em
juízo.
7. Conflito conhecido para declarar competente o Juízo de Direito da 1ª Vara
Cível da Comarca de Colinas do Tocantins.
(CC 131.323/TO, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Seção,
julgado em 25/03/2015, DJe 06/04/2015)

Assim, nas ações de ressarcimento ao erário e improbidade administrativa


ajuizadas em face de eventuais irregularidades praticadas na utilização ou
prestação de contas de valores decorrentes de convênio federal, o simples fato
das verbas estarem sujeitas à prestação de contas perante o Tribunal de Contas
da União, por si só, não justifica a competência da Justiça Federal.
O Supremo Tribunal Federal já afirmou que o fato dos valores envolvidos
transferidos pela União para os demais entes federativos estarem eventualmente
sujeitos à fiscalização do Tribunal de Contas da União não é capaz de alterar
a competência, pois a competência cível da Justiça Federal exige o efetivo
cumprimento da regra prevista no art. 109, I, da Constituição Federal:

Agravo regimental no recurso extraordinário. Constitucional. Competência da


Justiça Estadual para o julgamento de ações cíveis nas quais não figure como parte
qualquer das pessoas elencadas no art. 109, inc. I, da Constituição da República.
Irrelevância da alegação de prejuízo a entidade paraestatal, custeada por verba
sujeita à fiscalização do Tribunal de Contas da União. Precedente. Agravo regimental
ao qual se nega provimento. (RE 589.840 AgR, Relator(a): Min. Cármen Lúcia,
Primeira Turma, julgado em 10/05/2011, DJe-099 divulg 25-05-2011 public 26-05-
2011 Ementa vol-02530-02 pp-00308)

46
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO

Igualmente, a mera transferência e incorporação ao patrimônio municipal


de verba desviada, no âmbito civil, não pode impor de maneira absoluta a
competência da Justiça Estadual. Se houver manifestação de interesse jurídico
por ente federal que justifique a presença no processo, (v.g. União ou Ministério
Público Federal) regularmente reconhecido pelo Juízo Federal nos termos
da Súmula 150/STJ, a competência para processar e julgar a ação civil de
improbidade administrativa será da Justiça Federal.
Em síntese, é possível afirmar que a competência cível da Justiça Federal,
especialmente nos casos similares à hipótese dos autos, é definida em razão da
presença das pessoas jurídicas de direito público previstas no art. 109, I, da CF
na relação processual, seja como autora, ré, assistente ou oponente e não em
razão da natureza da verba federal sujeita à fiscalização da Corte de Contas da
União.
Sobre o tema, a orientação deste Tribunal Superior:

Processual Civil. Conflito de competência. Improbidade administrativa.


Prefeito. Verbas do PNAE. Prestação de contas. Ausência de interesse da União.
Súmula 150/STJ. Competência da Justiça Estadual.
I - Na origem, trata-se de ação civil pública por ato de improbidade
administrativa c/c ressarcimento de dano ao erário público proposta pelo
Município de Monte Alegre/SE em desfavor do ex-prefeito, João Vieira de Aragão.
II - A matéria objeto do presente conflito de competência já ascendeu a esta
Corte em outras oportunidades, dando ensejo à sedimentação do seguinte
entendimento: AgRg no CC 133.619/PA, Rel. Ministro Sérgio Kukina, Primeira
Seção, julgado em 9/5/2018, DJe 16/5/2018 e AgInt no REsp 1.589.661/SP, Rel.
Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, julgado em 21/2/2017, DJe 24/3/2017.
III - A fixação da competência em favor da Justiça Federal ocorre apenas nas
causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem
interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou opoentes (CF, art. 109, I).
Cuida-se, pois, de regra de competência ratione personae.
IV - A teor do enunciado da Súmula 150 do Superior Tribunal de Justiça,
“Compete à Justiça Federal decidir sobre a existência de interesse jurídico que
justifique a presença, no processo, da União, suas autarquias ou empresas pública”.
No caso, o Juízo Federal suscitado declinou sua competência em virtude da
ausência de manifestação de interesse do FNDE em integrar a lide. Nesse sentido,
já decidiu a C. Primeira Seção desta Corte, em processo de minha relatoria: AgInt
no CC 138.008/PR, Rel. Ministro Francisco Falcão, Primeira Seção, julgado em
22/3/2017, DJe 27/3/2017.

RSTJ, a. 34, (265): 35-136, Janeiro/Março 2022 47


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

V - Há de se reconhecer, portanto, a incompetência do Juízo Federal para o


processamento e julgamento da presente demanda, declarando-se competente
o Juízo Estadual suscitante.
V VI - Agravo interno improvido.
(AgInt no CC 167.313/SE, Rel. Ministro Francisco Falcão, Primeira Seção, julgado
em 11/03/2020, DJe 16/03/2020)

Processo Civil. Agravo interno em conflito de competência. ACP por improbidade


administrativa ajuizada pelo Município de Corrente/PE contra ex-prefeito, por
supostas irregularidades em execução de convênio com órgão federal. Ausência
de ente federal nos polos da ação. Interesse da União afastado. A competência
da Justiça Federal, em matéria cível, é aquela prevista no art. 109, I da CF/88, que
tem por base critério objetivo, fixada tão só em razão dos figurantes da relação
processual, prescindindo da análise da matéria discutida na lide. Competência do
Juízo Estadual suscitado. Agravo interno do Parquet federal desprovido.
1. Conflito Negativo de Competência estabelecido entre o Juízo Federal da
Vara de Corrente/PI, suscitante, e o Juízo de Direito da Vara Única de Corrente/PI,
suscitado, nos autos da Ação Civil Pública ajuizada pelo Município de Corrente/
PI perante o Juízo Estadual contra ex-Alcaide, em virtude de suposta prática de
ato de improbidade administrativa quanto à aplicação de recursos oriundos de
convênio com órgão federal.
2. Acerca do tema, esta Corte Superior tem a diretriz de que, nas ações de
ressarcimento ao erário e de improbidade administrativa ajuizadas em face
de eventuais irregularidades praticadas na utilização ou prestação de contas
de valores decorrentes de convênio federal, o simples fato das verbas estarem
sujeitas à prestação de contas perante o Tribunal de Contas da União, por si só,
não justifica a competência da Justiça Federal (CC 142.354/BA, Rel. Min. Mauro
Campbell Marques, DJe 30.9.2015).
3. O art. 109 da CF/88 elenca a competência da Justiça Federal em rol taxativo
que, em seu inciso I, menciona as causas a serem julgadas pelo juízo federal
em razão da pessoa, competindo a este decidir sobre a existência de interesse
jurídico que justifique, no processo, a presença da União, suas autarquias ou
empresas públicas (Súmula 150/STJ).
4. Na espécie, não figura, em nenhum dos polos, ente federal indicado no art.
109, I, da CF/1988. Remetidos os autos à Justiça Federal, afastou-se o interesse
federal na questão, firmando-se, assim, a competência da Justiça Estadual para
processar e julgar a lide. Ilustrativos: AgRg no CC 133.619/PA, Rel. Min. Sérgio
Kukina, DJe 16.5.2018; AgRg no CC 143.460/PA, Rel. Min. Assusete Magalhães, DJe
19.12.2016.
5. Agravo Interno do Parquet Federal desprovido.
(AgInt no CC 157.365/PI, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira
Seção, julgado em 12/02/2020, DJe 21/02/2020)

48
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO

Agravo interno no conflito negativo de competência. Ação de improbidade


administrativa lastreada em supostas ilegalidades quanto ao uso de recursos
advenientes de convênio firmado entre o Município de Placas/PA e o Ministério
dos Esportes. Manifestação expressa da União de que não intervirá no processo,
firmando-se, por isso, a competência da Justiça Estadual para a lide. Parecer do
MPF pela competência do Juízo Federal. Agravo interno do MPF desprovido.
1. Cuidam os autos de Ação de Improbidade Administrativa ajuizada pelo
Município de Placas/PA contra o ex-Prefeito Municipal, ao argumento de que o
Gestor Público não comprovou o correto destino dos recursos advenientes de
convênio firmado entre a municipalidade e o Ministério dos Esportes.
2. O art. 109 da CF/88 elenca a competência da Justiça Federal em um rol
taxativo que, em seu inciso I, menciona as causas a serem julgadas pelo Juízo
Federal em razão da pessoa, competindo a este último decidir sobre a existência
(ou não) de interesse jurídico que justifique, no processo, a presença da União,
suas autarquias ou empresas públicas, conforme dispõe a Súmula 150/STJ. Assim,
a despeito da Súmula 208 do STJ, a competência absoluta enunciada no art. 109,
I, da CF faz alusão, de forma clara e objetiva, às partes envolvidas no processo,
tornando despicienda, dessa maneira, a análise da matéria discutida em juízo.
3. No caso dos autos, há registro de que a União manifestou não ter interesse
em intervir na lide, razão pela qual não figura, em nenhum dos polos da relação
processual, ente federal indicado no art. 109, I da Constituição Federal, o que atrai
a competência da Justiça Estadual para processar e julgar a demanda de origem.
4. Agravo Interno não provido.
(AgInt nos EDcl no CC 163.382/PA, Rel. Ministro Herman Benjamin, Primeira
Seção, julgado em 27/11/2019, DJe 07/05/2020)

Processual Civil e Administrativo. Agravo regimental no conflito de


competência. Ação de improbidade administrativa. Verbas repassadas ao
município por meio de convênio com o FNDE. Ausência de interesse da União.
Competência da Justiça Estadual.
1. Nos termos do art. 109, I, da CF, a competência da Justiça Federal é ratione
personae, exigindo-se a presença da União, de entidade autárquica ou de
empresa pública federal na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes.
2. Em regra, é competente a Justiça Estadual para processar e julgar agente
público acusado de desvio de verba recebida em razão de convênio firmado com
a ente federal.
3. Considerando que na subjacente ação civil pública por ato de improbidade
administrativa não se descortina reflexo direto em interesse da União, consoante
se infere dos pedidos formulados na respectiva petição inicial, deve-se manter a
competência do Juízo de Direito da Vara de Aurora do Pará/PA.
4. Agravo regimental a que se nega provimento.
(AgRg no CC 133.619/PA, Rel. Ministro Sérgio Kukina, Primeira Seção, julgado
em 09/05/2018, DJe 16/05/2018)

RSTJ, a. 34, (265): 35-136, Janeiro/Março 2022 49


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

No caso dos autos, não figura em nenhum dos pólos da relação processual
ente federal indicado no art. 109, I, da Constituição Federal, o que afasta a
competência da Justiça Federal para processar e julgar a referida ação. Ademais,
não existe nenhuma manifestação de interesse em integrar o processo por
parte de ente federal e o Juízo Federal consignou que o interesse que prevalece
restringe-se à órbita do Município autor, o que atrai a competência da Justiça
Estadual para processar e julgar a demanda.
Ante o exposto, nego provimento ao agravo interno.
É o voto.

MANDADO DE SEGURANÇA N. 28.124-DF (2021/0328552-8)

Relator: Ministro Mauro Campbell Marques


Impetrante: Companhia Energética Potiguar
Advogados: Márcio Vieira Souto Costa Ferreira - RJ059384
Pedro Coelho de Souza Monteiro Magalhães - BA020501
Guilherme Silveira Coelho - DF033133
Robson Lapoente Novaes Junior - DF067399
Impetrado: Ministro das Minas e Energia
Interes.: Empresa de Pesquisa Energética - EPE
Advogado: Bruno Abreu Bastos e outro(s) - RJ138772
Interes.: Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL
Interes.: União

EMENTA

Administrativo. Mandado de segurança. Ato impetrado: fixação


de limite ao Custo Variável Unitário (CVU) de empreendimentos
termelétricos para fins de participação em leilão de energia elétrica.
Fixação do valor que se deu de modo fundamentado e em observância
à atual política energética do Ministério das Minas e Energia, que
considera os compromissos ambientais firmados pelo Brasil de redução
de emissão de gases de efeito estufa. Ordem denegada.
50
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO

1. Trata-se de mandado de segurança impetrado pela Companhia


Energética Potiguar em face do Ministro de Estado das Minas e
Energia, em que se requer o afastamento da limitação prevista no art.
7º, III, da Portaria Normativa GM/MME n. 20/2021, que impede
a participação no Leilão de Reserva de Capacidade de 2021 de
empreendimento cujo Custo Variável Unitário – CVU seja superior a
R$600,00/MWh (seiscentos reais por megawatt-hora).
2. Não prospera a alegação de nulidade consistente na falta
de apreciação específica do valor do CVU em audiência pública,
pois o art. 4º, parágrafo único, do Decreto 10.707/2021, dispõe que
os estudos que subsidiam a metodologia de definição do montante
total da reserva de capacidade a ser contratada que serão submetidos à
consulta pública, e não propriamente o valor máximo do CVU.
3. De qualquer forma, a formalidade da realização da audiência
pública foi cumprida e, conforme bem observado pela autoridade
impetrada, “a consulta não tem por fim causar a submissão das
decisões político-administrativas à vontade popular, ou sequer a sua
substituição, até mesmo pela dificuldade de obtenção de consenso
diante da heterogeneidade dos diversos interesses cm jogo, mas sim
possibilitar que a sociedade que participe ativamente do processo
decisório e da elaboração de políticas públicas, em legítimo exercício
de cidadania”.
4. Também não é caso de acolher a nulidade fundada na ausência
de fundamentação na fixação do valor do CVU. Sobre a matéria, a
autoridade impetrada invocou o item 4.21 da Nota Técnica 093/2021/
DPE/SPE, de 10/8/2021, emitida no âmbito da Consulta Pública
108/2021, segundo o qual “A fixação de um limite máximo para
fins de habilitação técnica se faz necessária, de modo a impedir
declarações desarrazoadas, bem como restringir a participação de
empreendimentos que utilizem combustíveis em desacordo com os
compromissos ambientais assumidos pelo país”.
5. Ainda, a limitação do CVU se deu com o escopo de observar
o princípio da modicidade tarifária – sob as premissas de que, quanto
maior o CVU, maior o custo de geração e, por conseguinte, o custo
total do sistema –, sendo o seu valor fixado por meio de avaliação técnica
específica realizada pela Empresa de Pesquisa Energética - EPE que, “para

RSTJ, a. 34, (265): 35-136, Janeiro/Março 2022 51


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

estimar os valores para os custos variáveis, considerou o histórico de preços


dos combustíveis, realizou estimativas de preços futuros para cada um dos
indexadores (...) Henry Hub, Brent e JKM, bem como utilizou a taxa de
câmbio média do dólar nos últimos doze meses”.
6. Na realidade, o que foi evidenciado no ato impetrado é o
regular exercício da competência do Ministro de Estado de formular
a política pública a ser adotada em sua área de atuação, atualmente
prevista na Lei 13.844/2019, art. 41.
7. Ademais, mostram-se relevantes os argumentos da União
de que, “após longos estudos e avaliações técnicas dos órgãos e instituições
públicas, que a contratação de usinas a óleo para o atendimento a requisitos
sistêmicos estruturais e com contratos de longo prazo está descolada com
as diretrizes de política pública, bem como com os movimentos e agendas
internacionais que apontam para a transição energética”.
8. Ora, se a política energética objetiva conciliar a disponibilização
de energia elétrica extra em períodos críticos com o dever de proteção
ao meio ambiente (reiterando compromissos do País no plano
internacional, notadamente o da redução da emissão de gases de
efeito estufa), é perfeitamente legítima a limitação da participação de
empreendimentos que a autoridade coatora considera poluentes, ainda
que no âmbito residual da energia de reserva, que estaria limitada a 2%
da capacidade total de geração no País – daí porque também não se
vislumbra ofensa ao princípio da competitividade.
9. Ainda sobre o tema da competitividade, a manifestação da
Empresa de Pesquisa Energética - EPE demonstra que a limitação
da CVU não restringiu a participação no certame, tendo em vista a
expressiva quantidade de novos empreendimentos cadastrados, que
representariam 41.254 MW do total de 50.691 MW – considerando-
se os 132 projetos cadastrados no leilão –, sendo que a oferta desses
novos empreendimentos equivale a 76% do atual parque termelétrico
brasileiro.
10. Não se evidenciando nenhuma ilegalidade na edição do ato
impetrado, de alta densidade técnica e elaborado no contexto da política
energética cuja elaboração é da competência da autoridade impetrada,
com a participação de órgãos diversos da Administração Pública, não há
razão para intervenção do Poder Judiciário no caso concreto.
11. Segurança denegada.

52
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos esses autos em que são partes as acima


indicadas, acordam os Ministros da Primeira Seção do Superior Tribunal
de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas, o seguinte
resultado de julgamento: “A Primeira Seção, por unanimidade, denegou a
segurança, revogando a liminar anteriormente concedida, e julgou prejudicado o
agravo interno, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator.”
Os Srs. Ministros Benedito Gonçalves, Assusete Magalhães, Regina
Helena Costa, Gurgel de Faria, Manoel Erhardt (Desembargador convocado do
TRF-5ª Região), Francisco Falcão, Herman Benjamin e Og Fernandes votaram
com o Sr. Ministro Relator.
SUSTENTAÇÃO ORAL
Sustentou o Dr. Guilherme Silveira Coelho, pela parte impetrante:
Companhia Energética Potiguar e assistiu ao julgamento a Dra. Karoline
Busatto, pela parte interes.: União.
Brasília (DF), 23 de março de 2022 (data do julgamento).
Ministro Mauro Campbell Marques, Relator

DJe 29.3.2022

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Mauro Campbell Marques: Trata-se de mandado de


segurança impetrado pela Companhia Energética Potiguar em face do
Ministro de Estado das Minas e Energia, em que se requer o afastamento
da limitação prevista no art. 7º, III, da Portaria Normativa GM/MME n.
20/2021, que impede a participação no Leilão de Reserva de Capacidade de
2021 de empreendimento cujo Custo Variável Unitário – CVU seja superior a
R$600,00/MWh (seiscentos reais por megawatt-hora).
Da inicial, destacam-se os seguintes argumentos: (i) “A previsão [normativa]
impossibilitou o cadastramento e a habilitação de empreendimentos geradores
que possuíssem ‘Custo Variável Unitário – CVU’ superior a R$600,00/MWh
(seiscentos reais por megawatt-hora)”; (ii) “A limitação imposta jamais foi
objeto de consulta pública e o número não possui razoabilidade nenhuma”;

RSTJ, a. 34, (265): 35-136, Janeiro/Março 2022 53


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

(iii) “A inexistência do efetivo debate público somada à ausência de uma


análise séria por parte do MME levou ao único fim possível: o ato não possui
fundamentação” (fl. 13-e); (iv) “(...) o ato coator, ao arbitrariamente excluir
geradoras de participar – participar, frisa-se – do certame, violou o princípio
da competitividade nas contratações públicas” (fl. 17-e); (v) “(...) não podem os
agentes públicos do setor elétrico inovar nos requisitos legais para habilitação
técnica, criando, por ato infra legal, requisito de qualificação técnica não prevista
no rol taxativo do art. 67 da Lei de Licitações, sob pena de violar o princípio
da legalidade” (fl. 20-e); (vi) “(...) o custo não possui nenhuma relação com
eventuais danos ambientais. Exemplo disso é a utilização de usinas à carvão
que, apesar de, em geral, possuírem CVUs mais baratos, são inegavelmente mais
danosas ao meio ambiente – muito mais, diga-se”; (vii) “(...) é necessário frisar
que o leilão objeto desta ação tem é de energia de reserva, ou seja, as usinas serão
pontualmente acionadas pelo ONS. A projeção de geração é de cerca de 2%
(isso mesmo, dois por cento)” (fl. 20-e).
No mais, observa a impetrante que, posteriormente ao ato impetrado,
foi editada a MP da Crise Hídrica, dispondo sobre contratação de usina
termelétrica com CVU de até 1.000,00/MWh (mil reais por megawatt-hora) –
o que evidenciaria a ilegalidade da limitação aqui referida.
Ao final, pede a “concessão da segurança, confirmando-se a liminar, para
que seja afastado o requisito imposto pelo art. 7º, III, da Portaria MME n.
20/2021” (fl. 23- e).
O pedido de liminar foi deferido para assegurar a participação da
impetrante no leilão ocorrido no dia 21/12/2021.
O Ministério Público Federal, em seu parecer, opina “pelo não
conhecimento do mandado de segurança e, acaso conhecido, por sua denegação”
(fl. 1920-e).
É o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Mauro Campbell Marques (Relator): É caso de denegar a


segurança.
De início, cumpre afastar a preliminar de litispendência invocada pela
interessada Empresa de Pesquisa Energética - EPE em sua manifestação nos
autos.

54
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO

Em resposta ao despacho de fl. 2110/2111-e, a impetrante esclareceu que


os pedidos formulados na ação ordinária e no presente mandado de segurança
são distintos, pois, naquela, pleitou-se a declaração da ilegalidade da limitação
do CVU, ao passo que na ação mandamental, requer-se a não aplicação do ato
impetrado sobre si, sendo a declaração de ilegalidade a causa de pedir, não o
pedido.
Nessas circunstâncias, não se evidencia a alegada litispendência.
Também não há falar na aplicação da Súmula 266/STF, pois a impetrante
está impugnando ato concreto capaz de impedir por si só sua participação no
certame.
Pois bem.
Antes de examinarmos o mérito da impetração, cumpre delinear o que está
em discussão nos presentes autos.
O Ministério das Minas e Energia decidiu por realizar Leilão para
Contratação de Potência Elétrica e de Energia Associada para empreendimentos
de geração, novos e existentes, que acrescentem potência elétrica ao Sistema
Interligado Nacional - SIN.
No exercício de sua competência, a autoridade impetrada editou a Portaria
Normativa n. 20/GM/MME, de 16 de agosto de 2021, com o propósito de
estabelecer as diretrizes para a realização do leilão.
A presente insurgência está relacionada ao art. 7º, III, dessa portaria, assim
redigido:

Art. 7º Não serão Habilitados Tecnicamente pela EPE os seguintes


empreendimentos de geração:
(...)
III - termelétricos, cujo CVU, calculado nos termos do art. 5º da Portaria n. 46/GM/
MME, de 9 de março de 2007, seja superior a R$ 600,00/MWh (seiscentos Reais por
megawatt-hora);

No presente caso, a impetrante sustenta que a fixação do valor máximo


do Custo Variável Unitário - CVU ocorreu sem prévia e objetiva discussão a
respeito em audiência pública.
Nessa parte, invoca a impetrante o art. 4º, parágrafo único, do Decreto
10.707/2021, in verbis:

RSTJ, a. 34, (265): 35-136, Janeiro/Março 2022 55


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Art. 4º Para a realização dos leilões de reserva de capacidade de que trata


o art. 3º, o Ministério de Minas e Energia definirá o montante total de reserva
de capacidade a ser contratada, com base em estudos da Empresa de Pesquisa
Energética e do Operador Nacional do Sistema Elétrico, respeitados os critérios
gerais de garantia de suprimento estabelecidos pelo Conselho Nacional de
Política Energética.
Parágrafo único. Os estudos elaborados para subsidiar a metodologia de definição
do montante total de reserva de capacidade de que trata o caput serão submetidos a
consulta pública realizada pelo Ministério de Minas e Energia.

Pelo que se vê, a norma estipula que os estudos que subsidiam a metodologia
de definição do montante total da reserva de capacidade a ser contratada que serão
submetidos a consulta pública.
Como se vê, a norma não trata especificamente da fixação do valor do
Custo Variável Unitário.
De todo modo, tal consulta ocorreu, conforme assumido pela própria
impetrante, todavia, o valor da CVU foi fixado posteriormente, circunstância
que não configura o descumprimento da formalidade prevista no parágrafo
único do art. 4º do Decreto 10.707/2021.
A propósito, a manifestação da autoridade impetrada sobre a matéria (fl.
789-e), que aqui se adota como fundamento para denegar a segurança:

(...)
25. Para tal objetivo, em respeito aos princípios da publicidade, transparência
e participação na elaboração das decisões estatais, esta Pasta divulgou, em
consulta pública (n. 108/2021), minuta de Portaria de Diretrizes para a
realização do Leilão de Reserva de Capacidade, de 2021, e as notas
técnicas correlatas, para recebimento de contribuições entre 28/05/2021 e
14/06/2021.
26. Enquanto mecanismo de participação popular na gestão pública, a consulta
não tem por fim causar a submissão das decisões político-administrativas à
vontade popular, ou sequer a sua substituição, até mesmo pela dificuldade de
obtenção de consenso diante da heterogeneidade dos diversos interesses
cm jogo, mas sim possibilitar que a sociedade que participe ativamente
do processo decisório e da elaboração de políticas públicas, em legítimo
exercício de cidadania (destaquei).

Nesses termos, não prospera a tese de nulidade pela falta de debate público
a respeito do valor do CVU.

56
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO

Por outro lado, não é caso de acolher a nulidade por falta de fundamentação
na fixação do valor do CVU.
Sobre a matéria, a autoridade impetrada invocou o item 4.21 da Nota
Técnica 093/2021/DPE/SPE, de 10/8/2021, emitida no âmbito da Consulta
Pública 108/2021, segundo o qual “A fixação de um limite máximo para
fins de habilitação técnica se faz necessária, de modo a impedir declarações
desarrazoadas, bem como restringir a participação de empreendimentos que
utilizem combustíveis em desacordo com os compromissos ambientais assumidos
pelo país” (fl. 789-e).
Ainda, a limitação do CVU se deu com o escopo de observar o princípio
da modicidade tarifária – sob as premissas de que, quanto maior o CVU, maior
o custo de geração e, por conseguinte, o custo total do sistema –, sendo o seu
valor fixado por meio de avaliação técnica específica realizada pela Empresa
de Pesquisa Energética - EPE que, “para estimar os valores para os custos
variáveis, considerou o histórico de preços dos combustíveis, realizou estimativas de
preços futuros para cada um dos indexadores (...) Henry Hub, Brent e JKM, bem como
utilizou a taxa de câmbio média do dólar nos últimos doze meses” (item 11 da Nota
Informativa 50/2021/DPE/SPE, reproduzida pela autoridade impetrada em
suas informações, fl. 790-e).
Consta também das informações que “o critério de seleção dos vencedores
do certame se dá por uma ponderação entre a Receita Fixa e o CVU”; e que,
“(..) a exemplo do CVU (que representa os custos variáveis), a Receita Fixa
(custos fixos) também deverá observar um preço-teto a ser definido em edital”,
resguardando-se ao menos dois objetivos voltados a atender o interesse público,
quais sejam: “maximizar a atratividade do leilão” e “estabelecer um mecanismo
de proteção aos consumidores para a eventualidade da competição ser diluída
por fatores conjunturais que não possam ser antecipados pelo regulador ou pelo
Poder Concedente” (fls. 790/791, item 36).
Outrossim, a autoridade impetrada labora com a premissa de que o CVU
mais alto, que é o caso das termelétricas, pode implicar maior emissão de gases
de efeito estufa, por isso, objetivando reduzir os danos ao meio ambiente, adotou
a política aqui controvertida.
Ainda sobre o ponto, colhem-se das informações explicações da autoridade
impetrada na linha de que a metodologia empregada no cálculo do CVU não
representa surpresa para os interessados em participar do certame, pois já empregada
anteriormente.

RSTJ, a. 34, (265): 35-136, Janeiro/Março 2022 57


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Em reforço, observa a autoridade impetrada que os valores mais baixos de


limite máximo dos certames anteriores foram atualizados porque por causa da
flutuação do câmbio e da elevação dos preços internacionais dos combustíveis.
Sobre esses últimos temas, vejam-se os seguintes trechos das informações
(fl. 791-e):

(...)
37. Nota-se, portanto, que, no caso, do Leilão de Reserva de Capacidade
de 2021, conforme registrado pelo MME na Nota Técnica n. 0093/2021/DPE/
SPE, o limite de valor do CVU é necessário, por razões de política energética,
inclusive para possibilitar o respeito aos compromissos ambientais assumidos
pelo Brasil no cenário internacional, tendo em visto que a tendência é que
quanto maior o CVU da usina termelétrica maior seja o seu nível de emissão
de gases de efeito estufa, sobretudo em se tratando das usinas existentes,
que justamente é o caso da Impetrante.
38. Outro aspecto importante é que a metodologia definidora do critério
de limitação do CVU não é nenhuma inovação, muito pelo contrário, é
amplamente conhecida pelos agentes interessados, inclusive, já tendo sido
aplicada em leilões de energia anteriores. Novamente, a Nota Informativa n.
0050/2021/DPE/SPE que instrui, tecnicamente, estas informações, afirma que:

8. Importante observar que fixação de limite máximo de CVU para


a participação em leilões do Ambiente de Contratação Regulado -
ACR é pratica recorrente. Até 2019, o limite vinha sendo estabelecido
em RS 300,00/MWh para os leilões de energia nova. Recentemente para
o Leilão de Energia Nova A-5, de 2021, este valor foi revisado para RS
400,00/MWh, tendo em vista a recente elevação do câmbio e dos preços
internacionais de combustíveis. Observa-se, portanto, que o CVU máximo
permitido para o Leilão de Reserva de Capacidade (RS600,00/MWh) é
substancialmente mais elevado que os valores praticados para os leilões de
energia.
[...]
13. Tal metodologia é conhecida pelos agentes, e é a mesma em
todos os certames - este ano, inclusive, já foram realizados Leilões de
Energia Nova (LEN) “A-3” c “A-4”, cujos limites de CVU basearam-se na mesma
metodologia, e também já utilizada nas diretrizes do LEN “A-5”, de 2021, não
havendo qualquer questionamento por parte dos agentes. destaquei)

Nesses termos, não se evidencia nulidade na fixação do valor máximo do


CVU, pois a autoridade impetrada esclareceu que o seu escopo foi o de reduzir
o custo final da geração de energia, bem assim o de mitigar os danos ao meio ambiente,

58
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO

contribuindo com a redução da emissão de gases de efeito estufa; além disso, consignou
que a metodologia do cálculo é a mesma utilizada nos certames anteriores.
Na realidade, o que foi evidenciado é o regular exercício da competência
do Ministro de Estado de formular a política pública a ser adotada na sua
área de atuação – inclusive sob o viés ambiental –, atualmente prevista na Lei
13.844/2019, cujo art. 41 mostra-se bastante ilustrativo:

Art. 41. Constituem áreas de competência do Ministério de Minas e Energia:


I - políticas nacionais de geologia, de exploração e de produção de recursos
minerais e energéticos;
II - políticas nacionais de aproveitamento dos recursos hídricos, eólicos,
fotovoltaicos e demais fontes para fins de geração de energia elétrica;
III - política nacional de mineração e transformação mineral;
IV - diretrizes para o planejamento dos setores de minas e de energia;
V - política nacional do petróleo, do combustível, do biocombustível, do gás
natural, da energia elétrica e da energia nuclear;
VI - diretrizes para as políticas tarifárias;
VII - energização rural e agroenergia, inclusive eletrificação rural, quando
custeada com recursos vinculados ao setor elétrico;
VIII - políticas nacionais de integração do sistema elétrico e de integração
eletroenergética com outros países;
IX - políticas nacionais de sustentabilidade e de desenvolvimento econômico,
social e ambiental dos recursos elétricos, energéticos e minerais;
X - elaboração e aprovação das outorgas relativas aos setores de minas e de
energia;
XI - avaliação ambiental estratégica, quando couber, em conjunto com o
Ministério do Meio Ambiente e com os demais órgãos relacionados;
XII - participação em negociações internacionais relativas aos setores de minas
e de energia; e
XIII - fomento ao desenvolvimento e adoção de novas tecnologias relativas aos
setores de minas e de energia.
Parágrafo único. Compete, ainda, ao Ministério de Minas e Energia zelar pelo
equilíbrio conjuntural e estrutural entre a oferta e a demanda de energia elétrica no
País.

Pelo que se vê, são insubsistentes as alegações na linha de que o valor


fixado se deu sem prévia consulta pública, ou então de modo arbitrário, sem a
devida fundamentação.

RSTJ, a. 34, (265): 35-136, Janeiro/Março 2022 59


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Quanto ao mais, a alegação da impetrante de que o valor foi fixado sem


prévia análise de impacto regulatório por si só não evidencia ofensa a direito
líquido e certo de participar do certame, pois, conforme já demonstrado, o valor
do CVU se deu de modo fundamentado e em compatibilidade com a política
energética estabelecida pela autoridade impetrada.
Também não se vislumbra ofensa ao princípio da competitividade.
Sobre o ponto, conforme já visto nas informações, a autoridade impetrada
fixou o valor tendo em vista a necessidade de reduzir os danos ao meio ambiente
decorrentes da atividade de produção de energia elétrica.
Ainda, conforme já dito anteriormente, a limitação do CVU é empregada
de modo rotineiro nos leilões de energia elétrica, não representando surpresa
aos empreendimentos interessados em fechar contratos com a Administração
Pública.
Ademais, no agravo interno contra a decisão de deferimento de liminar
que permitiu a participação da impetrante no certame, a União traz argumentos
que evidenciam a adoção de política que busca conciliar a segurança energética
com a proteção ao meio ambiente, senão vejamos:

(...)
Cumpre destacar também a Lei n. 9.478/1997, que dispõe sobre a política
energética nacional, das quais se destaca para a presente medida que se busca
implementar, as disposições previstas nos incisos I a IV do art. 1º, prescrevendo o
seguinte, veja:

Art. 1º As políticas nacionais para o aproveitamento racional das fontes


de energia visarão aos seguintes objetivos:
I - preservar o interesse nacional;
II - promover o desenvolvimento, ampliar o mercado de trabalho e
valorizar os recursos energéticos;
III - proteger os interesses do consumidor quanto a preço, qualidade e
oferta dos produtos;
IV - proteger o meio ambiente e promover a conservação de energia;

Da leitura desses dispositivos, compete a esta Pasta zelar pelo equilíbrio


conjuntural e estrutural entre a oferta e a demanda de energia elétrica no País,
aplicando, para isso, os princípios e objetivos da Política Energética Nacional,
buscando preservar o interesse nacional, a identificação de soluções mais
adequadas para o suprimento de energia elétrica nas diversas regiões do País e a

60
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO

promoção do uso racional dos recursos energéticos disponíveis, e, especialmente,


proteger os interesses do consumidor quanto a preço, qualidade e oferta dos
produtos e o meio ambiente.
Já a Lei n. 12.187/2009 instituiu a Política Nacional sobre Mudança
do Clima (PNMC), estabelecendo seus princípios, objetivos, diretrizes e
instrumentos. Este diploma definiu, como compromisso nacional voluntário do
Estado brasileiro, uma meta de redução das emissões de gases de efeito estufa
entre 36,1% e 38,9% em relação aos valores projetados para 2020, veja:

Art. 12. Para alcançar os objetivos da PNMC, o País adotará, como


compromisso nacional voluntário, ações de mitigação das emissões de
gases de efeito estufa, com vistas em reduzir entre 36,1% (trinta e seis
inteiros e um décimo por cento) e 38,9% (trinta e oito inteiros e nove
décimos por cento) suas emissões projetadas até 2020. (Regulamento)
Parágrafo único. A projeção das emissões para 2020 assim como o
detalhamento das ações para alcançar o objetivo expresso no caput serão
dispostos por decreto, tendo por base o segundo Inventário Brasileiro de
Emissões e Remoções Antrópicas de Gases de Efeito Estufa não Controlados
pelo Protocolo de Montreal, a ser concluído em 2010.

Dessa forma, a PNMC oficializa o compromisso voluntário do Brasil junto à


Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima de redução de
emissões de gases de efeito estufa entre 36,1% e 38,9% das emissões projetadas
até 2020, buscando garantir que o desenvolvimento econômico e social contribua
para a proteção do sistema climático global.
O Decreto n. 9.578/2018, que atualmente regulamenta a PNMC, consolida
os atos normativos editados pelo Poder Executivo federal que dispõem sobre o
Fundo Nacional sobre Mudança do Clima e dispõe que o PNMS será integrado
pelos planos de ação para a prevenção e o controle do desmatamento nos biomas
e pelos planos setoriais de mitigação e de adaptação às mudanças climáticas, de
que tratam, respectivamente, os art. 6º e art. 11 da Lei n. 12.187/2009.
Ao tratar desse assunto, o Departamento de Planejamento Energético - DPE/
SPE, chamado a se manifestar sobre os impactos negativos que os CVU’s das
empresas Impetrantes, superiores ao limite máximo para habilitação técnica no
certame, previsto no art. 7º, III, da Portaria GM/MME n. 20/2021, causarão, através
da Nota Informativa n. 00056/2021 /DPE/SPE, afirmou que:

9. O Leilão de Reserva de Capacidade possui características e objetivos


distintos em relação aos leilões de energia; nesse caso o objetivo principal
do leilão é a contratação de disponibilidade de potência a partir de
empreendimentos que estejam disponíveis a qualquer momento para o
sistema. Assim, para a contratação de reserva de capacidade é razoável

RSTJ, a. 34, (265): 35-136, Janeiro/Março 2022 61


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

admitir custos variáveis mais elevados, desde que a receita fixa percebida
pelo gerador seja menor, o que resultaria em um custo total de operação
mais equilibrado, uma vez que é desejável que os empreendimentos
estejam disponíveis para o atendimento ao SIN em situações de demanda
máxima do sistema, portanto menos frequentes. Contudo, considerando
que o valor do CVU corresponde ao valor a ser pago pela energia gerada,
é razoável uma avaliação por parte do Poder Concedente da razoabilidade
dos valores a serem pagos, com vistas a não onerar demasiadamente o
consumidor.
10. O argumento exposto alinha-se com a modicidade tarifária,
como exporemos a seguir. O Sistema Interligado Nacional (SIN) hoje
conta com empreendimentos de geração com valores de CVUs que
excursionam desde R$ 0/MWh (usinas sem CVU) até cerca de R$
2.000,00/MWh; portanto, é parte da preocupação com a modicidade
tarifária o estabelecimento de limite máximo em contratações
reguladas, de forma a limitar o custo das contratações quando da
efetiva geração pelo empreendimento, limitando, também, o custo
total de geração do sistema ao selecionar empreendimentos de menor
custo.
11. Nesse sentido, a fixação do limite do CVU utilizado no Leilão
de Reserva de Capacidade, como de praxe, foi baseado em avaliação
técnica específica realizada pela Empresa de Pesquisa Energética - EPE
que, para estimar os valores para os custos variáveis, considerou o
histórico de preços dos combustíveis, realizou estimativas de preços
futuros para cada um dos indexadores ao Henry Hub, Brent e JKM,
bem como utilizou a taxa de câmbio média do dólar nos últimos doze
meses.
12. Ademais, a EPE considera na formação dos preços: Consumo
Interno e Perdas elétricas; Fator de Perdas na Rede Básica, do ponto
de conexão até o centro de gravidade do Submercado; Encargos e
Impostos aplicáveis; e Custos variáveis de Operação e Manutenção.
Não cabe afirmar, portanto, que tal definição é desarrazoada ou
desmotivada. (original sem grifo)

Verifica-se, portanto, que os compromissos ambientais assumidos pelo país


se situam não apenas no âmbito da legislação doméstica, mas também no plano
internacional, sendo que as diretrizes para a elaboração dos planos decenais de
expansão já se encontram alinhadas com o Objetivo 7 dos ODS, uma vez que
buscam garantir a confiabilidade do suprimento de energia elétrica a mínimo
custo, incorporando ainda limites para emissões de gases de efeito estufa e novas
tecnologias (fls. 1.911/1.912-e, destaquei).

Nessa peça, reitera a União a conclusão de que, “após longos estudos e


avaliações técnicas dos órgãos e instituições públicas, que a contratação de
62
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO

usinas a óleo para o atendimento a requisitos sistêmicos estruturais e com


contratos de longo prazo está descolada com as diretrizes de política pública,
bem como com os movimentos e agendas internacionais que apontam para a
transição energética” (fl. 1.914-e, destaquei).
Ora, se a política energética objetiva conciliar a disponibilização de energia
elétrica extra em períodos críticos com o dever de proteção ao meio ambiente (reiterando
compromissos do País no plano internacional), é perfeitamente legítima a limitação
da participação de empreendimentos que a autoridade coatora considera poluentes,
ainda que no âmbito residual da energia de reserva, que estaria limitada a 2% da
capacidade total de geração no País.
Ainda sobre o ponto, a manifestação da Empresa de Pesquisa Energética
- EPE demonstra que a limitação da CVU não restringiu a participação no
certame, tendo em vista a expressiva quantidade de novos empreendimentos
cadastrados, que representariam 41.254 MW do total de 50.691 MW –
considerando-se os 132 projetos cadastrados no leilão –, sendo que a oferta desses
novos empreendimentos equivale a 76% do atual parque termelétrico brasileiro.
Veja-se à fl. 1.823-e:

(...)
55. Alega a Impetrante que o estabelecimento de um critério de qualificação
por valor de CVU afetará a competitividade do certame. Nesse ponto, vale
ressaltar que, conforme Informe de Cadastramento publicado pela EPE, para
o Leilão de Reserva de Capacidade de 2021 foram cadastrados 132 projetos,
totalizando 50.691 MW de capacidade instalada, dos quais 41.254 MW são de
novos empreendimentos de geração.
56. Para se ter uma ideia de quão grande é essa oferta, segundo o Sistema de
Informações de Geração da ANEEL - SIGA, a potência total outorgada do parque
gerador termelétrico brasileiro totaliza 54.286,5 MW de capacidade instalada.
Observa-se, portanto, que a oferta de novos empreendimentos cadastrados para
o Leilão corresponde a 76% do atual parque termelétrico brasileiro. Ora, tendo
em vista tamanho interesse de empreendimentos novos e existentes - cientes
dos limites de CVU definidos nas diretrizes - em participar do Leilão, fica evidente
que as condições para participação estabelecidas pelo Poder Concedente não
restringirão a competição no certame.

Nessas circunstâncias, não há falar em ofensa ao princípio da


competitividade.
Por fim, não socorre a impetrante a invocação da Medida Provisória
1.055/2021, referida como “MP da crise hídrica”, em que permitida a

RSTJ, a. 34, (265): 35-136, Janeiro/Março 2022 63


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

contratação de usina termelétrica com CVU de até R$-1.000,00/MWh (mil


reais por megawatt-hora).
É que essa medida provisória foi editada em caráter de urgência e com o
objetivo de assegurar o suprimento extra de energia nos próximos anos (2022 e
2025), ou seja, para atender a necessidades de curto e médio prazo.
Por outro lado, o valor máximo de CVU adotado no ato impetrado se deu
no âmbito de planejamento setorial de longo prazo, que também leva em conta
a política de redução dos danos ambientais decorrentes da geração de energia
elétrica (já mencionada aqui).
Em suma, não se evidenciando nenhuma ilegalidade na edição do ato
impetrado, de alta densidade técnica e elaborado no contexto da política
energética cuja elaboração é da competência da autoridade impetrada, com a
participação de órgãos diversos da Administração Pública, não há razão para
intervenção do Poder Judiciário no caso concreto.
Nessa linha de consideração, citam-se os seguintes julgados:

Administrativo. Direito Educacional. Ministro de Estado da Educação. Recurso


impróprio. Não conhecido. Matéria exaurida. Art. 63, IV, da Lei n. 9.784/99.
Credenciamento e autorização para oferta de ensino a distância. Instituição nova
sem cursos prévios. Impossibilidade. Prática do ato autorizativo por via judicial.
Inadmissível.
1. Cuida-se de writ impetrado com o objetivo de que recurso administrativo
dirigido ao Ministro de Estado da Educação fosse conhecido no mérito, e
provido, para determinar, ao mesmo tempo, o credenciamento de nova
entidade educacional e a autorização de curso de graduação em direito, tudo na
modalidade de ensino a distância.
2. O pedido administrativo foi apreciado em detalhes por duas instâncias
administrativas no Ministério da Educação, com atenção aos ditames do art. 80
da Lei n. 9.394/96, regulamentado pelo Decreto n. 5..622/2005 e detalhado pela
Portaria Normativa n. 02/2007, consolidada - depois - na Portaria Normativa n.
40/2007. Após a negativa, a impetrante interpôs recurso hierárquico impróprio ao
Ministro de Estado.
3. A análise dos autos demonstra que o tema foi tratado com atenção ao ponto
de vista técnico, com acurado detalhamento, tendo recebido pareceres e análises
longos; foi possibilitada ampla ação recursal; todavia, quando da apreciação
pelo Ministro de Estado, não foi ele conhecido, com fulcro no art. 63, IV, da Lei
n. 9.784/99 e o art. 12 da Portaria Normativa n. 40/2007, porque já havia sido
esgotada a tramitação administrativa.

64
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO

4. Do ponto de vista formal, não há irregularidade na conduta da autoridade


impetrada, já que o tema fora examinado sob o prisma técnico, de forma
percuciente; ademais, fica evidente que foi facultada ampla possibilidade de
intervenção no processo administrativo.
5. O credenciamento para oferta da educação superior à distância só pode
ser outorgado a instituições educacionais já credenciadas, ao teor do art. 9º
do Decreto n. 5.622/2005 e do art. 44 da Portaria Normativa n. 40/2007, que
substituiu a Portaria Normativa n. 02/2007.
6. Do ponto de vista substantivo - que é o cerne da impetração - descabe ao Poder
Judiciário substituir-se ao administrador especializado e competente de forma a
credenciar instituição, ou autorizar o funcionamento de curso de graduação em
direito, ainda mais tendo em conta que a negativa foi baseada na desatenção aos
ditames legais e regulamentares que regem o sistema educacional pátrio.
Segurança denegada.
(MS 13.997/DF, Rel. Ministro Humberto Martins, Primeira Seção, julgado em
27/06/2012, DJe 02/08/2012)

Administrativo. Recurso ordinário. Mandado de segurança impetrado


pelo Município de Marília contra ato do Governador do Estado de São Paulo,
consubstanciado no Decreto 64.997/2002, em que estabelecido o regime de
quarentena de cada uma de suas regiões. Alegação de ofensa ao princípio da
igualdade, pois o regime de quarentena do Município de São Paulo leva em conta
apenas seus dados locais, e não os regionais. Violação a direito líquido e certo não
demonstrada. Desprovimento do recurso.
1. Decorre o presente recurso de mandado de segurança impetrado pelo
Município de Marília com o objetivo de obter a sua recategorização da cor “laranja”
para “verde” dentro dos critérios estabelecidos no Decreto Estadual 64.997/2020,
que instituiu o “Plano São Paulo”, pelo qual o território estadual foi dividido em
macrorregiões epidemiológicas (Departamentos Regionais de Saúde - DRS),
classificadas em quatros cores (vermelha, laranja, amarela e verde) representando
os graus de restrição à atividade econômica local.
2. Segundo o impetrante, os índices locais o colocariam na fase 4 de restrição
(verde) dentro da DRS IX, mas o impetrado a categorizou em faixa muito mais
restritiva, prejudicando a de economia local e o retorno à normalidade, a despeito
de não ter agido com o mesmo critério com o Município de São Paulo, que
não obstante estar inserto na DRS I, de cor vermelha, foi elevado à categoria
isolada “laranja”, demonstrando inequívoca arbitrariedade que fere o princípio
constitucional da igualdade.
3. A segurança foi denegada pelo entendimento de que o ato impetrado
possui conteúdo tipicamente normativo, dotado de ampla generalidade e

RSTJ, a. 34, (265): 35-136, Janeiro/Março 2022 65


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

abstração, daí a incidência da Súmula 266/STF (“Não cabe mandado de segurança


contra lei em tese”).
4. Ocorre que, conforme entendimento do relator do acórdão recorrido (que,
em homenagem ao princípio da colegialidade, se curvou a entendimento da
Corte paulista em casos idênticos), o Plano São Paulo tem a natureza de norma
de efeitos concretos sobre a esfera jurídica das pessoas físicas e jurídicas por ele
atingidos, por isso impugnável na via do mandado de segurança. Na mesma linha,
o parecer do Ministério Público Federal nos presentes autos, em que defendido o
afastamento da Súmula 266/STF.
5. Não podem ser conhecidos os argumentos do recurso ordinário na linha da
inconstitucionalidade dos decretos que tratam da quarentena e da instituição do
Plano São Paulo, bem assim os de esvaziamento da autonomia municipal prevista
na Constituição Federal, pois não foram apresentados como causa de pedir na
inicial do mandado de segurança, constituindo, por isso, indevida inovação recursal.
6. Quanto ao mérito do mandado de segurança, a autoridade coatora justificou
em suas informações os critérios adotados no “Plano São Paulo”, merecendo
destaque os seguintes trechos: (i) “conforme aponta Nota Técnica do Centro
de Contingência do Coronavírus da Secretaria da Saúde (Anexo I do Decreto
n. 64.994/2020), o ‘Plano São Paulo’ é fruto da constatação de que os gestores
estaduais da saúde se deparam com uma nova fase de combate à COVID-19”;
(ii) “observadas as especificidades regionais e setoriais presentes no vasto
território estadual, no qual habitam mais de 44 milhões de pessoas, o Centro de
Contingência, impelido pela necessidade de adotar uma abordagem heterogênea
resultante de condições epidemiológicas e estruturais díspares, propôs ‘nova
forma de quarentena’ alicerçada em dois critérios estruturantes: a evolução da
COVID-19 e a capacidade de resposta do sistema de saúde”; (iii) “recomenda-se
uma abordagem específica para a Capital do Estado, em razão de sua dimensão,
que comporta, ao mesmo tempo, aproximadamente 12 milhões habitantes, e
capacidade estrutural de saúde independente, com características próprias que
concentram centros de referência em saúde reconhecidos internacionalmente”;
e (iv) “tais características, inclusive, justificam o tratamento diferenciado ao
Município de São Paulo, cujo território corresponde a uma subárea específica do
DRS I ? Grande São Paulo, a RRAS-06”.
7. É caso de desprovimento do recurso, pois o recorrente não demonstrou a
alegada violação ao princípio da igualdade, tendo em vista que o tratamento
diferenciado à cidade de São Paulo foi devidamente justificado na Nota Técnica
referida nas informações da autoridade coatora, quando ressaltado que a capital
possui “aproximadamente 12 milhões habitantes, e capacidade estrutural de
saúde independente, com características próprias que concentram centros de
referência em saúde reconhecidos internacionalmente”.
8. Não evidenciada violação a direito líquido e certo, não há razão para intervenção
do Judiciário em ato emanado do exercício do poder discricionário do Governador do

66
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO

Estado de São Paulo na implantação do “Plano São Paulo” de enfrentamento da


gravíssima crise de saúde pública decorrente da propagação da Covid-19. Conforme
bem observado pelo TJ/SP no exame de caso idêntico, “em situações dessa natureza,
se for possível à Administração adotar duas ou mais medidas igualmente razoáveis,
então ao Poder Judiciário é vedado dizer qual delas mais atenderia ao interesse
público”.
9. Recurso ordinário a que se nega provimento.
(RMS 65.812/SP, de minha relatoria, Segunda Turma, julgado em 13/04/2021,
DJe 19/04/2021)

Ação direta de inconstitucionalidade. Pedido de interpretação conforme


a Constituição. Art. 7º, III e XV, in fine, da Lei n. 9.782/1999. Resolução da
Diretoria Colegiada (RDC) da ANVISA n. 14/2002. Proibição da importação e da
comercialização de produtos fumígenos derivados do tabaco contendo aditivos.
Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Regulação setorial. Função normativa das
agência reguladoras. Princípio da legalidade. Cláusulas constitucionais da liberdade
de iniciativa e do direito à saúde. Produtos que envolvem risco à saúde. Competência
específica e qualificada da ANVISA. Art. 8º, § 1º, X, da Lei n. 9.782/1999. Jurisdição
constitucional. Deferência administrativa. Razoabilidade. Convenção-Quadro
sobre Controle do Uso do Tabaco – CQCT. Improcedência. 1. Ao instituir o Sistema
Nacional de Vigilância Sanitária, a Lei n. 9.782/1999 delineia o regime jurídico
e dimensiona as competências da Agência Nacional de Vigilância Sanitária –
ANVISA, autarquia especial. 2. A função normativa das agências reguladoras não
se confunde com a a função regulamentadora da Administração (art. 84, IV, da
Lei Maior), tampouco com a figura do regulamento autônomo (arts. 84, VI, 103-
B, § 4º, I, e 237 da CF). 3. A competência para editar atos normativos visando à
organização e à fiscalização das atividades reguladas insere-se no poder geral
de polícia da Administração sanitária. Qualifica-se, a competência normativa
da ANVISA, pela edição, no exercício da regulação setorial sanitária, de atos: (i)
gerais e abstratos, (ii) de caráter técnico, (iii) necessários à implementação da
política nacional de vigilância sanitária e (iv) subordinados à observância dos
parâmetros fixados na ordem constitucional e na legislação setorial. Precedentes:
ADI 1.668/DF-MC, Relator Ministro Marco Aurélio, Tribunal Pleno, DJ 16.4.2004;
RMS 28.487/DF, Relator Ministro Dias Toffoli, 1ª Turma, DJe 14.3.2013; ADI 4.954/
AC, Relator Ministro Marco Aurélio, Tribunal Pleno, DJe 30.10.2014; ADI 4.949/
RJ, Relator Ministro Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, DJe 03.10.2014; ADI
4.951/PI, Relator Ministro Teori Zavascki, DJe 26.11.2014; ADI 4.093/SP, Relatora
Ministra Rosa Weber, Tribunal Pleno, DJe 30.10.2014. 4. Improcedência do pedido
de interpretação conforme a Constituição do art. 7º, XV, parte final, da Lei n.
9.782/1999, cujo texto unívoco em absoluto atribui competência normativa para
a proibição de produtos ou insumos em caráter geral e primário. Improcedência
também do pedido alternativo de interpretação conforme a Constituição do
art. 7º, III, da Lei n. 9.782/1999, que confere à ANVISA competência normativa

RSTJ, a. 34, (265): 35-136, Janeiro/Março 2022 67


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

condicionada à observância da legislação vigente. 5. Credencia-se à tutela de


constitucionalidade in abstracto o ato normativo qualificado por abstração,
generalidade, autonomia e imperatividade. Cognoscibilidade do pedido
sucessivo de declaração de inconstitucionalidade da Resolução da Diretoria
Colegiada (RDC) n. 14/2012 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA.
6. Proibição da fabricação, importação e comercialização, no país, de produtos
fumígenos derivados do tabaco que contenham as substâncias ou compostos que
define como aditivos: compostos e substâncias que aumentam a sua atratividade
e a capacidade de causar dependência química. Conformação aos limites fixados
na lei e na Constituição da República para o exercício legítimo pela ANVISA da
sua competência normativa. 7. A liberdade de iniciativa (arts. 1º, IV, e 170, caput,
da Lei Maior) não impede a imposição, pelo Estado, de condições e limites para a
exploração de atividades privadas tendo em vista sua compatibilização com os
demais princípios, garantias, direitos fundamentais e proteções constitucionais,
individuais ou sociais, destacando-se, no caso do controle do tabaco, a proteção
da saúde e o direito à informação. O risco associado ao consumo do tabaco
justifica a sujeição do seu mercado a intensa regulação sanitária, tendo em vista
o interesse público na proteção e na promoção da saúde. 8. O art. 8º, caput
e § 1º, X, da Lei n. 9.782/1999 submete os produtos fumígenos, derivados ou
não do tabaco, a regime diferenciado específico de regulamentação, controle e
fiscalização pela ANVISA, por se tratar de produtos que envolvem risco à saúde
pública. A competência específica da ANVISA para regulamentar os produtos
que envolvam risco à saúde (art. 8º, § 1º, X, da Lei n. 9.782/1999) necessariamente
inclui a competência para definir, por meio de critérios técnicos e de segurança,
os ingredientes que podem e não podem ser usados na fabricação de tais
produtos. Daí o suporte legal à RDC n. 14/2012, no que proíbe a adição, nos
produtos fumígenos derivados do tabaco, de compostos ou substâncias
destinados a aumentar a sua atratividade. De matiz eminentemente técnica, a
disciplina da forma de apresentação (composição, características etc.) de produto
destinado ao consumo, não traduz restrição sobre a sua natureza. 9. Definidos
na legislação de regência as políticas a serem perseguidas, os objetivos a serem
implementados e os objetos de tutela, ainda que ausente pronunciamento direto,
preciso e não ambíguo do legislador sobre as medidas específicas a adotar, não
cabe ao Poder Judiciário, no exercício do controle jurisdicional da exegese conferida
por uma Agência ao seu próprio estatuto legal, simplesmente substituí-la pela sua
própria interpretação da lei. Deferência da jurisdição constitucional à interpretação
empreendida pelo ente administrativo acerca do diploma definidor das suas próprias
competências e atribuições, desde que a solução a que chegou a agência seja
devidamente fundamentada e tenha lastro em uma interpretação da lei razoável e
compatível com a Constituição. Aplicação da doutrina da deferência administrativa
(Chevron U.S.A. v. Natural Res. Def. Council). 10. A incorporação da CQCT ao direito
interno, embora não vinculante, fornece um standard de razoabilidade para
aferição dos parâmetros adotados na RDC n. 14/2012 pela ANVISA, com base na
competência atribuída pelos arts. 7º, III, e 8º, § 1º, X, da Lei n. 9.782/1999. 11. Ao

68
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO

editar a Resolução da Diretoria Colegiada – RDC n. 14/2012, definindo normas


e padrões técnicos sobre limites máximos de alcatrão, nicotina e monóxido
de carbono nos cigarros e restringindo o uso dos denominados aditivos nos
produtos fumígenos derivados do tabaco, sem alterar a sua natureza ou redefinir
características elementares da sua identidade, a ANVISA atuou em conformidade
com os lindes constitucionais e legais das suas prerrogativas, observados a
cláusula constitucional do direito à saúde, o marco legal vigente e a estrita
competência normativa que lhe outorgam os arts. 7º, III, e 8º, § 1º, X, da Lei n.
9.782/1999. Improcedência do pedido sucessivo. 12. Quórum de julgamento
constituído por dez Ministros, considerado um impedimento. Nove votos pela
improcedência do pedido principal de interpretação conforme a Constituição,
sem redução de texto, do art. 7º, III e XV, in fine, da Lei n. 9.782/1999. Cinco votos
pela improcedência e cinco pela procedência do pedido sucessivo, não atingido
o quórum de seis votos (art. 23 da Lei n. 9.868/1999) – maioria absoluta (art.
97 da Constituição da República) – para declaração da inconstitucionalidade
da RDC n. 14/2012 da ANVISA, a destituir de eficácia vinculante o julgado, no
ponto. 13. Ação direta de inconstitucionalidade conhecida, e, no mérito julgados
improcedentes os pedidos principais e o pedido sucessivo. Julgamento destituído
de efeito vinculante apenas quanto ao pedido sucessivo, porquanto não atingido
o quórum para a declaração da constitucionalidade da Resolução da Diretoria
Colegiada n. 14/2012 da ANVISA. (ADI 4.874, Relator(a): Rosa Weber, Tribunal
Pleno, julgado em 01/02/2018, Processo Eletrônico DJe-019 divulg 31-01-2019
public 01-02-2019)

Ante o exposto, revogo a liminar e denego a segurança. Prejudicado o agravo


interno da União.
É o voto.

RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA N. 64.531-MT


(2020/0235217-4)

Relator: Ministro Og Fernandes


Recorrente: Maria das Gracas Martins
Advogado: Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso
Recorrido: Estado de Mato Grosso
Recorrido: Município de Pontes e Lacerda
Advogado: Sem Representação nos Autos - SE000000M

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

EMENTA

Processual Civil. Recurso ordinário em mandado de segurança.


Incidente de Assunção de Competência (IAC). Competência.
Juizado Especial da Fazenda Pública. Vara especializada da Justiça
Comum. Comarcas diversas. Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA). Estatuto do Idoso. Lei da Ação Civil Pública (LACP).
Código de Defesa do Consumidor (CDC). Código de Processo
Civil (CPC). Lei dos Juizados Especiais da Fazenda Pública. Ato
normativo local. Alteração de competência absoluta. Vedação de
faculdade de ajuizamento da ação na comarca de domicílio do autor.
Ilegalidade. Resolução n. 9/2019/TJMT. Alteração de competência
normatizada em lei federal com a consequente redistribuição dos
feitos. Inaplicabilidade. Fixação de teses vinculantes. Recurso ordinário
em mandado de segurança provido.
1. Prevalecem as leis processuais federais e a Constituição da
República sobre atos normativos legislativos ou secundários emanados
dos Estados-Membros. Precedentes do STJ.
2. As normas processuais dão preferência à tutela dos interesses
dos cidadãos hipossuficientes ante a conveniência da administração do
Estado, inclusive na gestão judiciária.
3. Registre-se que a população Estado do Mato Grosso é
estimada em 3.567.234 habitantes em 2021, distribuídos em uma
área territorial de 903.207,050 km², conforme dados extraídos do site
do IBGE. A Comarca de Vila Rica, por exemplo, dista 1.268 km de
estrada até o Município de Várzea Grande. A imposição da tramitação
das demandas em uma única comarca implica claro prejuízo aos
cidadãos do estado, que serão forçados a longos deslocamentos para as
audiências e para a produção da prova necessária ao bom andamento
do feito.
4. Fixam-se as seguintes teses vinculantes no presente IAC:
Tese A) Prevalecem sobre quaisquer outras normas locais,
primárias ou secundárias, legislativas ou administrativas, as seguintes
competências de foro:
i) em regra, do local do dano, para ação civil pública (art. 2º da
Lei n. 7.347/1985);

70
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO

ii) ressalvada a competência da Justiça Federal, em ações coletivas,


do local onde ocorreu ou deva ocorrer o dano de impacto restrito,
ou da capital do estado, se os danos forem regionais ou nacionais,
submetendo-se ainda os casos à regra geral do CPC, em havendo
competência concorrente (art. 93, I e II, do CDC).
Tese B) São absolutas as competências:
i) da Vara da Infância e da Juventude do local onde ocorreu ou
deva ocorrer a ação ou a omissão, para as causas individuais ou coletivas
arroladas no ECA, inclusive sobre educação e saúde, ressalvadas
a competência da Justiça Federal e a competência originária dos
tribunais superiores (arts. 148, IV, e 209 da Lei n. 8.069/1990; e Tese
n. 1.058/STJ);
ii) do local de domicílio do idoso nas causas individuais ou
coletivas versando sobre serviços de saúde, assistência social ou
atendimento especializado ao idoso portador de deficiência, limitação
incapacitante ou doença infectocontagiosa, ressalvadas a competência
da Justiça Federal e a competência originária dos tribunais superiores
(arts. 79 e 80 da Lei n. 10.741/2003; e 53, III, e, do CPC/2015);
iii) do Juizado Especial da Fazenda Pública, nos foros em que
tenha sido instalado, para as causas da sua alçada e matéria (art. 2º, §
4º, da Lei n. 12.153/2009);
iv) nas hipóteses do item (iii), faculta-se ao autor optar livremente
pelo manejo de seu pleito contra o estado no foro de seu domicílio, no
do fato ou ato ensejador da demanda, no de situação da coisa litigiosa
ou, ainda, na capital do estado, observada a competência absoluta do
juizado, se existente no local de opção (art. 52, parágrafo único, do
CPC/2015, c/c o art. 2º, § 4º, da Lei n. 12.153/2009).
Tese C) A instalação de vara especializada não altera a competência
prevista em lei ou na Constituição Federal, nos termos da Súmula n.
206/STJ (“A existência de vara privativa, instituída por lei estadual,
não altera a competência territorial resultante das leis de processo.”).
A previsão se estende às competências definidas no presente IAC n.
10/STJ.
Tese D) A Resolução n. 9/2019/TJMT é ilegal e inaplicável
quanto à criação de competência exclusiva em comarca eleita em

RSTJ, a. 34, (265): 35-136, Janeiro/Março 2022 71


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

desconformidade com as regras processuais, especificamente quando


determina a redistribuição desses feitos, se ajuizados em comarcas
diversas da 1ª Vara Especializada da Fazenda Pública da Comarca de
Várzea Grande/MT. Em consequência:
i) Fica vedada a redistribuição à 1ª Vara Especializada da Fazenda
Pública da Comarca de Várzea Grande/MT dos feitos propostos ou
em tramitação em comarcas diversas ou em juizados especiais da
mesma ou de outra comarca, cujo fundamento, expresso ou implícito,
seja a Resolução n. 9/2019/TJMT ou normativo similar;
ii) Os feitos já redistribuídos à 1ª Vara Especializada de Várzea
Grande/MT com fundamento nessa norma deverão ser devolvidos
aos juízos de origem, salvo se as partes, previamente intimadas,
concordarem expressamente em manter o processamento do feito no
referido foro;
iii) No que tange aos processos já ajuizados – ou que venham a
ser ajuizados – pelas partes originariamente na 1ª Vara Especializada
da Fazenda Pública da Comarca de Várzea Grande/MT, poderão
prosseguir normalmente no referido juízo;
iv) Não se aplicam as previsões dos itens (ii) e (iii) aos feitos de
competência absoluta, ou seja: de competência dos Juizados Especiais
da Fazenda, das Varas da Infância e da Juventude ou do domicílio do
idoso, nos termos da Tese B deste IAC n. 10/STJ.
5. Resolução do caso concreto:
i) confirmação da ordem liminar para torná-la definitiva, com o
acréscimo dos fundamentos contidos na Questão de Ordem decidida
no RMS n. 64.531/MT (e-STJ, fls. 237-239);
ii) declaração de inaplicabilidade da Resolução n. 9/2019/TJMT
no que tange, unicamente, ao ponto em que determinava às outras
unidades jurisdicionais que redistribuíssem os feitos para a 1ª Vara
Especializada da Fazenda Pública da Comarca de Várzea Grande/
MT, para causas que envolvam o estado, individualmente ou em
litisconsórcio, sobre matérias de saúde ou não, devendo o processo,
em consequência, retornar à Vara onde foi originalmente distribuído.
6. Recurso ordinário provido, com teses qualificadas fixadas em
incidente de assunção de competência (art. 947 do CPC/2015).

72
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas,


acordam os Ministros da Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, por
unanimidade, dar provimento ao recurso ordinário, com teses qualificadas
fixadas em incidente de assunção de competência (art. 947 do CPC/2015), nos
termos do voto do Sr. Ministro Relator.
Os Srs. Ministros Mauro Campbell Marques, Benedito Gonçalves,
Assusete Magalhães, Regina Helena Costa, Gurgel de Faria, Manoel Erhardt
(Desembargador convocado do TRF-5ª Região) e Herman Benjamin votaram
com o Sr. Ministro Relator.
Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Francisco Falcão.
Brasília (DF), 21 de outubro de 2021 (data do julgamento).
Ministro Og Fernandes, Relator

DJe 9.12.2021

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Og Fernandes: Trata-se de recurso ordinário em mandado


de segurança interposto por Maria das Graças Martins contra acórdão assim
ementado:

Constitucional e Administrativo. Mandado de segurança. Ação cominatória.


Tratamento médico. Competência absoluta da Vara de Fazenda Pública de Várzea
Grande. Prevalência sobre as normas gerais de competência das Varas de Fazenda
e Juizados Especiais. Resolução n. 09/2019TJ-MT/OE. Direito líquido e certo não
violado. Ordem denegada.

Diante da relevância da matéria e da natureza processual da insurgência,


propus – e este colegiado entendeu por acolher – a afetação da causa ao rito
do incidente de assunção de competência (IAC), com a concessão de medida
liminar, em julgado assim ementado:

Processual Civil. Incidente de Assunção de Competência (IAC). Proposta de


Afetação (PROAF). Competência de vara especializada em lides contra a Fazenda
Pública. Conflito entre norma infralegal ou lei estadual com a previsão de lei
federal. Direitos coletivos e individuais em geral, de crianças e adolescentes,

RSTJ, a. 34, (265): 35-136, Janeiro/Março 2022 73


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

idosos e em matéria de saúde. Liminar. Suspensão da redistribuição de feitos com


base na Resolução n. 9/2019/OE/TJMT e retorno dos já redistribuídos. Suspensão
da resolução, no ponto. Devolução ao TJMT dos recursos especiais e ordinários
alusivos à matéria.
1. Tema afetado em IAC: “Fixação da competência prevalecente para
julgamento de matérias de direitos coletivos e individuais quando haja conflito
entre norma infralegal ou lei estadual e a previsão de leis federais, no que tange a
foro especializado em lides contra a Fazenda Pública”.
2. Ordem liminar: i) suspensão imediata da redistribuição à 1ª Vara
Especializada da Fazenda Pública da Comarca de Várzea Grande/MT dos feitos
propostos ou em tramitação em comarcas diversas ou juizados especiais, cujo
fundamento, expresso ou implícito, seja a Resolução 9/2019/TJMT ou normativo
similar, independentemente da matéria ou sujeitos envolvidos, até julgamento
definitivo deste incidente; ii) retorno aos juízos de origem dos feitos redistribuídos
com fundamento nessa norma; iii) fixação provisória da competência nos
respectivos juízos de origem, inclusive no que diz respeito ao julgamento de
mérito; iv) afastamento da incidência da resolução no ponto; v) fixação no caso
concreto, desde logo, da competência do 2º Juizado Especial da Fazenda Pública
da Comarca de Rondonópolis.
3. Por economia processual, devem ser devolvidos os recursos especiais e
ordinários alusivos à matéria e em trâmite nesta Corte ao TJMT, para fins de
incidência analógica dos arts. 1.040 e 1.041 do CPC/15 e cumprimento, no ínterim,
da ordem liminar.
4. Afetam-se em conjunto os seguintes processos: RMS 64.531, RMS 65286,
RMS 64.625, RMS 64.525, REsp 1.903.920 e REsp 1.896.379.
5. Proposta de afetação acolhida.

Em vista de questão de ordem suscitada pelo estado, proferi decisão


meramente esclarecedora de não ter sido vedada a distribuição de feitos à Vara
Especializada de Várzea Grande, senão apenas a redistribuição dos feitos a ela,
quando a parte autora tenha manejado a pretensão em juízo diverso (e-STJ, fls.
237-239 do RMS n. 64.531).
As partes recorrentes, nesse e nos demais casos afetados ao presente IAC,
aduzem, em suma, a ilegalidade dos atos normativos e jurisdicionais do Tribunal
de Justiça de Mato Grosso que, em contrariedade à Constituição Federal
(CF/1988) e a leis federais, violaram a competência das diversas varas afetadas
pela ordem administrativa de redistribuição dos feitos à 1ª Vara Especializada
da Fazenda Pública da Comarca de Várzea Grande, nos termos da Resolução n.
9/2019/OE/TJMT.

74
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO

De forma detida, aponta-se violação: i) da Lei da Ação Civil Pública


(art. 2º da Lei n. 7.347/1985); ii) da Lei dos Juizados Especiais da Fazenda
Pública (art. 2º, § 1º, I, da Lei n. 12.153/2009); iii) da CF/1988 (art. 22, I);
iv) do CPC/2015 (arts. 52, parágrafo único, e 516, II); v) do ECA (arts. 147,
148, IV, 208, VIII, e 209 da Lei n. 8.069/1990); vi) do CDC (art. 93 da Lei n.
8.078/1990); e vii) do Estatuto do Idoso (art. 80 da Lei n. 10.741/2003).
A única parte recorrida a aduzir contrarrazões foi a municipalidade de
Primavera do Leste/MT (e-STJ, fls. 124-129 do REsp n. 1.896.379), em que
defendeu: i) a competência dos tribunais para organizar seus órgãos judiciários
(art. 93, I, a, da CF/1988); e ii) ser obrigatória a redistribuição dos feitos diante
da competência absoluta superveniente da vara especializada (arts. 24, XI, e 125
da CF/1988).
O Estado de Mato Grosso quedou-se silente nos diversos feitos afetados
(e-STJ, fl. 191 do RMS n. 65.286; fl. 142 do RMS n. 64.531; fl. 140 do REsp n.
1.896.379; fl. 142 do REsp n. 1.903.920; e fl. 183 do RMS n. 64.625).
O Ministério Público Federal (MPF) se manifestou de forma específica
sobre o IAC nos RMSs n. 64.531 (e-STJ, fls. 245-252) e 64.525 (e-STJ, fls.
224- 233); e nos REsps 1.896.379 (e-STJ, fls. 197-207) e 1.903.920 (e-STJ, fl.
197), em todos pelo provimento dos recursos e fixação da tese de ilegalidade da
definição de competência por atos normativos locais em desconformidade com
as leis processuais e a CF/1988.
Especificamente nos autos do RMS n. 65.286/MT, anteriormente à
afetação, o MPF defendera o descabimento da via mandamental, ante a ausência
de teratologia (e-STJ, fls. 199-202). Nos demais casos afetados, no mérito, o
órgão manifestou-se pelo provimento dos respectivos recursos, todos manejados
pelos particulares.
No RMS n. 64.525/MT, o MPF não chegou a se pronunciar sobre o
mérito, devido a um atraso na marcha processual, a fim de confirmar a intimação
do Município de Sinop/MT, mas entendo despicienda nova vista ao Órgão
Ministerial para parecer, tendo em vista já haver várias manifestações nos
demais processos afetados, todas no mesmo sentido.
Processo com prioridade legal (arts. 12, § 2º, VII, e 1.048, I e II, do
CPC/2015, c/c os arts. 71 da Lei n. 10.741/2003, 152, § 1º, do ECA e, por
extensão, a Meta n. 6/CNJ/2021 - “Identificar e julgar até 31/12/2021: 99% dos
recursos oriundos de ações coletivas distribuídos a partir de 1º/1/2015”).
É o relatório.

RSTJ, a. 34, (265): 35-136, Janeiro/Março 2022 75


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

VOTO

O Sr. Ministro Og Fernandes (Relator): A jurisprudência desta Corte


é extremamente sólida e unívoca quanto à matéria debatida nos autos, o que
reforça a adequação da fixação da tese em precedente qualificado. Se o ideal
seria o cumprimento espontâneo de tal orientação, faz-se ainda, nesta quadra
histórica, o julgamento sob os ritos específicos do CPC/2015 para que a
jurisprudência consolidada deste Tribunal Superior desempenhe seus efeitos
processuais obrigatórios.
Apontei, no juízo de afetação, de forma direta ou indireta, os seguintes
precedentes confirmadores da mesma orientação, todos contrários à compreensão
da origem: RMS n. 64.534/MT, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda
Turma, DJe de 1º/12/2020; RMS n. 64.517/MT, relatora Ministra Assusete
Magalhães, Segunda Turma, DJe de 18/12/2020; RMS n. 64.534/MT, relator
Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe de 1º/12/2020; AgInt no
REsp n. 1.837.659/SP, relatora Ministra Regina Helena Costa, Primeira Turma,
DJe de 20/2/2020; REsp n. 1.726.789/RS, relator Ministro Herman Benjamin,
Segunda Turma, DJe de 23/5/2018; AgRg no REsp n. 977.659/PR, relator
Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, DJe de 25/3/2009; AgRg no REsp n.
1.318.065/PR, relator Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma,
DJe de 5/3/2013. Ainda, em juízo monocrático, colacionei como exemplos da
compreensão jurisprudencial desta Corte: RMS n. 65.075, RMS n. 64.545 e
REsp n. 1.880.055, relator Ministro Herman Benjamin; REsp n .1.874.615,
RMS n. 64.526 e RMS n. 64.497, relator Ministro Sergio Kukina; RMS n.
64.524 e REsp n. 1.905.125, relator Ministro Benedito Gonçalves; RMS n.
64.540 e RMS n. 64.513, relator Ministro Gurgel de Faria; RMS n. 64.538 e
RMS n. 64.529, relator Ministro Mauro Campbell Marques; RMS n. 64.530
e REsp n. 1.866.678, de minha relatoria; RMS n. 64.564 e RMS n. 64.518,
relatora Ministra Assusete Magalhães; e RMS n. 64.516, relatora Ministra
Regina Helena Costa.
É, portanto, bastante conhecida desta Corte, em especial deste colegiado,
não só a matéria geral, como a questão da Resolução n. 9/2019/OE/TJMT. O
ato impugnado atribui arbitrariamente competência exclusiva à Vara de Várzea
Grande, eleita como foro único de tramitação de todas as causas versando
sobre: i) saúde pública; ii) ações civis públicas; iii) ações individuais; iv) cartas
precatórias; v) ações alusivas à Infância e Juventude; e vi) de competência dos
Juizados Especializados da Fazenda Pública afetos à saúde. Basta, para atração

76
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO

de tal competência exclusiva, que o estado esteja presente no polo passivo da


causa, isoladamente ou em litisconsórcio com municípios.
Este Tribunal vem compreendendo de forma reiterada, porém, que: i)
é absoluta a competência do Juizado Especial da Fazenda Pública no local
onde houver sido instalado, nas causas de sua alçada (arts. 2º, § 4º, da Lei n.
12.153/2009); ii) é do local do dano a competência para ações civis públicas
(art. 2º da Lei n. 7.347/1985); iii) é absoluta da Vara da Infância e Juventude do
local onde ocorreu a ação ou a omissão a competência para feitos vinculados ao
ECA, inclusive saúde e ensino, entre outros (art. 209 da Lei n. 8.069/1990); iv)
é absoluta a competência do foro de domicílio do idoso nas causas individuais
ou coletivas versando sobre serviços de saúde, assistência social ou atendimento
especializado (arts. 79 e 80 da Lei n. 10.741/2003); v) ser do foro onde ocorreu
ou espera-se ocorrer o dano as ações coletivas de impacto local, ou da capital do
estado os danos regionais, submetendo-se ainda os casos à regra geral do CPC,
em havendo competência concorrente (art. 93, I e II, do CDC); vi) ser facultado
ao autor manejar seu pleito contra o estado no foro de seu domicílio, no do
fato ou ato ensejador da demanda, no de situação da coisa litigiosa ou, ainda,
na capital do estado; vii) a instituição de vara privativa por lei local não altera
as normas processuais federais, podendo o estado ser demandado em qualquer
de suas comarcas (Súmula n. 206/STJ); e viii) ser também faculdade do autor
optar pelo foro onde demandar a administração pública, nos termos do art. 52,
parágrafo único, do CPC/2015.
Isso tudo porque, a despeito das eventuais vantagens da concentração e
especialização das varas, nessas matérias, o legislador foi expresso em optar
por uma política pública processual de facilitação do acesso à Justiça, visando
a promover a mais ampla tutela aos interesses de pessoas hipossuficientes ou
vulneráveis. Essa proteção decorre de uma premissa bastante simples: o estado
está, obrigatoriamente e por lógica inafastável, presente em todo seu território,
mas o cidadão, tanto mais o cidadão hipossuficiente, não pode ser onerado pela
imposição de foro único escolhido arbitrariamente pela administração judicial
para ser o competente para tais feitos, muitas vezes significativamente distante
do seu domicílio, como ocorre em um estado do tamanho de Mato Grosso.
No âmbito da legística, os representantes eleitos em âmbito federal poderão
ser sensibilizados para que, em sua competência exclusiva, tratem da matéria
de forma mais contida, inclusive para delegar aos Estados-membros maior
parcela de poderes de organização da Justiça local, limitando expressamente as
opções preestabelecidas nas normas gerais de processo, ações coletivas e tutelas

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

de segmentos populacionais específicos (como idosos e infância), de modo


a permitir maior amplitude de gestão pelas legislações estaduais ou mesmo
pelos tribunais. É preciso ressaltar, porém, que esse processo político não se
confunde com o jurídico, e é deste que estamos a tratar. Se aquele resultar em
alterações no panorama do direito, caberá às Cortes, subsequentemente, ajustar
seus provimentos. Porém, creio, não podemos, o Judiciário, mesmo avançar
sobre tais opções, a ponto de ignorar não só as leis postas, como a compreensão
institucional desenvolvida com base nelas por este Tribunal ao longo de décadas.
Hoje, não parece haver dúvida, a opção legislativa é pela amplitude do acesso aos
tribunais pela dispersão da competência em favor dos autores.
Extraio tais razões, primordialmente, do, como habitual, bem lançado voto
do Ministro Herman Benjamin, em precedente específico sobre a resolução em
debate (grifos acrescidos):

[...] Benefícios da especialização judicial: além da eficiência econômica


2. A especialização de Varas e órgãos fracionários dos tribunais representa
tendência mundial na organização do Poder Judiciário, instigada pela crescente
complexidade jurídica - enredamento legal (do arcabouço normativo) e fático (da
vida na sociedade tecnológica) -, um dos subprodutos do enveredar do Direito
por espaços policêntricos e multidisciplinares. Ao contrário do que se observou
nos primórdios do fenômeno em outros setores, hoje se especializa não só por
convocação de pura eficiência econômica, mas sobretudo em decorrência de
legítimas inquietações éticas e políticas com a dignidade da pessoa humana, os
fins sociais do Direito, as exigências do bem comum, a qualidade da prestação
jurisdicional e a segurança jurídica. Significação duplamente dilatada se empresta
ao núcleo eficiência referido no art. 8º, in fine, do CPC/2015, em primeiro lugar
como peça integrante de uma constelação de valores e objetivos proeminentes
e vinculantes que, em segundo, balizam não só a “aplicação do ordenamento
jurídico pelo juiz”, mas também a própria “organização judiciária em que se insere
o juiz”.
3. Apontam-se inconvenientes plausíveis na centralização, técnica de
monopólio ou oligopólio judicial associada à especialização. Tais malefícios
são contrastados com inúmeros benefícios que, claro, subordinam-se a certas
condições prévias, entre elas deliberação com base em critérios objetivos e
cautelas procedimentais de praxe, fugindo-se seja de modismo supérfluo,
seja de transplante inconsequente, duas das notórias influências e pressões
impertinentes que turvam a lucidez de medidas legislativas, administrativas e
judiciais.
Especialização de vara e órgãos fracionários dos Tribunais: limites constitucionais
e legais na organização judiciária dos Estados

78
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO

4. Se é verdade que os arts. 8º e 44 do CPC/2015 autorizam, de maneira


implícita, os tribunais a, por ato administrativo, designarem Varas e Câmaras/
Turmas especializadas - alternativa inteiramente compatível com o princípio do
juiz natural por não importar designação casuística ou manipulação post factum
da competência -, tal poder vem condicionado por limites fixados em normas
constitucionais federais e estaduais, legislação processual comum e especial, e leis de
organização judiciária, tanto mais se envolvidos sujeitos vulneráveis ou valores e bens
aos quais a legislação confere especial salvaguarda. Em outras palavras, interditado
atribuir, administrativamente, a órgão jurisdicional competência que legalmente não
lhe pertence, ou ampliar a existente fora das hipóteses cabíveis, mesmo que com o
nobre fundamento da necessidade de especialização de varas.
5. Não se veja no art. 44 do CPC/2015 empecilho à melhor gestão processual de
demandas guarnecidas de consistência ético-jurídica diferenciada, com destaque
para as ações coletivas. É exatamente o contrário, haja vista, nessas latitudes de
metaindividualidade, se requerer mais engenhosidade na organização judiciária.
Tabus centenários e arranjos institucionais arcaicos convidam a incansável e
enérgico questionamento e, se imperativo, modificação ou mesmo completa
substituição. Situações haverá, inclusive em Estados com grande território, em
que a especialização - e correlata concentração - se explicará pelo desiderato,
iluminado pelo ânimo da eficiência e eficácia, de assegurar autêntica justiça
a pessoas e bens jurídicos especialmente tutelados, como ocorre com Varas
Ambientais desenhadas a partir, p. ex., da conformação de ecossistemas,
ecorregiões, bacias ou sub-bacias hidrográficas, tendo em mente a concorrência
ecológica instaurada nesse cenário, em que o dano potencial ou real, direto
ou indireto, pode afetar, juntamente, múltiplas comarcas ou subseções
judiciárias. Não há alternativa possível, dado que tribunais e juízes fracassarão
se pretenderem aplicar ao processo civil coletivo a lupa, o modo de pensar, os
institutos e os procedimentos típicos do processo civil individual.
Nesse panorama, lembra-se que, por vezes, a especialização vem apresentada
pelo legislador. É assim no art. 70 do Estatuto do Idoso (“O Poder Público poderá
criar varas especializadas e exclusivas do idoso”) e no art. 5º, IV, do Código de
Defesa do Consumidor.
Competência na Lei da Ação Civil Pública, no Estatuto da Criança e do Adolescente,
no Estatuto do Idoso e no Código de Defesa do Consumidor
6. A Resolução 9/2019 do TJ/MT atribuiu à 1ª Vara Especializada de Fazenda
Pública de Várzea Grande “Processar e julgar, exclusivamente, os feitos relativos
à saúde pública, ações civis públicas, ações individuais ..., incluindo as ações de
competência da Vara da Infância e Juventude e os feitos ... relativos à saúde pública,
em que figure como parte o Estado de Mato Grosso” (destaque acrescentado). Não
obstante a evidente intenção elevada do Órgão Especial, a concentração adotada
pelo ato impugnado choca-se frontalmente com o art. 2º, parágrafo único, da Lei
7.347/1985 (Lei da Ação Civil Pública), com o art. 209 da Lei 8.069/1990 (Estatuto da

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Criança e do Adolescente), com o art. 80 da Lei 10.741/2003 (Estatuto do Idoso) e com


o art. 93 da Lei 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor).
7. Nesses quatro dispositivos, fica patente a ratio legislativa de antepor, à frente
de qualquer outra consideração, a facilitação, na perspectiva da vítima, da tutela dos
interesses individuais e metaindividuais de sujeitos vulneráveis ou hipossuficientes.
Destarte, vedado, aqui, rompante de flexibilização administrativa judiciária,
pois se está diante ora de competência absoluta, ora de competência concorrente à
conveniência do autor.
Competência em demandas com Estados Federados
8. Com espírito semelhante ao decretado na Lei da Ação Civil Pública, no
Estatuto da Criança e do Adolescente, no Estatuto do Idoso e no Código de
Defesa do Consumidor - vale dizer, facilitação do acesso à justiça ao vulnerável ou
hipossuficiente -, prescreve o CPC/2015 que, “Se Estado ou o Distrito Federal for
o demandado, a ação poderá ser proposta no foro de domicílio do autor, no de
ocorrência do ato ou fato que originou a demanda, no de situação da coisa ou na
capital do respectivo ente federado” (art. 52, parágrafo único, grifo acrescentado).
Prioriza-se, sem dúvida, a comodidade dos cidadãos, conferindo-lhes privilégio de
opção (“poderá”), na forma de competência concorrente.
9. A Súmula 206/STJ preceitua: “A existência de vara privativa, instituída por
lei estadual, não altera a competência territorial resultante das leis de processo.”
A jurisprudência do STJ reconhece que os Estados-Membros e suas entidades
autárquicas e empresas públicas podem ser demandados em qualquer comarca
do seu território, não gozando de foro privilegiado. Precedentes do STJ.
10. O art. 52, parágrafo único, do CPC/2015 estabelece foro concorrente para
as causas em que seja réu o Estado ou o Distrito Federal, estipulando prerrogativa
processual em favor do cidadão, a quem é facultado escolher onde demandar a
Administração. Tal dispositivo concretiza garantia real, e não meramente fictícia,
de inafastabilidade da jurisdição e de acesso democrático à justiça.
Como instituição, o Estado está presente e atua em todo o seu território -
ubiquidade territorial; o cidadão, ao contrário, propende a se vincular a espaço
confinado, ordinariamente o local onde reside e trabalha - constrição territorial.
Logo, se ato normativo secundário do Tribunal cria prerrogativa de foro ao ente
público e altera padrões de competência prescritos por lei federal, ofendido se queda o
esquema normativo imperturbável de organização do aparelho judiciário, gravidade
acentuada se o rearranjo acarretar grave e desarrazoado desmantelamento de
deferência que o próprio legislador se encarregou de conferir, como mandamento
de ordem pública, aos sujeitos vulneráveis ou hipossuficientes e aos titulares ou
representantes de certos bens e valores considerados de altíssima distinção na
arquitetura do Estado Social de Direito.
11. A alteração da competência para comarca distante do domicílio do autor-
vítima vulnerável ou hipossuficiente traz, sim, indisputável prejuízo, ainda que o

80
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO

processo judicial seja eletrônico, haja vista os demandantes nem sempre disporem
de computador e internet. Além disso, a distância geográfica pode comprometer
a produção de provas pelo jurisdicionado, o contato com seu advogado etc. Aqui,
então, assoma um dos cânones de ouro no Estado Social de Direito: o acesso à justiça
para hipossuficiente ou vulnerável - portador de debilidade jurídica, econômica,
técnica ou informativa, perdurável ou contingencial - deve, no verbo e na prática,
ser facilitado, e não embaraçado. A prerrogativa de escolha de foro processual visa
garantir a superação, ou pelo menos a mitigação, de variados obstáculos naturais,
formais, financeiros e psicológicos que impedem ou dificultam o acesso à justiça a
todos em condições de igualdade real, postura de repúdio republicano absoluto a um
Poder Judiciário de elite e a serviço da elite.
Conclusão
12. Recurso Ordinário provido.
(RMS n. 64.534/MT, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe de
1º/12/2020).

Registre-se que a população do Estado de Mato Grosso é estimada


em 3.567.234 habitantes em 2021, distribuídos em uma área territorial de
903.207,050 km², conforme dados extraídos do site do IBGE. A Comarca de
Vila Rica, por exemplo, dista 1.268 km de estrada até o Município de Várzea
Grande. A imposição da tramitação das demandas em uma única comarca
implica claro prejuízo aos cidadãos do estado, que serão forçados a longos
deslocamentos para as audiências e para a produção da prova necessária ao bom
andamento do feito.
Destaco que o presente incidente inclui majoritariamente feitos
paradigmáticos em recurso ordinário em mandado de segurança. Desse modo,
para fixação da tese, não entendo como limitante a matéria restrita exigida
para a análise dos recursos especiais. Ainda que a matéria tivesse natureza
constitucional, não se estaria a avançar sobre competência única do Supremo
Tribunal Federal, nesse passo. Ademais, toda a compreensão desta Corte foi
submetida à apreciação do Supremo Tribunal Federal em reclamação, tendo
suscitado o estado federado violação da reserva de plenário pelo afastamento de
incidência do ato administrativo sem declaração de sua inconstitucionalidade.
A Corte Suprema af irmou que o exame de legalidade não se confunde com o
constitucionalidade, tendo sido aquele o fundamento das diversas decisões reclamadas
(STF. Rcl n. 45.602/MT, relator Ministro Alexandre de Moraes, DJe de 28/1/2021).
Mais recentemente, no RE n. 1.335.253, o STF verificou a ausência da
preliminar de repercussão geral (relator Ministro Alexandre de Moraes, DJe de
22/7/2021). A Corte também já afirmou que a questão envolve apenas reflexamente

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

a jurisdição constitucional (RE n. 1.334.255, relatora Ministra Cármen Lúcia, DJe de


20/7/2021). Tais posicionamentos da Corte Suprema indicam ser infundados os
argumentos da recorrida acerca da constitucionalidade da norma secundária local,
bem como da análise ora desenvolvida envolver competência reservada ao STF.
Relembre-se: a matéria encontra-se sumulada pela Corte Especial deste
Tribunal desde 1998, nos termos do Enunciado n. 206: “A existência de
vara privativa, instituída por lei estadual, não altera a competência territorial
resultante das leis de processo.”. Todos os precedentes da súmula foram firmados
em recurso especial, à luz do CPC/1973 (arts. 99 e 100). Compulsando-se essa
corrente jurisprudencial, identifica-se, entre seus casos inaugurais, o seguinte
excerto (conforme citado no AgRg no Ag n. 42.513/RS, relator Ministro Jesus
Costa Lima, Quinta Turma, DJ de 6/6/1994, p. 14.285, com parecer da então
Subprocuradora-Geral da República, hoje ministra desta Corte, Laurita Vaz):

Competência. Autarquia estadual.


A competência em razão do território é fixada na lei federal. Cabe ao legislador
estadual distribuí-la entre os diversos juízos da mesma circunscrição. Assim,
poderá determinar que, na comarca da capital, as autarquias estaduais respondam
perante vara da fazenda. Não, entretanto, que naquela hajam de ser propostas
todas as ações em que figurem como parte, se, de acordo com as leis de processo,
a competência deva atribuir-se a juízos sediados em outras circunscrições.
(REsp n. 13.649/SP, relator Ministro Eduardo Ribeiro, Terceira Turma, DJ de
25/11/1991, p. 17.074).

Ainda, também no REsp n. 1.846.781, que fixou a Tese n. 1.058/STJ,


a Ministra Assusete Magalhães, com o igualmente habitual acerto, relatou
a compreensão deste colegiado de dar efetividade ao princípio da proteção
integral da criança e do adolescente, invocando, a seu turno, outra corrente
jurisprudencial absolutamente consolidada e unívoca desta Corte. Furto-me
de repeti-la, limitando-me a transcrever a tese vinculante ali firmada: “A Justiça
da Infância e da Juventude tem competência absoluta para processar e julgar causas
envolvendo matrícula de menores em creches ou escolas, nos termos dos arts. 148,
IV, e 209 da Lei 8.069/90.” Cito os precedentes ali expressamente invocados:
REsp n. 1.199.587/SE, relator Ministro Arnaldo Esteves Lima, Primeira
Turma, DJe de 12/11/2010; AgRg no REsp n. 1.464.637/ES, relator Ministro
Sérgio Kukina, Primeira Turma, DJe de 28/3/2016; REsp n. 1.486.219/MG,
relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe de 4/12/2014; REsp
n. 1.217.380/SE, relator Ministro Castro Meira, Segunda Turma, DJe de
25/5/2011; REsp n. 1.201.623/SE, relator Ministro Mauro Campbell Marques,

82
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO

Segunda Turma, DJe de 13/4/2011; REsp n. 1.231.489/SE, relatora Ministra


Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe de 19/6/2013; EDcl no AREsp n.
24.798/SP, relator Ministro Castro Meira, Segunda Turma, DJe de 16/2/2012;
AgRg no REsp n. 1.464.637/ES, relator Ministro Sérgio Kukina, Primeira
Turma, DJe de 28/3/2016; REsp n. 1.833.909/MS, relator Ministro Herman
Benjamin, Segunda Turma, DJe de 19/12/2019; REsp n. 1.760.648/MS, relator
Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe de 8/2/2019; REsp
n. 1.762.782/MS, relatora Ministra Assusete Magalhães, Segunda Turma, DJe
de 11/12/2018.
Nesse passo, compreendo que eventual inadequação da via especial para
discussão da matéria deverá ser tratada de forma casuística, no futuro. Chegando
a esta Corte, em recurso especial, a discussão com fundamento no conflito entre
a lei federal e alguma norma estadual, ao Relator caberá, inevitavelmente, aferir
a competência deste Tribunal para apreciar as razões da parte, antes mesmo
de apreciar a alegação em seu mérito. Convém lembrar, porém, que diversas
disposições do Código de Processo visam a evitar tal acesso (arts. 332, III, 496, §
4º, II, 927, III, 932, IV, “c”, e V, “c”, 942, § 4º, I, 947, § 3º, 955, parágrafo único,
II, e 1.022, parágrafo único, I, do CPC/2015). Além disso, a inobservância da
tese vinculante firmada em incidente de assunção de competência ensejará
reclamação a esta Corte (art. 988, IV, do CPC/2015), potencialmente
esvaziando a via especial. Destaque-se, por fim, que o provimento da reclamação
pode, em regra, apenas cassar a decisão reclamada, de modo a determinar a
aplicação do precedente (art. 992 do CPC/2015), não havendo razões para se
temer a multiplicação de feitos nessa via, ante seu caráter tendente ao juízo
sumaríssimo de comparação entre o ato impugnado objeto da reclamação e o
parâmetro jurisdicional de controle (MENDES, Gilmar. O uso da reclamação
para atualizar jurisprudência firmada em controle abstrato. Observatório da
Jurisdição Constitucional, ano 6, v. 1, maio/2013, p. 113-114).
É de se ver, portanto, que a compreensão deste Tribunal Superior encontra-
se solidificada na jurisprudência, sumulada e reiterada em recente precedente
qualificado. Nos termos prescritos no CPC, não se pode admitir a inobservância
da interpretação firmada em precedente vinculante, sob pena de violação da
norma jurídica, consistente no entendimento hermenêutico desta Corte sobre
os textos legais já elencados.
Acrescento não vislumbrar razões de ordem jurídica, social ou econômica
aptas a justificar a superação ou revisão desses entendimentos, sendo de rigor a
imposição de cumprimento do ordenamento jurídico às instâncias subordinadas,
nos termos do arts. 926 e 927 do CPC.

RSTJ, a. 34, (265): 35-136, Janeiro/Março 2022 83


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Nesse passo, mais que fixar uma orientação, o presente julgado vem apenas
confirmá-la, em seara qualificada, de modo simultaneamente tanto mais abrangente
quanto mais específico. Mais abrangente, por dispor sobre as diversas normas de
tutela processual das pessoas hipossuficientes afetadas por tentativas de suposta
otimização da prestação jurisdicional, bem como para confirmar as opções
legislativas quando facultam ao cidadão a eleição de foro. Mais específica, por
tratar justamente, e de forma definitiva, da Resolução n. 9/2019/TJMT.
Enfatize-se que o ato normativo secundário não pode contrariar lei ou a
Constituição. No caso específico, a resolução administrativa do Tribunal mato-
grossense, concreta e efetivamente, viola as garantias processuais dessas classes
de pessoas.
Há apenas um ponto que parece merecer atenção mais detida deste
colegiado, por haver alguma dispersão jurisprudencial sobre ele. Há que se
distinguir entre a competência dos Juizados Especiais Cíveis (Lei n. 9.099/1995)
daquela dos Juizados Especiais da Fazenda Pública (Lei n. 12.153/2009),
no que tange à faculdade do autor em manejar a ação neles ou na jurisdição
comum. Naqueles, entende esta Corte ser facultado ao autor optar pela Justiça
comum ou especial; nestes, não há tal opção. A compreensão deste Tribunal
Superior parece fundar-se na competência textualmente absoluta dos Juizados
da Fazenda, que não repetiu a flexibilidade da Lei n. 9.099/1995, mas, sim, a
rigidez da regra dos Juizados Especiais Federais (Lei n. 10.259/2001).
Tal divergência surgiu mesmo da Segunda Turma (RMS n. 65.165), em
votação unânime, mas não deve permanecer. É que os precedentes de dito
julgado invocados, no ponto, para apoiar a conclusão (REsp n. 1.726.789 e AgInt
no REsp n. 1.837.659), tratavam de Juizados Especiais Cíveis, não da Fazenda.
Ocorre que, naquele caso, abordando a mesma resolução do TJMT, o equívoco
acerca do fundamento não implicaria alteração do resultado, ao contrário, este
seria reforçado, na medida em que os Juizados Especiais da Fazenda é que têm
sido constrangidos a remeter os feitos à Vara Comum Especializada (e não de
Juizado Especial) de comarca diversa. Apenas destaco a questão por se tratar,
aqui, de precedente qualificado, em que os fundamentos importam tanto ou
mais que o próprio resultado. A seguir, indico os três posicionamentos.
Quanto aos Juizados Especiais Federais:

Processo Civil. Juizados Especiais Federais Cíveis e Juízo Federal Cível. Valor da
causa. Competência absoluta do Juizado Especial Federal. Lei n. 10.259/01, art. 3º,
caput e § 3º.

84
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO

1. O valor dado à causa pelo autor fixa a competência absoluta dos Juizados
Especiais.
2. O Juizado Especial Federal Cível é absolutamente competente para processar
e julgar causas afetas à Justiça Federal até o valor de sessenta salários mínimos
(art. 3º, caput e § 3º, da Lei 10.259/2001).
[...]
(REsp n. 1.257.935/PB, relatora Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe de
29/10/2012).

Processual Civil e Previdenciário. Agravo regimental no recurso especial.


Revisão de pensão por morte. Análise de violação de dispositivos constitucionais
em recurso especial. Impossibilidade. Valor da causa inferior a sessenta salários
mínimos. Juizado Especial Federal. Competência absoluta. Precedentes do STJ.
Agravo regimental não provido.
[...]
3. O Superior Tribunal de Justiça pacificou a orientação de que a competência
dos Juizados Especiais Federais é absoluta e deve ser fixada segundo o valor da
causa.
4. Agravo regimental não provido.
(AgRg no REsp n. 1.480.955/RS, relator Ministro Mauro Campbell Marques,
Segunda Turma, DJe de 28/10/2014).

Tributário e Processual Civil. Juizados Especiais Federais. Valor da causa.


Competência absoluta. Decisão agravada em harmonia com a jurisprudência do
STJ. Súmula 83/STJ.
[...]
2. As causas de competência da Justiça Federal cujo valor seja inferior a 60
(sessenta) salários mínimos serão processadas, conciliadas e julgadas no Juizado
Especial Federal. Precedentes do STJ.
3. Tal competência é absoluta, como se extrai do § 3º do art. 3º da Lei
10.259/2001, ou seja, sua violação acarreta a nulidade de todos os atos decisórios
e a redistribuição do processo para a Vara do Juizado Especial Federal competente.
4. Agravo Regimental não provido.
(AgRg no REsp n. 1.427.074/RS, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda
Turma, DJe de 22/4/2014, grifos acrescidos).

Quanto aos Juizados Especiais da Fazenda Pública:

Processual Civil. Administrativo. Adicional por tempo de serviço. Alegação de


ofensa ao art. 1.022 do CPC. Inexistência. Valor individual da causa inferior a 60

RSTJ, a. 34, (265): 35-136, Janeiro/Março 2022 85


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

salários mínimos. Competência absoluta do Juizado Especial. Acórdão alinhado


com a jurisprudência do STJ. Aplicação da Súmula n. 83/ STJ.
I - Na origem, trata-se de agravo de instrumento contra a decisão que, nos autos
da ação ajuizada por Edileuza Rodrigues Barreto e outros contra a Fazenda do
Estado de São Paulo, objetivando o recálculo do adicional por tempo de serviço,
nos termos do art. 129 da Constituição Estadual, determinou a redistribuição da
ação a uma das Varas do Juizado Especial da Fazenda Pública do Estado. No Tribunal
a quo, a decisão foi mantida. Nesta Corte, conheceu-se do agravo para negar
provimento ao recurso especial.
[...]
V - A conclusão adotada pela Corte Estadual quanto à fixação da competência
dos Juizados Especiais, no caso de litisconsórcio ativo facultativo, levando em
consideração o valor da causa de cada autor, de forma individual, não importando
se a soma ultrapassa o limite dos 60 salários mínimos, encontra-se em harmonia
com a jurisprudência do STJ. Incidência da Súmula n. 83 STJ aplicável aos recursos
por ambas as alíneas do permissivo constitucional. Nesse sentido: (REsp n.
1.658.347/SP, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em
16/5/2017, DJe 16/6/2017 e AgRg no REsp n. 1.503.716/PR, relator Ministro
Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 5/3/2015, DJe 11/3/2015).
VI - Agravo interno improvido.
(AgInt no AREsp n. 1.729.191/SP, relator Ministro Francisco Falcão, Segunda
Turma, DJe de 22/3/2021).

Processual Civil. Recursos especiais representativos da controvérsia. Tema


1.029/STJ. REsp 1.804.186/SC e REsp 1.804.188/SC. Ação coletiva. Execução.
Competência e rito. Juizados Especiais da Fazenda Pública. Lei 12.153/2009.
Impossibilidade. Identificação da controvérsia
[...]
4. Também está sedimentado na jurisprudência do STJ o entendimento de
que, uma vez instalado Juizado Especial Federal ou da Fazenda Pública, conforme
o caso, e se o valor da causa for inferior ao da alçada, a competência é absoluta.
Apenas como exemplo: REsp 1.537.768/DF, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia
Filho, Primeira Turma, julgado em 20.8.2019, DJe de 5.9.2019.
[...]
7. Na mesma lei não há disposição expressa acerca da competência executória
dos Juizados da Fazenda Pública, havendo apenas regramento (arts. 12 e 13) do
rito da execução de seus próprios julgados.
[...]
15. Na mesma linha de compreensão aqui traçada, cita-se precedente da
Primeira Turma que examina a Lei 10.259/2001 (Juizado Especial Federal), aplicada

86
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO

subsidiariamente à Lei 12.153, ora em exame: “Nos termos do art. 3º, caput, da Lei
10.259/2001, ‘Compete ao Juizado Especial Federal Cível processar, conciliar e
julgar causas de competência da Justiça Federal até o valor de sessenta salários
mínimos, bem como executar as suas sentenças.’ Extrai-se do referido dispositivo
legal que a fixação da competência do JEF, no que se refere às execuções, impõe
a conjugação de duas condicionantes: (a) o valor da causa deve ser inferior a 60
(sessenta) salários mínimos; (b) o titulo executivo judicial deve ser oriundo do
próprio JEF.
[...] (REsp n. 1.804.186/SC, relator Ministro Herman Benjamin, Primeira Seção,
DJe de 11/9/2020).

Processual Civil e Administrativo. Recurso especial. Juizados Especiais da


Fazenda Pública. Valor da causa inferior a 60 salários mínimos. Competência
absoluta, nos termos do art. 2º, § 4º, da Lei 12.153/2009. Incompetência
reconhecida. Remessa dos autos ao Juizado para processamento da demanda.
Recurso especial da autarquia distrital a que se dá provimento.
[...]
2. Consoante o art. 2º, § 4º, da Lei 12.153/2009, no foro onde estiver instalado
Juizado Especial da Fazenda Pública, a sua competência é absoluta. No presente
caso, atribuiu-se à causa o valor de R$ 100,00 (fl. 11); entretanto, a ação foi movida
perante a 2ª. Vara da Fazenda Pública do Distrito Federal, em foro no qual existe
Juizado Especial da Fazenda Pública. Destarte, não poderiam as instâncias ordinárias
ter prosseguido no julgamento do feito, em razão de sua incompetência absoluta,
posto que é improrrogável tal competência.
[...]
(REsp n. 1.537.768/DF, relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira
Turma, DJe de 5/9/2019).

Processual Civil. Ação com valor a causa menor que 60 (sessenta) salários
mínimos. Juizado Especial da Fazenda Pública. Artigo 2º da Lei 12.153/2009.
Competência absoluta.
1. A jurisprudência do STJ firmou-se no sentido de que a competência atribuída
ao Juizado Especial da Fazenda Pública é absoluta, consoante o art. 2º, § 4º, da Lei
12.153/2009, a ser determinada em conformidade com o valor da causa.
[...]
3. A ação foi ajuizada perante o Juízo da Vara Única da Comarca de Raul Soares/
MG, o qual exerce competência simultânea para o processamento e julgamento
das causas afetas tanto à Justiça Comum quanto ao Sistema dos Juizados
Especiais. Assim, nos casos em que o Juízo exerça competência simultânea para
o processamento e o julgamento das causas afetas à Justiça Comum, e também

RSTJ, a. 34, (265): 35-136, Janeiro/Março 2022 87


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

ao Sistema dos Juizados Especiais, os recursos interpostos na sistemática desse


microssistema devem ser endereçados à respectiva Turma Recursal.
4. Recurso Especial provido.
(REsp n. 1.844.494/MG, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma,
DJe de 12/5/2020, grifos acrescidos).

Quanto aos Juizados Especiais Cíveis estaduais:

Processual Civil. Agravo interno no recurso especial. Código de Processo Civil


de 2015. Aplicabilidade. Violação ao art. 1.022 do CPC. Inocorrência. Competência
pelo Tribunal de Justiça. Juizados Especiais Cíveis e Justiça Comum. Opção do
autor. Argumentos insuficientes para desconstituir a decisão atacada. Aplicação
de multa. Art. 1.021, § 4º, do Código de Processo Civil de 2015. Descabimento.
[...]
III - No caso, não é possível o deslocamento da competência em virtude
de julgamento desfavorável à parte, pois o processamento da ação perante o
Juizado Especial é opção do autor, que pode, se preferir, ajuizar sua demanda
perante a Justiça Comum.
[...]
(AgInt no REsp n. 1.837.659/SP, relatora Ministra Regina Helena Costa, Primeira
Turma, DJe de 20/2/2020).

Processual Civil. Controle de competência pelo Tribunal de Justiça. Juizados


Especiais Cíveis. Mandado de segurança. Cabimento. Art. 3º, § 3º, da Lei 9.099/1995
e art. 1º da Lei Estadual 10.675/1996. Opção do autor.
[...]
3. O Superior Tribunal de Justiça possui entendimento de que “o processamento
da ação perante o Juizado Especial é opção do autor, que pode, se preferir, ajuizar
sua demanda perante a Justiça Comum” (REsp 173.205/SP, Relator Ministro Cesar
Asfor Rocha, Quarta Turma, DJ 14.6.1999). A propósito: REsp 331.891/DF, Rel.
Ministro Antônio de Pádua Ribeiro, Terceira Turma, 21.3.2002; REsp 146.189/RJ,
Rel. Ministro Barros Monteiro, Quarta Turma, DJ 29.6.1998.
4. O art. 3º, § 3º, da Lei 9.099/1995 e o art. 1º da Lei Estadual 10.675/1996
permitem que a demanda seja ajuizada no Juizado Especial ou na Justiça Comum,
sendo essa uma decisão da parte.
5. Recurso Ordinário provido.
(RMS n. 53.227/RS, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe de
30/6/2017).

88
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO

Processual Civil e Consumidor. Telefonia. Possibilidade de a parte escolher


entre o Juizado Especial Civil e a Justiça Comum. Causa de pequeno valor e
complexidade.
[...]
3. Há muito tempo se consolidou no Superior Tribunal de Justiça o
entendimento de que a propositura de demanda perante os Juizados Especiais
Cíveis, quando atendidas todas as circunstâncias ensejadoras da sua competência,
é opcional, dependendo da escolha da parte autora.
[...]
(REsp n. 1.725.663/RS, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe
de 23/5/2018).

Competencia. Ação reparatoria de dano causado em acidente de veiculos. Vara


Cível e Juizado Especial Cível. Art. 3º, inc. II, da Lei 9.099, de 26/09/95.
Ao autor é facultada a opção entre, de um lado, ajuizar a sua demanda no
juizado especial, desfrutando de uma via rápida, econômica e desburocratizada,
ou, de outro, no juízo comum, utilizando então o procedimento sumário.
Recurso especial conhecido, mas improvido.
(REsp n. 146.189/RJ, relator Ministro Barros Monteiro, Quarta Turma, DJ de
29/6/1998, p. 196, grifos acrescidos).

Assim, importa afirmar que não há faculdade do autor em optar pelo Juízo
comum se, no local em que propõe a ação, existe Juizado Especial da Fazenda
Pública, tratando-se de matéria de sua competência e alçada. O que é faculdade
do autor é ajuizar tal ação no foro de sua residência ou, em se tratando do estado
no polo passivo, em qualquer de suas comarcas; mas, se escolher movê-la em
comarca onde há Juizado Especial da Fazenda Pública, a competência deste
não poderá ser afastada. Muito menos, como dito, em decorrência de norma
secundária ou primária local, que imponha ao autor o trâmite de seu caso
em vara comum, ainda que especializada, quando houver Juizado Especial da
Fazenda no local de eleição.
Portanto, nos termos do art. 104-A do RISTJ, tenho como fundamentos
da posição jurisprudencial desta Corte:

i) a prevalência das leis processuais federais e da Constituição sobre atos


normativos legislativos ou secundários emanados dos Estados-Membros; e
ii) a tutela preferencial dos interesses dos cidadãos hipossuficientes ante a
conveniência da Administração do Estado, inclusive da gestão judiciária.

RSTJ, a. 34, (265): 35-136, Janeiro/Março 2022 89


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Assim, proponho a seguinte redação para as teses jurídicas oriundas das


razões de decidir indicadas:
Tese A) Prevalecem sobre quaisquer outras normas locais, primárias ou
secundárias, legislativas ou administrativas, as seguintes competências de foro:
i) em regra, do local do dano, para ação civil pública (art. 2º da Lei n.
7.347/1985);
ii) ressalvada a competência da Justiça Federal, em ações coletivas, do local onde
ocorreu ou deva ocorrer o dano de impacto restrito, ou da capital do estado, se os danos
forem regionais ou nacionais, submetendo-se ainda os casos à regra geral do CPC, em
havendo competência concorrente (art. 93, I e II, do CDC).
Tese B) São absolutas as competências:
i) da Vara da Infância e da Juventude do local onde ocorreu ou deva ocorrer a
ação ou a omissão, para as causas individuais ou coletivas arroladas no ECA, inclusive
sobre educação e saúde, ressalvadas a competência da Justiça Federal e a competência
originária dos tribunais superiores (arts. 148, IV, e 209 da Lei n. 8.069/1990; e Tese
n. 1.058/STJ);
ii) do local de domicílio do idoso nas causas individuais ou coletivas versando
sobre serviços de saúde, assistência social ou atendimento especializado ao idoso
portador de def iciência, limitação incapacitante ou doença infectocontagiosa,
ressalvadas a competência da Justiça Federal e a competência originária dos tribunais
superiores (arts. 79 e 80 da Lei n. 10.741/2003 e 53, III, e, do CPC/2015);
iii) do Juizado Especial da Fazenda Pública, nos foros em que tenha sido
instalado, para as causas da sua alçada e matéria (art. 2º, § 4º, da Lei n. 12.153/2009);
iv) nas hipóteses do item (iii), faculta-se ao autor optar livremente pelo manejo
de seu pleito contra o estado no foro de seu domicílio, no do fato ou ato ensejador da
demanda, no de situação da coisa litigiosa ou, ainda, na capital do estado, observada
a competência absoluta do Juizado, se existente no local de opção (art. 52, parágrafo
único, do CPC/2015, c/c o art. 2º, § 4º, da Lei n. 12.153/2009).
Tese C) A instalação de vara especializada não altera a competência prevista
em lei ou na Constituição Federal, nos termos da Súmula n. 206/STJ (“A existência
de vara privativa, instituída por lei estadual, não altera a competência territorial
resultante das leis de processo.”). A previsão se estende às competências definidas no
presente IAC n. 10/STJ.

90
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO

Tese D) A Resolução n. 9/2019/TJMT é ilegal e inaplicável quanto à criação


de competência exclusiva em comarca arbitrariamente eleita em desconformidade com
as regras processuais, especificamente quando determina a redistribuição desses feitos,
se ajuizados em comarcas diversas da 1ª Vara Especializada da Fazenda Pública da
Comarca de Várzea Grande/MT. Em consequência:
i) fica vedada a redistribuição à 1ª Vara Especializada da Fazenda Pública da
Comarca de Várzea Grande/MT dos feitos propostos ou em tramitação em comarcas
diversas ou em juizados especiais da referida comarca ou de outra comarca, cujo
fundamento, expresso ou implícito, seja a Resolução n. 9/2019/TJMT ou normativo
similar;
ii) os feitos já redistribuídos à 1ª Vara Especializada de Várzea Grande/
MT com fundamento nessa norma deverão ser devolvidos aos juízos de origem,
salvo se as partes, previamente intimadas, concordarem expressamente em manter o
processamento do feito no referido foro;
iii) no que tange aos processos já ajuizados – ou que venham a ser ajuizados
– pelas partes originalmente na 1ª Vara Especializada da Fazenda Pública da
Comarca de Várzea Grande/MT, poderão prosseguir normalmente no referido juízo;
iv) não se aplicam as previsões dos itens (ii) e (iii) aos feitos de competência
absoluta, ou seja: de competência dos Juizados Especiais da Fazenda, das Varas da
Infância e da Juventude ou do domicílio do idoso, nos termos da Tese B deste IAC n.
10/STJ.
Quanto ao caso concreto, decide-se: i) confirmar a ordem liminar para
torná-la definitiva, com o acréscimo dos fundamentos contidos na Questão de
Ordem decidida no RMS n. 64.531/MT (e-STJ, fls. 237-239); e ii) declarar a
inaplicabilidade da Resolução n. 9/2019/TJMT no que tange, unicamente, ao
ponto em que determinava às outras unidades jurisdicionais que redistribuíssem
os feitos para a 1ª Vara Especializada da Fazenda Pública da Comarca de
Várzea Grande/MT, para causas que envolvam o estado, individualmente ou em
litisconsórcio, sobre matérias de saúde, devendo o processo, em consequência,
retornar à Vara onde foi originalmente distribuído.
Ante o exposto, dou provimento ao recurso ordinário para conceder a
segurança e tornar definitiva a medida liminar deferida. Julgo o incidente de
assunção de competência para fixar as teses jurídicas supradestacadas, nos
termos da fundamentação.
É como voto.

RSTJ, a. 34, (265): 35-136, Janeiro/Março 2022 91


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

RECURSO ESPECIAL N. 1.878.849-TO (2020/0140710-7)

Relator: Ministro Manoel Erhardt (Desembargador Convocado do TRF5)


Recorrente: Estado do Tocantins
Procurador: Mauricio Fernando Domingues Morgueta - TO004262B
Recorrido: Marcos César da Costa Almeida
Advogado: Flávio da Cunha Ferreira Albuquerque e Silva - TO005514
Interes.: Confederacao dos Trabalhadores no Servico Publico Federal -
“Amicus Curiae”
Interes.: Federacao Nacional dos Trabalhadores do Servico Publico
Federal - FENADSEF - “Amicus Curiae”
Interes.: Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educacao Basica,
Profissional e Tecnologica - “Amicus Curiae”
Advogados: Jose Luis Wagner e outro(s) - RS018097
Valmir Floriano Vieira de Andrade - DF026778

EMENTA

Processual Civil e Administrativo.Recurso especial.Representativo


de controvérsia. Servidor público estadual. Prequestionamento ficto.
Ocorrência. Progressão funcional. Requisitos legais preenchidos.
Ilegalidade do ato de descumprimento de direito subjetivo por
restrições orçamentárias previstas na Lei de Responsabilidade Fiscal.
Recurso especial do ente federativo a que se nega provimento.
1. Recurso especial da parte recorrente em que se discute a
legalidade do ato de não concessão de progressão funcional do servidor público,
quando atendidos todos os requisitos legais, sob o argumento de que foram
superados os limites orçamentários previstos na Lei de Responsabilidade
Fiscal, referentes a gastos com pessoal de ente público.
2. Conforme o entendimento desta Corte Superior, a incidência
do art. 1.025 do CPC/2015 exige que o recurso especial tenha
demonstrado a ocorrência de violação do art. 1.022 do referido diploma
legal – possibilitando observar a omissão do Tribunal de origem
quanto à apreciação da matéria de direito de lei federal controvertida,
bem como inaugurar a jurisdição na instância ad quem, caso se constate

92
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO

a existência do vício do julgado, vindo a deliberar sobre a possibilidade


de julgamento imediato da matéria, o que ocorreu na espécie.
3. A LC 101/2000 determina que seja verificado se a despesa
de cada Poder ou órgão com pessoal – limite específico – se mantém
inferior a 95% do seu limite; isso porque, em caso de excesso, há um
conjunto de vedações que deve ser observado exclusivamente pelo
Poder ou pelo órgão que houver incorrido no excesso, como visto no
art. 22 da LC 101/2000.
4. O mesmo diploma legal não prevê vedação à progressão
funcional do servidor público que atender aos requisitos legais para sua
concessão, em caso de superação dos limites orçamentários previstos na Lei
de Responsabilidade Fiscal, referentes a gastos com pessoal de ente público.
Nos casos em que há comprovado excesso, se global ou específico, as
condutas que são lícitas aos entes federativos estão expressamente
delineadas. Ou seja, há comandos normativos claros e específicos de
mecanismos de contenção de gasto com pessoal, os quais são taxativos,
não havendo previsão legal de vedação à progressão funcional, que
é direito subjetivo do servidor público quando os requisitos legais forem
atendidos em sua plenitude.
5. O aumento de vencimento em questão não pode ser confundido
com concessão de vantagem, aumento, reajuste ou adequação
de remuneração a qualquer título, uma vez que o incremento no
vencimento decorrente da progressão funcional horizontal ou vertical
– aqui dito vencimento em sentido amplo englobando todas as rubricas
remuneratórias – é inerente à movimentação do servidor na carreira
e não inova o ordenamento jurídico em razão de ter sido instituído em lei
prévia, sendo direcionado apenas aos grupos de servidores públicos
que possuem os requisitos para sua materialização e incorporação ao seu
patrimônio jurídico quando presentes condições específicas definidas em lei.
6. Já conceder vantagem, aumento, reajuste ou adequar a
remuneração a qualquer título engloba aumento real dos vencimentos
em sentido amplo, de forma irrestrita à categoria de servidores
públicos, sem distinção, e deriva de lei específica para tal fim. Portanto,
a vedação presente no art. 22, inciso I, da LC 101/2002 se dirige a essa
hipótese legal.
7. A própria Lei de Responsabilidade Fiscal, ao vedar, no art.
21, parágrafo único, inciso I, àqueles órgãos que tenham incorrido

RSTJ, a. 34, (265): 35-136, Janeiro/Março 2022 93


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

em excesso de despesas com pessoal, a concessão de vantagem, aumento,


reajuste ou adequação de remuneração a qualquer título, ressalva, de logo,
os direitos derivados de sentença judicial ou de determinação legal ou
contratual, exceção em que se inclui a progressão funcional.
8. O ato administrativo do órgão superior da categoria que
concede a progressão funcional é simples, e por isso não depende
de homologação ou da manifestação de vontade de outro órgão.
Ademais, o ato produzirá seus efeitos imediatamente, sem necessidade
de ratificação ou chancela por parte da Secretaria de Administração.
Trata-se, também, de ato vinculado sobre o qual não há nenhuma
discricionariedade da Administração Pública para sua concessão
quando presentes todos os elementos legais da progressão.
9. Condicionar a progressão funcional do servidor público
a situações alheias aos critérios previstos por lei poderá, por via
transversa, transformar seu direito subjetivo em ato discricionário
da Administração, ocasionando violação aos princípios caros à
Administração Pública, como os da legalidade, da impessoalidade e
da moralidade.
10. A jurisprudência desta Corte Superior firmou-se no sentido
de que os limites previstos nas normas da Lei de Responsabilidade
Fiscal (LRF), no que tange às despesas com pessoal do ente público,
não podem servir de justificativa para o não cumprimento de direitos
subjetivos do servidor público, como é o recebimento de vantagens
asseguradas por lei.
11. A Carta Magna de 1988 enumerou, em ordem de relevância,
as providências a serem adotadas pelo administrador na hipótese de
o orçamento do órgão público ultrapassar os limites estabelecidos na
Lei de Responsabilidade Fiscal, quais sejam, a redução de cargos em
comissão e funções de confiança, a exoneração de servidores não estáveis e
a exoneração de servidores estáveis (art. 169, § 3º, da CF/1988). Não
se mostra razoável a suspensão de benefícios de servidores públicos
estáveis sem a prévia adoção de medidas de contenção de despesas,
como a diminuição de funcionários comissionados ou de funções
comissionadas pela Administração.
12. Não pode, outrossim, o Poder Público alegar crise financeira
e o descumprimento dos limites globais e/ou específicos referentes
às despesas com servidores públicos nos termos dos arts. 19 e 20

94
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO

da LC 101/2000 de forma genérica, apenas para legitimar o não


cumprimento de leis existentes, válidas e eficazes, e suprimir direitos
subjetivos de servidores públicos.
13. Diante da expressa previsão legal acerca da progressão
funcional e comprovado de plano o cumprimento dos requisitos
para sua obtenção, está demonstrado o direito líquido e certo do
servidor público, devendo ser a ele garantida a progressão funcional
horizontal e vertical, a despeito de o ente federativo ter superado o
limite orçamentário referente a gasto com pessoal, previsto na Lei de
Responsabilidade Fiscal, tendo em vista não haver previsão expressa
de vedação de progressão funcional na LC 101/2000.
14. Tese fixada pela Primeira Seção do STJ, com observância
do rito do julgamento dos recursos repetitivos previsto no art. 1.036
e seguintes do CPC/2015: é ilegal o ato de não concessão de progressão
funcional de servidor público, quando atendidos todos os requisitos legais,
a despeito de superados os limites orçamentários previstos na Lei de
Responsabilidade Fiscal, referentes a gastos com pessoal de ente público,
tendo em vista que a progressão é direito subjetivo do servidor público,
decorrente de determinação legal, estando compreendida na exceção prevista
no inciso I do parágrafo único do art. 22 da Lei Complementar 101/2000.
15. Recurso especial do ente federativo a que se nega provimento.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas,


acordam os Ministros da Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, em
sessão de 24/02/2022, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto
do Sr. Ministro Relator.
Os Srs. Ministros Herman Benjamin, Mauro Campbell Marques, Assusete
Magalhães, Regina Helena Costa e Gurgel de Faria votaram com o Sr. Ministro
Relator. Ausentes, justificadamente, os Srs. Ministros Francisco Falcão e Og
Fernandes e, ocasionalmente, o Sr. Ministro Benedito Gonçalves.
Brasília (DF), 24 de fevereiro de 2022 (data do julgamento).
Manoel Erhardt (Desembargador Convocado do TRF5), Relator

DJe 15.3.2022

RSTJ, a. 34, (265): 35-136, Janeiro/Março 2022 95


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Manoel Erhardt (Desembargador Convocado do TRF5):


1. Trata-se de recurso especial interposto pelo Estado do Tocantins, com base
no art. 105, inciso III, alínea a, da Constituição Federal, objetivando a reforma
do acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins, assim
ementado:

Mandado de segurança. Secretário Segurança Pública. Ilegitimidade. Exclusão


do polo passivo. Direitos Constitucional e Administrativo. Servidor público
estadual. Agente da Polícia Civil do Estado do Tocantins. Progressão funcional
horizontal. Impetrante que foi considerado apto à progressão. Direito subjetivo
reconhecido por deliberação do Conselho Superior da Polícia Civil (CSPC). Órgão
competente para a deliberação quanto à progressão de policiais civis. Direito
líquido e certo configurado. Ato ilegal praticado pelo Secretário de Estado
da Administração consubstanciado na negativa de progressão funcional do
impetrante. Impetração anterior à MP n. 02/2019 (Lei Estadual n. 3.462/2019). Não
violação ao princípio da legalidade estrita. Mandado de segurança conhecido.
Segurança concedida em definitivo
1. Reconhecida a ilegitimidade passiva do Secretário de Estado da Segurança
Pública, já que somente o Secretário de Administração do Estado do Tocantins
é quem efetivamente detém competência para adotar as providências
imprescindíveis à promoção de servidores públicos estaduais.
2. Possui direito líquido e certo ao reenquadramento funcional na carreira
o policial civil que atende aos requisitos autorizadores para tanto, conforme
previsão legal, notadamente em razão do reconhecimento de tal direito pelo
Conselho Superior da Polícia Civil do Estado do Tocantins (CSPC), que é o órgão
público que detém competência para deliberar sobre a progressão na carreira de
policiais civis. Precedentes do TJTO.
3. Se o Conselho Superior da Polícia Civil (CSPC), enquanto órgão competente
para decidir a respeito da evolução funcional na carreira de policiais civis, analisou
o pedido de progressão do impetrante e decidiu em seu favor, com a consequente
concessão da progressão funcional na carreira, não pode o servidor público ficar
refém da discordância interna entre órgãos diversos da Administração Pública,
mas que compõem a estrutura da mesma pessoa jurídica de direito público
interno (no caso, o Estado do Tocantins). Precedentes do TJTO.
4. A concessão da ordem não viola o disposto na Medida Provisória (MP) n.
02/2019, convertida na Lei Estadual n. 3.462/2019, tendo em vista que a presente
impetração se deu em data anterior à vigência de referido ato normativo. Não
afronta ao princípio da legalidade estrita.
5. Mandado de segurança conhecido. Segurança concedida em definitivo.

96
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO

6. Efeitos funcionais decorrentes da concessão da segurança que deverão


retroagir à data em que o impetrante alcançou os requisitos imprescindíveis para
a sua progressão funcional.
7. Efeitos financeiros da concessão da segurança (retroativos e mensais) que
somente incidirão a partir da impetração (súmulas n. 269 e 271, ambas do STF) –
fls. 142/156.

2. Os embargos de declaração opostos pelo ente federativo foram rejeitados


(fls. 195/201).
3. Em seu recurso especial (fls. 217/231), a parte recorrente aponta violação
do art. 1.022 do CPC/2015; do art. 1º da Lei 12.016/2009; e dos arts. 20, 21
e 22 da Lei Complementar 101/2000. Argumenta, para tanto, que: (a) houve
a negativa de prestação jurisdicional, uma vez que o Tribunal de origem não
apreciou a tese por ela levantada; (b) não há direito líquido e certo a ser garantido
na via mandamental, haja vista que não possui o servidor público direito
absoluto à progressão funcional prevista na lei regulamentadora da carreira da
Polícia Civil; (c) a concessão da segurança ao servidor público implica nítido
aumento de despesa com pessoal, visto que determina o reenquadramento
de policial na carreira, com a implementação de progressões e aumento de
subsídios, ocasionando despesa permanente com pessoal sem a correspondente
dotação orçamentária necessária; e (d) os atos administrativos, os quais deferem
promoções com datas retroativas sem nenhum respaldo orçamentário ou
financeiro, são absolutamente nulos. Requer, ao final, a reforma do julgado para
denegação da ordem.
4. Nas contrarrazões apresentadas pelo ora recorrido alega-se: (a) o
não preenchimento dos pressupostos de admissão do recurso especial; (b) a
incidência da Súmula 7/STJ; (c) a falta de prequestionamento dos dispositivos
tidos como violados; (d) não poder a Administração Pública negar a ele, a
servidor público estadual, a progressão sob o argumento de extrapolação do
limite prudencial com despesas, uma vez que tal circunstancia não tem o condão
de desconstituir seu direito líquido e certo, baseado em direito previsto em lei
estadual de onde se extrai a presunção de reserva de valores; e (d) a validade dos
atos exarados pelo Conselho Superior da Polícia Civil (fls. 234/252).
5. O recurso especial foi admitido em juízo de admissibilidade prévio pelo
Tribunal de origem (fls. 263/266).
6. Recebido o feito nesta Corte Superior, foi indicado como representativo
da controvérsia pela Comissão Gestora de Precedentes (fls. 273/276).

RSTJ, a. 34, (265): 35-136, Janeiro/Março 2022 97


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

7. O Ministério Público Federal, em parecer acostado aos autos (fls.


281/286), manifestou-se pela admissão do presente recurso como representativo
da controvérsia.
8. O recurso especial foi submetido ao julgamento da Primeira Seção,
em conformidade com o art. 1.036, § 5º, do CPC/2015, sendo admitido
como representativo da controvérsia, tendo sido determinada a suspensão de
tramitação de todos os processos pendentes no território nacional que versassem
sobre a mesma questão, individuais e coletivos (fls. 456/464).
9. O Ministério Público Federal, em parecer da lavra do Subprocurador-
Geral da República Geraldo Brindeiro, opinou pela legalidade do ato de não
concessão de progressão funcional do servidor apenas quando presentes
as situações excepcionais de superveniência, imprevisibilidade, gravidade e
necessidade e, finalmente, pelo não conhecimento do recurso especial (fls.
470/478).
10. Foram deferidos os pedidos para ingressar no feito como amicus curiae,
formulados pela Confederação dos Trabalhadores no Serviço Público Federal, pela
Federação Nacional dos Trabalhadores do Serviço Público Federal - FENADSEF e
pelo Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educação Básica, Profissional e
Tecnologica (fls. 657).
11. É o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Manoel Erhardt (Desembargador Convocado do TRF5)


(Relator):

Moldura fática.

1. Na origem, trata-se de mandado de segurança, com pedido de tutela de


urgência, impetrado por Marcos César da Costa Almeida contra ato supostamente
omissivo do Secretário da Administração do Estado do Tocantins e do Secretário
de Segurança Pública do Estado do Tocantins, consistente em não realizar o seu
reenquadramento funcional, apesar de preencher os requisitos legais (fls. 10/27).
2. Na ocasião, o Tribunal de origem deferiu o pedido de tutela provisória
a fim de determinar o trâmite do processo administrativo do servidor público
estadual para que as autoridades coatoras adotassem as providências para a
progressão funcional do ora recorrido (fls. 53/57).

98
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO

3. Ato contínuo, a autoridade coatora prestou informações (fls. 68/83),


argumentando, na oportunidade, que: (a) havia necessidade de dilação
probatória quanto à existência da respectiva disponibilidade orçamentária para
a progressão pretendida, bem como havia a ausência de direito líquido e certo
a ser amparado; (b) após a aprovação no estágio probatório o servidor público está
apto à evolução funcional, o que não significa a imediata implementação das referidas
progressões, porquanto devem estar acompanhadas de estimativa de impacto na folha e
do preparo orçamentário e financeiro para tanto (fls. 69); (c) considerando a apuração
do cumprimento do limite legal elaborada pela Secretaria da Fazenda, no período de
junho a julho de 2017, que demonstra o índice de 50,05% sobre a receita corrente
líquida, com a despesa total com pessoal, fica caracterizada a desconformidade com
a Lei de Responsabilidade Fiscal, visto que de acordo com o artigo 20 da referida
lei [que] dispõe que “a repartição dos limites globais do art. 19 não poderá exceder
os seguintes percentuais: 11 - na esfera estadual: c) 49% (quarenta e nove por cento)
para o Executivo” (fls. 72 - grifei); (d) a falta de disponibilidade financeira impede
que o Governo execute as progressões vertical e horizontal, mormente em um momento
de crise fiscal, não havendo condições financeiras para que o Tesouro Estadual assuma
esta despesa sem caixa em observância aos art. 167, inciso II e 169 da CF/88, bem
como dos arts. 15, 16, 17 e 21 da LC 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal)
– fls. 77; (e) a ausência de dotação orçamentária prévia impedia a aplicação da
progressão no exercício financeiro; e (f ) os reajustes dos subsídios concedidos
não produziam efeitos jurídicos, sendo ineficazes.
4. Após, o ente federativo, também, interpôs agravo interno (fls. 84/92), o
qual foi desprovido (fls. 111/118). Quando da análise do mérito, o Tribunal de
origem concedeu a ordem em definitivo, com efeitos funcionais decorrentes da
concessão da segurança, os quais retroagiram à data em que o impetrante havia
alcançado os requisitos para a sua progressão funcional (fls. 146/152).
5. Desse acórdão o ente federativo opôs embargos de declaração (fls.
177/183) a fim de que o tribunal se manifestasse para fins de prequestionamento
quanto aos arts. 15, 16, 17, § 5º, 20, 21 e 22 da LC 101/2000, bem como aos
arts. 167, II, e 169, parágrafo único, I e II, da CF/1988. Todavia o referido
recurso foi rejeitado (fls. 195/201).

Tese em abstrato.

6. Sobreveio recurso especial do Estado do Tocantins em que se discute a


legalidade do ato de não concessão de progressão funcional do servidor público, quando

RSTJ, a. 34, (265): 35-136, Janeiro/Março 2022 99


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

atendidos todos os requisitos legais, sob o fundamento de que superados os limites


orçamentários previstos na Lei de Responsabilidade Fiscal, referentes a gastos com
pessoal de ente público.

Fundamento jurídico.

7. Primeiramente, verifico a ocorrência do prequestionamento ficto. Isso


porque, conforme o entendimento desta Corte Superior, a incidência do
art. 1.025, do CPC/2015 exige que o recurso especial tenha demonstrado a
ocorrência de violação do art. 1.022 do referido diploma legal – possibilitando
observar a omissão do Tribunal de origem quanto à apreciação da matéria
de direito de lei federal controvertida, bem como inaugurar a jurisdição na
instância ad quem, caso se constate a existência do vício do julgado, vindo
a deliberar sobre a possibilidade de julgamento imediato da matéria, o que
ocorreu na espécie. Confiram-se, a propósito, os seguintes julgados do Superior
Tribunal de Justiça:

Processual Civil e Tributário. Negativa de prestação jurisdicional. Ocorrência.


Prequestionamento ficto. Art. 1.025 do CPC/2015. Non reformatio in pejus.
Observância. Exceção de pré-executividade. Exclusão do ICMS da base de cálculo
do PIS e da COFINS. Reexame de fatos e provas. Súmula 7 do STJ.
1. Conforme estabelecido pelo Plenário do STJ, “aos recursos interpostos com
fundamento no CPC/2015 (relativos a decisões publicadas a partir de 18 de março
de 2016) serão exigidos os requisitos de admissibilidade recursal na forma do
novo CPC” (Enunciado Administrativo n. 3).
2. O acolhimento do prequestionamento ficto de que trata o art. 1.025 do
CPC/2015 exige do recorrente a indicação de violação do disposto no art. 1.022 do
mesmo diploma, “para que se possibilite ao Órgão julgador verificar a existência do
vício inquinado ao acórdão, que uma vez constatado, poderá dar ensejo à supressão
de grau facultada pelo dispositivo de lei” (AgInt no AREsp 1.067.275/RS, Rel. Ministra
Assusete Magalhães, Segunda Turma, julgado em 03/10/2017, DJe 13/10/2017),
providência atendida, in casu.
(...)
5. Agravo interno desprovido (AgInt no REsp 1.885.901/SC, Rel. Ministro Gurgel
de Faria, Primeira Turma, julgado em 23/2/2021, DJe 9/3/2021 – sem destaques no
original).

Processual Civil. Ofensa ao art. 1.022 do CPC/2015 configurada.


Prequestionamento ficto. Aplicação do art. 1.025 do CPC/2015. Mandando de
segurança coletivo. Associação. Hipótese de substituição processual. Dispensa

100
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO

de autorização específica dos associados. Legitimidade ativa ad causam. (...).


Aplicabilidade do art. 1.025 do CPC/2015.
4. O Tribunal de origem dirimiu a controvérsia utilizando-se de fundamentos
eminentemente constitucionais, sem se manifestar sobre os dispositivos de lei
federal apontados como violados, apesar de provocado mediante oposição dos
Embargos de Declaração.
5. É cediço o entendimento de que a solução integral da controvérsia, com
fundamento suficiente, não caracteriza ofensa ao art. 1.022 do CPC/2015 e que
o juiz não é obrigado a rebater todos os argumentos das partes. Por outro lado,
o juiz não pode deixar de conhecer de matéria relevante ao deslinde da questão,
mormente quando sua decisão não é suficiente para refutar a tese aduzida, que,
portanto, não abrange toda a controvérsia.
6. Para fins de aplicação do art. 1.025 do CPC/2015, a jurisprudência do STJ
consolidou que apenas poderá considerar prequestionada determinada matéria
caso sustentada e reconhecida a violação do art. 1.022 do Código de Processo Civil
de 2015.
7. A melhor interpretação da norma contida no art. 1.025 do CPC não colide
com a utilização da Súmula 211/STJ. Pelo contrário, reforça-a. Este ponto é
muito importante, principalmente pela dificuldade de alguns doutrinadores em
interpretar a norma contida no citado dispositivo legal.
8. O Tribunal a quo deverá ter apreciado a matéria ao menos implicitamente
para que o Recurso Especial possa ser analisado pelo Superior Tribunal de Justiça.
A obrigatoriedade do prequestionamento da matéria a ser debatida e decidida
no STJ continua firme. Além disso, o art. 1.025 do CPC requer que o acórdão
reprochado contenha erro, omissão, contradição ou obscuridade, que é o caso
dos autos.
(...)
Conclusão
19. Ao lume do exposto, dá-se parcial provimento ao Recurso Especial,
devolvendo-se o presente feito ao Tribunal de origem a fim de que este analise
a legitimidade da associação com base nos fundamentos supra (REsp 1.778.137/
RJ, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 20/8/2019, DJe
11/10/2019 – sem destaques no original).

8. Observo que a matéria é estritamente de direito, a saber, se há


direito subjetivo à progressão funcional do servidor público quando atendidos
todos os requisitos legais, ainda que o ente federativo haja superado os
limites orçamentários referentes a gasto com pessoal, previstos na Lei de
Responsabilidade Fiscal.

RSTJ, a. 34, (265): 35-136, Janeiro/Março 2022 101


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

9. As disposições de leis federais alegadas à época como violadas estão


expressas a seguir:

Art. 20. A repartição dos limites globais do art. 19 não poderá exceder os seguintes
percentuais:
I – na esfera federal:
a) 2,5% (dois inteiros e cinco décimos por cento) para o Legislativo, incluído o
Tribunal de Contas da União;
b) 6% (seis por cento) para o Judiciário;
c) 40,9% (quarenta inteiros e nove décimos por cento) para o Executivo,
destacando-se 3% (três por cento) para as despesas com pessoal decorrentes do
que dispõem os incisos XIII e XIV do art. 21 da Constituição e o art. 31 da Emenda
Constitucional n. 19, repartidos de forma proporcional à média das despesas
relativas a cada um destes dispositivos, em percentual da receita corrente líquida,
verificadas nos três exercícios financeiros imediatamente anteriores ao da
publicação desta Lei Complementar; (Vide Decreto 3.917, de 2001)
d) 0,6% (seis décimos por cento) para o Ministério Público da União;
II – na esfera estadual:
a) 3% (três por cento) para o Legislativo, incluído o Tribunal de Contas do
Estado;
b) 6% (seis por cento) para o Judiciário;
c) 49% (quarenta e nove por cento) para o Executivo;
d) 2% (dois por cento) para o Ministério Público dos Estados;
III – na esfera municipal:
a) 6% (seis por cento) para o Legislativo, incluído o Tribunal de Contas do
Município, quando houver;
b) 54% (cinquenta e quatro por cento) para o Executivo.
§ 1º Nos Poderes Legislativo e Judiciário de cada esfera, os limites serão
repartidos entre seus órgãos de forma proporcional à média das despesas com
pessoal, em percentual da receita corrente líquida, verificadas nos três exercícios
financeiros imediatamente anteriores ao da publicação desta Lei Complementar.
(...)
Art. 21. É nulo de pleno direito o ato que provoque aumento da despesa com
pessoal e não atenda:
I - as exigências dos arts. 16 e 17 desta Lei Complementar, e o disposto no
inciso XIII do art. 37 e no § 1o do art. 169 da Constituição;
II - o limite legal de comprometimento aplicado às despesas com pessoal
inativo.

102
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO

(...)
Art. 22. A verificação do cumprimento dos limites estabelecidos nos arts. 19 e
20 será realizada ao final de cada quadrimestre.
Parágrafo único. Se a despesa total com pessoal exceder a 95% (noventa e cinco
por cento) do limite, são vedados ao Poder ou órgão referido no art. 20 que houver
incorrido no excesso:
I - concessão de vantagem, aumento, reajuste ou adequação de remuneração a
qualquer título, salvo os derivados de sentença judicial ou de determinação legal
ou contratual, ressalvada a revisão prevista no inciso X do art. 37 da Constituição;

10. Dito isso, é importante consignar que a CF/1988 estabelece diretrizes


para contenção de gasto público quando excedido o limite global estabelecido por
lei complementar com despesa com pessoal.
11. Nessa hipótese, o art. 169, § 3º, da CF/1988 prevê mecanismos para
restabelecer o equilíbrio fiscal, a fim de evitar que as atividades inerentes ao
estado sejam prejudicadas. Tais providências são estas: (a) redução em pelo
menos 20% das despesas com cargos em comissão e funções de confiança; e (b)
exoneração dos servidores não estáveis. Caso tais medidas não forem suficientes
para assegurar o cumprimento da determinação da lei complementar, o servidor
estável poderá perder o cargo, desde que ato normativo motivado de cada um
dos Poderes especifique a atividade funcional, o órgão ou unidade administrativa
objeto da redução de pessoal (art. 169, §§ 2º, 3º e 4º, da CF/1988).
12. Como bem destacado pela professora e doutrinadora MARIA
SYLVIA ZANELLA DE PIETRO em sua obra Direito Administrativo,
tanto a CF/1988 quanto a LC 101/2000 – Lei de Responsabilidade Fiscal –
disciplinam as providências do gestor público quando os limites de gastos com
pessoal excederem o previsto pela lei complementar, como explicitado abaixo:

No caso de a despesa total com pessoal, do Poder ou órgão referido no artigo


20, ultrapassar os limites definidos no mesmo artigo (o que é verificado no
final de cada quadrimestre, conforme artigo 22, caput), o artigo 23 estabelece
que o percentual excedente terá de ser eliminado nos dois quadrimestres
seguintes, sendo pelo menos um terço no primeiro, adotando-se, entre outras,
as providências previstas nos §§ 3º e 4º do artigo 169 (redução em 20% das
despesas com cargos em comissão, exoneração dos não estáveis e perda do cargo
dos estáveis). Além dessas medidas, que encontram fundamento no referido
dispositivo constitucional, a lei prevê outras providências, referidas nos §§ 1º e 2º
do artigo 23: o primeiro estabelece que, no caso do inciso I, do § 3º do artigo 169,
da Constituição, o objetivo poderá ser alcançado tanto pela extinção de cargos e

RSTJ, a. 34, (265): 35-136, Janeiro/Março 2022 103


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

funções quanto pela redução dos valores a eles atribuídos; 37 o segundo prevê
a “redução temporária da jornada de trabalho com adequação dos vencimentos
à nova carga horária” (art. 23, § 2º). (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito
Administrativo. Disponível em: STJ Minha Biblioteca, 34. ed. Grupo GEN, 2021.)

13. Além disso, para os estados, a Lei de Responsabilidade Fiscal prescreve


como limite global 60% para a despesa total com pessoal, em cada período de
apuração, nos termos do art. 19, inciso II, da LC 101/2000. Também, conforme
o parágrafo único do art. 22 da LC 101/2000, quando atingido o percentual
de 95% do limite de gastos com pessoal, estará vedado ao Poder ou órgão que
houver incorrido no excesso:

I – conceder vantagem, aumento, reajuste ou adequação de remuneração a


qualquer título, salvo os derivados de sentença judicial ou de determinação legal
ou contratual, ressalvada a revisão geral anual da remuneração dos servidores
públicos prevista no inciso X do art. 37 da Constituição;
II – criar cargo, emprego ou função;
III – alterar estrutura de carreira que implique aumento de despesa;
IV – prover cargo público, admitir ou contratar pessoal a qualquer título,
ressalvada a reposição decorrente de aposentadoria ou falecimento de servidores
das áreas de educação, saúde e segurança;
V – contratar hora extra, salvo no caso de convocação extraordinária do
Congresso Nacional em caso de urgência ou interesse público relevante (inciso
II do § 6º do art. 57 da Constituição) e as situações previstas na Lei de Diretrizes
Orçamentárias.

14. A verificação de tais limites – global e específico –, por sua vez, dar-se-á
ao final de cada quadrimestre, segundo o art. 22, caput, da LC 101/2000. Nessa
oportunidade, a LC 101/2000 determina que seja verificada se a despesa de cada
Poder ou órgão com pessoal – limite específico – se mantém inferior a 95% do
seu limite; isso porque, em caso de excesso, há um conjunto de vedações que deve
ser observado exclusivamente pelo Poder ou o órgão que houver incorrido no excesso,
como visto no art. 22 da LC 101/2000.
15. Veja que em nenhuma dessas situações a LC 101/2000 desautoriza
a progressão funcional do servidor público que atender aos requisitos legais. Assim,
nos casos em que há comprovado excesso, se global ou específico, as condutas
que são lícitas aos entes federativos estão expressamente delineadas. Ou seja, há
comandos normativos claros e específicos de mecanismos de contenção de gasto
com pessoal, os quais são taxativos, não havendo previsão legal de vedação à

104
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO

progressão funcional, que é direito subjetivo do servidor público quando os requisitos


legais foram atendidos em sua plenitude.
16. Vale lembrar que a doutrina administrativista conceitua a promoção
quando o servidor é elevado de cargo integrante de uma classe para cargo de
outra, denominada de melhoria vertical; noutro vértice. a progressão ocorre
quando o servidor permanece no mesmo cargo, todavia dentro dele percorre um
iter funcional, geralmente representado por índices ou padrões, em que a melhoria
vai sendo consolidada por elevação nos vencimentos, o qual é designado de
melhoria horizontal.
17. Veja os ensinamentos do professor JOSÉ DOS SANTOS
CARVALHO FILHO, com base na doutrina administrativista acerca do tema:

No que concerne particularmente à promoção, é forçoso reconhecer que


são muito variados os sistemas de melhoria funcional. Algumas leis funcionais
distinguem a promoção e a progressão (esta stricto sensu, porque toda melhoria,
em última análise, retrata uma forma de progressão funcional). Na promoção, o
servidor é alçado de cargo integrante de uma classe para cargo de outra (melhoria
vertical), ao passo que na progressão o servidor permanece no mesmo cargo, mas
dentro dele percorre um iter funcional, normalmente simbolizado por índices ou
padrões, em que a melhoria vai sendo materializada por elevação nos vencimentos
(melhoria horizontal). (CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito
Administrativo. Disponível em: STJ Minha Biblioteca, 35. ed. Grupo GEN, 2021.)

18. A melhoria do vencimento decorrente da progressão funcional


não pode ser confundida com conceder vantagem, aumento e reajuste ou
com adequar a remuneração a qualquer título, uma vez que o incremento
no vencimento decorrente da melhoria horizontal ou vertical – aqui dito
vencimento em sentido amplo, englobando todas as rubricas remuneratórias – é
inerente à progressão funcional, sendo direcionado apenas aos grupos de servidores
públicos os quais possuem os requisitos para sua materialização e incorporação ao seu
patrimônio jurídico quando presente condições específicas definidas em lei.
19. Já conceder vantagem, aumento, reajuste ou adequar a remuneração a
qualquer título engloba aumento real dos vencimentos em sentido amplo, de
forma irrestrita à categoria de servidores públicos sem distinção, derivada de
lei específica para tal fim. Portanto, a vedação presente no art. 22, inciso I, da LC
101/2002 se dirige a essa hipótese legal.
20. A melhoria horizontal e vertical é direito subjetivo do servidor
integrante da Administração Pública, prevista em lei anterior ao implemento

RSTJ, a. 34, (265): 35-136, Janeiro/Março 2022 105


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

dos requisitos para progressão funcional. Sendo assim, confere ao titular a


faculdade de invocar a lei a fim de assegurar a produção de seus efeitos concretos, para
desfrutar a situação jurídica nela contemplada.
21. Isso porque, como leciona o Ministro LUÍS ROBERTO BARROSO,
as normas jurídicas são espontaneamente observadas e os direitos subjetivos delas
decorrentes realizam-se por um processo natural e simples, porém quando deixa de
ocorrer a submissão da vontade individual ao comando normativo, a ordem jurídica
aciona um mecanismo de sanção, promovendo, por via coercitiva, a obediência a
seus postulados (BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional
Contemporâneo - Os conceitos Fundamentais. Disponível em: STJ Minha
Biblioteca, 10. ed. Saraiva, 2021).
22. Aqui, a coerção foi buscada pela via da ação constitucional mandamental
impetrada pelo servidor público para garantir o cumprimento da lei concernente
à situação jurídica da progressão funcional.
23. O ato administrativo do órgão superior da categoria que concede a
progressão funcional é simples, e por isso não depende de homologação ou
da manifestação de vontade de outro órgão. Ademais, o ato produzirá seus
efeitos imediatamente, sem necessidade de ratificação ou chancela por parte
da Secretaria de Administração. Trata-se, também, de ato vinculado sobre o
qual não há nenhuma discricionariedade da Administração Pública para sua
concessão quando presentes todos os elementos legais da progressão.
24. Com profícua análise dos elementos que compõem o ato administrativo,
a professora MARIA SYLVIA ZANELLE DI PIETRO ensina que o ato
administrativo vinculado possui todos os seus elementos definidos por lei e
sua análise está restrita apenas ao aspecto da legalidade, diversamente do ato
discricionário, o qual inclui no seu escopo de abrangência o aspecto de mérito
que diz respeito à oportunidade e à conveniência do interesse público:

A partir da ideia de que certos elementos do ato administrativo são sempre


vinculados (a competência e a finalidade, em sentido estrito), pode-se afirmar que
não existe ato administrativo inteiramente discricionário. No ato vinculado, todos
os elementos vêm definidos na lei; no ato discricionário, alguns elementos vêm
definidos na lei, com precisão, e outros são deixados à decisão da Administração,
com maior ou menor liberdade de apreciação da oportunidade e conveniência.
Por isso se diz que o ato vinculado é analisado apenas sob o aspecto da
legalidade e que o ato discricionário deve ser analisado sob o aspecto da
legalidade e do mérito: o primeiro diz respeito à conformidade do ato com a lei e

106
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO

o segundo diz respeito à oportunidade e conveniência diante do interesse público


a atingir. (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. Disponível em:
STJ Minha Biblioteca, 34. ed. Grupo GEN, 2021.)

25. Nessa senda, condicionar a progressão funcional do servidor público


a situações alheias aos critérios previstos por lei poderá, por via transversa,
transformar seu direito subjetivo em ato discricionário da Administração,
ocasionando violação aos princípios caros da Administração Pública como os da
legalidade, da impessoalidade e da moralidade.
26. Não é sem razão que a própria Lei de Responsabilidade Fiscal, ao
vedar, no art. 21, parágrafo único, inciso I, àqueles órgãos que tenham incorrido
em excesso de despesas com pessoal a concessão de vantagem, aumento, reajuste
ou adequação de remuneração a qualquer título, excepciona, de logo, os direitos
derivados de sentença judicial ou de determinação legal ou contratual.
27. A progressão funcional, nesse panorama, consubstancia incremento
vencimental derivado de determinação legal, atraindo a incidência da exceção
acima mencionada; mostrando-se despido de legitimidade e de legalidade o
ato administrativo que, quando preenchidos os requisitos legais, obsta a sua
concessão.
28. Com a finalidade de proteger o direito subjetivo do servidor público
quanto a vantagens asseguradas por lei, esta Corte Superior firmou entendimento
segundo o qual os limites previstos nas normas da Lei de Responsabilidade
Fiscal, no que tange às despesas com pessoal do ente público, não podem servir
de justificativa para o não cumprimento de direitos subjetivos do servidor público. A
propósito, colaciono as ementas de arestos do Superior Tribunal de Justiça no
mesmo sentido:

Administrativo. Agravo interno no agravo em recurso especial. Servidor público


estadual aposentado. Revisão. Progressão horizontal. Limites estabelecidos
pela LRF. Inaplicabilidade. Progressão horizontal. Direito à percepção. Análise
de legislação local. Impossibilidade. Súmula 280/STF. Incidência, por analogia.
Agravo interno do Estado do Rio Grande do Norte e do Instituto de Previdência
dos Servidores do Estado do Rio Grande do Norte a que se nega provimento.
1. A jurisprudência deste Tribunal Superior proclama que os limites previstos
nas normas da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), no que tange às despesas com
pessoal do ente público, não podem servir de justificativa para o não cumprimento
de direitos subjetivos do servidor público, como é o recebimento de vantagens
asseguradas por lei. Precedentes: AgRg no RMS 30.456/RO, Rel. Min. Vasco Della
Giustina (Desembargador convocado do TJ/RS), Sexta Turma, DJe 21.11.2011; RMS

RSTJ, a. 34, (265): 35-136, Janeiro/Março 2022 107


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

30.428/RO, Rel. Min. Felix Fischer, Quinta Turma, DJe 15.3.2010; RMS 20.915/MA,
Rel. Min. Laurita Vaz, Quinta Turma, 8.2.2010; REsp 1.197.991/MA, Rel. Min. Eliana
Calmon, DJe 26.8.2010; REsp 935.418/AM, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, Quinta
Turma, DJe 16.3.2009.
2. A análise do pleito de progressão à parte agravada esbarra no óbice previsto
na Súmulas 280/STF por análise de legislação local, notadamente das LCE 49/1986
e 322/2006 do Estado do Rio Grande do Norte.
3. Agravo Interno do Estado do Rio Grande do Norte e do Instituto de Previdência
dos Servidores do Estado do Rio Grande do Norte a que se nega provimento (AgInt
no AREsp 1.410.389/RN, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma,
julgado em 24/08/2020, DJe 31/08/2020 - sem destaque no original).

Administrativo e Processual Civil. Agravo interno no agravo em recurso


especial. Servidor público estadual. Promoção funcional. Descumprimento de
obrigação de fazer. Limites orçamentários da LRF. Inaplicabilidade. Prescrição do
fundo de direito. Não ocorrência. Incidência da Súmula 85/STJ. Agravo interno do
Estado do Rio Grande do Norte desprovido.
1. A jurisprudência deste Tribunal Superior proclama que os limites previstos
nas normas da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), no que tange às despesas com
pessoal do ente público, não podem servir de justificativa para o não cumprimento
de direitos subjetivos do servidor público, como é o recebimento de vantagens
asseguradas por lei (REsp 86.640/PI, Rel. Min. Benedito Gonçalves, DJe 9.3.2012).
2. Agravo Interno do Estado do Rio Grande do Norte desprovido (AgInt no
AREsp 1.413.153/RN, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma,
julgado em 09/12/2019, DJe 12/12/2019 - sem destaque no original).

Financeiro e Administrativo. Agravo interno no recurso especial. Vantagens


pecuniárias asseguradas por lei. Limite de gastos com pessoal. Lei de
Responsabilidade Fiscal. Decisão judicial. Direito subjetivo. Exceção. Art. 2º-B da
Lei n. 9.494/1997. Incidência da Súmula 211 do STJ.
1. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça se firmou no sentido de que os
limites orçamentários previstos na Lei de Responsabilidade Fiscal, no que se refere às
despesas com pessoal do ente público, não podem servir de fundamento para o não
cumprimento de direitos subjetivos do servidor, assegurados por lei ou por decisão
judicial, independentemente da competência da despesa. Precedentes.
2. O art. 2º-B da Lei n. 9.494/1997 não foi objeto de prequestionamento, nem
mesmo de forma implícita, pela Corte local, de modo a atrair a incidência da
Súmula 211/STJ.
3. Agravo interno a que se nega provimento (AgInt no REsp 1.418.641/RN, Rel.
Ministro Og Fernandes, Segunda Turma, julgado em 01/10/2019, DJe 07/10/2019
– sem destaque no original).

108
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO

Agravo regimental. Recurso ordinário em mandado de segurança.


Administrativo. Servidor público estadual. Incorporação de quintos. Lei
Complementar n. 68/92 do Estado de Rondônia. Atualização monetária
da vantagem pessoal. Limites orçamentários. Recusa de pagamento. Lei
de Responsabilidade Fiscal. Inaplicabilidade. Art. 19, § 1º, IV, da LRF. Recurso
desprovido.
1. “O servidor público do Estado de Rondônia investido em cargo em comissão
ou função gratificada por período superior a 5 (cinco) anos incorporava aos
seus vencimentos - a título de vantagem pessoal, à razão de 1/5 (um quinto)
por ano subseqüente de exercício - a diferença entre o vencimento básico do
cargo efetivo e a remuneração do cargo comissionado, sendo que a vantagem
seria devida a partir da dispensa da função”, conforme “inteligência do art.
100 da Lei Complementar Estadual 68/92, revogado pela Lei Complementar
Estadual 221/99”. Outrossim, “o servidor público estadual que incorporou em
seus vencimentos quintos ou teve reconhecido esse direito pela Administração,
exatamente porque preenchera os requisitos legais vigentes à época, tem direito
ao recebimento da vantagem, em valores atualizados. A Administração não pode
sujeitar a vantagem em referência tão-somente à revisão geral da remuneração
dos servidores públicos estaduais porque a lei revogadora assim não determinou”
(RMS 21.570/RO, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJ 22.10.2007).
2. A jurisprudência deste Tribunal Superior proclama que os limites previstos nas
normas da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), no que tange às despesas com pessoal
do ente público, não podem servir de justificativa para o não cumprimento de direitos
subjetivos do servidor público, como é o recebimento de vantagens asseguradas por
lei, tampouco essas restrições incidem quando as despesas decorram de decisões
judiciais (art. 19, § 1º, IV, da LC 101/2000).
3. Agravo regimental a que se nega provimento (AgRg no RMS 30.456/RO, Rel.
Ministro Vasco Della Giustina, Desembargador Convocado do TJ/RS, Sexta Turma,
julgado em 25/10/2011, DJe 21/11/2011 – sem destaque no original).

Recurso ordinário em mandado de segurança. Servidor público. Vantagens


pessoais. Lei Complementar n. 68/92 do Estado de Rondônia. Pagamento. Recusa.
Limites orçamentários. Lei de Responsabilidade Fiscal. Inaplicabilidade. Art. 19, §
1º, inciso IV, da LRF.
I - Conforme entendimento já esposado por este c. STJ, o art. 100 da Lei
Complementar Estadual n. 68/92 assegurava ao servidor público do Estado de
Rondônia, investido em cargo em comissão ou função gratificada por período
superior a 5 (cinco) anos, a incorporação - a título de vantagem pessoal, e à
razão de 1/5 (um quinto) por ano subseqüente de exercício - da diferença entre
o vencimento básico do cargo efetivo e a remuneração do cargo comissionado.
Precedente: RMS 21.570/RO, 5ª Turma, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJ de
22/10/2007.

RSTJ, a. 34, (265): 35-136, Janeiro/Março 2022 109


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

II - A Lei de Responsabilidade Fiscal, que regulamentou o art. 169 da Constituição


Federal de 1988, fixando limites de despesas com pessoal dos entes públicos, não
pode servir de fundamento para elidir o direito dos servidores públicos de perceber
vantagem legitimamente assegurada por lei. Precedentes deste e. Superior Tribunal
de Justiça e do c. Supremo Tribunal Federal.
Recurso ordinário provido (RMS 30.428/RO, Rel. Ministro Felix Fischer, Quinta
Turma, julgado em 23/02/2010, DJe 15/03/2010 – sem destaque no original).

29. Não se desconhece a existência de julgados da Segunda Turma desta


Corte Superior que, embora, reconheçam o direito subjetivo à progressão
funcional, condicionam seu implemento à observância dos limites previstos na
Lei de Responsabilidade Fiscal. Confiram-se:

Administrativo. Agravo regimental no recurso ordinário em mandado de


segurança. Servidor público estadual. Progressão funcional. Necessidade de vaga,
para progressão de classe. Ausência de revogação da Lei Estadual 13.467/2000
e da Resolução 367/2001, pela Lei Estadual 16.645/2007. Observância da Lei de
Responsabilidade Fiscal. Precedentes específicos do STJ. Ausência de direito
líquido e certo. Agravo regimental improvido.
I. Trata-se de Recurso Ordinário em Mandado de Segurança, interposto
contra acórdão no qual foi denegada a segurança, que objetivava a progressão
vertical de servidor do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, com base
na alegação da desnecessidade de existência de vaga para promoção vertical, com
passagem à classe funcional superior.
II. O tema encontra-se pacificado nesta Corte, no sentido de que a Lei Estadual
16.645/2007: a) estabeleceu disposições especiais; b) não declarou expressamente
revogada a Lei Estadual 13.467/2000; c) não é com ela incompatível, nem regulou
inteiramente a matéria versada na Lei anterior; c) subsistem, em consequência,
a Resolução 367/2001 e todo o sistema de promoção vertical dos servidores
públicos por ela abarcados, inclusive quanto à exigência de vaga para a
promoção vertical postulada. Ademais, na forma da jurisprudência, imperiosa
“a necessidade de atendimento da Lei Complementar Federal n. 101/2000 (Lei
de Responsabilidade Fiscal - LRF). A LRF, em seus arts. 18 e ss., quando trata da
despesa pública, especificamente com relação à despesa com pessoal (Seção II),
dispõe exaustivamente quanto à necessidade de a Administração - aqui incluídos
tribunais de justiça em suas funções atípicas administrativas - limites de gastos
em relação a suas receitas. Nesse ímpeto, tanto a Lei Estadual n. 13.647/2000
quanto a Resolução n. 367/2001 determinam que as promoções verticais devem
ser cingidas a ditames orçamentários e fiscais, observada a repercussão financeira”
(STJ, RMS 46.440/MG, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma,
DJe de 19/12/2014). Nesse mesmo sentido, os seguintes julgados do STJ, em
casos idênticos: STJ, AgRg no RMS 46.432/MG, Rel. Ministro Humberto Martins,

110
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO

Segunda Turma, DJe de 13/08/2015; AgRg no RMS 46.294/MG, Rel. Ministro


Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe de 21/05/2015; RMS 46.433/MG, Rel.
Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, DJe de 19/12/2014.
III. Agravo Regimental improvido (AgRg no RMS 46.638/MG, Rel. Ministra
Assusete Magalhães, Segunda Turma, julgado em 27/10/2015, DJe 10/11/2015 –
sem destaque no original).

Administrativo. Processual Civil. Servidor estadual. Progressão funcional. Lei


Estadual 16.645/2007. Ausência de revogação da Lei Estadual 13.467/2000 e da
Resolução 367/2001. Necessidade de vaga para progressão de classe. Critério com
amparo legal. Observância da Lei de Responsabilidade Fiscal - Lei Complementar
101/2000. Precedente do CNJ. Precedentes específicos do STJ. Ausência de direito
líquido e certo.
1. Recurso ordinário interposto contra acórdão no qual foi denegada a
segurança ao pleito mandamental de reversão do indeferimento de pedido de
progressão vertical de servidor do Tribunal de Justiça, com base na alegação de
desnecessidade de pré-existência de vaga para passagem à classe funcional superior.
2. A recorrente alega que teria direito líquido e certo à progressão vertical
com base no advento da Lei Estadual n. 16.645/2007 que teria revogado,
implicitamente, a exigência de vaga prévia, óbice existente na Lei Estadual n.
13.467/2000. Assim, argumenta que não haveria amparo legal para a exigência de
vaga prévia para outorga de progressão, como previsto no art. 27 da Resolução n.
367/2001.
3. O parágrafo único do art. 9º da Lei Estadual n. 16.645/2007 indica
expressamente que os critérios da Lei Estadual n. 13.467/2000 seriam aplicáveis,
além de a análise do sistema estadual não possibilitar o raciocínio que a
Resolução n. 367/2001 teria sido revogada. Ainda, está evidente que referida
Resolução que explicita no art. 29 a necessidade de controlar a repercussão
financeira da progressão funcional de servidores está construída com atenção
à Lei Complementar Federal n. 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), como
observou o colegiado do Conselho Nacional de Justiça quando da apreciação do
Procedimento de Controle Administrativo (PCA) n. 0005732-69.2012.2.00.0000,
publicado no DJe, em 1º.7.2013.
4. Precedentes específicos: RMS 46.459/MG, Rel. Ministro Humberto Martins,
Segunda Turma, DJe 19.12.2014; RMS 46.433/MG, Rel. Ministro Humberto Martins,
Segunda Turma, DJe 19.12.2014; AgRg no RMS 46.294/MG, Rel. Ministro Herman
Benjamin, Segunda Turma, DJe 21.5.2015; e RMS 46.440/MG, Rel. Ministro Mauro
Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 19.12.2014.
5. Agravo regimental improvido (AgRg no RMS 46.432/MG, Rel. Ministro
Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 04/08/2015, DJe 13/08/2015 –
sem destaque no original).

RSTJ, a. 34, (265): 35-136, Janeiro/Março 2022 111


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

30. No entanto, deve-se atentar para o fato de que o entendimento foi


firmado das particularidades do caso concreto, evidenciando-se a existência de
lei local condicionando a progressão vertical ao surgimento de vagas e ao cumprimento
dos ditames orçamentários e fiscais.
31. Não se extrai, a meu ver, daqueles julgados – e de outros similares que
formaram a jurisprudência da Segunda Turma nessa matéria – a compreensão
de que a Administração, de maneira geral, possa se valer da LRF para obstar
a progressão funcional de servidores públicos. O que ficou ali estampado, na
verdade, se aplica ao caso específico e versou sobre questão diversa, qual seja, a
necessidade ou não de se aguardar o surgimento de vagas na classe superior a fim de se
efetivar a progressão funcional.
32. Reforço que a Carta Magna de 1988 enumerou, em ordem de
relevância, as providências a serem adotadas pelo administrador na hipótese
de o orçamento do órgão público ultrapassar os limites estabelecidos na Lei de
Responsabilidade Fiscal, quais sejam, a redução de cargos em comissão e funções de
confiança, a exoneração de servidores não estáveis e a exoneração de servidores estáveis
(art. 169, § 3º, da CF/1988).
33. Não se mostra razoável a suspensão de benefícios de servidores públicos
estáveis sem a prévia adoção de medidas de contenção de despesas, como a
diminuição de funcionários comissionados ou de funções comissionadas.
34. Vale lembrar que o limite de comprometimento da receita corrente
líquida é de 50% no caso da União e de 60% em relação a estados e municípios.
Consequentemente, se não houver aquele comprometimento da receita corrente
líquida, os entes federativos devem efetuar o pagamento das progressões
funcionais em respeito à Lei de Responsabilidade Fiscal e à Constituição Federal.
35. Concluo, ainda, que não pode o Poder Público alegar crise financeira
e o descumprimento dos limites globais e/ou específicos referentes à despesa
com servidor público, nos termos dos arts. 19 e 20 da LC 101/2000, de forma
genérica, apenas para legitimar o não cumprimento de leis existentes, válidas e
eficazes, e suprimir, com isso, direitos de servidores públicos.

Caso concreto.

36. À vista disso, diante da expressa previsão legal acerca da progressão


funcional e comprovado de plano o cumprimento dos requisitos para sua
obtenção, está demonstrado o direito líquido e certo de Marcos César da Costa
Almeida, devendo a ele ser garantida a progressão funcional horizontal e/ou

112
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO

vertical, a despeito de o ente federativo ter superado o limite orçamentário


referente a gasto com pessoal, previsto na Lei de Responsabilidade Fiscal, tendo
em vista não haver previsão expressa de vedação de progressão funcional na LC
101/2000.

Dispositivo e fixação da tese.

37. Portanto, com base nos fundamentos apresentados, nego provimento


ao recurso especial do ente federativo e sugiro a fixação da tese, com observância
do rito do julgamento dos recursos repetitivos previsto no art. 1.036 e seguintes
do CPC/2015, nos seguintes termos: é ilegal o ato de não concessão de progressão
funcional de servidor público, quando atendidos todos os requisitos legais, a despeito
de superados os limites orçamentários previstos na Lei de Responsabilidade Fiscal,
referentes a gastos com pessoal de ente público, tendo em vista que a progressão é
direito subjetivo do servidor, decorrente de determinação legal, estando compreendida
na exceção prevista no inciso I do parágrafo único do art. 22 da Lei Complementar
101/2000.
38. É como voto.

RECURSO ESPECIAL N. 1.937.821-SP (2020/0012079-1)

Relator: Ministro Gurgel de Faria


Recorrente: Município de São Paulo
Procuradores: Lucas Melo Nóbrega e outro(s) - SP272529
Felipe Granado Gonzales - SP239869
Recorrido: Fortress Negocios Imobiliarios Ltda
Advogados: Angelica Pim Augusto - SP338362
Filipe Martiena Teixeira - SP356925

EMENTA

Tributário. Recurso especial representativo de controvérsia.


Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI). Base de cálculo.

RSTJ, a. 34, (265): 35-136, Janeiro/Março 2022 113


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Vinculação com Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU).


Inexistência. Valor venal declarado pelo contribuinte. Presunção de
veracidade. Revisão pelo Fisco. Instauração de processo administrativo.
Possibilidade. Prévio valor de referência. Adoção. Inviabilidade.
1. A jurisprudência pacífica desta Corte Superior é no sentido
de que, embora o Código Tributário Nacional estabeleça como base
de cálculo do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) e do
Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) o “valor venal”,
a apuração desse elemento quantitativo faz-se de formas diversas,
notadamente em razão da distinção existente entre os fatos geradores
e a modalidade de lançamento desses impostos.
2. Os arts. 35 e 38 do CTN dispõem, respectivamente, que o
fato gerador do ITBI é a transmissão da propriedade ou de direitos
reais imobiliários ou a cessão de direitos relativos a tais transmissões
e que a base de cálculo do tributo é o “valor venal dos bens ou
direitos transmitidos”, que corresponde ao valor considerado para as
negociações de imóveis em condições normais de mercado.
3. A possibilidade de dimensionar o valor dos imóveis no mercado,
segundo critérios, por exemplo, de localização e tamanho (metragem),
não impede que a avaliação de mercado específica de cada imóvel
transacionado oscile dentro do parâmetro médio, a depender, por
exemplo, da existência de outras circunstâncias igualmente relevantes e
legítimas para a determinação do real valor da coisa, como a existência
de benfeitorias, o estado de conservação e os interesses pessoais do
vendedor e do comprador no ajuste do preço.
4. O ITBI comporta apenas duas modalidades de lançamento
originário: por declaração, se a norma local exigir prévio exame das
informações do contribuinte pela Administração para a constituição
do crédito tributário, ou por homologação, se a legislação municipal
disciplinar que caberá ao contribuinte apurar o valor do imposto
e efetuar o seu pagamento antecipado sem prévio exame do ente
tributante.
5. Os lançamentos por declaração ou por homologação se
justificam pelas várias circunstâncias que podem interferir no específico
valor de mercado de cada imóvel transacionado, circunstâncias cujo
conhecimento integral somente os negociantes têm ou deveriam

114
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO

ter para melhor avaliar o real valor do bem quando da realização do


negócio, sendo essa a principal razão da impossibilidade prática da
realização do lançamento originário de ofício, ainda que autorizado
pelo legislador local, pois o fisco não tem como possuir, previamente, o
conhecimento de todas as variáveis determinantes para a composição
do valor do imóvel transmitido.
6. Em face do princípio da boa-fé objetiva, o valor da transação
declarado pelo contribuinte presume-se condizente com o valor
médio de mercado do bem imóvel transacionado, presunção que
somente pode ser afastada pelo fisco se esse valor se mostrar, de pronto,
incompatível com a realidade, estando, nessa hipótese, justificada a
instauração do procedimento próprio para o arbitramento da base de
cálculo, em que deve ser assegurado ao contribuinte o contraditório
necessário para apresentação das peculiaridades que amparariam o
quantum informado (art. 148 do CTN).
7. A prévia adoção de um valor de referência pela Administração
configura indevido lançamento de ofício do ITBI por mera estimativa
e subverte o procedimento instituído no art. 148 do CTN, pois
representa arbitramento da base de cálculo sem prévio juízo quanto à
fidedignidade da declaração do sujeito passivo.
8. Para o fim preconizado no art. 1.039 do CPC/2015, firmam-
se as seguintes teses: a) a base de cálculo do ITBI é o valor do imóvel
transmitido em condições normais de mercado, não estando vinculada
à base de cálculo do IPTU, que nem sequer pode ser utilizada como
piso de tributação; b) o valor da transação declarado pelo contribuinte
goza da presunção de que é condizente com o valor de mercado, que
somente pode ser afastada pelo fisco mediante a regular instauração
de processo administrativo próprio (art. 148 do CTN); c) o Município
não pode arbitrar previamente a base de cálculo do ITBI com respaldo
em valor de referência por ele estabelecido unilateralmente.
9. Recurso especial parcialmente provido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,


acordam os Ministros da Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, por

RSTJ, a. 34, (265): 35-136, Janeiro/Março 2022 115


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

unanimidade, dar parcial provimento ao recurso especial nos termos do voto do


Sr. Ministro Relator, e indeferir o pedido de reconsideração, formulado às fls.
448/454, da decisão que não admitiu o ingresso de ABRAINC, SINDUSCON-
SP e SECOVI-SP como amicus curiae. Os Srs. Ministros Manoel Erhardt
(Desembargador convocado do TRF-5ª Região), Herman Benjamin, Mauro
Campbell Marques, Benedito Gonçalves, Assusete Magalhães e Regina Helena
Costa votaram com o Sr. Ministro Relator. Ausentes, justificadamente, os Srs.
Ministros Francisco Falcão e Og Fernandes.
Brasília (DF), 24 de fevereiro de 2022 (data do julgamento).
Ministro Gurgel de Faria, Relator

DJe 3.3.2022

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Gurgel de Faria: Trata-se de recurso especial interposto


pelo Município de São Paulo, amparado nas alíneas “a” e “c” do permissivo
constitucional, contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de
São Paulo em julgamento de incidente de resolução de demandas repetitivas,
assim ementado (e-STJ fl. 32):

Ementa: Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. ITBI. Base de cálculo


- Deve ser calculado sobre o valor do negócio jurídico realizado ou sobre o
valor venal do imóvel para fins de IPTU, aquele que for maior, afastando o “valor
de referência” - Ilegalidade da apuração do valor venal previsto em desacordo
com o CTN - Ofensa ao princípio da legalidade tributária, artigo 150, inciso I
da CF. Precedentes IRDR provido para fixar a tese jurídica da base de cálculo do
ITBI, devendo corresponder ao valor venal do imóvel ou ao valor da transação,
prevalecendo o que for maior.

O recorrente, apontando divergência jurisprudencial e violação dos arts.


38 e 148 da Lei n. 5.172/1966 (Código Tributário Nacional – CTN), sustenta
que: (i) a base de cálculo do Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI)
não está vinculada à do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), pois,
enquanto o valor venal para fins de determinação do cálculo do ITBI deve
refletir o valor real de mercado, o valor venal utilizado no lançamento do IPTU
é “atribuído por estimativa”; (ii) a Administração, com base em levantamento
de valores de mercado dos imóveis, pode, desde logo, desconsiderar o valor da

116
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO

transação declarado, porquanto supostamente “não digno de fé”, e arbitrar a base


de cálculo do ITBI, cabendo ao contribuinte impugnar tal fixação mediante
apresentação de prova em contrário.
É o que se retira das seguintes razões recursais, in verbis (e-STJ fls.
136/141):

É evidente que a interpretação adequada do artigo 38 do Código Tributário


Nacional, apesar de o texto se utilizar da expressão valor venal para delinear a
base de cálculo, assim como o artigo 33 faz para o IPTU, não é a de que se exige
identidade entre o valor venal para fins de IPTU e para fins de ITBI. Isso porque o
valor venal para fins de ITBI deve refletir o valor real de mercado pelo qual se deu
a transação imobiliária.
Na mesma toada, é possível à administração, que realize levantamento de
valores de mercado dos imóveis, presumindo-se, salvo prova em contrário,
mediante devida impugnação, que a transação se deu por tal montante.
Tal raciocínio encontra abrigo no artigo 148 do CTN, afinal se o contribuinte
em sede de autolançamento atribui à transação um valor que não é digno de fé
deve o fisco arbitrá-lo.
O fato de, ao arbitrar o valor devido, a administração se utilizar de critérios
previamente conhecidos, ainda que trazidos por ato infralegal, não impede, aos
olhos do citado dispositivo de lei complementar, que se considere válido tal
proceder.
Ora, se o agente fiscal, ao arbitrar um valor de mercado pode se utilizar até mesmo
de pesquisas em sites de venda, porque não poderia se valer de estudos prévios de
valor de mercado elaborados pela administração?
Pensar em sentido contrário nos levaria ao cúmulo do contrasenso, afinal,
imaginem Excelências, se o critério utilizado para o arbitramento nos termos do
artigo 148 tivesse de estar detalhado em lei como faria o Auditor de Fronteira
para arbitrar o preço de uma novidade tecnológica lançada há dias pela qual o
viajante declara ter pago centavos ao ingressar no país?
Com efeito, a previsão de critérios objetivos de arbitramento ou de valores de
mercado em ato infra legal é conduta que observa o disposto no artigo 38 do Código
Tributário Nacional, que estabelece a base de cálculo do imposto como o valor venal
dos bens ou direitos onerosamente transmitidos.
Portanto, esse é o valor venal: perceba-se, a base de cálculo do ITBI não é o valor
da operação nem o valor arbitrado para o IPTU, que pode representar valor diverso,
conforme já decidido por esse C. Superior Tribunal de Justiça:
[...]
De fato, embora a base de cálculo do IPTU e a base de cálculo do ITBI sejam
a mesma, isto é, o valor venal do imóvel, não se pode perder de vista que, ao

RSTJ, a. 34, (265): 35-136, Janeiro/Março 2022 117


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

contrário do decidido no v. acórdão recorrido, cada qual possui um regime


jurídico próprio.
Assim é que somente o ITBI é sujeito ao autolançamento, ficando sujeito ao
lançamento por homologação ou de ofício, enquanto que o lançamento do IPTU é
efetuado, desde o início, de ofício pelo FISCO.
Afigura-se inviável, por óbvio, ao FISCO, efetuar uma perícia para cada imóvel
da cidade. Então, para o IPTU, o valor é atribuído por estimativa. Em regra, quase
que absoluta, a estimativa fica abaixo do verdadeiro valor venal. Isso se dá até por
um princípio de justiça: estima-se para baixo, não para cima. Esse valor atribuído
por estimativa deveria ser o valor venal.
Se o contribuinte impugna a estimativa, e a legislação municipal estabelece
um prazo para que ele o faça, efetua-se regular avaliação e apura-se se o valor
estimado é ou não o correto, ou seja, corresponde ou não ao valor de mercado.
Em relação ao ITBI, diferente do que ocorre com o IPTU, há autolançamento do
tributo pelo contribuinte tanto que caso constatado que a base de cálculo utilizada
não corresponda ao efetivo valor de mercado por ocasião da transação, o FISCO deve
proceder ao lançamento complementar de ofício.
Como se vê, valor venal é sinônimo de “valor de mercado”, é o valor que o bem
possui no mercado, se posto à venda, em condições normais.
[...]
E, em assim sendo, a Administração disponibiliza ao contribuinte, desde logo,
com base em elementos objetivos e concretos existentes em seus cadastros acerca de
pesquisas no local, levando em consideração imóveis com as mesmas características
do imóvel em discussão, qual o valor venal corretamente estimado no momento,
isto tudo respeitado o devido processo legal, mediante possibilidade de avaliação
especial, caso discorde o interessado do referido valor apontado, tudo como previsto
na citada legislação em comento.
Como se vê, a correta compreensão do regime jurídico do ITBI deixa claro que
a sistemática eleita não violou o princípio da legalidade, não criou nova base de
cálculo para o tributo, não transformou o autolançamento em lançamento de
ofício, simplesmente possibilitou ao contribuinte requerer, em seu benefício, a prévia
avaliação do imóvel.
A lei determina que a base de cálculo é o valor venal. A apuração dá-se
pela avaliação de engenharia. A lei não indica, à exaustão, os critérios a serem
adotados pelos engenheiros e fiscais para a apuração desse valor. Nem pode: por
óbvio, a apuração do valor venal depende de várias circunstâncias, localização do
bem, existência de imóveis paradigmas para comparação, existência ou não de
serviços públicos no local, etc.
Cumpre notar, que o banco de dados da Administração Municipal conta com mais
de 300 mil amostras, com a coleta de informações junto a mais de 100 Imobiliárias,

118
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO

sendo a apuração do valor, consolidada em normas técnicas (ABNT, IBAPE/SP,


Comissão de Peritos Judiciais) e se opera com extremo conservadorismo, ou seja,
de plano, aplica-se um abatimento da ordem de 10%, sendo certo, ainda, que os
levantamentos são acompanhados pela CMVI.
A bem da verdade, essa sistemática evita que o contribuinte inadvertidamente
recolha, como vinha ocorrendo na imensa maioria dos casos, não o valor venal,
mas simplesmente o valor tido como mínimo legal (que era o valor venal adotado
para fins de IPTU) ou mesmo o valor da operação, tornando, assim, remota a
hipótese de vir a ser surpreendido com o lançamento complementar de ofício,
com os acréscimos decorrentes em razão de eventual insuficiência do primeiro
recolhimento quando do exame do FISCO para fins de homologação do auto
lançamento levado a efeito.
Registre-se que esse novo procedimento não altera a natureza do lançamento,
pois o tributo continua sendo recolhido antecipadamente pelo contribuinte, ficando
sujeito à posterior homologação pelo Fisco. Ou seja, tal regulamentação apenas
indica ao contribuinte um procedimento para se apurar o valor venal do bem a fim de
calcular o ITBI.
Enfim, não se altera ou majora a base de cálculo que continua sendo o valor
venal do bem, previamente estimado com vistas a tornar mais eficiente e benéfico
o procedimento para ambas as partes. (Grifos acrescidos).

Depois de apresentadas as contrarrazões (e-STJ fls. 160/171), o Tribunal


de origem inadmitiu o apelo raro, o que motivou o manejo do correspondente
agravo pela municipalidade (e-STJ fls. 176/188).
Já nesta Corte Superior, num primeiro momento, a Presidência decidiu
conhecer do agravo para não conhecer do recurso especial (e-STJ fls. 197/198).
Na sequência, a Presidência acolheu embargos de declaração para tornar
sem efeito a decisão impugnada, determinando a distribuição dos autos (e-STJ
fls. 210/211).
Como relator, determinei a conversão do agravo em recurso especial
(e-STJ fls. 225/226).
A Primeira Seção, em sessão virtual findada em 05/10/2021, decidiu por
afetar o julgamento desse recurso especial à sistemática dos repetitivos, em
conformidade com os arts. 987 do CPC/2015, c/c o art. 256-H do RISTJ,
para “definir: a) se a base de cálculo do ITBI está vinculada à do IPTU; b) se
é legítima a adoção de valor venal de referência previamente fixado pelo fisco
municipal como parâmetro para a fixação da base de cálculo do ITBI”.
O digno representante do Ministério Público Federal opina pelo
provimento do recurso para a “fixação da tese favorável à dissociação entre o

RSTJ, a. 34, (265): 35-136, Janeiro/Março 2022 119


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

valor venal do imóvel para fins de cálculo do ITBI e do IPTU, bem como pela
ilegitimidade da adoção do valor venal de referência previamente fixado pelo
fisco como parâmetro”.
Por meio de decisão proferida em 15/02/2022, indeferi o pedido da
Associação Brasileira de Advocacia Tributária - ABAT para ingressar no feito
como amicus curiae (e-STJ fls. 293/294).
É o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Gurgel de Faria (Relator): Cuidam os autos de incidente


de resolução de demandas repetitivas suscitado pela empresa recorrida,
Fortress Negócios Imobiliários Ltda., originário da Apelação Cível n. 1008270-
75.2016.8.26.0053.
Na decisão em que admitiu o incidente, em 23/04/2018, o órgão julgador,
Turma Especial de Direito Público do TJ/SP, assumiu o julgamento da causa,
determinando a suspensão do andamento da apelação (e-STJ fls. 58/52).
Essa determinação de suspensão, todavia, não foi observada, tendo a
14ª Câmara de Direito Público do TJ/SP realizado o julgamento da apelação
em 28/06/2018, aliás, antes mesmo de o 7º Grupo de Direito Público do TJ/
SP ter resolvido o IRDR (23/05/2019). Esse acórdão da apelação ensejou a
interposição de recurso especial, já decidido por esta Corte Superior nos autos
do AREsp 1.493.616/SP, com trânsito em julgado em 28/02/2020.
Nada obstante o prosseguimento do processo piloto, o IRDR veio a ser
julgado, estando assim grafada a tese jurídica na conclusão do acórdão recorrido:
“Fixaram a tese jurídica da base de cálculo do ITBI, devendo ser calculado sobre o
valor do negócio jurídico realizado e, se adquirido em hastas públicas, sobre o valor
da arrematação ou sobre o valor venal do imóvel para fins de IPTU, aquele que for
maior, afastando o valor de referência”.
Essa conclusão foi assim fundamentada pela Corte a quo (e-STJ fls.
117/122):

O caso sub judice visa discutir e determinar a correta base de cálculo a ser
utilizada pelos Municípios do Estado de São Paulo, quando do lançamento
tributário do Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI).

120
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO

Em relação à base de cálculo do ITBI, cumpre observar que é ilegal a instituição


de um valor venal distinto daquele utilizado para o IPTU, uma vez que implica em
afronta ao princípio da segurança jurídica.
É que valor venal “É o valor de venda, ou o valor mercantil, isto é, o preço por
que as coisas foram, são ou possam ser vendidas” (De Plácido e Silva, Vocabulário
Jurídico, 27ª ed., p. 1.461, Rio de Janeiro, Forense, 2008).
Nesse sentido, não obstante o IPTU e o ITBI possuam regimes jurídicos
próprios, tendo ambos a mesma base de cálculo definida em lei complementar
(arts. 33 e 38 do CTN), não pode o legislador ordinário diferenciar a expressão
monetária do valor venal conforme se refira à propriedade ou à transmissão do
bem ou do direito.
Assim, configura afronta ao princípio da segurança jurídica (art. 5º, caput, da
CF) e ao da legalidade estrita (arts. 37, caput e 150, I, da CF), caso, no mesmo
exercício, a Prefeitura Municipal adote um valor venal para o cálculo do IPTU e
outro, valor venal, mais elevado, para o cálculo do ITBI.
Ademais, caso a Administração Pública pretenda majorar o valor venal dos
imóveis, inclusive para corrigir eventual defasagem, deve proceder à revisão da
planta genérica de valores, sendo que o valor alcançado deve valer para todo o
exercício fiscal.
Nesse sentido leciona Hugo de Brito Machado: “A base de cálculo do imposto é o
valor venal dos bens ou direitos transmitidos (CTN, artigo 38)”.
Não é o preço de venda, mas o valor venal. A diferença entre preço e valor é
relevante. O preço é fixado pelas partes, que em princípio são livres para contratar.
O valor dos bens é determinado pelas condições do mercado. Em princípio, pela
lei da oferta e da procura” (‘Curso de Direito Tributário’, 7ª ed., Malheiros, 1993, na
pág. 291).
E, ainda, para Kiyoshi Harada: “O valor venal de imóvel urbano é aquele
encontrado segundo a legislação pertinente ao imposto predial e territorial urbano e
é revisto ou atualizado anualmente”.
“De fato, a legislação do IPTU dispõe de critério objetivo para apuração do
valor venal, bem como de mecanismo para manter atualizado esse valor apurado
em 1º de janeiro de cada exercício. Nada justifica apuração de outro valor venal
para o mesmo imóvel, só para o efeito de ITBI. A própria legislação estadual para
cobrança do imposto sobre transmissão causa mortis determina a utilização da
base de cálculo do IPTU ou do ITR, conforme se trate, respectivamente, de imóvel
urbano ou rural, ressalvado aos interessados o direito de requererem avaliação
judicial (art. 15 da Lei n. 9.591, de 30-12- 66).” (in “Direito Tributário Municipal”,
segunda edição, São Paulo, Editora Atlas, páginas 94 e 96).
A respeito do tema escreveu Aires Fernandino Barreto:

RSTJ, a. 34, (265): 35-136, Janeiro/Março 2022 121


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

“A base de cálculo do imposto é o valor venal dos bens ou direitos transmitidos ou


cedidos. O valor venal é necessariamente o valor do negócio realizado. A Constituição
e o Código Tributário Nacional não exigem que o valor venal coincida com o valor
da efetiva transação imobiliária, onde até os fatores subjetivos poderiam interferir
na sua fixação. “...” Não se olvide que valor venal é o preço provável que o imóvel
alcançará para compra e venda à vista, diante de mercado estável e quando
comprador e vendedor têm plena consciência do potencial de uso e ocupação que ao
imóvel pode ser dado. Não se esqueça que o valor venal é mensuração extremamente
difícil, porque influenciada por uma série de fatores internos e externos, de natureza
subjetiva, o que impede seja transformada em número inconteste. Muito cuidado
deve ter o aplicador da lei para que não extrapassar o valor dos imóveis” (in “Curso de
Direito Tributário Municipal”, Editora Saraiva, 2009, páginas 294 e 295).
Sobre o princípio da legalidade tributária, vale ainda destacar as lições de Luis
Eduardo Schoueri:
(...) não se contenta o legislador complementar em exigir que o tributo seja
genericamente previsto na lei; tampouco lhe basta a definição da hipótese tributária
na lei; também o consequente normativo, isto é o an e o quantum debeatur,
representados pela definição do sujeito passivo, da base de cálculo e da alíquota,
todos devem ser previstos na própria lei (‘Direito Tributário’. São Paulo: Saraiva, 2011,
p. 280).
Aliás, já decidiu este Tribunal, especificamente sobre o valor venal para a
cobrança do ITBI instituído no Município de São Paulo pelo Decreto n. 46.228/05
e, posteriormente, pela Lei n. 14.256/06, verbis:
Apelação. ITBI. Existência de dois valores venais para um mesmo imóvel, um
para cálculo do valor de IPTU, outro para o ITBI. Decreto Municipal 46.228/05 e
Lei Municipal 14.256/06. Ilegalidade. Recursos não providos (TJSP 18ª Câmara
de Direito Público Apelação com revisão n. 806.295.5/8-00 rel. Des. Jair Martins j.
28.11.08).
No mesmo sentido: TJSP 18ª Câmara de Direito Público Ap. n. 798.358.5/7-000
rel. Des. Beatriz Braga j. 28.1.09; TJSP 15ª Câmara de Direito Público 570.214.5/8-00
rel. Des. Eutálio Porto j. 29.1.09.
Nesse sentido, é a Jurisprudência:

Apelação cível Mandado de Segurança Preventivo ITBI Preliminares de falta de


interesse de agir e inadequação da via eleita afastadas Existência de dois valores
venais para o mesmo imóvel, diante da edição da Lei Municipal n. 14.256/06
Impossibilidade Precedentes A base de cálculo do ITBI encontra-se definida
sobre dois parâmetros: ou é o valor venal do qual o contribuinte já tem prévio
conhecimento e é definido pela Fazenda Pública, ou então é o valor indicado
no instrumento de venda e compra, sendo defeso ao Município surpreender
o contribuinte com outro valor que não reflita nenhuma destas realidades
Impossibilidade de arbitramento de outro valor por outro parâmetro Sentença

122
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO

mantida Recursos oficial e voluntário da Municipalidade não providos, nos


termos do acórdão.” (TJSP. 14ª Câmara de Direito Público. Apelação n. 1000337-
22.2014.8.26.0053; rel. Des. Silvana M. Mollo; j. 05/02/2015).

Apelação Base de cálculo de ITBI Artigo 35 do CTN dispõe que é o valor venal do
bem imóvel - Utilização, para fins de tributação, do valor venal utilizado para a
cobrança do IPTU ou valor do negócio traduzido no instrumento de transmissão,
o que for maior Precedentes Recurso procedente.” (TJSP. 14ª Câmara de Direito
Público. Apelação / Reexame Necessário n. 1001992-29.2014.8.26.0053; rel. Des.
Mônica Serrano; j. 11/12/2014).
A propósito, o Órgão Especial, no julgamento a Arguição de
Inconstitucionalidade n. 0056693-19.2014.8.26.0000, reconheceu a
inconstitucionalidade dos artigos 7º-A, 7º-B e 12, da Lei n. 11.154/91, do Município
de São Paulo, acrescido pela Lei municipal n. 14.256/2006, permanecendo a
validade do artigo 7º, conforme ementa vazada nos seguintes termos:

“Incidente de inconstitucionalidade - Artigo 7º da Lei n. 11.154, de 30 de


dezembro de 1991, com a redação dada pelas Leis n. 14.125, de 29 de dezembro
de 2005, e 14.256, de 29 de dezembro de 2006, todas do Município de São
Paulo, que estabelece o valor pelo qual o bem ou direito é negociado à vista,
em condições normais de mercado, como a base de cálculo do Imposto sobre
Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) - Acórdão que, a despeito de não manifestar de
forma expressa, implicitamente também questionou as disposições dos artigos
7º-A, 7º-B e 12 da mesma legislação municipal Valor venal atribuído ao imóvel
para apuração do ITBI que não se confunde necessariamente com aquele utilizado
para lançamento do IPTU - Precedentes do STJ Previsão contida no aludido artigo
7º que, nessa linha, não representa afronta ao princípio da legalidade, haja vista
que, como regra, a apuração do imposto deve ser feita com base no valor do
negócio jurídico realizado, tendo em consideração as declarações prestadas pelo
próprio contribuinte, o que, em princípio, espelharia o “real valor de mercado
do imóvel” - “Valor venal de referência”, todavia, que deve servir ao Município
apenas como parâmetro de verificação da compatibilidade do preço declarado
de venda, não podendo se prestar para a prévia fixação da base de cálculo do ITBI
Impossibilidade, outrossim, de se impor ao sujeito passivo do imposto, desde logo,
a adoção da tabela realizada pelo Município - Imposto municipal em causa que
está sujeito ao lançamento por homologação, cabendo ao próprio contribuinte
antecipar o recolhimento Arbitramento administrativo que é providência
excepcional, da qual o Município somente pode lançar mão na hipótese de
ser constatada a incorreção ou falsidade na documentação comprobatória do
negócio jurídico tributável - Providência que, de toda sorte, depende sempre
da prévia instauração do pertinente procedimento administrativo, na forma do
artigo 148 do Código Tributário Nacional, sob pena de restar caracterizado o
lançamento de ofício da exação, ao qual o ITBI não se submete Artigos 7º-A e
7º-B que, nesse passo, subvertem o procedimento estabelecido na legislação

RSTJ, a. 34, (265): 35-136, Janeiro/Março 2022 123


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

complementar tributária, em afronta ao princípio da legalidade estrita, inserido


no artigo 150, inciso I, da Constituição Federal - Inadmissibilidade, ainda, de se
exigir o recolhimento antecipado do tributo, nos moldes estabelecidos no artigo
12 da Lei Municipal n. 11.154/91, por representar violação ao preceito do artigo
156, inciso II, da Constituição Federal - Registro imobiliário que é constitutivo
da propriedade, não tendo efeito meramente regularizador e publicitário, razão
pela qual deve ser tomado como fato gerador do ITBI Regime constitucional da
substituição tributária, previsto no artigo 150, § 7º, da Constituição Federal, que
nem tem lugar na espécie, haja vista que não se cuida de norma que autoriza a
antecipação da exigibilidade do imposto de forma irrestrita – Arguição acolhida
para o fim de pronunciar a inconstitucionalidade dos artigos 7º-A, 7º-B e 12, da Lei
n. 11.154/91, do Município de São Paulo.” (g.n.) (Des. Rel. Paulo Dimas Mascaretti,
Órgão Especial, Data do julgamento: 25/03/2015).

Por essas razões, a base de cálculo do ITBI deve corresponder ao valor venal
do bem imóvel transferido e, caso este valor seja inferior ao da negociação, deve
prevalecer este último.
Ocorrendo isto, pelo meu voto, no julgamento do incidente, fixo a tese jurídica da
base de cálculo do ITBI, devendo corresponder ao valor venal do imóvel ou ao
valor da transação, prevalecendo o que for maior.
Por derradeiro, considera-se prequestionada toda matéria infraconstitucional
e constitucional, observando-se que é pacífico no Superior Tribunal de Justiça
que, tratando-se de pré-questionamento, é desnecessária a citação numérica dos
dispositivos legais, bastando que a questão posta tenha sido decidida.
E mais, os embargos declaratórios, mesmo para fins de prequestionamento, só
são admissíveis se a decisão embargada estiver eivada de algum dos vícios que
ensejariam a oposição dessa espécie recursal (EDROMS-18.205/SP, Ministro Felix
Fischer, DJ-08.05.2006 p. 240). (Grifos no original).

Feito esse breve histórico processual, passo ao exame do recurso especial


propriamente dito.

Admissibilidade

Preliminarmente, reitero as razões expostas no juízo de afetação quanto


ao preenchimento dos pressupostos de admissibilidade do recurso especial
repetitivo referentes ao prequestionamento das teses e dos dispositivos de lei
federal suscitados (arts. 38 e 148 do CTN) e da necessária multiplicidade de
feitos de mesmo objeto.
Isso porque as questões jurídicas que serão equacionadas pelo Superior
Tribunal de Justiça referem-se à possibilidade de a base de cálculo do Imposto

124
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO

sobre Transmissão de Bens Imóveis - ITBI corresponder ao valor venal do


imóvel utilizado para a aferição do Imposto sobre Propriedade Territorial
Urbana - IPTU e à inviabilidade de adoção de valor de referência fixado
previamente pela Fazenda municipal como parâmetro para o cálculo do ITBI.
Considerando que o acórdão recorrido decidiu pela impossibilidade de
utilização de base de cálculo para o ITBI diferente daquela utilizada para o
IPTU, verifica-se o prequestionamento expresso da tese relativa à vinculação
da base de cálculo desses tributos (art. 38 do CTN) e, por prejudicialidade, o
prequestionamento implícito da tese referente à possibilidade de o fisco utilizar
de prévio valor de referência para o arbitramento da base de cálculo (art. 148
do CTN), tanto o é que, na definição da tese registrada na parte dispositiva do
acórdão, está expressamente afastada a possibilidade de adoção desse valor de
referência.
Quanto à multiplicidade de demandas que envolvem a controvérsia,
ressalto que o fato de o recurso especial se originar de acórdão proferido em
incidente de demandas repetitivas evidencia o volume expressivo de feitos de
igual teor, sendo certo, ainda, que o art. 987, § 2º, do CPC/2015 determina que
a tese firmada no julgamento do recurso especial manejado contra acórdão de
IRDR “será aplicada no território nacional a todos os processos individuais ou
coletivos que versem sobre idêntica questão de direito”.
Merece maior atenção, entretanto, a análise do pressuposto constitucional
contido no art. 105, inciso III, da Carta Política, relativo à existência de causa
decidida em única ou última instância.
Conforme dito acima, o TJ/SP cindiu o julgamento do processo, vindo
a proferir um acórdão no IRDR, para firmar a tese, e outro na apelação, para
decidir o caso concreto, em desatenção à regra contida no parágrafo único do
art. 978 do CPC/2015: “O órgão colegiado incumbido de julgar o incidente e
de fixar a tese jurídica julgará igualmente o recurso, a remessa necessária ou o
processo de competência originária de onde se originou o incidente.”
Assim, julgada a causa pelo Tribunal de origem, com exaurimento de
instância, preenchido está tal requisito constitucional, sendo desinfluente o
fato de órgãos diversos de um mesmo tribunal terem examinado em momentos
diferentes a tese jurídica e o caso concreto.
Cumpre ressaltar que o novo Código de Processo Civil prestigia de
tal modo a uniformização da jurisprudência, sua estabilidade, integridade e
coerência (art. 926, caput), especialmente por meio de precedentes obrigatórios,

RSTJ, a. 34, (265): 35-136, Janeiro/Março 2022 125


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

que permite o julgamento do mérito do IRDR mesmo nos casos de “desistência


ou abandono do processo” originário (art. 976, § 1º).
Nesse panorama, eventual equívoco procedimental cometido pela Corte
estadual não pode prejudicar o interesse de parte, no caso, da Fazenda Pública
municipal, de rever a tese jurídica firmada no julgamento do IRDR, que, como
cediço, orienta, com caráter vinculativo, o julgamento de feitos idênticos.
Acrescento, por oportuno, que a situação dos autos é distinta daquela
tratada no julgamento do ProAfR no Recurso Especial n. 1.881.272/RS,
publicado no DJe de 26/11/2021, em que fiquei como relator para o acórdão.
Nessa ocasião, verificou-se que o Tribunal Regional Federal da 4ª Região
decidiu tese jurídica sob o rito do IRDR sem que tivesse havido qualquer
julgamento acerca do caso concreto, o qual nem sequer era de sua competência,
por se tratar de matéria afeta aos Juizados Especiais Federais. Já na hipótese ora
em exame, houve enfrentamento do caso concreto pela Corte de origem, não
obstante tenha ocorrido em separado, o que demonstra a diferença entre os dois
cenários.
Satisfeitos, portanto, todos os requisitos processuais de admissibilidade,
conheço do recurso especial, passando, doravante, ao exame de seu mérito.

Mérito

Conforme relatado, por ocasião do juízo de afetação desse recurso especial


à sistemática dos repetitivos, a Primeira Seção assim identificou as questões de
direito a serem dirimidas: “Definir: a) se a base de cálculo do ITBI está vinculada
à do IPTU; b) se é legítima a adoção de valor venal de referência previamente fixado
pelo fisco municipal como parâmetro para a fixação da base de cálculo do ITBI.”
A solução desses dois pontos controvertidos passa, necessariamente, pelo
estudo acerca da modalidade de lançamento desse imposto, o qual tem início
com a análise de seu fato gerador, previsto no art. 35 do CTN:

Art. 35 do CTN: O imposto, de competência dos Estados, sobre a transmissão


de bens imóveis e de direitos a eles relativos tem como fato gerador:
I – a transmissão, a qualquer título, da propriedade ou do domínio útil de bens
imóveis por natureza ou por acessão física, como definidos na lei civil;
II – a transmissão, a qualquer título, de direitos reais sobre imóveis, exceto os
direitos reais de garantia;
III – a cessão de direitos relativos às transmissões referidas nos incisos I e II

126
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO

Parágrafo único. Nas transmissões causa mortis, ocorrem tantos fatos geradores
distintos quanto sejam os herdeiros quanto ou legatários.
[...] (Grifos acrescidos).

Quanto à base de cálculo do ITBI, o art. 38 do CTN dispõe que ela é “o


valor venal dos bens ou direitos transmitidos” (Grifos acrescidos).
Como visto, o art. 35 do CTN é claro ao identificar o fato gerador como
sendo a transmissão da propriedade ou de direitos reais imobiliários ou a cessão de
direitos relativos a tais transmissões.
Em sendo a transmissão ou a cessão realizada entre vivos, caso do Imposto
sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI), temos que o fato gerador do
imposto decorre de um negócio jurídico, porque nasce de um acordo de vontades
entre o alienante e o adquirente.
No que tange à base de cálculo, a expressão “valor venal” contida no art. 38
do CTN deve ser entendida como o valor considerado em condições normais de
mercado para as transmissões imobiliárias.
Nesse sentido, os seguintes julgados:

ITBI. Base de cálculo. Valor de mercado. Violação aos arts. 535, II, e 458, II, do
CPC. Inocorrência. Prequestionamento do art. 146 do CTN. Inocorrência. Reexame
de processo administrativo fiscal. Inadmissibilidade. Súmula 7/STJ.
I - Compulsando os autos, observo que todos os pontos alavancados pela
ora agravante nos embargos declaratórios perante o tribunal a quo foram
devidamente analisados pelo v. acórdão.
II - A suposta violação ao art. 146 do CTN não foi devidamente prequestionada.
O efeito devolutivo integral do reexame necessário não tem o condão de
prequestionar toda a matéria, conforme aduz a agravante. Ademais, o Município
foi sucumbente apenas no tocante à inconstitucionalidade das alíquotas
progressivas. No ponto, completamente descabida a argumentação da agravante.
Esta, em suas razões de apelação, ao não apresentar a referida matéria ao Tribunal
a quo, impossibilitou sua apreciação. Na via do apelo especial, não se pode
apreciar matéria não debatida pelo tribunal a quo, sob pena de se incorrer em
supressão de instância.
III - É cediço na doutrina majoritária e na jurisprudência dessa Corte que a base
de cálculo do ITBI é o valor real da venda do imóvel ou de mercado, sendo que até
nos casos em que não houve recolhimento, pode-se arbitrar o valor do imposto,
por meio de procedimento administrativo fiscal, com posterior lançamento de
ofício. Segundo HUGO DE BRITO MACHADO: em se tratando de imposto que
incide sobre a transmissão por ato oneroso, tem-se como ponto de partida para

RSTJ, a. 34, (265): 35-136, Janeiro/Março 2022 127


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

a determinação de sua base de cálculo na hipótese mais geral, que é a compra e


venda, o preço. Este funciona no caso, como uma declaração de valor feita pelo
contribuinte, que pode ser aceita, ou não, pelo fisco, aplicando-se, na hipótese de
divergência, a disposição do art. 148 do CTN. (“CURSO DE DIREITO TRIBUTÁRIO”,
Machado, Hugo de Brito, Ed. Malheiros, 29ª Edição, p. 398)
IV - Conforme consignado no v. acórdão, houve a devida intimação da
complementação do lançamento, fato que a agravante alega não ter ocorrido.
Entretanto, a análise da alegada irregularidade do procedimento administrativo
fiscal demanda reexame de provas, o que é inadmissível pela via eleita do
especial, a teor da Súmula 07/STJ.
V - Agravo regimental improvido.
(AgRg no REsp 1.057.493/SP, Rel. Ministro Francisco Falcão, Primeira Turma,
julgado em 26/08/2008, DJe 04/09/2008) (Grifos acrescidos).

Administrativo e Tributário. Recurso em mandado de segurança. Provimento


n. 05/2002 da Corregedoria-Geral de Justiça da Paraíba. Ausência de atribuições
para interferir na fixação da base de cálculo do ITBI. Ilegalidade.
(...)
2. O “valor venal”, base de cálculo do ITBI, é o valor de mercado do imóvel
transacionado, que pode, ou não, coincidir com o valor real da operação.
(...)
(RMS 36.966/PB, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma, julgado em
27/11/2012, DJe 06/12/2012)

Processual Civil e Tributário. ITBI. Base de cálculo. Apuração por arbitramento


Ausência dos requisitos autorizativos da medida. Reexame de fatos e provas.
Impossibilidade. Súmula 7/STJ.
1. O preço efetivamente pago pelo adquirente do imóvel tende a refletir, com
grande proximidade, seu valor venal, considerado como o valor de uma venda
regular, em condições normais de mercado.
Todavia, se o valor apresentado pelo contribuinte no lançamento do ITBI
(por declaração ou por homologação) não merece fé, o Fisco igualmente pode
questioná-lo e arbitrá-lo, no curso de regular procedimento administrativo, na
forma do art. 148 do CTN.
Precedentes.
Agravo regimental improvido.
(AgRg no AREsp 847.280/PR, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma,
julgado em 10/03/2016, DJe 17/03/2016) (Grifos acrescidos).

128
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO

Importa ressaltar que, embora seja possível dimensionar o valor médio dos
imóveis no mercado, segundo critérios, por exemplo, de localização e tamanho
(metragem), a avaliação de mercado específica de cada imóvel transacionado
pode sofrer oscilações para cima ou para baixo desse valor médio, a depender,
por exemplo, da existência de outras circunstâncias igualmente relevantes
e legítimas para a determinação do real valor da coisa, como a existência
de benfeitorias, o estado de conservação os interesses pessoais do vendedor
(necessidade da venda para despesas urgentes, mudança de investimentos, etc.)
e do comprador (escassez do imóvel na região, proximidade com o trabalho e/ou
com familiares, etc.) no ajuste do preço.
Especificamente no caso de alienação por hasta pública, salvo hipóteses
de preço vil, o valor da arrematação corresponde ao valor de mercado, pois
presume-se que esses mesmos fatores foram ponderados pelo arrematante para
a realização de seu lance.
Aqui não se está afirmando que o preço de venda necessariamente reflete
o valor de mercado, pois eventual alienação por preço nitidamente incompatível
com este (valor de mercado), independentemente de sua motivação, não permite a
adoção dele (o preço de venda) como parâmetro para definição da base de cálculo.
Dito isso, agora é possível passar para o exame da modalidade de lançamento
do ITBI, temática largamente discutida na doutrina e na jurisprudência.
Após cuidadosa reflexão, cheguei à conclusão de que o ITBI, em razão
de seu fato gerador, somente comporta duas das modalidades de lançamento
originário: por declaração ou por homologação, a depender da legislação
municipal de cada ente tributante, sendo inviável ao fisco proceder, de antemão,
ao seu lançamento de ofício.
Se a norma local exigir prévio exame das declarações do contribuinte pela
Administração para a constituição do crédito tributário, estaremos diante de um
lançamento por declaração.
Nessa modalidade de lançamento, em face do princípio da boa-fé
objetiva, presume-se que o valor da transação declarado pelo contribuinte está
condizente com o valor venal de mercado daquele específico imóvel, presunção
que somente pode ser afastada pelo fisco se esse valor se mostrar, de pronto,
incompatível com a realidade, a justificar a instauração do procedimento próprio
para o arbitramento da base de cálculo, em que assegurado ao contribuinte o
contraditório necessário para apresentação das peculiaridades que justificariam
o quantum informado.

RSTJ, a. 34, (265): 35-136, Janeiro/Março 2022 129


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Essa é a inteligência dos arts. 147 e 148 do CTN:

Art. 147. O lançamento é efetuado com base na declaração do sujeito passivo


ou de terceiro, quando um ou outro, na forma da legislação tributária, presta à
autoridade administrativa informações sobre matéria de fato, indispensáveis à
sua efetivação.
§ 1º A retificação da declaração por iniciativa do próprio declarante, quando
vise a reduzir ou a excluir tributo, só é admissível mediante comprovação do erro
em que se funde, e antes de notificado o lançamento.
§ 2º Os erros contidos na declaração e apuráveis pelo seu exame serão
retificados de ofício pela autoridade administrativa a que competir a revisão
daquela.
Art. 148. Quando o cálculo do tributo tenha por base, ou tome em
consideração, o valor ou o preço de bens, direitos, serviços ou atos jurídicos,
a autoridade lançadora, mediante processo regular, arbitrará aquele valor ou
preço, sempre que sejam omissos ou não mereçam fé as declarações ou os
esclarecimentos prestados, ou os documentos expedidos pelo sujeito passivo ou
pelo terceiro legalmente obrigado, ressalvada, em caso de contestação, avaliação
contraditória, administrativa ou judicial.

Entretanto, se a legislação municipal disciplinar que caberá ao contribuinte


apurar o valor do imposto e efetuar o seu pagamento antecipado sem prévio
exame do ente tributante, estaremos diante de um lançamento por homologação.
Nessa hipótese, a Administração terá o prazo decadencial de cinco anos para
proceder à revisão do pagamento realizado (que também engloba o exame
acerca da correção da base de cálculo adotada), sem a qual o lançamento estará
tacitamente homologado e, portanto, terá caráter definitivo.
Tanto o lançamento por declaração quanto o (lançamento) por
homologação estão justificados pelas inúmeras circunstâncias já referidas que
podem interferir no específico valor de mercado de cada imóvel transacionado,
circunstâncias cujo conhecimento integral somente os negociantes têm ou
deveriam ter para melhor avaliar o real valor do bem quando da realização do
negócio.
E aqui reside a principal razão da impossibilidade prática da realização do
lançamento originário de ofício, ainda que autorizado pelo legislador local, pois
o fisco não tem como possuir, previamente, o conhecimento de todas as variáveis
determinantes para a composição do valor do imóvel transmitido, in concreto.
Assim, repita-se, não dispondo de todos os elementos fáticos necessários
ao juízo de certeza quanto ao valor do imóvel transmitido, não há como a

130
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO

Administração dispensar a participação do contribuinte no procedimento


regular de constituição do crédito para estabelecer, antecipada e unilateralmente,
a base de cálculo.
Constata-se, dessa forma, que, dadas as características próprias do fato
gerador desse imposto, a sua base de cálculo deverá partir da declaração prestada
pelo contribuinte, ressalvada a prerrogativa da administração tributária de revisá-
la, antes ou depois do pagamento, a depender da modalidade do lançamento,
desde que instaurado o procedimento administrativo próprio, em que deverá
apurar todas as peculiaridades do imóvel (benfeitorias, estado de conservação,
etc.) e as condições que impactaram no caráter volitivo do negócio jurídico
realizado, assegurados os postulados da ampla defesa e do contraditório que
possibilitem ao contribuinte justificar o valor declarado.
Feitas essas considerações acerca da sistemática da tributação do ITBI à luz
das disposições da Constituição Federal e do Código Tributário Nacional, passo,
doravante, a dirimir as questões controvertidas delimitadas para o julgamento
desse recurso especial repetitivo, que podem ser identificadas com as seguintes
perguntas:
a) A base de cálculo do ITBI está vinculada à do IPTU?
A resposta é negativa.
Não obstante a lei se refira como base de cálculo do IPTU (Imposto
Predial e Territorial Urbano) e do ITBI o “valor venal”, a apuração desse
elemento quantitativo difere em relação aos dois impostos, notadamente diante
da distinção existente entre os fatos geradores e a modalidade de lançamento de
cada um deles.
No IPTU, tributa-se a propriedade, lançando-se de ofício o imposto
tendo por base de cálculo a Planta Genérica de Valores aprovada pelo Poder
Legislativo local, que considera aspectos mais amplos e objetivos como, por
exemplo, a localização e a metragem do imóvel.
Já no ITBI, a base de cálculo deve considerar o valor de mercado do imóvel
individualmente considerado, que, como visto, resulta de uma gama maior de
fatores, motivo pelo qual o lançamento desse imposto se dá, originalmente e
via de regra, por declaração do contribuinte, ressalvado o direito da fiscalização
tributária de revisar o quantum declarado, por meio de regular instauração de
processo administrativo.
Em face disso, tem-se a impossibilidade de vinculação da base de cálculo
do ITBI à estipulada para o IPTU, nem mesmo como piso de tributação, pois,

RSTJ, a. 34, (265): 35-136, Janeiro/Março 2022 131


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

repita-se, o valor adotado para fins de IPTU considera, apenas, os critérios


fixados na Planta Genérica de Valores, que “são padrões de avaliação de imóveis
em consonância com a metragem e com outros fatores, tais como localização,
acabamento e antiguidade, ou seja, consistem em presunções relativas, no
contexto da praticabilidade tributária, que auxiliam na fixação da base de
cálculo desse imposto” (STF, ARE 1.245.097 RG, relator: Ministro Presidente,
Tribunal Pleno, julgado em 09/04/2020, Processo Eletrônico DJe-102 divulg
27-04-2020 public 28-04-2020).
Tais padrões são gerais e, por isso, embora facilitem a arrecadação,
desconsideram a realidade de cada operação de transmissão da propriedade
imobiliária efetivamente realizada, não refletindo, portanto, o real valor de
mercado da coisa.
A propósito, cumpre salientar que a Planta Genérica de Valores é
estabelecida por lei em sentido estrito, para fins exclusivos de apuração da base
de cálculo do IPTU, não podendo ser utilizada como critério objetivo para
estabelecer a base de cálculo de outro tributo, o qual, pelo princípio da estrita
legalidade, depende de lei específica.
Conclui-se, assim, pela impossibilidade de vinculação da base de cálculo
desses dois impostos.
Essa é inclusive a mansa jurisprudência desta Corte Superior, conforme se
verifica dos seguintes julgados:

Tributário. Execução fiscal. ITBI. Base de cálculo. Valor venal. IPTU. Vinculação.
Impossibilidade.
1. “Aos recursos interpostos com fundamento no CPC/1973 (relativos a
decisões publicadas até 17 de março de 2016) devem ser exigidos os requisitos
de admissibilidade na forma nele prevista, com as interpretações dadas até então
pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça” (Enunciado Administrativo n.
2, sessão de 09/03/2016).
2. O entendimento de ambas as Turmas de Direito Público do STJ firmou-se no
sentido de que não há ilegalidade na dissociação entre o valor venal do imóvel
para fins de cálculo do ITBI e do IPTU, porquanto a apuração da base de cálculo e
a modalidade de lançamento deles são diversas, não havendo, pois, vinculação de
seus valores.
3. Hipótese em que restou consignado, no acórdão recorrido, a real vinculação
entre as bases de cálculo do ITBI e do IPTU - em detrimento dos valores arbitrados
pela municipalidade, ante a discrepância entre o valor declarado pelo contribuinte
e aquele considerado como de mercado pelo ente tributante.

132
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO

4. Agravo interno não provido.


(AgInt no REsp 1.559.834/SP, Rel. Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma,
julgado em 07/10/2019, DJe 16/10/2019)

Processual Civil e Tributário. Recurso especial. Ofensa ao art. 535 do CPC/1973.


Inexistência. ITBI e IPTU. Base de cálculo. Valor venal. Inexistência de vinculação.
Acórdão recorrido em sintonia com o entendimento do STJ. Reexame do conjunto
fático-probatório dos autos. Súmula 7/STJ.
1. Constata-se que não se configura a ofensa ao art. 535 do CPC/1973, uma vez
que o Tribunal de origem julgou integralmente a lide e solucionou a controvérsia,
em conformidade com o que lhe foi apresentado.
2. O Tribunal de origem, ao dirimir a controvérsia, concluiu estar correto o
valor venal do imóvel atribuído pelo município para cálculo do ITBI, tendo sido
observado o disposto no art. 38 do CTN. Além disso, considerou que a base de
cálculo do ITBI pode apresentar valor diverso do apurado para cálculo do IPTU.
3. O acórdão recorrido julgou em consonância com o entendimento do STJ
de não haver ilegalidade na diferença entre o valor venal do imóvel para fins de
cálculo do ITBI e do IPTU, porquanto a apuração da base de cálculo e a modalidade
de lançamento deles são diversas, não havendo, pois, vinculação de seus valores.
4. Ademais, o exame da controvérsia, sob a ótica propugnada pela recorrente,
no sentido de que o procedimento adotado pela municipalidade subverteria a
sistemática prevista no art. 148 do CTN, requer revolvimento do conjunto fático-
probatório, inadmissível na via especial, ante o óbice da Súmula 7/STJ.
5. Recurso Especial não provido.
(REsp 1.709.052/SP, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado
em 20/03/2018, DJe 13/11/2018)

b) É legítima a adoção de valor venal de referência previamente estipulado pelo


fisco municipal como parâmetro para a fixação da base de cálculo do ITBI?
Essa resposta também é negativa.
De início, cabe refutar a alegação da municipalidade recorrente de que
a prévia adoção do valor venal de referência não modifica a modalidade de
lançamento do imposto, que, segundo a edilidade, continuaria sendo por
homologação.
Consoante dito antes, o lançamento do ITBI se dá por declaração ou por
homologação.
No caso, diversamente do afirmado pelo município recorrente, a sua
tributação do ITBI não se dá por homologação, visto que não há pagamento

RSTJ, a. 34, (265): 35-136, Janeiro/Março 2022 133


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

antecipado do imposto sem prévio exame do fisco, mas, ao contrário disso, a


Administração impõe ao contribuinte o valor do crédito a ser recolhido.
Em verdade, ao fixar a base de cálculo com lastro em valor de referência
previamente estabelecido, o fisco busca, de fato, realizar o lançamento de ofício
do imposto, o qual, todavia, está indevidamente amparado em critérios que
foram por ele escolhidos unilateralmente e que apenas revelariam um valor
médio de mercado, de cunho meramente estimativo, visto que despreza as
peculiaridades do imóvel e da transação que foram quantificadas na declaração
prestada pelo contribuinte, que, como cediço, presume-se de boa-fé.
Além disso, a adoção desse valor de referência como primeiro parâmetro
para a fixação da base de cálculo do ITBI, com a inversão do ônus da prova ao
contribuinte para demonstrar o contrário, subverte o procedimento instituído
no art. 148 do CTN, pois, a toda evidência, resulta em arbitramento da base de
cálculo sem prévio juízo quanto à fidedignidade da declaração do sujeito passivo.
Esse denominado valor venal de referência, ou equivalente, quando muito,
poderá justificar a ação fiscal para apurar a veracidade da declaração prestada,
mas, em hipótese alguma, pode servir para antecipar tal juízo, porquanto, além de
não abranger todas as áleas definidoras do valor de mercado daquele específico
imóvel, acaba por subtrair a garantia do contraditório assegurada ao contribuinte,
cujo exercício pressupõe a prévia instauração de regular processo administrativo.
Quanto à necessária observância do procedimento de arbitramento da base
de cálculo preconizado no art. 148 do CTN, cito os seguintes julgados:

Tributário. Processual Civil. Ação de repetição de indébito. Agravo em recurso


especial. Violação ao art. 1.022 do CPC/2015. Inexistência. ITBI. Ação de restituição
de indébito. Lançamento por declaração. Divergência do fisco quanto ao valor
venal declarado pelos compradores do imóvel. Posterior lançamento de ofício
(substitutivo). Ausência de prévio procedimento administrativo. Art. 148 do CTN.
Necessidade de perícia judicial.
1. Cuida-se de agravo em recurso especial, que ora se traz a julgamento em
conjunto com o próprio apelo raro, como permite o art. 1.042, § 5º, do CPC/2015.
2. Versa a lide sobre pedido de repetição de indébito, em que contribuintes
reivindicam do Fisco Distrital a devolução de valor de ITBI alegadamente pago a
maior, no âmbito de específica aquisição imobiliária.
3. Não há ofensa aos arts. 489 e 1.022, II, do CPC/2015, quando o Tribunal de
origem dirime, fundamentadamente, as questões que lhe foram submetidas,
apreciando integralmente a controvérsia posta nos autos.

134
Jurisprudência da PRIMEIRA SEÇÃO

4. A jurisprudência do STJ já se manifestou no sentido de que, “constituindo


o valor venal do bem transmitido a base de cálculo do ITBI, caso a importância
declarada pelo contribuinte se mostre nitidamente inferior ao valor de mercado,
pode o Fisco arbitrar a base de cálculo do referido imposto, desde que atendida
a determinação do art. 148, do CTN” (REsp 261.166/SP, Rel. Ministro José Delgado,
Primeira Turma, julgado em 12/9/2000, DJ 6/11/2000, p. 192).
5. No caso concreto, nada obstante a considerável discrepância entre o
valor declarado pelos contribuintes e aquele considerado como de mercado
pela entidade tributante (o Fisco arbitrou valor equivalente a quase o dobro
do informado pelos compradores do imóvel), a Corte de origem entendeu
dispensável a realização de prévio procedimento administrativo fiscal para fins de
lançamento do ITBI, afrontando, com isso, ao art. 148 do CTN.
6. Sob pena de supressão de instância, imperioso que os autos retornem ao
primeiro grau de jurisdição, a fim de se implementar a avaliação pericial do imóvel
objeto da exação, em modo de prova equidistante e imparcial, capaz de subsidiar
o julgador na correta apuração do valor venal do bem, enquanto base de cálculo
do incidente ITBI (art. 38 do CTN), ensejando o consequente e adequado deslinde
da pretensão repetitória posta na exordial.
7. Agravo em recurso especial conhecido para dar parcial provimento ao
recurso especial dos contribuintes.
(AREsp 1.452.575/DF, Rel. Ministro Sérgio Kukina, Primeira Turma, julgado em
14/05/2019, DJe 27/06/2019)

Processual Civil e Tributário. ITBI. Base de cálculo. Apuração por arbitramento


Ausência dos requisitos autorizativos da medida. Reexame de fatos e provas.
Impossibilidade. Súmula 7/STJ.
1. O preço efetivamente pago pelo adquirente do imóvel tende a refletir, com
grande proximidade, seu valor venal, considerado como o valor de uma venda
regular, em condições normais de mercado. Todavia, se o valor apresentado pelo
contribuinte no lançamento do ITBI (por declaração ou por homologação) não
merece fé, o Fisco igualmente pode questioná-lo e arbitrá-lo, no curso de regular
procedimento administrativo, na forma do art. 148 do CTN. Precedentes.
2. No caso concreto, o Tribunal a quo não dissentiu de tais entendimentos, mas
apenas concluiu que o impetrante não juntou documentos que infirmassem de
plano a presunção de legitimidade do ato administrativo que apurou o ITBI.
3. Portanto, aferir a existência de prova pré-constituída do direito líquido e
certo demandaria o reexame dos fatos e provas da causa, vedado segundo os
termos da Súmula 7/STJ.
Agravo regimental improvido.
(AgRg no AREsp 847.280/PR, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma,
julgado em 10/03/2016, DJe 17/03/2016)

RSTJ, a. 34, (265): 35-136, Janeiro/Março 2022 135


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Nesse panorama, verifica-se que base de cálculo do ITBI é o valor venal em


condições normais de mercado e, como esse valor não é absoluto, mas relativo,
pode sofrer oscilações diante das peculiaridades de cada imóvel, do momento
em que realizada a transação e da motivação dos negociantes.
Em consequência, presume-se que o valor de mercado daquele específico
imóvel corresponde ao valor da transação informado na declaração do
contribuinte, com base no princípio da boa-fé, sendo que, reitera-se, essa
presunção pode vir a ser afastada pelo fisco em regular processo administrativo,
desde que observado o procedimento disposto no art. 148 do CTN.

Do caso concreto

Conforme já exposto quando do exame da admissibilidade do presente


recurso especial representativo da controvérsia, o Tribunal de origem não
observou o contido no parágrafo único do art. 978, CPC/2015, julgando o
recurso relacionado ao IRDR em processo distinto, de modo que, em caráter
excepcional, não há como reanalisar, nestes autos, o caso concreto.
Ante o exposto, dou parcial provimento ao recurso especial para fixar as
seguintes teses:
a) a base de cálculo do ITBI é o valor do imóvel transmitido em condições
normais de mercado, não estando vinculada à base de cálculo do IPTU, que nem
sequer pode ser utilizada como piso de tributação;
b) o valor da transação declarado pelo contribuinte goza da presunção de
que é condizente com o valor de mercado, que somente pode ser afastada pelo
fisco mediante a regular instauração de processo administrativo próprio (art. 148
do CTN);
c) o Município não pode arbitrar previamente a base de cálculo do ITBI
com respaldo em valor de referência por ele estabelecido unilateralmente.
É como voto.

136
Primeira Turma
AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL N. 1.904.780-SP (2021/0160235-3)

Relator: Ministro Gurgel de Faria


Agravante: Município de Itapevi
Procurador: Marcel Tenorio da Costa e outro(s) - SP224008
Agravado: Eurofarma Laboratorios S.A
Advogados: Ronaldo Rayes - SP114521
João Paulo Fogaça de Almeida Fagundes - SP154384
Bruno Henrique Coutinho de Aguiar - SP246396
Ana Cristina Maia Mazzaferro - SP261869
Letícia Marchioni Sequeira - SP411188
Bruna Annunciato de Caria - SP428667

EMENTA

Tributário.Imposto sobre serviços. Lançamento por homologação.


Recolhimento em favor de município diverso. Decadência. Regra a ser
observada. Art. 173, I, CTN. Aplicação.
1. A obrigação tributária não declarada pelo contribuinte no
tempo e modo determinados pela legislação de regência está sujeita
ao procedimento de constituição do crédito pelo fisco, por meio do
lançamento substitutivo, o qual deve se dar no prazo decadencial
previsto no art. 173, I, do CTN, quando não houver pagamento
antecipado, ou no art. 150, § 4º, do CTN, quando ocorrer o
recolhimento de boa-fé, ainda que em valor menor do que aquele que
a Administração entende devido, pois, nesse caso, a atividade exercida
pelo contribuinte, de apurar, pagar e informar o crédito tributário, está
sujeita à verificação pelo ente público, sem a qual ela é tacitamente
homologada.
2. Hipótese em que a Corte estadual compreendeu que o
recolhimento do tributo a município diverso daquele a quem seria
efetivamente devido seria suficiente para a aplicação do regime
do art. 150, § 4º, do CTN, independentemente do momento do
conhecimento, pelo outro ente federativo, acerca do fato gerador, bem
como de qualquer recolhimento do tributo aos seus cofres.
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

3. In casu, revela-se incontroverso que o contribuinte declarou e


recolheu o ISS relativo aos serviços prestados por terceiros a outros
municípios que não o de Itapevi – SP, o qual apenas teve conhecimento
dos fatos geradores no momento da fiscalização tributária, o que afasta
o regime do art. 150, § 4º, do CTN, impondo-se a reforma do acórdão
para que seja aplicada a regra geral da decadência prevista no art. 173,
I, CTN.
4. Agravo conhecido para dar provimento ao recurso especial.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima


indicadas, acordam os Ministros da Primeira Turma do Superior Tribunal de
Justiça, por unanimidade, conhecer do agravo para dar provimento ao recurso
especial nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Manoel
Erhardt (Desembargador convocado do TRF-5ª Região), Benedito Gonçalves
(Presidente), Sérgio Kukina e Regina Helena Costa votaram com o Sr. Ministro
Relator.
Brasília (DF), 14 de dezembro de 2021 (data do julgamento).
Ministro Gurgel de Faria, Relator

DJe 25.2.2022

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Gurgel de Faria: Trata-se de agravo de Município de Itapevi


– SP que objetiva admissão de recurso especial interposto contra acórdão do
TJSP assim ementado:

Apelação cível. Ação Anulatória ISS do exercício de 2010. Município de Itapevi.


Insurgência contra sentença que julgou procedente a ação anulatória em razão
da decadência do lançamento tributário e condenou o município aos ônus de
sucumbência além de honorários advocatícios Tomadora de serviços localizada
em Itapevi. Prestadores localizados em São Paulo. Existência de retenção Notas
fiscais juntadas aos autos e correspondentes ao período tributário dão conta de
que houve a retenção e pagamento do tributo. Tributo sujeito ao lançamento por
homologação cujo prazo decadencial deve ser contado a partir do fato gerador
Ultimo fato gerador data de 8/12/2010. Lançamento ocorrido 15/12/2015.

140
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA

Decadência Ocorrência Entendimento do art. 150, § 4º do CTN Precedentes do


STJ e deste Eg. Tribunal de Justiça. Decisão mantida. Recurso do município não
provido.

No especial, a parte alega violação dos arts. 150, § 4º, 173, I, do CTN, bem
como a ocorrência de divergência jurisprudencial.
Sustenta, em síntese, que a contagem do prazo decadencial deve observar
a regra do art. 173, I, do CTN, e não aquela prevista no art. 150, § 4º, ante a
ausência de recolhimento do ISS aos cofres do município tributante no período
do fato gerador.
Afirma que o recolhimento do ISS feito a outro ente municipal não
tem o condão de alterar a forma de contagem do prazo decadencial, uma vez
que o município recorrente só teve conhecimento do fato gerador na data da
fiscalização.
O recurso especial foi obstaculizado pela aplicação da Súmula 7 do STJ e
por não estar corretamente demonstrado o dissídio jurisprudencial, fundamentos
impugnados no agravo.
É o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Gurgel de Faria (Relator): Inicialmente, por entender


estarem preenchidos os pressupostos legais para o conhecimento do agravo e
do próprio recurso especial, submeto o presente feito diretamente ao Colegiado,
conforme faculta o art. 1.042, § 5º, do CPC/2015.
O recurso especial se origina de ação declaratória de inexistência de relação
jurídico-tributária c/c pedido de repetição do indébito de ISS cobrado pela
edilidade ao autor em razão de responsabilidade por substituição tributária
dos serviços médicos a ele prestados, em que se debate a legitimidade ativa
tributária do Município de Itapevi para cobrar ISSQN de serviços prestados por
prestadores localizados em outro município, bem como a decadência do crédito
tributário em razão do decurso do quinquênio legal.
Pela sentença, a ação foi julgada procedente, em razão do reconhecimento
da decadência, consignando-se que o prazo do art. 150, § 4º, do CTN teve início
com o recolhimento do tributo aos cofres do município em que domiciliado o
prestador do serviço, afastando-se a aplicação da regra do art. 173, I, do CTN:

RSTJ, a. 34, (265): 137-219, Janeiro/Março 2022 141


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Isso porque houve o pagamento antecipado ao Município do prestador do


serviço, ao qual a autora entendia ser devido o pagamento, não podendo a
mesma ser onerada pela divergência de entendimento entre dois municípios da
Federação

O Tribunal bandeirante negou provimento à apelação da edilidade,


mantendo o fundamento de que, com o recolhimento comprovado do ISS ao
município que a autora entendia como tributante, o prazo do art. 150, § 4º, do
CTN teria se iniciado, encerrando-se em momento anterior à lavratura do auto
de infração pelo município de Itapevi – SP.
Eis a motivação adotada no acórdão recorrido:

O § 4º do sobredito artigo 150 do CTN, por sua vez, determina que “Se a lei
não fixar prazo à homologação, será ele de 5 (cinco) anos, a contar da ocorrência
do fato gerador; expirado esse prazo sem que a Fazenda Pública se tenha
pronunciado, considera-se homologado o lançamento e definitivamente extinto
o crédito, salvo se comprovada a ocorrência de dolo, fraude ou simulação.”
Assim, para que referido dispositivo legal seja aplicável, é necessário que
o contribuinte tenha efetuado o pagamento, isto é, tenha “declarado” que o
imposto era devido naquele caso e, procedido ao seu recolhimento, ainda que
tenha sido a menor, antes do lançamento e a Municipalidade tem o prazo de
cinco anos contados do fato gerador para homologar o crédito de forma tácita ou
expressa.
Pois bem, o impetrante comprovou que houve a retenção e recolhimento
referente às notas fiscais de fls. 40/127, no exercício de 2010 (período
compreendido entre janeiro a dezembro), devendo, desse modo, incidir a regra
decadencial insculpida no já mencionado artigo 150 § 4º do CTN, ou seja, o direito
da Fazenda Pública constituir o crédito tributário extingue-se após 5 (cinco) anos,
contados da ocorrência do fato gerador.
Os fatos geradores do tributo ocorreram entre janeiro a dezembro de 2010
(esta última datada de 8/12/2010), evidenciado pela emissão das notas fiscais
aqui copiadas às fls. 40/127, nas quais a autora é identificada como tomadora dos
serviços. Ali consta o nome da autora nessa condição, com as devidas descrições
dos serviços prestados.
O fato gerador do ISS se dá na data da prestação de serviços (art. 156, III da
Constituição Federal), de modo que as notas fiscais de fls. 40/127 apontam que os
serviços foram prestados até o dia 8/12/2010.
Está, pois, demonstrado que quando o lançamento foi efetuado o crédito
tributário descrito no auto de infração n. 121/2015, de 15/12/2015, já havia sido
fulminado pela decadência.

142
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA

Pois bem.
Por oportuno, anote-se a tempestividade do agravo em recurso especial,
tendo o município recorrente sido intimado da decisão de inadmissão do recurso
com sua intimação pessoal, ocorrida por meio eletrônico em 30/11/2020, data
da interposição do agravo.
Dito isso, tem-se que, para os tributos sujeitos ao lançamento por
homologação, a obrigação tributária não declarada pelo contribuinte no tempo
e modo determinados pela legislação de regência está sujeita ao procedimento
de constituição do crédito pelo fisco, por meio do lançamento substitutivo, o
qual se deve dar no prazo decadencial previsto no art. 173, I, do CTN, quando
não houver pagamento antecipado, ou no art. 150, § 4º, do CTN, quando
ocorrer o recolhimento de boa-fé, ainda que em valor menor do que aquele
que a Administração entende devido, pois, nesse caso, a atividade exercida
pelo contribuinte, de apurar, pagar e informar o crédito tributário, está sujeita à
verificação pelo ente público, sem a qual ela é tacitamente homologada.
Nesse sentido, confiram-se os seguintes julgados: AgInt no AgInt no
AREsp 1.229.609/RJ, rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma,
DJe 24/10/2018; AgInt no REsp 1.097.248/SC, rel. Ministro Sérgio Kukina,
Primeira Turma, DJe 13/05/2019; AgRg no AREsp 132.784/SP, rel. Ministro
Gurgel de Faria, Primeira Turma, DJe 01/04/2016; REsp 1.633.154/SP, rel.
Ministro Og Fernandes, Segunda Turma, DJe 05/12/2017.
Vê-se que, pela própria natureza do lançamento por homologação,
faz-se necessário que a edilidade tenha conhecimento da ocorrência do fato
gerador, seja através da declaração formal promovida pelo contribuinte ou do
recolhimento do tributo aos seus cofres.
Na hipótese dos autos, é incontroverso que o contribuinte declarou e
recolheu o ISS relativo aos serviços prestados por terceiros a outros municípios
que não o município de Itapevi – SP, o qual apenas teve conhecimento dos fatos
geradores no momento da fiscalização tributária.
Não se está aqui a afirmar a competência deste ou daquele município para
a tributação, mas apenas que, para a aplicação da regra do art. 150, § 4º, do CTN
ao município de Itapevi – SP, no caso concreto, a declaração do contribuinte ou
o recolhimento, ainda que parcial, do ISSQN dos fatos geradores tributados
deveriam ter sido feitos ao ora recorrente.

RSTJ, a. 34, (265): 137-219, Janeiro/Março 2022 143


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

In casu, as instâncias ordinárias aplicaram a regra do art. 150, § 4º, do


CTN independentemente do momento do conhecimento do município acerca
do fato gerador e de qualquer recolhimento do tributo aos seus cofres, sendo
insustentáveis as conclusões por elas adotadas.
Ante o exposto, conheço do agravo para dar provimento ao recurso especial
e determinar o retorno dos autos ao Tribunal a quo para que seja apreciada a
alegação de decadência segundo as regras do art. 173 do CTN, bem como
para que aprecie as demais causas de pedir da ação declaratória relativas à
competência do município de Itapevi – SP para tributar o ISS em discussão.
É como voto.

AGRAVO INTERNO NO RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA N.


67.723-SC (2021/0323713-6)

Relator: Ministro Sérgio Kukina


Agravante: Andreia Marques Tarachuk
Advogado: Amanda Beatriz Guimaraes Bueno - PR085112
Agravado: Estado de Santa Catarina
Advogado: Ezequiel Pires - SC007526

EMENTA

Processual Civil. Agravo interno em recurso ordinário em


mandado de segurança. Concurso público. Candidata aprovada
em primeiro lugar. Concurso ainda vigente. Discricionariedade
administrativa. Agravo não provido. Alegação de preterição. Dilação
probatória. Inadequação da via mandamental. Agravo não provido.
1. A discricionariedade administrativa para a nomeação
de candidatos aprovados em certames públicos conhece limite: o
constitucional de vigência dos concursos públicos, nunca superior a
quatro anos, contados da data de sua homologação, como decorre,

144
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA

inexoravelmente, do disposto no art. 37, III, da Carta Republicana.


Porém, durante o período de vigência do concurso público, ainda
que estendido, deve ser respeitado o legítimo poder discricionário
conferido pelo ordenamento pátrio à Administração de avaliar, ao
seu exclusivo critério, a melhor oportunidade para nomear candidatos
aprovados, ainda que classificados dentro das vagas inicialmente
ofertadas no instrumento convocatório.
2. Não prospera a tese autoral de preterição, em razão da
inadequação da via eleita. É que a aferição do acerto do argumento
demandaria inevitavelmente dilação probatória – vedada na via
mandamental – para verificar se, no caso examinado, a apontada
designação de pessoal em regime precário seria, ou não, usada como
artifício para burlar a nomeação dos candidatos aprovados em concurso
público, mormente diante da informação prestada pela Impetrada,
dando conta de que as funções são exercidas acumuladamente por
servidores efetivos já integrantes do quadro. Ademais, a jurisprudência
do STJ tem se orientado no sentido de que mesmo a contratação de
temporários (se fosse o caso) não caracteriza, só por si, preterição dos
candidatos concursados.
3. Agravo interno não provido.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas,


acordam os Ministros da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por
unanimidade, negar provimento ao recurso, nos termos do voto do Sr. Ministro
Relator.
Os Srs. Ministros Benedito Gonçalves, Regina Helena Costa, Gurgel
de Faria e Manoel Erhardt (Desembargador convocado do TRF-5ª Região)
votaram com o Sr. Ministro Relator.
Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Benedito Gonçalves.
Brasília (DF), 14 de março de 2022 (data do julgamento).
Ministro Sérgio Kukina, Relator

DJe 21.3.2022

RSTJ, a. 34, (265): 137-219, Janeiro/Março 2022 145


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Sérgio Kukina: Cuida-se de agravo interno interposto


por Andréia Marques Tarachuk contra a decisão de fls. 338/342, pela qual, em
harmonia com consolidada jurisprudência desta Corte Superior, se negou
provimento a recurso ordinário interposto contra acórdão unânime do Tribunal
de Justiça de Santa Catarina.
A decisão ora impugnada, ancorada em diversos precedentes desta Corte,
endossa o entendimento do Tribunal de origem, no sentido de que “mesmo
os classificados dentro do número de vagas oferecidas no certame não têm direito
líquido e certo à imediata nomeação durante o período de vigência do certame,
salvo se provada a preterição, porquanto, nesse intervalo, cabe ao Poder Público, no
exercício de legítimo poder discricionário, avaliar a conveniência e a oportunidade de
nomeação” (fl. 340). Também se afirmou, na mesma decisão, a inadequação da via
mandamental “para aferir se, no caso examinado, a apontada designação de pessoal
em regime precário seria, ou não, usada como artifício para burlar a nomeação dos
candidatos aprovados em concurso público, mormente diante da informação prestada
pela Impetrada, dando conta de que as funções são exercidas acumuladamente por
servidores efetivos já integrantes do quadro” (fl. 341, isto por ser o mandado de
segurança absolutamente avesso à dilação probatória.
Nas razões do agravo interno (fls. 347/361), a agravante argumenta no
sentido de afastar ambos os fundamentos (discricionariedade da Administração
e inadequação da via mandamental), requerendo, por fim, o provimento do
agravo, com a consequente reforma da decisão agravada e a posterior concessão
da ordem.
Em contrarrazões, fls. 364/369, o Estado de Santa Catarina defende o
acerto da decisão combatida pela candidata, inclusive quanto ao argumento
de que este STJ, em casos semelhantes, também negou provimento a recursos
ordinários fundados nas mesmas teses.
Recurso tempestivo. Representação regular.
É o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Sérgio Kukina (Relator): Em que pese à irresignação da


agravante, não lhe assiste razão.

146
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA

Quanto à legitimidade do poder discricionário da Administração Pública


para definir, ao seu exclusivo critério e dentro do prazo de validade do certame –
primeiro fundamento da decisão combatida –, pondera a agravante:

O eminente relator, ao proferir a decisão denegatória do recurso ordinário


em mandado de segurança, asseverou que “homologado o certame aos 19 de
outubro de 2018, (fls. 75/76), mas prorrogada sua vigência (...) deve ser respeitado
o legítimo poder discricionário da Administração de, durante o período de
validade do concurso assim estendido, avaliar a melhor oportunidade para a
nomeação”.
Entretanto, de se observar que sequer houve efetiva prorrogação do prazo
de vigência, conforme permite a Constituição Federal. O que ocorre é o prazo
de validade do certame está suspenso, conforme comunicado anexado no mov.
103, de forma que, em razão das reiteradas suspensões (entre 20/03/2020 a
31/12/2020; e entre 13/05/2021 a 31/12/2021), é certo que o prazo de validade
ainda por anos se estenderá, protelando injustificadamente o direito líquido e
certo da impetrante.
Questiona-se, aqui, se a jurisprudência do Egrégio STJ, no sentido de que
o direito líquido e certo à vaga só exsurge após o transcurso total do prazo
de validade do certame, mostra-se aplicável ao presente caso concreto. Ora, é
compreensível admitir que a Administração Pública tenha discricionariedade
quanto ao momento de nomear os servidores aprovados. Mas admitir, ao mesmo,
que as suspensões do prazo de validade do concurso sejam discricionárias, leva
ao inequívoco raciocínio de que a impetrante, devidamente aprovada dentro
do número de vagas, fica à mercê de uma liberdade desregrada e arbitrária por
parte da Administração Pública. E, como bem se sabe, a discricionariedade não
pode, ou ao menos não deve, servir de subterfúgio para legitimar condutas
ilegais, abusivas, impessoais e violadoras dos princípios mais caros na seara
administrativa (como o acesso aos cargos públicos através de concurso, em que
se prefere o mérito às preferências pessoais, forma de garantir o próprio direito
fundamental à igualdade). (fl. 350)

E, mais adiante, suscita questionamentos, à guisa de conclusão:

Provoca-se aqui o raciocínio de cunho pragmatista por parte do respeitável


Ministro Relator e dos demais julgadores desta Corte Cidadã, sob viés
contextualista, consequencialista e antifundacionista. É necessário contextualizar
o direito que aqui está em jogo, certamente dotado de particularidades que
o diferenciam dos demais casos julgados e citados na decisão denegatória
(em nenhum deles consta vigência superior a 4 anos, já em seu total, sendo
certo que no caso ora analisado sequer houve a prorrogação). É necessário
verificar as consequências da decisão, já que a denegação da segurança significa
protelar indefinidamente o direito líquido e certo no tempo, tornando-o em uma

RSTJ, a. 34, (265): 137-219, Janeiro/Março 2022 147


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

expectativa que jamais se concretizará (ora, se a Administração Pública optar


por suspender o prazo de validade mais e mais vezes sem qualquer justificativa
válida, não se pode prever quando esse prazo acabará). É necessário se afastar
de critérios abstratos (e, no caso, da tese abstrata já firmada pelo STJ que acima
se explicitou), chamando-se atenção para as circunstâncias deste caso concreto.
Até onde vai o legítimo poder discricionário da Administração? Há poder de
se escolher o momento da nomeação e, ao mesmo tempo, poder de suspender
o prazo de validade do certame indefinidamente? Onde fica o princípio da
confiança legítima que devem reger os atos administrativos, a segurança jurídica
e o princípio do concurso público? O que há de democrático em um concurso
público realizado há mais de 3anos, com previsão expressa de vaga em edital, e
no qual se nega o acesso ao cargo por razões discricionárias? (fls. 350/351).

Ao que parece, talvez em razão do recorte parcial que fez para transcrição
nas razões recursais, não compreendeu a agravante o real fundamento da decisão
que pretende combater.
Eis o que efetivamente está posto no decisum hostilizado:

Segundo a Corte Catarinense, mesmo os classificados dentro do número de


vagas oferecidas no certame não têm direito líquido e certo à imediata nomeação
durante o período de vigência do certame, salvo se provada a preterição,
porquanto, nesse intervalo, cabe ao Poder Público, no exercício de legítimo poder
discricionário, avaliar a conveniência e a oportunidade de nomeação.
Quanto a este ponto, a conclusão da Corte Estadual não destoa do
entendimento jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça, como se pode
aferir, dentre outros, dos seguintes julgados:
[...]
Assim, homologado o certame aos 19 de outubro de 2018, (fls. 75/76), mas
prorrogada sua vigência (neste caso, por força da norma constitucional “uma
única vez e por igual período”, até 19 de outubro de 2022), deve ser respeitado o
legítimo poder discricionário da Administração de, durante o período de validade
do concurso assim estendido, avaliar a melhor oportunidade para a nomeação.
(fls. 340/341)

Logo, as razões recursais, nessa quadra, ficam esvaziadas. Nada


há, nessa decisão, que autorize concluir, como o faz a agravante, haver esta
Corte autorizado a prorrogação, ad inf initum, da vigência do certame. A
discricionariedade administrativa para a nomeação de candidatos aprovados em
certames públicos conhece, sim, um limite: o máximo prazo constitucional de
vigência dos concursos públicos, nunca superior a quatro anos, contados da data
de sua homologação, como decorre, inexoravelmente, do disposto no art. 37, III,
da Carta Republicana.
148
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA

Portanto, para o caso em exame, vale reprisar: “homologado o certame aos 19


de outubro de 2018, (fls. 75/76), mas prorrogada sua vigência (neste caso, por força
da norma constitucional ‘uma única vez e por igual período’, até 19 de outubro de
2022).”
Porém, como também se afirmou, “deve ser respeitado o legítimo poder
discricionário da Administração de, durante o período de validade do concurso assim
estendido, avaliar a melhor oportunidade para a nomeação (fl. 341).”
Eis porque, quanto a isso, nenhuma razão assiste à agravante. Insisto:
durante o período de vigência do concurso público, ainda que estendido, deve ser
respeitado o legítimo poder discricionário conferido pelo ordenamento pátrio
à Administração de avaliar, ao seu exclusivo critério, a melhor oportunidade
para nomear candidatos aprovados, ainda que classificados dentro das vagas
inicialmente ofertadas no instrumento convocatório.
Nesse sentido, dentre outros tantos, os seguintes julgados:

Direito Administrativo. Recurso em mandado de segurança. Concurso público.


Cargo efetivo. Contratação de temporários. Inexistência de preterição. Institutos
diversos. Prazo de vigência não expirado. Discricionariedade na escolha do
momento para nomeação. Recurso não provido.
1. A contratação de agentes temporários, só por si, não caracteriza preterição
dos aprovados para nomeação em cargos efetivos, porquanto aqueles, admitidos
por meio de processo seletivo fundado no art. 37, IX, da Constituição Federal,
atendem às necessidades transitórias da Administração, ao passo em que os
servidores efetivos são recrutados mediante concurso público (art. 37, II e III, da
CF) e suprem necessidades permanentes do serviço. São institutos diversos, com
fundamentos fáticos e jurídicos que não se confundem. Precedentes.
2. Cabe à Administração Pública, no legítimo exercício do poder discricionário,
escolher o melhor momento para nomeação de candidatos aprovados em
concurso público, respeitado o prazo de validade do certame.
3. Recurso ordinário não provido.
(RMS 61.771/PR, Rel. Ministro Sérgio Kukina, Primeira Turma, DJe 02/09/2020)

Processual Civil. Mandado de segurança. Concurso público. Médico. Nomeação


na vigência de lei que altera os benefícios dos servidores públicos. Ausência de
direito líquido e certo. Precedentes do STJ.
[...]
4. A jurisprudência do STJ está pacificada no sentido de que não há falar
em direito líquido e certo à nomeação se ainda houver tempo de validade do
concurso (mesmo que o candidato esteja aprovado dentro do número de vagas, o

RSTJ, a. 34, (265): 137-219, Janeiro/Março 2022 149


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

que é o caso da recorrente), pois, em tais situações, subsiste a discricionariedade


da Administração Pública para efetivar a nomeação.
[...]
6. Recurso Ordinário não provido.
(RMS 50.445/ES, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe
20/04/2017)

Quanto ao segundo fundamento da decisão guerreada, diz a recorrente que


“duas observações importantes merecem ser feitas, com toda vênia ao Ministro relator”
(fl. 351).
A primeira, segundo a Autora, é que “a petição está devidamente acompanhada
de prova pré-constituída que demonstra que as alegações perpetradas no sentido de que
a designação de servidores a título temporário para o exercício das funções de oficial
de justiça na Comarca de Porto União/SC são irregulares”, pelo que, acrescenta,
“o exame dessa legalidade é o que se quer nessa via mandamental, segundo o que a
seguir será fundamentado, sendo certo que a prova de plano produzida nesses autos é
suficiente para comprovar as alegações trazidas” (fl. 352).
Bem, quanto a isso, sem nenhum desdouro ao argumento, observo tratar-se
da opinião da impetrante. Na origem, o Desembargador relator, ao indeferir a
liminar, externou compreensão diversa:

Além disso, segundo informações prestadas pela Diretoria de Gestão e Pessoas


do Tribunal de Justiça (Evento 1, Doc. 17), os servidores que atualmente exercem
as funções do cargo vago de Oficial de Justiça na comarca de Porto União foram
designados em regime de substituição - ou seja, de forma precária e provisória
- com amparo na Resolução GP n. 28/2011 (especificamente, arts. 5º e 8º),
afastando, à primeira vista, a alegação de desvio de função.
Consigno, ainda, que a própria impetrante acostou (e a consulta ao site do
Tribunal de Justiça confirmou) atos recentes - datados de janeiro e fevereiro de
2021 (Evento 1, Doc. 10) - relativos à nomeação de candidatos aprovados no
mesmo concurso regido pelo Edital n. 19/2018, o que sinaliza o empenho da
Administração em atender os ditames do instrumento convocatório, provendo
os cargos no lapso temporal em que se comprometeu. Diante disso, ao menos
por ora, não visualizo plausibilidade fática e jurídica na argumentação da
demandante. (fl. 163).

Na mesma linha, a Corte catarinense, nos termos do acórdão recorrido, à


unanimidade endossou o voto condutor do acórdão, do qual se extrai:

Noutra linha, aqui não se percebe a existência da aventada preterição -, pois


inocorrente qualquer afronta à ordem de classificação dos aprovados no certame.

150
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA

No que toca à designação de terceiro para suprir temporariamente a lacuna


existente, colhe-se das informações prestadas pela autoridade apontada
como coatora (Evento 25) que “não há substituição por servidores externos na
hipótese; aqueles que desempenham as funções de oficial de justiça na comarca
de Porto União, em caráter de substituição, pertencem aos quadros do Poder
Judiciário catarinense”, além deque “referida medida tem por objetivo reduzir
emergencialmente o déficit de servidores nas unidades, enquanto se verifica as
possibilidades de provimentos dos demais cargos vagos, e está pautada no que
admitido pela resolução GP n. 28/2011”.
E aludida Resolução GP n. 28/2011 assim dispõe, naquilo que importa:

Art. 5º Somente haverá pagamento de substituição decorrente dos


afastamentos legais dos servidores ocupantes de cargos comissionados e
dos cargos efetivos de Oficial de Justiça e Oficial de Justiça e Avaliador, bem
como daqueles que exercem funções gratificadas ou percebem gratificação
especial correspondente a cargo comissionado ou função gratificada.
[...]
§ 3º Também será devida gratificação de substituição em virtude da
vacância dos cargos de Oficial de Justiça e Oficial de Justiça e Avaliador,
seja motivada pela aposentadoria, remoção, exoneração, demissão ou
falecimento.
[...]
Art. 8º As substituições deverão se efetivar da seguinte forma:
III - Cargos efetivos (Oficial de Justiça e Oficial de Justiça e Avaliador):
servidor efetivo do Poder Judiciário, com lotação na respectiva comarca,
preferencialmente portador de diploma de curso superior em Direito.

Em acréscimo, registro que os efeitos da pandemia mundial oriunda da


Covid-19 exigiu a adoção de inúmeras medidas de forte impacto nas áreas social,
sanitária e econômica, trazendo consigo a necessidade de, quanto ao último
ponto, readequação e, até mesmo, limitação de gastos e investimentos; no setor
público, há imposição de rigoroso controle de despesas, inclusive pelos ditames
da Lei Complementar n. 173/2020. Por isso, as contratações e reposições em
quadro de pessoal merecem cautela e, sobretudo, exame maior de sua premente
necessidade, considerando o todo de sua estrutura e não apenas de determinado
segmento ou localidade. (fls. 257/258)

Como se vê, a anunciada suficiência das provas apresentadas não se confirma.


Assim, tenho ainda por firme o fundamento lançado na decisão vergastada:

Quanto ao mais, tenho por não prosperar a tese autoral de preterição, em


razão da inadequação da via eleita. É que a aferição do acerto do argumento
demandaria inevitavelmente dilação probatória – vedada na via mandamental

RSTJ, a. 34, (265): 137-219, Janeiro/Março 2022 151


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

– para verificar se, no caso examinado, a apontada designação de pessoal em


regime precário seria, ou não, usada como artifício para burlar a nomeação dos
candidatos aprovados em concurso público, mormente diante da informação
prestada pela Impetrada, dando conta de que as funções são exercidas
acumuladamente por servidores efetivos já integrantes do quadro.
Ademais, a jurisprudência do STJ tem se orientado de que mesmo a
contratação de temporários (se fosse o caso) não caracteriza, só por si, preterição
dos candidatos concursados. (fl. 341)

A segunda observação que faz a agravante foi vazada nos seguintes moldes:

A segunda observação a ser feita é a respeito da possibilidade de utilização


das vias ordinárias para a busca do direito que aqui se afirma líquido e certo. Com
todo o respeito ao argumento do eminente Relator, bem como à celeridade em
que proferiu sua decisão monocrática (poucos dias após o parecer do Ministério
Público Federal), vê-se que essa celeridade típica da ação mandamental não tem
sido observada desde a origem. Observe-se que a petição inicial foi distribuída ao
juízo competente em 09/02/2021 e apenas em 29/7/2021 o mérito foi julgado pela
Câmara de Direito Público do TJ/SC (isso após insistentes contatos com a assessoria
do relator para inclusão urgente em pauta). Ou seja, o que se observa, na prática, é
que os prazos previstos no art. 7º e 12 da Lei 12.016/2009 não são atendidos, nem
mesmo a preferência legal que se dá ao mandamus que, em tese, deve ser célere.
Veja que, quase um ano após a distribuição da petição inicial, a impetrante não se
viu diante de uma resolução de mérito justa e efetiva para o caso em análise.
Se a utilização da ação mandamental assim tramitou, por certo que o recurso
às vias ordinárias em muito prejudicaria a efetividade da prestação jurisdicional,
porquanto o decurso do tempo é justamente o que se teme nesse caso concreto.
O tempo, certamente, é o bem jurídico que está aqui em jogo: o tempo
transcorrido desde a homologação do certame sem a devida convocação para
assumir o cargo; o tempo em que o certame permaneceu com prazo de validade
suspenso; o tempo em que os técnicos judiciários exercem as funções de oficial
de justiça em caráter precário; o tempo que deveria ser certo em uma designação
que se diz temporária, mas que já perdura por mais de 2 anos e não tem prazo
para findar. E ninguém tem dúvidas que, diante da efemeridade da vida e de
todas as dificuldades vivenciadas em um período de pandemia mundial, o tempo
é um dos bens jurídicos de maior valia para o ser humano. (fls. 351/352).

Ainda que aqui transcrito (tão somente para que não se alegue omissão),
o argumento não merece ser conhecido, pois, a toda evidência, desborda dos
fundamentos da decisão agravada
Por tudo isso, tenho que as razões recursais declinadas pela Autora não
abalam os fundamentos sobre os quais se erige a decisão combatida, que
permanece incólume.

152
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA

Ante o exposto, encaminho meu voto no sentido de negar provimento ao


presente agravo interno, mantendo íntegra a decisão impugnada.
É como voto.

RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA N. 56.528-DF


(2018/0022140-3)

Relator: Ministro Benedito Gonçalves


Recorrente: Messer Gases Ltda.
Outro Nome: Linde Gases Ltda
Advogados: Luiz Gustavo Rocha Oliveira Rocholi - MG072002
Felipe Alves Pacheco - MG108711
Fernanda Assis Souza - MG104873
Thiago Magalhaes Freitas Sa - MG167050
Recorrido: Distrito Federal
Procurador: Bruno Novaes de Borborema e outro(s) - DF033806

EMENTA

Direito Constitucional e Administrativo. Recurso em mandado


de segurança. Contratações realizadas pela Administração Pública.
Fornecimento de serviços. Despesas relativa à exercícios anteriores.
Ordem cronológica. Princípio da anualidade orçamentária. Rubrica
distinta. Observância ao artigo 5 da Lei 8.666/93. Ausência de direito
líquido e certo.
1. Considerando que o recurso foi interposto contra acórdão
publicado na vigência do Código de Processo Civil de 2015, devem
ser exigidos os requisitos de admissibilidade na forma nele previsto,
conforme Enunciado Administrativo n. 3/2016/STJ.
2. Os autos são oriundos de mandado de segurança impetrado
por Linde Gases Ltda. contra ato imputado ao Secretário de Saúde
do Distrito Federal, consubstanciado na realização de pagamentos de

RSTJ, a. 34, (265): 137-219, Janeiro/Março 2022 153


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

serviços prestados a seu favor com desrespeito à ordem cronológica


prevista nos artigos 1º e 2º da Lei Distrital n. 5.760/2016, 5º da Lei
8.666/93 e na própria Constituição Federal.
3. O impetrante explica que as notas fiscais cujo pagamento está
sendo preterido foram emitidas e atestadas em 2014 e, com a mesma
fonte de recursos, o GDF vem pagando notas emitidas e atestadas em
2017.
4. Ocorre que a Lei Distrital 5.760/16, que determinava, em
seu artigo 3º, a observância de pagamento em ordem cronológica
e “custeadas pela mesma fonte de recursos, ainda que sejam
originárias de exercício encerrado”, foi definitivamente declarada
inconstitucional pelo Conselho Especial do TJDFT, no bojo da
ADI n. 2017.00.2.004857-3, Rel. Ana Maria Amarante, julgado em
20.03.2018, DJe 04.04.2018.
5. Além disso, a exigência contida no art. 5º da Lei 8.666/93,
de respeito à ordem cronológica “para cada fonte diferenciada de
recursos”, não pode ser interpretada isoladamente no ordenamento
jurídico brasileiro, mas sim em conjunto com a Constituição e
as normas financeiras e orçamentárias aplicáveis, que impõem a
anualidade dos orçamentos da Administração Pública, cuja lógica
estabelece que despesas de exercícios anteriores não devem prejudicar
o orçamento do exercício subsequente, pois devem ser custeadas com
recursos financeiros do exercício que foram realizadas.
6. Diante disso, não há como se afastar da conclusão adotada
pelo acórdão de origem, no sentido de que os pagamentos de despesas
públicas devem observar a dotação orçamentária e financeira do
exercício em curso, de forma que as despesas atinentes aos exercícios
findos se inserem em uma rubrica distinta, cuja cronologia do
pagamento a ser observada é outra, específica para os exercícios
anteriores.
7. Entender de forma diversa, implicaria na desvirtuação do
planejamento orçamentário e financeiro anual do Governo do Distrito
Federal, com a paralisação de todas as despesas correntes do ano em
curso até a quitação total das dívidas deixadas pelo exercício anterior,
em afronta aos princípios da continuidade do serviço público e da
anualidade orçamentária.

154
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA

8. Não há falar, portanto, em desrespeito ao disposto no artigo 5º


da Lei 8.666/93 e tampouco em direito líquido e certo da impetrante,
eis que não demostrou a alegada preterição do seu débito em relação à
ordem cronológica de pagamentos de exercícios anteriores.
9. Recurso não provido.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas,


acordam os Ministros da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por
unanimidade, negar provimento ao recurso ordinário em mandado de segurança,
nos termos do voto do Sr. Ministro Relator.
Os Srs. Ministros Sérgio Kukina, Regina Helena Costa, Gurgel de Faria e
Manoel Erhardt (Desembargador convocado do TRF-5ª Região) votaram com
o Sr. Ministro Relator.
Brasília (DF), 19 de abril de 2022 (data do julgamento).
Ministro Benedito Gonçalves, Relator

DJe 27.4.2022

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Benedito Gonçalves: Trata-se de recurso em mandado


de segurança interposto por Linde Gases Ltda. contra acórdão do Tribunal de
Justiça do Distrito Federal, assim ementado (fl. 280):

Direito Constitucional. Mandado de segurança. Alegação de não observância


da ordem cronológica de pagamento por fornecimento e serviços à Secretaria
de Saúde do Distrito Federal prestados pela impetrante atinente ao exercício de
2014. Exercícios anteriores. Cumprimento do estatuído no art. 5º da Lei 8.666/93
e na Lei Distrital 5.760/2016. Direito líquido e certo. Inexistência. Segurança
denegada.
1 – A ordem cronológica de pagamento das despesas decorrentes das
contratações de serviços e obras e das aquisições realizadas pela Administração
Pública dos Poderes Executivo e Legislativo do Distrito Federal, prevista na Lei n.
8.666/93 e na Lei Distrital n. 5.760/16, devem observar a dotação orçamentária e
financeira do exercício em curso, uma vez que as despesas atinentes a exercícios

RSTJ, a. 34, (265): 137-219, Janeiro/Março 2022 155


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

findos possuem rubrica distinta, sendo que a cronologia do pagamento a ser


observada é a de exercícios anteriores.
2 – A parte final do artigo 3º da Lei Distrital n. 5.760/2016, que determinava
a observância de pagamento em ordem cronológica, “e custeadas pela mesma
fonte de recursos, ainda que sejam originárias de exercício encerrado” foi
suspensa liminarmente por decisão do Conselho Especial do TJDFT no bojo da
ADI n. 2017.00.2.004857-3.
3 – Certo é que o orçamento segue o princípio da anualidade e, assim, as
dívidas reconhecidas voluntariamente pelo Distrito Federal e que passaram de
um ano para outro são incluídos em restos a pagar ou em exercícios anteriores,
que possuem rubricas diferentes (fontes de recursos distintas), pois o exercício
financeiro e orçamentário do ano em curso não se confunde com os exercícios
findos e, assim, não tendo a Impetrante demonstrado que houve preterição
quanto a seu débito em relação a ordem cronológica de pagamento de exercícios
findos, inexiste direito líquido e certo. Agravo Interno prejudicado.

Em suas razões recursais, a empresa recorrente aduz que o Distrito Federal


vem, reiteradamente, permitindo a realização de pagamentos com desrespeito à
ordem cronológica prevista na disposto no art. 5º da Lei 8.666/93, bem como
no 1º e 2º da Lei Distrital n. 5.760/2016 e na própria Constituição Federal.
Explica que as Notas Fiscais cujo pagamento é reclamado foram
emitidas e atestadas em 2014 e, com a mesma fonte de recursos, o GDF vem
pagando notas emitidas e atestadas em 2017, destacando que “negar-se força e
reconhecimento à imposição legal de observância à ordem cronológica significa anuir
com o comportamento do Estado de esquivar-se dos pagamentos dos seus fornecedores
antigos, visto que seus débitos seriam esquecidos ano a ano, o que claramente não pode
ser tolerado dentro de um Estado de Direito” (fls. 317).
Adiante, esclarece que o presente mandamus foi impetrado com o
único objetivo de se garantir o cumprimento, pelo Distrito Federal, da ordem
cronológica quando da quitação dos seus débitos, não configurando, portanto, a
vedada pretensão de cobrança de débitos na via mandamental.
Em seguida, defende que: i) “a preferência de credores de exercícios anteriores
para o recebimento de pagamentos sobrevive nos exercícios financeiros subsequentes”
(fls. 321); ii) “o novo orçamento não pode ignorar as dívidas pretéritas, as quais
deverão ser computadas nos orçamentos seguintes até serem integralmente quitadas”
(fls. 322); iii) “os valores devidos à Recorrente desde o ano de 2014 não são
enquadráveis nas hipóteses que permitem a inscrição do débito na dotação “despesas de
exercícios anteriores” (fls. 323), mas sim como restos a pagar processados, os quais
não podem ser cancelados antes da prescrição quinquenal.

156
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA

Em contrarrazões, o Distrito Federal alega, inicialmente, que a lei


distrital invocada pela recorrente “está sendo objeto de questionamento na ação
direta de inconstitucionalidade n. 2017.00.2.004857-3, em trâmite perante o
Conselho Especial do TJDFT, na qual foi deferida medida liminar para suspender
a sua aplicabilidade até o julgamento f inal da ação” (fls. 336), por aparente
inconstitucionalidade formal.
Adiante, defende que “a pretensão deduzida, no sentido de que despesas
realizadas e não pagas em exercício pretérito (2014) impeça todo e qualquer outro
pagamento com aquela rubrica, com todas as vênias, viola o princípio da anualidade
orçamentária” (fls. 343).
A esse respeito, aduz que a ordem cronológica das despesas do exercício
atual é distinta da ordem cronológica das despesas dos exercícios anteriores,
posto que a “a lógica constitucional estabelecida pelo Princípio da Anualidade é que
as Despesas de Exercícios Anteriores não devem prejudicar o orçamento do exercício
subsequente, pois devem ser custeadas com recursos financeiros do exercício em que
foram realizadas. Com isso, mantém-se o equilíbrio orçamentário dentro do regime de
competência legal, e, sobretudo, as fontes de financiamento do exercício seguinte não são
comprometidas por dívidas de exercícios anteriores” (fls. 348).
Esclarece que possui um passivo enorme, o qual está sendo quitado
gradualmente, com respeito às normas gerais de direito financeiro e orçamentário
para o pagamento de “Débitos de Exercícios Anteriores”, tais como aquelas
decorrentes dos arts. 35 a 37 da Lei 4.320/64 e do art. 50 da LC 101/2000,
sem, no entanto, comprometer a continuidade dos contratos atuais, posto que,
“caso os fornecedores atuais tivessem os seus créditos suspensos em prol do pagamento
da dívida anterior, a população seria privada dos mais básicos serviços públicos, como
saúde, segurança e educação” (fls. 345).
Ao final, assevera que a pretensão viola o princípio da separação dos
poderes e da reserva da Administração (art. 2º c/c 165 da CF), sendo certo
que não há espaço à intervenção do Poder Judiciário no conteúdo do ato
administrativo.
O MPF opinou pelo provimento do recurso, nos termos da seguinte
ementa (fls. 377):

Direito Processual Civil e Financeiro. Recurso ordinário em mandado de


segurança. Contrato administrativo. Pagamento. Pretensão de que se observe a
ordem cronológica. Writ que não é substitutivo de ação de cobrança. Prestação
de serviços ao governo no ano de 2014. Pagamento em exercício financeiro

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

diverso. Direito adquirido ao pagamento da dívida. Obrigação de observância


da ordem cronológica de pagamentos. Princípios da legalidade e moralidade
administrativas. Lei de Responsabilidade Fiscal. Impossibilidade de o titular do
poder, nos dois últimos quadrimestres do mandato, criar débitos que não possam
ser pagos no mesmo exercício financeiro. Direito líquido e certo demonstrado.
Parecer pelo provimento do recurso.

É o relatório. Decido

VOTO

O Sr. Ministro Benedito Gonçalves (Relator): Consigne-se inicialmente


que o recurso foi interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de
Processo Civil de 2015, devendo ser exigidos os requisitos de admissibilidade na
forma nele previsto, conforme Enunciado Administrativo n. 3/2016/STJ.
Os autos são oriundos de mandado de segurança impetrado por Linde
Gases Ltda. contra ato imputado ao Secretário de Saúde do Distrito Federal,
consubstanciado no pagamento por fornecimento, locações e serviços prestados
a seu favor sem respeitar a ordem cronológica, em total afronta ao disposto nas
Leis 8.666/93, 5.760/16 e à própria Constituição Federal.
Para tanto, explicou que as notas fiscais cujo pagamento é reclamado foram
emitidas e atestadas em 2014 e, com a mesma fonte de recursos, o GDF vem
pagando notas emitidas e atestadas em 2017, bem mais antigas que as suas e
também de inúmeras outras empresas.
Ao final, pugnou pela concessão da ordem a concessão de ordem para
determinar à autoridade coatora que se abstenha de “de quitar qualquer fatura ou
nota fiscal utilizando-se da fonte de recurso n. 138003467 (Convênio 0003467/05 -
GDF/SES/FNS/MS - 000073-0) sem respeitar a ordem cronológica de pagamentos”
(fls. 11).
O Tribunal de origem entendeu por bem denegar a ordem, aos fundamentos
de que: i) a ordem cronológica de pagamento das despesas públicas, prevista
na Lei n. 8.666/93 e na Lei Distrital n. 5.760/16, devem observar a dotação
orçamentária e financeira do exercício em curso (princípio da anualidade), uma
vez que as despesas atinentes a exercícios findos possuem rubrica distinta, sendo
que a cronologia do pagamento a ser observada é a de exercícios anteriores;
ii) a parte final do art. 3º da Lei Distrital n. 5.760/2016, que determinava a
observância de pagamento em ordem cronológica ainda que as despesas fossem

158
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA

“originárias de exercício encerrado”, foi suspensa liminarmente por decisão do


Conselho Especial do TJDFT; e iii) a impetrante não demostrou a alegada
preterição do seu débito em relação à ordem cronológica de pagamentos de
exercícios anteriores.
Na presente insurgência a recorrente aduz que, não obstante a suspensão
cautelar de parte da Lei Distrital 5.760/2016, “a norma positivada no art. 5º
da Lei 8.666/93, bem como as regras nacionais de direito financeiro, são, por si só,
suficientes para exaltar o direito líquido e certo ora perquerido” (fls. 325), tendo em
vista a necessidade de se observar a continuidade do orçamento, não podendo
de desconsiderara as dívidas dos exercícios anteriores, em razão do disposto nos
artigos 5º e 45 da LC 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal). Defende,
também, que não estão presentes as hipóteses do artigo 37 da Lei 4.320/64, que
permite a inscrição de débitos como “despesas de exercícios anteriores”.
Com efeito, a despeito do esforço argumentativo empreendido pelo
recorrente, tem-se que não lhe assiste razão.
Diz-se isso primeiramente porque a Lei Distrital 5.760/16, utilizada pelo
recorrente como um dos fundamentos para justificar sua pretensão, foi definitivamente
declarada inconstitucional pelo Conselho Especial do TJDFT, no bojo da ADI n.
2017.00.2.004857-3, Rel. Ana Maria Amarante, julgado em 20.03.2018, DJe
04.04.2018.
Tal norma dispunha sobre a ordem cronológica de pagamento a ser
obedecida no âmbito das contratações e aquisições realizadas pela Administração
Pública dos Poderes Executivo e Legislativo do Distrito Federal, sendo que, no
seu artigo 3º, determinava a observância de pagamento em ordem cronológica
e “custeadas pela mesma fonte de recursos, ainda que sejam originárias de
exercício encerrado”, senão vejamos:

Art. 3º Não é paga a despesa, ainda que atestada, enquanto houver outras
mais bem classificadas na ordem cronológica e custeadas pela mesma fonte de
recursos, ainda que sejam originárias de exercício encerrado

Na oportunidade, assentou a relatora que a referida legislação distrital,


a pretexto de disciplinar o contido no já mencionado art. 5º da Lei Federal
8.666/90, acabou por incorrer em diversas inconstitucionalidades, especialmente
por “ter restringido a uma só fonte de recursos, receitas destinadas ao pagamento de
despesas do exercício atual com aquelas advindas de exercícios anteriores, quando
a norma geral federal é explícita no sentido de determinar a observância da ordem
cronológica de pagamentos para cada fonte diferenciada de recursos”.

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Ressaltou que “a lei impugnada não só invadiu a competência da União,


como ainda contrariou normas gerais de direito f inanceiro contidas nas Leis n.
4.320/64 (arts. 35 a 37) e na Lei de Responsabilidade Fiscal, Lei Complementar n.
101/2000, especialmente porque determinou que despesas de outros exercícios findos
fossem pagas com prioridade sobre despesas do exercício corrente, utilizando a mesma
fonte orçamentária, em nítido desrespeito ao princípio da anualidade orçamentária
e ao regime de competência que rege a contabilidade pública, instituído pelas Leis
4.320/64 e pela Lei de Responsabilidade Fiscal (art. 50)”.
E, por fim, consignou que a lei atacada “constitui também um convite à
burla do dever legal de o titular de Poder não contrair dívidas em fim de mandato
que não possam ser cumpridas integralmente dentro dele, tal como estabelecido pelo
art. 42 da Lei de Responsabilidade Fiscal”, além de suas disposições modificarem
completamente as leis orçamentárias e priorizarem “o pagamento de dívidas
bilionárias de gestões anteriores, impedindo a liberdade de o Governo atual gerir o
orçamento”.
No que diz respeito ao outro fundamento apontado pela recorrente para
embasar seu alegado direito líquido e certo, qual seja, a incidência do artigo 5º da Lei
8.666/93, tampouco merece êxito a insurgência.
O referido dispositivo legal dispõe que a Administração Pública deve
adimplir suas obrigações financeiras contratuais observada, em regra e para
cada fonte diferenciada de recursos, a ordem cronológica das datas de suas
exigibilidades, senão vejamos:

Art. 5º Todos os valores, preços e custos utilizados nas licitações terão como
expressão monetária a moeda corrente nacional, ressalvado o disposto no
art. 42 desta Lei, devendo cada unidade da Administração, no pagamento das
obrigações relativas ao fornecimento de bens, locações, realização de obras
e prestação de serviços, obedecer, para cada fonte diferenciada de recursos,
a estrita ordem cronológica das datas de suas exigibilidades, salvo quando
presentes relevantes razões de interesse público e mediante prévia justificativa da
autoridade competente, devidamente publicada.

Ocorre que, tal exigência, de respeito à ordem cronológica “para cada


fonte diferenciada de recursos”, não pode ser interpretada isoladamente no
ordenamento jurídico brasileiro, mas sim em conjunto com a Constituição e
as normas financeiras e orçamentárias aplicáveis, que impõem a anualidade
dos orçamentos da Administração Pública, cuja lógica estabelece que despesas
de exercícios anteriores não devem prejudicar o orçamento do exercício

160
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA

subsequente, pois devem ser custeadas com recursos financeiros do exercício que
foram realizadas.
Nessa linha, são os artigos. 35 a 37 da Lei 4.320/64, que assentam
que pertencem aos exercício financeiro apenas as despesas nele legalmente
empenhadas, as quais serão consideradas restos a pagar, caso não pagas até o dia
31 de dezembro, destacando que as dívidas dos exercícios anteriores somente
poderão ser pagas por dotação específica consignada no orçamento anual:

Art. 35. Pertencem ao exercício financeiro:


I - as receitas nele arrecadadas;
II - as despesas nele legalmente empenhadas.
Art. 36. Consideram-se Restos a Pagar as despesas empenhadas mas não pagas
até o dia 31 de dezembro distinguindo-se as processadas das não processadas.
Parágrafo único. Os empenhos que sorvem a conta de créditos com vigência
plurienal, que não tenham sido liquidados, só serão computados como Restos a
Pagar no último ano de vigência do crédito.
Art. 37. As despesas de exercícios encerrados, para as quais o orçamento
respectivo consignava crédito próprio, com saldo suficiente para atendê-las, que
não se tenham processado na época própria, bem como os Restos a Pagar com
prescrição interrompida e os compromissos reconhecidos após o encerramento
do exercício correspondente poderão ser pagos à conta de dotação específica
consignada no orçamento, discriminada por elementos, obedecida, sempre que
possível, a ordem cronológica.

Diante disso, não há como se afastar da conclusão adotada pelo acórdão de


origem, no sentido de que os pagamentos de despesas públicas devem observar
a dotação orçamentária e financeira do exercício em curso, de forma que as
despesas atinentes aos exercícios findos se inserem em uma rubrica distinta, cuja
cronologia do pagamento a ser observada é outra, específica para os exercícios
anteriores.
É dizer que o exercício financeiro atual não se confunde com os exercícios
findos, que são pagos por rubricas distintas. As normas orçamentárias
determinam o pagamento de exercícios anteriores em separado do pagamento
das verbas do exercício atual, sendo que a ordem cronológica das despesas
do exercício atual também é distinta da ordem cronológica das despesas dos
exercícios anteriores.
O pagamento de dívidas anteriores deve ser realizado por meio de dotação
orçamentária própria, específica para “Despesas de Exercícios Anteriores”, sem

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

prejuízo do pagamento das verbas atuais, relativas aos serviços essenciais à


sociedade e à Administração, que possuem rubrica distinta.
Entender de forma diversa, mediante uma interpretação literal da
exigência contida no artigo 5º da Lei 8.666/93, implicaria na desvirtuação do
planejamento orçamentário e financeiro anual do Governo do Distrito Federal,
com a paralisação de todas as despesas correntes do ano em curso até a quitação
total das dívidas deixadas pelo exercício anterior, em afronta aos princípios da
continuidade do serviço público e da anualidade orçamentária.
Ademais, a alegação de que o gestor público deve observar limitações
nos últimos quadrimestres do mandato, devendo-se abster de gastos que
não possam ser adimplidos naquele exercício (art. 42 da LC 101/2000), não
autoriza que, eventualmente desobservado tal dever, o débito haja de ser pago
independentemente da observância das normas financeiras e orçamentárias
aplicáveis, tal como aquele segundo a qual o gasto haverá de ser incluído em
rubrica própria.
Isso tudo considerado, não há falar, portanto, em desrespeito ao disposto no
artigo 5º da Lei 8.666/93 e tampouco em direito líquido e certo da impetrante,
eis que não demostrou a alegada preterição do seu débito em relação à ordem
cronológica de pagamentos de exercícios anteriores.
Ante o exposto, nego provimento ao recurso.
É como voto.

RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA N. 67.416-SE


(2021/0299685-0)

Relator: Ministro Sérgio Kukina


Recorrente: Paulo Roberto Fonseca Barbosa
Advogado: Márcio Macêdo Conrado - SE003806
Recorrido: Estado de Sergipe
Procurador: Ronaldo Ferreira Chagas e outro(s) - SE002064

162
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA

EMENTA
Administrativo. Servidor público. Recurso em mandado de
segurança. Magistrado em gozo de licença para capacitação no exterior.
Suspensão da percepção de Gratificação por Exercício Cumulativo de
Jurisdição ou Acumulação de Acervo Processual e de Gratificação
de Direção de Fórum. Vantagens de caráter eventual e temporário.
Interrupção automática do pagamento em virtude da ausência de
preenchimento dos requisitos legais. Possibilidade. Existência de
processo administrativo no qual houve o exercício da ampla defesa.
Ausência de direito líquido e certo à manutenção das vantagens.
1. Cuida-se de recurso em mandado de segurança interposto
contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe que
denegou o writ do autor, no que tange ao pedido de manutenção
do pagamento das vantagens denominadas “Retribuição por Direção
de Fórum” e “Gratif icação pelo Exercício Cumulado de Jurisdição ou
Acumulação de Acervo Processual”, no período de 20/12/2019 a
19/9/2020, durante o qual o magistrado impetrante gozava de licença
para participar de curso de doutorado no exterior, concedendo, no
entanto, em parte a ordem apenas para isentá-lo de devolver os valores
anteriormente recebidos de boa-fé.
2. Nos termos dos arts. 1º da Lei Complementar Estadual
327/2019 e 1º da Lei Complementar Estadual 239/2014, c/c o art.
5º, II, b, c e d, da Resolução/CNJ n. 13/2006, as referidas vantagens
possuem caráter eventual e temporário, vinculando-se o seu pagamento
ao efetivo exercício das atividades a elas relacionadas.
3. No que toca especificamente à “Retribuição por Direção
de Fórum”, existindo previsão legal expressa no sentido de que o
pagamento da referida vantagem somente seria devido nos casos de
afastamentos vinculados a “férias, licença-maternidade, licenças para
tratamento da própria saúde ou de pessoa da família, ou outros afastamentos
inferiores a dez dias”, torna-se inviável estender tal comando normativo
à hipótese ali não contemplada, ante a necessidade de reverência ao
princípio de hermenêutica segundo o qual “não compete ao intérprete
distinguir onde o legislador, podendo, não o fez, sob pena de violação do
postulado da separação dos poderes” (AgInt no REsp 1.609.787/RS, Rel.
Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, DJe 10/11/2017).
4. Recurso em mandado de segurança desprovido.

RSTJ, a. 34, (265): 137-219, Janeiro/Março 2022 163


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira


Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, negar provimento
ao recurso ordinário em mandado de segurança, nos termos do voto do Sr.
Ministro Relator. Os Srs. Ministros Regina Helena Costa, Gurgel de Faria,
Manoel Erhardt (Desembargador convocado do TRF-5ª Região) e Benedito
Gonçalves (Presidente) votaram com o Sr. Ministro Relator.
Brasília (DF), 29 de março de 2022 (data do julgamento).
Ministro Sérgio Kukina, Relator

DJe 1º.4.2022

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Sérgio Kukina: Trata-se de recurso em mandado de


segurança interposto por Paulo Roberto Fonseca Barbosa, com fundamento no
art. 105, II, b, da Constituição Federal, contra acórdão do Tribunal de Justiça do
Estado de Sergipe.
Narram os autos que o recorrente impetrou o subjacente mandamus
contra pretenso ato ilegal e abusivo imputado ao Desembargador Presidente do
Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe, consubstanciado na decisão proferida
nos autos do Processo Administrativo n. 0001521-18.2020.8.25.8825, pela
qual determinou a suspensão do pagamento e a dedução retroativa das verbas
referentes à Retribuição por Direção de Fórum e à Gratificação pelo Exercício
Cumulado de Jurisdição ou Acumulação de Acervo Processual, no período de
20/12/2019 a 19/9/2020, em que o magistrado impetrante gozava de licença
para estudar no exterior.
O Tribunal de origem concedeu a segurança parcialmente, nos termos da
ementa que segue (fl. 325):

Mandado de segurança. Magistrado em gozo de licença para capacitação.


Suspensão da percepção de Gratificação pelo Exercício Cumulativo de Jurisdição
ou Acumulação de Acervo Processual e de Gratificação de Direção de Fórum após
processo administrativo. Verbas de natureza propter laborem. Imperatividade do
art. 1º, VIII e IX, da Lei Complementar Estadual n. 129/06. Compatibilidade com o
exercício do poder hierárquico. Ausência de direito líquido e certo. Impossibilidade

164
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA

de devolução dos valores percebidos equivocadamente. Boa fé do impetrante.


Jurisprudência farta nesse sentido. Concessão parcial da ordem.

No que diz respeito à “Gratificação pelo Exercício Cumulado de Jurisdição ou


Acumulação de Acervo Processual”, sustenta o recorrente que (fl. 358):

[...] a despeito da inegável classificação da pretendida verba remuneratória


como pro labore faciendo, não é essa a tese que deverá prosperar no caso dos
autos, fazendo-se mister, de pronto, a reforma do V. acórdão para a retomada do
pagamento da referida verba remuneratória em benefício do juiz recorrente, que
teve período de gozo de licença para capacitação profissional.

Nesse sentido, argumenta que a ilegalidade do ato apontado como coator


reside nas seguintes premissas, in verbis (fls. 358/359):

(i) A impossibilidade de se suprimir vantagem remuneratória percebida por


juiz togado em descumprimento ao devido processo legal;
(ii) A inviabilidade de se criar limitações ao recebimento de gratificação
regulamentar; prevista em lei por intermédio de portaria
(iii) Impedimento à subtração de vantagem remuneratória devida a magistrado,
única e exclusivamente, em decorrência do gozo de licença para aperfeiçoamento
profissional, haja vista que considerados os dias de afastamento por quaisquer
licenças legalmente instituídas como de efetivo exercício de jurisdição.

Quanto ao primeiro ponto, assevera que a suspensão do pagamento


da gratificação de acumulação de acervo processual bem como a ordem de
descontos retroativos “ocorre[ram] de forma repentina, sem ter-lhe sido facultado
o exercício do contraditório e da ampla defesa”, haja vista que “não houve qualquer
intimação prévia ao recorrente, para que ele pudesse apresentar suas razões, tendo
sido proferida apenas a decisão repentina para que fosse suspensa sua gratificação, o
que é vedado tanto em via de processos administrativos, quanto em vias de processos
judiciais” (fl. 359).
Em relação ao segundo ponto, afirma que (fl. 360):

[...] o ilegítimo decréscimo na remuneração mensal a que faz jus o juiz


recorrente afronta ainda, diametralmente, o princípio mor da regência da atuação
da Administração Pública, qual seja o da legalidade, na medida em que susta o
pagamento de gratificação remuneratória prevista em lei com fundamento em
limitação imposta por Portaria Regulamentadora que, diga-se de passagem, foge
à competência da Presidência do TJSE, e inova irregularmente o ordenamento
jurídico.

RSTJ, a. 34, (265): 137-219, Janeiro/Março 2022 165


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Segue aduzindo que a autoridade impetrante, a pretexto de regulamentar a


Lei Complementar Estadual 327/2019, criadora da aludida gratificação, inseriu
“novo pré-requisito para o recebimento da referida vantagem remuneratória, qual
seja o exercício efetivo de jurisdição, restringindo a sua hipótese de concessão, com base
em critérios não antes previstos na sua lei de regência” (fl. 360).
Daí asserir que (fl. 362):

[...] a questionada Portaria n. 05/2020, ao condicionar o pagamento da


gratificação de acumulação de acervo processual ao efetivo exercício da atividade
jurisdicional, por parte do magistrado, em clarividente inovação aos critérios
legais indispensáveis ao percebimento da citada vantagem remuneratória, fere
o princípio da legalidade, visto que restringe as suas hipóteses de incidência, na
clara tentativa de excluir os magistrados em gozo de férias e de licenças, quando
não há previsão nesse sentido na lei estadual que disciplina a matéria.

No que concerne ao terceiro e último ponto, defende o autor que o mero


fato de a gratificação de acumulação de acervo processual se caracterizar como
uma vantagem propter laborem et pro labore faciendo, por si só, não autoriza a
suspensão de seu pagamento no caso concreto. Isso porque “o gozo da licença ou
férias oportuniza a percepção da gratificação porque compreendido pelo ordenamento
jurídico vigente como se estivesse em pleno exercício da atividade extraordinária,
sobretudo no caso de Magistrados, tendo em vista que são acobertados por garantias
e prerrogativas, a exemplo da inamovibilidade, da vitaliciedade e da estabilidade
financeira” (fl. 364).
E complementa (fl. 364):

É de se ressaltar que a própria Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Lei


Complementar n. 35 de 1979) prescreve, em seu art. 73, que as causas de
afastamento do magistrado, por justo motivo, não podem representar subtração
de seus vencimentos e vantagens remuneratórias legalmente concedidas.
[...]
Ou seja, resta mais do que evidenciada a ilegalidade e abusividade do ato
coator, como demonstrado em sede de mandado de segurança, notadamente
quando, em manifesta infração ao devido processo legal e com base em portaria
regulamentar que institui restrição ao exercício de direito previsto em lei, em
nítido transbordo do seu poder regulamentar, impõe suspensão do pagamento
da gratificação de acumulação de acervo processual em desfavor do magistrado
recorrente que, mesmo afastado por concessão de licença para capacitação
profissional, se encontra, nos termos da lei, em efetivo exercício de sua atividade
jurisdicional. Indiscutível, portanto, o surgimento do direito subjetivo, líquido e

166
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA

certo, em favor do juiz de direito recorrente, de pleitear, amparado na estabilidade


financeira que lhe é conferida por lei quando afastado de suas atividades por
justo motivo, o restabelecimento do pagamento da gratificação de acumulação
de acervo processual que lhe é devida, inclusive com efeitos retroativos, com
a consequente restituição d os valores indevidamente descontados de sua
remuneração mensal , razão pela qual merece reforma o V. acórdão recorrido.

De outro lado, aponta a existência de “fato novo, consistente na publicação, no


DJ, em 1 de julho de 2021, da Portaria Normativa n. 52/2021 – GP1 (que Altera
a Portaria n. 76/2019 GP1, que estabelece a forma de pagamento da gratificação
por exercício cumulativo de jurisdição ou de acervo processual, no âmbito do Poder
Judiciário do Estado de Sergipe)” (fl. 368).
Segundo o recorrente (fl. 369):

[...] as alterações advindas com a publicação da referida Portaria Normativa n.


52/2021 – GP1, em conformidade com a Recomendação do CNJ, proporcionam o
pagamento da gratificação de acervo e cumulação de unidade jurisdicional para
os períodos ainda mais amplos, como de gozo de férias e afastamentos legais,
para juízes designados exclusivamente para realização de audiências custódia e
outras hipóteses, por exemplo.
Isto é, a edição normativa supracitada reafirma a lógica da interpretação
conjunta das normas que consagram a estabilidade financeira da magistratura e
disciplinam as causas legais de afastamento da atividade jurisdicional, afastando-
se da intenção legislativa de impedir a subtração remuneratória ao magistrado
que, em que pese afastado de suas funções jurisdicionais, permanece em exercício
efetivo do seu mister, impondo-se, nesses termos, interpretar extensivamente a
norma positivada em âmbito Estadual.
Ou seja, a edição e publicação da referida Portaria Normativa n. 52/2021 – GP1
pelo E. Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe em 1 de julho de 2021, inclusive
em momento posterior à prolação do próprio V. acórdão recorrido, acabou por
reforçar ainda mais a tese de que as verbas remuneratórias percebidas pelo
magistrado recorrente, a título de direção de fórum e acumulação de acervo
processual, apesar de classificadas juridicamente como gratificações pro labore
fadando, devem continuar a integrar os vencimentos mensais de juiz afastado
para fins de aperfeiçoamento profissional, circunstância prevista em lei que não
tem o condão de afetar a estabilidade financeira da magistratura.
Diz-se circunstância prevista em lei, porque não é novidade alguma o fato de
que o art. 73 da LOMAN é expresso no sentido de que:
[...]
Veja-se que é de se ressaltar, diferentemente do que defende a Eminente
Presidência do TJSE, a prevalência da LOMAN, no caso concreto, em detrimento

RSTJ, a. 34, (265): 137-219, Janeiro/Março 2022 167


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

de Lei Estadual ou de Portarias e Resoluções infra legais, posto que, apesar de


anterior à Carta Magna de 1988, aquele diploma normativo foi recepcionado pelo
legislador constituinte, através do art. 93, caput, da CF, a representar, nos termos
da jurisprudência da Suprema Corte, verdadeiro estatuto orgânico do Poder
Judiciário.
[...]
Desse modo, não pode a LOMAN, lei complementar de caráter nacional, ser
derrogada, no caso dos autos, por estadual ou normativos do E. Tribunal de
Justiça do Estado de Sergipe, sendo notável que o advento da Portaria Normativa
n. 52/2021 – GP1, que Altera a Portaria n. 76/2019 GP1, que estabelece a forma
de pagamento da gratificação por exercício cumulativo de jurisdição ou de
acervo processual, no âmbito do Poder Judiciário do Estado de Sergipe reforça a
necessidade de uma interpretação mais extensiva do caso ora tratado, em atenção,
inclusive, à exclusão apenas nas hipóteses previstas no art. 4º da Resolução TJSE n.
2 22/2019, sendo devida a gratificação nos caso dos autos, notadamente porque,
segundo Luís Eduardo Schoueri, “as ordens jurídicas parciais devem conformar-se
à ordem jurídica nacional na qual se inserem”.

Já em relação à retribuição financeira pelo exercício de direção do fórum, o


recorrente se manifesta no sentido de que a ela se estendem os argumentos antes
elencados para a manutenção “Gratificação pelo Exercício Cumulado de Jurisdição
ou Acumulação de Acervo Processual”, acrescentando, outrossim, que (fls. 365/366):

[...] no caso dos autos, não se pode excluir o pagamento da verba remuneratória
em questão ao magistrado afastado para cursar doutorado em direito, a pretexto
de uma intepretação restritiva das normas de direito público – abalizadas pelo
princípio da legalidade estrita –, até porque a legalidade estrita não pode ser
empregada para relativizar a prerrogativa de estabilidade financeira conferida à
magistratura, vide art. 73, inciso I, da LOMAN.
Isto é, deve ser considerada, ao contrário do que restou consignado no V.
acórdão, como ilegal e abusiva subtração da gratificação pelo exercício de direção
de fórum da remuneração mensal do juiz estadual recorrente, notadamente
levando-se em consideração a inafastável interpretação extensiva que deve
ser conferida ao art. 1º, § 5º, da Lei Complementar Estadual n. 129/2006, a fim
de abarcar também a hipótese de gozo de licença para fins de capacitação
profissional como legítima causa de afastamento de magistrado do exercício
efetivo de suas atividades, com manutenção do pagamento da referenciada
vantagem remuneratória.
Assim, a fim de melhor adequar a aplicação do ordenamento jurídico,
especialmente nas situações em que se pretende fazer valer a proteção de
um direito individual frente ao Poder Estatal, como no caso da salvaguarda
da estabilidade financeira conferida à magistratura, exsurge como técnica

168
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA

hermenêutica adequada a interpretação extensiva, que determina que o


conteúdo e alcance da lei estejam insuficientemente expressos no texto
normativo, ou seja, a lei teria dito menos do que queria.
E é justamente com base nessa premissa, de que a norma posta no art. 1º,
§ 5º, da Lei Complementar Estadual n. 129/2006, ao excepcionar tão somente
as hipóteses de concessão de férias, de licença para tratamento de saúde e
licença maternidade como únicas modalidades de afastamento de magistrado do
exercício da atividade jurisdicional que permitem a manutenção do pagamento
de gratificação pelo exercício de direção de fórum, excluindo, a priori, desse
tratamento legal a licença para capacitação profissional, disse menos do que o
que gostaria, na medida em que, dada a equiparação legal de todas essas justas
causas de afastamento de julgador consagradas pela LOMAN, não podendo
nenhuma delas importar em redução da remuneração do juiz afastado, e a
importância conferida ao aperfeiçoamento profissional dos magistrados para a
própria desenvoltura do exercício jurisdicional por parte do Estado, deve a licença
para capacitação de juiz, via interpretação extensiva, ser incluída no rol previsto
cotejado art. 1º, § 5º, da Lei Complementar Estadual n. 129/2006.

Por fim, requer o provimento do recurso a fim de que seja reformado o


acórdão recorrido e integralmente concedida a segurança.
Contrarrazões às fls. 389/400.
O Ministério Público Federal, em manifestação do ilustre Subprocurador-
Geral da República Mario Jose Gisi, entendeu pela desnecessidade da intervenção
ministerial (fls. 431/433).
É o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Sérgio Kukina (Relator): Como relatado, cuida-se de


recurso em mandado de segurança interposto por Paulo Roberto Fonseca Barbosa
contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe que denegou o
subjacente writ, no que tange ao pedido de manutenção do pagamento das
vantagens denominadas “Retribuição por Direção de Fórum” e “Gratificação pelo
Exercício Cumulado de Jurisdição ou Acumulação de Acervo Processual”, no período
de 20/12/2019 a 19/9/2020, durante o qual o magistrado impetrante gozava
de licença para participar de curso de doutorado no exterior, concedendo,
no entanto, em parte a ordem apenas para isentá-lo de devolver os valores
anteriormente recebidos de boa-fé.

RSTJ, a. 34, (265): 137-219, Janeiro/Março 2022 169


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

De início, verifica-se que a tese de nulidade do ato administrativo


atacado, por ausência do devido processo legal, em que fossem assegurados ao
impetrante a ampla defesa e o contraditório, confunde-se com o próprio mérito
da impetração, motivo pelo qual serão examinados em conjunto.
Pois bem.
Extrai-se dos autos ser incontroverso, porquanto alegado tanto pela
autoridade impetrada quanto pelo Estado de Sergipe, sem que fosse refutado pelo
imperante, o fato de que (fl. 204):

[...] nunca houve decisão ou ato da Presidência gratificações do TJ/SE


determinando o pagamento das referidas em favor do Impetrante. Na verdade,
houve um ao as equívoco por parte da Divisão de Pagamento do Tribunal
materializar os ditames das normas legais que instituíram verbas.
Tal distorção foi regularizada por determinação da da Presidência, no exercício
regular da o atuação administrativa, e qual teve imediato conhecimento
magistrado, conforme e-mails constantes do Processo Administrativo (SEI) n.
0001521-18.2020.8.25.8825. Ato contínuo, após a ciência da decisão, o impetrante
apresentou sua defesa conforme fls. 58/67 do feito materializado.

A gratificação em tela foi criada pela Lei Complementar Estadual


327/2019, nos seguintes termos:

Art. 1º O inciso VIII do “caput” do art. 1º da Lei Complementar n. 129, de 21 de


julho de 2006, com alterações introduzidas pelas Leis Complementares n. 132, de
30 de outubro de 2006, n. 178, de 21 de dezembro de 2009, n. 221, de 04 de maio
de 2012, n. 239, de 04 de abril de 2014, n. 276, de 18 de novembro de 2016 e n.
306 de 05 de julho de 2018, passa a vigorar com a seguinte redação:

Art. 1º...
I –...
...........................................................................................
VIII – Gratificação pelo exercício cumulativo de jurisdição ou acumulação
de acervo processual, que o magistrado deve perceber em importância
não superior a 1/3 (um terço) do subsídio para cada mês de atuação, a ser
paga proporcionalmente em caso de período inferior, observado o teto
remuneratório constitucional;
............................................................................................

Art. 2º A regulamentação do inciso VIII do “caput” do art. 1º da Lei Complementar


n. 129, de 21 de julho de 2006, com a redação dada na forma do art. 1º desta Lei

170
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA

Complementar, deve ocorrer por meio de Resolução do Tribunal de Justiça do


Estado de Sergipe.
(Grifos nossos)

Calha anotar que a controvérsia em tela diz respeito ao pagamento de


vantagem de natureza propter laborem, como consignado no acórdão recorrido e
admitido pelo próprio impetrante, em suas razões recursais.
Ora, em sendo inerente a tal espécie de vantagem que seu pagamento tem
por pressuposto o efetivo “exercício cumulativo de jurisdição ou acumulação de
acervo processual”, a ser paga “para cada mês de atuação”, conclui-se que a ausência
desses requisitos legais autoriza a que Administração, de imediato, faça cessar
seu pagamento, sem a necessidade da prévia abertura de processo administrativo,
mormente por não se cuidar de ato sancionador.
De toda sorte, cumpre acrescentar que, ao contrário do alegado pelo
ora recorrente, teve ele oportunidade de se insurgir contra a suspensão da
gratificação, de modo a apresentar à autoridade impetrada as razões pelas quais
entendia necessária a manutenção daquela vantagem, conforme se extrai do
Processo Administrativo (SEI) n. 0001521-18.2020.8.25.8825 (fls. 85/132).
Por sua vez, também não há falar em ofensa ao princípio da legalidade,
pois a cessação do pagamento da gratificação em tela não decorreu de eventual
limitação imposta por portaria regulamentadora, mas do fato de que os
pressupostos legais para seu pagamento não mais estavam presentes no caso
concreto.
De outra parte, não se extrai do art. 73 da LOMAN comando normativo
capaz de assegurar ao recorrente a manutenção da gratificação pleiteada.
Referido diploma legal assim dispõe, in litteris:

Art. 73 - Conceder-se-á afastamento ao magistrado, sem prejuízo de seus


vencimentos e vantagens:
I - para frequência a cursos ou seminários de aperfeiçoamento e estudos, a
critério do Tribunal ou de seu órgão especial, pelo prazo máximo de dois anos;
II - para a prestação de serviços, exclusivamente à Justiça Eleitoral;
III - para exercer a presidência de associação de classe.

Conquanto esse dispositivo legal estabeleça que o afastamento do


magistrado para “frequência a cursos ou seminários de aperfeiçoamento e estudos”
deverá ser concedido “sem prejuízo de seus vencimentos e vantagens”, tal regra não

RSTJ, a. 34, (265): 137-219, Janeiro/Março 2022 171


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

tem o condão de alcançar as vantagens de caráter eventual e de natureza proper


laborem, como é o caso da gratificação criada pela Lei Complementar Estadual
327/2019.
Tal compreensão, inclusive, está em harmonia com o estabelecido pelo
Conselho Nacional de Justiça, precisamente em sua Resolução n. 13/2006 (que
“Dispõe sobre a aplicação do teto remuneratório constitucional e do subsídio mensal dos
membros da magistratura”). Observe-se:

Art. 5º As seguintes verbas não estão abrangidas pelo subsídio e não são por
ele extintas:
I - de caráter permanente: retribuição pelo exercício, enquanto este perdurar,
em comarca de difícil provimento;
II - de caráter eventual ou temporário:
a) exercício da Presidência de Tribunal e de Conselho de Magistratura, da Vice-
Presidência e do encargo de Corregedor;
b) investidura como Diretor de Foro;
c) exercício cumulativo de atribuições, como nos casos de atuação em comarcas
integradas, varas distintas na mesma Comarca ou circunscrição, distintas
jurisdições e juizados especiais;
d) substituições;
e) diferença de entrância;
f ) coordenação de Juizados;
g) direção de escola;
h) valores pagos em atraso, sujeitos ao cotejo com o teto junto com a
remuneração do mês de competência;
i) exercício como Juiz Auxiliar na Presidência, na Vice-Presidência, na
Corregedoria e no Segundo Grau de Jurisdição;
j) participação em Turma Recursal dos Juizados Especiais.
Parágrafo único. A soma das verbas previstas neste artigo com o subsídio
mensal não poderá exceder os tetos referidos nos artigos 1º e 2º, ressalvado o
disposto na alínea “h” deste artigo.
(Grifos nossos)

Pela leitura da LCE 327/2019 pode-se inferir que a “Gratificação pelo


exercício cumulativo de jurisdição ou acumulação de acervo processual”, objeto
da presente impetração, abrange algumas das verbas classificadas como de
caráter eventual elencadas no inciso II do artigo 5º da Resolução n. 13/2006,

172
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA

enquadrando-se nas alíneas c (exercício cumulativo de atribuições) e d


(substituições), o que também evidencia o indiscutível caráter de contraprestação
à atividade suplementar atribuída ao magistrado.
Nessa linha de entendimento, apresenta-se de todo irrelevante para o
deslinde da controvérsia o alegado fato novo deduzido pelo recorrente,
consubstanciado na edição da Portaria Normativa n. 52/2021 - GP1, pela
singela razão de que tal espécie de ato infralegal não tem o condão de se
sobrepor aos ditames contidos expressamente na Lei Complementar Estadual
327/2019.
Também, melhor sorte não socorre ao recorrente no que tange à retribuição
para o exercício da Direção do Fórum, prevista na Lei Complementar Estadual
239/2014 (fls. 73/74):

Art. 1º O art. 1º da Lei Complementar n. 129, de 21 de julho de 2006, passa a


vigorar com as seguintes alterações:

Art. 1º...
VIII — retribuição de 10% (dez por cento) do valor do respectivo subsídio
mensal, quando substituir respondendo cumulativamente com o exercício
da jurisdição que titulariza;
IX — retribuição de 5% (cinco por cento) do valor do respectivo subsídio
mensal pelo exercício da Direção do Fórum.
............................................................................................
§ 4º As vantagens descritas nos incisos III e IV não são acumuláveis com
aquela prevista no inciso VIII, prevalecendo, todavia, o maior percentual,
quando mais de uma situação vier a ocorrer.
§ 5º A retribuição de que trata o inciso IX não será devida nos afastamentos,
salvo nos casos de férias, licença-maternidade, licenças para tratamento da
própria saúde ou de pessoa da família, ou outros afastamentos inferiores a dez
dias.
§ 6º A retribuição descrita no inciso IX também não será devida em
relação aos Fóruns Distritais e nas substituições inferiores a dez dias. (NR)

Art. 2º As despesas decorrentes da aplicação desta Lei Complementar devem


correr à conta das dotações consignadas no Orçamento do Estado de Sergipe
para o Poder Judiciário.
[...]
(Grifos nossos)

RSTJ, a. 34, (265): 137-219, Janeiro/Março 2022 173


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Da leitura desse dispositivo legal c/c o art. 5º, II, b, da Resolução/CNJ


n. 13/2006, acima transcrita, extrai-se que a retribuição financeira em questão
também possui caráter eventual e temporário, na medida em que vinculada ao
exercício da Direção do Fórum pelo magistrado designado.
Ressalta-se, ainda, que, existindo previsão legal expressa no sentido de
que o pagamento da referida vantagem somente seria devido nos casos de
afastamentos vinculados a “férias, licença-maternidade, licenças para tratamento
da própria saúde ou de pessoa da família, ou outros afastamentos inferiores a dez
dias”, torna-se inviável estender tal comando normativo à hipótese ali não
contemplada, ante a necessidade de reverência ao princípio de hermenêutica
segundo o qual “não compete ao intérprete distinguir onde o legislador, podendo, não
o fez, sob pena de violação do postulado da separação dos poderes” (AgInt no REsp
1.609.787/RS, Rel. Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, DJe 10/11/2017).
Ante o exposto, nego provimento ao recurso em mandado de segurança.
É como voto.

RECURSO ESPECIAL N. 1.222.547-RS (2010/0213489-0)

Relatora: Ministra Regina Helena Costa


Recorrente: Vonpar Refrescos S/A
Advogados: Gustavo Nygaard e outro(s) - RS029023
Rafael Mallmann - RS051454
Bruno Rodrigues Teixeira de Lima - DF031591
Recorrido: Fazenda Nacional
Procurador: Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional

EMENTA

Processual Civil. Tributário. Recurso especial. Código de Processo


Civil de 1973. Aplicabilidade. Violação ao art. 535 do CPC/1973.
Não ocorrência. IRPJ. CSLL. Base de cálculo. Incentivo fiscal.
Regime especial de pagamento do ICMS. PRODEC. Pretensão de
caracterização como renda ou lucro. Pacto federativo. Impossibilidade.

174
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA

I - Consoante o decidido pelo Plenário desta Corte, na sessão


realizada em 09.03.2016, o regime recursal será determinado pela data
da publicação do provimento jurisdicional impugnado. Aplica-se, in
casu, o Código de Processo Civil de 1973.
II - O Tribunal de origem apreciou todas as questões relevantes
apresentadas com fundamentos suficientes, mediante apreciação da
disciplina normativa e cotejo ao posicionamento jurisprudencial
aplicável à hipótese. Inexistência de omissão.
III - Configura ilegalidade exigir, das empresas submetidas ao
regime especial de pagamento do Programa de Desenvolvimento da
Empresa Catarinense - PRODEC, a integração, à base de cálculo
do IRPJ e da CSLL, do montante obtido com o incentivo fiscal
outorgado pelo Estado de Santa Catarina, qual seja, o “[...] pagamento
diferido do ICMS, relativo a 60% sobre o incremento resultante pelo
estabelecimento da empresa naquele Estado-membro, e que será
adimplido no 36º mês, sem correção monetária, sendo devidos apenas
juros simples anuais de 4% (quatro por cento) [...]”.
IV - Ao considerar tal soma como lucro, o entendimento
manifestado pelo Fisco (Ato Declaratório Interpretativo SRF n.
22/2003), sufraga, em última análise, a possibilidade de a União
retirar, por via oblíqua, o incentivo fiscal que o Estado-membro, no
exercício de sua competência tributária, outorgou.
V - Tal orientação leva ao esvaziamento ou redução do incentivo
fiscal legitimamente outorgado pelo ente federativo, em especial
porque fundamentado exclusivamente em ato infralegal.
VI - O modelo federativo abraça a concepção segundo a qual
a distribuição das competências tributárias decorre dessa forma de
organização estatal e por ela é condicionada.
VII - Em sua formulação fiscal, revela-se o princípio federativo
um autêntico sobreprincípio regulador da repartição de competências
tributárias e, por isso mesmo, elemento informador primário na
solução de conflitos nas relações entre a União e os demais entes
federados.
VIII - A Constituição da República atribuiu aos Estados-
membros e ao Distrito Federal a competência para instituir o ICMS

RSTJ, a. 34, (265): 137-219, Janeiro/Março 2022 175


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

e, por consequência, outorgar isenções, benefícios e incentivos fiscais,


atendidos os pressupostos de lei complementar.
IX - A concessão de incentivo por ente federado, observados
os requisitos legais, configura instrumento legítimo de política fiscal
para materialização da autonomia consagrada pelo modelo federativo.
Embora represente renúncia a parcela da arrecadação, pretende-
se, dessa forma, facilitar o atendimento a um plexo de interesses
estratégicos para a unidade federativa, associados às prioridades e às
necessidades locais coletivas.
X - A tributação pela União de valores correspondentes a
incentivo fiscal estimula competição indireta com o Estado-membro,
em desapreço à cooperação e à igualdade, pedras de toque da Federação.
XI - Não está em xeque a competência da União para tributar a
renda ou o lucro, mas, sim, a irradiação de efeitos indesejados do seu
exercício sobre a autonomia da atividade tributante de pessoa política
diversa, em desarmonia com valores éticos-constitucionais inerentes
à organicidade do princípio federativo, e em atrito com o princípio
da subsidiariedade, que reveste e protege a autonomia dos entes
federados.
XII - O abalo na credibilidade no programa estatal proposto
pelo Estado-membro acarreta desdobramentos deletérios no campo
da segurança jurídica, os quais não podem ser desprezados, porquanto,
se o propósito da norma consiste em descomprimir um segmento
empresarial de determinada imposição fiscal, é inegável que o
ressurgimento do encargo, sob outro figurino, resultará no repasse dos
custos adicionais às mercadorias.
XIII - A base de cálculo do tributo haverá sempre de guardar
pertinência com aquilo que pretende medir, não podendo conter
aspectos absolutamente impertinentes à própria materialidade contida
na hipótese de incidência.
XIV - A 1ª Seção deste Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o
EREsp n. 1.443.771/RS, assentou que o crédito presumido de ICMS,
a par de não se incorporar ao patrimônio da contribuinte, não constitui
lucro, base imponível do IRPJ e da CSLL, sob o entendimento
segundo o qual a concessão de incentivo por ente federado, observados

176
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA

os requisitos legais, configura instrumento legítimo de política fiscal


para materialização da autonomia consagrada pelo modelo federativo.
Axiologia da ratio decidendi que afasta, igualmente, a pretensão de
caracterização, como renda ou lucro, de montante outorgado, de igual
forma, no contexto de incentivo fiscal relativo ao ICMS, o qual fora
estabelecido, neste caso, no bojo do Programa de Desenvolvimento da
Empresa Catarinense - PRODEC.
XV - Recurso Especial provido.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas,


acordam os Ministros da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça,
prosseguindo o julgamento, após o voto-vista do Sr. Ministro Gurgel de Faria,
por unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto da
Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Gurgel de Faria (voto-vista), Manoel
Erhardt (Desembargador convocado do TRF-5ª Região), Benedito Gonçalves
(Presidente) e Sérgio Kukina votaram com a Sra. Ministra Relatora.
Brasília (DF), 08 de março de 2022 (data do julgamento).
Ministra Regina Helena Costa, Relatora

DJe 16.3.2022

RELATÓRIO

A Sra. Ministra Regina Helena Costa: Trata-se de Recurso Especial


interposto pela Vonpar Refrescos S.A. contra acórdão prolatado, por unanimidade,
pela 2ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, no julgamento de
apelação, assim ementado (fl. 138e):

Tributário. IRPJ. CSLL. Subvenção para investimento. ICMS. Pagamento diferido.


Impossibilidade.
1. O pagamento diferido do ICMS não equivale a subvenção para investimento.
2. Os juros e as atualizações monetárias sujeitos à condição suspensiva, como
no caso do pagamento diferido do ICMS, configuram-se em incentivo sujeito à
condição resolutiva, pelo que há de aplicar o Ato Declaratório interpretativo SRF
n. 22/2003.

RSTJ, a. 34, (265): 137-219, Janeiro/Março 2022 177


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

3. Face à condição suspensiva desses juros e correção monetária, as despesas


não ocorreram ainda, pelo que não há como apropriar-se delas na apuração do
resultado.
4. Apelo desprovido.

Opostos Embargos de Declaração, foram parcialmente acolhidos “[...]


apenas para fins de prequestionamento” (fls. 149/153e; e fl. 151e).
Interposto Recurso Especial com amparo no art. 105, III, a, da Constituição
da República, a Recorrente aponta ofensa aos dispositivos a seguir relacionados,
alegando, em síntese:
I. Arts. 128, 460 e 535, II, do Código de Processo Civil – “[...] a sentença e
o acórdão não apreciaram todas as causas de pedir elencadas na inicial. Em sua
exordial, a ora recorrente sustentou seu pedido nas seguintes causas de pedir:
[...] b) Independentemente da condição acima ser suspensiva ou resolutiva,
incompatibilidade do ADI n. 22 com o art. 38, § 2º do DL 1598/77, com o
art. 443, I, do RIR/99, com o conceito doutrinário e legal (Lei das S/A) de
subvenção para investimento e com o benefício concedido pelo Estado de SC à
recorrente, pois: b.1) o conceito doutrinário de “subvenção para investimento” é
toda a vantagem fiscal concedida pelo Poder Público como contrapartida para a
implantação ou expansão de empreendimentos; b.2) o Decreto-Lei n. 1.598/77,
art. 38, § 2º, expressamente prevê que os valores ou vantagens concedidas pelo
Poder Público para estimular a implantação ou expansão de empreendimentos
econômicos, não integram o resultado tributável, devendo ser diretamente
contabilizados à conta de reserva de capital, não sendo, portanto, alcançado pelo
IRPJ e CSLL (conforme expressamente consta no art. 443, I, do RIR/99” (fls.
161/162e);
II. Arts. 125, 126, 127 e 128 do Código Civil – “[...] se suspensiva fosse
a condição, a Recorrente não teria o direito de recolher o ICMS diferido em
36 meses contados da data da ocorrência do fato gerador. Como ela possui tal
direito desde então, aplicam-se os arts. 119 do Código Civil de 1916 e 127
e 128 do atual Código Civil, de idêntico conteúdo normativo, nitidamente
contrariados pelo acórdão recorrido” (fl. 167e); e
III. Arts. 38, § 2º, do Decreto-Lei n. 1.598/1977 e 443, I, do RIR/1999
– “A dispensa de correção monetária e juros moratórios representa hipótese
de redução do imposto porque implicam na redução do montante do crédito
tributário decorrente da obrigação principal” (fl. 170e).

178
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA

Com contrarrazões, o recurso foi admitido (fls. 185/189e; e fls. 191/192e).


É o relatório.

VOTO

A Sra. Ministra Regina Helena Costa (Relatora):

I. Da admissibilidade do Recurso Especial

De acordo com o decidido pelo Plenário desta Corte, na sessão realizada


em 09.03.2016, o regime recursal será determinado pela data da publicação do
provimento jurisdicional impugnado. Assim sendo, in casu, aplica-se o Código
de Processo Civil de 1973.
Consigno que as questões federais debatidas se encontram satisfatoriamente
prequestionadas.
Ademais, o Recurso Especial acha-se hígido para julgamento, porquanto
presentes os pressupostos de admissibilidade e ausentes as questões prejudiciais
e/ou preliminares a serem apreciadas.
O exame da apontada pretensão não demanda reexame fático-probatório,
uma vez que todos os aspectos factuais e os processuais estão clara e
suficientemente delineados no acórdão recorrido.
O pronunciamento impugnado, por sua vez, dirimiu a mencionada
controvérsia baseado em fundamentos infraconstitucionais.

II. Do pleito de nulidade do acórdão recorrido por violação ao art. 535, II do


CPC/1973

No tocante às apontadas omissões do acórdão recorrido acerca de todas


as causas de pedir elencadas na exordial da presente demanda, destaco que o
tribunal de origem enfrentou a controvérsia apresentada de forma satisfatória,
mediante apreciação da disciplina normativa e cotejo ao posicionamento
jurisprudencial aplicável.
Denota-se não haver omissão, contradição ou obscuridade no julgado
impugnado, mas mera insistência recursal da Recorrente, que não se coaduna
com as hipóteses do art. 535 do CPC/1973.
Haverá contrariedade ao art. 535 do estatuto processual civil – norma,
repita-se, vigente por ocasião do julgamento na origem – quando a contradição/

RSTJ, a. 34, (265): 137-219, Janeiro/Março 2022 179


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

omissão disser respeito à/ao fundamentação exposta/pedido, e não quando os


argumentos invocados não restarem estampados no julgado, como pretende a
Recorrente.
Ademais, o órgão jurisdicional não fica obrigado a responder um a
um os questionamentos da parte se já encontrou motivação suficiente para
fundamentar a decisão, sobretudo se notório o caráter de infringência (cf. Corte
Especial, EDcl no AgInt nos EREsp n. 703.188/SP, Rel. Ministro Napoleão
Nunes Maia Filho, julgado em 10/09/2019).
Não se verifica, portanto, omissão acerca de questão essencial ao deslinde
da controvérsia e oportunamente suscitada, tampouco de outro vício a impor a
anulação do julgado.

III. Delimitação da controvérsia

A Vonpar Refrescos S.A., ora Recorrente, pretende “[...] que os ganhos


obtidos mediante incentivo fiscal concedido pelo Estado de Santa Catarina,
através do Programa de Desenvolvimento da Empresa Catarinense - PRODEC,
sejam considerados como subvenção para investimento, de modo a não sofrer
incidência do imposto sobre a renda e de contribuição social sobre tais valores”
(fl. 133e do acórdão recorrido).
Discute-se, portanto, se tal regime especial de pagamento de imposto
estadual, consistente no adimplemento “[...] diferido do ICMS, relativo a 60%
sobre o incremento resultante pelo estabelecimento da empresa naquele Estado-
membro, e que será adimplido no 36º mês, sem correção monetária, sendo
devidos apenas juros simples anuais de 4% (quatro por cento) [...]”, constitui
lucro, base imponível do IRPJ e da CSLL.
Antes de delinear o ponto central para o adequado enfrentamento da
controvérsia no contexto jurisprudencial atual, cumpre detalhar, brevemente, os
contornos nos quais exsurge o montante objeto da tributação federal.

IV. Do regime especial de pagamento do ICMS no âmbito do Programa de


Desenvolvimento da Empresa Catarinense - PRODEC

A integração, à base de cálculo do IRPJ e da CSLL, do montante obtido


com o incentivo outorgado pelo Estado de Santa Catarina no bojo do Programa
de Desenvolvimento da Empresa Catarinense - PRODEC, impõe a análise
da natureza do “[...] pagamento diferido do ICMS, relativo a 60% sobre o

180
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA

incremento resultante pelo estabelecimento da empresa naquele Estado-


membro, e que será adimplido no 36º mês, sem correção monetária, sendo
devidos apenas juros simples anuais de 4% (quatro por cento) [...]”.
A rigor, cuida-se de desoneração fiscal, uma vez que o Estado de Santa
Catarina efetivamente promoveu alívio fiscal à empresa produtora Recorrente,
desobrigando-a do adimplemento no vencimento em data ordinária, bem ainda
de parte dos juros moratórios aplicáveis, e da integralidade da soma relativa à
incidência de correção monetária do período.
Ensina Roque Antônio Carrazza que os incentivos distinguem-se de
benefícios fiscais, porquanto estes últimos “[...] são concedidos ‘de mão beijada’,
isto é, sem que o contribuinte tenha que fazer algo, em favor do Estado, para
usufruí-los” (Curso de Direito Constitucional. 30ª ed. São Paulo: Malheiros, 2015.
p. 1.035).
Diversamente, no caso de incentivo fiscal, a tônica do instituto é
sinalagmática. Na espécie, há previsão de contrapartida do segmento empresarial
contemplado – no caso, a implementação de “[...] projeto de expansão com
aumento da capacidade atual de produção da linha PET, passando de 1.366.820
hectolitros/ano de refrigerantes para 3.018.730 hectolitros/ano [...]” (fl. 30e).
Isso considerado, conquanto o debate tenha sido travado, até o momento,
em torno da categorização do incentivo fiscal em tela, o ponto a ser desvendado,
em verdade, diz com o cabimento, diante do pacto federativo, da tributação da
apontada ação indutora de comportamento de empresa do setor produtivo, a
qual se dá por meio de desoneração relativa ao ICMS.

V. A incidência de Imposto sobre a Renda - IR e Contribuição Social Sobre o


Lucro Líquido - CSLL no âmbito da outorga de incentivo fiscal de ICMS à luz do
contexto federativo

A Constituição da República contempla o Imposto sobre a Renda dentre


aqueles de competência da União, acrescentando que “será informado pelos
critérios da generalidade, da universalidade e da progressividade, na forma da
lei”; e, de igual modo, a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido - CSLL
encontra-se inserida no âmbito da União:

Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre:


[...]
III - renda e proventos de qualquer natureza;

RSTJ, a. 34, (265): 137-219, Janeiro/Março 2022 181


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

[...]
§ 2º O imposto previsto no inciso III:
I - será informado pelos critérios da generalidade, da universalidade e da
progressividade, na forma da lei;
[...]
Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de
forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos
orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das
seguintes contribuições sociais:
I - do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei,
incidentes sobre:
[...]
c) o lucro;
[...]

Vale recordar que a competência tributária consiste na aptidão para


instituir tributos, descrevendo, por meio de lei, as suas hipóteses de incidência.
No Brasil, o veículo de atribuição de competências, inclusive tributárias, é a
Constituição da República. Tal sistemática torna-se especialmente relevante em
um Estado constituído sob a forma federativa, com a peculiaridade do convívio
de três ordens jurídicas distintas: a federal, a estadual/distrital e a municipal.
Não por outra razão, cuidou o legislador constituinte originário de alçar
a Federação à categoria de cláusula pétrea, tornando-a intangível pelo Poder
Constituinte Derivado, conforme o disposto no art. 60, § 4º, I. Daí porque,
na dicção de Geraldo Ataliba, “[...] tanto o princípio republicano quanto o
federal são postos como regras supraconstitucionais, princípios super-rígidos,
pedras basilares de todo o sistema”, e “obrigam todos os intérpretes, desde o
primeiro – lógica e cronologicamente (Biscaretti), o legislador – até o último
– o judicial –, a submeterem às suas exigências todos os demais princípios e
regras constitucionais e, com maior razão, infraconstitucionais” (República e
Constituição. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 45).
Como sabido, o princípio republicano, assim como o princípio da legalidade,
constitui decorrência do princípio da segurança jurídica, que se apoia nas ideias
de certeza e igualdade.
No modelo federativo fiscal, a Constituição dita o que pode cada pessoa
política realizar em matéria tributária, demarcando os respectivos âmbitos de

182
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA

atuação, no intuito de evitar conflitos entre a União, os Estados-membros, o


Distrito Federal e os Municípios.
O modelo federativo por nós adotado abraça a concepção segundo a qual
a distribuição das competências tributárias decorre dessa forma de organização
estatal e por ela é condicionada.
A rigor, em sua formulação fiscal, revela-se o princípio federativo um
autêntico sobreprincípio regulador da repartição de competências tributárias
e, por isso mesmo, elemento informador primário na solução de conflitos nas
relações entre a União e os demais entes federados.
Como corolário desse fracionamento de competências, o art. 155, XII, g, da
Constituição da República, atribuiu aos Estados-membros e ao Distrito Federal
a competência para instituir o ICMS – e, por consequência, outorgar isenções,
benefícios e incentivos fiscais, atendidos os pressupostos de lei complementar.
Saliente-se tratar-se de tributo que, por constituir uma das principais fontes
de receita para custeio do aparato estatal daquelas pessoas políticas, assegura
condições para o exercício desembaraçado da autonomia constitucionalmente
conferida às unidades da Federação.
A concessão de incentivo por Estado-membro ou pelo Distrito Federal,
observados os requisitos legais, configura, portanto, instrumento legítimo de
política fiscal para materialização dessa autonomia consagrada pelo modelo
federativo. Embora represente renúncia à parcela da arrecadação, pretende-se,
dessa forma, facilitar o atendimento a um plexo de interesses estratégicos para
a unidade federativa, associados às prioridades e às necessidades locais coletivas.
Cabe lembrar, outrossim, que a Constituição da República hospeda
vários dispositivos dedicados a autorizar certos níveis de ingerência estatal na
atividade produtiva com vista a reduzir desigualdades regionais, alavancar o
desenvolvimento social e econômico do país, inclusive mediante desoneração ou
diminuição da carga tributária.
São exemplos dessas diretrizes constitucionais, de relevância para a análise
do caso em tela, as previsões inseridas nos arts. 3º, (“Constituem objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil: [...] III - erradicar a pobreza
e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”); 151, I
(“É vedado à União: I - instituir tributo que não seja uniforme em todo o
território nacional ou que implique distinção ou preferência em relação a
Estado, ao Distrito Federal ou a Município, em detrimento de outro, admitida a

RSTJ, a. 34, (265): 137-219, Janeiro/Março 2022 183


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

concessão de incentivos fiscais destinados a promover o equilíbrio do desenvolvimento


socioeconômico entre as diferentes regiões do País” – destaquei), e 155, § 2º, XII,
alíneas e, f e g (“Cabe à lei complementar: [...] e) excluir da incidência do
imposto [ICMS], nas exportações para o exterior, serviços e outros produtos
além dos mencionados no inciso X, a; f ) prever casos de manutenção de crédito,
relativamente à remessa para outro Estado e exportação para o exterior, de
serviços e de mercadorias; g) regular a forma como, mediante deliberação dos
Estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão
concedidos e revogados”).
A questão exige a observância de valores ético-constitucionais da Federação,
limitadores do próprio exercício dessa competência, como também pelo princípio da
subsidiariedade, fator de salvaguarda da autonomia dos entes federados perante a
atividade tributante federal.
Desse modo, a tributação, pela União, de valores correspondentes a
incentivo fiscal, estimula competição indireta com o Estado-membro, em
desapreço à cooperação e à igualdade, pedras de toque da Federação.
Naturalmente, não está em xeque a competência da União para tributar a
renda ou o lucro, mas, sim, a irradiação de efeitos indesejados do seu exercício
sobre a autonomia da atividade tributante de pessoa política diversa, em
desarmonia com valores éticos-constitucionais inerentes à organicidade do
princípio federativo, e em atrito com a subsidiariedade, “um princípio de
bom senso”, no dizer do professor André Franco Montoro (Federalismo e o
fortalecimento do Poder Local no Brasil e na Alemanha. Coleção Debates da
Fundação Konrad Adenauer: Rio de Janeiro, 2002, p. 59), que reveste e protege
a autonomia dos Estados-membros.
Paulo Caliendo ensina sobre o princípio da subsidiariedade no contexto
federativo:

[...] o princípio da subsidiariedade pode e deve ser utilizado como cláusula


de barreira contra a tendência centralizadora do sistema federativo brasileiro,
restabelecendo o equilíbrio e indicando a correta proporcionalidade entre os meios
constitucionais e o fim geral a ser alcançado. O princípio da subsidiariedade
funciona neste caso como um adequado instrumento de controle do abuso e
como cláusula de correção. Desse modo, na presença de valores constitucionais
distintos a serem alcançados, tais como o interesse nacional e a preservação das
autonomias locais, o princípio da subsidiariedade funciona como um comando
normativo a indicar que a busca do interesse geral não pode implicar esmagamento
das instâncias inferiores ou da ação espontânea individual.

184
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA

(O Federalismo Fiscal e o Princípio da Subsidiariedade. In Estado Federal e


Tributação - Das origens à crise atual. Organizadores Misabel Abreu Machado
Derzi; Onofre Alves Batista Júnior; André Mendes Moreira. Belo Horizonte: Arraes
Editores, 2015. vol. I, pp. 100-110 – destaquei).

Dessarte, é razoável que a exegese em torno do exercício de competência


tributária federal, no contexto de estímulo fiscal legitimamente concedido por Estado-
membro, tenha por vetor principal um juízo de ponderação dos valores federativos
envolvidos.
Registre-se que a doutrina, ao analisar a pretensão de que o crédito
de ICMS poderia integrar as bases de cálculo do PIS e da COFINS, o tão
conhecido Tema n. 69/RG, já afastava tal possibilidade por configurar, também,
burla à Federação, nos seguintes termos:

[...] entendimento contrário ofenderia o princípio federativo, na medida em que


tributar crédito de ICMS implica intervir na tributação estadual, afetando a eficácia
das imunidades e incentivos e fazendo com que, à impossibilidade de tributação ou
renúncia tributária dos Estados corresponda tributação pela União, em transferência
de recursos absolutamente desarrazoada, contrária à finalidade das normas de
imunidade ou de incentivos.
(PAULSEN, Leandro. Direito Tributário - Constituição e Código Tributário à Luz da
Doutrina e da Jurisprudência. 15ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p.
524 – destaquei).

É induvidoso, ademais, o caráter extraf iscal conferido pelo legislador


estadual à desoneração, consistindo a medida em instrumento tributário
para o atingimento de finalidade não arrecadatória, mas, sim, incentivadora
de comportamento, com vista à realização de valores constitucionalmente
contemplados.
Outrossim, o abalo na credibilidade no programa estatal proposto pelo
Estado-membro, a seu turno, acarreta desdobramentos deletérios no campo da
segurança jurídica, os quais não podem ser desprezados.
Deveras, se o propósito da norma consiste em descomprimir um segmento
empresarial de determinada imposição fiscal, é inegável que o ressurgimento do
encargo, ainda que sob outro figurino, resultará no repasse dos custos adicionais
às mercadorias.
Importante realçar que a relação jurídica de outorga de incentivo fiscal
difere da dogmática da relação obrigacional tributária convencional, porquanto,
naquela, o contribuinte, ao atender aos requisitos normativos, titulariza o papel

RSTJ, a. 34, (265): 137-219, Janeiro/Março 2022 185


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

de credor do Estado, enquanto o Fisco torna-se devedor do cumprimento das


obrigações legais assumidas, consoante assinala José Eduardo Soares de Melo:

O direito à utilização, fruição ou realização dos incentivos – em termos lógicos


e jurídicos – não pode ter vinculação ou atinência estrita ao regime jurídico de
tributação, uma vez que, na referida relação jurídica, o contribuinte é o credor
(sujeito ativo), enquanto o poder público qualifica-se como devedor (sujeito
passivo). A relação eminentemente tributária consubstancia situação nitidamente
oposta, ou seja, o poder público é o sujeito ativo, enquanto o contribuinte é o
sujeito passivo.
(Regime Jurídico dos Incentivos Fiscais. In Regime Jurídico dos Incentivos Fiscais.
Hugo de Brito Machado (coord.). São Paulo: Malheiros, 2015, p. 307).

No tocante à base de cálculo do tributo, impende destacar que essa haverá


sempre de guardar conformidade com aquilo que pretende medir, não podendo
conter aspectos estranhos, é dizer, absolutamente impertinentes à própria
materialidade contida na hipótese de incidência.
No ponto, convém reavivar, conforme lição de Geraldo Ataliba, que “a
base imponível é a dimensão do aspecto material da hipótese de incidência”,
e, assim, “enquanto aspecto da hipótese de incidência, a base imponível é um
conceito-legal, a que fica preso o intérprete”, e sua mensuração “só pode ser
feita de acordo com o critério normativo que na base de cálculo (legal) se adota”
(Hipótese de Incidência Tributária. 6ª ed. São Paulo: Malheiros: 2016, pp. 108 e
110).
A esse respeito, já advertia, há muito, Alfredo Augusto Becker:

O critério de investigação da natureza jurídica do tributo que se demonstrará


ser o único verdadeiramente objetivo e jurídico, parte da base de cálculo para
chegar ao conceito do tributo. Este só poderá ter uma única base de cálculo. A
sua conversão em cifra é que poderá variar de método: ou peso e/ou medida
e/ou valor. Quando o método é o do valor, surge facilmente o perigo de se
procurar atingir este valor mediante a valorização de outro elemento que consistirá,
logicamente, outra base de cálculo e com isto, ipso facto, desvirtuou-se o pretendido
gênero jurídico do tributo. [...]”.
(Teoria Geral do Direito Tributário. 4ª ed. São Paulo: Noeses, 2007, p. 395 –
destaquei).

Cumpre enfatizar, ademais, em sintonia com as diretrizes constitucionais


apontadas, o fato de a própria União ter reconhecido a importância da concessão de
incentivo fiscal pelos Estados-membros e Municípios, prestigiando essa iniciativa

186
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA

precisamente com a isenção do IRPJ e da CSLL sobre as receitas decorrentes


de valores em espécie pagos ou creditados por esses entes a título de ICMS
e ISSQN, no âmbito de programas de outorga de crédito voltados ao estímulo à
solicitação de documento fiscal na aquisição de mercadorias e serviços, nos termos da
Lei n. 11.945/2009, verbis:

Art. 4º. Ficam isentas do Imposto sobre a Renda da Pessoa Jurídica - IRPJ e da
Contribuição Social sobre o Lucro Líquido - CSLL as receitas decorrentes de valores
em espécie pagos ou creditados pelos Estados, Distrito Federal e Municípios,
relativos ao Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e
sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de
Comunicação - ICMS e ao Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza - ISS, no
âmbito de programas de concessão de crédito voltados ao estímulo à solicitação de
documento fiscal na aquisição de mercadorias e serviços. (destaquei).

Visto o aspecto normativo, passo ao exame da jurisprudência pertinente.

VI. Panorama jurisprudencial

No plano jurisprudencial, não há precedentes específicos acerca do


incentivo fiscal em tela – “[...] pagamento diferido do ICMS, relativo a 60%
sobre o incremento resultante pelo estabelecimento da empresa naquele Estado-
membro, e que será adimplido no 36º mês, sem correção monetária, sendo
devidos apenas juros simples anuais de 4% (quatro por cento) [...]” – no âmbito
da 1ª Seção e respectivas Turmas.
Porém, no que toca à inclusão do crédito presumido de ICMS na base de
cálculo do IRPJ e CSLL, discussão correlata e, de igual forma, concernente ao
apontado tributo estadual, oportuno rememorar da orientação desta Corte:

Tributário. Embargos de divergência em recurso especial. Código de Processo


Civil de 2015. Aplicabilidade. ICMS. Créditos presumidos concedidos a título
de incentivo fiscal. Inclusão nas bases de cálculo do Imposto sobre a Renda
da Pessoa Jurídica - IRPJ e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido - CSLL.
Inviabilidade. Pretensão fundada em atos infralegais. Interferência da União
na política fiscal adotada por Estado-Membro. Ofensa ao princípio federativo
e à segurança jurídica. Base de cálculo. Observância dos elementos que lhes
são próprios. Relevância de estímulo fiscal outorgado por Ente da Federação.
Aplicação do princípio federativo. ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins.
Inconstitucionalidade assentada em repercussão geral pelo Supremo Tribunal
Federal (RE n. 574.706/PR). Axiologia da ratio decidendi aplicável à espécie. Créditos
presumidos. Pretensão de caracterização como renda ou lucro. Impossibilidade.

RSTJ, a. 34, (265): 137-219, Janeiro/Março 2022 187


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I - Controverte-se acerca da possibilidade de inclusão de crédito presumido de


ICMS nas bases de cálculo do IRPJ e da CSLL.
II - O dissenso entre os acórdãos paradigma e o embargado repousa no
fato de que o primeiro manifesta o entendimento de que o incentivo fiscal,
por implicar redução da carga tributária, acarreta, indiretamente, aumento do
lucro da empresa, insígnia essa passível de tributação pelo IRPJ e pela CSLL; já
o segundo considera que o estímulo outorgado constitui incentivo fiscal, cujos
valores auferidos não podem se expor à incidência do IRPJ e da CSLL, em virtude
da vedação aos entes federativos de instituir impostos sobre patrimônio, renda
ou serviços, uns dos outros.
III - Ao considerar tal crédito como lucro, o entendimento manifestado pelo
acórdão paradigma, da 2ª Turma, sufraga, em última análise, a possibilidade
de a União retirar, por via oblíqua, o incentivo fiscal que o Estado-membro, no
exercício de sua competência tributária, outorgou.
IV - Tal entendimento leva ao esvaziamento ou redução do incentivo
fiscal legitimamente outorgado pelo ente federativo, em especial porque
fundamentado exclusivamente em atos infralegais, consoante declinado pela
própria autoridade coatora nas informações prestadas.
V - O modelo federativo por nós adotado abraça a concepção segundo a qual
a distribuição das competências tributárias decorre dessa forma de organização
estatal e por ela é condicionada.
VI - Em sua formulação fiscal, revela-se o princípio federativo um autêntico
sobreprincípio regulador da repartição de competências tributárias e, por isso
mesmo, elemento informador primário na solução de conflitos nas relações entre
a União e os demais entes federados.
VII - A Constituição da República atribuiu aos Estados-membros e ao Distrito
Federal a competência para instituir o ICMS - e, por consequência, outorgar
isenções, benefícios e incentivos fiscais, atendidos os pressupostos de lei
complementar.
VIII - A concessão de incentivo por ente federado, observados os requisitos
legais, configura instrumento legítimo de política fiscal para materialização da
autonomia consagrada pelo modelo federativo.
Embora represente renúncia a parcela da arrecadação, pretende-se, dessa
forma, facilitar o atendimento a um plexo de interesses estratégicos para a
unidade federativa, associados às prioridades e às necessidades locais coletivas.
IX - A tributação pela União de valores correspondentes a incentivo fiscal
estimula competição indireta com o Estado-membro, em desapreço à cooperação
e à igualdade, pedras de toque da Federação.
X - O juízo de validade quanto ao exercício da competência tributária há de
ser implementado em comunhão com os objetivos da Federação, insculpidos

188
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA

no art. 3º da Constituição da República, dentre os quais se destaca a redução das


desigualdades sociais e regionais (inciso III), finalidade da desoneração em tela,
ao permitir o barateamento de itens alimentícios de primeira necessidade e dos
seus ingredientes, reverenciando o princípio da dignidade da pessoa humana,
fundamento maior da República Federativa brasileira (art. 1º, III, C.R.).
XI - Não está em xeque a competência da União para tributar a renda ou o lucro,
mas, sim, a irradiação de efeitos indesejados do seu exercício sobre a autonomia
da atividade tributante de pessoa política diversa, em desarmonia com valores
éticos-constitucionais inerentes à organicidade do princípio federativo, e em
atrito com o princípio da subsidiariedade, que reveste e protege a autonomia dos
entes federados.
XII - O abalo na credibilidade e na crença no programa estatal proposto pelo
Estado-membro acarreta desdobramentos deletérios no campo da segurança
jurídica, os quais não podem ser desprezados, porquanto, se o propósito da
norma consiste em descomprimir um segmento empresarial de determinada
imposição fiscal, é inegável que o ressurgimento do encargo, ainda que sob outro
figurino, resultará no repasse dos custos adicionais às mercadorias, tornando
inócua, ou quase, a finalidade colimada pelos preceito legais, aumentando o
preço final dos produtos que especifica, integrantes da cesta básica nacional.
XIII - A base de cálculo do tributo haverá sempre de guardar pertinência com
aquilo que pretende medir, não podendo conter aspectos estranhos, é dizer,
absolutamente impertinentes à própria materialidade contida na hipótese de
incidência.
XIV - Nos termos do art. 4º da Lei n. 11.945/09, a própria União reconheceu
a importância da concessão de incentivo fiscal pelos Estados-membros e
Municípios, prestigiando essa iniciativa precisamente com a isenção do IRPJ e da
CSLL sobre as receitas decorrentes de valores em espécie pagos ou creditados
por esses entes a título de ICMS e ISSQN, no âmbito de programas de outorga de
crédito voltados ao estímulo à solicitação de documento fiscal na aquisição de
mercadorias e serviços.
XV - O STF, ao julgar, em regime de repercussão geral, o RE n. 574.706/PR,
assentou a inconstitucionalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e
da COFINS, sob o entendimento segundo o qual o valor de ICMS não se incorpora
ao patrimônio do contribuinte, constituindo mero ingresso de caixa, cujo destino
final são os cofres públicos. Axiologia da ratio decidendi que afasta, com ainda
mais razão, a pretensão de caracterização, como renda ou lucro, de créditos
presumidos outorgados no contexto de incentivo fiscal.
XVI - Embargos de Divergência desprovidos.
(EREsp 1.517.492/PR, de minha relatoria para o acórdão, Primeira Seção,
julgado em 08/11/2017, DJe 01/02/2018).

RSTJ, a. 34, (265): 137-219, Janeiro/Março 2022 189


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

No bojo desse paradigmático recurso, a 1ª Seção, ao apreciar os Embargos


de Declaração opostos pela Fazenda Nacional, consignou que “[...] a pretensão
de enquadramento dos créditos presumidos de ICMS numa ou noutra categoria
de subvenção não tem o condão de interferir – menos ainda de elidir – a
fundamentação adotada pelo acórdão embargado, calcada na ofensa ao princípio
federativo” (destaquei).
E o voto condutor do apontado decisum integrativo, igualmente de minha
lavra, prossegue:

Não bastasse isso, a 1ª Seção, ao assentar a inviabilidade da inclusão de tais


créditos nas bases de cálculo do IRPJ e da CSLL, também o fez com amparo em
precedente vinculante do Supremo Tribunal Federal, julgado em repercussão
geral, de cuja lógica e matriz argumentativa se extrai, apropriadamente, que o
crédito de ICMS, a par de não se incorporar ao patrimônio do contribuinte, não
constitui lucro.
Por conseguinte, uma vez ausente a própria materialidade da hipótese de
incidência do IRPJ e da CSLL, revela-se desinfluente, também sob esse viés, a
classificação pretendida pela Embargante.
(destaques do original).

Ulteriormente, tal entendimento fora reafirmado pela 1ª Seção, inclusive


com referência expressa pela inaplicabilidade da cláusula de reserva de plenário:

Processo Civil e Tributário. Embargos de divergência em recurso especial.


Código de Processo Civil de 1973. Aplicabilidade. Créditos do Reintegra.
Incidência de IRPJ e da CSLL. Divergência. Demonstração. Ausência. ICMS.
Créditos presumidos concedidos a título de incentivo fiscal. Inclusão nas bases de
cálculo do IRPJ e da CSLL. Inviabilidade. Tributação fundada em atos infralegais.
Interferência da União na política fiscal adotada por Estado-Membro. Ofensa
ao princípio federativo e à segurança jurídica. Base imponível. Observância dos
elementos que lhes são próprios. Relevância de estímulo fiscal outorgado por
Ente da Federação. Aplicação do princípio federativo. ICMS na base de cálculo
do PIS e da Cofins. Inconstitucionalidade assentada em repercussão geral pelo
Supremo Tribunal Federal (RE n. 574.706/PR). Axiologia da ratio decidendi aplicável
à espécie. Créditos presumidos. Pretensão de caracterização como renda ou lucro.
Impossibilidade. Cláusula de reserva de plenário. Inaplicabilidade. Precedentes.
Recurso com o mister de conformar o acórdão embargado à tese já fixada e
consolidada deste STJ.
[...]
IV - A discussão cognoscível cinge-se à exclusão de crédito presumido do
ICMS das bases de cálculo do IRPJ e da CSLL, tema já pacificado por esta Seção na

190
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA

apreciação do EREsp n. 1.517.492/PR, de minha relatoria para o acórdão, julgado


em 08.11.2017, DJe 01.02.2018, e reafirmado por tal órgão jurisdicional, inclusive
com referência expressa pela inaplicabilidade da cláusula de reserva de plenário
no AgInt nos EDv nos EREsp n. 1.603.082/SC, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia
Filho, julgado em 03.12.2019, DJe 05.12.2019.
V - O dissenso entre os acórdãos paradigma e o embargado repousa no
fato de que o primeiro manifesta o entendimento de que o incentivo fiscal,
por implicar redução da carga tributária, acarreta, indiretamente, aumento do
lucro da empresa, insígnia essa passível de tributação pelo IRPJ e pela CSLL; já
o segundo considera que o estímulo outorgado constitui incentivo fiscal, cujos
valores auferidos não podem se expor à incidência do IRPJ e da CSLL, em virtude
da vedação aos entes federativos de instituir impostos sobre patrimônio, renda
ou serviços, uns dos outros.
VI - Ao considerar tal crédito como lucro, o entendimento manifestado pelo
acórdão paradigma, da 2ª Turma, sufraga, em última análise, a possibilidade
de a União retirar, por via oblíqua, o incentivo fiscal que o Estado-membro, no
exercício de sua competência tributária, outorgou.
VII - Tal orientação leva ao esvaziamento ou redução do incentivo
fiscal legitimamente outorgado pelo ente federativo, em especial porque
fundamentado exclusivamente em atos infralegais, consoante declinado pela
própria autoridade coatora nas informações prestadas.
VIII - O modelo federativo abraça a concepção segundo a qual a distribuição
das competências tributárias decorre dessa forma de organização estatal e por ela
é condicionada.
IX - Em sua formulação fiscal, revela-se o princípio federativo um autêntico
sobreprincípio regulador da repartição de competências tributárias e, por isso
mesmo, elemento informador primário na solução de conflitos nas relações entre
a União e os demais entes federados.
X - A Constituição da República atribuiu aos Estados-membros e ao Distrito
Federal a competência para instituir o ICMS e, por consequência, outorgar
isenções, benefícios e incentivos fiscais, atendidos os pressupostos de lei
complementar.
XI - A concessão de incentivo por ente federado, observados os requisitos
legais, configura instrumento legítimo de política fiscal para materialização da
autonomia consagrada pelo modelo federativo.
Embora represente renúncia a parcela da arrecadação, pretende-se, dessa
forma, facilitar o atendimento a um plexo de interesses estratégicos para a
unidade federativa, associados às prioridades e às necessidades locais coletivas.
XII - A tributação pela União de valores correspondentes a incentivo fiscal
estimula competição indireta com o Estado-membro, em desapreço à cooperação
e à igualdade, pedras de toque da Federação.

RSTJ, a. 34, (265): 137-219, Janeiro/Março 2022 191


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

XIII - O juízo de validade quanto ao exercício da competência tributária há de


ser implementado em comunhão com os objetivos da Federação, insculpidos no
art. 3º da Constituição da República, dentre os quais se destaca a redução das
desigualdades sociais e regionais (inciso III), finalidade da desoneração em tela,
ao permitir o barateamento de itens alimentícios de primeira necessidade e dos
seus ingredientes, reverenciando o princípio da dignidade da pessoa humana,
fundamento maior da República Federativa brasileira (art. 1º, III, CR).
XIV - Não está em xeque a competência da União para tributar a renda ou
o lucro, mas, sim, a irradiação de efeitos indesejados do seu exercício sobre a
autonomia da atividade tributante de pessoa política diversa, em desarmonia com
valores éticos-constitucionais inerentes à organicidade do princípio federativo, e
em atrito com o princípio da subsidiariedade, que reveste e protege a autonomia
dos entes federados.
XV - O abalo na credibilidade e na crença no programa estatal proposto pelo
Estado-membro acarreta desdobramentos deletérios no campo da segurança
jurídica, os quais não podem ser desprezados, porquanto, se o propósito da
norma consiste em descomprimir um segmento empresarial de determinada
imposição fiscal, é inegável que o ressurgimento do encargo, sob outro figurino,
resultará no repasse dos custos adicionais às mercadorias, tornando inócua, ou
quase, a finalidade colimada pelos preceitos legais, aumentando o preço final dos
produtos especificados.
XVI - A base de cálculo do tributo haverá sempre de guardar pertinência
com aquilo que pretende medir, não podendo conter aspectos absolutamente
impertinentes à própria materialidade contida na hipótese de incidência.
XVII - Nos termos do art. 4º da Lei n. 11.945/2009, a própria União reconheceu
a importância da concessão de incentivo fiscal pelos Estados-membros e
Municípios, prestigiando essa iniciativa precisamente com a isenção do IRPJ e da
CSLL sobre as receitas decorrentes de valores, em espécie, pagos ou creditados
por esses entes a título de ICMS e ISSQN, no âmbito de programas de outorga de
crédito voltados ao estímulo à solicitação de documento fiscal na aquisição de
mercadorias e serviços.
XVIII - O STF, ao julgar, em regime de repercussão geral, o RE n. 574.706/PR,
assentou a inconstitucionalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS
e da COFINS, sob o entendimento de que o valor de ICMS não se incorpora ao
patrimônio do contribuinte, constituindo mero ingresso de caixa, cujo destino
final são os cofres públicos. Axiologia da ratio decidendi que afasta, com ainda
mais razão, a pretensão de caracterização, como renda ou lucro, de créditos
presumidos outorgados no contexto de incentivo fiscal.
XIX - O crédito presumido de ICMS, a par de não se incorporar ao patrimônio
da contribuinte, não constitui lucro, base imponível do IRPJ e da CSLL.
XX - Recurso que cumpre o singelo mister de conformar o acórdão embargado
à tese já fixada e consolidada deste Superior Tribunal de Justiça (EREsp n.
1.517.492/PR).

192
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA

XXI - Embargos de Divergência conhecidos em parte e, nessa extensão,


providos.
(EREsp 1.443.771/RS, de minha relatoria para o acórdão, Primeira Seção,
julgado em 14/04/2021, DJe 28/04/2021).

Por fim, no tocante à entrada em vigor da Lei Complementar n. 160/2017,


que alterou o disposto no art. 30 da Lei n. 12.973/2014, esta Corte fixou a
compreensão segundo a qual a superveniência da apontada Lei Complementar,
a qual categorizou o incentivo fiscal estadual como subvenção para investimento,
não tem o condão de alterar o entendimento deste Superior Tribunal de Justiça de
que a tributação federal do crédito presumido de ICMS representa violação do
princípio federativo:

Tributário. Agravo interno nos embargos de divergência em recurso


especial. Crédito presumido de ICMS. Inclusão. Bases de cálculo do IRPJ e da
CSLL. Impossibilidade. Superveniência da Lei Complementar n. 160/2017.
Inaplicabilidade.
1. A Primeira Seção desta Corte, por ocasião do julgamento dos EREsp
1.517.492/PR, pacificou o entendimento da não inclusão do crédito presumido de
ICMS nas bases de cálculo do IRPJ e da CSLL, ao fundamento de que a incidência
de tributo federal sobre o incentivo fiscal de ICMS ofenderia o princípio federativo.
2. A superveniência da Lei Complementar n. 160/2017, que promoveu alteração
no art. 30 da Lei n. 12.973/2014, e passou a enquadrar o incentivo fiscal estadual
como subvenção para investimento, não tem o condão de alterar o entendimento
desta Corte de que a tributação federal do crédito presumido de ICMS representa
violação do princípio federativo.
3. Os EREsp 1.210.941/RS citado no agravo interno como pendente de
julgamento, abrange situação diversa da tratada nos autos. Cumpre destacar que,
naquela ocasião reconheceu-se a possibilidade de inclusão de crédito presumido
de IPI na base de cálculo do IRPJ e da CSLL. Já o fundamento adotado nos EREsp
1.517.492/SC, aplicado ao caso dos autos, tem como fundamento a ofensa ao
princípio federativo, em decorrência da incidência de tributo federal sobre o
incentivo fiscal de ICMS, circunstância que não se verifica, no caso do IPI.
4. Agravo interno a que se nega provimento.
(AgInt nos EREsp 1.528.697/SC, Rel. Ministro Og Fernandes, Primeira Seção,
julgado em 29/06/2021, DJe 12/08/2021 – destaquei).

Anotado o panorama jurisprudencial concernente à controvérsia similar,


mormente sob o ponto de vista do princípio federativo, prossigo com a análise
da pretensão deduzida.

RSTJ, a. 34, (265): 137-219, Janeiro/Março 2022 193


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

VII. O caso concreto

No âmbito administrativo, após consulta formalizada ao Fisco, não se


reconheceu o direito pleiteado, consoante consignado no Parecer Disit n.
59/2004, tendo sido apontado o Ato Declaratório Interpretativo SRF n.
22/2003 como fundamento do decisum.
A autoridade coatora, por sua vez, aponta que o proveito advindo do
regime especial de pagamento do ICMS configura, tão somente, redução de
custos e despesas (fl. 71e).
A Corte regional, por seu turno, assentou, adotando as razões lançadas
no parecer ministerial, sua compreensão calcada, de igual forma, no quanto
fixa o mencionado Ato Declaratório Interpretativo SRF, o qual “dispõe sobre
o tratamento de incentivos concedidos pelo Poder Público às pessoas jurídicas,
consistentes em empréstimos subsidiados ou regimes especiais de pagamento de
impostos, em que os juros e a atualização monetária contratados incidem sob
condição suspensiva”, assim expresso:

O Secretário da Receita Federal, no uso da atribuição que lhe confere o inciso III
do art. 209 do Regimento Interno da Secretaria da Receita Federal, aprovado pela
Portaria MF n. 259, de 24 de agosto de 2001, e tendo em vista o disposto nos arts.
374, 377 e 443 do Decreto n. 3.000, de 26 de março de 1999 - Regulamento do
Imposto de Renda (RIR, de 1999), e o que consta do processo n. 10768.028583/98-
01, declara:
Art. 1º Os incentivos concedidos pelo Poder Público às pessoas jurídicas,
consistentes em empréstimos subsidiados ou regimes especiais de pagamento de
impostos, em que os juros e a atualização monetária, previstos contratualmente,
incidem sob condição suspensiva, não configuram subvenções para investimento,
nem subvenções correntes para custeio.
Parágrafo único. Os incentivos de que trata o caput configuram reduções de
custos ou despesas, não se aplicando o disposto no art. 443 do RIR, de 1999.
Art. 2º Os juros e a atualização monetária contratados, incidentes sob condição
suspensiva, serão considerados despesas na apuração do Lucro Real e da
base de cálculo da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), quando
implementada a condição.
Jorge Antonio Deher Rachid
(Publicado no DOU de 31/10/2003 – destaquei).

Além desse fundamento, o Tribunal de origem anotou: (i) o diferimento


do pagamento não representa renúncia do Fisco ao tributo, aos juros e à

194
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA

correção monetária, pois há, tão somente, adimplemento em parcela única em


data diversa; (ii) os juros e a correção monetária são despesas não incorridas
enquanto não implementada a condição suspensiva, sendo inviável, neste passo,
sua apropriação no resultado do período; e (iii) a hipótese configura mera
redução de custos ou despesas (fls. 134/137e).
In casu, trata-se de alívio fiscal na modalidade incentivo, indutor do
desenvolvimento econômico regional, cujo objeto se refere à “concessão de
incentivo do PRODEC [Programa de desenvolvimento da Empresa
Catarinense] para o projeto de expansão com aumento da capacidade atual de
produção da linha PET, passando de 1.366.820 hectolitros/ano de refrigerantes
para 3.018.730 hectolitros/ano [...]” (fl. 30e). verifica-se, de fato, interferência na
política fiscal, regime especial de pagamento, adotada pelo Estado-membro –
Santa Catarina – mediante o exercício de competência tributária federal.
A outorga de prazo estendido para o pagamento de ICMS, com redução de
encargos (integralidade da atualização monetária incidente no período; e parcela
dos juros aplicáveis) insere-se em contexto de envergadura constitucional,
instituída por legislação local específica do ente federativo tributante.
É esse montante, em torno do qual gravitam tais aspectos, que se pretende
ver incluído nas bases de cálculo do IRPJ e da CSLL, com fulcro, tão somente,
em disposição contida em ato infralegal (Ato Declaratório Interpretativo SRF
n. 22/2003), olvidando a ausência da própria materialidade da hipótese de incidência
do IRPJ e da CSLL.
Compreensão contrária conduziria, outrossim, ao esvaziamento ou redução
do incentivo fiscal legitimamente outorgado pelo ente federativo, consoante já
assentado por este Superior Tribunal de Justiça em relação a incentivo – crédito
presumido de ICMS – de idêntico contexto federativo.
Nesse cenário, considerar o valor advindo da postergação do pagamento
de ICMS, com redução de encargos (atualização monetária; e parcela dos juros
aplicáveis) como lucro sufraga, em última análise, a possibilidade de a União
retirar, por via oblíqua, o incentivo fiscal que o Estado-membro, no exercício de sua
competência tributária, outorgou ao produtor de bebidas.
Neste passo, exsurge com clareza que a ratio decidendi verificada nos
precedentes concernentes ao crédito presumido de ICMS na base de cálculo
das exações em tela, reconhecido incentivo fiscal, revela-se apropriada para o
deslinde da presente controvérsia, na qual está em análise, de igual forma, no
contexto federativo, outro incentivo fiscal, também ancorado na sistemática de
tributação do ICMS.

RSTJ, a. 34, (265): 137-219, Janeiro/Março 2022 195


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Deve, assim, ser reformado o acórdão regional que considerou legítima a


tributação ora examinada.
Prejudicado o exame da suposta violação aos arts. 128 e 460, ambos do
CPC/1973; e dos arts. 125, 126, 127 e 128, todos do Código Civil de 2002.
Posto isso, dou provimento ao Recurso Especial para conceder a segurança,
reconhecendo a ilegitimidade da inclusão do montante decorrente da
“contabilização do ganho obtido com o incentivo fiscal concedido pelo Estado
de Santa Catarina” na base de cálculo do IRPJ e da CSLL (fl. 16e), desde que
ultimado, ao tempo e modo, o respectivo contrato firmado com o Estado-
Membro, nos termos expostos.
Indevidos honorários advocatícios, a teor do disposto na Súmula n. 105/
STJ.
É o voto.

VOTO-VISTA

O Sr. Ministro Gurgel de Faria: Trata-se de recurso especial interposto por


Vonpar Refrescos S.A. com base na alínea “a” do permissivo constitucional para
desafiar acórdão proferido pela Corte Regional assim ementado:

Tributário. IRPJ. CSLL. Subvenção para investimento. ICMS. Pagamento diferido.


Impossibilidade.
1. O pagamento diferido do ICMS não equivale a subvenção para investimento.
2. Os juros e as atualizações monetárias sujeitos à condição suspensiva, como
no caso do pagamento diferido do ICMS, configuram-se em incentivo sujeito à
condição resolutiva, pelo que há de aplicar o Ato Declaratório interpretativo SRF
n. 22/2003.
3. Face à condição suspensiva desses juros e correção monetária, as despesas
não ocorreram ainda, pelo que não há como apropriar-se delas na apuração do
resultado.
4. Apelo desprovido.

Os embargos de declaração opostos foram acolhidos, em parte, para fins de


prequestionamento (e-STJ fls. 149/153).
Em suas razões recursais, a parte recorrente alega violação dos seguintes
dispositivos legais:

196
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA

- arts. 128, 460 e 535, II, do CPC/1973, porque entende que o acórdão
recorrido deixou de se manifestar sobre todas as causas de pedir autônomas
contidas na petição inicial;
- arts. 38, § 2º do Decreto-Lei n. 1.598/77 e 443, I, do RIR/99, porque o
benefício fiscal concedido pelo Estado de Santa Catarina deve ser considerado
como subvenção para investimento e, por isso, não deve sofrer a incidência do
IRPJ e da CSLL (e-STJ fls. 820/821).
Contrarrazões apresentadas (e-STJ fls. 185/189).
Decisão de admissibilidade à e-STJ fls. 192/192.
Pois bem, após o bem-lançado voto da em. Ministra Regina Helena Costa,
em que deu provimento ao recurso especial, pedi vista dos autos para melhor
exame da controvérsia.
A questão jurídica trazida a esta Corte Superior diz respeito a definir
se o incentivo fiscal concedido pelo Estado de Santa Catarina (diferimento
do pagamento do ICMS em 36 meses, acrescido de juros simples de 4% ao
ano e sem correção monetária), deve ser classificado como subvenção para
investimento e, sendo assim, não componente da base de cálculo do do IRPJ e
da CSLL.
A ora recorrente defende que sim. Para tanto, aduz que (e-STJ fl. 167):

No caso concreto, considerando que o valor concedido pelo Estado de Santa


Catarina a título de benefício fiscal (a diferença entre os juros que o Estado de
Santa Catarina cobraria, no caso de atraso, ou parcelamento, do ICMS - caso
o pagamento do imposto ocorresse trinta e seis meses após o prazo normal
de vencimento da obrigação e que corresponde à variação da Taxa SELIC -
e o valor efetivamente cobrado em função deste incentivo - 4% a. a.) pode
ser imediatamente utilizado e que a Recorrente está sujeita às penalidades
contratualmente previstas (dentre as quais a suspensão da utilização dos créditos
da própria perda do incentivo) se vierem a ocorrer as hipóteses previstas na
Cláusula Nona do Contrato n. o 007/2001, dúvidas não há que a condição imposta
é resolutiva.

A Fazenda Nacional, por sua vez, defende a manutenção do acórdão


recorrido, pois considera que (e-STJ fl. 188):

Não há base legal à pretensão de que incentivos concedidos pelo Poder


Público sejam considerados subvenções de investimento. Na realidade, incentivos
tais como os noticiados nos autos constituem redução de custos ou despesas.

RSTJ, a. 34, (265): 137-219, Janeiro/Março 2022 197


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Importante observar que tais incentivos dados por Estados-membros a


empresas instalada na região, consistentes em empréstimos subsidiados ou
regime especial de pagamento de ICMS, em que os juros e a correção monetária
estão previstos contratualmente sob condição suspensiva não configuram
subvenções de investimento, ao contrário do entendimento sustentado pela
recorrente, já que no sentido técnico-contábil as vantagens advindas não têm
natureza de receitas ou de resultados. Tais vantagens configuram meras reduções
de custos ou despesas. Ainda que subvenções fossem, não seriam subvenções
na modalidade de investimento, já que os recursos não desembolsados podem
reforçar o capital de giro, como convier à beneficiária, sem a necessária aplicação
em ativo mobilizado.

As instâncias ordinárias denegaram a ordem.


Pois bem.
Quanto à alegada ofensa ao art. 535, II, do CPC/73, não se vislumbra
nenhum equívoco ou deficiência na fundamentação contida no acórdão
recorrido, sendo possível observar que o Tribunal de origem apreciou
integralmente a controvérsia e apontou as razões de seu convencimento, não se
podendo confundir julgamento desfavorável ao interesse da parte com negativa
ou ausência de prestação jurisdicional.
Ademais, consoante entendimento desta Corte, o magistrado não está
obrigado a responder a todas as alegações das partes, tampouco a rebater um a
um de todos os seus argumentos, desde que os fundamentos utilizados tenham
sido suficientes para embasar a decisão, como ocorre na espécie.
Quanto ao mérito, a questão posta nos autos não se limita a saber
se o incentivo fiscal ora em discussão deve ser considerado subvenção de
investimento, ou não. Na hipótese, verifica-se que a tentativa da Fazenda
Nacional em tributar tais valores, incluindo-os na base de cálculo do IRPJ e
da CSLL, constitui verdadeira afronta ao princípio federativo, conforme este
Superior Tribunal de Justiça já teve oportunidade de se manifestar, em situação
que a tudo se assemelha com a questão jurídica ora controvertida.
No julgamento do EREsp 1.517.492/PR, a Primeira Seção desta Corte
Superior, decidiu que a incidência de tributo federal sobre incentivo fiscal
(crédito-presumido de ICMS) ofenderia o princípio federativo. Esta a ementa
do julgado:

Tributário. Embargos de divergência em recurso especial. Código de Processo


Civil de 2015. Aplicabilidade. ICMS. Créditos presumidos concedidos a título
de incentivo fiscal. Inclusão nas bases de cálculo do Imposto sobre a Renda

198
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA

da Pessoa Jurídica - IRPJ e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido - CSLL.


Inviabilidade. Pretensão fundada em atos infralegais. Interferência da União
na política fiscal adotada por Estado-Membro. Ofensa ao princípio federativo
e à segurança jurídica. Base de cálculo. Observância dos elementos que lhes
são próprios. Relevância de estímulo fiscal outorgado por Ente da Federação.
Aplicação do princípio federativo. ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins.
Inconstitucionalidade assentada em repercussão geral pelo Supremo Tribunal
Federal (RE n. 574.706/PR). Axiologia da ratio decidendi aplicável à espécie. Créditos
presumidos. Pretensão de caracterização como renda ou lucro. Impossibilidade.
I - Controverte-se acerca da possibilidade de inclusão de crédito presumido de
ICMS nas bases de cálculo do IRPJ e da CSLL.
II - O dissenso entre os acórdãos paradigma e o embargado repousa no
fato de que o primeiro manifesta o entendimento de que o incentivo fiscal,
por implicar redução da carga tributária, acarreta, indiretamente, aumento do
lucro da empresa, insígnia essa passível de tributação pelo IRPJ e pela CSLL; já
o segundo considera que o estímulo outorgado constitui incentivo fiscal, cujos
valores auferidos não podem se expor à incidência do IRPJ e da CSLL, em virtude
da vedação aos entes federativos de instituir impostos sobre patrimônio, renda
ou serviços, uns dos outros.
III - Ao considerar tal crédito como lucro, o entendimento manifestado pelo
acórdão paradigma, da 2ª Turma, sufraga, em última análise, a possibilidade
de a União retirar, por via oblíqua, o incentivo fiscal que o Estado-membro, no
exercício de sua competência tributária, outorgou.
IV - Tal entendimento leva ao esvaziamento ou redução do incentivo
fiscal legitimamente outorgado pelo ente federativo, em especial porque
fundamentado exclusivamente em atos infralegais, consoante declinado pela
própria autoridade coatora nas informações prestadas.
V - O modelo federativo por nós adotado abraça a concepção segundo a qual
a distribuição das competências tributárias decorre dessa forma de organização
estatal e por ela é condicionada.
VI - Em sua formulação fiscal, revela-se o princípio federativo um autêntico
sobre princípio regulador da repartição de competências tributárias e, por isso
mesmo, elemento informador primário na solução de conflitos nas relações entre
a União e os demais entes federados.
VII - A Constituição da República atribuiu aos Estados-membros e ao Distrito
Federal a competência para instituir o ICMS - e, por consequência, outorgar
isenções, benefícios e incentivos fiscais, atendidos os pressupostos de lei
complementar.
VIII - A concessão de incentivo por ente federado, observados os requisitos
legais, configura instrumento legítimo de política fiscal para materialização da
autonomia consagrada pelo modelo federativo.

RSTJ, a. 34, (265): 137-219, Janeiro/Março 2022 199


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Embora represente renúncia a parcela da arrecadação, pretende-se, dessa


forma, facilitar o atendimento a um plexo de interesses estratégicos para a
unidade federativa, associados às prioridades e às necessidades locais coletivas.
IX - A tributação pela União de valores correspondentes a incentivo fiscal
estimula competição indireta com o Estado-membro, em desapreço à cooperação
e à igualdade, pedras de toque da Federação.
X - O juízo de validade quanto ao exercício da competência tributária há de
ser implementado em comunhão com os objetivos da Federação, insculpidos
no art. 3º da Constituição da República, dentre os quais se destaca a redução das
desigualdades sociais e regionais (inciso III), finalidade da desoneração em tela,
ao permitir o barateamento de itens alimentícios de primeira necessidade e dos
seus ingredientes, reverenciando o princípio da dignidade da pessoa humana,
fundamento maior da República Federativa brasileira (art. 1º, III, C.R.).
XI - Não está em xeque a competência da União para tributar a renda ou o lucro,
mas, sim, a irradiação de efeitos indesejados do seu exercício sobre a autonomia
da atividade tributante de pessoa política diversa, em desarmonia com valores
éticos-constitucionais inerentes à organicidade do princípio federativo, e em
atrito com o princípio da subsidiariedade, que reveste e protege a autonomia dos
entes federados.
XII - O abalo na credibilidade e na crença no programa estatal proposto pelo
Estado-membro acarreta desdobramentos deletérios no campo da segurança
jurídica, os quais não podem ser desprezados, porquanto, se o propósito da
norma consiste em descomprimir um segmento empresarial de determinada
imposição fiscal, é inegável que o ressurgimento do encargo, ainda que sob outro
figurino, resultará no repasse dos custos adicionais às mercadorias, tornando
inócua, ou quase, a finalidade colimada pelos preceito legais, aumentando o
preço final dos produtos que especifica, integrantes da cesta básica nacional.
XIII - A base de cálculo do tributo haverá sempre de guardar pertinência com
aquilo que pretende medir, não podendo conter aspectos estranhos, é dizer,
absolutamente impertinentes à própria materialidade contida na hipótese de
incidência.
XIV - Nos termos do art. 4º da Lei n. 11.945/09, a própria União reconheceu
a importância da concessão de incentivo fiscal pelos Estados-membros e
Municípios, prestigiando essa iniciativa precisamente com a isenção do IRPJ e da
CSLL sobre as receitas decorrentes de valores em espécie pagos ou creditados
por esses entes a título de ICMS e ISSQN, no âmbito de programas de outorga de
crédito voltados ao estímulo à solicitação de documento fiscal na aquisição de
mercadorias e serviços.
XV - O STF, ao julgar, em regime de repercussão geral, o RE n. 574.706/PR,
assentou a inconstitucionalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e
da COFINS, sob o entendimento segundo o qual o valor de ICMS não se incorpora
ao patrimônio do contribuinte, constituindo mero ingresso de caixa, cujo destino

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Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA

final são os cofres públicos. Axiologia da ratio decidendi que afasta, com ainda
mais razão, a pretensão de caracterização, como renda ou lucro, de créditos
presumidos outorgados no contexto de incentivo fiscal.
XVI - Embargos de Divergência desprovidos.
(EREsp 1.517.492/PR, Rel. p/ Acórdão Ministra Regina Helena Costa, Primeira
Seção, julgado em 08/11/2017, DJe 01/02/2018)

Ressalto que, embora a hipótese ora tratada não seja idêntica ao precedente
citado, cumpre observar que ambos os julgados tratam de incentivo fiscal
relativo ao ICMS, devendo, por isso, ser aplicado o mesmo entendimento.
Ante o exposto, nos termos da fundamentação supra, acompanho a
eminente Ministra relatora e dou provimento ao recurso especial, concedendo a
segurança para que os valores referentes ao ganho obtido com o incentivo fiscal
em referência não sofram a incidência do IRPF e da CSLL, uma vez ultimado,
ao tempo e modo, o respectivo contrato firmado com o Estado-Membro.
É como voto.

RECURSO ESPECIAL N. 1.709.727-SE (2016/0173813-0)

Relator: Ministro Benedito Gonçalves


Recorrente: N R A B - por si e representando
Recorrente: J D de V N - Menor impúbere
Advogados: Francisco Cláudio de Almeida Santos e outro(s) - DF012742
Eliene Ferreira Bastos - DF011781
Vanessa de Castro Doria Melo e outro(s) - SE004822
Recorrido: Departamento Estadual de Infra-Estrutura Rodoviaria de
Sergipe - DER/SE
Advogados: Frederico Galindo de Góes - SE004552
Carla Fonseca Fernandes de Brito e outro(s) - SE005566

EMENTA

Administrativo e Processual Civil. Recurso especial.


Responsabilidade civil do Estado. Violação do art. 535 do CPC/1973.

RSTJ, a. 34, (265): 137-219, Janeiro/Março 2022 201


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Não ocorrência. Acidente de trânsito em rodovia estadual. Óbito da


vítima. Omissão estatal quanto ao dever de conservação e sinalização
da via pública. Danos materiais devidos. Danos morais fixados em
valor irrisório. Necessidade de majoração.
1. Tendo o recurso sido interposto contra acórdão publicado
na vigência do CPC/1973, devem ser exigidos os requisitos
de admissibilidade na forma nele previsto, conforme Enunciado
Administrativo n. 2/2016/STJ.
2. Os autos são oriundos de ação de indenização por danos morais
e materiais ajuizada contra o departamento de Estradas e Rodagens
de Sergipe, em face da morte do pai e companheiro dos autores,
decorrente de acidente de veículo em rodovia estadual, ocasionado por
cratera não sinalizada na via.
3. Não há violação do artigo 535 do CPC/1973 quando o acórdão
recorrido manifestou-se de maneira clara e fundamentada a respeito
das questões relevantes para a solução da controvérsia.
4. O Tribunal de origem reconheceu a conduta omissiva e
culposa do ente público, relacionada ao dever de sinalização da via
pública, sobretudo no ponto onde havia a cratera que dificultava a livre
circulação e segurança dos veículos. Porém, deu parcial provimento
ao apelo dos autores, condenando o demandado tão somente ao
pagamento de indenização por danos morais no importe de R$
20.000,00 (vinte mil reais), sendo R$ 10.000,00 (dez mil reais) para
cada recorrente. Em relação ao danos materiais, registrou não terem
sido comprovados.
5. Ao assim proceder, a acórdão a quo divergiu da jurisprudência
desta Corte no sentido de que, reconhecida a responsabilidade estatal
pelo evento morte, é devida a indenização por danos materiais aos
filhos menores e ao cônjuge, cuja dependência econômica é presumida,
mormente em família de baixa renda, dispensando a demonstração
por qualquer outro meio de prova. Precedentes: AgInt no REsp
1.880.254/MT, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma,
DJe 25/03/2021; AgInt no REsp 1.880.112/DF, Rel. Min. Mauro
Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 11/12/2020; AgInt no
REsp 1.603.756/MG, Rel. Min. Og Fernandes, Segunda Turma,
DJe 12/12/2018; AgInt no REsp 1.554.466/RJ, Rel. Min. Assusete

202
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA

Magalhães, Segunda Turma, DJe 22/8/2016; AgInt no AREsp


1.517.574/RJ, Rel. Min. Luiz Felipe Salomão, Quarta Turma, DJe
04/02/2020; AgInt no AREsp 1.551.780/MS, Rel. Min. Luiz Felipe
Salomão, Quarta Turma, DJe 16/12/2019.
6. Nesse passo, é de se condenar o réu ao pagamento de pensão
aos recorrentes no valor correspondente a 2/3 do salário mínimo,
a serem pagos até a expectativa média de vida da vítima, segundo
a tabela do IBGE na data do óbito, ou até o falecimento da viúva,
com a reversão em favor exclusiva desta após o menor completar 24
anos de idade. Precedente: AgRg no REsp 1.388.266/SC, Rel. Min.
Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 16/05/2016.
7. Diante da irrisoriedade do valor estabelecido pelas instâncias
ordinárias à título de danos morais, deve ser majorado para R$
100.000,00 (cem mil reais), conforme a parâmetros de julgados
desta Corte. Precedentes: AgInt no AREsp 1.517.574/RJ, Rel.
Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, DJe 4/2/2020; AgInt no
REsp 1.685.425/AM, Rel. Min. Gurgel de Faria, Primeira Turma,
DJe 20/9/2019; AgInt no REsp 1.658.378/PB, Rel. Min. Assusete
Magalhães, Segunda Turma, DJe 2/9/2019.
8. Recurso parcialmente provido, para fixar os danos materiais e
majorar os danos morais, nos termos supra.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas,


acordam os Ministros da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por
unanimidade, dar parcial provimento ao recurso especial, para fixar os danos
materiais e majorar os danos morais, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator.
Os Srs. Ministros Sérgio Kukina, Regina Helena Costa, Gurgel de Faria e
Manoel Erhardt (Desembargador convocado do TRF-5ª Região) votaram com
o Sr. Ministro Relator.
Brasília (DF), 05 de abril de 2022 (data do julgamento).
Ministro Benedito Gonçalves, Relator

DJe 11.4.2022

RSTJ, a. 34, (265): 137-219, Janeiro/Março 2022 203


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Benedito Gonçalves: Trata-se de recurso especial interposto


N. R. A. B., por si e representando o menor impúbere J. D. de V. N., com
fundamento no artigo 105, III, “a” e “c”, da Constituição Federal, contra acórdão
proferido pelo TJ/SE, assim ementado (fl. 602/603):

Apelação cível. Ação de indenização por danos materiais e morais.


Responsabilidade objetiva. Acidente de trânsito. Caminhão que caiu em buraco de
15 (quinze) metros de profundidade. Morte do motorista. Ausência de sinalização.
Não comprovação de culpa exclusiva ou concorrente da vítima Sentença
que julgou improcedentes os pedidos. Recurso visando reparação por danos
morais e materiais. Dano material não comprovado. Dano moral devidamente
caracterizado Omissão estatal. Ausência de conservação e sinalização da via
pública. Recurso conhecido e parcialmente provido, para fixar a indenização por
danos morais em 20.000,00 (vinte mil reais), sendo r 10.000,00 (dez mil reais) para
cada recorrente.
1. Comprovados o ato ilícito, o nexo causal e, os danos morais suportados,
resta evidente, o dever de indenizar suscitado.
2. In casu, o réu quedou-se inerte, não atentando para o dever de sinalizar a via
onde ocorrera o infortúnio. Assim procedendo, violou o art. 88 do Código Trânsito
Brasileiro e, por conseguinte, as disposições do art. 37 § 6º da Constituição
Federal, art. 186 e art. 927 do Código Civil vigente.
3. A existência de buraco na via pública destinada ao tráfego de veículos, aliada
à falta de sinalização e ao fato do mesmo estar coberto de água, são elementos
suficientes para excluir qualquer responsabilidade do condutor do caminhão.
4. Omissão que acarreta na responsabilidade de índole subjetiva do réu, que
não comprovou, conforme exige o art. 333, inciso II da Lei Adjetiva Civil, a culpa
concorrente ou exclusiva da vítima.
5. Diante do sofrimento imposto à companheira e filho da vítima, que em
razão do acidente veio a falecer, afigura-se correta a fixação dos danos morais
em R$ 20.000,00 (vinte mil reais), sopesando as demais peculiaridades da lide,
quando da fixação da quantia pelo abalo moral suportado.

Os embargos de declaração foram rejeitados às fls. 628/637.


Em suas razões, os recorrentes alegam violação do artigo 535 do CPC/1973,
ao argumento de que a Corte de origem não se manifestou a respeito de pontos
importantes ao deslinde da controvérsia, em especial acerca do pedido de fixação
de dano material e da alegação de que a dependência econômica é presumida no
caso dos autos.

204
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA

Quanto às questões de fundo, os recorrentes sustentam, além de dissídio


jurisprudencial, ofensa ao art. 16, I e IV, da Lei n. 8.213/1991, defendendo ser
presumida a condição dos recorrentes de dependentes econômicos da vítima
do evento, sendo, portanto, dispensável a comprovação de que suportam dano
material com a morte do pai e companheiro, para que serem agraciados com o
pensionamento mensal postulado na inicial.
Adiante, apontam contrariedade ao artigo 927 do CC/2002, ao fundamento
de que a responsabilidade civil, no caso, é objetiva, decorrente da ação ou
omissão dos agentes públicos, sendo certo que, “além dos reparos, imediatos da
estrada onde aconteceu o evento, o que não foi feito em tempo de evitar o acidente, ou
de pelo menos serem colocados avisos de alerta, o recorrido não comprovou a realização
de obras preventivas para a proteção da via pública” (fls. 652).
Por fim, alega que o valor fixado a título de danos morais é irrisório,
devendo ser revisados, consoante permitido pela jurisprudência desta Corte.
O MPF opinou pelo pelo conhecimento parcial do recurso e seu não
provimento, consoante ementa assim redigida (fls. 829):

Processual Civil e Administrativo. Responsabilidade civil do Estado. Art. 535


do CPC/73. Alegações genéricas. Súmula n. 284/STF, também aplicável à alegada
ofensa ao art. 16 da Lei n. 8.213/91. Ausência de comando normativo capaz de
reverter o resultado do julgamento. Dissídio jurisprudencial não demonstrado.
Danos materiais. Necessidade de comprovação. Pelo conhecimento em parte do
recurso e, nessa extensão, não provimento.

Com contrarrazões às fls. 676/680.


Submetido o feito a julgamento, a Turma, por maioria, conheceu do recurso
especial, retornando os autos a este relator para prosseguir no julgamento do seu
mérito (fls. 840).

VOTO

O Sr. Ministro Benedito Gonçalves (Relator): Consigne-se inicialmente


que o recurso foi interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de
Processo Civil de 1973, devendo ser exigidos os requisitos de admissibilidade na
forma nele previsto, conforme Enunciado Administrativo n. 2/2016/STJ.
Importante também lembrar que o presente feito já foi anteriormente
submetido a julgamento, ocasião em que esta Turma, por maioria, entendeu por

RSTJ, a. 34, (265): 137-219, Janeiro/Março 2022 205


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

bem super os óbices processuais, para conhecer do recurso especial, retornando


os autos a este relator para prosseguir no julgamento de seu mérito (fls. 840).
Dito isso, registra-se que os autos são oriundo de ação de indenização
por danos morais e materiais ajuizada contra o Departamento de Estradas e
Rodagens de Sergipe (DER/SE), em face da morte do pai e companheiro dos
autores, decorrente de acidente de veículo em rodovia estadual, ocasionado por
buraco não sinalizado.
Na sentença, os pedidos foram julgados improcedentes, ao entendimento
de que “não restou comprovada a conduta omissiva da autarquia, para caracterizar
a culpa da mesma na morte de Wladimir Meireles de Vasconcelos e Aécio Rodrigues
Pereira” (fls. 539), tendo o evento decorrido de caso fortuito ou força maior
(fortes chuvas não previsíveis), a descaracterizar o nexo de causalidade e a
responsabilidade estatal.
O Tribunal de origem, por sua vez, após reconhecer a conduta omissiva
e culposa do ente público, relacionada ao dever de sinalização da via pública,
deu parcial provimento ao apelo dos autores, condenando o demandado ao
pagamento de indenização por danos morais no importe de R$ 20.000,00 (vinte
mil reais), sendo R$ 10.000,00 (dez mil reais) para cada recorrente. Em relação
ao danos materiais, registrou não terem sido comprovados.
Na presente insurgência, os recorrentes, em suma, pugnam pela
responsabilização dos poder público pelos danos materiais sofridos em razão do
evento morte, além da majoração dos danos morais fixados na origem em valor
irrisórios.
De início, afasta-se a alegada violação do artigo 535 do CPC/1973,
porquanto o acórdão recorrido manifestou-se de maneira clara e fundamentada
a respeito das questões relevantes para a solução da controvérsia. A tutela
jurisdicional foi prestada de forma eficaz, não havendo razão para a anulação do
acórdão proferido em sede de embargos de declaração.
Quanto ao mérito, a jurisprudência desta Corte é firme no sentido de
que a responsabilidade civil do Estado por condutas omissivas é subjetiva,
sendo necessário, dessa forma, a comprovação da conduta omissiva e culposa
(negligência na atuação estatal - má prestação do serviço), o dano e o nexo
causal entre ambos.
Nesse sentido:

Administrativo. Processual Civil. Agravo interno. Ação indenizatória.


Companhia aberta de exploração de petróleo. Prejuízos de acionistas. Comissão

206
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA

de Valores Mobiliários. Dever de fiscalização. Omissão. Inocorrência. Inexistência


de ofensa ao art. 1.022 do CPC. Ausência de prequestionamento. Súmula 282/STF.
Impossibilidade de análise do conteúdo fático-probatório. Incidência da Súmula
7/STJ. Verba honorária. Razoabilidade. Histórico da demanda
(...)
Inexistência de responsabilidade da Administração
8. A responsabilidade civil da Administração Pública por omissão pressupõe
a comprovação, além do dano, da falta do serviço público ao menos por culpa
(negligência, imprudência ou imperícia) atribuível ao Estado, bem como do nexo de
causalidade entre o dever de agir e o dano. Trata-se de hipótese de responsabilidade
subjetiva, e não objetiva (art. 37, § 3º, da CF/1988), dependendo da comprovação do
elemento subjetivo, o que não ocorreu no caso concreto, em que a parte recorrida
instaurou processos administrativos para investigar a conduta dos gestores da
empresa OGX. Nesse sentido: (RE 369.820. Rel. min. Carlos Velloso. j. 4-11-2003.
2ª T. DJ de 27-2-2004; RE 602.223. AgR/RN. Relator: Min. Eros Grau. Julgamento:
9/2/2010. Órgão Julgador: Segunda Turma).
(...)
12. Agravo Interno não provido (AgInt no REsp 1.773.523/RJ, Rel. Ministro
Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 10/09/2019)

Administrativo. Acidente. Obras na rodovia. Ausência de sinalização. Acórdão


de origem que atesta o nexo causal, o dano e a proporcionalidade da indenização.
Impossibilidade de análise do conteúdo fático-probatório. Incidência da Súmula
7/STJ. Precedentes do STJ
1. Cuida-se de inconformismo contra acórdão do Tribunal a quo que concedeu
indenização por danos morais à recorrida em razão de acidente automobilístico
sofrido pela sua filha na BR 116.
2. O recorrente claramente almeja reexame do acervo fático-probatório para
que seja reconhecida a ausência de comprovação de culpa pela má conservação
da via, uma vez que “como consta do boletim de acidente de trânsito (fls. 25),
havia sinalização na pista. A falta de atenção dos motoristas à sinalização não
pode transferir nenhuma obrigação aos cofres do Estado” (fl. 412).
3. Importante destacar o Acórdão quando atesta a existência do nexo de
causalidade entre a atuação do DNIT e o evento danoso, a responsabilidade
civil decorrente de conduta omissiva verificada: “Somado aos depoimentos,
depreende-se que o acidente ocorreu porque não houve adequada sinalização
relacionada à existência de obras no trecho. Foi uma conjugação de causas,
portanto: uma falha individual e uma falha do serviço (fauce du service)”.
4. Observa-se que o órgão julgador decidiu a questão após percuciente análise
dos fatos e das provas relacionados à causa, sendo certo asseverar que, para
chegar a conclusão diversa, torna-se imprescindível reexaminar o conjunto fático-

RSTJ, a. 34, (265): 137-219, Janeiro/Março 2022 207


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

probatório constante dos autos, o que é vedado em Recurso Especial. Imiscuir-


se na presente aferição encontra óbice no édito 7/STJ: “A pretensão de simples
reexame de prova não enseja recurso especial.”
5. Precedentes do STJ: REsp 1.693.792/CE, Rel. Ministro Herman Benjamin,
Segunda Turma, DJe 19/12/2017; AgInt no AREsp 1.303.420/SP, Rel. Ministro
Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, DJe 29/3/2019; AgInt no AREsp 906.741/
PB, Rel. Ministra Assusete Magalhães, Segunda Turma, DJe 30/11/2016.
6. Recurso Especial não conhecido (REsp 1.782.133/RJ, Rel. Ministro Herman
Benjamin, Segunda Turma, DJe 01/07/2019)

Administrativo. Acidente. Obras na rodovia. Buraco na pista. Ausência


de sinalização. Acórdão de origem que atesta o nexo causal, o dano e a
proporcionalidade da indenização. Impossibilidade de análise do conteúdo
fático-probatório. Incidência da Súmula 7/STJ.
1. Cuida-se de inconformismo contra acórdão do Tribunal de origem que
condenou o DNIT por acidente sofrido por particular em virtude de ausência de
sinalização no local em obras.
2. No presente caso, não se está a condenar o recorrente pela existência de
qualquer buraco na estrada, mas por falta de sinalização em obra, o que gerou
estragos, na rodovia, hábeis a causar acidentes, como no caso em concreto.
3. Importante destacar o Acórdão quando atesta a existência do nexo de
causalidade entre a atuação do DNIT e o evento danoso, a responsabilidade civil
decorrente de conduta omissiva verificada, o dano moral e a proporcionalidade da
indenização.
4. O órgão julgador decidiu a questão após percuciente análise dos fatos e das
provas relacionados à causa, sendo certo asseverar que os reexaminar é vedado
em Recurso Especial, pois encontra óbice no Édito 7/STJ: “A pretensão de simples
reexame de prova não enseja recurso especial”.
5. Recurso Especial não conhecido (REsp 1.793.090/RS, Rel. Ministro Herman
Benjamin, Segunda Turma, DJe 30/05/2019)

Processual Civil e Administrativo. Agravo interno no agravo em recurso especial.


Responsabilidade civil do Estado. Ato omissivo. Responsabilidade subjetiva.
Inexistência de nexo causal e culpa da Administração. Revisão. Impossibilidade.
Súmula 7/STJ.
1. A jurisprudência do STJ é firme no sentido de que a responsabilidade civil do
Estado por condutas omissivas é subjetiva, sendo necessário, dessa forma, comprovar
a negligência na atuação estatal, o dano e o nexo causal entre ambos.
2. No caso dos autos, o Tribunal de origem, com base nos elementos fáticos e
nas provas constantes no processo, concluiu pela inexistência de comprovação
tanto do nexo de causalidade entre o ilícito civil e os danos experimentados,

208
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA

quanto da má prestação de serviço público, por atuação culposa da Administração


Pública. A revisão da questão demanda o reexame dos fatos e provas constantes
nos autos, o que é vedado no âmbito do recurso especial, nos termos da Súmula
7/STJ. Precedentes: AgInt no REsp 1.628.608/PB, Rel. Min. Francisco Falcão,
Segunda Turma, DJe 26/6/2017; AgRg no REsp 1.345.620/RS, Rel. Min. Assusete
Magalhães, Segunda Turma, DJe 2/12/2015; AgRg no AREsp 718.476/SP, Rel. Min,
Herman Benjamin, Segunda Turmam, DJe 8/9/2015; AgInt no AREsp 1.000.816/SP,
Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, DJe 13/03/2018.
2. Agravo interno não provido (AgInt no AREsp 1.249.851/SP, Rel. Ministro
Benedito Gonçalves, Primeira Turma, DJe 26/09/2018)

Processual Civil e Administrativo. Agravo interno no agravo em recurso especial.


Ação ordinária de indenização. Nuvem de fumaça na rodovia. Falta de visibilidade.
Acidente com morte em virtude da colisão entre veículos. Necessidade de
dilação probatória. Documentação nos autos. Responsabilidade civil do Estado
por omissão não configurada. Princípio do livre convencimento motivado do
magistrado. Agravo interno da parte autora a que se nega provimento.
1. Assiste parcial razão à parte agravante no tocante à inaplicabilidade da
Súmula 182/STJ, porquanto o REsp somente veicula alegação de violação legal,
ou seja, hipótese da alínea a, não podendo, portanto, ser inadmitido o Agravo por
ausência de impugnação à inadmissão quanto à divergência jurisprudencial.
2. Em relação às alegadas violações dos arts. 43, 186 e 927 do CC/2002, não
há como se admitir o Apelo Raro, porquanto tais argumentos dizem respeito aos
requisitos da responsabilidade civil, cuja definição se deu ante a interpretação dos
fatos e provas constantes dos autos.
3. Insuscetível de revisão o entendimento da Corte de origem já que os
elementos fático-probatórios dos autos permitiram a conclusão de que não houve
culpa do DER no acidente que ocasionou a morte do marido da ora autora, em
função da pouca visibilidade na estrada, provocada por uma cortina de fumaça
oriunda da vegetação localizada ao lado da rodovia. Destarte, a alteração das
premissas adotadas no acórdão, exigirá novo exame do acervo fático-probatório
constante dos autos, providência vedada em sede de Recurso Especial.
4. Agravo Interno da parte autora a que se nega provimento (AgInt no AREsp
1.000.816/SP, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, DJe
13/03/2018).

Administrativo. Responsabilidade civil da Administração Pública. Indenização


por dano moral. Acidente de trânsito. Não cabimento de recurso especial por
violação de dispositivo constitucional. Ausência de impugnação a fundamento
suficiente. Súmula n. 283 do STF. Consonância do acórdão recorrido com
jurisprudência do STJ. Análise da divergência prejudicada. Súmula n. 83 do STJ.
Recurso especial não conhecido.

RSTJ, a. 34, (265): 137-219, Janeiro/Março 2022 209


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I - É defeso a esta Corte apreciar alegação de violação de dispositivos


constitucionais, sob pena de usurpação da competência do Supremo Tribunal
Federal.
II - A ausência de impugnação de fundamento autônomo apto para manter
o acórdão regional recorrido atrai, por analogia, o óbice do enunciado n. 283 da
Súmula do STF.
III - Consonância do acórdão regional recorrido com a jurisprudência do STJ
em relação à aplicação da teoria da responsabilidade subjetiva à ato omissivo do
Estado, o que prejudica a análise do recurso especial interposto com fundamento
na alínea c do dispositivo constitucional, diante do óbice do enunciado n. 83 da
Súmula do STJ - “não se conhece do Recurso Especial pela divergência, quando a
orientação do Tribunal se firmou no mesmo sentido da decisão recorrida”.
IV - Agravo interno improvido (AgInt no REsp 1.628.608/PB, Rel. Ministro
Francisco Falcão, Segunda Turma, DJe 26/06/2017)

Administrativo e Processual Civil. Agravo regimental em recurso especial.


Responsabilidade civil do Estado. Omissão. Responsabilidade subjetiva. Alegada
violação ao art. 535 do CPC. Inexistência. Culpa ou negligência. Ausência de
provas. Reexame. Incidência da Súmula 7/STJ. Agravo regimental improvido.
(...)
II. A jurisprudência do STJ firmou-se no sentido de que “a responsabilidade civil do
estado por condutas omissivas é subjetiva, sendo necessário, dessa forma, comprovar
a negligência na atuação estatal, o dano e o nexo causal entre ambos” (STJ, AgRg
no AREsp 501.507/RJ, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, DJe de
02/06/2014). Em igual sentido: STJ, REsp 1.230.155/PR, Rel. Ministra Eliana Calmon,
Segunda Turma, DJe de 17/09/2013.
III. Tendo o Tribunal de origem concluído que, no caso, “analisando os
documentos trazidos nos autos, estes não demonstram qualquer culpa ou
negligência por parte da UFRGS, muito pelo contrário, pois existem várias licenças
médicas para tratamento de saúde e procedimento de redaptação deferidos
à servidora”, entender de forma contrária demandaria o reexame do conteúdo
fático-probatório dos autos, o que é vedado, em Recurso Especial, nos termos da
Súmula 7/STJ.
IV. Agravo Regimental improvido (AgRg no REsp 1.345.620/RS, Rel. Ministra
Assusete Magalhães, Segunda Turma, DJe 02/12/2015)

Processual Civil. Agravo regimental. Responsabilidade civil. Revisão da


ocorrência de danos morais. Análise do conjunto fático-probatório dos autos.
Impossibilidade. Súmula 7/STJ.
1. A responsabilidade civil do Estado ou de delegatário de serviço público, no
caso de conduta omissiva, ocorrerá quando presentes estiverem os elementos que

210
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA

caracterizam a culpa, a qual se origina do descumprimento do dever legal atribuído


ao Poder Público de impedir a consumação do dano (cf. REsp 1.210.064/SP, Rel.
Ministro Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, julgado DJe 31.8.2012).
2. O Tribunal a quo - com base nos elementos fáticos e nas provas constantes
no processo - concluiu pela inexistência de nexo de causalidade entre a conduta
omissiva da Administração Pública e o fato danoso. Conclusão em sentido
contrário do que ficou expressamente consignado no acórdão recorrido demanda
reexame do suporte fático-probatório dos autos, vedado em Recurso Especial,
conforme Súmula 7/STJ.
3. Agravo Regimental não provido (AgRg no AREsp 718.476/SP, Rel. Ministro
Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 08/09/2015)

No caso dos autos, o Tribunal expressamente assentou que “o acidente


ocorreu por negligência da autarquia, que tinha o dever de sinalizar adequadamente a
via pública, sobretudo no ponto onde havia a cratera que dificultava a livre circulação
e segurança dos veículos” (fls. 612).
Resta, portanto, incontroverso nos autos que o acidente com evento morte
ocorreu em rodovia estadual, mediante a queda de caminhão em buraco de 15
metros de profundidade, decorrente da ausência de manutenção e fiscalização
estatal da via pública, não havendo quaisquer indícios de culpa exclusiva da
vítima.
Nesse passo, do contexto fático delineado nos autos, é possível concluir
pela existência de omissão culposa por parte do ente público, consubstanciada
na inobservância ao dever de fiscalização e sinalização da via pública, bem como
pelo nexo causal entre a referida conduta estatal e o evento danoso, que resultou
na morte do pai e marido dos recorrentes, causando-lhes, evidentemente,
prejuízos materiais e morais, os quais devem ser indenizados.
A esse respeito, confiram-se os seguintes precedentes proferidos em casos
análogos, relativos a responsabilidade do Estado por acidente causado por
animais em rodovias:

Administrativo. Agravo interno no recurso especial. Responsabilidade civil da


autarquia federal. Vítima de acidente de trânsito em rodovia federal. Omissão da
autarquia federal em fiscalizar animais na rodovia. Morte da vítima por animal na
pista de rolamento em rodovia federal. Fato incontroverso. Valoração dos critérios
jurídicos concernentes à utilização da prova e à formação da convicção. Dever
de vigilância. Responsabilidade subjetiva caracterizada. Redução do quantum
indenizatório. Inovação recursal. Agravo interno da autarquia federal a que se
nega provimento.

RSTJ, a. 34, (265): 137-219, Janeiro/Março 2022 211


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

1. O Tribunal de origem, em sede de Apelação e Reexame Necessário, afastou


a responsabilidade civil do DNIT por entender que seria impossível tal Entidade o
controle extensivo de toda rodovia.
2. Todavia, com efeito ficou reconhecido que o acidente ocorreu em Rodovia
Federal, em razão da presença de animal transitando na pista, situação que denotaria
negligência na manutenção e fiscalização pelo DNIT, além de não haver nos autos
quaisquer indícios de culpa exclusiva da vítima e de força maior.
3. Não há que se falar no afastamento da Responsabilidade Civil do Ente
Estatal, isso porque é dever do Estado promover vigilância ostensiva e adequada,
proporcionando segurança possível àqueles que trafegam pela rodovia. Trata-se,
desse modo, de valoração dos critérios jurídicos concernentes à utilização da prova e
à formação da convicção, e não de reexame do contexto fático-probatório dos autos.
4. Assim, há conduta omissiva e culposa do Ente Público, caracterizada pela
negligência, apta a responsabilizar o DNIT, nos termos do que preceitua a teoria da
Responsabilidade Civil do Estado, por omissão (AgInt no AgInt no REsp 1.631.507/
CE, Rel. Min. Assusete Magalhães, DJe 28.8.2018; e REsp 1.198.534/RS, Rel. Min.
Eliana Calmon, DJe de 20.8.2010).
5. Com relação à redução do valor arbitrado a título de indenização, é certo
que tal tema sequer foi mencionado nas razões das Contrarrazões do Recurso
Especial, e somente foi suscitado em sede de Agravo Interno, o que caracteriza
inovação recursal, vedada diante da preclusão consumativa.
6. Agravo Interno da Autarquia Federal a que se nega provimento (AgInt no
REsp 1.632.985/PE, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, DJe
19/11/2019)

Administrativo e Processual Civil. Agravo interno no recurso especial.


Responsabilidade civil do Estado. Acidente automobilístico. Animal na pista. Dever de
vigilância. Omissão. Responsabilidade subjetiva. Acórdão recorrido em dissonância
com o entendimento desta Corte. Sentença condenatória restabelecida. Agravo
interno improvido.
I. Agravo interno aviado contra decisão que julgara Recurso Especial interposto
contra acórdão publicado na vigência do CPC/2015.
II. Trata-se, na origem, de Ação indenizatória, ajuizada pela parte ora agravada,
com o objetivo de condenar o DNIT e a União ao pagamento de indenização por
danos morais e materiais, decorrentes de acidente automobilístico ocasionado por
animal solto em rodovia federal, que culminou na morte de Francisco Viera da Costa
Filho, marido e pai dos autores. O Juízo de 1º Grau julgou parcialmente procedente a
ação, reconhecendo a a presença dos elementos configuradores da responsabilidade
civil do Estado, por omissão.
III. O Tribunal a quo, por maioria, afastou a responsabilidade civil do Estado
na configuração do dano moral e material, ao fundamento de que “o Estado não

212
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA

tem como controlar, como não tem como controlar a passagem de um animal,
a passagem de uma pessoa, de uma criança que se largue das mãos da mãe e
atravesse a rodovia”. O voto vencedor destacou, ainda, que “o fato de não haver
sinalização luminosa, no meio-fio ou cerca nas propriedades, entendo que no
meio-fio não é obrigatório em rodovias, como também não é obrigação do DNIT
construir cercas para contenção de animais. Em um acaso como este, entendo
que não há obrigação do Estado em indenizar”.
IV. Contudo, do contexto fático, exposto pelas instâncias ordinárias, ficou
reconhecido que o acidente ocorreu em rodovia federal, em razão da presença de
animal transitando na pista, situação que denotaria negligência na manutenção e
fiscalização pelo Estado, além de restarem listados os danos causados aos autores,
afastados quaisquer indícios de culpa exclusiva da vítima e de força maior. Segundo
constou do voto vencido, “inexistem, nos autos, documentos que comprovem
que a entidades públicas têm efetivamente atuado na área com vias a erradicar
o problema. Por outro lado, pelas fotos acostadas aos autos, é claramente visível
a inexistência de contenções para impedir a travessia de animais na pista, o que
configura, sobretudo quando levado em consideração a frequência com que tais
acidentes ocorrem na localidade, a existência de uma falha no serviço prestado.
Nesse passo, a par da situação fática acima delineada e devidamente comprovada,
entendo que restou caracterizada na espécie a responsabilidade civil do Estado por
omissão, havendo nexo causal entre o acidente e a conduta estatal, consubstanciada
no dever de fiscalizar as rodovias e de impedir que animais fiquem soltos em suas
imediações e invadam a pista”. Constou, ainda, que a vítima “usava capacete e
estava com a Carteira Nacional de Habilitação regular, não havendo informações
sobre a velocidade em que conduzia a motocicleta. Afastada, portanto, a
possibilidade de alegação de culpa exclusiva da vítima”.
V. Portanto, o acórdão recorrido contraria a orientação desta Corte, no sentido
de ser dever estatal promover vigilância ostensiva e adequada, proporcionando
segurança possível àqueles que trafegam pela rodovia, razão pela qual se verifica
conduta omissiva e culposa do ente público, caracterizada pela negligência, apta à
responsabilização do Estado. Nesse sentido: STJ, REsp 1.198.534/RS, Rel. Ministra
Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe de 20/08/2010; REsp 438.831/RS, Rel. Ministro
João Otávio de Noronha, Segunda Turma, DJU de 02/08/2006; AgInt no AgInt
no REsp 1.631.507/CE, Rel. Ministra Assusete Magalhães, Segunda Turma, DJe de
28/08/2018.
VI. Estando o acórdão recorrido em dissonância com a orientação firmada
por esta Corte, merece ser mantida a decisão ora agravada, que deu provimento
ao Recurso Especial da parte autora, para restabelecer a sentença, que havia
reconhecido a presença dos elementos configuradores da responsabilidade civil
do Estado por omissão.
VII. Agravo interno improvido (AgInt no REsp 1.658.378/PB, Rel. Ministra
Assusete Magalhães, Segunda Turma, DJe 02/09/2019)

RSTJ, a. 34, (265): 137-219, Janeiro/Março 2022 213


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Com efeito, presentes os elementos necessários para responsabilização


do Estado pelo evento morte, a jurisprudência desta Corte reconhece devida
a indenização por danos materiais aos recorrentes, visto que a dependência
econômica dos cônjuges e filhos menores do de cujos é presumida, dispensando
a demonstração por qualquer outro meio de prova, senão vejamos:

Agravo interno no recurso especial. Ação de indenização por danos materiais


e morais. Acidente de trânsito. Culpa comprovada. Dever de reparar. Morte
de filho maior. Família de baixa renda. Dependência econômica. Presunção.
Pensão devida. Art. 1.022 do CPC/2015. Omissão, contradição, obscuridade e erro
material não verificados. Inovação recursal. Não configuração. Reexame. Súmula
n. 7/STJ. Dissídio jurisprudencial prejudicado.
1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código
de Processo Civil de 2015 (Enunciados Administrativos n. 2 e 3/STJ).
2. Não há falar em negativa de prestação jurisdicional se o tribunal de origem
motiva adequadamente sua decisão, solucionando a controvérsia com a aplicação
do direito que entende cabível à hipótese, apenas não no sentido pretendido pela
parte.
3. Na hipótese, a reforma do acórdão estadual no que diz respeito à inovação
recursal demandaria o reexame do conjunto fático-probatório, procedimento
inadmissível em recurso especial ante o óbice da Súmula n. 7/STJ.
4. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que, em se
tratando de famílias de baixa renda, existe presunção relativa de dependência
econômica entre os membros, sendo devido, a título de dano material, o
pensionamento mensal aos genitores da vítima.
5. A aplicação da Súmula n. 7/STJ obsta a admissão do recurso especial tanto
pela alínea “a” quanto pela alínea “c” do permissivo constitucional. Precedente.
6. Agravo interno não provido (AgInt no REsp 1.880.254/MT, Rel. Ministro
Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 22/03/2021, DJe 25/03/2021)

Processual Civil e Administrativo. Agravo interno no recurso especial. Enunciado


Administrativo 3/STJ. Responsabilidade civil do Estado. Morte em decorrência de
falha em atendimento médico. Dano moral. Irrisoriedade. Possibilidade de revisão
na hipótese. Afastamento da Súmula 7/STJ. Restabelecimento da sentença. Danos
materiais. Pensão aos filhos na proporção de 2/3 da remuneração da vítima genitora.
Termo final aos 25 anos dos beneficiários. Agravo interno não provido (AgInt no
REsp 1.880.112/DF, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma,
julgado em 07/12/2020, DJe 11/12/2020)

Administrativo. Responsabilidade do Estado. Morte de detento. Danos


materiais. Filho. Pensionamento. Comprovação do exercício de atividade
remunerada da vítima. Família de baixa renda. Desnecessidade.

214
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA

1. Reconhecida a responsabilidade do Estado pela morte do genitor, têm os


filhos direito ao recebimento de pensão mensal calculada sobre 2/3 (dois terços) da
remuneração da vítima, desde a data do óbito até o momento em que completarem
25 (vinte e cinco) anos de idade.
2. Em se tratando de família de baixa renda, é devido o pagamento ainda que o de
cujus não exerça atividade remunerada, porquanto presume-se a ajuda mútua entre
os parentes. Essa solução se impõe especialmente no caso dos descendentes órfãos.
3. Ausente parâmetro para a fixação dos ganhos do falecido, deve o
pensionamento tomar por parâmetro o valor do salário mínimo. Precedentes.
4. Agravo interno a que se nega provimento (AgInt no REsp 1.603.756/MG, Rel.
Ministro Og Fernandes, Segunda Turma, DJe 12/12/2018)

Administrativo e Processual Civil. Agravo interno no recurso especial. Acidente


de trânsito. Morte da mãe da autora. Legitimidade passiva e responsabilidade
exclusiva da CEDAE, pelo evento morte, reconhecidas pelo Tribunal de origem.
Presença de nexo causal aferido pelo Tribunal de origem, com base no acervo
fático da causa. Impossibilidade, no caso, de reexame de provas, em sede de
recurso especial. Súmula 7/STJ. Danos morais e materiais. Revisão. Súmula 7/STJ.
Sucumbência recíproca. Impossibilidade de reapreciação. Juros de mora. Termo
inicial. Súmulas 54 e 83/STJ. Agravo interno improvido.
(...)
II. Na origem, trata-se de demanda indenizatória por morte, decorrente de
acidente de trânsito provocado por obras na pista, realizadas pela CEDAE.
(...)
VI. Consoante o entendimento desta Corte, “a dependência econômica de
filho menor em relação aos pais é presumida, dispensando a demonstração por
qualquer outro meio de prova” (STJ, AgRg no Ag 1.294.094/MG, Rel. Ministra Maria
Isabel Gallotti, Quarta Turma, DJe de 06/02/2015). Além disso, sedimentou-se o
entendimento “de fixar a indenização por perda do pai ou progenitor, com pensão
ao filho menor até os 24 (vinte e quatro) anos de idade (integralmente considerados),
ou seja, até a data de aniversário dos 25 anos” (STJ, REsp 592.671/PA, Rel. Ministra
Eliana Calmon, Segunda Turma, DJU de 17/05/2004).
(...)
VIII. Agravo interno improvido (AgInt no REsp 1.554.466/RJ, Rel. Ministra
Assusete Magalhães, Segunda Turma, DJe 22/08/2016)

Agravo interno no agravo em recurso especial. Ação indenizatória por danos


morais e materiais. Colisão de veículos. Óbito do pai e marido dos autores.
Responsabilidade subjetiva da parte ré. Presença de culpabilidade do réu
no evento. Súmula 7 do STJ. Indenização por danos morais. Súmula 7 do STJ.
Pensionamento por ilícito civil que não se confunde com a pensão paga pelo
INSS. Dependência entre cônjuges presumida. Agravo interno não provido.

RSTJ, a. 34, (265): 137-219, Janeiro/Março 2022 215


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

1. No presente caso, o acolhimento da pretensão recursal, para reconhecer a


ocorrência de culpa exclusiva ou concorrente da vítima na ocorrência do evento
danoso, demandaria a alteração das premissas fático-probatórias estabelecidas
pelo acórdão recorrido, com o revolvimento das provas carreadas aos autos, o
que é vedado em sede de recurso especial, nos termos do enunciado da Súmula
7 do STJ.
2. No que concerne ao montante fixado a título de indenização por danos
morais, nos termos da jurisprudência deste Tribunal, o valor estabelecido pelas
instâncias ordinárias pode ser revisto tão somente nas hipóteses em que a
condenação se revelar irrisória ou exorbitante, distanciando-se dos padrões de
razoabilidade, o que não se evidencia no presente caso. Dessa forma, não se
mostra desproporcional a fixação em R$ 100.000,00 (cem mil reais) a título de
reparação moral decorrente de acidente de trânsito que resultou no óbito do
marido e pai das autoras, que morreu carbonizado, de modo que a sua revisão
também encontra óbice na Súmula 7 do STJ.
3. O pensionamento por ilícito civil não se confunde com o pago pela
Previdência Social, por ter origem diversa, de sorte que possível a concomitância
entre ambos, não ficando eximido o causador do sinistro se, porventura, a vítima
ou seus beneficiários percebem pensão paga pelo INSS. Precedentes.
4. A dependência econômica entre cônjuges é presumida, devendo ser arbitrado
pensionamento mensal equivalente a 2/3 (dois terços) dos proventos que eram
recebidos em vida pela vítima em benefício da viúva.
5. Agravo interno não provido (AgInt no AREsp 1.517.574/RJ, Rel. Ministro Luis
Felipe Salomão, Quarta Turma, DJe 04/02/2020)

Agravo interno no agravo em recurso especial. Ação de indenização por danos


morais e materiais. Acidente de trânsito. Violação ao art. 1.022 do CPC. Não
ocorrência. Responsabilidade solidária do proprietário do veículo causador do
acidente. Culpa in vigilando da coisa. Súmula 7 do STJ. Pensão mensal. Renda não
comprovada. Salário mínimo. Agravo interno não provido.
(...)
5. Ademais, esta Corte Superior possui jurisprudência consolidada no sentido de
que, no caso de morte de genitor(a), a pensão aos filhos é de 2/3 do salário percebido
(ou o salário mínimo caso não exerça trabalho remunerado) até que estes completem
24 anos de idade.
6. Agravo interno não provido (AgInt no AREsp 1.551.780/MS, Rel. Ministro Luis
Felipe Salomão, Quarta Turma, DJe 16/12/2019)

Sendo assim, o acórdão de origem deve ser reformado quanto ao ponto, para
condenar o réu ao pagamento de pensão aos recorrentes no valor correspondente
a 2/3 do salário mínimo (face a ausência de parâmetro para a fixação dos ganhos

216
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA

do falecido), a serem pagos até a expectativa média de vida da vítima, segundo a


tabela do IBGE na data do óbito, ou até o falecimento da viúva, com a reversão
em favor exclusiva desta após o menor completar 24 anos de idade.
Nesse sentido:

Administrativo. Processual Civil. Responsabilidade civil do Estado. Morte


de Policial Civil. Ação indenizatória. Pensão mensal às filhas. Danos materiais.
Possibilidade de cumulação com pensão previdenciária. Valor de 2/3 dos
rendimentos da vítima até filhas completarem 25 anos de idade. Para a viúva até
a idade provável do de cujus. Precedentes. Direito de a mãe/viúva acrescer o valor
recebido pelas filhas.
(...)
2. Configurada a possibilidade de cumulação da pensão previdenciária e os
danos materiais, bem como a dependência econômica das filhas e viúva em
relação ao de cujus, afirmada no acórdão recorrido, o valor da pensão mensal deve
ser fixado em 2/3 (dois terços) do soldo da vítima, deduzindo que o restante seria
gasto com seu sustento próprio, e é devida às filhas menores desde a data do óbito
até o limite de 25 (vinte e cinco) anos de idade. Precedentes.
3. Quanto à viúva, a pensão mensal de 2/3 do soldo da vítima à época do evento
danoso deverá ser repartida entre as filhas e a viúva, sendo que para as filhas deverá
ser pago até a data em que elas completarem 25 anos de idade cada uma, e para
a viúva, em consonância com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, até
a data em que a vítima (seu falecido cônjuge) atingiria idade correspondente à
expectativa média de vida do brasileiro, prevista na data do óbito, segundo a tabela
do IBGE. Precedentes.
4. Também é pacífico nesta Corte o entendimento jurisprudencial de ser
possível acrescer as cotas das filhas, ao completarem 25 anos, à cota da mãe.
Precedentes. Agravo regimental improvido (AgRg no REsp 1.388.266/SC, Rel.
Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 16/05/2016)

Por fim, no que concerne ao montante fixado a título de indenização por


danos morais, nos termos da jurisprudência deste Tribunal, o valor estabelecido
pelas instâncias ordinárias pode ser revisto hipóteses em que a condenação se
revelar irrisória ou exorbitante, distanciando-se dos padrões de razoabilidade.
Sob esse contexto, considerando que o caso dos autos diz respeito a
reparação moral decorrente de acidente de trânsito que resultou no óbito do
marido e pai dos autores, tenho que o valor fixado pelas origem, de R$ 20.000,00
(vinte mil reais), sendo R$ 10.000,00 para cada um dos recorrentes, mostra-se
irrisório diante da gravidade do evento, do dano e sofrimento causado, devendo
ser majorado para R$ 100.000,00 (cem mil reais).

RSTJ, a. 34, (265): 137-219, Janeiro/Março 2022 217


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

A esse respeito:

Agravo interno no agravo em recurso especial. Ação indenizatória por danos


morais e materiais. Colisão de veículos. Óbito do pai e marido dos autores.
Responsabilidade subjetiva da parte ré. Presença de culpabilidade do réu
no evento. Súmula 7 do STJ. Indenização por danos morais. Súmula 7 do STJ.
Pensionamento por ilícito civil que não se confunde com a pensão paga pelo
INSS. Dependência entre cônjuges presumida. Agravo interno não provido.
(...)
2. No que concerne ao montante fixado a título de indenização por danos
morais, nos termos da jurisprudência deste Tribunal, o valor estabelecido pelas
instâncias ordinárias pode ser revisto tão somente nas hipóteses em que a
condenação se revelar irrisória ou exorbitante, distanciando-se dos padrões
de razoabilidade, o que não se evidencia no presente caso. Dessa forma, não
se mostra desproporcional a fixação em R$ 100.000,00 (cem mil reais) a título de
reparação moral decorrente de acidente de trânsito que resultou no óbito do marido
e pai das autoras, que morreu carbonizado, de modo que a sua revisão também
encontra óbice na Súmula 7 do STJ.
(...)
5. Agravo interno não provido (AgInt no AREsp 1.517.574/RJ, Rel. Ministro Luis
Felipe Salomão, Quarta Turma, DJe 04/02/2020)

Processual Civil e Administrativo. Responsabilidade civil do Estado. Morte de


preso. Danos morais. Valor. Caso concreto. Manutenção.
1. Conforme estabelecido pelo Plenário do STJ, “aos recursos interpostos com
fundamento no CPC/2015 (relativos a decisões publicadas a partir de 18 de março
de 2016) serão exigidos os requisitos de admissibilidade recursal na forma do
novo CPC” (Enunciado Administrativo n. 3).
2. É firme o entendimento deste Tribunal Superior de não admitir, em sede de
recurso especial, a revisão do montante fixado pela instância de origem a título de
danos morais, salvo em situações excepcionais, em que o quantum indenizatório
seja induvidosamente irrisório ou exorbitante, conforme óbice estampado na
Súmula n. 7 do STJ.
3. Hipótese em que o TJ/AM, ao confirmar a condenação do réu ao pagamento,
em favor da genitora do detento morto dentro do presídio por disparo de arma
de fogo, a título de danos morais, levou em conta a gravidade do caso vertente,
que trata da perda de um filho que se encontrava sob a tutela do Estado, bem
assim os parâmetros adotados pelo STJ em situações similares.
4. Agravo interno desprovido (AgInt no REsp 1.685.425/AM, Rel. Ministro
Gurgel de Faria, Primeira Turma, DJe 20/09/2019)
Notas: Indenização por dano moral: R$ 100.000,00 (cem mil reais).

218
Jurisprudência da PRIMEIRA TURMA

Administrativo e Processual Civil. Agravo interno no recurso especial.


Responsabilidade civil do Estado. Acidente automobilístico. Animal na pista. Dever de
vigilância. Omissão. Responsabilidade subjetiva. Acórdão recorrido em dissonância
com o entendimento desta Corte. Sentença condenatória restabelecida. Agravo
interno improvido.
(...)
VII. Agravo interno improvido (AgInt no REsp 1.658.378/PB, Rel. Ministra
Assusete Magalhães, Segunda Turma, DJe 02/09/2019)
Indenização por dano moral: R$ 160.000,00 (cento e sessenta mil reais).

Ante o exposto, dou parcial provimento ao recurso especial, para fixar os


danos materiais e majorar os danos morais, nos termos acima consignado.
É como voto

RSTJ, a. 34, (265): 137-219, Janeiro/Março 2022 219


SegundaTurma
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM
RECURSO ESPECIAL N. 480.379-PB (2014/0041801-0)

Relatora: Ministra Assusete Magalhães


Agravante: Fundação Nacional de Saúde
Repr. por: Procuradoria-Geral Federal
Agravado: José Augusto de Almeida
Agravado: Jose da Penha Gonzaga
Agravado: Jose Diniz da Silva
Agravado: Jose Ferreira da Silva
Agravado: José Gilson Bezerra dos Santos
Advogado: Verônica Leite Albuquerque de Brito e outro(s) - PB002212

EMENTA

Administrativo. Agravo regimental no agravo regimental no


agravo em recurso especial. Servidor público federal da FUNASA.
Indenização de campo. Arts. 16 da Lei 8.216/91 e 15 da Lei 8.270/91.
Decreto 5.554/2005. Entendimento atual do STJ. Precedentes.
Agravo regimental improvido.
I. Agravo Regimental aviado contra decisão que julgara Agravo
e Recurso Especial interpostos contra acórdão e decisum publicados na
vigência do CPC/73.
II. Cuida-se de Ação Ordinária, ajuizada por servidores da
FUNASA, objetivando o pagamento, desde outubro de 2005, da
indenização de campo reajustada no mesmo percentual da menor
diária, de nível D (R$ 57,28), com acréscimo de 50%, que sempre
incide, sobre a diária, para as localidades que não sejam capital de
Estado, ao fundamento de que o Decreto 5.554/2005, ao assim dispor,
majorou, dissimulada e indevidamente, o valor da diária, de nível D,
não observando, porém, a equivalência de 46,87% entre o reajuste da
diária e o da indenização de campo, conforme previsto no art. 15 da
Lei 8.270/91, que estabeleceu que a indenização de campo, criada
pela Lei 8.216/91, “será reajustada pelo Poder Executivo na mesma
data e percentual de revisão dos valores de diárias”. A sentença julgou
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

procedente a ação, entendendo que a incidência, sempre, do percentual


de 50% sobre a menor diária, de nível D, em quaisquer deslocamentos,
que não para as capitais dos Estados, representou majoração indireta
e dissimulada do valor da diária, de nível D, ante o seu caráter de
generalidade. O Tribunal de origem manteve a sentença, consignando
que o Decreto 5.554/2005 não observou os ditames do art. 15 da Lei
8.270/91, quando fixou o novo e menor valor para a diária, de nível D
(R$ 85,92 = R$ 57,28 + 50% de R$ 57,28), para quaisquer localidades
que não sejam capital de Estado, e quando estabeleceu o valor da
indenização de campo, sem respeitar a correspondência de 46,87%
entre o percentual de reajuste da diária e o da referida indenização de
campo. A decisão ora agravada regimentalmente negou provimento ao
Recurso Especial da FUNASA.
III. A indenização de campo, criada pelo art. 16 da Lei 8.216/91,
foi fixada, pelo art. 15 da Lei 8.270, de 17/12/91, no valor de Cr$
9.000,00 (nove mil cruzeiros), prevendo o dispositivo, ainda, que a
verba seria reajustada na mesma data e pelo mesmo percentual de
revisão das diárias pagas aos servidores públicos civis da União, sendo
certo que, à época, o valor da diária do servidor da União, de nível D –
menor valor de diária fixado pelo Decreto 343, de 19/11/91 –, era de
Cr$ 19.200,00 (dezenove mil e duzentos cruzeiros), correspondendo
a indenização de campo a 46,87% do valor da menor diária paga a
servidor da União (nível D).
IV. Essa equivalência de 46,87% deveria ser observada nos
posteriores reajustes da indenização de campo. Ocorre que, com a
edição do Decreto 1.656, de 03/10/95, fixando a diária do servidor da
União, de nível D, em R$ 57,28 (cinqüenta e sete reais e vinte e oito
centavos), e o valor da indenização de campo em R$ 17,46 (dezessete
reais e quarenta e seis centavos), esta última passou a corresponder
apenas a 30,48% do valor da diária de nível D, resultando em uma
perda de 16,39%, em afronta ao art. 15 da Lei 8.270/91. No referido
Decreto 1.656/95 estabeleceu-se, ainda, uma parcela fixa a ser paga
a título de diária, acrescida de um adicional variável, dependendo da
cidade de deslocamento do servidor, equivalente a 0%, na hipótese de
cidades com menos de 200.000 (duzentos mil) habitantes, a 50%, para
as cidades com mais de 200.000 (duzentos mil) habitantes, e a 70%,
80% e 90%, conforme as localidades nele mencionadas.

224
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA

V. O Decreto 3.643, de 26/10/2000, repetiu os mesmos valores,


constantes do Decreto 1.656/95, para o valor básico da menor diária,
de nível D (R$ 57,28), e para o da indenização de campo (R$ 17,46).
VI. O próprio Ministério do Planejamento, Orçamento e
Gestão, pela Portaria 406, de 02/10/2002, com fundamento no art.
15 da Lei 8.270/91, estabeleceu que a indenização de campo deveria
corresponder a 46,87% do valor da diária – que, na ocasião, para o
nível D, equivalia a R$ 57,28 (cinquenta e sete reais e vinte e oito
centavos) –, reajustando a indenização de campo para R$ 26,85 (vinte
e seis reais e oitenta e cinco centavos), com efeitos financeiros a contar
de 01/08/2002.
VII. Posteriormente, entretanto, o Decreto 5.554, de 04/10/2005,
manteve o valor básico anterior da diária de nível D (R$ 57,28) e o
valor da indenização de campo (R$ 17,46), previstos nos Decretos
1.656/95 e 3.643/2000 – valor da indenização de campo que já havia
sido majorado, pela Portaria ministerial 402/2002, para R$ 26,85
(vinte e seis reais e oitenta e cinco centavos), correspondente a 46,87%
de R$ 57,28 (cinquenta e sete reais e vinte e oito centavos), menor
valor da diária, de nível D –, e, em relação ao percentual variável, a ser
acrescido ao valor básico da diária, estabeleceu que o seu valor mínimo
seria de 50% (cinquenta por cento), para quaisquer localidades que
não as capitais dos Estados.
VIII. O STJ, de há muito, firmou o entendimento de que a
indenização de campo, prevista no art. 16 da Lei 8.216/91, deve ser
reajustada pelo Poder Executivo na mesma data e com os mesmos
percentuais de reajuste aplicados às diárias, e que “esta previsão resulta
na garantia de que a indenização deve sempre corresponder ao valor
de 46,87% das diárias, tendo em vista que esta proporção permanece
inalterada, independentemente do percentual de reajuste aplicado nas
diárias” (STJ, REsp 690.309/PB, Rel. Ministro Gilson Dipp, Quinta
Turma, DJU de 13/06/2005). Em igual sentido: STJ, AgRg no Ag
1.008.170/PA, Rel. Ministro Nilson Naves, Sexta Turma, DJe de
28/09/2009.
IX. O Decreto 5.554/2005, não obstante a Portaria ministerial
402, de 02/10/2002 – que, regularizando a situação, fixara o valor
da indenização de campo, com efeitos financeiros a partir de

RSTJ, a. 34, (265): 221-278, Janeiro/Março 2022 225


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

01/08/2002, em R$ 26,85 (vinte e seis reais e oitenta e cinco centavos),


correspondente a 46,87% do menor valor da diária, de nível D, no
importe de R$ 57,28 –, continuou fixando a indenização de campo
em R$ 17,46, valor menor que o da Portaria ministerial 402/2005 e
que era o valor anteriormente previsto para a mencionada indenização
de campo, nos anteriores Decretos 1.656/95 e 3.643/2000 (R$ 17,26).
Ademais, com o Decreto 5.554/2005, o menor valor da diária, de
nível D, passou a corresponder à parcela fixa da diária (R$ 57,28),
acrescida sempre do percentual mínimo de 50%, pago aos servidores
em quaisquer deslocamentos não contemplados com percentuais
maiores (acréscimos de 70%, 80% e 90% do valor básico da diária,
a depender da capital do Estado), o que corresponde a R$ 85,92
(R$ 57,28 + 50% de R$ 57,28 = R$ 85,92). Assim, a indenização
de campo deve corresponder a R$ 40,27 (quarenta reais e vinte e
sete centavos), ou seja, a 46,87% de R$ 85,92 (oitenta e cinco reais
e noventa e dois centavos). Portanto, o Decreto 5.554/2005 ofende
o art. 15 da Lei 8.270/91, seja sob a ótica do valor da indenização
de campo, por ele fixada em R$ 17,46 – inferior, pois àquele valor
anteriormente estabelecido em R$ 26,85, pela Portaria ministerial
402/2002, com efeitos a contar de 01/08/2002 –, seja quanto ao valor
mínimo de diária, de nível D, acrescido de parcela variável mínima de
50%, paga sempre aos servidores, em quaisquer deslocamentos não
contemplados com percentuais maiores. Nesse sentido: STJ, AgRg
no AREsp 466.093/PB, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda
Turma, DJe de 22/05/2014; AgRg no REsp 1.321.109/PB, Rel.
Ministro Olindo Menezes, (Desembargador Federal convocado do
TRF/1ª Região), Primeira Turma, DJe de 11/11/2015.
X. Ao apreciar espécie análoga, inclusive à luz do Decreto
5.554/2005, a Primeira Turma do STJ concluiu que, “ao estender
o adicional de 50% aos deslocamentos para todas as cidades com
menos de 200.000 habitantes, excluindo a restrição anteriormente
prevista no Decreto n. 3.643/2000, o Decreto n. 5.554/05, ainda que
indiretamente, majorou o valor das diárias, não observando, contudo,
a equivalência de 46,87% entre elas e a indenização de campo,
conforme previsto no art. 15 da Lei n. 8.270/91. Com a ampliação
no pagamento do adicional de 50% aos ‘demais deslocamentos’, a
norma regulamentadora não cuidou apenas de adequar o valor da

226
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA

diária à realidade econômica da localidade visitada, tendo, sobretudo,


elevado o valor da verba, por meio de adicional totalmente genérico,
porquanto pago indistintamente a todos os deslocamentos que
não restaram contemplados com percentuais maiores” (STJ, REsp
1.303.307/PB, Rel. Ministra Regina Helena Costa, Primeira Turma,
DJe de 29/10/2018).
XI. Contra o acórdão do REsp 1.303.307/PB foram opostos
Embargos de Divergência,pela FUNASA,invocando,como paradigma,
acórdão da Segunda Turma, proferido no AgRg no REsp 1.475.168/
CE (Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, DJe de 08/10/2014),
que se fundamentou na orientação fixada, em 18/12/2012, no AgRg
no REsp 1.283.707/PB (Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda
Turma, DJe de 08/02/2013). Os Embargos de Divergência não foram
conhecidos monocraticamente, pelo Ministro Herman Benjamin, ao
entendimento de que, “embora verificada a similitude fática entre o
acórdão embargado e os paradigmas apresentados, tais paradigmas
datam de 2014, e o acórdão embargado é de 2018, e acompanha a
orientação mais atual dessa Colenda Corte” (STJ, EREsp 1.303.307/
PB, Rel. Ministro Herman Benjamin, DJe de 08/08/2019, transitado
em julgado).
XII. Ademais, a Súmula 54 da AGU, de 2010, assentou que “a
indenização de campo, criada pelo artigo 16 da Lei n. 8.216/91, deve
ser reajustada na mesma data e no mesmo percentual de revisão dos
valores das diárias, de modo que corresponda sempre ao percentual de
46,87% das diárias”.
XIII. Agravo Regimental improvido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,


acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, por
unanimidade, negar provimento ao agravo regimental, nos termos do voto da
Sra. Ministra Relatora.
Os Srs. Ministros Francisco Falcão, Herman Benjamin, Og Fernandes e
Mauro Campbell Marques votaram com a Sra. Ministra Relatora.
Brasília (DF), 22 de março de 2022 (data do julgamento).

RSTJ, a. 34, (265): 221-278, Janeiro/Março 2022 227


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Ministra Assusete Magalhães, Relatora

DJe 11.4.2022

RELATÓRIO

A Sra. Ministra Assusete Magalhães: Trata-se de Agravo Regimental,


interposto por Fundação Nacional de Saúde - FUNASA, contra decisão de minha
lavra, publicada na vigência do CPC/73, assim fundamentada, in verbis:

Trata-se de Agravo Regimental, interposto por José Augusto de Almeida e Outros,


contra decisão da minha lavra, que conheceu do agravo para dar provimento ao
Recurso Especial interposto pela FUNASA, assim concebida:

Trata-se de Agravo, interposto pela Fundação Nacional de Saúde -


FUNASA, contra decisão que inadmitiu o Recurso Especial manifestado no
art. 105, III, a, da Constituição Federal.
Narram os autos que a parte autora ajuizou ação de rito ordinário
objetivando a revisão do valor da indenização de campo no percentual
previsto na Lei 8.216/91 c/c o pagamento das diferenças devidas desde
20/10/2005, alegando que o Decreto 5.554/2005, estipula o valor de R$
57,28 para a diária ‘nível d’, acrescido de 50% (nos demais deslocamentos),
cuja equação aritmética resulta em R$ 85,92.
O Tribunal a quo manteve a sentença de procedência do pedido, em
acórdão ementado nos seguintes termos:

Administrativo. Servidores públicos da FUNASA. Indenização de


campo. Reajuste assegurado no mesmo percentual das diárias. Lei
8.216/91, art. 16. Lei 8.270/91. Direito às diferenças. Possibilidade.
1. A hipótese é de pedido de indenização por trabalho de campo
prevista no art. 16, da Lei n. 8.216/91, c/c o art. 15, da Lei n. 8.270/91,
pleiteando o autor os valores relativos à diferença entre o percentual de
46,87% da diária de nível ‘D’ e o valor que vinha sendo percebido.
2. É pacífico o entendimento deste egrégio Tribunal no sentido de
que, se a razão entre a indenização de campo e a diária ao tempo da
Lei era de 46,87%, esta proporção deve permanecer inalterada. Muito
embora em setembro de 2002 a FUNASA, através da Portaria n. 406/2002,
tenha implantado o percentual de reajuste para indenização de campo
na mesma base de correção das diárias, o Decreto n. 5.554/2005, não
observando os ditames do art. 15, da Lei n. 8.270/91, fixou os novos
valores para as diárias de nível ‘D’ (R$ 85,92) e a indenização de campo

228
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA

(R$ 26,85) sem respeitar a correspondência entre o percentual da diária


e o da referida indenização (46,87%), em nítida violação ao referido
artigo. Devidas as parcelas vencidas, a partir de outubro de 2005.
3. Juros de mora fixados no percentual de 0,5% (meio por cento)
ao mês, a partir da citação, nos termos do art. 1º-F da Lei n. 9.494/97
(acrescido pela MP n. 2.180-35, de 24.08.2001).
4. Honorários advocatícios mantidos, tendo em vista se tratar
de feito em que se discute matéria já bastante conhecida e de fácil
deslinde, não exigindo do causídico grandes esforços para a solução
do conflito.
5. Remessa oficial e apelação conhecidas, mas desprovidas (fl.
127e).

A agravante, nas razões do Recurso Especial, sustenta, em síntese, ofensa


ao art. 37 da CF, à Súmula 339/STF, aos arts. 16 da Lei 8.216/91 e 15 da Lei
8.270/91, porquanto foi editada Portaria 406/2002, que estabeleceu que a
partir de 1º de agosto de 2002 o valor de indenização de campo passaria a
ser de R$ 26,86, sendo assim, seu valor fora majorado em 53,78%.
Alega que ‘para as cidades como Manaus e Brasília a diária é acrescida de
90%, enquanto que nas capitais mais importantes economicamente ela é
acrescida do percentual de 80%, nas demais capitais do percentual de 70%,
e nas demais cidades de 50%’ (fl. 158e).
Defende que ‘a pretensão de que a diária seja considerada com o valor
consignado no Decreto n. 5.554/2005 com o acréscimo do percentual
relativo ao deslocamento de 50%, é uma construção ardilosa, e que só
atende ao interesse particular da parte autora, dado que assim não está
determinado no texto legal’ (fl. 160e).
Requer, assim, o provimento recursal para que seja julgado improcedente
o pedido, com a inversão do ônus sucumbenciais.
O Recurso Especial não foi admitido na origem com base na Súmula 83/
STJ. Daí a interposição do presente Agravo com fundamento no art. 544, §
4º, do CPC.
Foi oferecida contraminuta (fls. 217/218e).
É o relatório. Decido.
A irresignação merece prosperar.
A interposição de recurso especial não é cabível com relação à violação
de dispositivo constitucional, súmula ou de qualquer ato normativo que
não se enquadre no conceito de lei federal, conforme disposto no art. 105,
III, a, da Constituição Federal.

RSTJ, a. 34, (265): 221-278, Janeiro/Março 2022 229


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

No caso dos autos, se postula o pagamento do adicional de 50% no


cálculo da indenização de campo, sob o fundamento de que tal adicional
deve ser estendido aos servidores, para todas as cidades, em equivalência.
Sobre o tema, a atual jurisprudência da Segunda Turma do STJ evoluiu
no sentido de que a fixação de percentual variável, de pagamento de diária,
para adequação à realidade econômica da localidade visitada, não tem a
faculdade de reajustar a referida indenização e, por conseguinte, não viola
os arts. 15 da Lei 8.270/91 e 16 da Lei 8.216/91.
Confiram-se:

Administrativo. Processual Civil. Diárias de campo. FUNASA.


Decreto 5.554/2005. Criação do adicional de deslocamento. Não
incidência na indenização de campo. Precedente da Segunda Turma.
1. Cuida-se de recurso especial interposto pela Fundação Nacional
de Saúde (FUNASA) contra acórdão proferido pelo Tribunal Regional
Federal da 5ª Região que consignou que o Decreto n. 5.554/2005 teria
fixado novos valores para as diárias e, portanto, deveria incindir em
relação às diárias de campo para evitar a violação do art. 15 da Lei n.
8.270/91.
2. Não há violação do art. 535, II, do Código de Processo Civil
quando a controvérsia é dirimida de forma integral e com
fundamentação suficiente.
3. Não é possível apreciar alegações de violação da Constituição
Federal em sede de recurso especial, sob pena de usurpar a função
jurisdicional outorgada ao Pretório Excelso.
4. A Segunda Turma mudou o seu entendimento recentemente sobre
o tema em acórdão, de minha relatoria, pelo qual se determinou que
‘a fixação de percentual variável, de adicional ao pagamento de diária,
para adequação à realidade econômica da localidade visitada não
tem a faculdade de reajustar a referida indenização e, por conseguinte,
não viola o art. 15 da Lei n. 8.270/91’ (AgRg no REsp 1.283.707/PB, Rel.
Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 8.2.2013).
5. Recurso especial conhecido em parte e provido (STJ, REsp
1.264.429/PB, Rel. Ministra Eliana Calmon, Rel. p/ Acórdão Ministro
Humberto Martins, Segunda Turma, DJe de 20/02/2014).

Administrativo. Processual Civil. Servidor público federal. FUNASA.


Alegada violação do art. 15 da Lei n. 8.270/91. Reajuste das diárias
pelo Decreto n. 5.554/2005. Inexistência. Natureza jurídica diversa.
Precedente da Terceira Seção.
1. Cuida-se de recurso especial que postula reformar o acórdão no
qual se consignou ter o Decreto n. 5.554/2005 violado a proporção

230
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA

necessária das indenizações de campo do art. 16 da Lei n. 8.216/91 para


com as diárias, pelo que dispõe o art. 15 da Lei n. 8.270/91.
2. O referido decreto, além de fixar os valores das diárias reiterou
a elas a instituição de um adicional, em razão da localidade do
deslocamento do servidor, como se visualiza do seu anexo I.
3. A fixação de percentual variável, de adicional ao pagamento
de diária, para adequação à realidade econômica da localidade
visitada não tem a faculdade de reajustar a referida indenização e, por
conseguinte, não viola o art. 15 da Lei n. 8.270/91. Aliás, a controvérsia
fica claramente diferenciada quando se visualiza que a Terceira Seção
já demarcou a natureza jurídica distinta entre ‘diária’ e ‘adicional de
localidade’. Precedente: AgRg na Pet 7.148/GO, Rel. Min. Arnaldo
Esteves Lima, Terceira Seção, DJe 2.9.2009.
4. Agravo regimental provido para dar provimento ao recurso
especial (STJ, AgRg no REsp 1.283.707/PB, Rel. Ministro Humberto
Martins, Segunda Turma, DJe de 08/02/2013).

O referido entendimento fundamentou-se nos seguintes pressupostos:


a) que o Decreto 3.643/2000, reproduziu em parte o Decreto 1.656/95,
que, posteriormente, foi alterado pelo Decreto 5.554/2005, segundo o qual
o percentual de 50% deixaria de ser exclusivo para as cidades de população
acima de 200.000 habitantes, passando a contemplar todas as demais
cidades expressamente relacionadas em seu Anexo ‘I’, quais sejam: Brasília
(DF), Manaus (AM), São Paulo (SP), Rio de Janeiro (RJ), Recife (PE), Belo
Horizonte (MG), Porto Alegre (RS), Belém (PA), Fortaleza (CE), Salvador (BA),
e demais capitais.
b) que a última norma supracitada não reajustou o valor nominal das
diárias dos servidores da FUNASA, que continuou a ser de R$ 57,28, mas
apenas efetuou modificações em relação ao pagamento dos adicionais
de 90%, 80%, 70% e 50% sobre a diária, os quais variam de acordo com
as peculiaridades econômicas da localidade para o qual o servidor é
designado temporariamente.
No mesmo sentido foram proferidas as seguintes decisões monocráticas:
STJ, AREsp 498.017/PB, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda
Turma, DJe de 08/05/2014; STJ, AREsp 470.406/PB, Rel. Ministro Mauro
Campbell Marques, Segunda Turma, DJe de 26/03/2014.
Ante o exposto, conheço do Agravo para dar provimento ao Recurso
Especial, para julgar improcedente o pedido.
Fixo a verba honorária em 5% sobre o valor da causa (art. 20, § 4º, do
CPC), ficando a execução suspensa, nos termos do art. 12 da Lei 1.060/50’
(fls. 280/283e).

RSTJ, a. 34, (265): 221-278, Janeiro/Março 2022 231


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Nas razões do presente Agravo Regimental, a parte recorrente sustenta, em


síntese, ‘ineficácia de fundamentação’ da decisão ora agravada, pois ‘inexiste
fundamentação jurídica ou menção de dispositivo de lei no qual se funda
para dar provimento ao Agravo’ (fl. 294e), nos moldes exigidos pelos arts. 93,
IX, da Constituição Federal e 458 do CPC, pois ‘a decisão judicial tem de ser
fundamentada, sob pena de nulidade absoluta’ (fls. 294/295e).
Alega, ainda, ‘o desprezo de trinta (30) decisões e acórdãos transitados em
julgado, inclusive decisões e acórdãos de relatoria dos Ministros Campbell e
Martins, proferidos recente, tempos após o julgamento do REsp n. 1.283.707/
PB (fl. 300e)’, sendo caso de se conhecer do Agravo e dar provimento ao Recurso
Especial.
Aduz, também, que ‘nessas condições, quaisquer decisões que venham a ser
proferidas escoradas no REsp n. 1.283.707/PB, irrefragavelmente, padecem de
nulidade absoluta, na forma da lei’ (fl. 300e).
Pondera, que a decisão recorrida está ‘em dissonância à tese consagrada em
sede do Superior Tribunal de Justiça desde 2005’ (fls. 300/301e).
Requer, ao final, a reconsideração da decisão ora agravada, ‘ou, caso assim
não entenda, levar o feito em mesa, conforme determina o mesmo dispositivo
posto que à luz do direito atinente à espécie, por certo, os demais Ministros darão
provimento ao presente agravo para não conhecer do Agravo da FUNASA’ (fl.
301e).
A parte ora agravante protocolou petição (fls. 357/384e), relacionando
inúmeros julgados desta Corte Superior (fl. 383e) e cópia dos acórdãos, com
entendimento, segundo o recorrente, em sentido contrário ao da decisão
recorrida.
É o relatório.
Tendo em vista a relevância dos argumentos esposados pelos agravantes,
reconsidero a decisão de fls. 280/283e.
Isto porque, sobre o tema, a atual jurisprudência da Primeira Seção do STJ firmou-
se no sentido de que o reajuste da indenização de campo, prevista no artigo 16 da
Lei 8.216/1991, deve corresponder aos percentuais atribuídos às diárias, conforme
determina o artigo 15 da Lei n. 8.270/1991.
Confiram-se os precedentes:

Administrativo e Processual Civil. Agravo regimental. Recurso especial.


Servidor público. Deficiência de fundamentação. Ausência de indicação do
dispositivo legal supostamente violado. Súmula 284/STF. Indenização de
campo instituída pelo art. 16 da Lei 8.216/91. Reajuste. Precedentes. Súmula
83/STJ. Agravo não provido.
1. É deficiente a fundamentação do recurso especial que não indica
o dispositivo legal supostamente contrariado, por não permitir a

232
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA

compreensão de questão infraconstitucional hábil a viabilizar o trânsito do


recurso, o que atrai o óbice previsto na Súmula n. 284/STF.
2. A indenização prevista no art. 16 da Lei 8.216/91 deve ser reajustada pelo
Poder Executivo na mesma data e percentuais de reajustes aplicados às diárias.
3. O tribunal de origem decidiu em harmonia com a orientação
predominante desta Corte, incidindo ao caso a Súmula 83 do STJ (‘Não se
conhece do recurso especial pela divergência, quando a orientação do
Tribunal se firmou se firmou no mesmo sentido da decisão recorrida’).
4. Agravo regimental não provido (AgRg no REsp 1.321.109/PB, Rel.
Ministro Olindo Menezes (Desembargador Convocado do TRF 1ª Região),
Primeira Turma, DJe 11/11/2015).

Processual Civil e Administrativo. Servidor público. FUNASA. Indenização


de campo instituída pelo art. 16 da Lei 8.216/91. Reajuste. Súmula 83/STJ.
1. O STJ firmou o entendimento de que a indenização prevista no art. 16
da Lei 8.216/91 deve ser reajustada pelo Poder Executivo na mesma data e
percentuais de reajustes aplicados às diárias.
2. Dessume-se que o acórdão recorrido está em sintonia com a atual
jurisprudência do STJ, razão pela qual não merece prosperar a irresignação.
Incide, in casu, o princípio estabelecido na Súmula 83/STJ: ‘Não se conhece do
Recurso Especial pela divergência, quando a orientação do Tribunal se firmou
no mesmo sentido da decisão recorrida’.
3. Agravo Regimental não provido. (AgRg no AREsp 466.093/PB, Rel.
Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 22/05/2014).

No mesmo sentido foram proferidas as seguintes decisões monocráticas: AgRg


no REsp 1.415.484/PB, Rel. Min. Benedito Gonçalves, DJe de 14/08/2015; REsp
1.351.422/PB, Rel. Ministra Marga Tessler (Juíza Federal Convocada do TFR 4ª
Região, DJe DE 22/05/2015; REsp 1.283.707/PB, Rel. Min. Humberto Martins, DJe de
10/11/2011.
Vale acrescentar que a edição da Súmula 54 da AGU de 2010, na qual ficou
assentado que ‘a indenização de campo, criada pelo artigo 16 da Lei n. 8.216/91,
deve ser reajustada na mesma data e no mesmo percentual de revisão dos valores
das diárias, de modo que corresponda sempre ao percentual de 46,87% das diárias’
chancela a tese dos agravantes.
Ante o exposto, reconsidero a decisão de fls. 280/283e para negar seguimento
ao Recurso Especial interposto pela FUNASA (fls. 473/479e).

Inconformada, a FUNASA alega que:

II – Do mérito

RSTJ, a. 34, (265): 221-278, Janeiro/Março 2022 233


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Conforme se demonstrará, pela análise dos normativos legais que regulamentam


a indenização de campo, não há como se julgar procedente o pedido formulado na
inicial, uma vez que não foi desrespeitada a proporção estabelecida legalmente entre
os valores das diárias e da indenização de campo.
Segue, por oportuno, histórico normativo acerca da indenização de campo.
A indenização de campo foi instituída pelo artigo 16, da Lei n. 8.216, de 13 de
agosto de 1991, nos seguintes termos:

Art. 16. Será concedida, nos termos do regulamento, indenização de


Cr$ 4.200,00 (quatro mil e duzentos cruzeiros) por dia, aos servidores que se
afastarem do seu local de trabalho, sem direito à percepção de diárias, para
execução de trabalhos de campo, tais como os de campanha de combate
e controle de endemia; marcação, inspeção e manutenção de marcos
decisórios; topografia; pesquisa, saneamento básico, inspeção e fiscalização
de fronteiras internacionais.
Parágrafo único. É vedado o recebimento cumulativo da indenização
objeto do caput deste artigo com a percepção de diárias.

Posteriormente, com a edição da Lei n. 8.270/91, fixou-se que:

Art. 15. A indenização criada pelo art. 16 da Lei n. 8.216, de 1991, é fixada
em nove mil cruzeiros e será reajustada pelo Poder Executivo na mesma data e
percentual de revisão dos valores de diárias.

Ao regulamentar o referido diploma legal, o Decreto Federal n. 343, de 19 de


novembro de 1991, em seu artigo 4º, estabeleceu o seguinte:

Art. 4º - A indenização de que trata o art. 16 da Lei n. 8.216, de 13 de agosto


de 1991, será devida aos servidores de toda e qualquer categoria funcional
que se afastar da zona considerada urbana de seu município de sede para
execução de atividades de campanhas de combate e controle de endemias,
marcação, inspeção e manutenção de marcos divisórios, topografia, pesquisa,
saneamento básico, inspeção e fiscalização de fronteiras internacionais.

Assim, o pagamento da indenização de campo não decorre exclusivamente do


cargo ocupado pelo servidor, mas em função do deslocamento da sede do serviço
para o campo, seja em área urbana, rural ou indígena, e da consequente execução
das atividades de caráter itinerante especificadas no Decreto n. 343/91, visto que o
seu objetivo é o ressarcimento de eventuais despesas que o servidor tenha na
execução das atividades descritas em lei.
No que tange ao valor da indenização de campo, este foi fixado pelo Decreto
Federal n. 343, de 19 de novembro de 1991, no montante de R$ 17,46 (dezessete reais e
quarenta e seis centavos), o que de acordo com o artigo 13 do mesmo diploma legal,

234
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA

com redação alterada pelo Decreto Federal n. 1.656/95, competia ao então Ministério
da Administração Federal e Reforma do Estado, atual Ministério do Planejamento,
Orçamento e Gestão, rever e alterar este valor.
Com vistas à atualização do valor destinado à indenização de campo, o
Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão/MP editou a Portaria n. 406,
de 02 de outubro de 2002:

Art. 1º O valor da indenização de campo, de que trata o art. 16 da


Lei n. 8.216, de 13 de agosto de 1991, concedida aos servidores que se
afastam do seu local de trabalho, sem direito à percepção de diárias,
para execução de trabalho de campo, é reajustado para R$ 26,85 (vinte e
seis reais e oitenta e cinco centavos).
Art. 2º Os efeitos financeiros, decorrentes da aplicação desta Portaria,
terão vigência a partir de 1º de agosto de 2002.

Desde então a indenização de campo encontra-se fixada no valor de R$


26,85 (vinte e seis reais e oitenta e cinco centavos).
Os autores sustentam que com a edição do Decreto n. 5.554, de 04 de
outubro de 2005, houve revisão do valor da diária, mediante a aplicação do
percentual de 50% incidente sobre as diárias dos grupos ‘A’, ‘B’, ‘C’ e ‘D’, em
deslocamento para lugares distintos das capitais e cidades em que o percentual
é distinto, o que, segundo o mesmo, impõe a incidência do percentual de 50%
quando do cálculo do valor da indenização de campo, considerando-se o valor
da diária Nível ‘D’. Todavia, nos termos do citado Decreto, o percentual não foi
aplicado à indenização de campo.
A questão não se apresenta da forma como pretendem os Autores.
O Decreto n. 5.554/2005 não promoveu aumento no valor linear das
diárias, eis que os valores constantes do aludido decreto permanecem os
mesmos previstos no Decreto n. 3.643/2000, conforme se observa claramente
do Anexo I ao Decreto n. 343/1991. Tais tabelas constam do texto normativo
não se caracterizando como discussão de fatos e provas.
O que houve foi tão-somente a alteração da destinação do acréscimo de
50% sobre as diárias, anteriormente devido unicamente para deslocamentos
para as cidades (zonas urbanas) enumeradas em Instrução Normativa do
MARE (N. 09/1998), com mais de 200 mil habitantes. Não houve modificação
dos percentuais de acréscimo para cidades como Brasília, Manaus, São
Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Belo Horizonte, Porto Alegre, Belém, Fortaleza,
Salvador e demais capitais dos Estados.
O Decreto n. 5.554/2005 é, na verdade, uma reprodução do Decreto n.
3.643/2000, de 26 de outubro de 2000, que, inclusive, já previa os mesmos

RSTJ, a. 34, (265): 221-278, Janeiro/Março 2022 235


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

percentuais para deslocamento às cidades especificadas. Por sua vez, o


Decreto n. 3.643/2000 era uma reprodução do Decreto n. 1.656/95, o qual
também já previa a existência dos acréscimos sobre a diária. Em resumo, a
inclusão dos citados acréscimos sobre as diárias remonta a 1995 (Decreto
n. 1.656).
A única distinção em relação aos decretos mencionados é que, no último,
estabeleceu-se uma regra única para os deslocamentos em que incide o
percentual de 50%, deixando de ser exclusivo para as cidades com população
acima de 200.000 habitantes (exigência dos decretos anteriores) e passando
a contemplar todas as demais cidades que não fossem relacionadas nos
percentuais anteriores.
Significou, pois, mudança de critério para concessão do acréscimo do
deslocamento, visando a abranger municípios com menos de 200 mil
habitantes, em decorrência de prejuízos constatados nas realizações de
ações policiais e de controle e fiscalização, sendo que os percentuais de
acréscimo não incidem sobre a indenização de campo, na forma do Decreto
n. 5.554/2005 e tampouco incidiam anteriormente.
Os Decretos n. 1.656/95 e n. 3.643/00, nos seus Anexos ‘I’, já estabeleciam,
expressamente, que a diária era de R$ 57,28, prevendo, também, acréscimos de
90%, 80%, 70% e 50% a depender da cidade para onde se deslocaria o servidor.
O Decreto n. 1.656 vigeu de 1995 a 2000, quando entrou em vigor o Decreto n.
3.643. Já este, por sua vez, vigeu até 04.10.2005, quando, então, foi revogado
pelo Decreto n. 5.554/05. Este último, esclareça-se, manteve inalterado o valor
de R$ 57,28 da diária, bem como os acréscimos de 90%, 80%, 70% e 50%,
modificando, tão somente, a relação das cidades que seriam contempladas
com um ou outro percentual.
Logo, à sua vigência não se pode emprestar qualquer efeito de reajuste no
valor das diárias. Como poderia o Decreto n. 5.554/05 ter criado direito novo
se ele não trouxe uma única previsão nova, tendo apenas repetido direitos
já outrora concedidos pelo Decreto n. 1.656/95 e ratificados pelo Decreto n.
3.643/00? Trata-se, portanto, de uma questão lógica.
Vale ressaltar que o valor nominal da diária, tanto nos Decretos
n. 1.656/1995 e n. 3.643/00, como no Decreto n. 5.554/2005, continuou o
mesmo, ou seja, R$ 57,28, evidenciando que, se não houve acréscimo em seu
valor nominal, é impossível o reajuste da indenização de campo nos moldes
determinados pelo decisum regional.
Para melhor compreensão da questão, deve-se lembrar que a diária e
a indenização de campo, apesar de terem por escopo indenizar o servidor
pelos afastamentos e deslocamentos, tem naturezas jurídicas completamente
distintas.
A indenização de campo tem por objetivo indenizar o servidor em razão
de atividades no mesmo município, fora da sede da Entidade Pública,

236
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA

atividades essas que eram desenvolvidas, originariamente, na zona rural, mas


que hoje, em razão de epidemias como a dengue, por exemplo, também são
desenvolvidas nas zonas urbanas, ou seja, o servidor não viaja para fora da
sede do Município, tanto que volta no mesmo dia e, normalmente, recebe a
referida indenização trabalhando próximo a sua residência.
Essa ‘indenização de campo’ é paga sem prejuízo do direito do servidor
ao auxílio alimentação e sem a necessidade de pernoite.
No passado, esses agentes endêmicos somente existiam nas capitais e o
trabalho era desenvolvido especificamente nas zonas rurais, cujo objetivo
principal era o combate ao ‘barbeiro’, responsável pela doença de chagas, e
o combate à malária, razão do seu nome ‘indenização de campo’, porque
era necessário o deslocamento da sede, na capital, para o campo e, por
ser uma atividade de certo modo desgastante, tem a natureza jurídica de
compensação.
A diária, por seu turno, tem por objetivo indenizar o servidor das despesas
com hospedagem e alimentação que eventualmente serão feitas em face de
seu deslocamento para outros municípios, do mesmo Estado ou de outros
Estados da Federação. Tem a natureza jurídica de ressarcimento.
Como se observa, a diária é paga para indenizar as despesas feitas
pelo servidor com estada e alimentação, conforme se verifica do art. 58
da Lei 8.112/90, enquanto a indenização de campo é devida ao servidor,
unicamente, quando ele se desloca para fora da sede para realizar o trabalho
de campo, sendo importante ressaltar que o recebimento da indenização de
campo não prejudica o recebimento do auxílio-alimentação pelo servidor nem
exige o pernoite, que resultaria em despesas com hospedagem, enquanto que
o recebimento da diária pelo servidor, impede o recebimento do auxílio-
alimentação durante o afastamento, por já estar incluído no valor da diária, é
utilizada para custear, ainda, as despesas com hospedagem.
Se as indenizações (diária e ‘indenização de campo’) fossem idênticas
em tudo, inclusive para incidência de percentuais de deslocamentos, não
haveria motivo para não se enquadrarem no mesmo tipo indenizatório.
Justamente porque são de natureza distinta é que comportam as diferenças
já apontadas, somente devendo-se observar a equivalência na revisão do
valor absoluto entre as mesmas.
Ora, o reajuste no valor das diárias, a ensejar reflexo no pagamento da
indenização de campo, é o reajuste do valor nominal da verba, dado que o
percentual destinado aos acréscimos por deslocamento para determinadas
cidades, visa atender situações excepcionais, ocasionadas: 1) pela distância
da sede onde se presta o trabalho; 2) pelos preços da rede hoteleira e do custo
de vida e de transporte nas cidades de grande porte. Por isso são estabelecidos
percentuais diferenciados de acordo com o peso econômico/custo da cidade.

RSTJ, a. 34, (265): 221-278, Janeiro/Março 2022 237


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Os acréscimos de 50 a 90% foram criados para compensar as diferenças


de custo de vida existentes entre as cidades de destino, de modo a tornar
a diária suficiente para suprir as despesas resultantes do seu deslocamento,
sem prejuízo dos vencimentos dos servidores. Quanto maior o custo
estimado da cidade, maior o acréscimo no valor da diária.
Vê-se, assim, que não há razão alguma para que tal acréscimo sobre a
diária seja também adotado para calcular a indenização de campo, posto que
a justificativa do acréscimo (custo de vida das cidades) não guarda relação
alguma com a indenização de campo, em que o servidor sequer se desloca
para outra cidade.
Ademais, vale destacar que as verbas em questão tem caráter
indenizatório – não são verbas remuneratórias. Entretanto, como o custo
de vida das cidades não tem relação com o pagamento da indenização de
campo, pode-se concluir que a extensão daquele acréscimo a esta verba
não terá efeito indenizatório, haja vista que o acréscimo não corresponderá
a um aumento de despesas do servidor.
O acréscimo, no caso da indenização de campo, gerará um aumento
patrimonial do servidor, já que haverá ingresso de dinheiro sem o respectivo
gasto, de modo a configurar verdadeiro aumento remuneratório por via
indireta.
Diante disso, o pedido autoral no sentido de que a diária seja considerada
como o valor consignado no Decreto n. 5.554/2005, com o acréscimo do
percentual relativo ao deslocamento de 50%, não encontra respaldo legal.
Nesse sentido, o acórdão regional há que ser reformado, eis que o
Decreto n. 5.554/2005 não majorou o valor das diárias, de forma a ensejar a
equiparação do valor da indenização de campo, com a aplicação do acréscimo
de 50% (cinqüenta por cento).
Vale ressaltar que os servidores, em demandas anteriores, pleiteavam
que a indenização fosse paga na proporção de 46,87% da diária de R$
57,28, deixando claro seu entendimento de que o acréscimo de 50% não
poderia integrar a diária. Somente agora pretendem os servidores que
o acréscimo se incorpore a sua diária e sirva de base de cálculo para a
indenização de campo.
Frise-se que, em decorrência das inúmeras demandas judiciais decorrentes
do Decreto n. 1.656/1995, foi editada a Portaria n. 406/2002, que, pacificando
as discussões, estabeleceu que, a partir de 1º de agosto de 2002, o valor da
indenização de campo passaria a ser de R$ 26,84 (46,87% da diária de R$
57,28). Tem-se assim que, com o estabelecimento desse novo valor pela citada
portaria, a indenização de campo foi majorada em 53,78% (de R$ 17,46
para R$ 26,85). Contudo, agora se está pretendendo um novo acréscimo de
49,98% (de R$ 26,85 para R$ 40,27), o que implicaria, em todo o período, em

238
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA

um reajuste na órbita de 130,64% (de R$ 17,46 para R$ 40,27), sem o devido


amparo legal. Inegável, ainda, o significativo impacto financeiro decorrente de
tal entendimento.
Vale insistir: o Decreto n. 5.554/2005 teve como finalidade disciplinar
melhor o percentual de deslocamento para todas aquelas cidades de pequeno
porte que, por não se encontrarem acima dos 200.000 habitantes, não
estavam definidas claramente nos Decretos anteriores (Decretos n. 1.656/95
e 3.643/2000). Todavia, o diploma não trouxe alteração substancial sobre a
matéria, mantendo intocáveis o valor da diária (R$ 57,28), os percentuais dos
acréscimos (50 a 90%) e, por consequência, o quantum fixado da indenização
de campo (R$ 26,84).
Constata-se, assim, que o Decreto n. 5.554/05 não trouxe nenhum aumento
linear no valor das diárias a ensejar o aumento do valor pago a título de
indenização de campo, conforme requerido.
Diante do exposto, não há que se falar na concessão de inclusão do
acréscimo de 50% no valor da diária, para fins de cálculo da indenização de
campo – por ausência de amparo legal.
Vê-se, assim, que a análise detalhada das normas é suficiente para a
solução da controvérsia, não havendo, na presente discussão, necessidade
de revolvimento de fatos e provas.

III.2 – Do entendimento atual do STJ na matéria.

Destaca-se que o entendimento defendido pela FUNASA vem sendo


acolhido no âmbito dessa Colenda Corte conforme demonstram os precedentes
que abaixo destacamos:

Administrativo e Processual Civil. Diárias de campo. FUNASA.


Decreto 5.554/2005. Criação do adicional de deslocamento. Não
incidência na indenização de campo.
1. A jurisprudência do STJ firmou-se no sentido de que ‘a fixação
de percentual variável, de adicional ao pagamento de diária, para
adequação à realidade econômica da localidade visitada não tem a
faculdade de reajustar a referida indenização e, por conseguinte, não
viola o art. 15 da Lei n. 8.270/91’ (AgRg no REsp 1.283.707/PB, Rel.
Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 8.2.2013).
2. Agravo Regimental não provido.
(AgRg no AREsp 515.035/CE, Rel. Ministro Herman Benjamin,
Segunda Turma, julgado em 19/08/2014, DJe 25/09/2014)

Processual Civil e Administrativo. Agravo regimental no agravo


em recurso especial. Servidor público federal. Servidores da FUNASA.

RSTJ, a. 34, (265): 221-278, Janeiro/Março 2022 239


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Indenização de campo. Reajustamento de 46,87%. Art. 15 da Lei


8.270/1991. Reajuste das diárias pelo Decreto 5.554/2005. Natureza
distinta. Inexistência de aumento linear. Precedentes da Segunda
Turma do STJ. Agravo regimental não provido.
1. A Segunda Turma do STJ no julgamento do AgRg no REsp
1.283.707/PB, da relatoria do Min. Humberto Martins, decidiu que ‘a
fixação de percentual variável, de adicional ao pagamento de diária,
para adequação à realidade econômica da localidade visitada não tem
a faculdade de reajustar a referida indenização e, por conseguinte, não
viola o art. 15 da Lei n. 8.270/91. Aliás, a controvérsia fica claramente
diferenciada quando se visualiza que a Terceira Seção já demarcou
a natureza jurídica distinta entre ‘diária’ e ‘adicional de localidade’.
Precedente: AgRg na Pet 7.148/GO, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima,
Terceira Seção, DJe 2.9.2009’ (julgado em 18/12/2012, DJe 08/02/2013).
2. No mesmo sentido: REsp 1.264.429/PB, Rel. Ministra Eliana Calmon,
Rel. p/ Acórdão Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em
05/11/2013, DJe 20/02/2014.
3. Agravo regimental não provido.
(AgRg no AREsp 498.017/PB, Rel. Ministro Mauro Campbell
Marques, Segunda Turma, julgado em 10/06/2014, DJe 17/06/2014)
grifos nossos

Administrativo. Processual Civil. Diárias de campo. FUNASA. Decreto


5.554/2005. Criação do adicional de deslocamento. Não incidência na
indenização de campo. Precedente da Segunda Turma.
1. Cuida-se de recurso especial interposto pela Fundação Nacional
de Saúde (FUNASA) contra acórdão proferido pelo Tribunal Regional
Federal da 5ª Região que consignou que o Decreto n. 5.554/2005 teria
fixado novos valores para as diárias e, portanto, deveria incindir em
relação às diárias de campo para evitar a violação do art. 15 da Lei n.
8.270/91.
2. Não há violação do art. 535, II, do Código de Processo Civil
quando a controvérsia é dirimida de forma integral e com
fundamentação suficiente.
3. Não é possível apreciar alegações de violação da Constituição
Federal em sede de recurso especial, sob pena de usurpar a função
jurisdicional outorgada ao Pretório Excelso.
4. A Segunda Turma mudou o seu entendimento recentemente sobre
o tema em acórdão, de minha relatoria, pelo qual se determinou que
‘a fixação de percentual variável, de adicional ao pagamento de diária,
para adequação à realidade econômica da localidade visitada não

240
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA

tem a faculdade de reajustar a referida indenização e, por conseguinte,


não viola o art. 15 da Lei n. 8.270/91’ (AgRg no REsp 1.283.707/PB, Rel.
Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 8.2.2013).
Recurso especial conhecido em parte e provido.
(REsp 1.264.429/PB, Rel. Ministra Eliana Calmon, Rel. p/ Acórdão
Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 05/11/2013,
DJe 20/02/2014)

Tem-se, assim, que os precedentes utilizados pela Douta Relatora não


podem constituir óbice ao conhecimento e provimento do presente recurso (fls.
485/491e).

Por fim, requer que “seja acolhido o presente agravo para a reconsideração
da decisão ora impugnada, com o provimento do recurso especial da FUNASA
ou que se determine o julgamento da questão em tela pela Egrégia Turma, caso
assim não se entenda” (fl. 491e).
É o relatório, no essencial.

VOTO

A Sra. Ministra Assusete Magalhães (Relatora): Não obstante os


argumentos expendidos no Agravo Regimental, a decisão combatida merece ser
mantida.
Na espécie, cuida-se de Ação Ordinária, ajuizada por servidores da
FUNASA, objetivando o pagamento, desde outubro de 2005, da indenização de
campo reajustada no mesmo percentual da menor diária, de nível D (R$ 57,28),
com acréscimo de 50%, que sempre incide sobre a diária para as localidades que
não sejam capital de Estado, ao fundamento de que o Decreto 5.554/2005, ao
assim dispor, majorou, dissimulada e indevidamente, o valor da diária, de nível
D, não observando, porém, a equivalência de 46,87% entre o reajuste da diária
e o da indenização de campo, conforme previsto no art. 15 da Lei 8.270/91,
que estabeleceu que a indenização de campo, criada pela Lei 8.216/91, “será
reajustada pelo Poder Executivo na mesma data e percentual de revisão dos
valores de diárias”.
A sentença julgou procedente a ação, entendendo que a incidência,
sempre, do percentual de 50% sobre a menor diária, de nível D, em quaisquer
deslocamentos, que não para as capitais dos Estados, representou majoração
indireta e dissimulada do valor da diária, de nível D, ante o seu caráter de

RSTJ, a. 34, (265): 221-278, Janeiro/Março 2022 241


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

generalidade. Condenou a FUNASA “a implantar nos contracheques dos autores


a indenização de campo, prevista no artigo 16 da Lei 8.216/91 e no artigo 15 da
8.270/91, no valor de R$ 40,27 (quarenta reais e vinte e sete centavos)”, bem como
ao “pagamento das parcelas da indenização, desde 20/10/2005 até a data da sua
efetiva implantação, relativas à diferença entre o valor de R$ 40,27 e o que vinha
sendo pago R$ 26,85 (vinte e seis reais e oitenta e cinco centavos). Acrescidas de juros
de mora de 0,5% (meio por cento) ao mês (art. 1º.F da Lei 9.494/97), a partir da
citação, e devidamente corrigidas nos moldes da legislação vigente” (fl. 78e).
O Tribunal de origem manteve a sentença, consignando que o Decreto
5.554/2005 não observou os ditames do art. 15 da Lei 8.270/91, quando fixou
o novo e menor valor para a diária, de nível D (R$ 85,92 = R$ 57,28 + 50% de
R$ 57,28), para quaisquer localidades que não sejam capital de Estado, e quando
estabeleceu o valor da indenização de campo, sem respeitar a correspondência
de 46,87% entre o percentual de reajuste da diária e o da referida indenização
de campo.
A decisão ora agravada regimentalmente negou provimento ao Recurso
Especial da FUNASA (fls. 473/479e).
O acórdão recorrido assim consignou, in verbis:

Trata-se de remessa oficial e apelação interposta pela FUNASA em face da


sentença que, em ação ordinária julgou procedente o pedido autoral para condenar
a FUNASA a implantar nos contracheques dos autores a indenização por trabalho
de campo, prevista no art. 16, da Lei n. 8.216/91, c/c o art. 15, da Lei n. 8.270/91,
relativos’ à diferença entre o valor de R$ 40,27 (quarenta reais e vinte e sete centavos)
e o valor que vinha sendo pago (R$26,85 - vinte e seis reais e oitenta e cinco centavos),
tudo acrescido de juros de mora fixados no percentual de 0,5% (meio por
cento) ao mês, a contar da citação e correção monetária, bem como honorários
advocatícios fixados em 10% (dez por cento) sobre o valor das diferenças
apuradas, devidamente corrigidas.
Consoante se percebe, o cerne da questão consiste em se investigar a vinculação
entre o valor da indenização recebida pelos servidores, em razão de trabalhos
de campo por eles realizados e o valor da chamada diária de nível ‘D’ - devida
aos ocupantes de cargos ou de empregos de nível médio, auxiliar ou equivalente,
consoante previsão legal contida no art. 16, da Lei n. 8.216/91, e do art. 15, da Lei n.
8.270/91.
A Lei n. 8.216, de 13 de agosto de 1991, assim dispôs:

Art. 16. Será concedida, nos termos do regulamento, indenização de


Cr$ 4.200,00 (quatro mil e duzentos cruzeiros) por dia, aos servidores que se

242
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA

afastarem do seu local de trabalho, sem direito à percepção de diária, para


execução de trabalhos de campo, tais como os de campanhas de combate
e controle de endemias; marcação, inspeção e manutenção de marcos
decisórios; topografia, pesquisa, saneamento básico, inspeção e fiscalização
de fronteiras internacionais.
Parágrafo único. É vedado o recebimento cumulativo da indenização
objeto do caput deste artigo com a percepção de diárias.

Por sua vez, o art. 15 da Lei n. 8.270, de 17 de dezembro de 1991, ao tratar do


tempo e da forma do reajuste da Indenização de Campo assim orienta:

Art. 15. A indenização criada pelo art. 16 da Lei n. 8.216/91, é fixada em


nove mil cruzeiros e será reajustada pelo Poder Executivo na mesma data e
percentual de revisão dos valores de diárias.

Diante dos dispositivos legais supracitados, exsurge inequívoca a interpretação


de que o valor da ‘Indenização de Campo’ deve manter sintonia e proporcionalidade
com os das diárias devidas aos servidores civis da União e suas autarquias. Assim,
sempre que forem reajustadas as diárias, deverá, de igual modo, ser reajustada a
Indenização de Campo e, ainda, dito reajuste deverá obedecer aos mesmos índices.
Acerca da matéria debatida nestes autos, já é pacífico o entendimento, desta
Egrégia Corte no sentido de que, se a razão entre a indenização de campo e a diária
ao tempo da Lei era de 46,87%, esta proporção deve permanecer inalterada.
Ademais, é de se ressaltar que, em setembro de 2002, a FUNASA, através da
Portaria n. 406, com efeitos financeiros a partir de ago/02, implantou percentual de
reajuste para indenização de campo na mesma base de correção das diárias. Dessa
forma, restou patente que a vinculação em debate encontra amparo legal.
Ocorre que o Decreto n. 5.554/2005,- não observando os ditames do art. 15,
da Lei n. 8.270/91, fixou os novos valores para as diárias de nível ‘D’ (R$ 85,92) e a
indenização de campo (R$ 26,85) sem respeitar a correspondência entre o percentual
da diária e o da referida indenização (46,87%), em nítida violação ao referido artigo.
A respeito da questão, oportuna a transcrição de significativo precedente
desta egrégia Segunda Turma a seguir:

Administrativo. Servidor. Indenização de campo. Lei n. 8.216/91 e Lei n.


8.270/91. Diferença entre o percentual de 46,87% e o de 30,48%. Equação
legal não observada pelo Decreto n. 5.554/2005. Direito à percepção
das diferenças. Honorários. Redução para o percentual de 10% sobre a
condenação. (...) 2. O Decreto n. 5.554/2005 não obedeceu aos ditames do art.
15, da Lei n. 8.270/91, ao fixar os novos valores para as diárias de nível ‘D’ (R$
85,92) e a indenização de campo (R$ 26,85), não respeitando a correspondência
entre o percentual da diária e o da referida indenização (46,87%), em nítida

RSTJ, a. 34, (265): 221-278, Janeiro/Março 2022 243


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

violação ao referido artigo. 3. Hipótese em que, se já vigente disposição legal


prevendo acerca da forma de reajuste da indenização citada, deveria esta
ter sido observada pela Administração ao modificar, por decreto, os valores
atinentes à indenização de campo, respeitando-se a proporção legalmente
estabelecida por ato normativo - lei - de hierarquia superior. 4. Direito ao
pagamento das diferenças entre o valor devido a título de indenização de
campo (R$ 40,27) e o valor pago a menor pela FUNASA (R$ 26,85). 5. Honorários
fixados pela sentença apelada em 20% da condenação e reduzidos para
10% do montante condenatório, nos termos do art. 20, parágrafo 4º do
CPC e em razão da simplicidade da causa. 6. Remessa Oficial parcialmente
provida tão-somente para reduzir os honorários de advogado. 7. Apelação
improvida (Origem: Tribunal – Quinta Região Classe: AC - Apelação Cível -
439635 Processo: 200782000072647 UF: PB Órgão Julgador: Segunda Turma
Data da decisão: 30/09/2008 Documento: TRF500169186 Fonte DJ - Data:
15/10/2008 - Página: 245 -: 200 Relator(a) Desembargador Federal Rogério
Fialho Moreira Decisão unânime) (grifos nossos)

A respeito dos juros de mora devidos a servidores públicos, decorrentes de


condenação imposta à Fazenda Pública, o Colendo STJ já firmou o entendimento
de que nas ações ajuizadas após o início da vigência da MP n. 2.180-35
(24.08.2001), que acrescentou o art. 1º-F ao texto da Lei n. 9.494/97, os juros
moratórios devem ser fixados no percentual de 6% ao ano, hipótese que se aplica
no caso dos autos, uma vez que a demanda foi ajuizada em 11.12.2007.
Quanto ao percentual devido pela parte ré a título de honorários advocatícios,
entendo, em conformidade com inúmeros precedentes deste egrégio Tribunal,
que o feito cuida de matéria já bastante conhecida e de fácil deslinde, não
exigindo do causídico grandes esforços para a solução do conflito, mantendo-se,
portanto, o valor fixado.
Diante do exposto, conheço mas nego provimento à remessa oficial e à apelação
interposta pela FUNASA (fls. 122/124e).

De fato, a indenização de campo foi fixada, pelo art. 15 da Lei 8.270, de


17/12/91, no valor de Cr$ 9.000,00 (nove mil cruzeiros), prevendo o dispositivo,
ainda, que a verba seria reajustada na mesma data e pelo mesmo percentual de
revisão das diárias pagas aos servidores públicos civis da União, sendo certo que, à
época, o valor da diária do servidor da União, de nível D – menor valor de diária
fixado pelo Decreto 343, de 19/11/91 –, era de Cr$ 19.200,00 (dezenove mil e
duzentos cruzeiros), correspondendo a indenização de campo a 46,87% do valor
da menor diária paga a servidor da União (nível D).
Essa equivalência deveria ser observada nos posteriores reajustes da
indenização de campo. Ocorre que, com a edição do Decreto 1.656, de 03/10/95,

244
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA

fixando a diária do servidor da União, de nível D, em R$ 57,28 (cinqüenta e sete


reais e vinte e oito centavos), e o valor da indenização de campo em R$ 17,46
(dezessete reais e quarenta e seis centavos), esta última passou a corresponder
apenas a 30,48% do valor da diária de nível D, resultando em uma perda de
16,39%, em afronta ao art. 15 da Lei 8.270/91.
Registre-se que, no referido Decreto 1.656/95 estabeleceu-se uma parcela
fixa a ser paga a título de diária, acrescida de um adicional variável, dependendo
da cidade de deslocamento do servidor, equivalente a 0%, na hipótese de cidades
com menos de 200.000 (duzentos mil) habitantes, a 50%, para as cidades com
mais de 200.000 (duzentos mil) habitantes, e a 70%, 80% e 90%, conforme as
localidades nele mencionadas.
O Decreto 3.643, de 26/10/2000, repetiu os mesmos valores, constantes do
Decreto 1.656/95, para o valor básico da menor diária, de nível D (R$ 57,28), e
para o da indenização de campo (R$ 17,46).
As Turmas que integram a Primeira Seção desta Corte, diante desse
quadro, há muito, entendiam que o reajuste da indenização de campo, prevista
no art. 16 da Lei 8.216/91, deve corresponder ao percentual de reajuste atribuído
às diárias, na forma que determina o art. 15 da Lei 8.270/91.
Confiram-se os precedentes:

Processual Civil e Administrativo. Análise de matéria constitucional em sede


de recurso especial. Inviabilidade. Ofensa ao artigo 535 do Código de Processo
Civil. Omissão manifesta. Ausência. Conclusão lógico-sistemática do decisum.
Precedentes. Servidores da Fundação Nacional de Saúde. Indenização instituída pelo
art. 16 da Lei n. 8.216/91. Reajuste. Lei 8.270/91. Recurso parcialmente conhecido e,
nesta extensão, desprovido.
I - A jurisprudência desta Corte é pacífica no sentido de ser incabível recurso
especial para apreciar conflitos atinentes ao exame do texto constitucional, o
que é reservado ao recurso extraordinário, de competência do Supremo Tribunal
Federal.
II - Para admitir-se o recurso especial com esteio nos artigos 458 e 535 do
Código de Processo Civil a omissão tem de ser manifesta, ou seja, imprescindível
para o enfrentamento da quaestio nas Cortes superiores. No caso dos autos, não
é o que se verifica.
III - Ademais, compete ao magistrado fundamentar todas as suas decisões, de
modo a robustecê-las, bem como afastar qualquer dúvida quanto a motivação
tomada, tudo em respeito ao disposto no artigo 93, IX, da Carta Magna de
1988. Cumpre destacar que deve ser considerada a conclusão lógico-sistemática
adotada pelo decisum, como ocorre in casu.

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

IV - Nos termos da Lei n. 8.270/91, a indenização criada pelo art. 16 da Lei n.


8.216/91, deve ser reajustada pelo Poder Executivo na mesma data e percentual de
revisão dos valores de diárias. Esta previsão resulta na garantia de que a indenização
deve sempre corresponder ao valor de 46,87% das diárias, tendo em vista que esta
proporção permanece inalterada, independentemente do percentual de reajuste
aplicado nas diárias.
V - Recurso parcialmente conhecido e, nesta extensão, desprovido (STJ, REsp
690.309/PB, Rel. Ministro Gilson Dipp, Quinta Turma, DJU de 13/06/2005).

Recurso especial. Julgamento unipessoal. Possibilidade. Indenização prevista


no art. 16 da Lei n. 8.216/91. Reajuste. Precedente da 5ª Turma. Agravo regimental
improvido (STJ, AgRg no Ag 1.008.180/PA, Rel. Ministro Nilson Naves, Sexta Turma,
DJe de 28/09/2009).

O próprio Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, pela Portaria


406, de 02/10/2002, com fundamento no art. 15 da Lei 8.270/91, estabeleceu
que a indenização de campo deveria corresponder a 46,87% do valor da diária
– que, na ocasião, para o nível D, equivalia a R$ 57,28 (cinquenta e sete reais
e vinte e oito centavos) –, reajustando a indenização de campo para R$ 26,85
(vinte e seis reais e oitenta e cinco centavos), com efeitos financeiros a contar de
01/08/2002.
Posteriormente, entretanto, o Decreto 5.554, de 04/10/2005, manteve
o valor básico anterior da diária de nível D (R$ 57,28) e o da indenização de
campo (R$ 17,46), previstos nos Decretos 1.656/95 e 3.643/2000 – valor da
indenização de campo que já havia sido majorado, pela Portaria ministerial
402/2002, para R$ 26,85 (vinte e seis reais e oitenta e cinco centavos),
correspondente a 46,87% de R$ 57,28 (cinquenta e sete reais e vinte e oito centavos),
menor valor da diária, de nível D –, e, em relação ao percentual variável, a ser
acrescido ao valor básico da diária, estabeleceu que o seu valor mínimo seria de
50% (cinquenta por cento), para quaisquer localidades que não as capitais dos
Estados.
Nesse contexto, a Segunda Turma desta Corte, no julgamento, em
18/12/2012, do Agravo Regimental no REsp 1.283.707/PB – de cuja sessão
não participei –, a partir do voto-vista proferido pelo Ministro Mauro Campbell
Marques, entendeu que “a fixação de percentual variável, de adicional ao
pagamento de diária, para adequação à realidade econômica da localidade visitada
não tem a faculdade de reajustar a referida indenização e, por conseguinte, não
viola o art. 15 da Lei n. 8.270/91” (STJ, AgRg no REsp 1.283.707/PB, Rel.
Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, DJe de 08/02/2013).

246
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA

No seu voto-vista, proferido no AgRg do REsp 1.283.707/PB – que foi


acompanhado pelos Ministros Herman Benjamin e Humberto Martins, Relator,
o último em retificação de voto –, o Ministro Mauro Campbell Marques deu
provimento ao Agravo Regimental da FUNASA, para dar provimento ao seu
Recurso Especial, consignando, in verbis:

Em face das reiteradas decisões judiciais, o próprio Ministério do Planejamento,


Orçamento e Gestão, através da Portaria n. 406/2002, estabeleceu que o valor da
indenização de campo voltaria a corresponder a 46,87% da diária de concessão,
equivalente a R$ 57,28.
Entretanto, o cerne da controvérsia discutida nos presentes autos não se
subsume àquela objeto da Portaria n. 406/2002, e tampouco foi objeto de análise
nos precedentes acima mencionados e naqueles que serviram de fundamento
para aplicação, pelo Ministro Relator, do óbice da Súmula 83/STJ. Isto porque o
que se postula na presente ação é o pagamento do adicional de 50% no cálculo
da indenização de campo, sob o fundamento de que, ao estender tal adicional aos
servidores que percebem diária pelo deslocamento para todas as cidades com menos
de 200.000, o Decreto n. 5.554/05 não observou a equivalência de 46,87% existente
entre as diárias e a indenização de campo.
Especificamente em relação aos acréscimos devidos para deslocamento a
determinadas cidades, o Decreto n. 3.643, de 26 de outubro de 2000, reproduziu
em parte o Decreto n. 1.656/95, e, posteriormente, foi alterado pelo Decreto n.
5.554, de 4 de outubro de 2005, segundo o qual o percentual de 50% deixaria
de ser exclusivo para as cidades de população acima de 200.000 habitantes,
passando a contemplar todas as demais cidades que já não estivessem
expressamente relacionadas em seu Anexo ‘I’ [Brasília (DF), Manaus (AM), São
Paulo (SP), Rio de Janeiro (RJ), Recife (PE), Belo Horizonte (MG), Porto Alegre
(RS), Belém (PA), Fortaleza (CE) e Salvador (BA), e demais capitais]. Todavia, essa
última norma não reajustou o valor nominal das diárias dos servidores da Funasa,
que continuou a ser de R$ 57,28, mas apenas efetuou modificações em relação ao
pagamento dos adicionais de 90%, 80%, 70% e 50% sobre a diária, os quais variam
de acordo com as peculiaridades econômicas da localidade para o qual o servidor é
designado temporariamente.
É importante considerar, quanto ao ponto, que as diárias e a indenização de
trabalho de campo possuem naturezas distintas, já que aquelas são destinadas
a cobrir custos tidos pelo servidor no exercício de suas atividades fora do local
de sua lotação, ou seja, quando há necessidade de hospedagem e alimentação
em local diverso de sua residência. Por sua vez, as indenizações de campo são
destinadas a cobrir os custos que o servidor tem na prestação de serviços fora de
sua sede administrativa, mas dentro da mesma lotação funcional. Nesse último
caso, o servidor permanece do mesmo município, apenas se deslocando para fora
da sede da autarquia, razão pela qual é desnecessário o pernoite em local diverso

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

de sua residência. Daí porque o Decreto n. 1.656/1995, alterado pelo Decreto n.


5.554/2005, estabeleceu, além do pagamento de diárias, um adicional específico
que incide a depender da cidade para a qual o servidor se desloca, guardando
relação com o custo de vida e dificuldade de acesso de cada localidade, e que, por tal
motivo, não interfere no valor das indenizações de campo, pois nesse caso não há
deslocamento para outra cidade.
Assim, a meu ver, as alterações introduzidas pelo Decreto n. 5.554/2005
não promoveram um aumento linear nas diárias dos servidores públicos, e, por
conseguinte, não justificam qualquer reajustamento da indenização de campo, na
medida em que a nova norma efetuou unicamente modificações quanto ao elenco
das localidades para as quais o deslocamento do servidor importaria a percepção
de um adicional mínimo de 50%, anteriormente concedido apenas em relação às
cidades de população superior a 200.000 (duzentos mil) habitantes, adicional que,
vale ressaltar, já existia desde a edição do Decreto n. 1.656/1995 e se destina a
cobrir despesas de estada na localidade a que o servidor se desloca. Não houve, por
conseguinte, afronta à proporcionalidade entre o valor da diária e a indenização de
campo de que trata o art. 16 da Lei 8.216/91.

Vale anotar que, após, em 05/11/2013, no julgamento do REsp 1.264.429/


PB (Rel. Ministra Eliana Calmon, Rel. p/ acórdão Ministro Humberto Martins,
Segunda Turma, DJe de 20/02/2014), a Segunda Turma manteve o referido
posicionamento, porém, com o voto divergente vencido da Ministra Eliana
Calmon, cujos fundamentos – reportando-se ao entendimento manifestado pela
Segunda Turma, no anterior REsp 1.283.707/PB, e ao voto-vista nele proferido
pelo Ministro Mauro Campbell Marques – seguem transcritos, in verbis:

Tem-se, na origem, ação intentada por servidores da FUNASA, alegando ter o


Decreto 5.554/05, ao fixar o valor das diárias nível ‘d’ em R$ 57,28, acrescido ao menos
de 50%, percentual mínimo agregado às diárias em caso de deslocamento, fixado
o valor de referida diária em R$ 85,92 (R$ 57, 28% + 50% de R$ 57,28 = R$ 85,92).
Assim, para manter a proporcionalidade estabelecida pelo art. 15 da Lei 8.270/91, no
sentido de a indenização de campo corresponder a 46,87% da diária nível ‘d’, deveria
estar sendo pago R$ 40,27 (R$ 85,92 x 46,875%), porém continua sendo paga no
valor de R$ 26,84, de acordo com a Portaria 406/2002 do Ministério do Planejamento,
Orçamento e Gestão. Requerem, com base nessa argumentação, a elevação da
indenização de campo para R$ 40,27.
O pedido foi julgado procedente em primeiro grau (sentença às fls. 60/65), decisão
parcialmente mantida pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região, modificado
tão-somente o valor dos honorários advocatícios, fixados em 10% do valor da
condenação, o que ensejou a interposição do presente recurso especial.
(...)
A Segunda Turma desta Corte, em recente julgamento, concluiu não ter o
Decreto 5.554/05 promovido aumento linear nas diárias dos servidores públicos que

248
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA

justificasse o aumento da indenização de campo, com fundamento na manutenção


da proporcionalidade prevista no art. 15 da Lei 8.270/91. Confira-se o seguinte trecho
do voto vista proferido pelo Ministro Mauro Campbell Marques no julgamento do
AgRg no REsp 1.283.707/PB, verbis:

É importante considerar, quanto ao ponto, que as diárias e a indenização


de trabalho de campo possuem naturezas distintas, já que aquelas
são destinadas a cobrir custos tidos pelo servidor no exercício de suas
atividades fora do local de sua lotação, ou seja, quando há necessidade
de hospedagem e alimentação em local diverso de sua residência. Por
sua vez, as indenizações de campo são destinadas a cobrir os custos que
o servidor tem na prestação de serviços fora de sua sede administrativa,
mas dentro da mesma lotação funcional. Nesse último caso, o servidor
permanece no mesmo município, apenas se deslocando para fora da
sede da autarquia, razão pela qual é desnecessário o pernoite em local
diverso de sua residência. Daí porque o Decreto n. 1.656/1995, alterado
pelo Decreto n. 5.554/2005, estabeleceu, além do pagamento de diárias, um
adicional específico que incide a depender da cidade para a qual o servidor
se desloca, guardando relação com o custo de vida e dificuldade de acesso de
cada localidade, e que, por tal motivo, não interfere no valor das indenizações
de campo, pois nesse caso não há deslocamento para outra cidade.
Assim, a meu ver, as alterações introduzidas pelo Decreto n. 5.554/2005
não promoveram um aumento linear nas diárias dos servidores públicos, e, por
conseguinte, não justificam qualquer reajustamento da indenização de campo,
na medida em que a nova norma efetuou unicamente modificações quanto ao
elenco das localidades para as quais o deslocamento do servidor importaria
a percepção de um adicional mínimo de 50%, anteriormente concedido
apenas em relação às cidades de população superior a 200.000 (duzentos mil)
habitantes, adicional que, vale ressaltar, já existia desde a edição do Decreto
n. 1.656/1995 e se destina a cobrir despesas de estada na localidade a que o
servidor se desloca. Não houve, por conseguinte, afronta à proporcionalidade
entre o valor da diária e a indenização de campo de que trata o art. 16 da Lei
8.216/91.

Referido entendimento foi adotado, em vista regimental pelo relator, Ministro


Humberto Martins, estando o acórdão assim ementado:

Administrativo. Processual Civil. Servidor público federal. FUNASA.


Alegada violação do art. 15 da Lei n. 8.270/91. Reajuste das diárias pelo
Decreto n. 5.554/2005. Inexistência. Natureza jurídica diversa. Precedente
da Terceira Seção.
1. Cuida-se de recurso especial que postula reformar o acórdão no qual
se consignou ter o Decreto n. 5.554/2005 violado a proporção necessária das

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

indenizações de campo do art. 16 da Lei n. 8.216/91 para com as diárias, pelo


que dispõe o art. 15 da Lei n. 8.270/91.
2. O referido decreto, além de fixar os valores das diárias reiterou a elas
a instituição de um adicional, em razão da localidade do deslocamento do
servidor, como se visualiza do seu anexo I.
3. A fixação de percentual variável, de adicional ao pagamento de diária,
para adequação à realidade econômica da localidade visitada não tem a
faculdade de reajustar a referida indenização e, por conseguinte, não viola o
art. 15 da Lei n. 8.270/91. Aliás, a controvérsia fica claramente diferenciada
quando se visualiza que a Terceira Seção já demarcou a natureza jurídica
distinta entre ‘diária’ e ‘adicional de localidade’. Precedente: AgRg na Pet 7.148/
GO, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, Terceira Seção, DJe 2.9.2009.
Agravo regimental provido para dar provimento ao recurso especial.
(AgRg no REsp 1.283.707/PB, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda
Turma, julgado em 18/12/2012, DJe 08/02/2013)

Não parece ser essa, data venia, a melhor exegese acerca do tema.
A indenização de campo foi criada pela Lei 8.216/2001, sendo devida aos
servidores que se afastam do local de trabalho para execução de trabalhos de campo,
porém, não chegam a pernoitar em local diverso, razão pela qual não lhes é devido o
pagamento de diárias. O dispositivo está assim redigido:

Art. 16. Será concedida, nos termos do regulamento, indenização de


Cr$4.200,00 (quatro mil e duzentos cruzeiros) por dia, aos servidores que se
afastarem do seu local de trabalho, sem direito à percepção de diária, para
execução de trabalhos de campo, tais como os de campanhas de combate
e controle de endemias; marcação, inspeção e manutenção de marcos
decisórios; topografia, pesquisa, saneamento básico, inspeção e fiscalização
de fronteiras internacionais.
Parágrafo único. É vedado o recebimento cumulativo da indenização
objeto do caput deste artigo com a percepção de diárias.

A Lei 8.270/91, no art. 15, estabelece que a indenização de campo deve ser
reajustada na mesma data e percentual de revisão dos valores das diárias. Naquela
ocasião, o valor da diária estava fixado em CR$ 19.200,00 e o valor da indenização de
campo era de CR$ 9.000,00, conforme o Decreto n. 343/91. Assim, a indenização de
campo correspondia a 46,87% da diária, percentual que deveria ser mantido dali pra
frente, diante da previsão legal de reajuste na mesma data e percentual. Confira-se:

Art. 15. A indenização criada pelo art. 16 da Lei n. 8.216, de 1991, é fixada
em nove mil cruzeiros e será reajustada pelo Poder Executivo na mesma data e
percentual de revisão dos valores de diárias.

250
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA

Apesar disso, foi editado o Decreto 1.656/95, alterando o Decreto 343/91, fixando
o valor das diárias em R$ 57,28 e o da indenização em R$ 17,46, rompendo, portanto,
com a proporção estabelecida pela Lei 8.270/91. Referido Decreto previa, ainda, um
acréscimo percentual às diárias dependendo da cidade de deslocamento. Assim,
para Brasília e Manaus, a diária seria acrescida de 90%; para São Paulo, Rio de
Janeiro, Recife, Belo Horizonte, Porto Alegre, Belém, Fortaleza e Salvador, de 80%;
para as demais Capitais de Estado, de 70%; nos deslocamentos para cidades com
mais de 200.000 habitantes, de 50%. Assim, para alguns deslocamentos, não era
devido nenhum acréscimo às diárias, sendo devida a ‘diária básica’.
Diante do rompimento da paridade prevista na Lei 8.270/91, diversas ações foram
propostas pelos servidores, firmando-se a jurisprudência desta Corte no sentido
de o Decreto 1.656/95 deveria ter reajustado a indenização de campo no mesmo
percentual que a diária, de modo a manter a proporção de 46,87%. São exemplos
dessa jurisprudência:

Processual Civil e Administrativo. Análise de matéria constitucional em


sede de recurso especial. Inviabilidade. Ofensa ao artigo 535 do Código de
Processo Civil. Omissão manifesta. Ausência. Conclusão lógico-sistemática
do decisum. Precedentes. Servidores da Fundação Nacional de Saúde.
Indenização instituída pelo art. 16 da Lei n. 8.216/91. Reajuste. Lei 8.270/91.
Recurso parcialmente conhecido e, nesta extensão, desprovido.
(...)
IV - Nos termos da Lei n. 8.270/91, a indenização criada pelo art. 16 da
Lei n. 8.216/91, deve ser reajustada pelo Poder Executivo na mesma data e
percentual de revisão dos valores de diárias. Esta previsão resulta na garantia
de que a indenização deve sempre corresponder ao valor de 46,87% das diárias,
tendo em vista que esta proporção permanece inalterada, independentemente
do percentual de reajuste aplicado nas diárias.
V - Recurso parcialmente conhecido e, nesta extensão, desprovido.
(REsp 690.309/PB, Rel. Ministro Gilson Dipp, Quinta Turma, julgado em
19/05/2005, DJ 13/06/2005, p. 338)

Processual Civil e Administrativo. Embargos de declaração. Concessão


de efeito infringente. Excepcionalidade. Servidores da Fundação Nacional
de Saúde. Indenização instituída pelo art. 16 da Lei n. 8.216/91. Reajuste.
Lei 8.270/91. Reajuste. Embargos acolhidos, com a concessão de efeito
modificativo.
(...)
II - Nos termos da Lei n. 8.270/91, a indenização criada pelo art. 16 da Lei n.
8.216/91, deve ser reajustada pelo Poder Executivo na mesma data e percentual
de revisão dos valores de diárias. Esta previsão resulta na garantia de que a

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

indenização deve sempre corresponder ao valor de 46,87% das diárias, tendo


em vista que esta proporção permanece inalterada, independentemente do
percentual de reajuste aplicado nas diárias.
III - Embargos de declaração acolhidos, com a concessão do excepcional
efeito infringente para conhecer parcialmente do especial e lhe negar
provimento.
(EDcl no REsp 603.010/PB, Rel. Ministro Gilson Dipp, Quinta Turma,
julgado em 17/02/2005, DJ 07/03/2005, p. 323)

Em face das reiteradas decisões acolhendo a tese da necessidade de preservação


da proporcionalidade estabelecida pela Lei 8.270/91, o Ministério do Planejamento,
Orçamente e Gestão editou a Portaria n. 406/2002, reajustando a indenização de
campo, de modo a restabelecer a proporção entre a diária no valor R$ 57,28 e a
indenização, agora fixada no valor de R$ 26,85. Confira-se a redação do art. 1º da
Portaria:

Art. 1º O valor da indenização, de que trata o art. 16 da Lei n. 8.216, de 13


de agosto de 1991, concedida aos servidores que se afastam do seu local de
trabalho, sem direito à percepção de diária, para execução de trabalho de
campo, é reajustado para R$ 26,85 (vinte e seis reais e oitenta e cinco centavos).

Veio a lume, então, o Decreto 3.643/2000, repetindo em sua maior parte o


disposto no Decreto 1.656/95, seguido pelo Decreto 5.554/05, cerne da presente
controvérsia.
O Decreto 5.554/05 não alterou diretamente o valor das diárias ou da indenização
de campo. Porém, em seu anexo I, estabeleceu um acréscimo percentual para as
diárias, fixando em 90% o acréscimo quando o deslocamento se desse para Brasília
ou Manaus; 80% quando o deslocamento fosse para São Paulo, Rio de Janeiro, Recife,
Belo Horizonte, Porto Alegre, Belém, Fortaleza e Salvador; 70% nos deslocamentos
para as demais Capitais e 50% para os demais deslocamentos.
Assim, deixou de existir uma ‘diária básica’, pois no mínimo o servidor vai receber
como diária o valor de R$ R$ 57,28, acrescido de 50%.
Esse é o questionamento trazido pelos servidores da FUNASA, afirmando que na
realidade, a diária básica passou a ter o valor de R$ 57,28, acrescido de 50%, ou seja
R$ 85,92 (R$ 57,28% + 50% de R$ 57,28 = R$ 85,92). Esse valor básico, representando
o valor efetivo da diária, será acrescido de 40% quando o deslocamento for
para Brasília ou Manaus; 30% quando for para São Paulo, Rio de Janeiro, Recife,
Belo Horizonte, Porto Alegre, Belém, Fortaleza e Salvador e 20% para as demais
Capitais. Daí porque era necessária a revisão da indenização de campo, de modo a
que equivalesse a 46,87% da diária, agora fixada em R$ 85,92.
Razão assiste, salvo melhor juízo, aos servidores.

252
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA

Com efeito, ao se determinar o acréscimo de 50% em todos os casos de pagamento


de diária, o que ocorreu foi, por meio transverso, um aumento da diária, pois
insuficiente o valor previsto para cobrir o deslocamento para qualquer localidade.
Em outras palavras, insuficiente o valor previsto para cumprir o objetivo para o qual
a verba foi prevista.
Assim, a meu ver, ocorreu sim um aumento da diária, havendo afronta à
proporcionalidade entre o valor da diária e a indenização de campo de que trata
o art. 16 da Lei 8.216/91, como bem observado pelo aresto recorrido, do qual
transcrevo o seguinte trecho, verbis:

Entretanto, não obstante a FUNASA, a despeito de estar pagando


corretamente o valor mínimo de R$ 85,92 referente à diária de nível ‘D’, continua
a pagar o valor de R$ 26,85, a título de indenização de campo, em detrimento
da generalização do aumento ocorrido no valor real da diária (acréscimo de,
no mínimo, 50%), da equação legal entre a citada diária e a indenização de
campo e da quantia correta a ser paga sob esta rubrica, qual seja, o valor de R$
40,27 (fl. 105).

Como já referido, na égide do Decreto 1.656/95, havia situações em que


a diária era paga sem qualquer acréscimo (‘diária básica’), ou seja, naquelas
hipóteses o valor da diária era suficiente para a finalidade a qual se destina, o
que não mais ocorre com a edição do Decreto 5.554/05. Assim, não é correto,
com a devida venia, afirmar ter o Decreto 5.554/05 simplesmente reproduzido o
adicional já existente no Decreto 1.656/95.
Vale ressaltar, ademais, que o art. 15 da Lei 8.270/91, ao atrelar o reajuste da
indenização de campo ao reajuste da diária, na mesma data e percentual, já ligava
duas verbas de natureza diversa, uma destinada a remunerar atividades fora da sede,
mas dentro da lotação funcional e a outra destinada a cobrir custos de deslocamentos
para exercício de atividade fora do local da lotação. Destarte, o argumento de se
tratarem de verbas com natureza e objetivos distintos, guardando o adicional da
diária relação com o custo de vida e dificuldade de acesso a cada localidade, não
afasta a necessidade de preservação da paridade de reajuste estabelecida em lei.
Com essas considerações, nego provimento ao recurso especial.

Não obstante a argumentação do Ministro Mauro Campbell Marques, no


REsp 1.283.707/PB, em voto-vista proferido em 2012, relacionada à parcela
variável devida para as diárias, ao que se tem da controvérsia, dois são os
problemas existentes no referido Decreto 5.554/2005, razão pela qual entendo
que o tema merece nova análise, por esta Segunda Turma.
O Decreto 5.554/2005 manteve o valor da indenização de campo (R$
17,46) e o valor básico da diária de nível D (R$ 57,28), previstos em normas

RSTJ, a. 34, (265): 221-278, Janeiro/Março 2022 253


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

anteriores, ou seja, nos Decretos 1.656/95 e 3.643/2000, descumprindo a


proporcionalidade de reajuste de 46,87% entre as duas verbas, além de fixar a
indenização de campo em valor inferior ao anteriormente estabelecido pela
Portaria ministerial 406/2002 (R$ 26,85). O aludido Decreto 5.554/2005
também alterou os percentuais relacionados à parcela variável da diária, eis que o
Decreto 1.656/95 e o Decreto 3.643/2000 não previam pagamento de qualquer
parcela variável para localidades com menos de 200.000 habitantes.
Assim, além de ter mantido o valor da indenização de campo de maneira
desproporcional ao percentual de 46,87% e de estabelecê-la em valor inferior
ao fixado pela anterior Portaria ministerial 406/2002 (R$ 26,85), o Decreto
5.554/2005 desconsiderou essa proporcionalidade, consagrada na Lei 8.270/91
(46,87%), entre o reajuste devido para a indenização de campo e aquele a ser
aplicado para a diária de nível D, quando, a pretexto de majoração da parcela
variável da diária, estabeleceu um mínimo de 50% de acréscimo na diária de nível
D, para quaisquer localidades, independentemente de possuírem elas, ou não,
menos de 200.000 habitantes, exceto para as localidades que relaciona, para as
quais o Decreto 5.554/2005 previu parcela variável de diária, com percentuais de
acréscimo diverso (deslocamento para Brasília/DF e Manaus/AM, acréscimo de
90% ao valor básico da diária; para São Paulo/SP, Rio de Janeiro/RJ, Recife/PE,
Belo Horizonte/MG, Porto Alegre/RS, Belém/PA, Fortaleza/CE e Salvador/
BA, acréscimo de 80% ao valor básico da diária; para as demais capitais dos
Estados, acréscimo de 70% ao valor básico da diária). Tal ofende o princípio da
legalidade, especialmente o art. 15 da Lei 8.270/91, ao estabelecer o aludido
Decreto 5.554/2005, assim, um aumento indireto e disfarçado do valor mínimo
da diária, de nível D, sem repercuti-lo no valor da indenização de campo.
Apesar do entendimento manifestado pela Segunda Turma, em
18/12/2012 e 05/11/2013, a Primeira Turma desta Corte, em momento posterior,
em 27/10/2015, negou provimento a Recurso Especial da FUNASA, que
versava sobre o Decreto 5.554/2005, em elucidativo voto condutor, proferido
pelo Ministro Olindo Menezes (Desembargador Federal convocado do TRF/1ª
Região), no AgRg no REsp 1.321.109/PB:

Ainda que assim não fosse, haveria que se manter a decisão impugnada,
quanto aos valores das diárias e da indenização de campo. Extrai-se do acórdão
recorrido a seguinte fundamentação:

Os moldes de pagamento e reajuste da Indenização de Campo, por sua


vez, foram fixados pelo art. 15 da Lei n. 8.270/91, in verbis:

254
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA

Art. 15. A indenização criada pelo art. 16 da Lei n. 8.216 de 1991, é


fixada em nove mil cruzeiros e será reajustada pelo Poder Executivo na
mesma data e percentual de revisão dos valores de diárias.

Infere-se daí que a Indenização de Campo deve ser sempre reajustada na


mesma data e percentuais que as diárias. Como consequência, não é possível
que haja alteração da proporção entre seus valores.
Conforme se infere do Decreto n. 343/91, à época da Lei n. 8.270/91, o
valor da Diária dos servidores do Nível D era Cr$ 19.200,00 (dezenove mil
cruzeiros), e o da Indenização de Campo, Cr$ 9.000,00 (nove mil cruzeiros),
ou seja, 46,87% do valor daquela. Esta proporção, portanto, deve permanecer
inalterada.
Da análise da evolução dos valores das vantagens em questão, constata-
se que a Administração não respeitou o disposto na Lei. É que, com o
Decreto n. 3.343 de 26/02/2000, a Diária passou ser composta de valor fixo
(R$ 57,28) e de valor variável, correspondente a percentual sobre o fixo,
somente pago quando do deslocamento para determinadas regiões. A
Indenização de Campo, por sua vez, foi fixada em R$ 17,46.
É certo que, como a parcela variável somente era paga quando o
servidor se deslocava para regiões específicas, não poderia ser considerada
para fins de fixação de Indenização de Campo. Mas, mesmo tomando como
base apenas a parte invariável da Diária, é inevitável o reconhecimento da
sua desarmonia com a Indenização de Campo, que passou a corresponder
a 30,48% do seu valor.
Em outubro de 2002, o Ministério do Planejamento corrigiu a distorção
por meio da Portaria n. 406, reajustando o valor da Indenização de
Campo para R$ 26,87 (vinte e seis reais e oitenta e sete centavos), valor
correspondente a 46,87% da parte fixa da Diária de Nível D, com efeitos
financeiros retroativos a agosto/2002. Ressalte-se que, o então Ministro
do Planejamento, na referida Portaria, reporta-se ao disposto no art. 15, da
Lei n. 8.270/91, para fundamentar a majoração da Indenização de Campo,
e restabelece a razão inicial entre ela e a Diária de Nível D, fulminando
qualquer dúvida sobre a existência da vinculação entre elas.
Com a edição do Decreto n. 5.554/2005, os valores das Diárias e da
Indenização de Campo tornaram a andar em descompasso.
É que o referido diploma legal, inobstante ter repetido os valores constantes
do Anexo I do Decreto 3.343/2000, relativos à parcela fixa da Diária, estendeu
o pagamento da variável a todos os servidores, esta correspondente a, no
mínimo, 50% do valor da parte variável, podendo dito percentual ser majorado
em razão da localidade de destino. Não houve, no entanto, qualquer alteração
na Indenização de Campo, que continuou fixada em R$ 17,28.

RSTJ, a. 34, (265): 221-278, Janeiro/Março 2022 255


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Desse modo, o valor da Diária passou a corresponder a parcela fixa da


Diária acrescida do percentual mínimo pago aos servidores, ou seja, R$ 85,92.
O valor da Indenização de Campo, portanto, deve corresponder a 46,87%
desse valor (R$ 40,27).
O Decreto n. 6.258/2007, em vigor, elevou para R$ 26,85 o valor da
Indenização de Campo, não alterando o valor da Diária dos servidores do
grupo D. Referido Decreto, apesar de reduzir a distorção existente, não
corrigiu a falta de sintonia entre tais valores. Isso provavelmente por não ter
considerado a parcela variável paga por todo e qualquer deslocamento, aos
servidores com direito a Diária.
O Mercê do exposto, conclui-se que os autores têm direito à percepção
de Indenização de Campo, no valor de R$ 40,27, a partir de 05/10/2005. (Fls.
116/124 e-STJ)

Diante disso, constata-se que o acórdão recorrido está em harmonia com a


jurisprudência do STJ.
É entendimento assente, nesta Corte, que ‘a indenização criada pelo art. 16
da Lei n. 8.216/91 deve ser reajustada pelo Poder Executivo na mesma data e
percentual de revisão dos valores de diárias. Estabelecendo, ainda que ‘esta
previsão resulta na garantia de que a indenização deve sempre corresponder
ao valor de 46,87% das diárias, tendo em vista que esta proporção permanece
inalterada, independentemente do percentual de reajuste aplicado nas diárias’. A
propósito:

Administrativo. Agravo regimental em recurso especial. Servidores


públicos da FUNASA. Indenização de campo. Reajuste das diárias. Leis 8.216/91
e 8.270/91. Pagamento das diferenças. Possibilidade. Correspondência ao valor
de 46,87% das diárias. Agravo regimental desprovido. 1. O Superior Tribunal
de Justiça já firmou o entendimento de que a indenização prevista no art. 16
da Lei 8.216/91 deve ser reajustada pelo Poder Executivo na mesma data e nos
mesmos percentuais de reajustes aplicados às diárias. 2. Agravo Regimental
da FUNASA desprovido. (AgRg no REsp 1.273.382/PB, Rel. Ministro Napoleão
Nunes Maia Filho, Primeira Turma, julgado em 05/05/2015, DJe 13/05/2015)

Processual Civil e Administrativo. Servidor público. FUNASA. Indenização


de campo instituída pelo art. 16 da Lei 8.216/91. Reajuste. Súmula 83/STJ.
1. O STJ firmou o entendimento de que a indenização prevista no art. 16
da Lei 8.216/91 deve ser reajustada pelo Poder Executivo na mesma data e
percentuais de reajustes aplicados às diárias. 2. Dessume-se que o acórdão
recorrido está em sintonia com a atual jurisprudência do STJ, razão pela qual
não merece prosperar a irresignação. Incide, in casu, o princípio estabelecido

256
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA

na Súmula 83/STJ: ‘Não se conhece do Recurso Especial pela divergência,


quando a orientação do Tribunal se firmou no mesmo sentido da decisão
recorrida.’ 3. Agravo Regimental não provido. (AgRg no AREsp 466.093/PB,
Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 22/04/2014,
DJe 22/05/2014)

Processual Civil e Administrativo. Análise de matéria constitucional em


sede de recurso especial. Inviabilidade. Ofensa ao artigo 535 do Código de
Processo Civil. Omissão manifesta. Ausência. Conclusão lógico-sistemática
do decisum. Precedentes. Servidores da Fundação Nacional de Saúde.
Indenização instituída pelo art. 16 da Lei n. 8.216/91. Reajuste. Lei 8.270/91.
Recurso parcialmente conhecido e, nesta extensão, desprovido.
(...)
IV - Nos termos da Lei n. 8.270/91, a indenização criada pelo art. 16 da
Lei n. 8.216/91, deve ser reajustada pelo Poder Executivo na mesma data e
percentual de revisão dos valores de diárias. Esta previsão resulta na garantia
de que a indenização deve sempre corresponder ao valor de 46,87% das diárias,
tendo em vista que esta proporção permanece inalterada, independentemente
do percentual de reajuste aplicado nas diárias.
V - Recurso parcialmente conhecido e, nesta extensão, desprovido.
(REsp 690.309/PB, Rel. Ministro Gilson Dipp, Quinta Turma, julgado em
19/05/2005, DJ 13/06/2005, p. 338)

Processual Civil e Administrativo. Embargos de declaração. Concessão


de efeito infringente. Excepcionalidade. Servidores da Fundação Nacional
de Saúde. Indenização instituída pelo art. 16 da Lei n. 8.216/91. Reajuste.
Lei 8.270/91. Reajuste. Embargos acolhidos, com a concessão de efeito
modificativo.
(...)
II - Nos termos da Lei n. 8.270/91, a indenização criada pelo art. 16 da Lei n.
8.216/91, deve ser reajustada pelo Poder Executivo na mesma data e percentual
de revisão dos valores de diárias. Esta previsão resulta na garantia de que a
indenização deve sempre corresponder ao valor de 46,87% das diárias, tendo
em vista que esta proporção permanece inalterada, independentemente do
percentual de reajuste aplicado nas diárias.
III - Embargos de declaração acolhidos, com a concessão do excepcional
efeito infringente para conhecer parcialmente do especial e lhe negar
provimento.
(EDcl no REsp 603.010/PB, Rel. Ministro Gilson Dipp, Quinta Turma,
julgado em 17/02/2005, DJ 07/03/2005, p. 323)

RSTJ, a. 34, (265): 221-278, Janeiro/Março 2022 257


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Tal o contexto, e ratificando os fundamentos contidos na decisão que negou


seguimento ao recurso especial, nego provimento ao agravo regimental.

Confira-se a ementa do referido julgado:

Administrativo e Processual Civil. Agravo regimental. Recurso especial. Servidor


público. Deficiência de fundamentação. Ausência de indicação do dispositivo
legal supostamente violado. Súmula 284/STF. Indenização de campo instituída pelo
art. 16 da Lei 8.216/91. Reajuste. Precedentes. Súmula 83/STJ. Agravo não provido.
(...)
2. A indenização prevista no art. 16 da Lei 8.216/91 deve ser reajustada pelo Poder
Executivo na mesma data e percentuais de reajustes aplicados às diárias.
3. O tribunal de origem decidiu em harmonia com a orientação predominante
desta Corte, incidindo ao caso a Súmula 83 do STJ (‘Não se conhece do recurso
especial pela divergência, quando a orientação do Tribunal se firmou se firmou no
mesmo sentido da decisão recorrida’).
4. Agravo regimental não provido (STJ, AgRg no REsp 1.321.109/PB, Rel.
Ministro Olindo Menezes (Desembargador Federal convocado do TRF/1ª Região),
Primeira Turma, julgado em 27/10/2015, DJe de 11/11/2015, trânsito em julgado
em 16/12/2015).

A Segunda Turma, ademais, após o julgamento, em 18/12/2012, do Agravo


Regimental no REsp 1.283.707/PB (Rel. Ministro Humberto Martins, DJe de
08/02/2013), e, em 05/11/2013, do REsp 1.264.429/PB (Rel. Ministra Eliana
Calmon, Rel. p/ acórdão Ministro Humberto Mertins, DJe de 20/02/2014)
também negou provimento, em 22/04/2014, ao AgRg no Agravo em Recurso
Especial 466.093/PB, interposto pela FUNASA, no qual se discutiu a exegese,
inclusive, do referido Decreto 5.554/2005, aplicando o Relator, Ministro
Herman Benjamin, no caso, a Súmula 83/STJ, mantendo acórdão do Tribunal de
origem assim ementado:

Administrativo. Indenização de campo e diária. Art. 16 da Lei n. 8.216/91 e art.


15 da Lei n. 8.270/91. Proporcionalidade entre uma e outra. Decreto n. 5.554/2005.
Manutenção do valor nominal da diária. Mas com acréscimo de 50% em todos os
deslocamentos, para quaisquer cidades. Reajuste indireto. Repasse à indenização de
campo.
1. Como os autores pleiteiam os valores supostamente devidos somente
a partir de 20 de outubro de 2005. e tendo a presente ação sido ajuizada em
de outubro de 2007 - portanto, menos de dois anos depois é de se afastar, na
hipótese, a ocorrência da prescrição.

258
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA

2. Nos termos do art. 16 da Lei n. 8.216/91 e do art. 15 da Lei n. 8.270/91, o mesmo


percentual de reajuste da diária deveria ser aplicado na atualização do valor da
indenização de campo, para que fosse mantida a proporcionalidade desta em
relação àquela de 46,87%, o que foi, porém, olvidado pelos Decretos n. 1.656/95 e
3.643/00, que aplicaram índices de reajuste diversos para uma e outra. Jurisprudência
pacífica neste Tribunal.
3. Para manter o valor da indenização de campo correspondente a 46,87%
da diária do tipo D (R$57,28), a Portaria n. 406/2002, do MPOG, reajustou-a para
R$26,85.
4. O Decreto n. 5.554/2005, porém, apesar de manter o valor nominal da
diária de nível D em R$57,28, determinou que o acréscimo de 50% no valor das
diárias (inicialmente estabelecido no Decreto n. 3.643/2000) seria devido em
todos os deslocamentos não contemplados com os acréscimos de 90%, 80% e
70% (diferentemente do Decreto anterior, que previa o adicional de 50% em casos
específicos). Tal regramento acabou por criar um valor mínimo, correspondente
a R$85,92, para as diárias de tipo D, uma vez que, em todos os deslocamentos
realizados, para quaisquer cidades, os servidores receberão o valor nominal daquela
diária (mantido em R$57,28) acrescido de, no mínimo, 50%. Trata-se, pois, de um
reajuste disfarçado, que, para manter a proporcionalidade, deve ser
5. O valor nominal da diária, após a edição do Decreto n° 5.554/2005, não pode
mais ser tomado, apenas ele como base de cálculo da indenização de campo.
6. Devido o pagamento da indenização de campo no valor de R$ 40.27- (quarenta
reais e vinte e sete centavos), correspondente a 46,87% do valor da diária do tipo D
com o acréscimo de 50% (R$57,28 + R$28,64 =R$85,92), além da diferença, desde
outubro de 2005, entre o valor que foi pago a título da referida indenização
(R$26,85) e o que efetivamente era devido (R$40,27).
7. Apelação e remessa oficial parcialmente providas, reduzido o valor dos
honorários advocatícios para mil reais, nos termos do art. 20, § 4º, do CPC.

O aludido acórdão da Segunda Turma restou assim ementado:

Processual Civil e Administrativo. Servidor público. FUNASA. Indenização de


campo instituída pelo art. 16 da Lei 8.216/91. Reajuste. Súmula 83/STJ.
1. O STJ firmou o entendimento de que a indenização prevista no art. 16 da Lei
8.216/91 deve ser reajustada pelo Poder Executivo na mesma data e percentuais de
reajustes aplicados às diárias.
2. Dessume-se que o acórdão recorrido está em sintonia com a atual
jurisprudência do STJ, razão pela qual não merece prosperar a irresignação.
Incide, in casu, o princípio estabelecido na Súmula 83/STJ: ‘Não se conhece do
Recurso Especial pela divergência, quando a orientação do Tribunal se firmou no
mesmo sentido da decisão recorrida.’

RSTJ, a. 34, (265): 221-278, Janeiro/Março 2022 259


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

3. Agravo Regimental não provido (STJ, AgRg no AREsp 466.093/PB, Rel.


Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 22/04/2014, DJe de
22/05/2014, trânsito em julgado em 13/11/2014).

É certo, porém, que, em 02/10/2014 (AgRg no REsp 1.475.168/CE,


Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, DJe de 08/10/2014) e em 19/08/2014
(AgRg no AREsp 515.035/CE, Rel. Ministro Herman Benjamin, DJe de
25/09/2014), esta Segunda Turma decidiu, sobre o assunto, favoravelmente à
FUNASA.
Em 18/04/2017, no julgamento do AgRg no AREsp 515.202/SE – que
articulava alegações idênticas às do presente Agravo Regimental –, no âmbito
desta Segunda Turma, analisando hipótese análoga, proferi voto, negando
provimento ao Agravo Regimental da FUNASA, sem examinar, especificamente,
os ditames do Decreto 5.554/2005, eis que “o acórdão recorrido não analisou a causa
sob o enfoque do Decreto 5.445/2005, sequer de modo implícito, não tendo ele servido
de fundamento à conclusão adotada pelo Tribunal de origem, que se restringiu ao
exame da legalidade dos reajustes da indenização de campo, à luz dos Decretos
1.656/95 e 3.643/2000”.
Confira-se a ementa:

Administrativo e Processual Civil. Agravo regimental em agravo em


recurso especial. Razões de recurso que não impugnam, especificamente, os
fundamentos da decisão agravada. Súmula 182/STJ. Servidor público federal
da FUNASA. Indenização de campo. Arts. 15 da Lei 8.270/91 e 16 da Lei 8.216/91.
Decretos 1.656/95 e 3.643/2000. Precedentes do STJ. Decreto 5.554/2005. Ausência de
prequestionamento. Súmula 282/STF. Agravo regimental parcialmente conhecido,
e, nessa extensão, improvido.
I. Agravo Regimental interposto contra decisão monocrática publicada na
vigência do CPC/73.
II. Na espécie, cuida-se de Ação Ordinária, ajuizada por servidores da FUNASA,
objetivando o pagamento da indenização de campo, reajustada nos mesmos moldes
das diárias. A decisão ora agravada regimentalmente negou seguimento ao Recurso
Especial, interposto pela Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), mantendo o
acórdão, proferido pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região, que consignou, à
luz dos Decretos 1.656/95 e 3.643/2000, que a indenização por trabalho de campo,
prevista no art. 16 da Lei 8.216/91 c/c o art. 15 da Lei 8.270/91, é devida no percentual
de 46,87% do valor da diária de nível ‘D’.
(...)
IV. O STJ firmou o entendimento de que a indenização, prevista no art. 16
da Lei 8.216/91, deve ser reajustada, pelo Poder Executivo, na mesma data e
percentuais de reajustes aplicados às diárias. Precedentes.

260
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA

V. No caso, o acórdão recorrido, ao dirimir a controvérsia, não analisou a causa sob


o enfoque do Decreto 5.445/2005, sequer de modo implícito, não tendo ele servido
de fundamento à conclusão adotada pelo Tribunal de origem, que se restringiu ao
exame da legalidade dos reajustes da indenização de campo, à luz dos Decretos
1.656/95 e 3.643/2000.
VI. Nesse contexto, a pretensão recursal esbarra em vício formal intransponível,
qual seja, o da ausência de prequestionamento – requisito viabilizador da
abertura desta instância especial –, atraindo o óbice da Súmula 282 do Supremo
Tribunal Federal (‘É inadmissível o recurso extraordinário, quando não ventilada,
na decisão recorrida, a questão federal suscitada’), na espécie.
VII. O entendimento da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça é
firme, à luz do CPC/73, quanto à imprescindibilidade da oposição de Embargos
Declaratórios, para fins de prequestionamento da matéria, mesmo quando a
questão federal surja no julgado recorrido (STJ, EREsp 99.796/SP, Rel. Ministro
Eduardo Ribeiro, DJU de 04/10/1999), não tendo sido opostos Declaratórios ao
acórdão recorrido, no tópico.
VIII. A Súmula 54 da AGU, de 2010, assentou que ‘a indenização de campo, criada
pelo artigo 16 da Lei n. 8.216/91, deve ser reajustada na mesma data e no mesmo
percentual de revisão dos valores das diárias, de modo que corresponda sempre ao
percentual de 46,87% das diárias’.
IX. Agravo Regimental parcialmente conhecido, e, nessa extensão, improvido
(STJ, AgRg no AREsp 515.202/SE, Rel. Ministra Assusete Magalhães, Segunda
Turma, DJe de 26/04/2017).

Mais recentemente, entretanto, a Primeira Turma do STJ, no julgamento


do REsp 1.303.307/PB, na sessão de 16/10/2018 – muito embora apenas sob a
ótica da alteração da parcela variável, prevista no Decreto 5.554/2005 –, voltou a
apreciar a questão, de maneira desfavorável à FUNASA, ora agravante. Confira-se:

Direito Administrativo. Recurso especial. Código de Processo Civil de 1973.


Aplicabilidade. Servidores da Fundação Nacional de Saúde. Indenização de campo.
Leis n. 8.216/91 e n. 8.270/91. Reajuste atrelado ao valor da diária. Alteração
promovida pelo Decreto n. 5.554/2005. Majoração por meio de adicional genérico.
Repercussão no calculo da indenização de campo. Recurso desprovido.
(...)
II - Cuida-se, na espécie, de ação ordinária proposta por servidores da Fundação
Nacional de Saúde - FUNASA, buscando o reajuste do valor da indenização de campo,
prevista na Lei n. 8.216/91, de modo que passe a representar o percentual de 46,87%
do valor da diária.
III - Ao estender o adicional de 50% aos deslocamentos para todas as cidades
com menos de 200.000 habitantes, excluindo a restrição anteriormente prevista no

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Decreto n. 3.643/2000, o Decreto n. 5.554/05, ainda que indiretamente, majorou o


valor das diárias, não observando, contudo, a equivalência de 46,87% entre elas e a
indenização de campo, conforme previsto no art. 15 da Lei n. 8.270/91.
IV - Com a ampliação no pagamento do adicional de 50% aos ‘demais
deslocamentos’, a norma regulamentadora não cuidou apenas de adequar o valor
da diária à realidade econômica da localidade visitada, tendo, sobretudo, elevado
o valor da verba, por meio de adicional totalmente genérico, porquanto pago
indistintamente a todos os deslocamentos que não restaram contemplados com
percentuais maiores.
V - Recurso especial improvido (STJ, REsp 1.303.307/PB, Rel. Ministra Regina
Helena Costa, Primeira Turma, DJe de 29/10/2018).

No aludido REsp 1.303.507/PB a Relatora, Ministra Regina Helena


Costa, invocou precedentes da Primeira Turma sobre o assunto (AgRg no REsp
1.273.382/PB, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, DJe de 13/05/2015;
AgRg no REsp 1.351.422/PB, Rel. Ministro Gurgel de Faria), concluindo que
“aplica-se, ao caso, o mesmo raciocínio das vantagens genéricas, constantemente
criadas com o rótulo de gratificação de desempenho, buscando excluí-la
dos benefícios cuja paridade deva ser observada. Nessa hipótese, é pacífica a
jurisprudência desta Corte e do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que
as gratificações genéricas devem ser estendidas aos servidores com direito a
paridade: (...)”.
Contra o referido acórdão do REsp 1.303.307/PB, de relatoria da Ministra
Regina Helena Costa, na Primeira Turma do STJ, foram opostos Embargos
de Divergência, pela FUNASA, invocando, como paradigma, acórdão desta
Segunda Turma – proferido no AgRg no REsp 1.475.168/CE, Rel. Ministro
Mauro Campbell Marques (julgado em 02/10/2014, DJe de 08/10/2014), que
se fundamentou na orientação fixada, em 18/12/2012, no AgRg no REsp
1.283.707/PB (Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, DJe de
08/02/2013), anteriormente mencionado no presente voto –, Embargos de
Divergência que não foram conhecidos monocraticamente, pelo Ministro
Herman Benjamin, ao entendimento de que, “embora verificada a similitude
fática entre o acórdão embargado e os paradigmas apresentados, tais paradigmas
datam de 2014, e o acórdão embargado é de 2018, e acompanha a orientação mais
atual dessa Colenda Corte” (STJ, EREsp 1.303.307/PB, Rel. Ministro Herman
Benjamin, DJe de 08/08/2019, transitado em julgado).
Registre-se, por oportuno, mais uma vez, a edição da Súmula 54 da AGU,
de 2010, que assentou que “a indenização de campo, criada pelo artigo 16 da

262
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA

Lei n. 8.216/91, deve ser reajustada na mesma data e no mesmo percentual de


revisão dos valores das diárias, de modo que corresponda sempre ao percentual
de 46,87% das diárias”.
Enfim, o Decreto 5.554/2005, não obstante a Portaria ministerial 402, de
02/10/2002 – que, regularizando a situação, fixara o valor da indenização de
campo, com efeitos financeiros a partir de 01/08/2002, em R$ 26,85 (vinte e
seis reais e oitenta e cinco centavos), correspondente a 46,87% do menor valor da
diária, de nível D, no importe de R$ 57,28 –, continuou fixando a indenização
de campo em R$ 17,46, valor menor que o da referida Portaria ministerial
402/2002 e que era o valor anteriormente previsto para a indenização de campo,
nos anteriores Decretos 1.656/95 e 3.643/2000 (R$ 17,26).
Ademais, com o Decreto 5.554/2005, o menor valor da diária, de
nível D, passou a corresponder à parcela fixa (R$ 57,28), acrescida sempre do
percentual mínimo de 50%, pago aos servidores em quaisquer deslocamentos não
contemplados com percentuais maiores (acréscimos de 70%, 80% e 90% do
valor básico da diária), a depender da capital do Estado, o que corresponde a
R$ 85,92 (R$ 57,28 + 50% de R$ 57,28 = R$ 85,92). Assim, a indenização de
campo deve corresponder a R$ 40,27 (quarenta reais e vinte e sete centavos), ou
seja, a 46,87% de R$ 85,92 (oitenta e cinco reais e noventa e dois centavos).
Portanto, o Decreto 5.554/2005 ofende o art. 15 da Lei 8.270/91, seja sob
a ótica do valor da indenização de campo, por ele fixada em R$ 17,46 – inferior,
pois, àquele valor anteriormente estabelecido em R$ 26,85, pela Portaria
ministerial 402/2002, com efeitos a contar de 01/08/2002 –, seja quanto ao
valor mínimo de diária, de nível D, acrescido de parcela variável mínima de 50%,
paga sempre aos servidores em quaisquer deslocamentos não contemplados com
percentuais maiores (acréscimos de 70%, 80% e 90% do valor básico da diária, a
depender da capital do Estado).
Ante todo o exposto, entendo que a matéria deve ser revisitada, por
esta Segunda Turma, para se fixar a adequada exegese a ser dada ao assunto,
especialmente à luz do Decreto 5.554/2005, mormente porque, como se
demonstrou, há julgados divergentes sobre a controvérsia, no âmbito da Turma.
Pelo exposto, nego provimento ao Agravo Regimental, interposto pela
FUNASA.
É como voto.

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA N. 57.943-DF


(2018/0156844-1)

Relator: Ministro Francisco Falcão


Recorrente: Call Tecnologia e Servicos Ltda
Advogados: Alexandre José Garcia de Souza - DF017047
Rafael Henrique Garcia de Souza - DF044046
Recorrido: Distrito Federal
Procurador: Gustavo Assis de Oliveira e outro(s) - DF018489

EMENTA

Administrativo. Mandado de segurança. Autoridade impetrada.


Controlador-Geral do Distrito Federal. Status de Secretário
de Estado conferido por decreto distrital. Efeitos limitados à
esfera administrativa. Secretaria da Transparência absorvida pela
Controladoria. Coexistência dos dois órgãos anteriormente. Alteração
de competência de Tribunal de Justiça. Lei federal. Impossibilidade.
I - Na origem, foi impetrado mandado de segurança, com pedido
de liminar, contra ato do Controlador-Geral do Distrito Federal,
sustentando a nulidade da aplicação da penalidade de declaração
de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração, por
ausência de descrição objetiva dos fatos e da conduta irregular praticada
pela impetrante, bem como pelo fato de que não foi obedecido o
rito procedimental regular, dado que foi suprimida da requerente a
oportunidade para apresentar alegações finais.
II - Contra a decisão que deferiu a tutela provisória, o Distrito
Federal interpôs agravo interno, suscitando a incompetência absoluta
da 2ª Câmara Cível para processar e julgar o mandado de segurança. O
Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios deu provimento
ao recurso, reconhecendo a competência absoluta da Vara da Fazenda
Pública do Distrito Federal para processar e julgar o mandamus.
III - O cerne da questão está em definir se o Tribunal de Justiça
do Distrito Federal e dos Territórios tem ou não competência para
processar e julgar mandado de segurança impetrado contra ato do
Controlador-Geral do Distrito Federal.

264
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA

IV - O art. 8º, I, c, da Lei Federal n. 11.697/2008, Lei de


Organização Judiciária do Distrito Federal – LOJDF, prevê a
competência do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios
para julgar mandado de segurança contra atos de Secretários de
Governo do DF. Por sua vez, o art. 26 da mesma Lei Federal (LOJDF)
dispõe que compete ao Juiz da Vara da Fazenda Pública processar e
julgar: “III – os mandados de segurança contra atos de autoridade do
Governo do Distrito Federal e de sua administração descentralizada.”
V - No tocante à legislação distrital invocada e suas disposições
relativas à Controladoria, tem-se que até a edição do Decreto Distrital
n. 36.236/2015, coexistiam os órgãos da Secretaria de Estado de
Transparência e Controle - STC e da Controladoria-Geral do Distrito
Federal - CGDF, ambos como integrantes do sistema de Correição do
Distrito Federal - SICOR/DF, com a finalidade de prevenir e apurar
irregularidades no Poder Executivo - Lei n. 4.938, de 19/9/2012.
VI - Quando da edição do referido ato, a Secretaria de Estado da
Transparência foi renomeada para Controladoria-Geral do Distrito
Federal (art. 8º, § 1º). Ocorre que este órgão já existia, situação que
leva ao entendimento de que teria havido, na verdade, uma absorção
de um órgão por outro.
VII - Não procede, pois, o argumento recursal de que a
Controladoria-Geral se trata, em verdade, de uma Secretaria para o
fim de alteração da competência jurisdicional.
VIII - O entendimento do acórdão recorrido de que os efeitos
desse Decreto estão limitados ao âmbito do funcionamento da
Administração Pública Distrital está correto, porque confere àquele
Órgão a autonomia necessária ao desempenho das suas atribuições;
mas não, por óbvio, a possibilidade alterar a competência jurisdicional
do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios.
IX - Recurso ordinário desprovido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,


acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, por
unanimidade, negar provimento ao recurso ordinário, nos termos do voto do(a)

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Sr(a). Ministro(a)-Relator(a).” Os Srs. Ministros Herman Benjamin e Og


Fernandes votaram com o Sr. Ministro Relator.
Ausentes, justificadamente, os Srs. Ministros Mauro Campbell Marques e
Assusete Magalhães.
Dr(a). Rafael Henrique Garcia de Souza, pela parte recorrente: Call
Tecnologia e Servicos Ltda
Brasília (DF), 08 de março de 2022 (data do julgamento).
Ministro Francisco Falcão, Relator

DJe 11.3.2022

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Francisco Falcão: Call Tecnologia e Serviços Ltda. impetrou


mandado de segurança contra ato do Controlador-Geral do Distrito Federal.
Alegou que figurou como investigada nos autos de procedimento
administrativo (480.001.091/2011), iniciado por ordem da autoridade coatora, a
fim de apurar eventuais irregularidades em relação a contratos firmados entre o
Distrito Federal e a Call Tecnologia. Ao final a autoridade processante, por meio
do Despacho n. 35/2017-TGAB/CGDF, aplicou a penalidade de declaração de
inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração, nos termos do art.
87, IV c/c art. 88, II e III, da Lei n. 8.666/1993. Afirmou que o procedimento
administrativo é nulo, diante da ausência de descrição objetiva dos fatos e da
conduta irregular praticada pela impetrante, bem como do fato de que não foi
obedecido o rito procedimental regular, porque foi suprimida da requerente a
oportunidade para apresentar alegações finais.
O Relator deferiu a tutela provisória requerida no mandado de segurança; e
o Distrito Federal interpôs agravo interno, suscitando a incompetência absoluta
da 2ª Câmara Cível para processar e julgar o mandado de segurança. No
mérito, sustentou a ausência dos pressupostos autorizadores para o deferimento
da liminar, haja vista que a alegação de nulidade não veio corroborada pela
demonstração do efetivo prejuízo.
O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios deu provimento
ao agravo interno, reconhecendo a competência absoluta da Vara da Fazenda
Pública do Distrito Federal para processar e julgar o mandamus, nos termos
assim ementados (fls. 1.494-1.495):

266
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA

Administrativo, Constitucional e Processual Civil. Mandado de segurança.


Agravo interno. Preliminar. Autoridade impetrada. Controlador-Geral do Distrito
Federal. Status de Secretário de Estado. Decreto local n. 36.326/15. Repercussão
apenas na esfera administrativa. Alteração do foro jurisdicional. Impossibilidade.
Incompetência do Órgão Fracionário do Tribunal (Câmara Cível). Remessa do feito
à Vara da Fazenda Pública. Recurso parcialmente provido.
Caso concreto: “Como visto, trata-se de mandado de segurança impetrado
pela Call Tecnologia e Serviços Ltda, contra ato supostamente coator atribuído
ao Controlador-Geral do Distrito Federal que, em sede de procedimento
administrativo para apurar a existência de irregularidades em ajustes celebrados
com o ente político, aplicou à pessoa jurídica a sanção de inidoneidade para licitar
e contratar com o Poder Público” (Procuradoria de Justiça).
1. Conquanto o Decreto Distrital n. 36.326/15 confira ao Controlador-Geral
do Distrito Federal o status de Secretário de Estado (artigo 15), tal repercute
apenas na esfera de funcionamento do complexo administrativo local, porquanto
outorga à referida autoridade independência necessária à execução das suas
atribuições, não sendo, porém, capaz de modificar a competência jurisdicional,
de modo a lho conferir foro perante órgão fracionário do tribunal (Câmara Cível –
artigo 21, RITJDFT).
1. A competência funcional, disciplinada na LOJDF, é matéria reservada à lei
federal, restando, portanto, inadmissível que ato de governo local se sobreponha
àquela, notadamente por meio de norma infralegal, em flagrante violação ao
princípio da hierarquia das normas.
2. Precedente da Corte: “Mandado de segurança. Competência. Ato do
Controlador-Geral do Distrito Federal. Status de Secretário de Estado. Decreto. Vara
da Fazenda Pública. I - O art. 15 do Decreto Distrital 36.326/15 confere status
de Secretário de Estado ao Controlador-Geral do Distrito Federal, o que gera
efeitos no funcionamento da Administração Pública Distrital, mas não transfere
a competência da Vara da Fazenda Pública para o Conselho Especial, pois um ato
infralegal (Decreto Distrital) não pode modificar norma prevista em lei federal (Lei
de Organização Judiciária). II - Acolhida preliminar de incompetência do Conselho
Especial para julgar mandado de segurança contra ato do Controlador-Geral do
Distrito Federal e de outras autoridades sem prerrogativa de foro e determinada
a remessa dos autos a uma das Varas da Fazenda (Conselho Especial, MSG n.
2015.00.2.019679-2, rel. Designada Des. Vera Andrighi, DJe de Pública”. 3/6/2016,
pp. 65/67).
3. Nesse contexto, o feito deve ser processado e julgado perante a Vara da
Fazenda Pública do Distrito Federal, nos moldes do artigo 26 da LOJDF.
4. Agravo interno conhecido e provido.

Os declaratórios opostos foram rejeitados (fls. 1.529-1.541).

RSTJ, a. 34, (265): 221-278, Janeiro/Março 2022 267


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Call Tecnologia e Serviços Ltda. interpôs recurso ordinário, com


fundamento no art. 105, II, b, da Constituição Federal, reiterando os
fundamentos da impetração. Sustentou que as Leis Distritais n. 3.105/2002
e 4.938/2012 - e não o art. 15 do Decreto Distrital n. 36.236/2015 – que
conferem o status de Secretário de Estado do Controlador-Geral do Distrito
Federal.
Afirmou que o art. 8º do Decreto n. 36.236/2015 “[..] apenas alterou para
Controladoria-Geral do Distrito Federal a denominação da então Secretaria de
Transparência e Controle”, daí advindo, em suma, o status de Secretário para
fins, também, de competência jurisdicional.
Aduziu, ainda, que o Tribunal de origem não poderia ter entendido
que o Controlador-Geral do Distrito Federal não seria Secretário de Estado,
mas ostentaria, contraditoriamente, tal qualidade para a prática de atos
de competência daquela autoridade, em afronta ao art. 87, § 3º, da Lei n.
8.666/1993 atribui competência exclusiva ao Secretário Estadual a prática de
ato de declaração de inidoneidade.
Foram apresentadas contrarrazões (fls. 1.565-1.570).
O Ministério Público Federal opinou pelo desprovimento do recurso (fls.
1.580-1.588).
É o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Francisco Falcão (Relator): O recurso não comporta


provimento.
Ainda que a recorrente alegue a existência de contradição quanto ao fato de
o Controlador-Geral não possuir status de Secretário, mas poder aplicar sanções
de declaração de inidoneidade, o fato é que o cerne da questão, nesta instância
recursal, está somente em definir se o Tribunal de Justiça do Distrito Federal
e dos Territórios tem ou não competência para processar e julgar mandado de
segurança impetrado contra ato do Controlador-Geral do Distrito Federal.
O art. 8º, I, c, da Lei Federal n. 11.697/2008, Lei de Organização Judiciária
do Distrito Federal – LOJDF, prevê a competência do Tribunal de Justiça do
Distrito Federal e dos Territórios para julgar mandado de segurança contra atos
de Secretários de Governo do DF.

268
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA

Por sua vez, o art. 26 da mesma Lei Federal (LOJDF) dispõe que compete
ao Juiz da Vara da Fazenda Pública processar e julgar: “III – os mandados de
segurança contra atos de autoridade do Governo do Distrito Federal e de sua
administração descentralizada.”
No caso, o Tribunal de origem decidiu que a denominação (ou status) de
Secretário de Estado do Controlador-Geral do Distrito Federal decorre de
simples Decreto (Decreto Distrital n. 36.326/2015). E, por isto, não teria o
efeito de fixar a competência do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos
Territórios para fins de julgamento do mandado de segurança; muito menos de
modificar a competência da Vara da Fazenda Pública, prevista no referido art.
26, III, da LOJDF, que é lei federal, como referido.
No tocante à legislação distrital invocada e suas disposições relativas à
Controladoria, tem-se que até a edição do citado Decreto de 2015, coexistiam
os órgãos da Secretaria de Estado de Transparência e Controle - STC e da
Controladoria-Geral do Distrito Federal - CGDF, ambos como integrantes
do sistema de Correição do Distrito Federal - SICOR/DF, com a finalidade
de prevenir e apurar irregularidades no Poder Executivo - Lei n. 4.938, de
19/9/2012.
Quando da edição do Decreto Distrital n. 36.236, de 1/1/2015, a
Secretaria de Estado da Transparência foi renomeada para Controladoria-Geral
do Distrito Federal (art. 8º, § 1º). Ocorre que este órgão, conforme já relatado, já
existia, o que parece ter havido foi uma absorção de um órgão por outro.
Nesse caso, não procede o argumento da recorrente de que a Controladoria-
Geral se trata, em verdade, de uma Secretaria para o fim de alteração da
competência jurisdicional.
Assim, correto o entendimento do acórdão recorrido em limitar os efeitos
do Decreto ao âmbito do funcionamento da Administração Pública Distrital,
porque confere àquele Órgão a autonomia necessária ao desempenho das suas
atribuições; sem a possibilidade, por óbvio, de alterar a competência jurisdicional
do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios.
Verifica-se, da fundamentação apresentada no acórdão recorrido e das
razões recursais, que não foi demonstrado o direito líquido e certo e que não
houve comprovação, de plano, da violação ao direito por ato ilegal, ou abusivo,
atribuído à autoridade pública.
Ante o exposto, nego provimento ao recurso ordinário.
É o voto.

RSTJ, a. 34, (265): 221-278, Janeiro/Março 2022 269


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA N. 66.794-AM


(2021/0193711-6)

Relator: Ministro Francisco Falcão


Recorrente: Sind. das Empresas de Transp. de Passageiros do Est. do Am.
Outro Nome: Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros do
Estado do Amazonas
Advogados: Marçal Justen Filho - PR007468
Eduardo Talamini - PR019920
André Guskow Cardoso - PR027074
Fernando Borges de Moraes - AM000446
Mônica Bandeira de Mello Lefevre - PR057540
Doshin Watanabe - PR086674
Letícia Alle Antonietto - PR102445
Recorrido: Município de Manaus
Procuradores: Ketlen Anne Pontes Pina - AM004818
Geraldo Uchôa de Amorim Júnior - AM012975
Recorrido: Instituto Municipal de Mobilidade Urbana - IMMU
Advogado: Denis Rosas de Araújo - AM003510

EMENTA

Administrativo. Intervenção no contrato de concessão. Alegação


de nulidades. Ausência de direito líquido e certo. Necessidade de
dilação probatória. Recurso desprovido.
I – Na origem, o Sindicato das Empresas de Transporte de
Passageiros do Estado do Amazonas impetrou mandado de segurança
visando à decretação da nulidade da intervenção no sistema de
transporte coletivo urbano do Município de Manaus-AM.
II – O Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas denegou
a ordem entendendo dispensável estabelecer contraditório prévio à
decretação da intervenção, afastando a alegação de confisco e decidiu
que seria necessária a produção de prova pericial.
III – Conforme se extrai do regime jurídico do art. 175 da
Constituição e da Lei de Concessões - Lei n. 8.987/1995, o Estado

270
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA

delega a prestação de alguns serviços públicos, resguardando a si,


na qualidade de poder concedente, a prerrogativa de regulamentar,
controlar e fiscalizar a atuação do delegatário. A intervenção no
contrato de concessão visa assegurar a adequação na prestação do
serviço público, bem como o fiel cumprimento das normas contratuais,
regulamentares e legais pertinentes (art. 32 da Lei n. 8.987/1995).
IV – De um lado, o poder concedente deve “instaurar procedimento
administrativo para comprovar as causas determinantes da medida
e apurar responsabilidades, assegurado o direito de ampla defesa”
(art. 33 da Lei n. 8.987/1995). De outro, não se pode desconsiderar
que eventuais ilegalidades no curso do procedimento dependem de
comprovação de prejuízo.
V – Em se tratando de intervenção, o direito de defesa do
concessionário só é propiciado após a decretação da intervenção, a partir
do momento em que for instaurado o procedimento administrativo
para apuração das irregularidades. Isso porque a intervenção possui
finalidades investigatória e fiscalizatória, e não punitivas.
VI – No caso, não cabe a concessão da segurança, dado que
a impetração exigiria atividade instrutória mediante produção de
provas, inclusive periciais, a fim de esclarecer eventual reequilíbrio
econômico-financeiro no contrato, bem como as alegadas nulidades
no curso da intervenção no contrato de concessão firmado entre as
concessionárias de transporte coletivo e o Município de Manaus.
Não foi demonstrado o alegado direito líquido e certo, bem como não
houve comprovação, de plano, da violação ao direito por ato ilegal ou
abusivo atribuído às autoridades públicas.
VII – Recurso ordinário desprovido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,


acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, por
unanimidade, negar provimento ao recurso ordinário, nos termos do voto
do(a) Sr(a). Ministro(a)-Relator(a).” Os Srs. Ministros Herman Benjamin, Og
Fernandes, Mauro Campbell Marques e Assusete Magalhães votaram com o Sr.
Ministro Relator.

RSTJ, a. 34, (265): 221-278, Janeiro/Março 2022 271


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Dr(a). Doshin Watanabe, pela parte recorrente: Sind. das Empresas de


Transp. de Passageiros do Est. do Am.
Dr(a). Doshin Watanabe, pela parte outro nome: Sindicato das Empresas
de Transporte de Passageiros do Estado do Amazonas
Brasília (DF), 22 de fevereiro de 2022 (data do julgamento).
Ministro Francisco Falcão, Relator

DJe 2.3.2022

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Francisco Falcão: O Sindicato das Empresas de Transporte


de Passageiros do Estado do Amazonas impetrou mandado de segurança contra
o Prefeito do Município de Manaus; o Interventor Financeiro das Concessões do
Serviço de Transporte Público Coletivo do Município de Manaus; o Secretário
Municipal de Finanças; e o Diretor-Presidente do Instituto Municipal de
Mobilidade Urbana IMMU.
Visou com a impetração a decretação da nulidade da intervenção no
sistema de transporte coletivo urbano convencional e do direcionamento dos
recursos oriundos de aquisição de vale-transporte, passe estudantil e qualquer
cartão inteligente (smartcard) do Sistema de Bilhetagem Eletrônica (SBE) para
que sejam creditados diretamente em conta bancária titularizada pelo Poder
Executivo Municipal.
O Tribunal de Justiça de Justiça do Estado do Amazonas denegou a
segurança, nos termos assim ementados:

Mandado de segurança. Ausência de direito líquido e certo. Inexistência de


requisito para a concessão do writ. Necessidade de dilação probatória. Segurança
denegada em desarmonia com o Ministério Público.
1. Direito líquido e certo é aquele que se apresenta de forma tão robusta e
inequívoca que dispensa procedimento probatório dilatado, permitindo, desde
logo, a resolução da lide a partir das informações acostadas à exordial.
2. Da análise dos documentos juntados ao presente mandamus (fls. 74/1.388),
constata-se a carência de suporte probatório, porquanto inexiste previsão legal
na Lei n. 8.987/95 de que a intervenção do Poder Público esteja condicionada a
procedimento administrativo prévio.
3. Conforme mencionado, o regramento regente não determina a existência de
prévio contraditório, como sustenta o sindicado Impetrante, tampouco o Decreto

272
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA

Municipal n°4.503/2019 ofendeu as normas que disciplinam a intervenção,


havendo sido indicados o interventor, o prazo de duração, o objetivo e os limites
da intervenção, em obediência à lei.
4. Da mesma forma, no que concerne ao Decreto Municipal n. 4.525/2019
verifica, também não se verifica de plano, qualquer irregularidade, pois traduz,
a priori, exercício do poder de administração derivado da própria intervenção e
do poder de polícia, prerrogativa da Administração Pública, possuindo a respeito
plena ciência o particular que contrata com o Poder Público.
5. Segurança denegada, em desarmonia com o Ministério Público.

O impetrante interpôs recurso ordinário, apontando a violação do art. 37,


XXI, da Constituição Federal; dos arts. 40, XI e XIV, c, 58 e 65, II, d, e § 5º,
todos da Lei n. 8.666/1993; do art. 9º, §§ 3º e 4º, da Lei n. 9.897/1997; e art. 19,
§ 1º, da Lei 12.587/2012. Sustentou, em resumo, a ilegalidade da intervenção
e dos atos dela decorrentes, de modo a resguardar o direito líquido e certo das
concessionárias à observância das garantias legais e contratuais por parte do
poder concedente. Apontou que houve o confisco das receitas tarifárias, o que
ofende “a garantia da propriedade privada (art. 5º, inc. XXIV), a vedação ao
confisco de bens (art. 150, inc. IV) e o próprio princípio da moralidade (art. 37,
caput).” (fls. 1.938).
Foram apresentadas contrarrazões (fls. 2.108-2.136).
O Ministério Público Federal opinou pelo desprovimento do recurso (fls.
2915-2925).
É o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Francisco Falcão (Relator): O recurso não comporta


provimento.
O presente caso trata de alegadas ilegalidades no procedimento de
intervenção no serviço público de transporte municipal de Manaus-AM.
Conforme se extrai do regime jurídico do art. 175 da Constituição e
da Lei de Concessões - Lei n. 8.987/1995 -, o Estado delega a prestação de
alguns serviços públicos, resguardando a si, na qualidade de poder concedente, a
prerrogativa de regulamentar, controlar e fiscalizar a atuação do delegatário.
No âmbito desse controle e fiscalização, a  intervenção no contrato de
concessão constitui um dever e uma prerrogativa de que dispõe o poder

RSTJ, a. 34, (265): 221-278, Janeiro/Março 2022 273


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

concedente, visando assegurar a adequação na prestação do serviço público,


bem como o fiel cumprimento das normas contratuais, regulamentares e legais
pertinentes, segundo dispõe o art. 32 da Lei n. 8.987/1995.
De um lado, o poder concedente deve “instaurar procedimento
administrativo para comprovar as causas determinantes da medida e apurar
responsabilidades, assegurado o direito de ampla defesa” (art. 33 da Lei n.
8.987/1995). De outro, não se pode desconsiderar que eventuais ilegalidades no
curso do procedimento devem ser aferidas em consonância com a regra geral do
ordenamento jurídico de que a decretação da nulidade depende de comprovação
de prejuízo.
O Tribunal de origem, no caso, manifestou-se sobre cerne da controvérsia,
solucionando a causa mediante fundamento suficiente em detida análise
do contexto probatório dos autos, para afastar as apontadas nulidades no
procedimento de intervenção efetivado pelas autoridades coatoras.
Nos termos do art. 33 da Lei n. 8.987/1995: “Declarada a intervenção,
o poder concedente deverá, no prazo de trinta dias, instaurar procedimento
administrativo para comprovar as causas determinantes da medida e apurar
responsabilidades, assegurado o direito de ampla defesa.” Verifica-se que, em se
tratando de intervenção, o direito de defesa do concessionário só é propiciado
após a decretação da intervenção, a partir do momento em que for instaurado
o procedimento administrativo para apuração das irregularidades. Isso porque a
intervenção possui finalidades investigatória e fiscalizatória, e não punitiva.
Assim, não há fundamento para reformar o entendimento do Julgador
a quo de que é dispensável estabelecer contraditório prévio à decretação da
intervenção, ausente determinação na Lei n. 8.987/1995.
Ademais, o Tribunal de origem afastou a alegação de confisco, considerando
o fato de que, para a fiel execução da administração financeira pelo interventor,
foi necessária a concentração dos recursos auferidos na conta da administração
“com destinação para a manutenção do essencial serviço de transporte público
coletivo urbano, com o pagamento prioritário de pessoal, remetendo-se o
excedente às concessionárias” (fl. 1.898).
No mais, o cerne da pretensão mandamental consistiu em sustentar
que houve determinados fatores desequilíbrio que impactaram as outorgas,
dentre os quais: a superestimativa que nunca se concretizou; a proliferação do
transporte clandestino; a introdução de modais concorrentes; o descumprimento
da sistemática contratual de reajustamento tarifário; a priorização de uma

274
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA

tarifa política à tarifa técnica devida; a instituição de benefícios tarifários sem


contrapartida; bem como condições operacionais precárias.
Sobre essas questões o Tribunal de origem entendeu que:

[...] quanto aos efeitos colaterais da intervenção, insuficiência de recursos,


assim como, direito ao reequilíbrio econômico-financeiro, cumpre recordar que
a discussão de tais questões é inviável na célere como via por eleita, ante a
necessidade contábil, acumulados dilação probatória, exemplo, perícia prejuízos
não ao se admitindo presunções a partir de longo dos últimos anos.
[...] (fl. 1.898)

Assim, sobre esse cerne da pretensão, conforme decidido pelo Tribunal de


origem, seria necessária dilação probatória mediante produção de prova pericial.
A propósito, confiram-se os seguintes trechos do acórdão recorrido:

[...]
Ora, o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos
previsto no art. 175 da Constituição da República, regulamentado pela Lei n.
8.987/95, prevê possibilidade de intervenção do Poder concedente, consoante
disposto em seu art. 29, ao que transcrevo: (…)
No que pertine à intervenção propriamente dita, a medida encontra-se
regulamentada nos artigos 32 a 34 do mesmo diploma, a seguir: (…)
Conforme mencionado, o regramento regente não determina a existência de
prévio contraditório, como sustenta o sindicado Impetrante, tampouco o Decreto
Municipal n. 4.503/2019 ofendeu as normas que disciplinam a intervenção,
havendo sido indicados o interventor, o prazo de duração, o objetivo e os limites
da intervenção, consoante previsão legal.
Da mesma forma, no que concerne ao Decreto Municipal n. 4.525/2019,
também não se verifica, de plano, qualquer irregularidade, pois traduz, a priori,
exercício do poder de administração derivado da própria intervenção e do poder
de polícia, prerrogativa da Administração Pública, possuindo a respeito plena
ciência o particular que contrata com o Poder Público.
Conforme frisado na decisão às fls. 1.434/1.438, a intervenção operada pelo
Decreto n. 4.525/2019 não é meramente fiscalizatória, porquanto estabelece
que a administração financeira seja gerenciada pelo interventor, bem como,
que os recursos auferidos sejam concentrados na conta da administração com
destinação para a manutenção do essencial serviço de transporte público coletivo
urbano, com o pagamento prioritário de pessoal, remetendo-se o excedente às
concessionárias, a teor do seu art. 2º.

RSTJ, a. 34, (265): 221-278, Janeiro/Março 2022 275


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Vale a pena ressaltar que a intervenção não exime o Poder Público da


instauração do procedimento administrativo para apurar as responsabilidades,
assegurado direito à ampla defesa, sem prejuízo da prestação de contas e
responsabilidade do interventor e eventual indenização à concessionária.
Por fim, quanto aos efeitos colaterais da intervenção, insuficiência de recursos,
assim como, direito ao reequilíbrio econômico-financeiro, cumpre recordar que
a discussão de tais questões é inviável na célere como via por eleita, ante a
necessidade contábil, acumulados dilação probatória, exemplo, perícia prejuízos
não ao se admitindo presunções a partir de longo dos últimos anos.
Diante certo deste cenário, cumpre recordar que tão direito robusta líquido e
é aquele que um se apresenta de forma e inequívoca que dispensa procedimento
probatório dilatado, permitindo, informações desde logo, a resolução da lide a
partir das acostadas à exordial. (…)
Dessa forma, não há como identificar, por meio desta ação constitucional, a
existência de ilegalidades nos decretos, sendo indispensável, quanto ao mais, que
a prova seja pré-constituída, restando inviável a dilação probatória.
[...] (fls. 1.897-1.899).

Dos trechos acima transcritos e das razões recursais, verifica-se, pois, que
não cabe a concessão da segurança, dado que, conforme indicado pelo Tribunal
de origem, a impetração exigiria atividade instrutória mediante produção de
provas, inclusive periciais, a fim de esclarecer eventual reequilíbrio econômico-
financeiro no contrato, bem como as alegadas nulidades no curso da intervenção
no contrato de concessão firmado entre as concessionárias de transporte coletivo
e o Município de Manaus.
Portanto, tem-se que não foi demonstrado o alegado direito líquido e
certo, e não houve comprovação, de plano, da violação ao direito por ato ilegal
ou abusivo atribuído às autoridades públicas.
Nesse sentido:

Processual Civil. Agravo interno no recurso ordinário em mandado de


segurança. Direito líquido e certo. Inexistência. Alegação de suspensão dos
serviços forenses. Ausência de prova pré-constituída. Necessidade de dilação
probatória. Inviabilidade do mandamus. Agravo desprovido.
1. O mandado de segurança exige a demonstração de direito líquido e certo
próprio do impetrante, mediante a apresentação de prova pré-constituída, o
que não ocorre na hipótese, pois as alegações do recorrente demandam dilação
probatória, medida inviável no rito sumário e especial da ação constitucional.
2. Agravo interno desprovido. (AgInt no RMS 61.726/RJ, Rel. Ministro Raul
Araújo, Quarta Turma, DJe 18/6/2021).

276
Jurisprudência da SEGUNDA TURMA

Administrativo. Agravo interno no recurso ordinário em mandado de


segurança. Servidor público. Parcela autônoma especial. Ausência de
demonstração de qualquer ilegalidade. Agravo interno do servidor a que se nega
provimento.
1. Trata-se de Recurso Ordinário contra ato dos Secretários da Fazenda e da
Administração do Estado da Bahia consubstanciado na redução do percentual da
Gratificação de Atividade Fiscal percebida, de 135% para 110%.
2. Conforme se verifica, a ordem foi denegada, pois a decisão obedece
os critérios legalmente estabelecidos em conformidade aos elementos
fáticos correspondentes à posição da parte recorrente e não há que se falar
na manutenção dos pontos referentes ao cargo anterior ocupado. A simples
alegação, desacompanhada de qualquer espécie de prova, de que a autoridade
coatora agiu de forma abusiva e ilegal, não constitui elemento para evidenciar
a existência do direito alegado, de forma que tais imputações deveriam ter sido
veiculadas em Ação Ordinária, a qual admite dilação probatória. Portanto, o
acolhimento da pretensão do recorrente é inviável na via estreita do Mandado de
Segurança, ante a necessidade de dilação probatória.
3. Agravo Interno do Servidor a que se nega provimento (AgInt nos EDcl no
RMS 57.640/BA, Rel. MIN. Manoel Erhardt (Desembargador Convocado do TRF-5ª
Região), Primeira Turma, DJe 24/6/2021).

Administrativo. Agravo interno no recurso ordinário em mandado de segurança.


Promotor de Justiça. Processo administrativo disciplinar. Disponibilidade cautelar.
Suposto cometimento de prática de assédio moral e sexual contra servidoras
públicas. Necessidade de ampla dilação probatória.
1. O Superior Tribunal de Justiça firmou a orientação segundo a qual “a ação
mandamental não se confunde com processos cujos ritos são ordinários, ou
seja, onde é possível a produção de todas as provas possíveis à elucidação da
controvérsia. Seu rito é distinto. As provas têm que ser pré-constituídas, de modo
a evidenciar a latente ofensa ao direito líquido e certo invocado pelo impetrante.
Caso não restem atendidos os seus requisitos intrínsecos, não será a hipótese do
mandado de segurança. Afinal, nesta via não se trabalha com dúvidas, presunções
ou ilações. Os fatos têm de ser precisos e incontroversos. A discussão dever orbitar
somente no campo da aplicação do direito ao caso concreto, tomando-se como
parâmetro as provas pré-constituídas acostadas aos autos” (MS 8.998/DF, Rel. Min.
Gilson Dipp, Terceira Seção, DJ 9/12/2003, p. 207).
2. A revisão da matéria fática produzida no procedimento administrativo, com
a consequente incursão no mérito do julgamento administrativo não é permitida
ao Poder Judiciário.
3. No caso dos autos, é necessária a ampla dilação probatória para perquirir
a legitimidade da correição extraordinária promovida no Ministério Público
Estadual, que cominou no afastamento cautelar do indiciado, na forma dos arts.

RSTJ, a. 34, (265): 221-278, Janeiro/Março 2022 277


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

139 e 226 da Lei Complementar n. 11/1996, com o objetivo de resguardar a


imagem e a credibilidade da instituição.
4. Agravo interno a que se nega provimento. (AgInt no RMS 51.976/BA, Rel.
Ministro Og Fernandes, Segunda Turma, DJe 28/4/2021).

Ante o exposto, nego provimento ao recurso ordinário.


É o voto.

278
Segunda Seção
AÇÃO RESCISÓRIA N. 4.590-PR (2010/0199836-2)

Relatora: Ministra Maria Isabel Gallotti


Revisor: Ministro Antonio Carlos Ferreira
Autor: Banco Banestado S.A
Advogado: Evaristo Aragao Ferreira dos Santos - PR024498
Réu: José Von Stein e Companhia Ltda
Advogados: Marcelo Leal de Lima Oliveira e outro(s) - DF021932
Marina Feres Carmo - DF060972

EMENTA

Processual Civil. Ação rescisória. Ação de prestação de contas.


Segunda fase. Contrato de abertura de crédito em conta corrente.
Cheque especial. Apelação. Preliminar de nulidade da intimação
afastada. Retorno dos autos ao Tribunal de origem. Exame dos demais
tópicos da apelação. Violação de literal disposição de lei. Art. 561 do
CPC/73. Erro de fato. Procedência da rescisória.
1. Com o acolhimento da preliminar de nulidade da intimação
da instituição financeira ré, o Tribunal de origem deu provimento à
apelação para anular a sentença proferida em segunda fase de ação de
prestação de contas de contrato de abertura de crédito, que dera por
boas as contas apresentadas pelo autor da ação originária
2. A decisão rescindenda reverteu esse entendimento, afastando
a mencionada preliminar, porém determinou o restabelecimento da
sentença.
3. Ao restaurar a sentença, a decisão do STJ a substituiu, como
se em seu corpo a estivesse transcrevendo, mesmo sem examinar
explicitamente os respectivos fundamentos jurídicos, passando a ser o
próprio título exequendo, constituindo a decisão de mérito passível de
execução e de rescisória, da competência do STJ.
4. No caso em exame, o STJ restabeleceu o conteúdo da sentença,
sem perceber o fato de que a apelação continha outra preliminar e
também impugnação do mérito das contas homologadas.
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

5. Constitui consequência lógico-processual, a qual sequer precisa


ser requerida pela parte, que o afastamento da preliminar implica o
exame das demais questões postas no recurso. Precedentes.
6. Violação do art. 561 do CPC/73, segundo o qual rejeitada
a preliminar deve-se seguir a discussão e o julgamento dos demais
pontos do recurso.
7. Não percebida a existência de matéria pendente, o que se situa
na esfera do erro de fato, procedente o pedido de rescisão e, em novo
julgamento da causa, a exclusão da parte da decisão que restaurara a
sentença, a fim de que a Corte de origem complemente a prestação
jurisdicional.
8. Ação rescisória procedente.

ACÓRDÃO

Prosseguindo o julgamento, após o voto-vista do Sr. Ministro Luis Felipe


Salomão julgando procedente a ação rescisória e acompanhando o voto da Sra.
Ministra Maria Isabel Gallotti (Relatora), e a retificação do voto do Sr. Ministro
Moura Ribeiro acompanhando o voto divergente do Sr. Ministro Antonio
Carlos Ferreira (Revisor) para julgar extinta a ação rescisória, a Segunda Seção,
por maioria, julgou procedente a ação rescisória, nos termos do voto da Sra.
Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Marco Buzzi, Marco Aurélio Bellizze,
Luis Felipe Salomão e Raul Araújo votaram com a Sra. Ministra Relatora.
Vencidos os Srs. Ministros Antonio Carlos Ferreira (Revisor), Moura
Ribeiro e Nancy Andrighi.
Ausente, justificadamente, o Sr. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino.
Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva.
Consignados pedidos de preferência pelo Autor Banco Banestado S.A.,
representado pela Dra. Suelen Henk e, pelo réu José Von Stein e Companhia
Ltda, representado pelo Dr. Benedito Cerezzo Pereira Filho.
Brasília (DF), 09 de março de 2022 (data do julgamento).
Ministra Maria Isabel Gallotti, Relatora

DJe 30.3.2022

282
Jurisprudência da SEGUNDA SEÇÃO

RELATÓRIO

A Sra. Ministra Maria Isabel Gallotti: Trata-se de ação rescisória ajuizada


pelo Banco Banestado S.A. com o objetivo de rescindir decisão proferida pelo
Ministro Sidnei Beneti (fls. 577/582), que deu provimento ao REsp 907.622/PR
para restabelecer sentença que, diante da procedência da primeira fase de ação
de prestação de contas de contrato de abertura de crédito em conta corrente e do
decurso do prazo previsto no art. 915, § 2º, do CPC anterior, sem manifestação
do Banco Itaú S/A, intimado a apresentar as contas na condição de sucessor do
Banestado, julgou boas as contas fornecidas pelo autor da ação. Em consequência,
foi determinada a execução forçada do valor correspondente, que alcançou a cifra,
em agosto de 2010, de R$ 3.311.331,68 (três milhões, trezentos e onze mil,
trezentos e trinta e um reais e sessenta e oito centavos - fls. 4 e 914).
Considerou a decisão rescindenda que, apesar de a intimação para prestar
as contas ter sido dirigida ao Banco Itaú S.A., o Banestado, depois de efetivado
esse ato e na primeira oportunidade em que se manifestou nos autos, requereu
prazo para cumprir a determinação e não alegou nulidade alguma na intimação,
razão pela qual considerou sanado eventual vício, diante da demonstração de
que a instituição financeira teve plena ciência do ato e da necessidade de atender
a ordem judicial. Ademais, registrou precedente em que a Quarta Turma deste
Tribunal entendeu não ser necessária a intimação pessoal do réu na segunda
fase do processo de prestação de contas (REsp 658.960/SP, Rel. Ministro César
Asfor Rocha, DJU de 11.12.2006).
Narra o Banestado que a decisão rescindenda violou a literal disposição
dos arts. 128, 460, 512, 560 e 561 do CPC revogado, bem como dos arts. 5º,
inciso XXXV, e 93, inciso IX, da Constituição Federal, e isso porque, segundo
entende, o provimento do recurso especial deveria ter por consequência de
lógica processual não o restabelecimento da sentença, mas o retorno dos autos
ao Tribunal de origem para apreciação das demais questões que suscitou no
recurso de apelação. Afirma que a solução estabelecida pela decisão rescindenda
impediu o exame pelo Tribunal de Justiça do Paraná do mérito de seu recurso de
apelação, que, além da “preliminar de nulidade da citação/intimação”, impugnou
o mérito da sentença, insurgindo-se contra as contas apresentadas pela autora da
ação de prestação de contas.
Acrescenta que a decisão rescindenda encontra-se em fase de execução na
qual em 29.9.2010 foi determinada a penhora, via Bacenjud, da expressiva quantia
acima, valor que o “Réu está na iminência de obter autorização para levantamento”.

RSTJ, a. 34, (265): 279-338, Janeiro/Março 2022 283


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Dessa forma, sustentando estarem configuradas a plausibilidade jurídica do


pedido e a possibilidade de dano irreparável, requer a antecipação dos efeitos da
tutela, a fim de que seja sobrestado o cumprimento do julgado, até o exame do
mérito da presente ação rescisória.
Por fim, formula pedido de rescisão do julgado singular para o efeito de
determinar a devolução do feito à Corte estadual para a análise das demais
questões postas na apelação.
Sustenta também a ocorrência de erro de fato, pois o relator não percebeu
que não era cabível a restauração da sentença sem o exame dos demais tópicos
do recurso, que discutem a nulidade da sentença por falta de fundamentação,
a necessidade de perícia contábil para expurgar os encargos próprios das
instituições financeiras, indevidamente incluídos na conta, bem como a
ocorrência de enriquecimento sem causa da parte adversa. Para esse mister
indica a infringência dos arts. 93, inciso IX, da Constituição Federal e 130,
330, 332, 458 e 915, § 2º, do CPC de 1973, 402 e 884 do Código Civil e 4º do
Decreto 22.626/1933.
Sucessivamente, postula a nulidade da decisão rescindenda, defendendo a
tese de que, por haver substituído a sentença carente de fundamentação, incidiu
no mesmo vício, uma vez que meramente homologou as contas apresentadas
pela ré, sem apreciar os cálculos apresentados e sem determinar a realização da
prova técnica, conforme determina o art. 915, § 3º, do CPC/73.
À fls. 744/746, foi deferida a tutela antecipada para sobrestar o cumprimento
da sentença da segunda fase da prestação de contas, que considerou bom o
cálculo fornecido pela autora da ação originária.
José von Stein e Companhia Ltda. apresenta agravo interno às fls. 785/796.
A mesma pessoa jurídica oferece contestação às fls. 820/842, no sentido
da ausência de interesse de suspender a efetivação do julgado, já determinada
pelo Juízo de origem; não cabimento de ação rescisória como sucedâneo de
recurso, já estando preclusa a oportunidade de impugnar a conta; ausência de
literal violação de lei, pois o afastamento da preliminar lançada na apelação
não tem como consequência a devolução do processo ao Tribunal de origem,
pleito que não foi deduzido nas contrarrazões ao REsp 907.622/PR. Adiciona
que o Julgador não vislumbrou a necessidade de perícia, o que não precisa ser
justificado. Argui a inexistência de ofensa a dispositivos da Constituição Federal
e de julgamento ultra petita por suposto deferimento de pedido não formulado
por José von Stein e Cia. Ltda. Também não identifica a ocorrência de erros de

284
Jurisprudência da SEGUNDA SEÇÃO

fato, pois a sentença nessas circunstâncias é meramente homologatória. Por fim,


acerca dos encargos privativos de instituição financeira, argumenta que o feito
não se presta para o reexame de matéria fática.
Adstrita a controvérsia a matéria de índole processual, constando a
integralidade do processo de prestação de contas nos autos, não foi facultada a
produção de provas.
Em razões finais, o banco autor reitera a fundamentação da inicial (fls.
849/865), da mesma forma procedendo a empresa ré (fls. 868/885).
Com vista dos autos, o Ministério Público Federal opina pela
improcedência da ação rescisória (fls. 888/893 e 895).
Manifestação superveniente das partes, por autor e ré, respectivamente, às
fls. 897/904 e 913/931.
É o relatório.

VOTO

A Sra. Ministra Maria Isabel Gallotti (Relatora):

A. A Segunda Seção, acolhendo Questão de Ordem nos autos da AR


5.931/SP, decidiu que as hipóteses de cabimento da ação rescisória são reguladas
pelo Código de Processo Civil em vigor na data do trânsito em julgado do
acórdão rescindendo.
Quanto ao arbitramento de honorários de advogado e ao depósito previsto
no art. 968, II, do CPC/2015 (art. 488, II, do CPC/1973), a Segunda Seção,
no julgamento das AR 4.522/RS e 5.655/PA, adotou a orientação de que são
disciplinados pelo novo Código de Processo Civil.
B. No presente caso, a decisão rescindenda transitou em julgado na
vigência do CPC 1973, sendo essa codificação, portanto, a lei processual regente
das hipóteses de cabimento desta ação rescisória.

II

Como visto do relatório, o Banco Banestado S.A. pretende a rescisão do


decisório proferido pelo Ministro Sidnei Beneti no REsp 907.622/PR, que

RSTJ, a. 34, (265): 279-338, Janeiro/Março 2022 285


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

deu provimento ao apelo de José von Stein e Companhia Ltda. para afastar a
nulidade da intimação, que fora acolhida pelo TJPR, momento em que o relator
ainda determinou o restabelecimento da sentença que julgara boas as contas por
ela apresentadas em segunda fase de ação de prestação de contas de contrato
de abertura de crédito em conta corrente, decisão que transitou livremente em
julgado na data de 28.6.2010 (fl. 584).
Como consequência, a autuação da presente rescisória em 18.11.2010
atende ao requisito da tempestividade.
As preliminares levantadas pela ré se confundem com o mérito, o qual
passo a apreciar.
O principal argumento deduzido pelo autor, Banco Banestado, é o de que o
afastamento da preliminar de nulidade da intimação impunha o conhecimento
dos demais temas que integraram a apelação, sendo indevida a restauração da
sentença, sem o retorno dos autos ao tribunal de origem para a complementação
do julgamento do recurso.
Tem razão o autor.
Com efeito, transcrevo da decisão rescindenda (fls. 577/582):

1.- José Von Stein e Companhia Ltda. ajuizou ação de prestação de contas contra
Banco do Estado do Paraná S/A. sob o argumento de que o réu havia lançado
débitos injustificados e juros capitalizados em sua conta corrente.
2.- A sentença, mantida pelo Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, julgou
procedente o pedido, condenando o réu a prestar contas no prazo de 48 horas,
sob pena de não lhe ser lícito impugnar as contas que o autor apresentar.
3.- Em razão da não prestação de contas pelo Banco, o Juiz julgou boas as
contas prestadas pela autora, constituindo-a em título para execução forçada em
favor da autora. O réu apelou e o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (Rel.
Des. Duarte Medeiros) deu provimento ao recurso, em Acórdão ementado nos
seguintes termos (fl. 405):

Ação de prestação de contas. Segunda fase. Procedimento


desencadeado, por iniciativa da autora, contra entidade financeira que
não figura no pólo passivo da demanda, sob o argumento de que seria
sucessora do réu, situação que, no entanto, na hipótese destes autos, não
se mostra caracterizada. Nulidade processual claramente configurada.
Provimento da apelação, para o fim de decretar a nulidade parcial do
processo.

4.- Os Embargos de Declaração interpostos pela autora foram parcialmente


acolhidos, porém sem efeito modificativo.

286
Jurisprudência da SEGUNDA SEÇÃO

5.- Irresignada, a autora interpôs Recurso Especial, com fundamento nas alíneas
a e c do artigo 105, III, da Constituição Federal. Sustenta, além de divergência
jurisprudencial, violação dos arts. 154, 214, § 1º, 244 e 249, § 1º, do Código de
Processo Civil, ao argumento de que o comparecimento espontâneo do Banco,
que em petição pede prazo para a prestação de contas, supre a falta de intimação
pessoal para a segunda fase da ação de prestação de contas.
6.- Contra-arrazoado o recurso, foi-lhe dado seguimento, vindo os autos a esta
Corte.
É o relatório.
7.- O tema já foi tratado por esta Corte, de modo que o recurso deve ser julgado
monocraticamente pelo Relator, segundo orientação firmada, com fundamento
no art. 557 do CPC, desnecessário, portanto, o envio às sobrecarregadas pautas de
julgamento deste Tribunal.
8.- Conforme se verifica nos autos, julgada procedente a primeira fase da ação
de prestação de contas movida pela empresa José Von Stein e Companhia Ltda.
contra o Banco do Estado do Paraná S/A., foi feita a intimação, para que fossem
prestadas as contas nos termos pedidos, do Banco Itaú S/A. (fls. 278/279), a pedido
da empresa autora, por ser ele sucessor do Banco do Estado do Paraná S/A. (fls.
270/271).
Transcorrido o prazo sem que fossem prestadas as contas requeridas, o Juízo
julgou boas as apresentadas pela ora recorrida, tendo o Banco interposto o
competente recurso de apelação, julgado procedente pelo Tribunal de origem,
que anulou parcialmente o processo, uma vez que intimado o Banco Itaú, que não
é parte no processo, e não o Banco réu.
A ora recorrente alega que o comparecimento espontâneo do réu aos autos
supre qualquer deficiência ou nulidade da intimação, sendo esta, portanto a
questão a ser apreciada no Recurso Especial.
9.- É incontroverso nos autos que a intimação fora dirigida ao Banco Itaú S/A.,
e não ao Banco do Estado do Paraná. Há, portanto, que ser analisada referida
irregularidade na intimação da parte e o seu alcance.
Com efeito, a intimação é um ato processual solene, cominando a legislação
processual a nulidade do ato quando não observadas as prescrições legais, nos
termos do art. 247 do CPC. Contudo, o comparecimento espontâneo da parte
supre a falta de citação (CPC – art. 214), podendo, por extensão concluir o mesmo
para eventual irregularidade na intimação da parte.
Em data posterior à da intimação (11.12.2002) – fl. 279 – do Banco Itaú S/A, e
antes da decisão que julgou boas as contas da autora (28.06.2004) – fl. 344 –, o
ora recorrido, Banco do Estado do Paraná S/A. compareceu aos autos, em petição
assinada por sua advogada (17.02.2003) – fl. 339 –, e requereu prazo para a
prestação das contas, nos seguintes termos (fl. 339):

RSTJ, a. 34, (265): 279-338, Janeiro/Março 2022 287


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

[...] requerer a concessão do prazo de 30 dias para apresentar a sua


prestação de contas, eis que, com a privatização do Banco do Estado do
Paraná S/A, todos os documentos foram levados à Matriz, em Curitiba, e há
necessidade de ter em mãos todos os documentos para a elaboração da
Prestação de Contas de forma mercantil.

Conforme se observa, na petição transcrita acima, o Banco recorrido não


alegou qualquer nulidade da intimação e se mostra ciente do ato que deve
praticar, ou seja, na primeira oportunidade que teve de se manifestar nos autos,
o Banco não alegou nulidade da intimação e, analisando o teor da referida
petição, há que se concluir que tinha ciência do ato processual e da obrigação
que lhe competia. E se tinha informação de que os documentos necessários para
a prestação das contas tinham sido remetidos à Matriz, em Curitiba, é porque a
própria parte – Banco do Estado do Paraná S/A, a tinha informado.
Ressalte-se, por oportuno, que para a apresentação da petição acima,
a advogada do Banco fez carga dos autos em 27 de janeiro de 2003 (fl. 337-
v), momento em que já constavam dos autos a intimação do Banco Itaú (fls.
278/279), a planilha apresentada pela autora (fls. 287/335), onde se diz credora da
importância de R$ 872.722,25 (oitocentos e setenta e dois mil, setecentos e vinte
e dois reais e vinte e cinco centavos), bem como o auto de penhora e depósito, e
respectivo depósito judicial feito pelo Banco Itaú (fl. 337), no verso desta foi-lhe
dado carga nos autos.
Observa-se que a advogada que subscreveu a petição acima é a mesma que
subscreveu o recurso de apelação e, embora ciente da quantia a que haviam
chegado as contas apresentadas pela autora, da penhora feita em nome do Itaú,
não alegou na petição qualquer vício, vindo fazer apenas na apelação. E mesmo
transcorrido mais de um ano após o pedido de concessão de prazo, as contas não
foram prestadas pelo Banco
Há que se concluir, portanto, que se houve irregularidade na intimação da
parte, uma vez que intimada pessoa estranha à lide, mesmo com a penhora
feita em patrimônio do Banco Itaú, este não veio aos autos alegar qualquer
irregularidade. Conclui-se, ainda, que o recorrido tinha ciência do ato processual,
e compareceu ao processo para pedir prazo para a prestação de contas, ato que
nunca praticou. Sendo assim, há que se concluir, por fim, que se vício houve,
encontra-se o mesmo sanado pelos motivos acima expostos.
10.- Quanto ao fundamento do Tribunal para anular o ato, de que necessária
a intimação pessoal do réu na segunda fase do processo de prestação de contas,
esta Corte, no julgamento do REsp 658.960/SP, Rel. Ministro Cesar Asfor Rocha,
a Quarta Turma concluiu ser desnecessária a intimação pessoal, em Acórdão
ementado nos seguintes termos:

Ação de prestação de contas. Art. 915, § 2º, do CPC. Segunda fase. Prazo
para a apresentação das contas pelo réu. Intimação pessoal. Retirada dos
autos pelo patrono da ré. Suprimento.

288
Jurisprudência da SEGUNDA SEÇÃO

Diante das peculiaridades da espécie, em que o patrono da ré retirou os


autos e permaneceu inerte por vários meses quanto a eventual nulidade da
intimação (prevista no art. 915, § 2º, do CPC), é inoportuna a invocação da
questão quando já em fase executiva a ação. Recurso especial conhecido e
provido.
(REsp 658.960/SP, Rel. Ministro Cesar Asfor Rocha, Quarta Turma, julgado
em 17/10/2006, DJ 11/12/2006 p. 363)

Convém ser transcrito trecho do voto-vista proferido pelo Min. Aldir Passarinho,
no referido processo, por elucidar com propriedade a questão:

A controvérsia derivada do acórdão, portanto, é esta: se suficiente, para


fins da intimação para apresentação das contas (início da 2a. fase), de que
trata o art. 915, parágrafo 2º, do CPC, aquela feita ao advogado da parte, ou
se necessária a intimação pessoal da própria parte.
Rogando vênia à divergência, inobstante a judiciosa argumentação e o
respaldo jurisprudencial de vários julgados de Tribunais estaduais, estou
em acompanhar o eminente relator.
De efeito, não se cuida de citação (art. 213 do CPC), mas de mera
intimação de ato do processo – a sentença condenatória à prestação de
contas, primeira fase (arts. 915, parágrafo 2º c/c art. 234).
Apesar de constituir-se o processo de prestação de contas em duas
fases, ele é um só. Destarte, a parte ré já se acha integrada na relação
processual desde a citação inicial, não havendo porque se exigir, penso eu,
uma intimação pessoal para a apresentação das contas a que foi condenada
na etapa primeva.
O art. 915, parágrafo 2º, do Código de Ritos não dispõe, textualmente,
sobre a intimação pessoal, de modo que não me parece possível acrescentar
exigência não constante da lei. Note-se, a propósito, que quando a
intimação deve ser feita pessoalmente, preocupou-se o legislador em assim
determinar objetivamente, caso, por exemplo, daquela feita ao Ministério
Público (art. 236, parágrafo 2º), ou para extinção do processo por abandono
da causa (art. 267, parágrafo 1º). Destarte, bastante que sejam atendidos os
pressupostos do art. 236, parágrafo 1º, se a ciência é ao advogado da parte,
devidamente identificado, não à própria.
É certo, como dito antes, que há orientação jurisprudencial discordante
de Cortes de 2ª instância, e também parte da doutrina (João Roberto
Parizatto, “Ação de Prestação de Contas”, Ed. Parizatto, 2ª ed, pags. 24/25;
Busa Mackenzie Michellazzo, “Da Ação de Prestação de Contas”, Lexbook,
1998, pag. 16; Assan Helber de Oliveira e Marcelo Dias G. Vilela, “Processo
Civil 4”, ed. Saraiva, 2005, pag. 34). Mas prefiro, pedindo novas vênias, ficar
com a lição de Humberto Theodoro Júnior “Curso de Direito Processual
Civil”, Ed. Forense, 1999, pag. 113), verbis:

RSTJ, a. 34, (265): 279-338, Janeiro/Março 2022 289


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Quanto ao prazo de 48 horas, que se abre ao réu para cumprir a


condenação da primeira fase do procedimento, sua contagem é de ser
feita a partir do trânsito em julgado da sentença, independentemente
de citação ou intimação especial. A própria sentença, ao ser intimada
à parte, através de seu advogado, já produz a eficácia de dar início à
fluência do prazo de execução do seu comando.

11.- Pelo exposto, julga-se procedente o Recurso Especial, para


restaurar a decisão monocrática. (negrito acrescentado)

Diversamente do que alega a parte ré nas razões finais, uma simples leitura
da apelação revela que a questão da nulidade da intimação, única enfrentada
pelo acórdão estadual, e por conseguinte pela decisão rescindenda, é apenas
a primeira das duas preliminares, seguida que foi pela “nulidade da sentença
- ausência de requisitos essenciais”, e quanto ao mérito, pela “necessidade de
realização de perícia contábil - aplicação do art. 915, § 3º, última parte, do CPC,
ante os evidentes equívocos dos cálculos apresentados”, “quanto à metodologia
de cálculo das taxas de encargos praticadas na conta corrente”, “quanto aos
encargos calculados e demonstrados pelos juntados pela apelada” e “quanto aos
questionamentos de capitalização de juros na conta corrente da apelada”.
Provida a apelação para anular a sentença pela primeira preliminar, a
nulidade da intimação, evidentemente que esse foi o único tema a que José
von Stein e Companhia Ltda. dedicou o recurso especial, inconformismo que
foi provido pela decisão rescindenda, tendo constado do fecho da decisão a
restauração da sentença.
Não pairam dúvidas, todavia, de que o conteúdo da apelação deve ser
apreciado integralmente, e de que o afastamento da primeira preliminar implica
a restituição do processo para que a Corte revisora prossiga na análise dos
demais tópicos por meio dela devolvidos, inclusive no eventual exame do
mérito, caso superada a segunda preliminar, pois ao STJ é vedado ingressar em
temas não tratados no acórdão estadual.
Como exemplo de precedente nesse sentido, destaco:

Processual Civil. Preliminar de ilegitimidade ativa ad causam acolhida pelo


acórdão recorrido e afastada no âmbito do recurso especial. Retorno dos
autos à origem para apreciação do mérito. Conseqüência lógico-processual.
Desnecessidade de pedido da parte para determinar-se a remessa.
1. A questão preliminar processual, quando acolhida na instância a quo e
repelida em sede de recurso especial, não autoriza o STJ a analisar o meritum

290
Jurisprudência da SEGUNDA SEÇÃO

causae, posto não esgotada a instância, quanto à integralidade da lide, nos


termos do permissivo constitucional encartado no artigo 105, da CRFB/88, verbis:
“Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:
(...)
III - julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última
instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do
Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida:
a) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência;
b) julgar válido ato de governo local contestado em face de lei federal;
c) der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro
tribunal.
(...)”
2. Consectariamente, ultrapassada a preliminar de ilegitimidade ativa ad
causam da cooperativa para questionar a legalidade/constitucionalidade da
contribuição para o FUNRURAL, acolhida no acórdão objeto de recurso especial,
mister se faz o retorno dos autos à instância de origem para apreciação das demais
questões ventiladas na apelação, sob pena de o STJ incorrer em supressão de
instância, revelando-se inaplicável, in casu, a teoria da causa madura (artigo 515,
§ 3º, do CPC), máxime em virtude do inarredável requisito do prequestionamento
(Precedente da Primeira Seção sobre idêntica quaestio iuris: EREsp 501.248/RS, Rel.
Ministro Benedito Gonçalves, julgado em 25.11.2009, DJe 30.11.2009).
3. Embargos de divergência providos, determinando-se o retorno dos autos ao
Tribunal de origem para que se pronuncie sobre as demais questões ventiladas
no recurso de apelação.
(Primeira Seção, EREsp 810.168/RS, Rel. Ministro Luiz Fux, unânime, DJe de
3.11.2010)

Desse julgado extraio a seguinte passagem, que tem pertinência com


a hipótese dos autos, ainda que a preliminar examinada tenha sido a de
ilegitimidade ativa ad causam:

Cinge-se a controvérsia à caracterização da determinação de retorno dos


autos à origem como conseqüência lógico-processual da decisão que pugna pela
subsistência da legitimidade ativa da cooperativa para questionar a legalidade/
constitucionalidade da contribuição para o FUNRURAL, independentemente de
pedido expresso do recorrente.
A questão preliminar processual, quando acolhida na instância a quo e repelida
em sede de recurso especial, não autoriza o STJ a analisar o meritum causae, posto
não esgotada a instância, quanto à integralidade da lide, nos termos do permissivo
constitucional encartado no artigo 105, da CRFB/88, verbis:

RSTJ, a. 34, (265): 279-338, Janeiro/Março 2022 291


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

(...)
Consectariamente, a determinação do retorno dos autos à origem para apreciação
do meritum causae configura conseqüência lógico-processual da decisão, proferida
em sede de recurso especial, que afasta a preliminar de ilegitimidade ativa ad causam
da cooperativa (dantes acolhida pelo acórdão regional) para questionar a legalidade/
constitucionalidade da contribuição para o FUNRURAL, independentemente de
pedido expresso da recorrente.
Com efeito, além de se revelar inaplicável a teoria da causa madura (artigo 515,
§ 3º, do CPC) em sede extraordinária, a conclusão do julgamento, no âmbito do STJ,
com o mero afastamento da preliminar de ilegitimidade ad causam, sem a necessária
determinação do retorno dos autos à origem para exame do mérito, encerraria
prestação jurisdicional inócua, divorciada do aludido princípio constitucional.
No mesmo diapasão, confira-se a ementa do recente julgado oriundo da
Primeira Seção que versou sobre idêntica quaestio iuris:

Processual Civil. Embargos de divergência. Ilegitimidade ativa (para


discussão acerca da inexigibilidade da contribuição ao FUNRURAL).
Preliminar afastada no julgamento do recurso especial. Retorno dos autos
à origem para o enfrentamento das demais questões. Consequência do
julgado. Desnecessidade de pedido da parte para determinar-se a remessa.
1. Os presentes Embargos de divergência têm como escopo dirimir a
seguinte questão: se, nos casos em que o recurso especial é provido para
afastar preliminar de ilegitimidade ativa, é necessário, ou não, pedido
expresso da parte para que os autos sejam remetidos ao Tribunal local a fim
de que prossiga o julgamento da apelação.
2. Provocado o Poder Judiciário por meio do exercício do direito de ação,
deve o Estado-Juiz promover os atos processuais necessários à solução
da demanda, que, de acordo com o art. 162, § 1º, do CPC, se dá mediante
prolação de sentença terminativa (art. 267) ou definitiva de mérito (art.
269).
3. Dessa forma, cassada a sentença que extinguira o processo em face
de uma preliminar de mérito, é necessário que se profira novo julgamento
a fim de se responder as demais questões suscitadas pelas partes; caso
contrário, chegar-se-á a uma situação insólita, de se encerrar o feito sem
que haja a prévia prolação de sentença, ou seja, de forma absolutamente
inócua.
4. Tendo em vista que na instância especial não se aplica o art. 515, § 3º,
do CPC (teoria da causa madura), provido o recurso especial para afastar a
preliminar de mérito que fora reconhecida pelo acórdão a quo, devem os
autos retornar à Corte de origem para que aprecie as demais questões a
ela submetidas, sob pena de o julgado, na prática, incidir em negativa de
prestação jurisdicional.

292
Jurisprudência da SEGUNDA SEÇÃO

5. Embargos de divergência providos. (EREsp 501.248/RS, Rel. Ministro


Benedito Gonçalves, julgado em 25.11.2009, DJe 30.11.2009)]

Como verificado na lição acima, o ingresso nas questões relativas à nulidade


da sentença por falta de fundamentação, aos encargos próprios das instituições
financeiras, à necessidade de perícia e ao enriquecimento sem causa, não estão
ao alcance desta Corte, pela inaplicabilidade do princípio da causa madura na
instância especial, além da flagrante ausência de prequestionamento oriunda da
falta de debate no decisório rescindendo e no acórdão de origem.
Em reforço, na decisão concessiva da tutela antecipada, ainda consignei
(fls. 745/746):

No caso presente, observo que, julgada procedente a ação de prestação de


contas, o réu não cumpriu o prazo legal de 48 horas para prestá-las, o que deu
ensejo à apresentação das contas pelo autor. Nesta hipótese, embora o art. 915, §
2º, do CPC, estabeleça não mais ser lícito ao réu impugnar as contas apresentadas
pelo autor, o § 3º do mesmo artigo determina que tal conta deva ser julgada
“segundo o prudente arbítrio do juiz, que poderá determinar, se necessário, a
realização do exame pericial contábil”.
Assim, a falta de apresentação, pelo réu, das contas no prazo de 48 horas não
determina a cega homologação das contas apresentadas pelo autor, mas a sua
apreciação fundamentada pelo juiz.
A sentença restabelecida pela decisão rescindenda, todavia, em face da falta
de apresentação das contas pelo réu, sem exercer juízo algum sobre a conta
do autor, constituiu-a em título executivo. Em sua apelação, o réu, autor da
presente rescisória, alegou nulidade da execução por falta de intimação pessoal
do devedor e, em seguida, questionou os valores pretendidos pelo autor. O
acórdão acolheu a preliminar de nulidade da execução, por falta de intimação
do banco, o que tornou prejudicado o exame das demais matérias suscitadas na
apelação. A decisão rescindenda, proferida no recurso especial, afastou a nulidade
da intimação para a prestação de contas, considerando-a suprida pela vista
dos autos concedida ao Banestado, entendendo, ademais, ser desnecessária a
intimação pessoal para a segunda fase da ação de prestação de contas. Concluiu,
todavia, o acórdão por restaurar a sentença, ao invés de determinar o retorno dos
autos ao Tribunal de origem para julgamento das demais questões suscitadas na
apelação.
Ressalto que a sentença restaurada não emitiu juízo algum sobre a correção
das contas apresentadas pelo autor, considerando que sua transformação em
título executivo seria consequência inerente à circunstância de o réu não havê-las
apresentado no prazo legal. Não é, todavia, esta a regra do art. 915, § 3º, do CPC,
que faz prevê a necessidade de o juiz julgar as contas segundo seu “prudente

RSTJ, a. 34, (265): 279-338, Janeiro/Março 2022 293


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

arbítrio”, valendo-se de perícia contábil, se necessário. Este juízo a respeito do


valor cobrado não existiu em primeiro e nem em segundo grau de jurisdição,
neste último em face do acolhimento de preliminar que prejudicou o julgamento
das demais questões postas pelo apelante.
Parece-me relevante, portanto, a alegação de ofensa ao art. 561 do CPC, uma
vez que superada, pela decisão tomada no recurso especial, a preliminar de
nulidade da intimação do réu, impunha-se o retorno dos autos à origem para
julgamento dos outros pontos impugnados na apelação, os quais ficaram sem
apreciação.

Manifesta, portanto, a literal violação do art. 561 do CPC pretérito,


segundo o qual rejeitada a preliminar, “seguir-se-ão a discussão e o julgamento da
matéria principal, pronunciando-se sobre esta os juízes vencidos na preliminar.”
Caracterizado, igualmente, o erro de fato, a saber, o erro consistente em
não haver verificado, o julgado rescindendo, o fato de que havia outras questões
deduzidas na apelação a serem enfrentadas após o afastamento da preliminar de
nulidade da intimação.
Em face do exposto, julgo procedente a ação rescisória para tornar definitiva
a tutela antecipada e desconstituir em parte a decisão rescindenda, retirando do
dispositivo a frase “para restaurar a decisão monocrática” e, como consequência,
determino a remessa dos autos ao TJPR para prosseguir na análise dos demais
temas contidos na apelação (fls. 402/415), superada a preliminar de nulidade
da intimação, com cuja decisão se conformou o autor, ficando prejudicados os
demais pedidos, bem como o agravo interno de fls. 785/796.
Condeno a ré ao pagamento das despesas processuais e de verba honorária
no valor de R$ 100.000,00 (cem mil reais), fixados por equidade, com base no
art. 85, § 8º do CPC/2015.
É como voto.

VOTO-REVISÃO

O Sr. Ministro Antonio Carlos Ferreira: Trata-se de ação rescisória


proposta por Banco Banestado S.A., com fundamento no art. 485, V (“violar
literal disposição de lei”) e IX (“fundada em erro de fato, resultante de atos ou
de documentos da causa”), do CPC/1973, contra José Von Stein & Cia Ltda.,
buscando rescindir decisão monocrática do em. Ministro Sidnei Beneti, proferida
no REsp n. 907.622/PR, com o seguinte teor:

294
Jurisprudência da SEGUNDA SEÇÃO

1.- José Von Stein e Companhia Ltda. ajuizou ação de prestação de contas contra
Banco do Estado do Paraná S/A. sob o argumento de que o réu havia lançado
débitos injustificados e juros capitalizados em sua conta corrente.
2.- A sentença, mantida pelo Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, julgou
procedente o pedido, condenando o réu a prestar contas no prazo de 48 horas,
sob pena de não lhe ser lícito impugnar as contas que o autor apresentar.
3.- Em razão da não prestação de contas pelo Banco, o Juiz julgou boas as
contas prestadas pela autora, constituindo-a em título para execução forçada em
favor da autora. O réu apelou e o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (Rel.
Des. Duarte Medeiros) deu provimento ao recurso, em Acórdão ementado nos
seguintes termos (fl. 405):

Ação de prestação de contas. Segunda fase. Procedimento


desencadeado, por iniciativa da autora, contra entidade financeira que
não figura no pólo passivo da demanda, sob o argumento de que seria
sucessora do réu, situação que, no entanto, na hipótese destes autos, não
se mostra caracterizada. Nulidade processual claramente configurada.
Provimento da apelação, para o fim de decretar a nulidade parcial do
processo.

4.- Os Embargos de Declaração interpostos pela autora foram parcialmente


acolhidos, porém sem efeito modificativo.
5.- Irresignada, a autora interpôs Recurso Especial, com fundamento nas alíneas
a e c do artigo 105, III, da Constituição Federal. Sustenta, além de divergência
jurisprudencial, violação dos arts. 154, 214, § 1º, 244 e 249, § 1º, do Código de
Processo Civil, ao argumento de que o comparecimento espontâneo do Banco,
que em petição pede prazo para a prestação de contas, supre a falta de intimação
pessoal para a segunda fase da ação de prestação de contas.
6.- Contra-arrazoado o recurso, foi-lhe dado seguimento, vindo os autos a esta
Corte.
É o relatório.
7.- O tema já foi tratado por esta Corte, de modo que o recurso deve ser julgado
monocraticamente pelo Relator, segundo orientação firmada, com fundamento
no art. 557 do CPC, desnecessário, portanto, o envio às sobrecarregadas pautas de
julgamento deste Tribunal.
8.- Conforme se verifica nos autos, julgada procedente a primeira fase da ação
de prestação de contas movida pela empresa José Von Stein e Companhia Ltda.
contra o Banco do Estado do Paraná S/A., foi feita a intimação, para que fossem
prestadas as contas nos termos pedidos, do Banco Itaú S/A. (fls. 278/279), a pedido
da empresa autora, por ser ele sucessor do Banco do Estado do Paraná S/A. (fls.
270/271).

RSTJ, a. 34, (265): 279-338, Janeiro/Março 2022 295


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Transcorrido o prazo sem que fossem prestadas as contas requeridas, o Juízo


julgou boas as apresentadas pela ora recorrida, tendo o Banco interposto o
competente recurso de apelação, julgado procedente pelo Tribunal de origem,
que anulou parcialmente o processo, uma vez que intimado o Banco Itaú, que não
é parte no processo, e não o Banco réu.
A ora recorrente alega que o comparecimento espontâneo do réu aos autos
supre qualquer deficiência ou nulidade da intimação, sendo esta, portanto a
questão a ser apreciada no Recurso Especial.
9.- É incontroverso nos autos que a intimação fora dirigida ao Banco Itaú S/A.,
e não ao Banco do Estado do Paraná. Há, portanto, que ser analisada referida
irregularidade na intimação da parte e o seu alcance.
Com efeito, a intimação é um ato processual solene, cominando a legislação
processual a nulidade do ato quando não observadas as prescrições legais, nos
termos do art. 247 do CPC. Contudo, o comparecimento espontâneo da parte
supre a falta de citação (CPC – art. 214), podendo, por extensão concluir o mesmo
para eventual irregularidade na intimação da parte.
Em data posterior à da intimação (11.12.2002) – fl. 279 – do Banco Itaú S/A, e
antes da decisão que julgou boas as contas da autora (28.06.2004) – fl. 344 –, o
ora recorrido, Banco do Estado do Paraná S/A. compareceu aos autos, em petição
assinada por sua advogada (17.02.2003) – fl. 339 –, e requereu prazo para a
prestação das contas, nos seguintes termos (fl. 339):

[...] requerer a concessão do prazo de 30 dias para apresentar a sua


prestação de contas, eis que, com a privatização do Banco do Estado do
Paraná S/A, todos os documentos foram levados à Matriz, em Curitiba, e há
necessidade de ter em mãos todos os documentos para a elaboração da
Prestação de Contas de forma mercantil.

Conforme se observa, na petição transcrita acima, o Banco recorrido não


alegou qualquer nulidade da intimação e se mostra ciente do ato que deve
praticar, ou seja, na primeira oportunidade que teve de se manifestar nos autos,
o Banco não alegou nulidade da intimação e, analisando o teor da referida
petição, há que se concluir que tinha ciência do ato processual e da obrigação
que lhe competia. E se tinha informação de que os documentos necessários para
a prestação das contas tinham sido remetidos à Matriz, em Curitiba, é porque a
própria parte – Banco do Estado do Paraná S/A, a tinha informado.
Ressalte-se, por oportuno, que para a apresentação da petição acima,
a advogada do Banco fez carga dos autos em 27 de janeiro de 2003 (fl. 337-
v), momento em que já constavam dos autos a intimação do Banco Itaú (fls.
278/279), a planilha apresentada pela autora (fls. 287/335), onde se diz credora da
importância de R$ 872.722,25 (oitocentos e setenta e dois mil, setecentos e vinte
e dois reais e vinte e cinco centavos), bem como o auto de penhora e depósito, e

296
Jurisprudência da SEGUNDA SEÇÃO

respectivo depósito judicial feito pelo Banco Itaú (fl. 337), no verso desta foi-lhe
dado carga nos autos.
Observa-se que a advogada que subscreveu a petição acima é a mesma que
subscreveu o recurso de apelação e, embora ciente da quantia a que haviam
chegado as contas apresentadas pela autora, da penhora feita em nome do Itaú,
não alegou na petição qualquer vício, vindo fazer apenas na apelação. E mesmo
transcorrido mais de um ano após o pedido de concessão de prazo, as contas não
foram prestadas pelo Banco
Há que se concluir, portanto, que se houve irregularidade na intimação da
parte, uma vez que intimada pessoa estranha à lide, mesmo com a penhora
feita em patrimônio do Banco Itaú, este não veio aos autos alegar qualquer
irregularidade. Conclui-se, ainda, que o recorrido tinha ciência do ato processual,
e compareceu ao processo para pedir prazo para a prestação de contas, ato que
nunca praticou. Sendo assim, há que se concluir, por fim, que se vício houve,
encontra-se o mesmo sanado pelos motivos acima expostos.
10.- Quanto ao fundamento do Tribunal para anular o ato, de que necessária
a intimação pessoal do réu na segunda fase do processo de prestação de contas,
esta Corte, no julgamento do REsp 658.960/SP, Rel. Ministro Cesar Asfor Rocha,
a Quarta Turma concluiu ser desnecessária a intimação pessoal, em Acórdão
ementado nos seguintes termos:

Ação de prestação de contas. Art. 915, § 2º, do CPC. Segunda fase. Prazo
para a apresentação das contas pelo réu. Intimação pessoal. Retirada dos
autos pelo patrono da ré. Suprimento.
Diante das peculiaridades da espécie, em que o patrono da ré retirou os
autos e permaneceu inerte por vários meses quanto a eventual nulidade da
intimação (prevista no art. 915, § 2º, do CPC), é inoportuna a invocação da
questão quando já em fase executiva a ação. Recurso especial conhecido e
provido.
(REsp 658.960/SP, Rel. Ministro Cesar Asfor Rocha, Quarta Turma, julgado
em 17/10/2006, DJ 11/12/2006 p. 363)

Convém ser transcrito trecho do voto-vista proferido pelo Min. Aldir Passarinho,
no referido processo, por elucidar com propriedade a questão:

A controvérsia derivada do acórdão, portanto, é esta: se suficiente, para


fins da intimação para apresentação das contas (início da 2ª fase), de que
trata o art. 915, parágrafo 2º, do CPC, aquela feita ao advogado da parte, ou
se necessária a intimação pessoal da própria parte.
Rogando vênia à divergência, inobstante a judiciosa argumentação e o
respaldo jurisprudencial de vários julgados de Tribunais estaduais, estou
em acompanhar o eminente relator.

RSTJ, a. 34, (265): 279-338, Janeiro/Março 2022 297


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

De efeito, não se cuida de citação (art. 213 do CPC), mas de mera


intimação de ato do processo – a sentença condenatória à prestação de
contas, primeira fase (arts. 915, parágrafo 2º c/c art. 234).
Apesar de constituir-se o processo de prestação de contas em duas
fases, ele é um só. Destarte, a parte ré já se acha integrada na relação
processual desde a citação inicial, não havendo porque se exigir, penso eu,
uma intimação pessoal para a apresentação das contas a que foi condenada
na etapa primeva.
O art. 915, parágrafo 2º, do Código de Ritos não dispõe, textualmente,
sobre a intimação pessoal, de modo que não me parece possível acrescentar
exigência não constante da lei. Note-se, a propósito, que quando a
intimação deve ser feita pessoalmente, preocupou-se o legislador em assim
determinar objetivamente, caso, por exemplo, daquela feita ao Ministério
Público (art. 236, parágrafo 2º), ou para extinção do processo por abandono
da causa (art. 267, parágrafo 1º). Destarte, bastante que sejam atendidos os
pressupostos do art. 236, parágrafo 1º, se a ciência é ao advogado da parte,
devidamente identificado, não à própria.
É certo, como dito antes, que há orientação jurisprudencial discordante
de Cortes de 2ª instância, e também parte da doutrina (João Roberto
Parizatto, “Ação de Prestação de Contas”, Ed. Parizatto, 2ª ed, pags. 24/25;
Busa Mackenzie Michellazzo, “Da Ação de Prestação de Contas”, Lexbook,
1998, pag. 16; Assan Helber de Oliveira e Marcelo Dias G. Vilela, “Processo
Civil 4”, ed. Saraiva, 2005, pag. 34). Mas prefiro, pedindo novas vênias, ficar
com a lição de Humberto Theodoro Júnior “Curso de Direito Processual
Civil”, Ed. Forense, 1999, pag. 113), verbis:

Quanto ao prazo de 48 horas, que se abre ao réu para cumprir a


condenação da primeira fase do procedimento, sua contagem é de ser
feita a partir do trânsito em julgado da sentença, independentemente
de citação ou intimação especial. A própria sentença, ao ser intimada
à parte, através de seu advogado, já produz a eficácia de dar início à
fluência do prazo de execução do seu comando.

11.- Pelo exposto, julga-se procedente o Recurso Especial, para restaurar a


decisão monocrática.
Intimem-se. (e-STJ fls. 577/582.)

O autor alega que “o mais notório vício que macula a r. Decisão rescindenda
consiste na violação literal dos arts. 560 e 561 do CPC, 5º, XXXV, 93, IX da CF,
na medida em que o mérito da Apelação manejada pelo Banco deixou de ser
apreciado, bem como os artigos 512, 128 e 460 do CPC, vez que, ao restaurar a
sentença de primeiro grau, quando deveria ter determinado a remessa dos autos

298
Jurisprudência da SEGUNDA SEÇÃO

ao Tribunal a quo para julgamento das demais questões suscitadas na Apelação,


concedeu-se ao Réu mais do que ele teria direito, com o provimento do Recurso
Especial” (e-STJ fl. 2).
Explica, quanto ao primeiro ponto, “que a Apelação interposta pelo
Banestado não se fundamentou apenas na alegação de nulidade da citação/intimação
realizada. Na verdade, a preliminar de nulidade de citação/intimação foi apenas
um dos fundamentos do apelo. Além dela, outra preliminar foi apontada –
atinente ao vício de fundamentação – bem como foi impugnado o mérito da r.
Sentença” (e-STJ fl. 3). Acrescenta que:

O Tribunal de Justiça do Paraná, ao acolher a preliminar de nulidade de citação/


intimação no julgamento da Apelação, não prosseguiu – porque isso seria
desnecessário, a teor do art. 560 do CPC – na atividade cognitiva atinente aos
demais fundamentos do apelo.
Contudo, ao prover o Recurso Especial manejado pela parte contrária, afastado
a preliminar de nulidade de citação/intimação reconhecida pelo v. Acórdão
recorrido, cumpria ao Exmo. Relator agir de acordo com o disposto no art. 561
do CPC, determinando o retorno dos autos o Tribunal local para continuação do
julgamento do apelo, com a apreciação das teses recursais não decididas naquela
instância.
Na verdade, o equívoco cometido pelo Exmo. Ministro Relator é tão evidente
que pode, até mesmo, ser qualificado como erro de fato. Tivesse notado que
a Apelação do Banco tinha vários capítulos, e que o Tribunal local encerrou o
julgamento pelo acolhimento da primeira preliminar apontada, certamente,
teria determinado a baixa dos autos para análise das demais questões, e não
restaurado a r. Sentença.
Na prática, esse error in procedendo da r. Decisão impugnada permitiu que,
logo após sua prolação, os autos baixassem ao Juízo a quo, e o ora Réu passasse
a executar a r. Sentença “restaurada”, sem que o mérito da apelação manejada pelo
banco tivesse sido julgado!
No bojo dessa execução, evidentemente equivocada, o Banco Banestado
sofreu, no último dia 29 de setembro, penhora online no valor de R$ 3.311.331,88
(três milhões, trezentos onze mil, trezentos e trinta e um reais e oitenta e oito
centavos).
Como, recentemente, a impugnação apresentada pelo Banco foi julgada
improcedente, o ora Réu está na iminência de obter autorização para
levantamento dessa quantia. (e-STJ fls. 3/4.)

Afirma que as partes são legítimas, que foi respeitado o prazo decadencial,
que consta dos autos a guia de pagamento do depósito de 5% sobre o valor

RSTJ, a. 34, (265): 279-338, Janeiro/Março 2022 299


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

atualizado da causa, e que “a r. Decisão rescindenda é de mérito, pois conheceu


e proveu o Recurso Especial n. 907.622, reformando o v. Acórdão que julgou
a Apelação do Banco e restaurando, expressamente (ainda que de forma
equivocada), a r. Sentença” (e-STJ fl. 8).
Especificamente acerca da ofensa aos arts. 5º, XXXV, e 93, IX, da CF,
assevera que a decisão rescindenda implicou negativa de prestação jurisdicional,
“caracterizada na medida em que o apelo do Banco não foi julgado integralmente”
(e-STJ fl. 18).
Sustenta que também se pode “afirmar que o pronunciamento rescindendo
violou o artigo 512 do CPC, pois a impugnação deduzida no Recurso Especial
do Réu limitou-se à questão da nulidade da citação/intimação do Banco.
Assim, seu julgamento, por essa Corte, somente poderia substituir o v. Acórdão
recorrido, no que tange a essa preliminar. Quanto ao restante, não houve decisão!”
(e-STJ fl. 18)
Quanto à suposta contrariedade aos arts. 128 e 460 do CPC/1973,
argumenta que a decisão rescindenda “acabou concedendo ao Recorrente, ora
Réu, mais do que teria direito, com o provimento de seu Recurso Especial.
Como já frisado, rigorosamente, o reconhecimento das ilegalidades apontadas
no Recurso Especial jamais poderiam ter levado ao restabelecimento da r.
Sentença. No máximo, levariam ao afastamento da preliminar de nulidade e o
retorno dos autos ao Tribunal local, para continuação do julgamento do apelo”
(e-STJ fl. 19).
Para demonstrar a existência de erro de fato, alega que, caso “tivesse o
Relator do Recurso Especial n. 907.622/PR notado que a Apelação manejada
pelo Banco Itaú também impugnava o mérito da r. Sentença, e que esse mérito
não chegou a ser analisado pelo E. Tribunal local, em função do acolhimento da
preliminar de nulidade de citação/intimação, seguramente, teria determinado
o retorno dos autos ao Tribunal local, para continuação do julgamento, após o
afastamento da preliminar inicialmente reconhecida” (e-STJ 20).
Assevera que, “em atenção ao princípio da eventualidade: se não se entender
que a ordem de restauração da r. sentença apelada merece ser eliminada do
decisum, [...] então a r. decisão merece ser rescindida em função dos vícios que
maculam a r. sentença” (e-STJ fl. 22). Isso porque o julgado rescindendo “teria
endossado/encampado a r. sentença. Por essa lógica, passar-se-á a entender
que a r. decisão rescindenda incidiu nos mesmos equívocos cometidos pelo Juiz de
Primeiro Grau” (e-STJ fl. 23).

300
Jurisprudência da SEGUNDA SEÇÃO

No que se refere aos supostos vícios na sentença, aponta “violação aos arts.
458 do CPC e art. 93, IX, da CF (vício de fundamentação), bem como aos arts.
130, 330, 332 e 915, § 2º do CPC” (e-STJ fl. 24). Argumenta que:

No presente caso, o vício de fundamentação da r. Sentença é patente, vez que


o pronunciamento não atende, minimamente, os requisitos exigidos pelo art. 458
do CPC.
[...]
Como se pode perceber, o MM. Juiz a quo, embora tenha afirmado que o Réu
não prestou, tempestivamente, as contas solicitadas, não explicitou as razões pelas
quais concluiu que as contas apresentadas pela autora seriam boas.
[...]
Com efeito, nos dias de hoje é intolerável condenação judicial firmada em
elementos inconsistentes, em especial quando envolve cifras significativas
(capazes de gerar enriquecimento/empobrecimento indevidos) – a exemplo da
que se vê no caso presente.
Nos autos em exame, a r. Sentença acabou por confirmar a homologação dos
cálculos irreais apresentados pelo ora Réu, em integral afronta ao disposto nos
arts. 130 e 332 do CPC – que estabelecem o dever do Juiz de determinar, inclusive
ex officio, a produção da prova (mesmo a pericial) que se mostrar necessária para
esclarecer a controvérsia.
A solução adotada equivale à interpretação ilegal da regra do § 2º do art.
915 do CPC, por meio da qual privilegia-se a punição da inércia do Réu, em
detrimento da busca por uma condenação coerente e justa. Sobre o tema,
Alexandre de Paula observa que: “É simplesmente odiosa a solução oferecida pela
parte final do § 2º. Admitir que o autor – só porque o réu não prestou as contas no
prazo que a sentença lhe assinou – possa apresentá-las, livres do exame, da crítica,
da impugnação do ex adverso, sujeitando-se o Juiz a aceitá-las, eis que não pode
assumir a posição de defensor do réu, afigura-se-nos solução medieval, à qual,
certamente, a jurisprudência dará os temperamentos que se impóem, se, antes, não
acudir o legislador, com o remédio da reforma da regra.”
[...]
É claro, portanto, que a r. Sentença violou as regras dos arts. 130, 330, 332 e
915, § 2º do CPC, quando deixou de reconhecer o dever de o Julgador determinar,
ex officio, a produção da prova para verificação da exatidão dos cálculos prestados
pelo Autor. Só assim haveria a mínima segurança sobre o direito do Autor às
altíssimas cifras que sendo executadas na Ação de Prestação de Contas.
Violou, também, o disposto nos já citados art. 458 do CPC e 93, IX da CF, ao
concluir que as contas apresentadas pelo Autor seriam boas, sem fundamentação
hábil. Simplesmente, nenhuma ponderação acerca dos cálculos apresentados

RSTJ, a. 34, (265): 279-338, Janeiro/Março 2022 301


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

pelo Autor foi realizada, indicando que, possivelmente, sequer foram analisadas
pelo MM. Juiz a quo! (e-STJ fls. 25/28.)

Entende que a sentença incidiu em erro de fato (art. 485, IX, do


CPC/1973), tendo em vista que “deixou de notar que os cálculos apresentados
pelo ora Réu adotaram as mesmas taxas de juros cobradas pelas instituições
financeiras, e ainda de forma capitalizada” (e-STJ fl. 29). Aduz que “tal fato
(análise de elementos básicos dos cálculos) deveria ter sido considerado com
como elemento relevante pela r. Sentença, e implicar o reconhecimento do
erro dos cálculos apresentados pelo ora Réu, já que os manipulou, em seu favor,
exatamente na contramão da própria pretensão inicial, cuja ação de prestação
combatia o fato de o Banco ter cobrado juros supostamente abusivos de forma
capitalizada” (e-STJ fl. 29). E conclui que:

Tivesse o MM. Juiz a quo sentenciante analisado os cálculos e os critérios


empregados nas contas apresentadas, de modo algum teria reputado boas as
contas. Havendo mínima dúvida, seria o caso de apuração por simples liquidação,
ainda que pelo contador, já que a requerida apontou os valores iniciais que
seriam, segundo ela, frutos de capitalização de juros e débitos indevidos. Jamais,
porém, poderiam ser presumidas boas contas que, no mínimo, apresentavam
notórias evidências de serem equivocadas.
Assim, o equívoco cometido pelo órgão judicial na apuração desse fado, salta
aos olhos a partir da simples análise dos documentos constantes dos autos (fls.
284/335).
Apenas a título exemplificativo, a simples análise de cada um dos lançamentos
listados nas contas apresentadas, sejam eles os juros capitalizados (fls. 292/301)
ou os débitos tidos por indevidos (fls. 302/335), revela-se a ocorrência de erro
evidente na confecção do cálculo. (e-STJ fls. 29/30.)

Na sequência, passou a examinar detidamente os cálculos apresentados,


apontando equívocos em sua confecção (cf. e-STJ fls. 30/35).
Por último, igualmente sob o enfoque de vícios específicos na sentença,
alega “violação aos arts. 1.062 do Código Civil 1916, 406 do Código Civil de
2002 e 4º do Decreto-Lei 22.626/33, bem como ao art. 884 do Código Civil
(que veda o enriquecimento sem causa)” (e-STJ fl. 35). Anota que, “em última
análise, resta claro também que, ao julgar boas as contas apresentadas pelo
ora Réu, a r. Sentença (restaurada pela r. Decisão do Min. Beneti) violou os
dispositivos legais que impedem a aplicação de juros em taxas superiores a 6 ou
12% ao ano, a capitalização e o enriquecimento sem causa” (e-STJ fl. 35). De
fato, continua o autor, “em casos como o ora em análise (cálculo da restituição

302
Jurisprudência da SEGUNDA SEÇÃO

devida ao cliente pela cobrança indevida), somente poderão incidir os juros que
decorrem expressamente da Lei, ou seja, aqueles estabelecidos nos arts. 1.062 do
Código Civil/1916, atualmente previstos no art. 406 do Código Civil de 2002”
(e-STJ fl. 35). Daí que “se requer a rescisão da parte da r. Decisão proferida pelo
Exmo. Min. Beneti, que restabeleceu a r. Sentença, ante a evidente afronta aos
dispositivos de Lei retro mencionados” (e-STJ fl. 36).
Pediu antecipação de tutela para “suspender o cumprimento da decisão
rescindenda, até o julgamento final da presente Ação Rescisória” (e-STJ fl. 38)
e, quanto ao mérito:

c) no que se refere ao juízo rescindente, pede-se, inicialmente, que seja


rescindida a parte final da r. Decisão proferida no Recurso Especial n. 907.622, que
determinou, como consequência do provimento do recurso, o restabelecimento
da r. Sentença de primeiro grau;
d) em seguida, no que se refere ao juízo rescindendo, requer-se seja proferido
novo julgamento, determinando-se o retorno dos autos ao Tribunal local para
continuação do julgamento do apelo;
e) não sendo esse o entendimento, requer-se, sucessivamente, seja a r. Decisão
rescindida, e em seu lugar seja proferido outra, reconhecendo que a r. Sentença
de 1º grau (i) é nula, por vício de fundamentação; ou (ii) merece ser reformada,
pois as contas prestadas pelo ora Réu não são boas. Ao invés delas, espera-se seja
determinado que, no juízo a quo, sejam refeitas as contas, a partir da aplicação
de juros à taxa de 0,5% ao mês (até a entrada em vigor do Novo Código Civil) e,
após 11/01/2003, fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do
pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional – que, no entendimento
majoritário da jurisprudência, representa a taxa de 1% ao mês, prevista no art.
161, § 1º, do Código Tributário Nacional, sem capitalização” (e-STJ fls. 38/39.)

Conferiu à causa “o valor de R$ 2.077,03 (dois mil, setenta e sete reais


e três centavos), que corresponde ao valor atribuído, pelo aqui Réu, à Ação
de Prestação de Contas n. 902/1999 – qual seja: R$ 1.000,00 –, devidamente
atualizado, mediante aplicação do INPC” (e-STJ fl. 39).
A eminente Ministra Maria Isabel Gallotti, Relatora, deferiu o pedido
de antecipação de tutela (e-STJ fls. 744/746), tendo sido interposto agravo
regimental pelo réu (e-STJ fls. 785/817).
José Von Stein e Companhia Ltda. apresentou contestação postulando
a revogação da tutela antecipada, a extinção do processo sem julgamento
do mérito ou a improcedência do pedido, condenado o autor nos ônus da
sucumbência (e-STJ fls. 820/842).

RSTJ, a. 34, (265): 279-338, Janeiro/Março 2022 303


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Autor e réu protocolizaram alegações finais (e-STJ fls. 849/865 e 868/885).


O Dr. Antonio Carlos Alpino Bigonha, ilustrado Subprocurador-Geral da
República, manifestou-se pela improcedência da ação rescisória (e-STJ fls.
888/893), estando o respectivo parecer assim ementado:

Ação rescisória. Literal violação. Erro de fato. Não configuração.


Diante da inércia da instituição financeira em apresentar as contas a que foi
condenada em ação de prestação de contas, não se verifica qualquer violação de
dispositivo legal pela r. Decisão que entendeu serem desnecessárias a intimação
pessoal do Banco para a segunda fase da prestação de contas e a realização de
perícia para aferir o valor da conta. Aplicação do art. 915, § 3º, do CPC. A ação
rescisória não pode ser utilizada como mero sucedâneo recursal.
Parecer pela improcedência da ação rescisória. (e-STJ fl. 895 – retificada.)

O autor protocolizou petição para impugnar o parecer do Ministério


Público Federal (e-STJ fls. 897/904).
O réu requereu a revogação da medida liminar ou o julgamento do agravo
interno de fls. 798/817 (e-STJ) (e-STJ fls. 913/931).
Relatório apresentado pela eminente Relatoria, juntado às fls. 933/935
(e-STJ).

Desde logo, esclareço que, segundo entendo, a presente ação rescisória


deve ser julgada extinta sem julgamento do mérito, por não estarem presentes os
rígidos e indispensáveis requisitos para o cabimento da demanda.
Inicialmente, a decisão rescindenda, do eminente Ministro Sidnei Beneti,
não enfrentou o mérito da demanda originária nem substituiu a sentença na
forma do art. 512 do CPC/1973, que, diversamente do alegado pelo autor, não
foi violado.
No caso, o TJPR deu provimento à apelação tão somente para anular o
processo por vício de intimação realizada na segunda fase da ação de prestação
de contas, direcionada a terceiro estranho à lide, constando assim do dispositivo
do respectivo acórdão:

Por conseguinte, estando inequivocamente caracterizada a nulidade


processual apontada, pois que a segunda fase da ação, nos moldes do artigo 915,
§§ 2º e 3º, do Código de Processo Civil, foi direcionada contra terceiro que não
ostenta a qualidade de parte no processo, ao invés de se fazê-lo, isto sim, contra
o réu, dá-se acolhida á preliminar por este invocada, no recurso, para o fim de
anular o processo, a partir do despacho de fls. 278, sem prejuízo de que possa a

304
Jurisprudência da SEGUNDA SEÇÃO

execução do julgado ser renovada, com o seu endereçamento contra aquele que
legalmente figura no pólo passivo da relação processual. (e-STJ fl. 460.)

No recurso especial, o ora réu postulou a reforma do acórdão da apelação


para que, afastada a nulidade do processo, fosse mantida, por consequência, a
validade da sentença, “em observância ao princípio da instrumentalidade das
formas”, nos seguintes termos:

Diante do exposto, requer dignem-se V. Exas., em conhecendo o recurso,


dar-lhe provimento, para reformar o acórdão recorrido, para considerar válido
o comparecimento do Recorrido ao processo e reformar o acórdão recorrido,
mantendo a sentença singular, em observância ao princípio da instrumentalidade
das formas e conferindo vigência aos artigos 154, 214, § 1º, 244 e 249, § 1º todos
do Código de Processo Civil, e ainda ao artigo 158 do Código de Processo Civil
fazendo valer a declaração de inequívoca ciência do Recorrido, ou ainda, conhecer
o recurso e dar provimento, de acordo com as reiteradas decisões, confrontadas
em divergência de interpretação de Lei Federal e ao acórdão recorrido, e também
pela jurisprudência pacífica do Superior Tribunal de Justiça, pois assim estarão
dando a melhor interpretação a norma jurídica e fazendo a mais perfeita e
integral Justiça!!! (e-STJ fl. 524.)

A decisão rescindenda, em tal contexto, ao prover o recurso especial, apenas


afastou a nulidade do processo desde a intimação realizada na segunda fase da
ação de prestação de contas e, como mera consequência processual imediata,
“restaurou” também a sentença, anteriormente anulada pelo TJPR no acórdão
da apelação. Portanto, não enfrentou o mérito nem poderia tê-lo feito por falta
de prequestionamento. A propósito, essa circunstância é tão evidente que o
próprio autor desta rescisória a reconhece assim:

[...] a impugnação deduzida no Recurso Especial do Réu limitou-se à questão da


nulidade da citação/intimação do Banco. Assim, seu julgamento, por essa Corte,
somente poderia substituir o v. Acórdão recorrido, no que tange a essa preliminar.
Quanto ao restante, não houve decisão! (e-STJ fl. 18 – grifei.)

Aspecto jurídico interessante invocado na inicial da rescisória diz respeito


à suposta ofensa ao art. 512 do CPC/1973, com o seguinte teor:

Art. 512. O julgamento proferido pelo tribunal substituirá a sentença ou a


decisão recorrida no que tiver sido objeto de recurso. (Grifei.)

No caso, a decisão rescindenda exclusivamente substituiu o acórdão da


apelação, tendo em vista que, em ambos os julgados – e também na petição de

RSTJ, a. 34, (265): 279-338, Janeiro/Março 2022 305


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

recurso especial –, foi enfrentada a questão da validade/nulidade de intimação


anterior e de todos os atos processuais, inclusive decisórios, praticados a partir
daí. Considerando que não decidiram o mérito da causa originária, a sentença
não foi substituída por nenhum dos dois julgados. Nesse sentido:

Recurso especial. Artigo 512 do CPC. Error in judicando. Pedido de reforma da


decisão. Efeito substitutivo dos recursos. Aplicação. Error in procedendo. Anulação
do julgado. Inaplicabilidade do efeito substitutivo. Necessidade de prolação de
nova decisão.
1. O efeito substitutivo previsto no artigo 512 do CPC implica a prevalência
da decisão proferida pelo órgão superior ao julgar recurso interposto contra
o decisório da instância inferior. Somente um julgamento pode prevalecer no
processo, e, por isso, o proferido pelo órgão ad quem sobrepuja-se, substituindo a
decisão recorrida nos limites da impugnação.
2. Para que haja a substituição, é necessário que o recurso esteja fundado em
error in judicando e tenha sido conhecido e julgado no mérito. Caso a decisão
recorrida tenha apreciado de forma equivocada os fatos ou tenha realizado
interpretação jurídica errada sobre a questão discutida, é necessária a sua reforma,
havendo a substituição do julgado recorrido pela decisão do recurso.
3. Não se aplica o efeito substitutivo quando o recurso funda-se em error in
procedendo, com vício na atividade judicante e desrespeito às regras processuais,
pois, nesse caso, o julgado recorrido é anulado para que outro seja proferido
na instância de origem. Em casos assim, a instância recursal não substitui, mas
desconstitui a decisão acoimada de vício.
4. Recurso especial conhecido em parte e desprovido. (REsp n. 963.220/BA, Rel.
Ministro João Otávio de Noronha, Quarta Turma, DJe 15/4/2011.)

Com isso, a “restauração” da sentença se deu, exclusivamente, sob o enfoque


processual e como simples corolário lógico do reconhecimento da validade do
processo.
Portanto, a decisão rescindenda não enfrentou o mérito da causa, o que, por
si, impede o cabimento da ação rescisória, na linha dos seguintes precedentes do
STJ:

Processual Civil. Ação rescisória. Ausência de indicação precisa dos dispositivos


legais violados pela decisão rescindenda. Erro de fato no julgamento não
individualizado. Inépcia da petição inicial. Decisão rescindenda que indeferiu
liminarmente mandado de segurança por ilegitimidade passiva e por
impossibilidade de instrução. Ausência de exame do mérito da controvérsia.
Inadequação da ação rescisória. Ação rescisória não provida.

306
Jurisprudência da SEGUNDA SEÇÃO

[...]
3. Ademais, a decisão monocrática do Min. Benedito Gonçalves indeferiu
liminarmente a petição de Mandado de Segurança tanto pela impossibilidade
de atividade instrutória quanto pela ilegitimidade da autoridade coatora. Em
outras, palavras, a decisão rescindenda não realizou nenhum exame do mérito
da demanda apresentada no mandado de segurança. Logo, a presente ação
rescisória deve ser considerada inadmissível. Nesse sentido: AgInt na AR 5.774/
PB, Rel. Ministra Regina Helena Costa, Primeira Seção, julgado em 22/03/2017,
DJe 27/03/2017; AgInt na AR 5.613/RJ, Rel. Ministro Raul Araújo, Segunda Seção,
julgado em 23/08/2017, DJe 15/09/2017; AR 4.210/SP, Rel. Ministro Sebastião Reis
Júnior, Terceira Seção, julgado em 10/10/2012, DJe 14/05/2013.
4. Ação rescisória improcedente. (AR n. 6.008/RJ, Rel. Ministro Mauro Campbell
Marques, Primeira Seção, DJe 12/11/2018.)

Agravo interno na ação rescisória. Ausência de exame mérito pelo Superior


Tribunal de Justiça. Incabimento. Precedentes.
1. Na esteira da jurisprudência aplicável ao caso, é incabível ação rescisória
contra julgado que não decide o mérito da ação. Precedentes:
2. Agravo interno desprovido. (AgInt na AR n. 5.934/CE, Rel. Ministro Marco
Buzzi, Segunda Seção, DJe 1º/10/2018.)

Processual Civil. Agravo interno na ação rescisória. Código de Processo Civil de


2015. Aplicabilidade. Art. 485 do Código de Processo Civil de 1973. Necessidade
de enfrentamento do mérito da demanda. Argumentos insuficientes para
desconstituir a decisão atacada.
[...]
II – A teor do disposto no art. 485 do Código de Processo Civil, somente
é passível de ação rescisória o julgado que enfrentou matérias de mérito.
Precedentes da Corte Especial e da Primeira Seção desta Corte.
III – Não cabimento de ação rescisória para desconstituir decisão que negou
seguimento a recurso especial por ausência de preparo.
[...]
V – Agravo Interno improvido. (AgInt na AR n. 5.774/PB, Rel. Ministra Regina
Helena Costa, Primeira Seção, DJe 27/3/2017.)

Processual Civil. Ação rescisória. Violação literal de disposição de lei. Artigo 485,
V, do CPC/1973. Acórdão rescindendo que não examinou o mérito da demanda.
Incompetência do STJ. Precedentes. Processo extinto sem resolução de mérito.
Agravo regimental não provido.
[...]

RSTJ, a. 34, (265): 279-338, Janeiro/Março 2022 307


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

2. Verifica-se que o v. acórdão rescindendo apreciou apenas o cabimento dos


Embargos Infringentes, e não julgou o mérito.
3. Dispõe a ementa do decisum rescindendo: o “artigo 530 do Código de Processo
Civil, com a redação dada pela Lei n. 10.352/2001, não autoriza a oposição dos
embargos infringentes na hipótese em que o acórdão recorrido não aprecia o mérito
da causa” (fl. 566), portanto, não houve julgamento de mérito pelo STJ.
4. A “sentença de mérito’ a que se refere o art. 485 do CPC, sujeita a ação rescisória,
é toda a decisão judicial (= sentença em sentido estrito, acórdão ou decisão
interlocutória) que faça juízo sobre a existência ou a inexistência ou o modo de ser
da relação de direito material objeto da demanda” (REsp n. 784.799/PR, publicado
em 2.2.2010, Primeira Turma, Ministro Teori Albino Zavascki). (grifo acrescentado).
5. No mais, esclareça-se que o STJ firmou o entendimento de que a Ação
Rescisória tem como finalidade a desconstituição de decisão de mérito.
[...]
8. Agravo Regimental não provido. (AgRg na AR n. 4.799/AL, Rel. Ministro
Herman Benjamin, Primeira Seção, DJe 8/11/2016.)

Processual Civil. Ação rescisória ajuizada contra acórdão que não decide o
mérito da causa. Não cabimento. Acórdão rescindendo em conformidade com a
jurisprudência do STJ já firmada à época. Incidência da Súmula 343 do STF.
1. Não é cabível ação rescisória dirigida contra decisão que não adentra o
mérito da causa. Precedentes.
2. Na hipótese vertente, o acórdão impugnado, que deu provimento ao recurso
especial da parte adversa, não sindicou sobre o mérito da ação, limitando-se a
decidir acerca de questão processual concernente ao cabimento dos embargos
infringentes.
[...]
4. Ação rescisória não conhecida. (AR n. 4.823/AL, Rel. Ministro Gurgel de Faria,
Terceira Seção, DJe 9/12/2015.)

Agravo regimental na ação rescisória. Acórdão rescindendo que examina valor


fixado a título de astreintes. Sentença de mérito. Ausência.
1. É cabível ação rescisória contra sentença de mérito, transitada em julgado,
nos termos do art. 485, caput, do Código de Processo Civil.
2. Hipótese em que a discussão sobre o valor fixado a título de multa diária
(astreintes), no acórdão rescindendo, proferido em agravo de instrumento, surgiu
no bojo de uma questão incidental. Não se trata de consectário da sentença de
mérito, de modo que não há como falar na existência de coisa julgada, hábil a ser
rescindida.
3. Agravo regimental não provido. (AgRg na AR n. 5.180/DF, Rel. Ministro
Ricardo Villas Bôas Cueva, Segunda Seção, DJe 15/4/2015.)

308
Jurisprudência da SEGUNDA SEÇÃO

Processual Civil. Agravo regimental na ação rescisória. Recurso especial provido


monocraticamente. Deserção da apelação afastada. Decadência. Enunciado n.
401 da Súmula do STJ. Ausência de decisão sobre o mérito da causa.
1. A decisão rescindenda cuidou apenas da validade do preparo do recurso
da apelação, afastando a deserção. Revela-se incabível, portanto, a presente
ação rescisória, própria para enfrentar julgado que analisa o mérito da demanda.
Precedentes.
[...]
3. Agravo regimental improvido. (AgRg na AR n. 4.939/AL, de minha relatoria,
Segunda Seção, DJe 17/6/2014.)

Agravo regimental na ação rescisória. Decisão rescindenda. Deserção de


recurso especial. Inexistência de decisão de mérito. Inadmissibilidade da ação
rescisória. Indeferimento da inicial.
1. Não se sujeita o acórdão que mantém a decisão que julgara deserto o
recurso especial à excepcional forma impugnativa da coisa julgada representada
na ação rescisória.
2. Manifesta a inexistência de apreciação do mérito da demanda, refugindo-se,
por completo, do quanto disposto no “caput” do art. 485 do CPC.
3. A competência desta Corte Superior para o processo e julgamento de ação
rescisória restringe-se às decisões de seus órgãos fracionários que examinem
o mérito da causa, o que não se confunde com aquela que declara deserto o
recurso.
4. Indeferimento da petição inicial mantido.
5. Agravo regimental desprovido. (AgRg na AR n. 5.012/SP, Rel. Ministro Paulo de
Tarso Sanseverino, Segunda Seção, DJe 1º/10/2012.)

Ademais, os artigos apontados como ofendidos, vinculados a supostos


vícios na decisão rescindenda, não amparam a pretensão autoral.
A primeira ilegalidade indicada estaria na restauração imediata da sentença,
sem observar a necessidade de retorno dos autos ao Tribunal de origem para
prosseguir com o exame das demais questões alegadas na apelação. Ocorre que os
arts. 560 e 561 do CPC/1973 não disciplinam esse tema, dispondo apenas que:

Art. 560. Qualquer questão preliminar suscitada no julgamento será decidida


antes do mérito, deste não se conhecendo se incompatível com a decisão daquela.
Parágrafo único. Versando a preliminar sobre nulidade suprível, o tribunal,
havendo necessidade, converterá o julgamento em diligência, ordenando a
remessa dos autos ao juiz, a fim de ser sanado o vício.

RSTJ, a. 34, (265): 279-338, Janeiro/Março 2022 309


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Art. 561. Rejeitada a preliminar, ou se com ela for compatível a apreciação do


mérito, seguir-se-ão a discussão e julgamento da matéria principal, pronunciando-
se sobre esta os juízes vencidos na preliminar.

Tais dispositivos, inseridos no “Capítulo VII – Da Ordem dos Processo no


Tribunal” do CPC/1973, conforme se pode verificar, regulam o procedimento
e a ordem de julgamento das questões jurídicas invocadas pelas partes, a ser
adotada durante as sessões de julgamento no mesmo Tribunal. A discussão aqui
é outra. É saber se, no caso concreto, poderia a decisão rescindenda, ao afastar a
nulidade, “restaurar”, de plano, a decisão de primeiro grau.
Quanto aos arts. 5º, XXXV, e 93, IX, da CF, eles possuem normas
constitucionais meramente principiológicas, cuja ofensa, no presente caso,
dependeria do prévio exame da ordem dos atos processuais praticados e de
peças processuais produzidas no curso da demanda, o que afasta eventual
contrariedade direta e à literalidade de tais normativos, o que também obsta o
cabimento da rescisória.
As referidas normas, sem dúvida, poderiam eventualmente ser interpretadas
em conjunto para, em razões recursais, compor a formulação de determinada
tese, mas não para amparar pedido rescisório, tendo em vista que são discutidas,
nestes autos, questões jurídicas não esgotadas em sua letra.
Não há, portanto, como afirmar que tais dispositivos foram violados literal
e diretamente na decisão rescindenda.
Acerca da violação dos arts. 128 e 460 do CPC/1973, o autor assevera
que a decisão rescindenda “acabou concedendo ao Recorrente, ora Réu, mais
do que teria direito, com o provimento de seu Recurso Especial. Como já
frisado, rigorosamente, o reconhecimento das ilegalidades apontadas no Recurso
Especial jamais poderiam ter levado ao restabelecimento da r. Sentença. No
máximo, levariam ao afastamento da preliminar de nulidade e o retorno dos
autos ao Tribunal local, para continuação do julgamento do apelo” (e-STJ fl. 19).
Os mencionados artigos, no entanto, apenas vedam o julgamento ultra ou extra
petita, matéria não inserida no suposto vício processual descrito pelo autor.
Se isso não bastasse, o réu, em sua petição de recurso especial, expressamente
requereu a manutenção da “sentença singular, em observância ao princípio da
instrumentalidade das formas” (e-STJ fl. 524), o que descaracteriza ofensa aos
arts. 128 e 460 do CPC/1973 e julgamento ultra ou extra petita.
Igualmente não está caracterizado erro de fato, disciplinado no art. 485, IX,
§ 1º, do CPC/1973. Isso porque a decisão rescindenda não admitiu a presença

310
Jurisprudência da SEGUNDA SEÇÃO

de “um fato inexistente” nem considerou “inexistente um fato efetivamente


ocorrido”. Apenas restabeleceu a validade do processo e, consequentemente,
da sentença ao afastar a nulidade invocada pelo então recorrido, autor nesta
demanda rescisória.
Quanto aos vícios apontados na sentença “restaurada” em decorrência do
afastamento da nulidade processual, caberia ao autor propor ação rescisória no
Tribunal de Justiça competente para rescindi-la, sobretudo pelo fato de que a
decisão rescindenda não enfrentou o mérito da causa e, conforme destacado
antes, não a substituiu na forma do art. 512 do CPC/1973.
Quanto aos honorários advocatícios a serem arbitrados neste processo,
observo que inexiste condenação, que não há proveito econômico aferível e que
o valor da causa é muito baixo, devendo-se aplicar o art. 85, § 8º, do CPC/2015.
Ante o exposto, sendo incabível a ação rescisória, julgo extinto o processo
sem apreciação do mérito, revogo a tutela antecipada de fls. 744/746 (e-STJ) e
julgo prejudicado o agravo regimental de fls. 785/817 (e-STJ).
Custas e honorários advocatícios, que arbitro em R$ 20.000,00 (vinte mil
reais), nos termos do art. 85, § 8º, do CPC/2015, pelo autor.
É como voto.

VOTO-VISTA

O Sr. Ministro Luis Felipe Salomão: 1. Cuida-se de ação rescisória


ajuizada pelo Banco Banestado S.A. com o objetivo de rescindir decisão (fls.
577-582) que deu provimento ao REsp 907.622/PR para restabelecer sentença
prolatada pelo juízo de primeiro grau.
Originariamente, trata-se de ação de prestação de contas, cuja primeira
fase se encerrou com a procedência do pedido. Transcorrido o prazo legal, a
requerimento do credor, em 11/12/2002, houve intimação do Banco Itaú S.A.,
na condição de sucessor do Banestado, para que apresentasse as contas.
Em 17/2/2003, o Banestado compareceu espontaneamente aos autos,
requerendo prazo de 30 dias para a prestação de contas, não formulando
nenhuma alegação de nulidade da intimação.
Não se tendo manifestado o Banco Itaú S.A., embora houvesse sido
regularmente intimado para a prática do ato, o juiz declarou boas as contas
apresentadas pelo autor, por sentença prolatada em 28/6/2004.

RSTJ, a. 34, (265): 279-338, Janeiro/Março 2022 311


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Na fase satisfativa, houve execução forçada, com valores, em agosto de


2010, na casa dos R$ 3.311,331, 68 (três milhões, trezentos e onze mil, trezentos
e trinta e um reais e sessenta e oito centavos) - fls. 4 e 914.
O Banestado apelou, tendo o acórdão (fl. 405) dado provimento ao recurso,
reconhecendo a nulidade processual, em razão da ausência de intimação da
entidade financeira que constava originariamente no polo passivo da demanda,
entendendo não caracterizada a sucessão.
A parte autora, então, interpôs Recurso Especial, sustentando que o
comparecimento espontâneo do Banestado supria a falta de intimação pessoal
para a segunda fase da ação de prestação de contas.
A decisão rescindenda deu provimento ao Recurso Especial, acolhendo os
argumentos da autora, reputando despicienda a intimação pessoal do Banestado,
restaurando a sentença de primeiro grau.
Colaciono os seguintes trechos que parecem os mais relevantes para o
desenlace da questão:

Há que se concluir, portanto, que se houve irregularidade na intimação da


parte, uma vez que intimada pessoa estranha à lide, mesmo com a penhora
feita em patrimônio do Banco Itaú, este não veio aos autos alegar qualquer
irregularidade. Conclui-se, ainda, que o recorrido tinha ciência do ato processual,
e compareceu ao processo para pedir prazo para a prestação de contas, ato que
nunca praticou. Sendo assim, há que se concluir, por fim, que se vício houve,
encontra-se o mesmo sanado pelos motivos acima expostos.

Ao propor a rescisória, o Banestado alega violação literal dos arts. 560 e


561 do CPC/1973 e dos arts. 5º, XXXV, e 93, IV, da CR, sustentando que a
decisão rescindenda não poderia ter restaurado a sentença de primeiro grau,
considerando a existência de outras questões suscitadas na Apelação, tanto
quanto à outra preliminar – de vício de fundamentação –, quanto ao próprio
mérito da sentença.
Consta da inicial:

O Tribunal de Justiça do Paraná, ao acolher a preliminar de nulidade de


citação/intimação no julgamento da Apelação, não prosseguiu – porque isso
seria desnecessário, a teor do art. 560 do CPC – na atividade cognitiva atinente
aos demais fundamentos do apelo. Contudo, ao prover o Recurso Especial
manejado pela parte contrária, afastado a preliminar de nulidade de citação/
intimação reconhecida pelo v. Acórdão recorrido, cumpria ao Exmo. Relator
agir de acordo com o disposto no art. 561 do CPC, determinando o retorno

312
Jurisprudência da SEGUNDA SEÇÃO

dos autos o Tribunal local para continuação do julgamento do apelo, com a


apreciação das teses recursais não decididas naquela instância. Na verdade, o
equívoco cometido pelo Exmo. Ministro Relator é tão evidente que pode, até
mesmo, ser qualificado como erro de fato. Tivesse notado que a Apelação do
Banco tinha vários capítulos, e que o Tribunal local encerrou o julgamento pelo
acolhimento da primeira preliminar apontada, certamente, teria determinado a
baixa dos autos para análise das demais questões, e não restaurado a r. Sentença.
Na prática, esse error in procedendo da r. Decisão impugnada permitiu que, logo
após sua prolação, os autos baixassem ao Juízo a quo, e o ora Réu passasse a
executar a r. Sentença “restaurada”, sem que o mérito da apelação manejada pelo
banco tivesse sido julgado! No bojo dessa execução, evidentemente equivocada, o
Banco Banestado sofreu, no último dia 29 de setembro, penhora online no valor
de R$ 3.311.331,88 (três milhões, trezentos onze mil, trezentos e trinta e um reais
e oitenta e oito centavos). Como, recentemente, a impugnação apresentada pelo
Banco foi julgada improcedente, o ora Réu está na iminência de obter autorização
para levantamento dessa quantia. (e-STJ fls. 3/4.)”.
[...]”c) no que se refere ao juízo rescindente, pede-se, inicialmente, que seja
rescindida a parte final da r. Decisão proferida no Recurso Especial n. 907.622, que
determinou, como consequência do provimento do recurso, o restabelecimento
da r. Sentença de primeiro grau; d) em seguida, no que se refere ao juízo
rescindendo, requer-se seja proferido novo julgamento, determinando-se o
retorno dos autos ao Tribunal local para continuação do julgamento do apelo;
e) não sendo esse o entendimento, requer-se, sucessivamente, seja a r. Decisão
rescindida, e em seu lugar seja proferido outra, reconhecendo que a r. Sentença
de 1º grau (i) é nula, por vício de fundamentação; ou (ii) merece ser reformada,
pois as contas prestadas pelo ora Réu não são boas. Ao invés delas, espera-se seja
determinado que, no juízo a quo, sejam refeitas as contas, a partir da aplicação
de juros à taxa de 0,5% ao mês (até a entrada em vigor do Novo Código Civil) e,
após 11/01/2003, fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do
pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional – que, no entendimento
majoritário da jurisprudência, representa a taxa de 1% ao mês, prevista no art.
161, § 1º, do Código Tributário Nacional, sem capitalização” (e-STJ fls. 38/39.).

A eminente Relatora deferiu tutela provisória para suspender o


cumprimento da sentença de primeiro grau, tendo sido interposto agravo
interno.
O credor apresentou contestação à ação rescisória, reiterando o pedido de
revogação da tutela provisória, de extinção do processo sem exame do mérito ou
a improcedência do pedido, com as condenações de estilo (e-STJ, fls. 820-842).
O Ministério Público Federal opinou pela improcedência da ação rescisória
(fls. 888-893 e 895).

RSTJ, a. 34, (265): 279-338, Janeiro/Março 2022 313


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Na sessão realizada em 09/6/2021, a douta Relatora, Ministra Isabel


Gallotti, prolatou denso voto, por meio do qual julgou procedente o pedido para
rescindir em parte a decisão, determinando a devolução dos autos ao Tribunal
de origem para a complementação do julgamento do recurso, acolhendo o
principal argumento levantado pela autora.
A Relatora foi acompanhada naquela ocasião pelos Ministros Marco
Buzzi, Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro.
Ao prolatar o voto-revisão, o eminente Ministro Antonio Carlos Ferreira
apresentou não menos aprofundado voto, entendendo, contudo, que a ação
rescisória deveria ser extinta sem julgamento do mérito, uma vez que a decisão
rescindenda, prolatada pelo Ministro Sidnei Beneti, não teria enfrentado o
mérito da demanda originária, tampouco substituído a sentença, nos termos do
art. 512 do CPC/1973.
Sua excelência, portanto, abriu divergência, compreendendo que a rescisória
não ultrapassa seu juízo de admissibilidade, citando precedentes.
Acompanhou Sua Excelência a Ministra Nancy Andrighi.
Pedi vista dos autos para melhor análise do caso.
2. Senhor Presidente, Eminentes Pares, renovando os predicados já
lançados sobre os votos proferidos, o interessante caso apresenta tema bastante
relevante, parecendo importante destacar alguns pontos, notadamente quanto
à definição do juízo de admissibilidade da ação rescisória – particularmente,
o conceito de mérito para essa finalidade -, assim como no que diz respeito às
consequências da decisão.
Em outras palavras, a principal questão controvertida é saber se a decisão
que, em recurso especial, na extensão delineada pelo efeito devolutivo, aprecia
e acolhe alegação de nulidade do acórdão, por vício processual, e restaura a
sentença de primeiro grau, se essa decisão tem conteúdo de mérito para os fins
do manejo da ação rescisória.
Cabe desvelar, portanto, se o mérito previsto na norma como requisito para
o cabimento da rescisória diz respeito ao conflito de interesses originário ou à
própria decisão rescindenda.
A douta Relatora cuidou do juízo de admissibilidade da rescisória
juntamente com o mérito, conhecendo do pedido e julgando-o procedente.
O Ilustre Revisor, por sua vez, assentou que “a decisão rescindenda, do
eminente Ministro Sidnei Beneti, não enfrentou o mérito da demanda originária

314
Jurisprudência da SEGUNDA SEÇÃO

nem substituiu a sentença na forma do art. 512 do CPC/1973”. Aduziu que “a


decisão rescindenda, em tal contexto, ao prover o recurso especial, apenas afastou
a nulidade do processo desde a intimação realizada na segunda fase da ação de
prestação de contas e, como mera consequência processual imediata, ‘restaurou’
também a sentença, anteriormente anulada pelo TJPR no acórdão da apelação”.
3. Com efeito, ao dispor o texto legal revogado que o cabimento da
ação rescisória tem por objeto a sentença de mérito (art. 485 do CPC/1973), as
consequências advindas da interpretação literal do preceito normativo somente
se mostram adequadas quando restritas à sentença de primeiro grau como
decisão rescindenda.
Ao passo que, no caso ora em exame, a decisão que se pretende rescindir
é aquela proferida em recurso especial, por isso, segundo penso, o conceito de
mérito deve, necessariamente, passar por uma adequação à hipótese.
O que se pretende afirmar é que o mérito do recurso pode – ou não –
coincidir com o mérito da causa originária.
Nesses termos, uma questão atinente ao juízo de admissibilidade da causa
pode, perfeitamente, revelar-se mérito do recurso.
Colaciono as sempre certeiras lições do saudoso mestre Barbosa Moreira:

Lê-se com certa frequência, em minutas de julgamento e em acórdãos


concernentes a recursos, que o órgão julgador, ‘preliminarmente’, rejeitou a
arguição de ilegitimidade ad causam, ou a de prescrição, e assim por diante. Tal
modo de falar deve ser evitado como equívoco: há confusão entre preliminar do
recurso e preliminar da causa. A questão da ilegitimidade ou a da prescrição pode
constituir o próprio objeto da impugnação do recorrente, de modo que, depois
de decidi-la, o órgão julgador nada mais teria que apreciar. O recurso, insista-
se, terá sido julgado no mérito. (MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao
Código de Processo Civil. 11ª ed., v. 5, p. 680.)

No caso concreto, a impugnação deduzida no recurso especial – cuja


decisão se quer rescindir – limitou-se à questão da nulidade da intimação do
Banestado. Esse é o mérito do recurso, analisado em sua inteireza pelo Ministro
Sidnei Beneti.
A recorrente do Especial – ora ré – trouxe como fundamento o
comparecimento espontâneo do Banestado, por meio de petição, na qual pediu
prazo para a prestação de contas.
Esse fato, na visão da recorrente, teria o condão de suprir a necessidade de
intimação pessoal para a segunda fase da ação de prestação de contas. Apontou,

RSTJ, a. 34, (265): 279-338, Janeiro/Março 2022 315


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

além da divergência jurisprudencial, violação dos arts. 154, 214, § 1º, 244 e 249,
§ 1º, do CPC.
Essa é a pretensão recursal deduzida no Superior Tribunal de Justiça, ou seja, o
mérito do recurso especial.
Extrai-se do voto do relator:

Há que se concluir, portanto, que se houve irregularidade na intimação da


parte, uma vez que intimada pessoa estranha à lide, mesmo com a penhora
feita em patrimônio do Banco Itaú, este não veio aos autos alegar qualquer
irregularidade. Conclui-se, ainda, que o recorrido tinha ciência do ato processual,
e compareceu ao processo para pedir prazo para a prestação de contas, ato que
nunca praticou. Sendo assim, há que se concluir, por fim, que se vício houve,
encontra-se o mesmo sanado pelos motivos acima expostos. 10.- Quanto
ao fundamento do Tribunal para anular o ato, de que necessária a intimação
pessoal do réu na segunda fase do processo de prestação de contas, esta Corte,
no julgamento do REsp 658.960/SP, Rel. Ministro Cesar Asfor Rocha, a Quarta
Turma concluiu ser desnecessária a intimação pessoal(...). Pelo exposto, julga-se
procedente o Recurso Especial, para restaurar a decisão monocrática.

Eis a decisão de mérito, objeto da pretensão rescisória veiculada pela parte


autora, tendo o Superior Tribunal de Justiça adentrado o tema de fundo da
questão federal controvertida no recurso especial.
Nesse sentido:

Agravo interno no recurso especial. Ação rescisória. Última decisão de mérito


proferida nos autos originários. Incompetência absoluta do Tribunal de Justiça
Estadual. Competência do STJ. Cabimento da reautuação dos autos à luz do novo
CPC. 1. Quando o STJ adentra o mérito da questão federal controvertida no recurso
especial, opera-se o efeito substitutivo previsto no artigo 512 do CPC de 1973 (artigo
1.008 do NCPC), o que atrai a competência para apreciação da ação rescisória.
Hipótese em que, consoante assente em julgamento proferido pela Segunda Seção,
foi reconhecida a natureza meritória da última decisão proferida pelo STJ nos autos
originários. Na ocasião, o referido órgão julgador considerou que a circunstância de
o recurso especial não ter sido conhecido não descaracteriza sua natureza de decisão
de mérito, uma vez detidamente examinada a controvérsia e indeferida a pretensão
da recorrente. 2. Constatada a incompetência absoluta do tribunal perante o
qual a rescisória foi ajuizada (pois indicada como rescindível decisão de mérito
que fora substituída por outra de tribunal superior), deve o relator determinar
a emenda da inicial para adequação do objeto da ação e a posterior remessa
dos autos ao juízo competente para apreciação da demanda. 3. Agravo interno
não provido. (AgInt nos EDcl no REsp 1.611.431/MT, Relator Ministro Luis Felipe
Salomão, Quarta Turma, julgado em 28/11/2017, DJe 1º/12/2017.)

316
Jurisprudência da SEGUNDA SEÇÃO

Não desconheço que a jurisprudência do STJ é rigorosa quanto aos


requisitos de admissibilidade da ação rescisória, principalmente quanto à
necessidade de enfrentamento da questão de mérito, conforme os precedentes
colacionados pelo douto Revisor.
Excelente que assim o seja, pelo bem da segurança jurídica.
No entanto, penso que o mérito que precisa ser delineado para o fim do
cabimento da ação rescisória – nas hipóteses em que a decisão rescindenda é um
julgado do próprio Superior Tribunal de Justiça – é o enfrentamento da questão
federal controvertida no recurso especial.
Essa circunstância, a meu sentir, restou demonstrada no caso concreto.
4. Ademais, na hipótese dos autos, tenho também que o conhecimento do mérito do
recurso – o provimento do recurso especial pelo relator originário - concomitantemente
enfrentou o mérito da causa.
Com efeito, sem avançar nesse momento para eventual correção do que
fora decidido – que é o mérito da própria ação rescisória –, o fato é que se
conheceu do recurso especial e a ele deu-se provimento, “restaurando” a decisão
de primeiro grau, qual seja, a sentença prolatada na primeira fase da ação de
prestação de contas.
A decisão prolatada nesta instância especial substituiu a sentença e é a que
passou a ter eficácia, sendo o objeto da ação rescisória. Tendo transitado em
julgado essa decisão, operou-se a coisa julgada material em relação ao dever de
prestar contas, cabendo, portanto, ação rescisória.
Nesse sentido, a doutrina:

Ainda que a decisão recursal negue provimento ao recurso, ou, na linguagem


inexata, mas corrente, ‘confirme’ a decisão recorrida, existe o efeito substitutivo,
de sorte que o que passa a valer e ter eficácia é a decisão substitutiva e não a
decisão ‘confirmada’. Com muito maior razão a substitutividade se dá quando a
decisão recursal dá provimento ao recurso. (NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de
Andrade. Código de Processo Civil comentado, 18ª ed., São Paulo: Thomson Reuters
Brasil, 2019, art. 1.008, nota 3, p. 2.180.)

Nesse particular, vale sublinhar que a ação originária é de prestação de


contas, procedimento especial, escalonado, cuja primeira fase diz respeito
exclusivamente à análise da existência do direito de prestar/exigir contas. Na
segunda fase, como se sabe, avalia-se a correção ou não das contas prestadas.

RSTJ, a. 34, (265): 279-338, Janeiro/Março 2022 317


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Contudo - esse ponto é relevante -, em ambos os momentos, existe a


análise do mérito.
Cuida-se de pronunciamento sobre o mérito e, por via de consequência,
formação progressiva da coisa julgada material.
Embora o CPC de 2015 tenha apontado que a primeira fase será encerrada
por meio de “decisão”, o que importa não é a forma do pronunciamento
judicial. Cuida-se de decisão de mérito, conforme entendimento solidificado
no STJ:

O ato judicial que encerra a primeira fase da ação de exigir contas possuirá, a
depender de seu conteúdo, diferentes naturezas jurídicas: se julgada procedente
a primeira fase da ação de exigir contas, o ato judicial será decisão interlocutória
com conteúdo de decisão parcial de mérito, impugnável por agravo de
instrumento; se julgada improcedente a primeira fase da ação de exigir contas
ou se extinto o processo sem a resolução de seu mérito, o ato judicial será
sentença, impugnável por apelação”, todavia, “Havendo dúvida objetiva acerca
do cabimento do agravo de instrumento ou da apelação, consubstanciada em
sólida divergência doutrinária e em reiterado dissídio jurisprudencial no âmbito
do 2° grau de jurisdição, deve ser afastada a existência de erro grosseiro, a fim
de que se aplique o princípio da fungibilidade recursal. (REsp 1.746.337/RS,
Relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 9.4.2019, DJe de
12.4.2019.)

Sem embargo, no regime processual anterior – CPC de 1973 –, aplicável


ao caso em análise, não havia dúvida de que o ato judicial que encerrava a
primeira fase era uma sentença – de mérito –, uma vez que certificava relação
jurídica de natureza obrigacional, condenando o réu – quando procedente – a
prestar as contas.
Dispunha o CPC de 1973:

Art. 915. Aquele que pretender exigir a prestação de contas requererá a citação
do réu para, no prazo de 5 (cinco) dias, as apresentar ou contestar a ação.
§ 1º - Prestadas as contas, terá o autor 5 (cinco) dias para dizer sobre elas;
havendo necessidade de produzir provas, o juiz designará audiência de instrução
e julgamento; em caso contrário, proferirá desde logo a sentença.
§ 2º - Se o réu não contestar a ação ou não negar a obrigação de prestar
contas, observar-se-á o disposto no art. 330; a sentença, que julgar procedente a
ação, condenará o réu a prestar as contas no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, sob
pena de não lhe ser lícito impugnar as que o autor apresentar.

318
Jurisprudência da SEGUNDA SEÇÃO

Também nesse sentido, a doutrina:

No regime do Código de Processo Civil de 1973, a ação para exigir contas


constituía importante exceção à regra geral de que os processos continham uma
só sentença. Perante aquela ordem, o ato judicial que encerrava a primeira fase
(da etapa de conhecimento, com o exame apenas parcial do mérito do pedido)
do procedimento era qualificada como sentença, embora ela não encerrasse
todo o momento cognitivo do processo e, portanto, não pusesse fim nem ao
processo, nem à fase de conhecimento do processo. A exceção tinha por essência
razões históricas, sedimentadas em doutrina. Não se questionava – até porque o
Código veementemente e expressamente denominava esse ato como ‘sentença’
– que o ato judicial que encerrava a primeira fase do procedimento da prestação
de contas devesse ser assim tratado (MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART,
Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Curso de Processo Civil, vol. 3. Tutela dos direitos
mediante procedimentos diferenciados. 5ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil,
2020. P. 157. Também nesse sentido: PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti.
Comentários ao CPC, t. XIII, p. 127; FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. Comentários ao
CPC. SILVA; Ovídio Baptista da. Comentários ao CPC. São Paulo: Ed. RT, 2000.)

Dessa forma, ao prover o recurso especial que atacava a apelação,


“restaurando” a sentença da primeira fase da ação de prestação de contas,
esgotou-se a jurisdição quanto ao ponto, operando-se o trânsito em julgado,
sendo cabível a ação rescisória.
Assim já se manifestou a Segunda Seção, no julgamento do AgRg na AR
4.459/DF, Relatora para acórdão Ministra Isabel Gallotti. No julgado referido,
embora eu mesmo tenha ficado vencido quanto ao cabimento do agravo – mas
por outro fundamento -, assentou o Colegiado que, quando a decisão rescindenda
simplesmente restabelece a sentença, o tema de fundo é enfrentado pela decisão,
havendo manifestação de mérito. Confira-se:

Processual Civil. Agravo regimental na ação rescisória. Decisão rescindenda do


STJ que restabeleceu a sentença inclusive quanto aos honorários advocatícios.
Prequestionamento inexigível em ação rescisória. 1. A questão referente à
verba honorária foi enfrentada pela decisão rescindenda, ainda que esta tenha
meramente restabelecido a sentença quanto àquele tópico, sem aprofundar-se
na fundamentação pertinente aos critérios legais de fixação de honorários. 4.
Agravo regimental a que se dá provimento, para que prossiga a tramitação da
ação rescisória. (AgRg na AR 4.459/DF, Relator Ministro Luis Felipe Salomão,
Relator para Acórdão Ministra Maria Isabel Gallotti, Segunda Seção, julgado em
14/10/2015, DJe 1º/2/2016).

Entendo, portanto, na linha do escorreito voto da douta Relatora,


renovando vênia aos entendimentos em contrário, que o caso é de cabimento

RSTJ, a. 34, (265): 279-338, Janeiro/Março 2022 319


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

da ação rescisória, tendo a decisão rescindenda enfrentado o mérito – havendo


formação de coisa julgada material sobre o dever de prestar contas.
5. Quanto ao mérito da ação rescisória, pouco tenho a acrescentar ao voto
de Sua Excelência, a Ilustre Relatora, já acompanhado pelos Ministros Marco
Buzzi, Marco Bellizze e Moura Ribeiro.
Ao conhecer do recurso especial e provê-lo, penso, com a devida vênia, que
o então relator deveria ter remetido os autos ao Tribunal para – em cumprimento
ao disposto no art. 561 do CPC de 1973 – prosseguir na discussão e julgamento
das demais preliminares e da matéria principal.
Não o fez, restando perfeitamente caracterizada a violação literal da lei
federal.
Como bem pontuou a Relatora, “ao STJ é vedado ingressar em temas não
tratados no acórdão estadual”.
Os temas referentes à preliminar de nulidade da sentença por vício de
fundamentação e às questões meritórias atinentes aos valores homologados
pelo juízo de primeiro grau não estão maduros para julgamento nesta Instância
Superior.
Não houve manifestação sobre essas questões, seja no juízo da apelação,
seja no STJ quando do enfrentamento do recurso nobre.
Entendo, portanto, literalmente violado o art. 561 do CPC de 1973,
devendo ser emitido pronunciamento judicial sobre as demais questões
ventiladas na apelação.
6. Ante o exposto, renovando as vênias devidas, acompanho integralmente
a eminente Relatora e voto no sentido de admitir e julgar procedente a ação
rescisória, tornando definitiva a tutela provisória e desconstituindo, em parte, a
decisão rescindenda, determinando a remessa dos autos ao TJPR para prosseguir
no julgamento. Outrossim, ônus sucumbenciais como sugerido pela Relatora.
É como voto.

CONFLITO DE COMPETÊNCIA N. 181.190-AC (2021/0221593-7)

Relator: Ministro Marco Aurélio Bellizze

320
Jurisprudência da SEGUNDA SEÇÃO

Suscitante: Concrenorte Industria de Artefatos de Concreto Eireli - Em -


Em Recuperação Judicial
Advogados: Thales Rocha Bordignon - AC002160
Vanessa Fantin Mazoca de Almeida Prado - SP214894
Marcelo Feitosa Zamora - AC004711
Suscitado: Juízo de Direito da 2ª Vara Cível de Rio Branco - AC
Suscitado: Juízo Federal da 3ª Vara Cível e Criminal do Acre - SJ/AC
Interes.: Fazenda Nacional

EMENTA

Conflito de competência. Execução fiscal ajuizada pela Fazenda


Nacional contra empresa em recuperação judicial. Rejeição da exceção
de pré-executividade, com o prosseguimento da execução, a autorizar
a constrição judicial dos bens da recuperanda. A caracterização de
conflito de competência perante esta Corte de Justiça pressupõe a
materialização da oposição concreta do Juízo da Execução Fiscal à
efetiva deliberação do Juízo da Recuperação Judicial a respeito do ato
constritivo. Circunstância não verificada. Conflito de competência não
conhecido.
1. O dissenso constante do presente incidente centra-se em
saber se o Juízo em que se processa a execução fiscal contra empresa
em recuperação judicial, ao rejeitar a exceção de pré-executividade e
determinar o prosseguimento do feito executivo, com a realização de
atos constritivos sobre o patrimônio da executada –, invade ou não
a competência do Juízo da recuperação judicial, segundo dispõe o §
7º-B do art. 6º da Lei de Recuperação e Falência, com redação dada
pela Lei n. 14.112/2020.
2. A divergência jurisprudencial então existente entre esta
Segunda Seção e as Turmas integrantes da Seção de Direito Público
do Superior Tribunal de Justiça acabou por se dissipar em razão
da edição da Lei n. 14.112/2020, que, a seu modo, delimitou a
competência do Juízo em que se processa a execução fiscal (a qual não
se suspende pelo deferimento da recuperação judicial) para determinar
os atos de constrição judicial sobre os bens da recuperanda; e firmou
a competência do Juízo da recuperação judicial para, no exercício

RSTJ, a. 34, (265): 279-338, Janeiro/Março 2022 321


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

de um juízo de controle, “determinar a substituição dos atos de


constrição que recaiam sobre bens de capital essenciais à manutenção
da atividade empresarial até o encerramento da recuperação judicial”.
3. Ainda que se possa reputar delimitada, nesses termos, a extensão
da competência dos Juízos da execução fiscal e da recuperação judicial
a respeito dos atos constritivos determinados no feito executivo fiscal,
tem-se, todavia, não se encontrar bem evidenciado, até porque a lei não
o explicita, o modo de como estas competências se operacionalizam na
prática, de suma relevância à caracterização do conflito positivo de
competência perante esta Corte de Justiça.
3.1 É justamente nesse ponto – em relação ao qual já se antevê
uma tênue dispersão nas decisões monocráticas e que motivou a
submissão da presente questão a este Colegiado – que se reputa
necessário um direcionamento seguro por parte do Superior Tribunal
de Justiça, para que o conflito de competência perante esta Corte
Superior não seja mais utilizado, inadvertidamente, como mero
subterfúgio para se sobrestar a execução fiscal (ao arrepio da lei), antes
de qualquer deliberação do Juízo da recuperação judicial a respeito da
constrição judicial realizada, e, principalmente, antes de uma decisão
efetivamente proferida pelo Juízo da execução fiscal que se oponha
à deliberação do Juízo da recuperação judicial acerca da constrição
judicial.
4. A partir da vigência da Lei n. 14.112/2020, com aplicação aos
processos em trâmite (afinal se trata de regra processual que cuida de
questão afeta à competência), não se pode mais reputar configurado
conflito de competência perante esta Corte de Justiça pelo só fato de
o Juízo da recuperação ainda não ter deliberado sobre a constrição
judicial determinada no feito executivo fiscal, em razão justamente de
não ter a questão sido, até então, a ele submetida.
4.1 A submissão da constrição judicial ao Juízo da recuperação
judicial, para que este promova o juízo de controle sobre o ato
constritivo, pode ser feita naturalmente, de ofício, pelo Juízo da
execução fiscal, em atenção à propugnada cooperação entre os Juízos.
O § 7ª-B do art. 6º da Lei n. 11.101/2005 apenas faz remissão ao
art. 69 do CPC/2015, cuja redação estipula que a cooperação judicial
prescinde de forma específica. E, em seu § 2º, inciso IV, estabelece

322
Jurisprudência da SEGUNDA SEÇÃO

que “os atos concertados entre os juízos cooperantes poderão


consistir, além de outros, no estabelecimento de procedimento para
a efetivação de medidas e providências para recuperação e preservação
de empresas”.
4.2 Caso o Juízo da execução fiscal assim não proceda, tem-se de
todo prematuro falar-se em configuração de conflito de competência
perante esta Corte de Justiça, a pretexto, em verdade, de obter o
sobrestamento da execução fiscal liminarmente. Não há, por ora, nesse
quadro, nenhuma usurpação da competência, a ensejar a caracterização
de conflito perante este Superior Tribunal. A inação do Juízo da
execução fiscal – como um “não ato” que é – não pode, por si, ser
considerada idônea a fustigar a competência do Juízo recuperacional
ainda nem sequer exercida.
4.3 Na hipótese de o Juízo da execução fiscal não submeter,
de ofício, o ato constritivo ao Juízo da recuperação judicial, deve
a recuperanda instar o Juízo da execução fiscal a fazê-lo ou levar
diretamente a questão ao Juízo da recuperação judicial, que deverá
exercer seu juízo de controle sobre o ato constritivo, se tiver elementos
para tanto, valendo-se, de igual modo, se reputar necessário, da
cooperação judicial preconizada no art. 69 do CPC/2015.
5. Em resumo, a caracterização de conflito de competência
perante esta Corte de Justiça pressupõe a materialização da oposição
concreta do Juízo da execução fiscal à efetiva deliberação do Juízo da
recuperação judicial a respeito do ato constritivo.
6. Conflito de competência não conhecido.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas,


acordam os Ministros da Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça,
por unanimidade, não conhecer do conflito de competência e revogar liminar
anteriormente deferida pela Presidência do Superior Tribunal de Justiça, nos
termos do voto do Sr. Ministro Relator.
Os Srs. Ministros Moura Ribeiro, Nancy Andrighi, Luis Felipe Salomão,
Raul Araújo, Paulo de Tarso Sanseverino, Maria Isabel Gallotti, Ricardo Villas
Bôas Cueva e Marco Buzzi votaram com o Sr. Ministro Relator.

RSTJ, a. 34, (265): 279-338, Janeiro/Março 2022 323


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Brasília (DF), 30 de novembro de 2021 (data do julgamento).


Ministro Marco Aurélio Bellizze, Relator

DJe 7.12.2021

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Marco Aurélio Bellizze: Trata-se de conflito de competência


suscitado por Concrenorte Indústria de Artefatos de Concreto Eireli – Em
Recuperação Judicial –, apontando como suscitados o Juízo de Direito da 2ª
Vara Cível de Rio Branco/AC e o Juízo Federal da 3ª Vara Cível e Criminal do
Acre – SJ/AC.
Alega a suscitante que, em 29/12/2017, ingressou com pedido de
recuperação judicial, tramitando perante a 2ª Vara Cível de Rio Branco/AC, sob
o n. 0717143-61.2017.8.01.0001.
Informa que, no dia 08/02/2018, houve o deferimento do processamento
do pedido de recuperação judicial da empresa suscitante; e, no dia 13/08/2019,
o plano de recuperação judicial foi devidamente aprovado pela assembleia de
credores, encontrando-se em fase de cumprimento, com prazos de carência e os
parcelamentos que se estendem por até 12 (doze) anos.
Afirma que “o Juízo da 3ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária do
Estado do Acre, nos autos da Ação de Execução Fiscal ajuizada pela Fazenda
Nacional, sem levar em consideração a decisão proferida pelo juízo da 2ª Vara
Cível de Rio Branco/AC, que homologou o plano de recuperação judicial e
concedeu à recuperação judicial a empresa Concrenorte Indústria de Artefatos
de Concreto-Eireli, rejeitou a exceção de pré-executividade apresentada pela
empresa suscitante e determinou a intimação da exequente para promover o
prosseguimento da execução [em que se objetiva o pagamento de R$ 693.748,07
– seiscentos e noventa e três mil setecentos e quarenta e oito reais e sete
centavos], requerendo o que entender de direito” (e-STJ, fl. 4).
Entende, nesse contexto, estar caracterizado o conflito ora suscitado,
devendo prevalecer a competência do Juízo da recuperação judicial para deliberar
sobre seu patrimônio, principalmente sobre penhora de valores destinados
ao pagamento dos seus credores. Defende, a esse propósito, que, embora “as
execuções fiscais não se suspendam em razão de recuperação judicial, são
vedados atos judiciais que reduzam o patrimônio da empresa em recuperação

324
Jurisprudência da SEGUNDA SEÇÃO

judicial, devendo passar pelo crivo do juízo universal a prática de qualquer ato
de execução voltado contra o patrimônio das empresas em recuperação judicial”
(e-STJ, fl. 9).
Anota haver “entendimento pacífico na jurisprudência deste Superior
Tribunal de Justiça de que compete apenas ao Juízo de Falências e Recuperações
Judiciais a prática de atos de execução em face de empresa que enfrenta
Recuperação Judicial” (e-STJ, fl. 9).
Postula, ao final (e-STJ, fls. 27-28 - sem grifos no original):

a) O conhecimento e processamento deste conflito de competência e conceda


liminarmente, sem a oitiva da parte contrária, para reconhecer a incompetência do
d. Juízo da 3ª Vara Federal Cível e Criminal da Seção Judiciária do Estado do Acre
e declarar sem efeitos os atos executórios por ele determinados, suspendendo-se
o processo de execução 1000500-07.2020.4.01.3000, até decisão final de mérito;
b) Seja designada a oitiva dos juízos suscitados (3ª Vara Federal Cível e Criminal
da Seção Judiciária do Estado do Acre e 2ª Vara Cível da Comarca de Rio Branco/
AC), como dispõe o art. 954, do Código de Processo Civil;
c) Seja reconhecida a incompetência absoluta do Juízo da 3ª Vara Federal Cível
e Criminal da Seção Judiciária do Estado do Acre, julgando procedente a demanda
e determinando que a competência para executar o Plano de Recuperação
Judicial e ordenar atos de constrição patrimonial seja da 2ª Vara Cível da Comarca
de Rio Branco–AC, submetendo-se o crédito ao Plano de Recuperação Judicial,
estabelecendo, por consequência lógica, a suspensão de qualquer ato executório
visando a constrição e alienação patrimonial determinado pelo Juízo Federal.

A Presidência do Superior Tribunal de Justiça deferiu o pedido liminar


“para suspender, até ulterior deliberação do relator, os atos executórios
promovidos pelo Juízo Federal da 3ª Vara Cível e Criminal do Acre (SJ/AC),
na Execução Fiscal n. 1000500-07.2020.4.01.3000 ajuizada pela Fazenda
Nacional” (e-STJ, fl. 592), nos termos da seguinte fundamentação:

Inicialmente, observa-se que as execuções fiscais não estão sujeitas aos efeitos
da recuperação judicial da devedora e, notadamente, às suspensões e restrições
determinadas pelo art. 6º, incisos I, II e III, da Lei n. 11.101/2005, com redação dada
pela Lei n. 14.112/2020.
Entretanto, conforme a nova sistemática legal, cabe ao Juízo da recuperação
judicial determinar a substituição dos atos de constrição que recaiam sobre bens de
capital essenciais à manutenção da atividade empresarial até o encerramento da
recuperação judicial, a qual será implementada mediante a cooperação jurisdicional,
conforme o art. 6º, § 7º-B, da Lei n. 11.101/2005, com redação dada pela Lei n.
14.112/2020.

RSTJ, a. 34, (265): 279-338, Janeiro/Março 2022 325


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Evidentemente, cabe ao Juízo da recuperação judicial definir a qualidade


do bem de capital constrito na execução fiscal como essencial, bem como cabe
àquele Juízo determinar a sua substituição por outro ativo da devedora em
recuperação judicial, em atividade cooperativa com o Juízo da execução fiscal.
Assim, até que seja definida a qualidade do bem constrito e implementada a
referida cooperação jurisdicional para sua substituição, deve a execução fiscal
permanecer suspensa.
Verifica-se, portanto, a presença do fumus boni iuris relativo ao pedido de
suspensão da execução fiscal.
O periculum in mora, por sua vez, está demonstrado por meio da decisão do
Juízo suscitado, que determinou o prosseguimento da execução movida contra a
empresa suscitante (fls. 33-35).

O Juízo da 3ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária do Estado do Acre


prestou as informações solicitadas, nestes termos (e-STJ, fls. 598-602):

Na execução fiscal n. 1000500-07.2020.4.01.3000, em trâmite nesta Vara


Federal, a empresa executada apresentou exceção de pré-executvidade,
objetivando a suspensão e/ou cancelamento dos atos de constrição contra seu
patrimônio, em razão do noticiado deferimento da sua Recuperação Judicial.
A decisão proferida rejeitou o pedido da executada, sob o fundamento de
que a Lei de Falências, com a redação dada pela Lei n. 14.112/2020, não proíbe
a prática de atos constritivos pelo juízo da execução fiscal, mas permite eventual
substituição por parte do juízo universal. Nesses termos:
[...]
Dessa forma, a decisão encontra-se fundamentada em expressa disposição
legal. São estas as informações.

O Ministério Publico Federal ofertou parecer pelo conhecimento do


conflito, declarando-se a competência do Juízo em que se processa a recuperação
judicial da suscitante, sintetizado pela ementa abaixo reproduzida (e-STJ, fl.
641):

Conflito de competência. Recuperação judicial. Execução fiscal. Art. 6º, § 7º-B,


da Lei 11.101/2005. Relativização. Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.
Princípio da preservação da empresa. Competência do Juízo Universal.
1. O deferimento da recuperação judicial não suspende a execução fiscal,
consoante o § 7º-B do art. 6º da Lei 11.101/2005. Contudo, a competência
para exercer o controle sobre os atos de constrição do patrimônio da empresa
recuperanda é do juízo universal, tendo em vista o princípio da preservação da
empresa e o entendimento consolidado desse Superior Tribunal de Justiça.

326
Jurisprudência da SEGUNDA SEÇÃO

2. Parecer pela competência do juízo universal.

Às fls. 648-664 (e-STJ), a Fazenda Nacional noticia que, em 26 de outubro


de 2021, sobreveio sentença de encerramento da recuperação judicial, o que
evidenciaria, em sua compreensão, a perda superveniente de objeto do presente
conflito de competência.
Subsidiariamente, defende a inexistência de conflito de competência,
pugnando, assim, pelo não conhecimento do presente incidente, reputando,
todavia, “ser importantíssimo que a Segunda Seção julgue um leading case acerca
do artigo 6º, § 7-B da Lei n. 11.101/05, definindo sua interpretação e alcance.
É o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Marco Aurélio Bellizze (Relator): Antes, propriamente,


de adentrar na questão posta quanto à configuração de conflito de competência
entre os Juízos suscitados, relevante sopesar a matéria trazida pela Fazenda
Nacional a respeito da prejudicialidade do presente incidente, considerada
a prolação de sentença de encerramento da recuperação judicial na data de
26/10/2021.
Em pesquisa sobre o andamento processual da recuperação judicial
da suscitante (Processo n. 0717143-61.2017.8.01.0001), no sítio eletrônico
do Tribunal de Justiça do Estado do Acre, constatou-se que a sentença de
encerramento da recuperação judicial ainda não transitou em julgado, ante
a interposição de insurgência recursal (ut https://esaj.tjac.jus.br/cpopg/
show.do?processo.codigo=01000BAJ60000&processo.foro=1&processo.
numero=0717143-61.2017.8.01.0001&uuidCaptcha=sajcaptcha_03fe4f33caa9
4dbc980e508b23e7049c).
De acordo com a uníssona jurisprudência da Segunda Seção do STJ, a
sentença de encerramento da recuperação judicial, enquanto não transitada
em julgado, não tem o condão de tornar sem objeto o conflito de competência,
viabilizando, pois, em caso de configuração da usurpação da competência do
Juízo recuperacional, seu conhecimento e julgamento de mérito, do que são
exemplos os seguintes julgados:

Processual Civil. Agravo interno no conflito de competência. Juízo do Trabalho


e Juízo da Recuperação Judicial. Competência do Juízo da Recuperação Judicial

RSTJ, a. 34, (265): 279-338, Janeiro/Março 2022 327


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

para a prática de atos executórios ou constritivos que persiste até o trânsito em


julgado da sentença que declara o encerramento do processo.
1. Nos termos da jurisprudência consolidada desta Corte, é competente o
juízo universal para prosseguimento de atos de execução que incidam sobre o
patrimônio de empresa em processo falimentar ou de recuperação judicial.
2. Não compete ao juízo trabalhista interferir no acervo patrimonial da suscitante
enquanto não houver a certificação do trânsito em julgado da sentença que declara o
encerramento da sua recuperação judicial.
3. Nos estreitos limites cognitivos do conflito de competência, cabe a esta
Corte apenas declarar o juízo competente para dirimir a controvérsia. Qualquer
questão referente à reserva e/ou registro do crédito do ora agravante no Quadro
Geral de Credores deve ser apresentada ao juízo competente.
4. Agravo interno não provido.
(AgInt no CC 167.826/PA, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Segunda Seção, julgado
em 18/08/2020, DJe 21/08/2020)

Embargos de declaração. Conflito de competência. Sentença de encerramento


da recuperação judicial. Sem trânsito em julgado.
1. A jurisprudência do STJ, em casos de recebimento, no duplo efeito, do recurso
de apelação interposto contra sentença de encerramento da recuperação judicial,
tem se erigido no sentido de que, não tendo ocorrido o trânsito em julgado dessa
decisão, permanece a competência do juízo da recuperação para deliberar acerca do
patrimônio da empresa recuperanda.
2. No caso, a sentença de encerramento da recuperação judicial ainda não
transitou em julgado, encontrando-se o processo ainda ativo e com despachos
recentes do Juízo recuperacional.
3. Embargos de declaração rejeitados.
(EDcl no AgInt no CC 169.765/MG, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Segunda
Seção, julgado em 01/12/2020, DJe 10/12/2020) E ainda: AgRg no CC 142.082/DF,
Segunda Seção, DJe 19/3/2020; AgInt nos EDcl no CC 158.249/SP, Segunda Seção,
DJe 21/11/2018.

Afasta-se, assim, a alegação de perda superveniente do objeto do presente


conflito de competência.
A controvérsia inserta no presente incidente centra-se em saber se o Juízo
em que se processa a execução fiscal contra empresa em recuperação judicial, ao
rejeitar a exceção de pré-executividade e determinar o prosseguimento do feito
executivo, com a realização de atos constritivos sobre o patrimônio da executada
–, invade ou não a competência do Juízo da recuperação judicial, segundo dispõe

328
Jurisprudência da SEGUNDA SEÇÃO

o § 7º-B do art. 6º da Lei de Recuperação e Falência, com redação dada pela Lei
n. 14.112/2020.
Registre-se, de início, que a novel legislação promoveu, a seu modo, a
conciliação dos posicionamentos divergentes entre si, perfilhados por esta
Segunda Seção e pela Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, o que
ensejou a desafetação do Tema 987 pela Primeira Seção (ut REsp ) e corroborou para
tornar sem relevância o julgamento do Conflito de Competência n 144.433/
GO, afetado à Corte Especial, que veio a, inclusive, perder, posteriormente,
seu objeto, em virtude do encerramento da recuperação judicial, com decisão
transitada em julgado.
Relembre-se que, antes da vigência da Lei n. 14.112/2020, as Turmas
integrantes da Primeira Seção já adotavam a compreensão de que “a execução
fiscal não se suspende pelo deferimento da recuperação judicial, permitindo-se a
realização de atos constritivos, máxime quando evidenciada a inércia da empresa
recuperanda em adotar as medidas necessárias à suspensão da exigibilidade dos
créditos tributários, em especial, por meio do parcelamento especial disciplinado
pelo art. 10-A da Lei n. 10.522/2002, incluído pela Lei 13.043/2014” (ut REsp
1.673.421/RS, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em
17/10/2017, DJe 23/10/2017).
Citam-se, ainda: AgRg no AREsp 707.833/DF, Rel. Ministro Herman
Benjamin, Segunda Turma, julgado em 03/09/2015, DJe 10/11/2015; REsp
1.480.559/RS, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em
03/02/2015, DJe 30/03/2015.
Por sua vez, esta Segunda Seção, diversamente, em conflito de competência
entre os Juízos da recuperação judicial e da execução fiscal, reconhecia
a competência do primeiro, assentando que, embora a execução fiscal não
se suspenda, os atos de constrição e de alienação de bens voltados contra o
patrimônio social das sociedades empresárias submetem-se ao Juízo universal,
em homenagem ao princípio da conservação da empresa. A Seção de Direito
Privado do Superior Tribunal de Justiça adotou o posicionamento, ainda,
de que a edição da Lei n. 13.043/2014 – que acrescentou o art. 10-A à Lei
n. 10.522/2002 e disciplinou o parcelamento de débitos de empresas em
recuperação judicial – não descaracterizava o conflito de competência, tampouco
tem o condão de alterar o entendimento jurisprudencial destacado, conforme
decidiu a Segunda Seção por ocasião do julgamento do AgRg no CC 136.130/
SP, Relator o Ministro Raul Araújo, Relator p/ Acórdão Ministro Antonio
Carlos Ferreira, Segunda Seção, julgado em 13/05/2015, DJe 22/06/2015.

RSTJ, a. 34, (265): 279-338, Janeiro/Março 2022 329


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Com essa compreensão, destacam-se, ainda: AgInt no CC 150.414/SP, Rel.


Ministro Antonio Carlos Ferreira, Segunda Seção, julgado em 22/11/2017, DJe
04/12/2017; AgInt no CC 149.641/PR, Rel. Ministro Marco Buzzi, Segunda
Seção, julgado em 22/11/2017, DJe 28/11/2017; AgInt no CC 150.571/
MG, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Segunda Seção, julgado em
08/11/2017, DJe 20/11/2017; AgInt no CC 138.810/PE, Rel. Ministra Maria
Isabel Gallotti, Segunda Seção, julgado em 08/11/2017, DJe 23/11/2017; AgInt
no CC 49.827/RN, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Segunda Seção, julgado em
27/09/2017, DJe 29/09/2017); AgInt no CC 144.157/SP, Rel. Ministro Luis
Felipe Salomão, Segunda Seção, julgado em 26/04/2017, DJe 03/05/2017.
Como adiantado, o dissenso jurisprudencial então existente entre esta
Segunda Seção e as Turmas integrantes da Seção de Direito Público desta Corte
de Justiça acabou por se dissipar em razão da edição da Lei n. 14.112/2020, que,
a seu modo, delimitou a competência do Juízo em que se processa a execução
fiscal (a qual não se suspende pelo deferimento da recuperação judicial) para
determinar os atos de constrição judicial sobre os bens da recuperanda; e firmou
a competência do Juízo da recuperação judicial “para determinar a substituição
dos atos de constrição que recaiam sobre bens de capital essenciais à manutenção da
atividade empresarial até o encerramento da recuperação judicial”.
Confira-se a redação do § 7º-B do art. 6º da LRF, com redação dada pela
Lei n. 14.112/2020:

Art. 6º A decretação da falência ou o deferimento do processamento da


recuperação judicial implica:
I - suspensão do curso da prescrição das obrigações do devedor sujeitas ao
regime desta Lei;
II - suspensão das execuções ajuizadas contra o devedor, inclusive daquelas
dos credores particulares do sócio solidário, relativas a créditos ou obrigações
sujeitos à recuperação judicial ou à falência;
III - proibição de qualquer forma de retenção, arresto, penhora, sequestro,
busca e apreensão e constrição judicial ou extrajudicial sobre os bens do devedor,
oriunda de demandas judiciais ou extrajudiciais cujos créditos ou obrigações
sujeitem-se à recuperação judicial ou à falência.
[...]
§ 7º-B. O disposto nos incisos I, II e III do caput deste artigo não se aplica às
execuções fiscais, admitida, todavia, a competência do juízo da recuperação judicial
para determinar a substituição dos atos de constrição que recaiam sobre bens de
capital essenciais à manutenção da atividade empresarial até o encerramento da

330
Jurisprudência da SEGUNDA SEÇÃO

recuperação judicial, a qual será implementada mediante a cooperação jurisdicional,


na forma do art. 69 da Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo
Civil), observado o disposto no art. 805 do referido Código.

Em relação à extensão dessa competência, definida pela Lei n. 14.112/2020,


há um julgado recente desta Segunda Seção, em agravo interno, que reconhece a
competência do Juízo da execução fiscal, seja para determinar o prosseguimento
do feito, seja para determinar a constrição judicial de bem da recuperanda; e
delimita, de outro vértice, a competência do Juízo recuperacional para realizar
o controle sobre tais atos de constrição e de disposição sobre o patrimônio da
recuperanda, podendo, em seus dizeres, “substituí-los, mantê-los ou até mesmo
torná-los sem efeito”.
Refiro-me ao seguinte julgado (sem grifos no original):

Agravo interno no conflito de competência. Recuperação judicial. Falência.


Execução fiscal. Tramitação. Possibilidade. Ausência de suspensão. Possibilidade
de citação e penhora no Juízo da Execução Fiscal. Necessário controle dos atos de
constrição pelo Juízo da Recuperação. Agravo não provido.
1. Os atos de execução dos créditos individuais e fiscais promovidos contra
empresas falidas ou em recuperação judicial, tanto sob a égide do Decreto-Lei n.
7.661/45 quanto da Lei n. 11.101/2005, devem ser realizados pelo Juízo universal.
Inteligência do art. 76 da Lei n. 11.101/2005.
2. Tal entendimento estende-se às hipóteses em que a penhora seja anterior
à decretação da falência ou ao deferimento da recuperação judicial. Ainda que
o crédito exequendo tenha sido constituído depois do deferimento do pedido
de recuperação judicial (crédito extraconcursal), a jurisprudência desta Corte é
pacífica no sentido de que, também nesse caso, o controle dos atos de constrição
patrimonial deve prosseguir no Juízo da recuperação. Precedentes.
3. O deferimento da recuperação judicial não possui o condão de sobrestar a
execução fiscal, todavia, conquanto o prosseguimento da execução fiscal e eventuais
embargos, na forma do art. 6º, § 7º-B, da Lei 11.101/2005, com redação dada pela
Lei 14.112, de 2020, deva se dar perante o juízo federal competente - ao qual caberão
todos os atos processuais, inclusive a ordem de citação e penhora -, o controle sobre
atos constritivos contra o patrimônio da recuperanda é de competência do Juízo da
recuperação judicial, tendo em vista o princípio basilar da preservação da empresa.
4. Em outros termos, o Juízo da execução fiscal poderá determinar a constrição
bens e valores da recuperanda, todavia, o controle de tais atos é incumbência
exclusiva do Juízo da recuperação, o qual poderá substituí-los, mantê-los ou, até
mesmo torná-los sem efeito, tudo buscando o soerguimento da empresa, haja vista a
sua elevada função social.

RSTJ, a. 34, (265): 279-338, Janeiro/Março 2022 331


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

5. Agravo interno não provido.


(AgInt no CC 177.164/SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Segunda Seção,
julgado em 31/08/2021, DJe 09/09/2021)

Ainda que se possa reputar delimitada, nesses termos, a extensão da


competência dos Juízos da execução fiscal e da recuperação judicial a respeito
dos atos constritivos determinados no feito executivo fiscal, tem-se, todavia, não
se encontrar bem evidenciado, até porque a lei não o explicita, o modo de como estas
competências se operacionalizam na prática, de suma relevância à caracterização do
conflito positivo de competência perante esta Corte de Justiça.
É justamente nesse ponto – em relação ao qual já se antevê uma tênue
dispersão nas decisões monocráticas que se seguiram após o referido julgado e
que motivou a submissão da presente questão a este Colegiado – que considero
ser necessário um direcionamento seguro por parte desta Corte de Justiça, para
que o conflito de competência perante este Superior Tribunal não seja mais
utilizado, inadvertidamente, como mero subterfúgio para se sobrestar a execução
fiscal (ao arrepio da lei), antes de qualquer deliberação do Juízo da recuperação
judicial a respeito da constrição judicial realizada, e, principalmente, antes de uma
decisão efetivamente proferida pelo Juízo da execução fiscal que se oponha à deliberação
do Juízo da recuperação judicial acerca da constrição judicial.
Insta ressaltar, no ponto, que a Lei n. 14.112/2020, embora tenha
promovido, a seu modo, a conciliação dos entendimentos então perfilhados
pelas Turmas da Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça e por esta
Segunda Seção, não deixou de representar uma alteração na compreensão então
adotada por este Colegiado quanto à caracterização dos conflitos de competência.
Bastava, pois, à caracterização do conflito perante esta Corte de Justiça,
que a parte interessada mostrasse a mera “pretensão constritiva direcionada ao
patrimônio da empresa em recuperação judicial” (AgInt no CC 172.416/SC, Rel.
Ministro Antonio Carlos Ferreira, Segunda Seção, julgado em 1º/12/2020, DJe
09/12/2020). Nessa medida, era suficiente à caracterização do conflito, o mero
prosseguimento do feito executivo ou a determinação de constrição judicial,
reconhecendo-se, pois, a prevalência do Juízo da recuperação judicial para
deliberar sobre qualquer ato que se voltasse contra o patrimônio da recuperanda.
O tratamento legal dado pelo art. 6º, § 7º-B, da Lei 11.101/2005 não
autoriza mais reputar configurado conflito de competência perante esta Corte
de Justiça em virtude da decisão proferida pelo Juízo da execução fiscal que, no
exercício de sua competência, determine a constrição judicial.

332
Jurisprudência da SEGUNDA SEÇÃO

Efetivamente, a partir da vigência da Lei n. 14.112/2020, com aplicação


aos processos em trâmite (afinal se trata de regra processual que cuida de
questão afeta à competência), o Juízo da execução fiscal, ao determinar o
prosseguimento do feito executivo ou, principalmente, a constrição judicial de
bem da recuperanda, não adentra indevidamente na competência do Juízo da
recuperação judicial, não ficando caracterizado, até esse momento, nenhum
conflito de competência perante esta Corte de Justiça.
Com a vênia daqueles que entendem de modo diverso, não se pode mais
reputar configurado conflito de competência perante esta Corte de Justiça pelo
só fato de o Juízo da recuperação ainda não ter deliberado sobre a constrição
judicial, em razão justamente de não ter a questão sido, até então, a ele submetida.
Com essa diretriz – da qual ora se dissuade –, citam-se, na mesma senda do
referido AgInt no CC n. 177.164/SP, as seguintes decisões monocráticas: EDcl no
CC 172.258/SP, Relator Ministro Marco Buzzi, de 1º/10/2021; CC 182.902/SC,
Relatora Ministra Nancy Andrighi [liminar], DJe 21/9/2021; e CC 181.431/SP,
Relator Ministro Luis Felipe Salomão, DJe 27/09/2021, com destaque para esta
última que reputou caracterizado o conflito de competência perante esta Corte
de Justiça em razão da não submissão, até aquele momento, do ato constritivo ao
Juízo da recuperação judicial, nestes termos (sem grifos no original):

[...]
Em outros termos, o Juízo da execução fiscal poderá determinar a constrição
de bens e valores da recuperanda, todavia, o controle de tais atos é incumbência
exclusiva do Juízo da recuperação, o qual poderá substituí-los, mantê-los ou, até
mesmo torná-los sem efeito, tudo buscando o soerguimento da empresa, haja
vista a sua elevada função social.
3. No caso sob análise, evidencia-se o conflito de competência entre o Juízo
de Direito da 2ª Vara Cível de Bebedouro - SP, que deferiu o cujo pedido de
recuperação judicial em 16/02/2018, o qual encontra-se em tramitação (fls. 224-226)
e o Juízo Federal da 1ª Vara de Ribeirão Preto - SJ/SP que determinou a constrição
de valores de titularidade da suscitante com a finalidade de quitar o débito da
execução fiscal n. 5008681- 46.2018.4.03.6102 (fl. 06), sem que tal constrição fosse
submetida ao crivo do Juízo da recuperação.
Como afirmado acima, as execuções fiscais não se suspendem com o
deferimento da recuperação judicial, nada obstante há necessidade de análise
dos constritivos pelo Juízo da recuperação.

Nessa linha, cabe destacar, ainda, decisão monocrática, em situação similar


à tratada nos autos, em que se conheceu do conflito de competência “para

RSTJ, a. 34, (265): 279-338, Janeiro/Março 2022 333


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

estabelecer que os atos de alienação ou de constrição que possam comprometer


o cumprimento do plano de reorganização da empresa, somente serão efetivados
após a anuência do Juízo da recuperação judicial, sem prejuízo do prosseguimento
da execução fiscal objeto da controvérsia, em outros aspectos” (CC 178.230/AL,
Relator Ministro Raul Araújo, DJe 30/09/2021).
Faz-se a menção aos julgados monocráticos apenas para evidenciar a
noticiada dispersão das decisões desta Corte Superior, que, embora não divirjam
quanto à extensão da competência propriamente dita dos Juízos da execução
fiscal e da recuperação judicial, há um claro dissenso a respeito do modo como
tais competências se operacionalizam na prática, questão absolutamente recente.
Diversamente, permissa venia, tem-se por necessário à configuração do
conflito de competência perante esta Corte de Justiça que o Juízo da execução
fiscal se oponha, concretamente, à superveniente deliberação do Juízo da recuperação
judicial a respeito da constrição judicial, determinando a substituição do bem
constrito ou tornando-a sem efeito, ou acerca da essencialidade do bem de
capital constrito.
A submissão da constrição judicial ao Juízo da recuperação judicial, para
que este promova um juízo de controle sobre o ato constritivo, pode ser feita
naturalmente, de ofício, pelo Juízo da execução fiscal, em atenção à propugnada
cooperação entre os Juízos.
Caso o Juízo da execução fiscal assim não proceda, tem-se de todo
prematuro falar-se em configuração de conflito de competência perante esta
Corte de Justiça, a pretexto, em verdade, de obter o sobrestamento da execução
fiscal liminarmente. Não há, por ora, nesse quadro, nenhuma usurpação da
competência, a ensejar a caracterização de conflito perante esta Corte de Justiça.
A inação do Juízo da execução fiscal – como um “não ato” que é – não pode,
por si, ser considerada idônea a fustigar a competência do Juízo da recuperação
judicial ainda nem sequer exercida.
No ponto, anota-se que o § 7ª-B do art. 6º da Lei n. 11.101/2005 apenas
faz remissão ao art. 69 do CPC/2015, cuja redação estipula que a cooperação
judicial prescinde de forma específica. Em seu § 2º, inciso IV, estabelece-se que “os
atos concertados entre os juízos cooperantes poderão consistir, além de outros, no
estabelecimento de procedimento para a efetivação de medidas e providências
para recuperação e preservação de empresas”.
Naturalmente, a cooperação judicial pode se dar também por provocação
das partes interessadas.

334
Jurisprudência da SEGUNDA SEÇÃO

Reproduz-se, a propósito, comentário da doutrina especializada a respeito


da modificação legislativa em comento (sem grifos no original):

A Lei faz ressalva expressa a respeito das aplicações dos incs. I, II e III também às
execuções fiscais, que têm seu trâmite garantido no curso da recuperação judicial.
Todavia, da mesma forma que em relação à cobrança de créditos não sujeitos,
caso seja determinada a restrição sobre bem essencial, fica assegurada a
substituição de tais bens por outros não essenciais, de valor equivalente.
Dessa forma, fica garantida a execução fiscal sem inviabilizar a recuperação
judicial da empresa devedora. Tanto no disposto no § 7º-A quanto no § 7º-B existe
disposição sobre o princípio da cooperação judicial previsto no art. 69 do CPC/2015,
que disciplina que os órgãos do Poder Judiciário devem, sempre que solicitados,
cooperar em relação a diversos atos do processo.
(Costa, Daniel Carnio. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência:
Lei 11.101, de 09 de fevereiro de 2005 / Daniel Carnio Costa, Alexandre Correa
Nasser de Melo, 2. ed., Curitiba: Juruá, 2021, página 97)

Assim, na hipótese de o Juízo da execução fiscal não submeter o ato


constritivo ao Juízo da recuperação judicial, deve a recuperanda instar o Juízo
da execução fiscal a fazê-lo ou levar diretamente a questão ao Juízo da recuperação
judicial, que deverá exercer seu juízo de controle sobre o ato constritivo, se tiver
elementos para tanto, valendo-se, de igual modo, se reputar necessário, da
cooperação judicial preconizada no art. 69 do CPC/2015.
A caracterização de conflito de competência, como dito, pressupõe a materialização
da oposição concreta do Juízo da execução fiscal à efetiva deliberação do Juízo da
recuperação judicial a respeito do ato constritivo.
Essa linha de decidir, tem sido adotada por este subscritor (ut CC
183.127/AC, DJe 1º/10/2021; CC 182.052/PE, DJe 1º/10/2021, entre outros).
Citam-se, da lavra de outros Ministros, com essa diretriz, as seguintes decisões
monocráticas: CC 182.959/GO, Relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, DJe
30/09/2021; CC 182.790/SC, Relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, DJe
30/09/2021; CC 182.647/RN, Relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, DJe
23/09/2021 (entre outras), com destaque para o último decisum, em que S. Exa
fez constar de seu teor estas considerações:

[...]
Desse modo, de acordo com a nova sistemática legal, a atuação do juízo da
recuperação judicial ficou restrita ao juízo de essencialidade do bem constrito e
ao controle e “determinação de substituição dos atos de constrição que recaiam

RSTJ, a. 34, (265): 279-338, Janeiro/Março 2022 335


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

sobre bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial, até o


encerramento da recuperação” (CC 181.127/MG, relator Ministro Marco Aurélio
Belizze, 9.9.2021), o que será viabilizado por meio da cooperação judicial prevista no
artigo. 69 do CPC.
Nesse novo panorama, portanto, a configuração de conflito de competência
entre o Juízo Federal, condutor da execução fiscal, e o Juízo da recuperação judicial,
somente se dará caso seja efetiva a constrição de algum bem ou valor da recuperanda
pelo Juízo da execução, e o Juízo universal, sendo informado disso, reconheça, por
decisão judicial, a essencialidade do bem ou valor à manutenção da atividade
empresarial durante o curso da recuperação e, determinando ele a substituição do
bem, encontre oposição ou resistência do Juízo da execução.
Assim, é de rigor que seja notificado o Juízo universal para que delibere
sobre os atos constritivos, conforme preceitua o art. 6º, § 7º-B da Lei 11.101/05,
e, somente se houver resistência, pelo Juízo da execução, de cumprimento das
determinações do Juízo da recuperação, é que se configurará o conflito, sendo
ônus da parte suscitante trazer aos autos as decisões que comprovem o contexto
exposto.

Efetivamente, o conflito positivo de competência afigura-se caracterizado,


não apenas quando dois ou mais Juízos, de esferas diversas, declaram-se
simultaneamente competentes para julgar a mesma causa, mas também quando,
sobre o mesmo objeto, duas ou mais autoridades judiciárias tecem deliberações
excludentes entre si.
A existência do conflito de competência depende, portanto, conforme
o inciso I do art. 66 do CPC, que é o pertinente para o caso concreto, da
demonstração de que o Juízo da execução fiscal tenha adentrado, indevidamente,
na matéria cuja competência é atribuída, por lei, ao Juízo da recuperação judicial.
É preciso, pois, à caracterização de conflito de competência perante esta Corte
de Justiça, que o Juízo da execução fiscal, por meio de decisão judicial, se oponha
concretamente à deliberação do Juízo da recuperação judicial a respeito da constrição
judicial, determinando a substituição do bem constrito ou tornando-a sem efeito, ou
acerca da essencialidade do bem de capital constrito.
No particular, não fica configurado o conflito de competência, a ensejar, a
intervenção desta Corte de Justiça, sobretudo porque o Juízo Federal suscitado,
até o presente momento, exerceu sua competência, nos estritos termos legais.
Na espécie, o Juízo Federal da 3ª Vara Cível e Criminal do Acre – SJ/
AC, no bojo da Execução Fiscal n. 1000500-07.2020.4.01.3000, determinou a
citação da parte executada para pagar a dívida com os juros e multa de mora e

336
Jurisprudência da SEGUNDA SEÇÃO

encargos indicados na Certidão de Dívida Ativa, ou garantir a execução, sob pena


de penhora de tantos bens quantos bastem à satisfação da dívida (art. 7º e seguintes
da Lei n. 6.830/1980, no prazo de 5 (cinco) dias (e-STJ, fls. 155).
Esta decisão, ensejou a arguição de exceção de pré-executividade, sob o
exclusivo argumento de que o Juízo Federal seria absolutamente incompetente
para determinar atos de constrição, devendo a pretensão constritiva ser
submetida ao Juízo universal.
O Juízo Federal da 3ª Vara Cível e Criminal do Acre – SJ/AC rejeitou
a exceção de pré-executividade, com esteio no § 7º-B do art. 6º da Lei n.
11.101/2005, reconhecendo que o deferimento do processamento da recuperação
judicial não sobresta a execução fiscal, tampouco impede a determinação de ato
constritivo por este Juízo, cabendo, posteriormente, ao Juízo da recuperação
judicial determinar eventualmente a substituição dos atos de constrição (e-STJ,
fl. 34):

Sobre o pedido de suspensão do feito e da impossibilidade do juízo da


execução fiscal praticar atos constritivos, a Lei de Falências, já com a nova redação
trazida pela Lei n. 14.112/2020, dispõe:
“Art. 6º
(…) § 7º-B.
[...]
Como se vê, o dispositivo não proíbe a prática de atos constritivos pelo Juízo da
execução fiscal, permitindo, todavia, eventual substituição dos atos de constrição
por parte do juízo universal.
Quanto à afetação da matéria no tema n. 987, o STJ, em 13/04/2021,
desafetou-o, julgando-o prejudicado em razão das alterações promovidas na Lei
11.101/2005, por meio da Lei 14.112/2020.
Portanto, rejeito a exceção de pré-executividade.

Esta decisão, como se constata, teria, segundo defende a parte suscitante,


adentrado indevidamente na competência do Juízo da recuperação judicial.
Nos termos da fundamentação desenvolvida ao longo deste voto, o presente
incidente mostra-se absolutamente prematuro, não ficando configurado conflito
de competência.
A decisão, objeto deste conflito de competência, determinou simplesmente
o prosseguimento da execução fiscal, a autorizar, oportunamente, a constrição

RSTJ, a. 34, (265): 279-338, Janeiro/Março 2022 337


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

sobre bens da executada/recuperanda, providências que se inserem,


indiscutivelmente, na competência do Juízo Federal suscitado.
Na espécie, nem sequer há, por ora, decisão de constrição judicial
propriamente. Logo, tampouco o Juízo da recuperação exerceu, até este
momento, o juízo de controle sobre a vindoura constrição, o que será viabilizado
por meio da cooperação entre os Juízos envolvidos, oficiosamente, ou por provação da
parte interessada, no caso a recuperanda.
Registre-se que, após o exercício de tais competências, a caracterização de
conflito perante esta Corte de Justiça somente se fará presente se o Juízo da execução
fiscal vier, concretamente, a se opor à deliberação do Juízo da recuperação
judicial a respeito da constrição do bem, substituindo-o ou tornando-a sem
efeito, ou acerca da essencialidade do bem de capital constrito, o que, por ora,
nem se cogita.
Por fim, assinala-se que o fato noticiado pela Fazenda Pública a respeito
do conteúdo da sentença de encerramento da recuperação judicial, em que o
Juízo recuperacional assinala a possibilidade de prosseguimento das execuções
fiscais perante os respectivos juízos competentes (em virtude justamente do
encerramento da recuperação), apenas corrobora a compreensão de não ter
havido, na hipótese em exame, em momento algum, configurado conflito de
competência entre os Juízos suscitados.
Em arremate, na esteira dos fundamentos acima delineados, não conheço
do conflito de competência e revogo a liminar anteriormente deferida pela
Presidência do Superior Tribunal de Justiça.
É o voto.

338
Terceira Turma
RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA N. 66.683-MG
(2021/0174707-0)

Relatora: Ministra Nancy Andrighi


Recorrente: B N R (Menor)
Repr. por: C M da S N
Recorrente: G N R
Advogados: Luciane Wagner - MG062571
Maria Isabella Rodrigues Gonçalves - MG088214
Recorrido: Â N R
Advogados: Alessandra Corrêa Pardini - MG065651
Suellen Maria de Azevedo - MG126823
Raquel Silva Nascimento - MG193787

EMENTA

Civil. Processual Civil. Recurso ordinário constitucional em


mandado de segurança. Cabimento do writ, pelo credor, contra
decisão que concede a ordem de habeas corpus favorável ao devedor.
Possibilidade. Inexistência de contraditório ou intervenção do credor
no habeas corpus. Restrições cognitivas que justificam o cabimento, sob
pena de vulnerabilidade processual ao credor e ofensa à paridade de
armas. Acórdão que obstou a prisão do devedor que se funda apenas na
percepção pessoal de suficiência dos valores depositados e na quitação
parcial da dívida. Manifesta ilegalidade e teratologia. Critérios para
definição do valor do pensionamento definidos em anterior ação, na
qual foram consideradas as possibilidades do devedor e as necessidades
do credor. Reexame dessas circunstâncias ou consideração de fatos
supervenientes em habeas corpus. Impossibilidade. Necessidade de
ação revisional ou exoneratória, sob o crivo do contraditório e da
ampla defesa. Valor devido nominalmente elevado. Irrelevância.
Particularidades da hipótese. Família com elevado padrão social e
econômico. Valor que se acumulou por culpa exclusiva do devedor.
Modificação judicial do rito eleito pelo credor para penhora e
expropriação. Impossibilidade. Preenchimento dos requisitos legais.
Segurança concedida.
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

1- O propósito recursal é definir se é teratológico ou


manifestamente ilegal o acórdão que, em habeas corpus impetrado
pelo devedor de alimentos, concede a ordem ao fundamento de que
os depósitos realizados no curso da execução, em razão de seu elevado
valor nominal, comprometeriam a urgência e contemporaneidade dos
alimentos cobrados pelo rito da prisão.
2- É cabível mandado de segurança, impetrado pelo credor de
alimentos, contra o ato judicial que, em habeas corpus impetrado pelo
devedor, concede a ordem para obstar o cumprimento da ordem de
prisão civil decretada com fundamento nos arts. 528 ou 911, ambos
do CPC/15.
3- O excepcional cabimento do writ contra ato judicial na
hipótese se justifica porque, no habeas corpus impetrado pelo devedor,
não há a obrigatória integração do polo passivo pelo credor, tampouco
lhe é deferido, em regra, a admissão como terceiro e, mesmo nas
pontuais situações em que é admitido, apenas lhe é facultado interpor
recursos excepcionais após a concessão da ordem, cuja cognição é
constitucionalmente limitada.
4- Impedir a impugnação da decisão que concede habeas corpus
pela via mandamental implicaria em colocar o credor de alimentos,
materialmente vulnerável na relação jurídica alimentar, também em
situação de vulnerabilidade processual, o que não se coaduna com o
princípio da paridade de armas.
5- Na hipótese, o acórdão que concedeu a ordem de habeas corpus
em favor do devedor de alimentos e que fora impugnado pelo mandado
de segurança impetrado pelas credoras está eivado de manifesta
ilegalidade e teratologia, pois fundado na exclusiva percepção pessoal
de que os valores depositados pelo devedor, correspondentes a menos
de 30% do valor devido, seriam suficientes para suprir as necessidades
das credoras dos alimentos.
6- As circunstâncias fáticas sopesadas por ocasião do arbitramento
dos alimentos não são, como regra, reexamináveis em habeas corpus,
de modo que a prova acerca da superveniente modificação das
possibilidades do devedor ou das necessidades do credor devem ser
produzidas, sob o crivo do amplo contraditório e da ampla defesa, em
ação revisional ou exoneratória de alimentos.

342
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

7- Hipótese em que, ademais, as credoras e o devedor possuem


elevado padrão social e econômico, conforme atesta a prova documental
pré-constituída, e o valor da dívida se avolumou por culpa exclusiva do
devedor de alimentos que, além de inadimplente, ocultou-se para não
receber a citação para pagamento dos alimentos por mais de 10 meses
e somente efetuou o pagamento de parte dívida após a expedição do
mandado de prisão.
8- A execução dos alimentos sob o rito da prisão, desde que
presentes os seus pressupostos, é de livre escolha do credor, de modo que
não pode o Poder Judiciário, ressalvadas hipóteses excepcionalíssimas,
imiscuir-se na opção por ele manifestada e converter a execução sob o
rito da prisão para o rito da penhora e expropriação, sob pena de grave
ofensa ao art. 528, caput, do CPC/15.
9- Recurso ordinário constitucional conhecido e provido, para
conceder a segurança e restabelecer a decisão que havia autorizado a
prisão civil do devedor de alimentos.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira


Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas
taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, conhecer e dar provimento
ao recurso ordinário em mandado de segurança nos termos do voto da Sra.
Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio
Bellizze e Moura Ribeiro votaram com a Sra. Ministra Relatora.
Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino.
Brasília (DF), 08 de março de 2022 (data do julgamento).
Ministra Nancy Andrighi, Relatora

DJe 11.3.2022

RELATÓRIO

A Sra. Ministra Nancy Andrighi: Cuida-se de recurso ordinário em


mandado de segurança interposto por G N R e B N R em face de acórdão
proferido pelo TJ/MG que denegou a segurança provimento ao agravo interno
por elas interposto em face da denegou a ordem requerida.

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 343


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Ato coator: acórdão que, por maioria de votos, concedeu a ordem de habeas
corpus em favor do recorrido, A N R, devedor dos alimentos às recorrentes, ao
fundamento de que o depósito de três parcelas (que totalizavam R$ 30.132,14)
e o adimplemento das demais após o mês de outubro/2018 seria suficiente para
a subsistência das credoras, o que retiraria a urgência e contemporaneidade
dos alimentos e, consequentemente, vedaria a possibilidade de uso da medida
coercitiva da prisão civil (fls. 24/31, e-STJ).
Mandado de segurança: alega-se, em síntese, que o ato coator, acórdão que
concedeu a ordem de habeas corpus em favor do devedor de alimentos, seria
manifestamente ilegal e teratológica, na medida em que vedou a aplicação da
medida coercitiva da prisão civil em dívida de alimentos atual, contrariando os
arts. 528, caput, e 911, caput, ambos do CPC/15 (fls. 1/16, e-STJ).
Acórdão TJ/MG: denegou a ordem pretendida, nos termos do acórdão de
fls. 292/303 (e-STJ), que ficou assim ementado:

Ementa: Mandado de segurança. Preliminar. Ilegitimidade passiva. Presidente


de Orgão Colegiado. Inocorrência. Mérito. Prisão civil. Devedor de alimentos.
Habeas corpus. Ordem de soltura. Teratologia. Abuso ou ilegalidade. Não
vislumbrados. Decisão legal. Segurança denegada.
Nos termos da jurisprudência dos tribunais superiores, o presidente de órgão
colegiado, na condição de representante externo do órgão, tem legitimidade
passiva para responder em juízo pelas decisões do órgão colegiado.
Não cabe a concessão da ordem em mandado de segurança interposto contra
decisão proferida em sede de habeas corpus quando não se identificam sequer
indícios de teratologia, ilegalidade ou abuso de poder na decisão questionada.

Recurso ordinário: as recorrentes sustentam, em síntese, as mesmas teses


desenvolvidas na petição inicial do mandado de segurança (fls. 487/504, e-STJ).
Ministério Público Federal: opina pelo desprovimento do recurso ordinário
constitucional (fls. 520/525, e-STJ).
É o relatório.

VOTO

A Sra. Ministra Nancy Andrighi: O propósito recursal é definir se é


teratológico ou manifestamente ilegal o acórdão que, em habeas corpus impetrado
pelo devedor de alimentos, concede a ordem ao fundamento de que os depósitos
realizados no curso da execução, em razão de seu elevado valor nominal,

344
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

comprometeriam a urgência e contemporaneidade dos alimentos cobrados pelo


rito da prisão.

Impossibilidade de vedação à prisão civil como técnica coercitiva. Alegada


violação aos arts. 528, caput, e 911, caput, ambos do CPC/15.

01) Inicialmente, é importante reafirmar o cabimento de mandado de


segurança, impetrado pelo credor de alimentos, contra o ato judicial que, em
habeas corpus impetrado pelo devedor de alimentos, concede a ordem para obstar
o cumprimento da ordem de prisão civil decretada com fundamento nos arts.
528 ou 911, ambos do CPC/15.
02) Com efeito, dado que o habeas corpus é instrumento constitucional
exclusivamente voltado à tutela da liberdade (na hipótese, do devedor de
alimentos), não há a obrigatória integração do polo passivo pelo credor dos
alimentos.
03) Ademais, anote-se que tampouco é deferido ao credor dos alimentos,
em regra, a sua admissão como terceiro e, mesmo nas pontuais situações em é
deferido o seu ingresso, somente poderá impugnar o eventual acórdão concessivo
da ordem, como terceiro prejudicado, por intermédio de recurso especial ou
extraordinário, que possuem profundas limitações constitucionais de cognição.
04) Diante desse cenário, o credor de alimentos, materialmente vulnerável
na relação jurídica alimentar, é colocado em uma indiscutível situação de
vulnerabilidade processual, na medida em que vê o devedor impetrar ação
constitucional com o propósito de se esquivar de uma medida coercitiva pleiteada
pelo credor sem que lhe seja facultado exercer o adequado contraditório, naquele
processo, sobre as alegações deduzidas pelo devedor.
05) Assim, em atenção ao princípio da paridade de armas, há de ser facultada
ao credor de alimentos a possibilidade de impetração de mandado de segurança
contra a decisão que suspenda a eficácia da decretação da prisão civil do devedor de
alimentos, respeitando-se, evidentemente, os limites cognitivos próprios da ação
mandamental.
06) Superado essa questão, é preciso investigar se o acórdão proferido pelo
TJ/MG naquele habeas corpus reveste-se de teratologia ou manifesta ilegalidade.
A ordem foi concedida sob os seguintes fundamentos:

Em uma nova e detida análise detalhada dos autos, tenho que a concessão da
ordem de Habeas Corpus é medida que se impõe, pelos motivos a seguir expostos.

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 345


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Inicialmente, registra-se ser inconteste que o paciente deve, a título de


pensão alimentícia, o valor de R$128.039,25 (cento e vinte e oito mil e trinta e
nove reais e vinte e cinco centavos), referente aos meses de novembro/2017 a
novembro/2018.
Não obstante, observa-se que o paciente efetuado o depósito de R$30.132,14
(trinta mil, cento e trinta e dois reais e quatorze centavos), relativo às três últimas
parcelas vencidas, conforme comprovante de ordem n. 05, sendo este um
valor que julgo suficiente para auxiliar, em caráter de urgência, nas despesas e
necessidades das menores.
Ademais, de acordo com a petição acostada à ordem n. 52, o paciente afirma
que vem realizado o pagamento integral da pensão alimentícia desde o mês de
outubro/2018, perfazendo o montante de R$90.012,44 (noventa mil e doze reais e
quarenta e quatro centavos).
Nesse espeque, embora seja inegável a existência da dívida pretérita, registra-
se que a verba há muito perdeu seu caráter alimentar, na medida em que as
exequentes pleiteiam a cobrança de valores devidos de novembro de 2017 a
novembro de 2018.
Diante deste cenário, e tendo em vista que o paciente se propõe a discutir
a situação em que se encontra face às necessidades das alimentandas, me
parece excessivo o uso da prisão, mormente considerando a ausência de
contemporaneidade da dívida reivindicada.

07) A esse entendimento se contrapôs o voto vencido:

Peço vênia ao eminente Relator para divergir de seu posicionamento.


O habeas corpus só se mostra possível quando alguém se vê ameaçado, em
sua liberdade, e em seu direito de ir e vir, por ato arbitrário e ilegal da autoridade.
No caso, a impetrante não descreve uma situação sequer, motivadora do
pedido.
Na verdade, tudo o que está descrito na inicial diz respeito a ação de execução.
Se há justificativa para o não pagamento ou para a não prisão, isso é questão a ser
resolvida na execução, sendo certo que qualquer decisão ali lançada é atacável
por recurso, havendo previsão de possibilidade de atribuição de efeito suspensivo
ou de deferimento de liminares, com a mesma urgência e eficácia do habeas
corpus.
Destaque-se, a súmula de número 60, das Câmaras Criminais deste egrégio
Tribunal, então competentes para feito desta natureza, a confirmar que o habeas
corpus não constitui meio apropriado para discutir questões próprias do processo
civil, ali solucionáveis, como dito, por adequados recursos.

346
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

Na verdade, a medida agora escolhida constitui imprópria tentativa de


transformar o habeas corpus em sucedâneo de recurso.

08) Para melhor contextualizar a questão, anote-se que as credoras dos


alimentos, filhas do devedor (uma delas ainda civilmente incapaz), instauraram
cumprimento de sentença da obrigação de prestar alimentos em 16/11/2017
(fls. 33/35), cobrando diferença entre o valor devido (R$ 11.244,00) e o valor
depositado pelo devedor (R$ 1.500,00), bem como as parcelas que se vencerem
no curso da execução.
09) O devedor de alimentos apenas foi citado em 28/09/2018, mais de
10 meses após o início do cumprimento, por hora certa diante da suspeita de
ocultação certificada pelo Sr. Oficial de Justiça (fl. 37, e-STJ).
10) Em decisão de fls. 38/41 (e-STJ), o D. Juízo da 9ª Vara de Família da
Comarca de Belo Horizonte rejeitou a justificativa apresentada pelo devedor
(dificuldade financeira) e decretou-lhe a prisão pelo período de 30 dias.
11) Apenas 05 dias após o decreto de prisão, o devedor efetuou o imediato
pagamento do valor R$ 30.132,44 (referente às três parcelas anteriores ao
decreto de prisão, não as anteriores ao início da execução), tendo o juízo mantido
a prisão civil justamente por verificar que o valor depositado não correspondia
sequer a 30% do débito (fls. 45/46, e-STJ).
12) Dessa decisão, houve a interposição de agravo de instrumento pelo
devedor (fls. 47/58, e-STJ), ao qual não foi atribuído efeito suspensivo (fls.
59/60, e-STJ). No plantão judiciário – e sem fazer referência ao anterior agravo
–, o devedor de alimentos impetrou habeas corpus (fls. 61/69, e-STJ), cuja
liminar foi indeferida (fls. 70/71, e-STJ).
13) Ato contínuo, foi impetrado habeas corpus nesta Corte (fls. 72/83,
e-STJ), autuado sob o n. HC 487.154/MG, cuja petição inicial foi liminarmente
indeferida por decisão desta Relatora publicada no DJe de 06/02/2019 (fls.
101/104, e-STJ), sob os seguintes fundamentos:

Em primeiro lugar, destaque-se que a jurisprudência desta Corte se firmou no


sentido de ser incabível habeas corpus impetrado contra decisão denegatória de
liminar proferida pelo Relator no Tribunal de origem, sem que a questão tenha
sido apreciada pelo órgão colegiado, nos termos da Súmula 691/STF. Neste
sentido: AgRg no Habeas Corpus n. 296.770/SP, 3ª Turma, DJe 15/08/2014 e HC n.
182.207/SP, 3ª Turma, DJe 29/06/2011.
Ainda que se pudesse superar o óbice acima mencionado, fato é que a
jurisprudência desta Corte se consolidou no sentido de que é inviável a apreciação

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 347


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

de fatos e provas relacionadas à capacidade econômica ou financeira do devedor


dos alimentos pela via do habeas corpus, cuja finalidade precípua é examinar a
existência de flagrante ilegalidade ou teratologia na ordem de prisão do devedor.
Nesse sentido: HC 403.272/RO, 3ª Turma, DJe 04/10/2017; RHC 77.614/SP, 3ª
Turma, DJe 15/12/2016 e HC 363.573/SP, 3ª Turma, DJe 25/10/2016.
Além disso, a jurisprudência desta Corte também consignou que o pagamento
apenas parcial das parcelas vencidas no curso da execução é insuficiente, por si
só, para impedir a prisão civil do alimentante. A esse respeito: HC 405.934/SP, 3ª
Turma, DJe 31/08/2017, HC 374.764/SP, 3ª Turma, DJe 18/04/2017 e RHC 77.614/
SP, 3ª Turma, DJe 15/12/2016.
Especificamente no que se refere às razões de decidir adotadas na decisão
de fls. 184/187 (e-STJ), é preciso destacar, de antemão, que a hipótese em
exame não se relaciona com alimentos devidos a ex-cônjuge, nem tampouco
o valor é devido a pessoa capaz e maior, tornando evidentemente inaplicável
os paradigmas citados na decisão que concedeu provisoriamente a ordem (HC
392.521/SP, 3ª Turma, DJe 01/08/2017 e Liminar em HC 413.344/SP, 4ª Turma, DJe
05/09/2017).
Na verdade, verifica-se que as alimentadas são menores, a dívida é
relativamente recente (iniciou-se em Novembro/2017), possuindo, pois,
presunção de atualidade e de urgência que não foram afastadas pelas alegações
deduzidas pela impetrante.
De outro lado, não se pode olvidar que a dívida atingiu valor absoluto de
grande monta - R$ 128.000,00 - em virtude, exclusivamente, dos sucessivos
inadimplementos do devedor, que, a despeito de alegar modificação de sua
condição econômica, não obteve tutela antecipatória em ação revisional de
alimentos que afirma ter ajuizado no ano de 2015, o que sugere, em princípio,
ausência de verossimilhança e de plausibilidade de suas alegações.
Finalmente, embora o valor parcialmente quitado pelo devedor - pouco
mais de R$ 30.000,00, depositado após a ordem de prisão - impressione em
números absolutos, não se pode olvidar que ele não corresponde sequer a
30% da dívida, que o núcleo familiar possui um diferenciado padrão de vida (o
que, aliás, explica a fixação dos alimentos em 12 salários mínimos mensais) e
as credoras, em pedido de reconsideração de fls. 93/181 (e-STJ), apresentaram
elementos plausíveis no sentido de que se contraiu dívida de grande valor com
o estabelecimento de ensino, o que, inclusive, impediria a rematrícula de ambas
para o corrente ano.

14) Some-se a isso, ademais, o fato de que a declaração de imposto de


renda do devedor de alimentos (fls. 122/129, e-STJ) atesta, ictu oculi, que o
devedor de alimentos é empresário e possui patrimônio bastante considerável (mais
de R$ 1.500.000,00 – um milhão e meio de reais).

348
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

15) Diante desse cenário, salta aos olhos a flagrante ilegalidade e teratologia
do acórdão do TJ/MG que concedeu a ordem de habeas corpus em favor do
devedor de alimentos, eis que fundamentado, essencialmente, na perspectiva
pessoal de que o valor depositado pelo devedor seria suf iciente para custear as
necessidades das credoras.
16) Ocorre que tais circunstâncias fáticas foram evidentemente sopesadas
por ocasião do arbitramento dos alimentos, de modo que eventuais modificações
da capacidade contributiva do devedor ou das necessidades das credoras devem
ser examinadas, em regra, sob o crivo do amplo contraditório e da ampla defesa,
em ação revisional ou exoneratória de alimentos.
17) Acrescente-se que o valor nominal do pensionamento, conquanto
possa ser visto, em um primeiro momento, como excessivo, não prescinde
do exame das circunstâncias específicas que justificaram seu arbitramento,
especialmente porque, na hipótese, trata-se de entidade familiar de elevado padrão
social e econômico, o que, por consequência, acarreta o natural incremento das
necessidades das credores para a manutenção de determinado padrão de vida.
18) Anote-se, ademais, que a dívida se avolumou por culpa exclusiva do
devedor, que deixou de depositar mensalmente o valor dos alimentos que
havia sido judicialmente arbitrado e se ocultou, sistematicamente, da citação
na execução por longo período, somente vindo a fazê-lo, e apenas parcialmente,
quando estava na iminência de sofrer constrição em sua liberdade de locomoção.
19) Finalmente, não se pode olvidar que a execução dos alimentos sob
o rito da prisão, desde que presentes os seus pressupostos, é de livre escolha
das credoras, de modo que não pode o Poder Judiciário, ressalvadas hipóteses
excepcionalíssimas, imiscuir-se na opção por elas manifestada e converter a
execução sob o rito da prisão para o rito da penhora e expropriação, sob pena de
grave ofensa ao art. 528, caput, do CPC/15.
20) Por qualquer ângulo que se examine a questão, pois, constata-se a
manifesta ilegalidade e teratologia do acórdão que concedeu a ordem de habeas corpus
e, consequentemente, do acórdão recorrido, que negou a pretendida segurança.

Conclusão

21) Forte em tais razões, conheço e dou provimento ao recurso ordinário


constitucional, para conceder a segurança e restabelecer a decisão que havia
autorizado a prisão civil do devedor de alimentos.

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 349


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

RECURSO ESPECIAL N. 1.727.950-RJ (2017/0140552-0)

Relator: Ministro Moura Ribeiro


Recorrente: Joao Gilberto Pereira de Oliveira - Sucessão
Recorrente: Isabel Gilberto de Oliveira - Sucessor
Advogados: Marco Tayah e outro(s) - RJ011951
Jose Marco Tayah e outro(s) - RJ067177
Sara Eliana Tayah e outro(s) - RJ068274
Rafael Barud Casqueira Pimenta - RJ142307
Recorrente: Joao Marcelo Weinert de Oliveira - Sucessor
Advogado: Deborah Sztajnberg - RJ086824
Recorrente: L C F G DE O - Sucessor
Repr. por: C W F P
Advogados: Luciano Vianna Araújo - RJ080725
Leonardo Orsini de Castro Amarante e outro(s) - RJ055328
Jacqueline Tardelli Moser - RJ185862
Recorrente: EMI Records Brasil Ltda
Advogados: Raphael Queiroz de Moraes Miranda - RJ095822
Antônio Pedro Raposo - RJ156565
Victor Willcox de Souza Rancano Rosa e outro(s) - RJ167658
Recorrido: EMI Records Brasil Ltda
Advogados: Raphael Queiroz de Moraes Miranda - RJ095822
Antônio Pedro Raposo - RJ156565
Victor Willcox de Souza Rancano Rosa - RJ167658
Recorrido: Joao Gilberto Pereira de Oliveira - Sucessão
Recorrido: Isabel Gilberto de Oliveira - Sucessor
Advogados: Marco Tayah e outro(s) - RJ011951
Jose Marco Tayah e outro(s) - RJ067177
Sara Eliana Tayah e outro(s) - RJ068274
Rafael Barud Casqueira Pimenta - RJ142307
Recorrido: Joao Marcelo Weinert de Oliveira - Sucessor
Advogado: Deborah Sztajnberg - RJ086824
Recorrido: L C F G DE O - Sucessor

350
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

Repr. por: C W F P
Advogados: Leonardo Orsini de Castro Amarante - RJ055328
Jacqueline Tardelli Moser - RJ185862
Interes.: Silvia Regina Dain Gandelman - Inventariante
Advogados: Marco Tayah - RJ011951
Jose Marco Tayah - RJ067177
Luciano Vianna Araújo e outro(s) - RJ080725
Susana Paola Barbagelata Kleber - RJ081132
Deborah Sztajnberg - RJ086824
Leonardo Orsini de Castro Amarante - RJ055328
Rafael Barud Casqueira Pimenta - RJ142307
Flávia Leticia Henriques Paranhos Garcia - RJ197248

EMENTA

Direito Civil, Processual Civil e Autoral. Ação de resolução de


contrato e de obtenção de masters originais. Irresignação submetida ao
NCPC. Recurso especial da EMI. Alegação de que estaria prescrita a
pretensão do autor de obter os masters de suas canções originais. Causa
de pedir relacionada aos direitos morais do autor. Imprescritibilidade
da pretensão deduzida em juízo. Recurso especial de João Gilberto.
Possibilidade de produção e comercialização de LP´s contendo a obra
original do artista. Alegação de ofensa a coisa jugada não caracterizada.
Direitos morais do autor que não lhe conferem, necessariamene,
a propriedade dos masters em que materializada sua obra musical.
Recursos especiais não providos.
1. As disposições do NCPC, no que se refere aos requisitos de
admissibilidade dos recursos, são aplicáveis ao caso concreto ante os
termos do Enunciado Administrativo n. 3, aprovado pelo Plenário do
STJ na sessão de 9/3/2016.
2. Discute-se, na hipótese, a possibilidade de o autor da obra
musical obter da gravadora os masters originais de suas canções.
3. Referida pretensão, porque baseada não em considerações
econômicas, mas nos próprios direitos de personalidade do autor, deve
ser considerada imprescritível.

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 351


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

4. A Terceira Turma desta Corte, no julgamento do REsp


1.098.626/RJ, sob a relatoria do Ministro Sidnei Beneti, reconheceu que
a EMI violou os direitos morais do autor, João Gilberto, ao modificar os
fonogramas primitivos para comercialização das canções em Compact
Disks (CD’s). Justamente por isso, condenou aquela gravadora a pagar
indenização por danos morais e materiais, proibindo-a, também, de
produzir e comercializar a obra indevidamente alterada.
5. O acórdão transitado em julgado não restringiu, todavia, a
produção e comercialização de novos Long Plays (LP’s) contendo as
versões originais da obra musical.
6. O master, como muitas vezes, por metonímia, é designado o
resultado final do processo de criação da matriz a ser copiada em vinil,
CD ou fita magnética, constitui um fonograma nos termos do art. 5º,
IX, da Lei n. 6.910/98: considera-se fonograma - toda fixação de sons de
uma execução ou interpretação ou de outros sons, ou de uma representação
de sons que não seja uma fixação incluída em uma obra audiovisual.
7. Isso é fundamental, porque o direito autoral distingue de forma
muito clara o corpus misticum, que é a criação autoral propriamente
dita, isto é, a obra imaterial fruto do espírito criativo humano; e o
corpus mechanicum, que é, simplesmente, o meio físico no qual ela se
encontra materializada.
8. Assim, malgrado a distinção técnico-qualitativa existente
entre a matriz e as cópias que dela podem ser extraídas, constituem
ambas, em última análise, bens corpóreos (corpus mechanicum) e, nessa
condição, podem ser alienadas.
9. Não se vislumbra, por isso, nenhuma ilegalidade flagrante na
cláusula contratual que conferiu a propriedade dos masters à gravadora.
10. O direito moral do autor, intangível e imprescritível, não pode
suplantar o direito da sociedade de usufruir das manifestações das
culturas populares tão caras a qualquer nação. Triste a cultura mundial
se não pudesse desfrutar das obras de Mozart, Bach, Beethoven ou
Villa-Lobos, gênios notórios cuja qualificação também se estende ao
nome de João Gilberto.
11. A alegação de que o contrato teria sido interpretado
ampliativamente de modo a prejudicar os direitos do autor esbarra na
Súmula n. 5 do STJ.

352
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

12. O pedido de resolução do contrato com base do


inadimplemento e subsequente devolução dos masters veio amparado
exclusivamente em dissídio jurisprudencial que, todavia, não pode ser
conhecido por ausência de similitude fática.
13. Recurso especial da EMI não provido. Recurso especial de
Espólio de João Gilberto parcialmente conhecido e, nessa extensão, não
provido.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas,


acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por
unanimidade, negar provimento aos recursos especiais, nos termos do voto do
Sr. Ministro Relator.
Os Srs. Ministros Nancy Andrighi, Ricardo Villas Bôas Cueva (Presidente)
e Marco Aurélio Bellizze votaram com o Sr. Ministro Relator.
Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino.
Brasília (DF), 08 de março de 2022 (data do julgamento).
Ministro Moura Ribeiro, Relator

DJe 17.3.2022

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Moura Ribeiro: Em 1997, João Gilberto Pereira de Oliveira,


falecido no curso do feito (João Gilberto) ajuizou ação contra EMI-Music
Brasil Ltda (EMI), que resultou no REsp n. 1.098.626/RJ, da relatoria do
Ministro Sidnei Beneti, no qual se reconheceu o seu direito a indenização por
danos materiais e morais decorrentes da remasterização não autorizada de suas
músicas em Compact Disks (CD’s).
Na fase de cumprimento de sentença, questionou-se se o acórdão proferido
no mencionado recurso especial teria também vedado a produção e comércio
da obra musical de João Gilberto pela EMI. Essa indagação foi respondida
afirmativamente no julgamento do REsp n. 1.472.020/RJ, de minha relatoria.
Em 2013, João Gilberto ajuizou nova ação contra a EMI, pretendendo,
desta feita, a extinção dos contratos celebrados entre as partes em razão do

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 353


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

descumprimento contratual e, bem assim, a devolução das fitas masters dos


Long Plays (LP’s) “Chega de Saudade”, “O Amor, o Sorriso e a Flor”, “João
Gilberto” e do compacto vinil “João Gilberto cantando as músicas do filme
Orfeu do Carnaval”. Subsidiariamente, ele pleiteou acesso irrestrito e por tempo
indeterminado às matrizes de seu repertório original (e-STJ, fls. 2/26).
O juiz de primeira instância julgou improcedentes os pedidos, sob o
entendimento de que os masters teriam sido contratualmente adquiridos pela
EMI, não havendo obstáculo jurídico à reprodução e exploração econômica
daqueles fonogramas originais. Ao final, condenou João Gilberto ao pagamento
das despesas processuais e honorários advocatícios fixados em 10% sobre o valor
da causa (e-STJ, fls. 708/713 e 761/762).
O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro deu parcial provimento ao recurso
de apelação de João Gilberto, apenas para franquear-lhe acesso aos masters. De
acordo com a Corte fluminense, os contratos celebrados entre as partes na
década de 70 ainda estariam em vigor e produzindo efeitos, de modo que a
EMI poderia continuar produzindo e comercializando a obra do artista em
formato vinil, estando vedada, apenas, a remasterização das canções e também a
comercialização das gravações originais em mídias diversas daquelas existentes
à época dos contratos. Acrescentou que, além disso, os masters possuíam valor
intrínseco que justificariam, de qualquer forma, o interesse da EMI em manter-
se na sua posse. Não houve alteração na distribuição dos ônus sucumbenciais.
Referido acórdão, da relatoria do ilustre Des. André Andrade, ficou assim
ementado:

Apelação cível. Direito Autoral. Contratos, assinados há mais de cinquenta anos,


denominados de locação de serviços, assinados entre músico e gravadora, para
distribuição e comercialização de gravações em disco de vinil. Músico que pretende
ter reconhecido o direito de propriedade sobre as fitas masters das gravações.
Pedido sucessivo de amplo acesso às fitas masters de suas gravações. Alegação da
gravadora ré de que é dona dos masters. Contratos que não extinguiram seus efeitos.
Propriedade das fitas masters que remanesce com a gravadora. Impossibilidade,
no entanto, de a gravadora alterar as gravações ou explorá-las em mídias mais
modernas sem a concordância do músico. Direito conexo do autor-intérprete de
acesso às fitas masters. Provimento parcial da apelação (e-STJ, fl. 890).

Os embargos de declaração opostos por João Gilberto foram rejeitados e


aqueles manifestados por EMI, acolhidos sem efeitos modificativos, apenas para
rejeitar as preliminares de prescrição e de inexistência da lide.

354
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

O acórdão ficou assim ementado:

Embargos de declaração. Primeiros embargos: alegação de omissões no acordão


embargado. Preliminares de prescrição e de ausência de lide. Suprimento das
omissões. Rejeição das preliminares. Segundos embargos: alegação de premissa
equivocada e de omissões do acórdão. Inexistência dos alegados vícios. Provimento
dos primeiros embargos de declaração e desprovimento dos segundos (e-STJ, fl.
1.094)

Irresignado, João Gilberto interpôs recurso especial com fundamento no


art. 105, III, a e c, da CF, alegando ofensa aos arts. (1) 467, 468, 471 e 472 do
CPC/73 (502, 503, 505 e 506 do NCPC), porque desrespeitada a coisa julgada
fixada nos REsps n. 1.098.626/RJ, da relatoria do Ministro Sidnei Beneti, e
1.472.020/RJ, de minha relatoria, segundo a qual estaria proibida a reprodução
e a comercialização da obra musical pela EMI em qualquer mídia; (2) 4º, 22,
24, incisos IV e V, e 49 da Lei n. 9.610/98, nos termos dos quais teria ele direito
não apenas a dimensão imaterial de sua obra, mas também ao suporte físico no
qual ela está fixada, no caso, os masters; e (3) 4º e 49 da Lei n. 9.610/98, além de
dissídio jurisprudencial, porque impossível conferir interpretação extensiva aos
contratos entabulados, em seu prejuízo, para enquadrar referidas avenças como
uma compra e venda de fitas masters.
A EMI, a seu turno, interpôs recurso especial com fundamento no art.
105, III, a, da CF, alegando que a pretensão autoral de obtenção/restituição dos
fonogramas originais deveria ter sido declarada prescrita, nos termos do art. 178,
§ 9º, V, do CC/16.
Apresentadas contrarrazões (e-STJ, fls. 1.178/1.195 e 1.199/1.217), os
recursos foram ambos barrados no juízo de admissibilidade realizado pela
origem (e-STJ, fls. 1.228/1.232), mas em seguida, tiveram seguimento por
decisão monocrática de minha lavra que deu provimento aos agravos então
manejados (e-STJ, fls. 1.388/1.390).
Após o falecimento de João Gilberto, deu-se a sua substituição processual
pelo respectivo espólio (Espólio de João Gilberto).
É o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Moura Ribeiro (Relator):

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 355


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Do recurso especial de EMI

Pela ordem de prejudicialidade, examina-se, em primeiro lugar, o recurso


especial da EMI, advertindo-se que têm aplicação as disposições do NCPC,
no que se refere aos requisitos de admissibilidade dos inconformismos, ante os
termos do Enunciado Administrativo n. 3, aprovado pelo Plenário do STJ na
sessão de 9/3/2016:

Aos recursos interpostos com fundamento no CPC/2015 (relativos a decisões


publicadas a partir de 18 de março de 2016) serão exigidos os requisitos de
admissibilidade recursal na forma do novo CPC.

De acordo com as razões deste recurso especial, muito embora a declaração


de nulidade do contrato firmado com João Gilberto não esteja, por sua
própria natureza, sujeita a prazo prescricional, a discussão relativa aos efeitos
patrimoniais do negócio jurídico cuja nulidade se requer estaria, sim, submetida
a prescrição. Dessa forma, não seria mais possível pleitear a obtenção/restituição
dos masters originais, porque essa seria uma decorrência patrimonial do pedido
de declaração de nulidade do negócio.
Segundo afirmado, o contrato de prestação de serviços encerrou-se em
1964, de modo que a pretensão de discutir os efeitos econômicos dessa avença,
como a propriedade dos masters, por exemplo, prescreveu em 1968. Tudo isso na
forma do art. 178, § 9º, V, do CC/16.
O TJRJ, ao tratar do tema, manifestou-se nos seguintes termos:

Rejeita-se a preliminar de prescrição. A pretensão formulada pelo autor,


diferentemente do sustentado pela apelada em suas contrarrazões, não é de
anulação do negócio jurídico em decorrência de lesão. O que pretende o autor,
ora apelante, entre outras coisas, é a declaração de extinção dos contratos
celebrados. Inaplicáveis, portanto, os artigos 178, § 9º, V, do Código Civil de 1916 e
178, II, do Código Civil atual (e-STJ, fls. 898/899).

Não procede o argumento da ora embargante de que teria havido a prescrição


em relação à pretensão de entrega definitiva das fitas, isso porque, diferentemente
do que sustenta, a entrega das referidas fitas não constituiria, nos termos em que
formulada a pretensão, um efeito material ou patrimonial decorrente da extinção
dos contratos celebrados, mas um direito moral ou personalíssimo do autor. De
todo modo, considerou-se que o contrato celebrado entre as partes ainda produz

356
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

efeitos, de modo que de prescrição não se poderia falar, porque não teria sequer
iniciado o prazo de alegada prescrição. Por essas razões, deve ser rejeitada a
preliminar de prescrição (e-STJ, fls. 1.096/1.097).

A EMI tem razão quando afirma ser necessário distinguir a prescrição da


pretensão declaratória daquela afeta as pretensões correlatas.
Segundo lição já clássica de AGNELO AMORIM FILHO, a ação que
visa obter um provimento judicial declaratório não está submetida a prescrição
(Critério Científico para distinguir prescrição da decadência in: Doutrinas
Essenciais de Direito Civil - Parte Geral. Coord. GILMAR FERREIRA
MENDES. vol. V. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011).
O mesmo não sucede, porém, com a pretensão de obter situações jurídicas
decorrentes da tutela declaratória, isso é, de obter efeitos patrimoniais ou
econômicos da declaração de nulidade.
PABLO STOLZE GALIANO, por exemplo, após assinalar que os
vícios de nulidade absoluta podem assim ser reconhecidos e declarados a
qualquer tempo, na forma do art. 169 do CC/02, sem a incidência de prazos
decadenciais ou prescricionais, ressalta que os efeitos patrimoniais decorrentes
dessa declaração de invalidade estão, sim, sujeitos a prescrição.
Confira-se:

Ora, na hipótese sob análise [do art. 549 do CC/02], o legislador expressamente
previu ser nula a doação inoficiosa, e não simplesmente anulável, como o fez no
art. 550.
[...]
Tais argumentos já seriam suficientes, a nosso ver, para chegarmos à conclusão
de que a doação inoficiosa, por traduzir afronta a normas de ordem pública (do
sistema de preservação da legítima), e segundo as normas legais do próprio
Código Civil, é nula de pleno direito.
Mas a esse argumento pode-se contrapor outro: por ser imprescritível a
arguição da nulidade absoluta, isso não geraria insegurança jurídica, ante a
possibilidade de se poder atacar o ato a qualquer tempo?
De fato, o art. 169 do Código Civil dispõe que o ato nulo não convalesce pelo
decurso do tempo.
Mas os efeitos patrimoniais decorrentes da declaração de invalidade, sim.
A declaração de nulidade absoluta da doação inoficiosa, a teor desse
mencionado dispositivo de lei não se submete a prazo algum, embora o pedido
dirigido à reivindicação da coisa (pretensão de natureza real) ou ao pagamento

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 357


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

das perdas e danos (pretensão de natureza pessoal) formulado pelo herdeiro


prejudicado, submeta-se ao prazo prescricional geral (para pretensões pessoais
ou reais) de dez anos, na forma do art. 205 do Código Civil. (Contrato de Doação. 5
ed. São Paulo: Saraiva, 2021. pp. 83/84 - sem destaque no original).

ORLANDO GOMES, da mesma forma, ao lecionar sobre o sistema de


invalidades do CC/16, também ressaltava a distinção assinalada:

A teoria clássica das nulidades assenta o princípio geral de que o ato nulo não
produz qualquer efeito: “quod nullum est, nullum procucit effectum”. A nulidade
de pleno direito privaria o ato de toda eficácia.
Deste princípio deduzem-se as consequências seguintes:
[...]
Por fim é perpétua, no sentido de que, em princípio, se não extingue por
efeito da prescrição. O decurso do tempo não convalida o que nasceu inválido.
Se nenhum efeito produz desde o nascimento, nenhum produzirá para todo
o sempre. A qualquer tempo é alegável. Contudo, a perpetuidade da ação não
prejudica as situações jurídicas que se modificaram por efeitos da usucapião ou da
prescrição dos direitos que poderiam ser exercidos (Introdução do Direito Civil. 13ª
ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. pp. 474/475).

No mesmo sentido, a lição de HUMBERTO THEODORO JÚNIOR:

(...) se é certo que a nulidade, em si, não pode se sujeitar aos efeitos da
prescrição, das situações jurídicas em que o negócio jurídico inválido cria podem
perfeitamente decorrer pretensões que hão de sofrer os efeitos naturais da
prescrição (exemplo: restituição de bens ou preço, indenização de prejuízos, etc.,
as quais terão de submeterse aos efeitos da prescrição) (Comentários ao Novo
Código Civil. Vol. III, Tomo I. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense. p. 527)

No voto-vista que proferi por ocasião do julgamento do REsp n.


1.933.685/SP, destaquei que a pretensão de obter a declaração de nulidade
absoluta da chamada doação inoficiosa, não estaria sujeita a prazo decadencial
ou prescricional. Acrescentei que o efeito patrimonial desse negócio nulo,
qual seja, o restabelecimento da propriedade do bem ao monte para ser
regularmente partilhado, estaria, todavia, sujeito a prescrição. Dessa forma, o
donatário do bem recebido indevidamente estaria habilitado a permanecer
com ele, independentemente da nulidade da doação, caso verificada hipótese de
usucapião (prescrição aquisitiva).
Essa distinção entre a (im)prescritibilidade das ações declaratórias e a das
demais pretensões correlatas fica igualmente evidente nos seguintes julgados:

358
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

Agravo interno nos embargos de declaração no agravo em recurso especial.


Ação de rescisão contratual cumulada com reintegração de posse e perdas e
danos. Prescrição. Ajuizamento de ação revisional. Não interrupção da prescrição.
Prescrição reconhecida. Agravo interno não provido.
1. A propositura de ação revisional pelo devedor não impede que o credor
busque a satisfação do seu crédito, não havendo, portanto, interrupção do prazo
prescricional.
2. Ademais, não havendo na lei regra limitando o tempo para a decadência do
direito de promover a resolução do negócio, a ação pode ser proposta enquanto
não prescrita a pretensão de crédito que decorre do contrato.
3. Agravo interno não provido. (AgInt nos EDcl no AREsp 1.536.576/PR, Rel.
Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, DJe 11/2/2020 - sem destaque no
original)

Recurso especial. Ação de rescisão contratual c/c reintegração de posse e


indenização por perdas e danos. Ausência de prequestionamento. Súm. 282/
STF. Fundamento não impugnado. Súm. 283/STF. Contrato de compra e venda
de imóveis. Inadimplemento. Ação monitória julgada procedente. Trânsito em
julgado. Prescrição da pretensão executória. Ausência do elemento objetivo
que sustenta o pedido de resolução do contrato. Improcedência do pedido.
Julgamento: CPC/73.
1. Ação de rescisão contratual c/c reintegração de posse e indenização por
perdas e danos ajuizada em 16/05/2014, da qual foi extraído o presente recurso
especial, interposto em 19/06/2015 e atribuído ao gabinete em 02/09/2016.
2. O propósito recursal é dizer sobre a prescrição da pretensão deduzida pelo
recorrido, bem como sobre a aquisição da propriedade pela usucapião dos bens
imóveis objeto desta ação resolutória de contrato.
3. A ausência de decisão acerca dos dispositivos legais indicados como
violados impede o conhecimento do recurso especial (Súm. 282/STF).
4. A existência de fundamento do acórdão recorrido não impugnado - quando
suficiente para a manutenção de suas conclusões - impede a apreciação do
recurso especial (Súm. 283/STF).
5. Diferentemente do que constava no art. 1.092 do CC/16, o art. 475 do
CC/02, expressamente, faculta ao credor, diante do inadimplemento do devedor,
escolher entre exigir o cumprimento da prestação ou exigir a resolução do
contrato, cabendo, em qualquer das hipóteses, a respectiva indenização.
6. Em regra, admite-se a cumulação dos pedidos de cumprimento da prestação
e resolução do contrato, mas, escolhida a via do cumprimento, não se dá recurso
à via da resolução depois de transitada em julgado a sentença de procedência
exarada na primeira ação (electa uma via non datur recursos ad alterum).

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 359


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

7. Embora não haja regra legal que estabeleça prazo para o seu exercício,
o direito à resolução do contrato não é absolutamente ilimitado no tempo, na
medida em que o contrato, enquanto fonte de obrigações que vincula as partes,
é instrumento de caráter transitório, pois nasce com a finalidade de se extinguir,
preferencialmente com o adimplemento das prestações que encerra.
8. Se o pedido de resolução se funda no inadimplemento de determinada
parcela, a prescrição da pretensão de exigir o respectivo pagamento prejudica,
em consequência, o direito de exigir a extinção do contrato com base na mesma
causa, ante a ausência do elemento objetivo que dá suporte fático ao pleito.
9. Hipótese em que, ao ajuizar a ação monitória, o recorrido demonstrou,
claramente, seu interesse na preservação da avença, de tal modo que, uma vez
transitada em julgado a sentença de procedência, cabia-lhe apenas executar
o título judicial para resolver a crise de inadimplemento. Ao deixar transcorrer
o prazo prescricional da pretensão executória voltada ao adimplemento do
contrato e, depois, propor esta ação resolutória, o recorrido demonstra um
comportamento contraditório, justificado, na hipótese, pela nítida tentativa de se
esquivar dos efeitos de sua inércia e, assim, se beneficiar da própria torpeza, o que
configura o exercício abusivo de sua posição jurídica em relação ao recorrente.
10. Recurso especial conhecido em parte e, nessa extensão, provido. (REsp
1.728.372/DF, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe 22/3/2019).

Nada obstante, parece inadequado sustentar, no caso dos autos, que a


pretensão de João Gilberto de obter a posse (ou a propriedade) dos masters nos
quais materializada sua obra intelectual corresponda a um efeito patrimonial da
declaração de nulidade do contrato firmado com EMI, para efeito de aplicação
da prescrição prevista no art. 178, § 9º, V, do CC/16.
A partir da própria leitura da petição inicial, é possível verificar que os
masters não são reivindicados com objetivo econômico ou comercial, mas sim
para assegurar a realização de um direito moral do autor. Com efeito, João
Gilberto alegou que a posse dos fonogramas se impunha como consectário
necessário do seu direito de personalidade pois deveria obtê-los pela condição
de autor das obras musicais e também como forma de garantir a identidade e a
integralidade da sua criação imaterial.
Os direitos do autor dividem-se, tradicionalmente, em dois grandes eixos:
os direitos morais do autor e os direitos patrimoniais do autor.
Os primeiros têm a sua origem numa tradição do Direito francês, que
encara as criações intelectuais como personificação do espírito do respectivo
criador e estão ligados, essencialmente, à integridade criativa e à paternidade
da obra. Como reflexo dessa dimensão do direito autoral, pode-se citar a

360
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

possibilidade que o autor tem de reivindicar a autoria da obra, de impedir sua


alteração indevida por terceiros e ainda de combater a contrafração.
Os direitos patrimoniais do autor, por outro lado, estão ligados à exploração
econômica da criatividade do autor.
PONTES DE MIRANDA já reconhecia essa feição dúplice dos direitos
do autor:

A obra científica, artística ou literária dá ensejo a diferentes direitos, o primeiro


dos quais é o direito autoral de personalidade [...] que precede, gnoseológica
e logicamente, às relações jurídicas em que o objeto é bem patrimonial ou
tem valor patrimonial. O direito autoral de personalidade e o direito autoral
patrimonial são inconfundíveis. (Tratado de Direito Privado. Parte Especial,
Tomo XVI. Direito das Coisas, Propriedade Intelectual e Propriedade Industrial.
Atualizado por Marcos Alberto Sant´Anna Bitelli. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2012. pp. 65/66 - sem destaque no original).

CRISTIANO CHAVES DE FARIAS e NELSON ROSENVALD, da


mesma forma, lecionam:

(...) bipartem-se, pois, os direitos autorais em dois diferentes feixes, que estão,
necessariamente, interligados, formando um todo, uno e indivisível: os direitos
morais do autor (de essência personalíssima) e os direitos patrimoniais do autor
(de índole material, produzindo efeitos na esfera dos direitos reais, por conta da
caracterização de um modelo específico de propriedade) (Curso de Direito Civil –
Parte Geral e LINDB. Vol. 1. 13ª ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 139)

Referida dicotomia, estava já incorporada na Lei n. 5.988/73 (arts. 25 a 28


e 29 a 48), foi repetida pela Lei n. 9.610/98 (arts. 24 a 27 e 28 a 45), conforme
se pode observar:

Capítulo II
Dos Direitos Morais do Autor

Art. 24. São direitos morais do autor:


I - o de reivindicar, a qualquer tempo, a autoria da obra;
II - o de ter seu nome, pseudônimo ou sinal convencional indicado ou
anunciado, como sendo o do autor, na utilização de sua obra;
III - o de conservar a obra inédita;
IV - o de assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações
ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo,
como autor, em sua reputação ou honra;

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 361


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

V - o de modificar a obra, antes ou depois de utilizada;


VI - o de retirar de circulação a obra ou de suspender qualquer forma de
utilização já autorizada, quando a circulação ou utilização implicarem afronta à
sua reputação e imagem;
VII - o de ter acesso a exemplar único e raro da obra, quando se encontre
legitimamente em poder de outrem, para o fim de, por meio de processo
fotográfico ou assemelhado, ou audiovisual, preservar sua memória, de forma
que cause o menor inconveniente possível a seu detentor, que, em todo caso, será
indenizado de qualquer dano ou prejuízo que lhe seja causado.
(...)

Capítulo III
Dos Direitos Patrimoniais do Autor e de sua Duração

Art. 28. Cabe ao autor o direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor da obra
literária, artística ou científica.
Art. 29. Depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da
obra, por quaisquer modalidades, tais como:
I - a reprodução parcial ou integral;
II - a edição;
III - a adaptação, o arranjo musical e quaisquer outras transformações;
IV - a tradução para qualquer idioma;
V - a inclusão em fonograma ou produção audiovisual;
VI - a distribuição, quando não intrínseca ao contrato firmado pelo autor com
terceiros para uso ou exploração da obra;
VII - a distribuição para oferta de obras ou produções mediante cabo, fibra
ótica, satélite, ondas ou qualquer outro sistema que permita ao usuário realizar a
seleção da obra ou produção para percebê-la em um tempo e lugar previamente
determinados por quem formula a demanda, e nos casos em que o acesso às
obras ou produções se faça por qualquer sistema que importe em pagamento
pelo usuário;
VIII - a utilização, direta ou indireta, da obra literária, artística ou científica,
mediante:

Fixada essa premissa, de que existem direitos morais do autor e também


direitos patrimoniais do autor, cumpre assinalar que eles se submetem a
regimes jurídicos distintos. Os primeiros, ao contrário dos segundos, estão
intimamente ligados aos direitos de personalidade e, por isso, são considerados

362
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

inalienáveis, irrenunciáveis e imprescritíveis. Os segundos não gozam dessa


mesma prerrogativa.
A Lei n. 9.610/98, em seu art. 27, dispõe, a propósito, que os direitos morais
do autor são inalienáveis e irrenunciáveis.
Conquanto a norma não assinale expressamente a imprescritibilidade dos
direitos, existe um consenso generalizado em torno dessa questão.
CARLOS ALBERTO BITTAR, a propósito, destacava que os direitos
morais do autor como os vínculos perenes que unem o criador à sua obra, para a
realização da defesa de sua personalidade (Direito de autor. 4ª ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2003. p. 47).
ALVARO VILLAÇA AZEVEDO e GUSTAVO RENE NICOLAU, no
mesmo sentido, lecionam:

Diversas características podem ser extraídas dos direitos da personalidade. É


inegável, por exemplo, que são direitos extrapatrimoniais, tipicamente pessoais,
porque não visam a uma utilidade de ordem econômica ou financeira. São,
ainda, originários ou inatos, porque se adquirem, naturalmente, sem o concurso
de formalidades externas; são direitos absolutos ou de exclusão, visto que são
oponíveis ‘erga omnes’.
Todavia, há outras características que devem ser analisadas com parcimônia,
sob pena de – não o fazendo – ocasionar confusões e distorções jurídicas. [...]
O direito do autor e o direito à voz [...] são passíveis de reflexos (inclusive
patrimoniais) que podem ser livremente negociados, transmitidos ‘causa mortis’ e
cedidos gratuita ou onerosamente ‘inter vivos’.
Não por acaso a avançada lei de direitos autorais (Lei n. 9.610/98) distingue
claramente os direitos morais (art. 24) e patrimoniais do autor (art. 28), enquanto
que o art. 49 assegura a possibilidade de transferência total ou patrimonial destes
últimos.
Seriam, ainda, direitos imprescritíveis, porque podem ser exercidos a qualquer
tempo (Código Civil Comentado. Coord. Álvaro Villaça Azevedo. Vol. I. São Paulo:
Atlas, 2007. pp. 48/49).

PONTES DE MIRANDA, ao comentar o CC/16, revogado, ponderou:

Diz o art. 178, § 10, VII, que prescreve em cinco anos “a ação civil por ofensa
aos direitos de autor, contado o prazo da data da contrafação”. O art. 178, § 10,
VII, somente concerne às pretensões resultantes de ofensas ao direito autoral
de exploração [patrimoniais, portanto]. As pretensões oriundas do direito de
personalidade são imprescritíveis.

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 363


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Aí está um dos pontos em que é de toda a relevância distinguirem-se as


ofensas ao direito absoluto de personalidade e as ofensas ao direito absoluto
de propriedade, ainda ‘lato sensu’. O direito autoral de exploração é direito de
propriedade intelectual. A ofensa a ele é ofensa ao direito real, que tem o titular,
com todas as consequências (Tratado de Direito Privado. Parte Especial, Tomo XVI.
Direito das Coisas, Propriedade Intelectual e Propriedade Industrial. Atualizado
por Marcos Alberto Sant´Anna Bitelli. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2012. p. 317).

A Terceira Turma desta Corte Superior também já se pronunciou a


respeito da imprescritibilidade dos direitos morais do autor em razão de sua
íntima relação com os direitos de personalidade.
Confira-se:

Recurso especial. Direito da Propriedade Intelectual. Direitos Autorais.


Negativa de prestação jurisdicional. Não ocorrência. Direitos morais do autor.
Alegada violação do direito de modificar a obra e de assegurar a sua integridade.
Modificação que teria ocorrido na passagem não autorizada para CD dos retratos
do músico Noca da Portela, que figuravam na capa e na contracapa do LP “Mãos
Dadas”. Imprescritibilidade dos direitos morais em si. Pretensão de compensação
dos danos oriundos de sua infração. Reparação civil. Sujeição ao prazo de
prescrição trienal. Art. 206, § 3º, V, do CC.
1. Controvérsia em torno da ocorrência de prescrição do direito de exigir a
compensação pelos danos morais oriundos de infração de direito moral de autor,
bem como acerca da necessidade de comprovação desses danos.
2. Não há falar em negativa de prestação jurisdicional quando o Tribunal de
origem, no julgamento dos embargos de declaração, reafirma seu entendimento,
afastando a existência de qualquer contradição.
3. Os direitos morais do autor são, como todo direito de personalidade,
imprescritíveis, e, portanto, não se extinguem pelo não uso e pelo decurso do tempo.
4. O autor pode, a qualquer momento, pretender a execução específica das
obrigações de fazer e não fazer oponíveis “erga omnes”, decorrentes dos direitos
morais elencados no art. 24 da Lei n. 9.610/98.
5. Todavia, a pretensão de compensação pelos danos morais, ainda que
oriundos de infração de direito moral do autor, configura reparação civil e, como
tal, está sujeita ao prazo de prescrição de três anos, previsto no art. 206, § 3º, V, do
CC.
6. Caso concreto em que o autor pretende a reparação dos danos causados
pela violação dos seus direitos morais de modificar e de assegurar a integridade
de sua obra (art. 24, IV e V, da Lei n. 9.610/98).

364
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

7. Retratos do músico Noca da Portela, originalmente feitos para ilustrar a capa


e a contracapa do LP “Mãos Dadas”, que, quando da conversão não autorizada em
CD, teriam sofrido modificações não pretendidas pelo autor.
8. Tendo a modificação não autorizada ocorrido em 2004, encontra-se prescrita
a pretensão de compensação dos danos morais por ter sido a demanda ajuizada
apenas em 2011.
9. Recurso especial provido.
(REsp 1.862.910/RJ, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma,
DJe 9/2/2021 - sem destaque no original)

A partir de todas essas reflexões, é preciso concluir que a pretensão


veiculada por João Gilberto, de reaver os masters originais, porque baseada não
em considerações econômicas, mas nos próprios direitos de personalidade,
encontra uma sintonia indiscutível com seu direito moral de autor, revelando-se,
incabível, assim, falar em prescrição na hipótese dos autos.
Nessas condições, nego provimento ao recurso especial de EMI.

Do recurso de João Gilberto

Nas razões de sua irresignação, João Gilberto alegou dissídio jurisprudencial


e ofensa aos arts. (1) 467, 468, 471 e 472 do CPC/73 (502, 503, 505 e 506 do
NCPC), porque desrespeitada a coisa julgada material estabelecida nos REsps
n. 1.098.626/RJ e 1.472.020/RJ que proibiu a reprodução e comercialização de
sua obra musical pela EMI em qualquer mídia; (2) 4º, 22, 24, incisos IV e V, e
49 da Lei n. 9.610/98, porque teria direito não apenas à dimensão imaterial de
sua criação musical, mas também ao suporte físico no qual ela está fixada, e (3)
4º e 49 da Lei n. 9.610/98, porque impossível conferir interpretação extensiva
ao contrato entabulado para enquadrar referida avença como uma compra e
venda de fitas masters.

(1) Coisa julgada

O TJRJ, no julgamento da apelação, entendeu que muito embora a EMI


devesse franquear o acesso de João Gilberto aos fonogramas originais de suas
canções, confeccionados ainda na década de 1960, não estava obrigada a entregá-
los em caráter definitivo. Isso porque, o contrato firmado ainda estava em vigor
e aquela gravadora podia reproduzir e comercializar as canções na mídia então
prevista pelas partes, ou seja, em LP’s.

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 365


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Confira-se:

A apelada estaria, sim, impedida de remasterizar e comercializar as gravações


originais em mídias diversas da existente à época dos contratos. Isso a despeito
do que dispõe a cláusula 6ª do contrato, que não tem o alcance que a apelada
forçadamente pretende lhe emprestar. Não poderia, pois, lançar CD’s ou
comercializar as gravações em mídia digital, tecnologia não existente à época das
avenças e que, portanto, nem mesmo poderia ter sido objeto de previsão. É o que,
ainda que obter dictum, entendeu o STJ no julgamento do REsp 1.098.626:

Atente-se a que, sendo os instrumentos contratuais escritos muito


antigos, celebrados com a Fábrica Odeon, antecessora da ré EMI Music,
(décadas de 1950 e 1960 – fls. 53/56), nem mesmo havia tecnicamente como
imaginar o processo de compactação de gravações de CDs, por intermédio
de “remasterização”, de forma que absolutamente ausente cláusula
contratual sobre a matéria, de forma que não se está, positivamente, no
campo da interpretação de cláusulas contratuais de contrato celebrado
quando as partes contratantes nem mesmo imaginavam, tecnicamente,
o então inexistente objeto de contrato - isto é, o CD - compact disc e o
trabalho remasterizado.

Observe-se que não se quer, aqui, entrar na discussão acerca do alcance


jurídico do julgado do STJ, que tinha por objeto especificamente a remasterização
e compilação das gravações originais em um CD intitulado “O Mito”. Apenas se faz
referência a uma argumentação ou constatação lógica feita por aquele julgado
quanto ao alcance dos contratos celebrados entre as partes.
Aqueles contratos não previram a reprodução das gravações em CD ou mídia
digital, por se tratar de tecnologia não existente na época. Tal interpretação está
em consonância com o que veio a dispor o art. 49, V, da Lei n. 9.610/98: “a cessão
só se operará para modalidades de utilização já existentes à data do contrato”.
Não se quer aplicar retroativamente o referido dispositivo legal aos contratos
em tela, mas apenas indicar que a legislação específica que se seguiu adotou
entendimento que se escora em um princípio de lógica jurídica, porque respeita
a vontade dos contratantes – que não poderiam pactuar sobre uma tecnologia
então inexistente.
Contudo, do entendimento de que os contratos celebrados entre as partes não
se aplicam as novas mídias criadas não se segue a conclusão de que os referidos
contratos tenham se exaurido ou perdido eficácia.
Como observado pela apelada, a despeito do avanço tecnológico, que
propiciou as gravações e reproduções em mídias digitais, ainda existe um
mercado para as mídias analógicas. As gravações e reproduções em vinil ou
LP’s ainda existem, e, segundo alguns indicadores configuraria um mercado
emergente, que até estaria crescendo.

366
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

Seja como for, interessante ou não para a apelada do ponto de vista mercadológico
a exploração atual das gravações em mídia analógica ou vinil, deve-se reconhecer
que, do ponto de vista jurídico, essa possibilidade de exploração ainda existe, o que
é suficiente para que se conclua que os contratos celebrados entre as partes não
se exauriram e, por conseguinte, se encontram em vigor (e-STJ, fls. 901/903 - sem
destaque no original).

Nos embargos de declaração que se seguiram, João Gilberto afirmou que


o acórdão recorrido, ao admitir a exploração das gravações em vinil, partiu de
premissa equivocada ao entender que não haveria coisa julgada, decorrente dos
REsps n. 1.098.626/RJ e 1.472.020/RJ, interditando a comercialização de sua
obra em qualquer mídia, sem o devido consentimento.
O TJRJ rejeitou os embargos, afirmando que não haveria ofensa a coisa
julgada nos seguintes termos:

As decisões do STJ invocadas pelo ora embargante não constituem


fundamento válido para o manejo dos presentes embargos de declaração. Em
primeiro lugar, por não constituírem decisões dotadas de efeito vinculante. Além
disso, não se verifica a alegada equivocidade da premissa de que partiu o acórdão
embargado. Com efeito, não se demonstrou a alegada violação à coisa julgada
(e-STJ, fls. 1.097/1.098).

A mesma alegação de ofensa a coisa julgada foi novamente apresentada em


sede de recurso especial. Segundo afirmado, esta Corte Superior, no julgamento
dos recursos especiais mencionados anteriormente, vedou de forma categórica a
circulação e a comercialização da sua obra em qualquer mídia, inclusive em vinil,
sem o devido consentimento.
Vejamos:
Na ação indenizatória cumulada com obrigação de fazer que resultou no
REsp 1.098.626/RJ, da relatoria do Ministro Sidnei Beneti, o autor, João Gilberto,
alegou que sua obra havia sido deturpada no processo de remasterização levado a
efeito para conversão das canções originariamente fixadas em Long Plays (LP’s),
para Compact Disks (CD’s).
Nessa medida, requereu que a EMI fosse proibida de continuar produzindo
e comercializado a obra adulterada indicando, de forma expressa, o CD
remasterizado. Anote-se:

Em face do exposto, pede o Autor: I) sejam as Rés condenadas solidariamente


a se absterem, em definitivo, de produzir e comercializar CD’s contendo as

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 367


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

gravações da obra de João Gilberto, no Brasil e no exterior, retirando do mercado


todos os exemplares já produzidos, sob pena de pagamento, a partir da citação
na medida cautelar (ou de outro termo que V. Exa. fixar), da multa diária de
R$ 10.000,00 (a ser corrigida, na forma da lei), sem prejuízo de novas buscas e
apreensões e das sanções penais a serem impostas em procedimento próprio.
(Doc. 08; fls. 38 dos autos; grifamos) (e-STJ, fl. 4 - REsp 1.472.020/RJ)

Da mesma forma, nas razões do recurso especial, alegou:

É incontroverso que a obra em assunto foi alterada. Sabe-se, ainda, quem é o


responsável pelas alterações indesejadas. O autor das obras pugna, judicialmente,
pela imediata abstenção da propagação de sua obra indevidamente alterada e ao
mesmo tempo pede que lhe seja conferida indenização tanto pelo uso indevido
de sua obra quanto pelo dissabor de ver suas músicas banalizadas em um único
compacto feito à sua revelia. Assim, subsumindo-se o fato à norma, temos uma
óbvia afronta à legislação federal que trata dos direitos autorais, em especial o
artigo 24, IV, da Lei n. 9.610/98 (e-STJ, fls. 5 e 6 - REsp 1.472.020/RJ).

O acórdão do REsp n. 1.098.626/RJ em seu relatório, destacou ter sido


requerida a imediata abstenção da propagação da obra indevidamente alterada,
acenando, assim, que não houve pedido de proibir a comercialização das canções
em suas versões originais.
Referido acórdão reconheceu que a EMI violou os direitos morais do autor
João Gilberto ao modificar os fonogramas primitivos para comercialização das
canções em CD’s e, justamente por isso, condenou-a a pagar indenização por
danos morais e materiais, proibindo-a, ainda, de produzir e comercializar a obra
deturpada pelo processo de remasterização.
Malgrado o reconhecimento desse ato ilícito, não houve restrição à
comercialização das canções tal como fixadas nos masters e reproduzidas nos
LP’s vendidos originariamente, até mesmo porque, com relação a esse ponto,
não haveria nenhuma ilicitude.
Com efeito, a parte dispositiva do acórdão proibiu apenas a confecção de
novos CD’s contendo a obra remasterizada sem autorização de João Gilberto, ou
seja, proibiu somente que, sem o seu consentimento, fosse produzida e explorada
a obra alterada pelo processo de remasterização.
Nesse sentido, a seguinte passagem da parte dispositiva do acórdão:

6) Observando com referência aos CDs (Compact Discs – Remasterizados), que:


a) quanto aos já produzidos e comercializados: na congruência do julgamento,

368
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

a infração resolveu-se em perdas e danos, consistentes no acréscimo a ser pago


ao autor (n. 3, supra); restou, pelo julgado do Tribunal de origem, sem recurso
específico das partes, afastada a pretensão inicial ao recolhimento de aludidos
produtos; o recolhimento seria faticamente impossível e “ad impossibilia nemo
tenetur”, de forma que eventual determinação nesse sentido seria incompatível
com a concretude necessária às conclusões judiciais; b) quanto à eventual
produção futura do mesmo CD (“Compact Disc”), trata-se de matéria que resta
condicionada à contratualidade futura das partes, que, com criatividade
artística, técnica e negocial, poderão explorar a viabilidade de possibilidades novas,
como, por exemplo, a admissão de produção com sintética observação de que
originariamente não contou com a autorização do Autor, ora Recorrente, devendo,
contudo, ficar bem claro que não há nenhum obstáculo judicial, em consequência
do presente julgamento, quer à reprodução dos fonogramas primitivos, quer à do
próprio “CD” remasterizado em causa.

Ora, se foi a produção do CD, isto é, dos fonogramas remasterizados


que ficou condicionada à contratualidade futura, é porque não se estabeleceu
obstáculo à fabricação e comercialização dos LP´s com as canções originais do
artista.
Não bastasse a interpretação literal do texto, ainda é possível acrescentar
que a parte dispositiva de qualquer decisão judicial precisa ser compreendida
a partir do pedido formulado pela parte e da ratio decidendi que orientou o
julgamento.
Assim, considerando que João Gilberto pediu apenas a abstenção de
propagação da obra indevidamente alterada (não da sua obra original), e que
a ocorrência de modificações por ele não autorizadas constituiu, precisamente,
o fundamento jurídico para o deferimento do pedido, parece forçoso concluir
que o REsp 1.098.626/RJ, não fez coisa julgada impedindo ou condicionando a
comercialização das músicas em sua versão original (não remasterizada) em LPs.
Tampouco há falar em ofensa à coisa julgada que se formou a partir do
REsp n. 1.472.020/RJ, de minha relatoria.
Esse segundo recurso especial, vale lembrar, surgiu a partir de uma
discussão suscitada na fase de cumprimento de sentença relativamente ao
acertamento da obrigação de não fazer.
Naquele processo, a EMI alegou que não estaria proibida de comercializar a
obra de João Gilberto, porque esta Corte Superior, no julgamento do mencionado
REsp 1.098.626/RJ não havia reconhecido uma obrigação de não fazer.

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 369


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Veio então o acórdão do REsp n. 1.472.020/RJ, de minha relatoria, explicar


que, ao contrário do que alegado, o Ministro Sidnei Beneti, em seu voto, havia
sim determinado a abstenção da comercialização da obra.
Esse aresto não chegou a afirmar, porém, que havia coisa julgada
interditando a produção e comercialização das canções originais. Apenas
ressaltou que o acórdão transitado em julgado, da relatoria do Ministro Sidnei
Beneti, encerrava uma obrigação de não fazer.
Confira-se, a propósito, a ementa do mencionado acórdão:

Recurso especial. Processual Civil. Cumprimento de sentença. Violação do


art. 535 do CPC. Omissão inexistente. Obrigação de não fazer. Ofensa aos limites
objetivos da coisa julgada (arts. 467, 468 e 471 do CPC). Não ocorrência. Ofensa
ao art. 458, II, do CPC. Acórdão exequendo devidamente fundamentado. Recurso
especial não provido.
1. Não há violação ao art. 535 do CPC se foram analisadas as questões
controvertidas objeto do recurso pelo Tribunal de origem, afigurando-se
dispensável a manifestação expressa sobre todos os argumentos suscitados pelas
partes. A decisão apresentou argumentos suficientes para afastar a alegação de
que excedeu os limites objetivos da coisa julgada.
2. A sentença faz lei entre as partes, revestindo-se da autoridade da coisa
julgada quanto aos provimentos declaratórios, condenatórios ou constitutivos,
que se prolongam no futuro. No caso, o título executivo judicial (REsp 1.098.626/RJ,
de relatoria do Min. Sidnei Beneti), expressamente decidiu sobre a obrigação de não
fazer, consistente na proibição da recorrente produzir e comercializar a obra musical
do recorrido sem sua autorização prévia.
3. O acórdão exequendo não apresenta o vício da falta de fundamentação
porque foi provocado a se manifestar sobre a obrigação negativa. O STJ,
conhecendo do recurso especial, julgará a causa (art. 257 do RISTJ).
4. Recurso especial não provido. (REsp 1.472.020/RJ, Rel. Ministro Moura
Ribeiro, Terceira Turma, DJe 14/12/2015 - sem destaque no original).

Com efeito, jamais se afirmou que haveria coisa julgada proibindo a


fabricação e comercialização dos fonogramas originais, ou condicionando
referidos procedimentos a celebração de novo contrato entre as partes.
Já na petição de agravo de instrumento que deu origem ao acórdão,
é possível verificar que João Gilberto, naquela ocasião tal como constatado
anteriormente, voltava-se apenas contra a comercialização da obra adulterada e
não da obra original.

370
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

Confira-se:

29. A primeira premissa equivocada assumida pela r. decisão agravada está


na conclusão de que v. acórdão do STJ não teria condenado a EMI a não mais
comercializar a obra adulterada do músico-agravante.
[...]
33. Se o CD remasterizado foi reputado o produto de um ato ilícito, é bastante
claro que ele não pode ser livremente comercializado, até porque o objetivo da
Justiça é estancar a prática de ilícitos, e não estimulá-los. Esse é o único sentido
possível do acórdão do e. STJ – essa é, repita-se, a única premissa fática correta e que
fundamenta o pedido de cumprimento forçado da obrigação de não fazer (e-STJ, fl.
10 - REsp 1.472.020/RJ - sem destaque no original).

A partir da leitura da mesma peça processual, verifica-se que João Gilberto,


ao contrário, admitia que a EMI produzisse e comercializasse as versões originais
das suas canções, pois apenas a comercialização das canções remasterizadas
estaria condicionada a “contratualidade futura”.
Anote-se:

39. Em segundo lugar, o Exmo. Relator [Min. Sidnei Beneti] consignou que a
produção futura do CD (leia-se, dos fonogramas remasterizados) ficaria condicionada
à contratualidade futura das partes (e-STJ, fl. 13 - REsp 1.472.020/RJ - sem destaque
no original).

Cumpre reconhecer que a EMI opôs embargos de declaração no REsp


1.472.020/RJ, pleiteando, justamente, esclarecimentos quanto a extensão
da obrigação de fazer reconhecida em juízo, isto é, requerendo que ficasse
consignada a ausência de restrições no tocante a comercialização da obra
original.
Esses declaratórios foram rejeitados em acórdão assim ementado:

Processual Civil. Embargos de declaração no recurso especial. Cumprimento


de sentença. Omissão. Não ocorrência. Pretensão de ampliar os limites do julgado.
Impossibilidade. Embargos rejeitados.
1. O cabimento dos embargos de declaração se dá apenas nas hipóteses do
art. 535 do CPC: para sanar obscuridade, contradição ou para elidir omissão,
pronunciando-se sobre ponto essencial.
2. Não há omissão a ser esclarecida porque o título executivo determinou
que a futura comercialização da mídia do artista está condicionada ao que for

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 371


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

pactuado entre as partes e se for pactuado. Ausente qualquer tratativa nesse


sentido, fica proibida a produção e comercialização dos fonogramas.
3. As questões suscitadas pela embargante não constituem pontos omissos, mas
mera pretensão de ampliar o alcance do julgado para permitir a comercialização da
obra musical do artista sem o seu consentimento.
4. Embargos de declaração rejeitados.
(EDcl no REsp 1.472.020/RJ, Rel. Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, DJe
8/4/2016 - sem destaque no original).

Apesar da advertência consignada na ementa do acórdão, de que a


EMI pretendia, na realidade, ampliar o alcance do julgado para permitir a
comercialização da obra musical do artista sem o seu consentimento, o fato é
que esse já era, precisamente o sentido do julgamento.
Assim, se os embargos de declaração foram rejeitados, não houve nenhum
efeito integrativo, isto é, permaneceu inalterado o julgamento original que,
repita-se, não havia coibido o comércio da obra original.
Por todo o exposto, não há falar em ofensa a coisa julgada.
Acrescente-se, apenas a título de obiter dictum, que a interpretação
ampliativa dos acórdãos indicados acima, acabaria, na prática, inviabilizando um
contato mais próximo do grande público com a obra de João Gilberto.
Considerando o falecimento do artista, não seria mais possível uma nova
contratação para permitir a produção e comércio das canções originais em
prejuízo do acesso de todos a este que é, inquestionavelmente, um dos maiores
compositores e intérpretes da música brasileira.
O primeiro conceito de patrimônio cultural foi trazido pelo art. 1º do
Decreto-Lei n. 25/1937, que determinava constituir patrimônio histórico e
artístico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no País, cuja
conservação seja de interesse público, quer por vinculação a fatos memoráveis da
história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico,
bibliográfico ou artístico.
A Constituição Federal de 1988, em sentido semelhante, dispôs:

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza


material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de
referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da
sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I - as formas de expressão;

372
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

II - os modos de criar, fazer e viver;


III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às
manifestações artístico-culturais;
V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

A obra musical de João Gilberto, porque vinculada à identidade e memória


dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, como exigido pelo
dispositivo constitucional em comento, constitui, inequivocamente, verdadeiro
patrimônio cultural brasileiro. Constitui, portanto, um direito coletivo.
Não por outro motivo, o mencionado art. 216 da CF, determina em seu
§ 1º, que o Poder Público, com a colaboração da comunidade, deve promover
e proteger o patrimônio cultural não apenas por meio de inventários, registros,
vigilância, tombamento e desapropriação, mas também através de outras formas
de acautelamento e preservação.
CELSO ANTÔNIO PACHECO FIORILLO e RENATA MARQUES
FERREIRA, a propósito, encarecem que a tutela institucional e social
acima referida busca assegurar, inclusive, o acesso das gerações vindouras ao
mencionado patrimônio cultural:

Ao estabelecer como dever do Poder Público, com a colaboração da


comunidade, preservar o patrimônio cultural, a Constituição Federal ratifica
a natureza jurídica do bem cultural em face de sua natureza jurídica de bem
ambiental, porquanto esse bem é constitucionalmente um bem de uso comum
de todos e não um bem pertencente ao Poder Público, tratando-se, pois, de bem
objeto de gestão. Um domínio preenchido pelos elementos de fruição (uso e gozo
do bem objeto do direito), sem comprometimento de sua integridade, para que
outros titulares, inclusive os de gerações vindouras, possam também exercer com
plenitude o mesmo direito (Tutela Jurídica do Patrimônio Cultural Brasileiro em face
do Direito Ambiental Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018. p. 546).

Não se trata, portanto, de apenas relembrar a importância de João Gilberto,


de suas letras e melodias para a cultura nacional e também mundial. Mais do
que isso, importa destacar a inconveniência absoluta de uma interpretação que,
ao invés de promover e dar visibilidade a esse patrimônio cultural, concorre,
justamente, para o seu esquecimento.
O direito moral do autor, intangível e imprescritível, não pode suplantar
o direito da sociedade de usufruir das manifestações das culturas populares tão

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 373


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

caras a qualquer nação. Triste a cultura mundial se não pudesse desfrutar das
obras de Mozart, Bach, Beethoven ou Villa-Lobos, gênios, qualificação em que
também se insere o nome de João Gilberto.
Para tornar simples este enfoque, o capital moral do autor João Gilberto,
que há de ser protegido, não mais lhe pertence com exclusividade, transmudou-
se num capitalismo social, que pode e deve ser acessível a todos, universalmente,
como forma de valorizar e difundir toda boa manifestação cultural.
A prevalecer a exegese defendida nas razões do recurso especial para
os REsps n. 1.098.626/RJ e 1.472.020/RJ estar-se-ia, em alguma medida,
subtraindo por decisão judicial um patrimônio imaterial de toda a coletividade,
apagando, por assim dizer, uma contribuição inestimável à cultura mundial.
Estar-se-ia, enfim, descumprindo, o art. 216, § 1º, da CF.

(2) O suporte físico da obra imaterial como extensão do direito moral do autor.

Na petição inicial do processo, João Gilberto alegou que teria direito a obter
os masters originais de suas canções e invocou, para tanto, quatro fundamentos:
(2.a) a ineficácia superveniente do contrato em razão da ausência de proveito
econômico na manutenção dos masters em poder da EMI, que por decisão
judicial transitada em julgado, não poderia mais reproduzir e comercializar os
fonogramas com suas canções; (2.b) a nulidade da cláusula contratual que previa
a transferência definitiva da propriedade dos fonogramas originais à EMI; (2.c)
a resolução do contrato operada em virtude da remasterização não autorizada de
suas canções; e, finalmente, (2.d) a necessidade de prevenir novas modificações
indevidas em sua obra.
Confira-se:

14. Em primeiro lugar, porque há inúmeras causas de declaração de extinção


dos contratos originalmente celebrados. Embora os contratos contivessem uma
leonina previsão de transferência de propriedade, na verdade, tratava-se de simples
contratos atípicos para exploração temporária da produção artística, cuja base
contratual não mais subsiste há longo tempo. Demais disso, nunca passaram
de contratos que previam obrigações muito claras para ambas as partes. As
obrigações de João Gilberto muito nitidamente encerraram-se há quase 50
anos, ao passo que os deveres da EMI, por expressas determinações contratuais
e pela própria lógica daqueles pactos, sobrevivem até hoje. Em vez de cumpri-
los, no entanto, a ré optou por praticar utilização abusiva e ilícita dessa obra (já
reconhecida pelo Poder Judiciário) — induvidosamente contrária à adequada
gestão da produção artística do autor.

374
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

15. O pedido funda-se também na espúria violação dos direitos conexos do


compositor que a ré vem impingindo ao autor há décadas (inadimplemento
contumaz), bem como os danos de ordem moral e patrimonial daí decorrentes,
e que continuam a se perpetuar na sua esfera jurídica. Sabe-se que parte desses
danos será, de fato, indenizada com a execução do julgado na ação n. 0001020-
29.1997.8.19.0001; mas a fonte da ilicitude não irá cessar enquanto os originais das
gravações (os ditos masters) permanecerem com a ré.
16. Mas não é apenas isso: por força de decisão transitada em julgado, a ré
já não mais pode comercializar as gravações na forma em que se encontram
(adulteradas e remasterizadas), nem tampouco alterá-las novamente. Isso
significa que, mantendo-se em poder da ré os masters, não apenas se priva o
criador de poder sobre elas trabalhar e recriar, mas sobretudo se garante a ela, ré,
uma titularidade de propriedade sem qualquer utilidade e despida de função social,
o que não se coaduna com a nossa ordem constitucional.
[...]
os malsinados “contratos de locação” já não mais podem subsistir * hígidos na
ordem jurídica, dado o flagrante abuso praticado pela gravadora, que ilicitamente
alterou as gravações do autor, lançando-as alteradas no mercado e obtendo
vantagem ilícita à custa daquele mesmo contrato de cinquenta anos atrás, o qual,
aliás, vem sendo inadimplido por mais de vinte anos, com a retenção indevida de
todos os valores relacionados à comercialização da obra de João Gilberto... (e-STJ,
fls. 8/9 e 14 - sem destaque no original).

(2.a) Coisa julgada e interesse econômico


O primeiro e principal fundamento invocado por João Gilberto para
reivindicar os masters de suas canções originais seria a existência de coisa julgada
impedindo a EMI de comercializar sua obra. Referida circunstância, segundo
alegado, esvaziaria o interesse econômico daquela gravadora em permanecer
com os fonogramas originais.
Confira-se, a propósito, além da já transcrita passagem da petição inicial, o
seguinte trecho das razões do recurso especial:

12. Logo, este Tribunal Superior está sendo chamado para responder às
seguintes questões: (i) poderia a Corte local autorizar a comercialização da obra
do artista pela gravadora, em formato vinil, apesar da vedação expressa imposta
pelo STJ em decisão definitiva e transitada em julgado? (ii) diante da proibição de
comercialização, existe alguma utilidade econômica para que a EMI mantenha sob
sua posse as fitas masters nas quais está gravada a obra artística do intérprete?;
(iii) não havendo utilidade econômica, as fitas não devem ser retornadas ao
artista, único que, de acordo com a lei, é o titular da dignidade moral da obra e o

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 375


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

único que, a partir da proibição de comercialização pela gravadora determinada


pelo STJ, detém a prerrogativa de voltar a explorar economicamente a obra?
(e-STJ, fl. 1.111).

A partir da leitura do item 1 anteriormente apresentado, porém, já ficou


suficientemente esclarecido que esta Corte Superior, no julgamento do REsp
n. 1.098.626/RJ, da relatoria do Ministro Sidnei Beneti, apenas proibiu a
comercialização da obra remasterizada, isto é, daquela que foi modificada
indevidamente, sem autorização do artista. Isso não foi modificado no
julgamento do REsp n. 1.472.020/RJ, de minha relatoria.
Dessa forma, não haveria obstáculo, conforme consignado pelo acórdão
recorrido, para que a EMI comercializasse as canções em suas versões originais,
sobretudo na mídia prevista pelo próprio contrato, que era o Long Play (LP’s),
tendo em vista o disposto no art. 49, V, da Lei n. 9.610/98, nos termos do qual
a cessão dos direitos patrimoniais do autor “só se operará para modalidades de
utilização já existentes à data do contrato”.
Assim, considerando que os masters foram criados justamente para permitir
a reprodução das canções em LP’s, e, da mesma forma, que existe interesse
econômico, ao menos em tese, na comercialização desses LP’s, haveria, ao
contrário do que alegado no recurso especial, razoável justificativa para manter a
EMI na posse desses bens.
Repita-se, nesse sentido, o seguinte excerto do acórdão recorrido:

[...] a despeito do avanço tecnológico, que propiciou as gravações e


reproduções em mídias digitais, ainda existe um mercado para as mídias
analógicas. As gravações e reproduções em vinil ou LP’s ainda existem, e,
segundo alguns indicadores configuraria um mercado emergente, que até estaria
crescendo.
Seja como for, interessante ou não para a apelada do ponto de vista mercadológico
a exploração atual das gravações em mídia analógica ou vinil, deve-se reconhecer
que, do ponto de vista jurídico, essa possibilidade de exploração ainda existe, [...]
(e-STJ, fls. 901/903 - sem destaque no original).

Incabível, portando, cogitar de ausência de interesse econômico da EMI


em se manter na posse dos masters.

(2.b) Nulidade da cláusula contratual que previa a transferência definitiva da


propriedade dos masters por ofensa aos seus direitos morais de autor.

376
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro afirmou que João Gilberto não


poderia obter a posse ou a propriedade dos masters originais de seus álbuns,
porque aqueles fonogramas foram adquiridos contratualmente pela EMI.
Anote-se, a propósito, a seguinte passagem do acórdão estadual:

O direito de propriedade da empresa apelada sobre as disputadas fitas masters


encontra apoio no que foi estabelecido na cláusula quinta do primeiro contrato
celebrado entre as partes: “Fica a critério da Fábrica a publicação em qualquer
tempo e a retirada temporária ou definitiva das gravações feitas pelo Artista,
podendo a Fábrica continuar a fabricá-las e a vendê-las no país e no estrangeiro,
sob qualquer marca, mesmo depois de findo o prazo do presente contrato, ciente
o Artista, serem ditas gravações de propriedade exclusiva da Fábrica, que deles
poderá dispor livremente.” (fls. 381, indexador 386). A cláusula foi repetida no
contrato celebrado em 1960 (fls. 385 indexador 400) e confirmada no instrumento
de alteração e ratificação de fls. 390 (e-STJ, fl. 900).

Nas razões de seu recurso especial, João Gilberto alegou que referida
estipulação contratual violaria os arts. 22 e 24, incisos IV e V, da Lei n. 9.610/98,
nos termos dos quais ele teria direito não apenas à dimensão imaterial de sua
obra, mas também ao suporte físico no qual essa obra intelectual foi fixada.
Veja-se:

67. Outra forma de enquadrar-se a violação em que incorreu o acórdão


consubstancia-se no fato de que a proteção ao suporte físico que contém a obra
originária do Recorrente é verdadeira decorrência do próprio direito moral do
artista, cujo resguardo normativo é garantido pelos arts. 22 e 24, IV e V, também
da Lei de Direitos Autorais
[...]
69. A transmudação da posse sobre o suporte físico onde está inscrita obra é, em
toda a sua essência, um corolário lógico da proteção que a lei confere à dignidade
moral de todo e qualquer artista e à sua obra (e-STJ, fl. 1.129).

Os dispositivos legais mencionados têm a seguinte redação:

Art. 22. Pertencem ao autor os direitos morais e patrimoniais sobre a obra que
criou;
[...]
Art. 24. São direitos morais do autor:
[...]

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 377


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

IV - o de assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações


ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo,
como autor, em sua reputação ou honra;
V - o de modificar a obra, antes ou depois de utilizada;

Para melhor situar a discussão jurídica estabelecida acerca da posse/


propriedade desses masters, convém melhor elucidar o que sejam esses objetos.
Com o surgimento dos primeiros aparelhos de gravação de som - como
o fonógrafo, em 1877, e o gramofone, em 1888 - surgiu também um novo
mercado: o de fonogramas.
Segundo o “Dicionário Priberam da Língua Portuguesa”, este vocábulo
designa, simplesmente um “registro de som”. O art. 5º da Lei n. 6.910/98, a seu
turno, fornece um conceito legal em tudo semelhante:
Art. 5º Para os efeitos desta Lei, considera-se:

[...]
IX - fonograma - toda fixação de sons de uma execução ou interpretação ou de
outros sons, ou de uma representação de sons que não seja uma fixação incluída
em uma obra audiovisual;

O primeiro e mais antigo meio de armazenamento de áudio, isto é,


a primeira forma de se fabricar um fonograma, surgiu com o advento do
cilindro fonográfico, criado por Thomas Edison em 1877. A partir da segunda
década do Século XX, o disco feito de goma-laca reproduzido a 78 RPM
começou a substituir o cilindro como principal meio para comercialização
de fonogramas. Entre a década de 1920 e a de 1940, o disco sofreu diversas
alterações tecnológicas que lhe deram sobrevida - como a adoção das gravações
eletromecânicas e pequenas mudanças nos processos de gravação e produção
que permitiram ganhos sonoros e redução do ruído. Após 1945 os discos
passaram a ser fabricados predominantemente de vinil e, com o surgimento
do CD, em 1982, este se tornou o meio mais comum para comercialização de
fonogramas. Atualmente, esses registros sonoros circulam, sobretudo de forma
digital e muitas vezes via plataformas de streamming como o Deezer e o Spotify
(Disponível na Wikpédia - verbete masterização de áudio - Acesso aos 8/2/22).
Em seus primórdios, a fabricação das matrizes dos fonogramas vendidos
comercialmente envolvia processos meramente mecânicos. O áudio era captado
e gravado diretamente em um disco de cera que depois era pulverizado com
pó de grafite e, em seguida, passava por um processo de galvanoplastia para

378
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

produção de cópias negativas em cobre que eram chamadas de “carimbos”.


Estes negativos de cobre eram então utilizados para produzir discos em larga
escala através da pressão - carimbagem - que abria sulcos nos discos virgens de
goma-laca - amolecida pela ação do vapor. A técnica envolvida nesse processo,
naturalmente, modificou-se ao longo do tempo, mas ele continuou a ser
essencialmente mecânico por muitos e muitos anos (Disponível na Wikipédia
verbete masterização de áudio - Acesso aos 8/2/22).
Com o surgimento da fita magnética, porém, a criação das matrizes foi se
tornando cada vez mais dependente de operações realizadas após o registro do
som. A nova tecnologia permitiu, em primeiro lugar, que se fizessem edições
de gravações realizadas em diferentes momentos, selecionando os melhores
trechos de cada take, para montar a versão definitiva. Depois disso, o advento
do overdub – ou overdubbing –, técnica que possibilitava a sobreposição de
gravações, permitiu a criação de efeitos sonoros ainda mais sofisticados. Em
seguida, vieram os gravadores multipistas, ou multitrack, que permitiam o
registro dos sons de cada instrumento de forma independente, oferecendo
múltiplas possibilidades artísticas.
Hoje, a produção em estúdio das matrizes envolve não apenas o trabalho
técnico de captação e fixação do som, mas também a atividade criadora de
produtores, cantores, instrumentistas, arranjadores, técnicos e engenheiros
de som que atuam em cinco fases distintas: pré-produção, gravação, edição,
mixagem e masterização (FREDERICO ALBERTO BARBOSA MACEDO.
O processo de produção musical na indústria fonográfica. Disponível em: http://
www.rem.ufpr.br/_REM/REMv11/12/12- Macedo-Producao.pdf. Acesso aos
9/12/2021).
A masterização é, portanto, o passo final no processo de pós-produção do
áudio. Ela tem por objetivo balancear os elementos em uma mix em estéreo e
otimizar a reprodução em todo tipo de sistema de som e formatos de mídia.
Nesse sentido, a lição de NEHEMIAS GUEIROS JR.:

1.3 A masterização. A mixagem foi um procedimento que só começou a ser


adotado em larga escala na década de 60, e sua difusão na indústria musical
foi proporcional à evolução tecnológica dos equipamentos de gravação e dos
suportes materiais fonográficos, capazes de portarem sons e/ou imagens. Mas
com a chegada da revolução digital, na década de 80, um terceiro processo de
finalização da gravação foi introduzido pelo mercado: a masterização, que vem do
inglês masterizing ou masterization. Constitui um processo eletrônico destinado a
conferir excelência de qualidade sonora ao produto musical, ajustando, acertando

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 379


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

e eliminando piques de alta e baixa frequência na linha musical, harmonizar todas


as complexas estruturas resultantes de uma faixa musical pronta e mixada e
realizar a edição da música, definindo o começo e o fim da faixa (O Direito Autoral
no Show Business, 3ª ed. Rio de Janeiro: Gryphus, 2005. p. 243)

De rigor reconhecer, nesses termos, que a criação da matriz ou do


master como muitas vezes, por metonímia, é designado o resultado final desse
processo constitui, por si só, uma obra artística ( JORGE MANOEL MOITA
CARVALHO. Masterização M/S: uma técnica criativa. Escola das Artes da
Universidade Católica Portuguesa - Dissertação de mestrado, 2013).
Apesar disso, não há como ultrapassar a constatação de que referido produto,
porque encerra um registro sonoro materializado num meio físico, é, antes de
tudo, um fonograma tal como definido pelo art. 5º, IX, da Lei n. 6.910/98.
Isso é fundamental, porque o direito autoral distingue de forma muito
clara aquilo que se convencionou chamar de corpus misticum, que é a criação
autoral propriamente dita, isto é, a obra imaterial fruto do espírito criativo
humano, e o corpus mechanicum, que é, simplesmente, o meio físico no qual ela se
encontra materializada.
DENIS BORGES BARBOSA, de forma sintética e precisa, assinala
a importância dessa distinção afirmando que o direito autoral protege a obra
imaterial, a criação autoral, e não o meio físico onde ela se incorpore (Direito de
Autor. Questões fundamentais de Direito de Autor. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2013. p. 11).
De fato, a Lei n. 9.610/98, relaciona entre as obras intelectuais protegidas
pelo direito autoral as composições musicais, tenham elas letra ou não (art.
7º, V), mas não dispensa nenhuma proteção especial ao meio físico, ao corpus
mechanicum onde fixada a composição musical.
Assim, se a própria exploração econômica do direito do autor pode ser
cedida a terceiros mediante contrato (via de regra oneroso), com mais razão
também pode ser alienado a terceiros, os meios físicos que servem de substrato
material à criação imaterial do autor tornando-a sensível aos sentidos humanos.
Quem adquire um livro ou um vinil passa a ser, doravante, o proprietário
desse objeto, desse corpus mechanicum. Isso não diminui, em nenhuma medida os
direitos de autor daquele que escreveu o livro ou compôs as canções.
No caso das obras musicais, aliás, o modelo predominante de exploração
econômica foi, durante muito tempo, a reprodução de canções em meios físicos
(vinis, CD’s, fitas cassetes, etc), para posterior disponibilização ao público. E

380
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

jamais se cogitou afirmar que o autor das canções fixadas nessas mídias seria o
dono dessas mídias, apenas porque compôs ou executou as músicas que nelas se
continham.
Considerando, portanto, que o master tal como sucede às cópias que
podem ser extraídas a partir dele, representa, essencialmente, um meio físico
para registro da obra musical, isto é, uma forma de apresentação do fonograma,
não parece razoável afirmar que ele pertença, necessariamente, ao autor da obra
musical.
Sem prejuízo da distinção técnico-qualitativa que existe entre a matriz e as
cópias, ambas constituem, em última análise, bens corpóreos, e, na condição de
corpora mechacica podem ser livremente alienados.
Bem por isso, não se vê nenhuma ilegalidade flagrante na cláusula
contratual que estabeleceu a transferência definitiva da propriedade dos masters
para a EMI.
Não se vislumbra nenhum fundamento jurídico para afirmar que os
direitos morais do autor teriam aptidão para, nas palavras utilizadas pela petição
recursal, “transmutar a posse ou a propriedade” do meio físico no qual gravada a
criação imaterial.
O master, assim como o vinil que dele foi copiado, uma vez alienado, passa
ao patrimônio de quem o adquiriu.
Se o compositor/intérprete de uma canção não pode reivindicar a posse/
propriedade de um vinil já comercializado com fundamento em uma suposta
transmutação operada pelo seu direito moral de autor, tampouco pode fazê-lo
em relação aos masters, uma vez que estes são apenas uma forma diferenciada de
apresentação do mesmo fonograma.
Ainda com relação ao tema, vale acrescentar que os artigos de lei apontados
como violados nas razões do recurso especial não dão suporte à pretensão
formulada.
Em suma, os arts. 22 e 24, V e VI, da Lei n. 9.610/98, pelo seu conteúdo
normativo, não conferem ao autor/intérprete a possibilidade de reivindicar
masters, matrizes ou gravações originais como um desdobramento necessário
dos seus direitos de personalidade.

(2.c) Da resolução do contrato pela remasterização não autorizada

Com relação ao tema existe uma consideração importante a ser feita:


muito embora a petição inicial tenha requerido o desfazimento do contrato

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 381


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

com fundamento no inadimplemento caracterizado pela remasterização não


autorizada, conforme exposto no início desse tópico, as razões do recurso
especial não repetiram esse mesmo pedido.
Com efeito, na petição recursal não foi alegada ofensa, por exemplo, ao art.
475 do CC/02, nos termos do qual a parte lesada pelo inadimplemento pode pedir
a resolução do contrato.
Aliás, o acórdão recorrido nem sequer tratou do tema, tendo simplesmente
afirmado que o contrato permanecia válido o que viabilizava a exploração das
canções em suas versões originais em LP’s pela EMI.
A irresignação recursal efetivamente apresentada, por sinal com base
apenas na alínea c, do permissivo constitucional, afirmou simplesmente que
João Gilberto faria jus aos masters, porque o contrato foi desfeito em razão da
remasterização não autorizada, levada a efeito pela EMI.
Como se vê, as razões recursais partem da premissa de que o contrato foi
desfeito para, com base nisso, pedir a devolução dos masters.
O pedido recursal (e a respectiva causa de pedir) são apresentados de
modo sintético, mas bastante claro, em forma de questionamento, na seguinte
passagem do especial:

(...) o artista que teve a sua obra mutilada e denegrida por uma gravadora pode
ser forçado a manter a sua obra prima depositada com esta mesma gravadora
que, diga-se, reiteradamente, se mostrou indigna de exercer essa função cuja
tônica é a fidúcia? (e-STJ, fl. 1.129).

Para amparar o pedido de obtenção dos masters por força da modificação


não autorizada de suas canções, João Gilberto simplesmente suscitou dissídio
jurisprudencial em relação a acórdão desta Corte Superior, assim ementado:

Processo Civil. Agravo interno. Juízo de admissibilidade do recurso especial na


instância de origem. Incursão no mérito. Art. 105, III, a, CF. Possibilidade. Negativa
de prestação jurisdicional. Inocorrência. Apreciação dos pontos relevantes. Fitas
master. Art. 98, Lei 5.988/73. Agravo desprovido.
I - É possível o juízo de admissibilidade adentrar o mérito do recurso, na
medida em que o exame da sua admissibilidade, pela alínea a, em face dos seus
pressupostos constitucionais, envolve o próprio mérito da controvérsia.
II - Não nega a prestação jurisdicional o acórdão que aprecia os pontos
relevantes ao deslinde da causa, sem incorrer nos vícios passíveis de correção pela
via dos embargos declaratórios.

382
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

III - Uma vez desfeito judicialmente o contrato que permitia a utilização das
fitas master pela produtora, não há razões para a permanência em poder desta de
objeto do qual não possa fazer uso.
IV - A existência ou não de concurso de várias pessoas para a realização da
obra artística dependeria, no caso, do reexame das provas e da interpretação das
cláusulas contratuais, vedados a esta instância especial.
(AgRg no Ag 213.570/RJ, Rel. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, Quarta
Turma, DJ 8/3/2000)

Mas o dissídio jurisprudencial não pode ser admitido por dois fundamentos:
primeiramente, porque o acórdão paradigma se debruça sobre artigo de lei não
examinado no aresto vergastado, o art. 98 da Lei n. 5.988/73; em segundo
lugar, porque existe uma diferença essencial entre a moldura fática dos casos
confrontados.
A partir da leitura do acórdão recorrido, é possível perceber que não
foi examinado, em nenhum momento, o art. 98 da Lei n. 5.988/73 ou o seu
conteúdo normativo. Assim, para efeito de cabimento do recurso especial pela
alínea c do permissivo constitucional, não é possível sustentar que a Corte
Fluminense tenha conferido a esse dispositivo de lei interpretação diversa
daquela conferida por esta Corte Superior no julgamento do AgRg no Ag
213.570/RJ.
Paralelamente, no caso do acórdão paradigma, houve prévia “rescisão”
judicial do contrato. Nesses termos, a devolução dos masters se apresentava,
naquela oportunidade, como um consectário natural dessa “rescisão”, uma vez
que a produtora musical não podia mais explorá-los comercialmente.
Confira-se, a propósito, as seguintes passagens do voto proferido pelo
Relator do caso, o saudoso Ministro Sálvio de Figueiredo:

No caso dos autos, o contrato firmado pelas partes, no qual o agravado cedia
todos os direitos sobre os fonogramas reconhecendo serem eles de propriedade
da agravante, foi “rescindido” judicialmente.
[...]
Finalmente, porque não há razão prática para que a produtora permaneça com
as fitas masters se não possui mais os direitos sobre a obra e, consequentemente,
não poderá mais comercializá-las.
[...]
3. Em relação à violação do art. 98 da Lei 5.988/73, o contrato que permitira
a utilização das fitas pela produtora restou desfeito por decisão judicial, não

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 383


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

havendo mais interesse da agravante em permanecer com o objeto do qual não


pode fazer uso.

Mas, na hipótese dos autos, como já destacado, o contrato firmado entre


João Gilberto e EMI não foi desfeito, permanece hígido. Além disso, já se
reconheceu que a EMI ainda pode comercializar as gravações musicais em suas
versões originais. Daí resulta que ela tem inegável interesse jurídico e econômico
em permanecer na posse dos masters.
A rigor, o acórdão paradigma não corrobora a tese defendida por João
Gilberto no recurso especial, servindo, ao contrário, justamente para desautorizá-
la, pois a partir de uma interpretação a contrario sensu da ratio decidendi ali
apresentada, pode-se afirmar que, no caso concreto, os masters não deveriam ser
devolvidos ao artista.

(2.d) Necessidade de prevenir novas modificações indevidas

João Gilberto alegou em sua petição que a devolução dos masters se impunha
como forma de prevenir novas violações ao seu direito de autor.

[...] a fonte da ilicitude não irá cessar enquanto os originais das gravações (os
ditos masters) permanecerem com a ré (e-STJ, fl. 8).

Nas razões do recurso especial, essa argumentação não foi reiterada ou pelo
menos não o foi de forma consistente, razão pela qual não pode ser examinada
nesta oportunidade.
Acrescente-se, apenas a título de obiter dictum, que o exame desse
argumento resvalaria, de qualquer modo, na Súmula n. 7 do STJ, pois
intrinsecamente ligado à prova dos autos. Com efeito, não há notícia de que a
EMI tenha comercializado as obras musicais de João Gilberto com modificações
não autorizadas após o trânsito em julgado do REsp n. 1.098.626/RJ. Tampouco
foi destacado pelas instâncias de origem que a melhor forma de inibir referida
conduta ilícita é determinar a devolução dos masters ao autor.

(3) Da interpretação extensiva do contrato

As razões do recurso especial afirmaram, por fim, que, os arts. 4º e 49 da


Lei n. 9.610/98 impediriam uma interpretação do contrato em prejuízo aos
direitos morais do autor, interditando, por isso, a conclusão de que houve uma
compra e venda dos masters pela EMI.

384
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

No caso dos autos, a confecção dos fonogramas reclamados ocorreu com


a finalidade precípua de viabilizar a reprodução e comercialização das músicas
em LP’s. Eles foram criados e permaneceram com a EMI, vale insistir, porque
isso era necessário, segundo o modelo de negócio então praticado e de acordo
com a tecnologia então existente, para viabilizar a exploração econômica da obra
musical de João Gilberto, mediante a remuneração avençada pelas partes.
Conforme destacado em itens anteriores, esses masters, como qualquer
outro fonograma (CD, LP, vinil, etc.) constituem apenas o suporte material em
que fixada a criação espiritual do autor e, nessa medida, podem ser livremente
negociados pelas partes.
Não há falar, portanto, em uma proibição legal à sua compra e venda.
Fixada essa premissa, impende concluir que a discussão suscitada no
recurso especial quanto a interpretação ampliativa ou restritiva do contrato,
esbarra francamente na Súmula n. 5 do STJ.
Registre-se que a Corte Fluminense jamais afirmou que o contrato poderia
ser interpretado ampliativamente em desfavor do artista. Disse apenas que os
masters seriam, por força desse contrato, propriedade da EMI.
Confira-se:

O direito de propriedade da empresa apelada sobre as disputadas fitas masters


encontra apoio no que foi estabelecido na cláusula quinta do primeiro contrato
celebrado entre as partes: “Fica a critério da Fábrica a publicação em qualquer
tempo e a retirada temporária ou definitiva das gravações feitas pelo Artista,
podendo a Fábrica continuar a fabricá-las e a vendê-las no país e no estrangeiro,
sob qualquer marca, mesmo depois de findo o prazo do presente contrato, ciente
o Artista, serem ditas gravações de propriedade exclusiva da Fábrica, que deles
poderá dispor livremente.” (e-STJ, fl. 900).
[...]
Além disso, não parece razoável o entendimento de que o corpus mechanicum
em que se encontram materializadas as interpretações não tenha, em si, um
valor a ser considerado, seja do ponto de vista econômico, seja do ponto de
vista jurídico. Assim como a primeira edição de uma obra literária tem seu valor
histórico e econômico, a fita em que se encontra a gravação original da obra
musical pode ter, para além do valor do corpus misticum, um valor intrínseco.
Assim, deve-se reconhecer o direito de propriedade da apelada às fitas masters
(e-STJ, fl. 906).

A discussão não diz respeito, portanto a possibilidade ou impossibilidade


de se conferir interpretação ampliativa ao contrato. Diz respeito, sim, a correta

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 385


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

interpretação da avença: enquanto, o TJRJ afirma que a avença estabelecia a


propriedade dos masters em favor da EMI, João Gilberto afirma que ela não teria
esse conteúdo.
Incide, portanto, a Súmula n. 5 do STJ, com a seguinte redação: A simples
interpretação de cláusula contratual não enseja recurso especial.
Em síntese:
(i) O recurso especial de EMI deve ser desprovido. Isso, porque a pretensão
deduzida em juízo por João Gilberto, de obter os masters de suas canções originais,
não está calcada em fundamentos econômicos, mas nos direitos morais do autor
que, alegadamente, concederiam a ele a posse e a propriedade sobre referidos bens.
(ii) O recurso especial de João Gilberto, tampouco pode prosperar, uma vez
que:
a - O REsp n. 1.098.626/RJ, da relatoria do Ministro Sidnei Beneti, de
acordo com o pedido então formulado, com a ratio decidendi que orientou o
julgamento e com o dispositivo do acórdão, não proibiu a EMI de continuar
produzindo e comercializando as canções originais de João Gilberto em LP’s.
b - Naquela oportunidade, apenas foi interditado o comércio do CD
contendo as versões remasterizadas da obra musical do artista sem a devida
autorização.
c - O REsp n. 1.472.020/RJ, de minha relatoria, tampouco vedou a
exploração econômica do repertório musical em sua versão original, apenas
reconheceu que o acórdão relatado pelo Ministro Sidnei Beneti, encerrava uma
obrigação de não fazer.
d - Inexiste, portanto, coisa julgada, proibindo a EMI de produzir e
comercializar, em LP, as canções contidas nos masters; razão pela qual se
reconhece o interesse não apenas jurídico, mas também econômico dessa
gravadora em permanecer na posse desses bens.
e - A interpretação do título executivo defendida nas razões do recurso
especial sonegaria do grande público, em alguma medida, um patrimônio
imaterial coletivo, apagando, por assim dizer, uma contribuição inestimável à
cultura ocidental em franca ofensa ao art. 216, III, e § 1º, da CF.
f - Além disso, o master, como qualquer outro fonograma definido pelo
art. 5º, IX, da Lei n. 6.910/98, constitui, um meio físico continente da obra
imaterial do autor e, na condição de bem corpóreo (corpus mechanicum), pode ser
livremente alienado.

386
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

g - O pedido de resolução do contrato com base do inadimplemento


(caracterizado pela remasterização não autorizada) e subsequente devolução dos
masters veio amparado exclusivamente em dissídio jurisprudencial que, todavia,
não pode ser conhecido por ausência de similitude fática.
h - A alegação de que o contrato teria sido interpretado ampliativamente
de modo a prejudicar os direitos do autor esbarra na Súmula n. 5 do STJ.
Nessas condições, pelo meu voto, nego provimento ao recurso especial
de EMI e conheço parcialmente o recurso especial de Joâo Gilberto para, nessa
extensão, negar-lhe provimento. Finalmente, majoro em 5% o valor dos
honorários advocatícios sucumbenciais anteriormente fixados em desfavor de
João Gilberto, na forma do art. 85, § 11, do NCPC.

RECURSO ESPECIAL N. 1.827.060-SP (2019/0208031-1)

Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino


Recorrente: Queiroz Galvão Desenvolvimento Imobiliário S.A. Em
Recuperação Judicial
Advogados: Rosangela Benedita Gazdovich - SP252192
Karina Alencar da Silva Pereira - SP359061
Carolina Rinaldi da Silva - SP385673
Recorrente: Fernandez Mera Holding e Participacoes Ltda
Advogados: Hélio Pinto Ribeiro Filho - SP107957
Fabiane Lima de Queiroz - SP188086
Maria Rafaela Guedes Pedroso Porto - SP207247
Recorrido: Rosangela Macedo Felix
Recorrido: Jose Antonio Guaraldi Felix
Advogados: Ricardo Cerqueira Leite - SP140008
Daniela Araujo Espurio - SP143401
Maria Fernanda Silva Sousa - SP307376

EMENTA

I. Recurso especial. Direito do Consumidor e Processual Civil.


Incorporação imobiliária. Legitimidade passiva da incorporadora

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 387


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

para o pedido de restituição da SATI. Tema 939/STJ. Cláusula penal


moratória. Previsão para o caso de atraso na entrega da obra. Cessação
na data do Habite-se. Descabimento. Termo ‘ad quem’. Data da
efetiva entrega das chaves. Tema 966/STJ. Sucumbência recíproca.
Pretensão de redimensionamento. Ausência de prequestionamento.
Óbice da Súmula 282/STJ.
1. Legitimidade passiva da incorporadora para responder pela
restituição do valor cobrado pelo serviço assessoria técnico-imobiliária
- SATI, nos termos do Tema 939/STJ.
2. Incidência da cláusula penal pertinente ao atraso na entrega
da obra até à data da efetiva entrega das chaves, sendo descabida a
pretensão de cessação dessa parcela indenizatória na data da concessão
do “Habite-se” (Tema 996/STJ).
3. Ausência de prequestionamento do enunciado normativo
do art. 86 do CPC/2015, tornando-se inviável de conhecimento a
insurgência contra a distribuição dos encargos sucumbenciais, em
virtude do óbice da Súmula 282/STF.
4. Desprovido, com majoração de honorários, o recurso especial
interposto por Queiroz Galvão Desenvolvimento Imobiliário S.A.

II. Recurso especial. Direito do Consumidor e Processual Civil.


Incorporação imobiliária. Atraso na entrega da unidade autônoma.
Responsabilização solidária da imobiliária. Descabimento. Ausência de
violação ao dever de informação por parte da imobiliária. Inocorrência
das hipóteses legais de responsabilidade solidária. Precedentes.
Improcedência do pedido. Teoria da asserção. Primazia do julgamento
de mérito.
1. Controvérsia acerca da responsabilidade solidária da empresa
imobiliária pelo atraso da obra do empreendimento que intermediou
perante os adquirentes das unidades autônomas.
2. Nos termos do art. 265 do Código Civil: “a solidariedade não
se presume; resulta da lei ou da vontade das partes”.
3. Existência de recentes precedentes desta Corte Superior no
sentido de que a empresa que atuou na intermediação imobiliária
não responde solidariamente com a incorporadora pelo atraso na

388
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

entrega da obra, salvo nas hipóteses de falha do serviço de corretagem


ou de envolvimento da corretora nas atividades de  incorporação e
construção.
4. Caso concreto em que se fez constar na publicidade do
empreendimento a logomarca da imobiliária, ao lado da logomarca da
incorporadora.
5. Tratando-se de logomarcas distintas, essa publicidade atende ao
requisito da clareza da informação, permitindo-se identificar a empresa
responsável pela edificação do empreendimento imobiliário, e aquela
responsável pela comercialização das unidades, não sendo possível
extrai-se desse fato conclusão no sentido de que a imobiliária seria
parceira da incorporadora também na incorporação e na construção
do empreendimento, de modo a se responsabilizar solidariamente a
imobiliária.
6. Ausência de violação do dever de informação acerca do possível
atraso na obra, uma vez que a possibilidade de atraso é inerente ao
vínculo contratual e, ademais, o contrato previa prazo de tolerância
e cláusula penal para essa hipótese, de modo que a alegada ênfase do
corretor de imóveis na pontualidade do empreendimento não passaria
de mero ‘dolus bonus’.
7. Não se verificando hipótese legal ou contratual de solidariedade
entre as empresas demandas, impõe-se a reforma do acórdão recorrido
para excluir a imobiliária da condenação solidária ao pagamento da
parcela indenizatória.
8. Com base na teoria a asserção, a conclusão pela ausência
de responsabilidade solidária da imobiliária conduz, no caso dos
autos, à improcedência do pedido, não à ilegitimidade da imobiliária.
Precedentes sobre a teoria da asserção.
9. Prejudicialidade da alegação de negativa de prestação
jurisdicional, tendo em vista a aplicação dos princípios da primazia do
julgamento de mérito e da duração razoável do processo, no presente
julgamento.
10. Provido o recurso especial de Fernandez Mera Holding e
Participações Ltda.

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 389


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,


acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça por
unanimidade, negar provimento ao recurso especial interposto por Queiroz
Galvão Desenvolvimento Imobiliário S.A. e dar provimento ao recurso especial
de Fernandez Mera Holding e Participações Ltda, nos termos do voto do Sr.
Ministro Relator. Os Srs. Ministros Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio
Bellizze, Moura Ribeiro e Nancy Andrighi votaram com o Sr. Ministro Relator.
Dra. Maria Fernanda Silva Sousa, pela parte recorrida: Rosangela Macedo
Felix e Outra
Brasília (DF), 22 de fevereiro de 2022 (data do julgamento).
Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Relator

DJe 25.2.2022

EMENTA

Recurso especial. Direito do Consumidor e Processual Civil.


Incorporação imobiliária. Legitimidade passiva da incorporadora
para o pedido de restituição da SATI. Tema 939/STJ. Cláusula penal
moratória. Previsão para o caso de atraso na entrega da obra. Cessação
na data do Habite-se. Descabimento. Termo ‘ad quem’. Data da
efetiva entrega das chaves. Tema 966/STJ. Sucumbência recíproca.
Pretensão de redimensionamento. Ausência de prequestionamento.
Óbice da Súmula 282/STJ.
1. Legitimidade passiva da incorporadora para responder
pela restituição do valor cobrado pelo Serviço Assessoria Técnico-
Imobiliária - SATI, nos termos do Tema 939/STJ.
2. Incidência da cláusula penal pertinente ao atraso na entrega
da obra até à data da efetiva entrega das chaves, sendo descabida a
pretensão de cessação dessa parcela indenizatória na data da concessão
do “Habite-se” (Tema 996/STJ).
3. Ausência de prequestionamento do enunciado normativo
do art. 86 do CPC/2015, tornando-se inviável de conhecimento a

390
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

insurgência contra a distribuição dos encargos sucumbenciais, em


virtude do óbice da Súmula 282/STF.
4. Recurso especial desprovido, com majoração de honorários.

RELATÓRIO

Trata-se de recurso especial interposto por Queiroz Galvão Desenvolvimento


Imobiliário Ltda em face de acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo, assim ementado:

Apelação. Ação de Indenização por Danos Materiais e Morais. Promessa de


Compra e Venda. Alegação de atraso na entrega da unidade, ilegalidade da
cobrança de comissão de corretagem e da taxa SATI, a aplicação da multa por
mora da alienante prevista na cláusula 9.3 do contrato firmado entre as partes,
a indenização por danos materiais consubstanciada em lucros cessantes e
danos morais. Sentença de parcial procedência. Inconformismo das partes: dos
autores, alegando, basicamente, o direito a restituição do valor pago a título
de corretagem, uma vez que tal cobrança é ilegal, e que deve ser considerada
como termo final da multa contratual por mora da alienante, a data da efetiva
entrega das chaves; da ré Fernandez Mera, suscitando preliminares de ausência
de interesse processual e ilegitimidade passiva com relação ao descumprimento
do contrato e, alegando, no mérito, a impossibilidade de arcar com o pagamento
da multa por mora contratual e a não devolução do valor pago pelos autores a
título de taxa SATI; da ré Queiroz Galvão, suscitando preliminar de ilegitimidade
passiva com relação a devolução do valor pago pelos autores a título de taxa SATI
e, alegando, no mérito a legalidade de tal cobrança, e que o ônus de sucumbência
deve ser proporcional, uma vez que os apelados foram vencidos em 90% dos
pedidos. Acolhimento apenas da insurgência dos autores contra o termo final da
multa moratória, para o qual deve ser considerada a data da entrega das chaves.
Legitimidade passiva das rés para responderem a todos os pedidos dos autores.
Comissão de corretagem devida. Autores que foram previamente informados
da obrigação de pagamento de seu respectivo valor. Cobrança de Taxa SATI
considerada abusiva. Entendimento sedimentado pelo C.S.T.J em sede de recurso
repetitivo-Recurso parcialmente provido dos autores e desprovidos os das rés. (fl.
1.187)

Opostos embargos de declaração, foram rejeitados (fls. 1.228/32).


Em suas razões, a incorporadora recorrente, sob alegação de ofensa aos
arts. 86 e 485, inciso VI, do Código de Processo Civil, além dos arts. 876 e 884
do Código Civil, pleiteia a reforma do acórdão recorrido para: (a) declarar a

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 391


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

ilegitimidade passiva para o pedido referente à restituição da SATI; (b) retroagir


o termo ad quem da multa contratual até à data da expedição do “Habite-se”; e
(c) alterar a distribuição dos encargos sucumbenciais.
Opostos embargos de declaração, foram rejeitados.
Contrarrazões às fls. 1.291/1.320.
Houve também interposição de recurso especial por Fernandez Mera
Negócios Imobiliários, recurso que será objeto de voto apartado.
É o relatório.

VOTO

O recurso especial não merece ser provido.


A controvérsia diz respeito às indenizações devidas em virtude de atraso na
entrega do imóvel, e à legitimidade passiva para o pedido de restituição do valor
do Serviço de Assessoria Técnico-Imobiliária (SATI).
Inicialmente, no que tange à SATI, a alegação de ilegitimidade passiva
da incorporadora desafia o entendimento firmado por esta Corte Superior no
julgamento do Tema 939/STJ, abaixo transcrito:

Tema 939/STJ - Legitimidade passiva ‘ad causam’ da incorporadora, na condição


de promitente-vendedora, para responder pela restituição ao consumidor dos
valores pagos a título de comissão de corretagem e de taxa de assessoria técnico-
imobiliária, nas demandas em que se alega prática abusiva na transferência
desses encargos ao consumidor.

De outra parte, no que tange ao termo ad quem da multa contratual, o


acórdão recorrido está em sintonia com o entendimento desta Corte Superior,
também firmado sob o rito dos repetitivos, no sentido de que o referido termo é
a data da disponibilização da posse direta da unidade autônoma já regularizada.
Refiro-me ao Tema 996/STJ, abaixo transcrito:

Tema 996/STJ - O atraso da entrega do imóvel objeto de compromisso de


compra e venda gera, para o promitente vendedor, a obrigação de indenizar o
adquirente pela privação injusta do uso do bem, na forma de valor locatício, que
pode ser calculado em percentual sobre o valor atualizado do contrato ou de
mercado, correspondente ao que este deixou de receber, ou teve de pagar para
fazer uso de imóvel semelhante, com termo final na data da disponibilização da
posse direta da unidade autônoma já regularizada.

392
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

No que tange à insurgência contra a distribuição dos encargos


sucumbenciais, o recurso não merece ser conhecido, pois a controvérsia
pertinente ao art. 86 do CPC/2015 não foi enfrentada pelo Tribunal de origem,
carecendo o tema do necessário prequestionamento (óbice da Súmula 282/
STF).
Sobre os encargos da sucumbência, o Tribunal de origem sequer conheceu
do recurso.
Confira-se o seguinte trecho do acórdão recorrido:

Por fim, deixo de apreciar a alegação da corré Galvão Queiroz quanto


à distribuição proporcional da sucumbência, uma vez que tal questão já foi
resolvida quando do acolhimento dos seus Embargos de Declaração.
(fl. 1.195)

Por fim, considerando que o presente recurso foi interposto na vigência do


Novo Código de Processo Civil (Enunciado Administrativo n. 07/STJ), impõe-
se a majoração dos honorários inicialmente fixados contra a incorporadora, em
atenção ao art. 85, § 11, do CPC/2015.
O referido dispositivo legal tem dupla funcionalidade, devendo atender à
justa remuneração do patrono pelo trabalho adicional na fase recursal e inibir
recursos cuja matéria já tenha sido exaustivamente tratada. Assim, com base
em tais premissas e considerando que o Tribunal de origem manteve a verba
honorária em 8% sobre o valor atualizado da condenação (e-STJ fls. 1.020), em
benefício do patrono da parte recorrida, a majoração dos honorários devidos
pela parte ora recorrente em 1% é medida adequada ao caso, mantida a base de
cálculo.
Ante o exposto, voto no sentido de negar provimento ao recurso especial.
É o voto.

Recurso especial. Direito do Consumidor e Processual Civil.


Incorporação imobiliária. Atraso na entrega da unidade autônoma.
Responsabilização solidária da imobiliária. Descabimento. Ausência de
violação ao dever de informação por parte da imobiliária. Inocorrência
das hipóteses legais de responsabilidade solidária. Precedentes.
Improcedência do pedido. Teoria da asserção. Primazia do julgamento
de mérito.

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 393


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

1. Controvérsia acerca da responsabilidade solidária da empresa


imobiliária pelo atraso da obra do empreendimento que intermediou
perante os adquirentes das unidades autônomas.
2. Nos termos do art. 265 do Código Civil: “a solidariedade não
se presume; resulta da lei ou da vontade das partes”.
3. Existência de recentes precedentes desta Corte Superior no
sentido de que a empresa que atuou na intermediação imobiliária
não responde solidariamente com a incorporadora pelo atraso na
entrega da obra, salvo nas hipóteses de falha do serviço de corretagem
ou de envolvimento da corretora nas atividades de incorporação e
construção.
4. Caso concreto em que se fez constar na publicidade do
empreendimento a logomarca da imobiliária, ao lado da logomarca da
incorporadora.
5. Tratando-se de logomarcas distintas, essa publicidade atende ao
requisito da clareza da informação, permitindo-se identificar a empresa
responsável pela edificação do empreendimento imobiliário, e aquela
responsável pela comercialização das unidades, não sendo possível
extrai-se desse fato conclusão no sentido de que a imobiliária seria
parceira da incorporadora também na incorporação e na construção
do empreendimento, de modo a se responsabilizar solidariamente a
imobiliária.
6. Ausência de violação do dever de informação acerca do possível
atraso na obra, uma vez que a possibilidade de atraso é inerente ao
vínculo contratual e, ademais, o contrato previa prazo de tolerância
e cláusula penal para essa hipótese, de modo que a alegada ênfase do
corretor de imóveis na pontualidade do empreendimento não passaria
de mero ‘dolus bonus’.
7. Não se verificando hipótese legal ou contratual de solidariedade
entre as empresas demandas, impõe-se a reforma do acórdão recorrido
para excluir a imobiliária da condenação solidária ao pagamento da
parcela indenizatória.
8. Com base na teoria a asserção, a conclusão pela ausência
de responsabilidade solidária da imobiliária conduz, no caso dos

394
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

autos, à improcedência do pedido, não à ilegitimidade da imobiliária.


Precedentes sobre a teoria da asserção.
9. Prejudicialidade da alegação de negativa de prestação
jurisdicional, tendo em vista a aplicação dos princípios da primazia do
julgamento de mérito e da duração razoável do processo, no presente
julgamento.
10. Recurso especial provido.

RELATÓRIO

Trata-se de recurso especial interposto por Fernandez Mera Holding E


Participações Ltda em face acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo, assim ementado:
Apelação. Ação de Indenização por Danos Materiais e Morais. Promessa
de Compra e Venda. Alegação de atraso na entrega da unidade, ilegalidade
da cobrança de comissão de corretagem e da taxa SATI, a aplicação da multa
por mora da alienante prevista na cláusula 9.3 do contrato firmado entre as
partes, a indenização por danos materiais consubstanciada em lucros cessantes e
danos morais. Sentença de parcial procedência. Inconformismo das partes: dos
autores, alegando, basicamente, o direito a restituição do valor pago a título de
corretagem, uma vez que tal cobrança é ilegal, e que deve ser considerada como
termo final da multa contratual por mora da alienante, a data da efetiva entrega
das chaves; da ré Fernandez Mera, suscitando preliminares de ausência de
interesse processual e ilegitimidade passiva com relação ao descumprimento do
contrato e, alegando, no mérito, a impossibilidade de arcar com o pagamento da
multa por mora contratual e a não devolução do valor pago pelos autores a título
de taxa SATI; da ré Queiroz Galvão, suscitando preliminar de ilegitimidade
passiva com relação a devolução do valor pago pelos autores a título de taxa
SATI e, alegando, no mérito a legalidade de tal cobrança, e que o ônus de
sucumbência deve ser proporcional, uma vez que os apelados foram vencidos
em 90% dos pedidos. Acolhimento apenas da insurgência dos autores contra
o termo final da multa moratória, para o qual deve ser considerada a data da
entrega das chaves. Legitimidade passiva das rés para responderem a todos
os pedidos dos autores. Comissão de corretagem devida. Autores que foram

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 395


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

previamente informados da obrigação de pagamento de seu respectivo valor.


Cobrança de Taxa SATI considerada abusiva. Entendimento sedimentado pelo
C.S.T.J em sede de recurso repetitivo. Recurso parcialmente provido dos autores
e desprovidos os das rés. (fl. 1.187)
Opostos embargos de declaração, foram rejeitados (fls. 1.228/32).
Em suas razões, a imobiliária recorrente alegou violação aos arts. 1.022,
inciso II, do Código de Processo Civil/2015, art. 14, § 4º, e 70, parágrafo único,
o Código de Defesa do Consumidor, arts. 186 e 265 do Código Civil, arts. 21,
parágrafo único, e 267, IV, do Código de Processo Civil/1973, e artigo 47 da Lei
6.766/1979, sob os argumentos de: (a) negativa de prestação jurisdicional; (b)
ilegitimidade passiva da imobiliária; (c) ausência de culpa pelo atraso da obra;
(d) autonomia do contrato de corretagem em relação ao contrato intermediado;
(e) responsabilidade subjetiva de quem exerce atividade de profissional liberal;
(f ) descabimento da condenação solidária da imobiliária na obrigação de
indenizar o consumidor; e (g) inexistência de cadeia de fornecimento.
Contrarrazões às fls. 1.291/1.320.
Juízo positivo de admissibilidade às fls. 1.350/2.
Houve também recurso especial interposto pela incorporadora Queiroz
Galvão Desenvolvimento Imobiliário Ltda (fls. 1.198/1.212), o qual será objeto de
voto apartado.
É o relatório.

VOTO
Eminentes colegas, o recurso especial merece ser provido.
A polêmica central do presente recurso diz com a responsabilidade
solidária da empresa imobiliária pelo atraso da obra do empreendimento que
intermediou perante os adquirentes das unidades autônomas, ora recorridos.
O juízo e o Tribunal de origem condenaram solidariamente a incorporadora
e a imobiliária a indenizar o consumidor pelo atraso na entrega da obra, em
valor correspondente à cláusula penal moratória (0,5% do valor do contrato, por
mês de atraso).
No acórdão recorrido, constou que as empresas seriam parceiras no
empreendimento, sendo portanto solidárias na responsabilidade pelos danos
causados aos adquirentes.

396
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

Confira-se o seguinte trecho do acórdão do recurso integrativo:

Quanto à responsabilidade da embargante Fernandez Mera, há que se


registrar que embora tenha figurado como intermediária, ela é parceira da corré
Queiroz Galvão no empreendimento em questão, devendo, portanto, responder
solidariamente por eventuais perdas e danos causados aos autores. (fl. 1.231/2)

Daí a insurgência recursal da imobiliária no presente apelo nobre, alegando


ofensa, dentre outros, ao art. 265 do Código Civil, segundo o qual “a solidariedade
não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes”.
Passando à apreciação do recurso especial, verifica-se que a “parceria” entre
as empresas, conforme descrito na inicial e incontroverso nos autos, se limitaria
à comercialização das unidades autônomas, não se tratando de uma parceria
para incorporação e construção do empreendimento imobiliário.
É o que se depreende dos seguintes trechos da peça vestibular, litteris:

Preliminarmente convêm ressaltar a participação de ambas as Rés no evento


danoso que causou os prejuízos relatados aos Autores, agindo uma em nome
da outra e com união bem clara de propósitos, daí porque a solidariedade
passiva de ambas nos termos da legislação consumerista. Ficou evidente, desde
as primeiras negociações, que tanto a empresa Fernandez Mera, quanto a
própria Queiroz Galvão, de maneira alinhada, prometeram à venda o imóvel aqui
discutido em prazos e condições de pagamentos assumidas por ambas e que
o descumprimento contratual praticado as obriga de maneira indissociável a
ressarcir os prejuízos dos consumidores de forma solidária.
............................................................
Ademais, constituía obrigação das rés, por meio de seus prepostos, alertarem
os Autores sobre o risco de atraso na entrega do empreendimento; o que não
foi realizado, pois o vendedor sempre foi enfático ao prometer que o prazo de
entrega seria rigorosamente cumprido. Faltou transparência à negociação, pois
a Rés não foram clara quanto à possibilidade de atraso nas obras, não havendo
sinceridade dela no momento da contratação, buscando somente o lucro, mesmo
que para isso precisassem iludir o consumidor. (fls. 12 e 17)

Registre-se também que a inicial foi instruída com o documento de fl.


55 (Tabela de Vendas), no qual se constata, primo ictu oculi, a logomarca da
imobiliária (à época denominada Fernandes Mera Negócios Imobiliários Ltda) com
a menção “exclusividade de vendas”, ao lado da logomarca da incorporadora.
Estando assim definido o cenário fático incontroverso da demanda, cumpre
enfrentar a polêmica acerca da responsabilidade da empresa imobiliária, em
solidariedade com a incorporadora.

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 397


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Essa controvérsia foi decidida recentemente esta Turma, tendo-se concluído


pela ausência de responsabilidade da imobiliária, salvo na hipótese de falha no
serviço de corretagem ou de envolvimento da corretora no empreendimento
imobiliário (nas atividades de incorporação e construção).
Refiro-me ao seguinte precedente:

Recurso especial. Processual Civil. Promessa de compra e venda de imóvel.


Rescisão contratual com pedido de restituição de valores pagos. Desistência dos
promitentes compradores. Corretora. Legitimidade passiva. Inexistência. Recurso
especial provido.
1. No contato de corretagem, conforme a disciplina legal, a obrigação
fundamental do comitente é a de pagar a comissão ao corretor assim que
concretizado o resultado a que este se obrigou, qual seja, a aproximação das
partes e a conclusão do negócio de compra e venda, ressalvada a previsão
contratual em contrário.
2. A relação jurídica estabelecida no contrato de corretagem é diversa daquela
firmada entre o promitente comprador e o promitente vendedor do imóvel,
de modo que a responsabilidade da corretora está limitada a eventual falha na
prestação do serviço de corretagem.
3. Não se verificando qualquer falha na prestação do serviço de corretagem
nem se constatando o envolvimento da corretora no empreendimento
imobiliário, não se mostra viável o reconhecimento da sua responsabilidade
solidária em razão da sua inclusão na cadeia de fornecimento.
4. Recurso especial provido.
(REsp 1.811.153/SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em
15/02/2022, pendente de publicação)

No mesmo sentido já vinha decidindo a egrégia Quarta Turma, confira-se:

Compromisso de compra e venda. Atraso na entrega da unidade imobiliária.


Lucros cessantes presumidos. Termo final. Entrega do imóvel ao adquirente.
Aplicação da Súmula 83/STJ. Corretora. Legitimidade passiva ad causam. Arts. 722
e 723 do Código Civil. Inexistência de falha na prestação do serviço de corretagem
Afastamento da responsabilidade solidária.
1. A jurisprudência desta Corte se firmou no sentido de que “no caso de
descumprimento do prazo para a entrega do imóvel, incluído o período de
tolerância, o prejuízo do comprador é presumido, consistente na injusta privação
do uso do bem, a ensejar o pagamento de indenização, na forma de aluguel
mensal, com base no valor locatício de imóvel assemelhado, com termo final na
data da disponibilização da posse direta ao adquirente da unidade autônoma”
(REsp 1.729.593/SP, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, Segunda Seção, DJe de
27.9.2019).

398
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

2. Em vista da natureza do serviço de corretagem, não há, em princípio, liame


jurídico do corretor com as obrigações assumidas pelas partes celebrantes do
contrato, a ensejar sua responsabilização por descumprimento de obrigação da
incorporadora no contrato de compra e venda de unidade imobiliária. Incidência
dos arts. 722 e 723 do Código Civil.
3. Não sendo imputada falha alguma na prestação do serviço de corretagem e
nem se cogitando do envolvimento da intermediadora na cadeia de fornecimento
do produto, vale dizer, nas atividades de incorporação e construção do imóvel
ou mesmo se tratar a corretora de empresa do mesmo grupo econômico
das responsáveis pela obra, hipótese em que se poderia cogitar de confusão
patrimonial, não é possível seu enquadramento como integrante da cadeia
de fornecimento a justificar sua condenação, de forma solidária, pelos danos
causados ao autor adquirente.
4. Agravo interno parcialmente provido para dar parcial provimento ao recurso
especial.
(AgInt no REsp 1.779.271/SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Rel. p/ Acórdão
Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 01/06/2021, DJe
25/06/2021)

Em âmbito doutrinário, acrescente-se aos autores já citados nos


votos condutores desses precedentes, a opinião de ÊNIO SANTARELLI
ZULIANI [1], abordando especificamente os limites da responsabilidade
do corretor na hipótese da venda de unidades autônomas sob o regime da
incorporação imobiliária, litteris:

Os corretores não são responsáveis pela execução da obra e, em tese, não


se empenham quanto ao prazo estabelecido ou pelos riscos do negócio, pelo
que não respondem por essas indenizações, a não ser que tenham procedido
de má-fé. O comprador que pretende responsabilizar o corretor em regime de
solidariedade com a construtora deverá provar a má-fé e contar com presunção
de sua ocorrência diante de fatores como o de a imobiliária e os corretores
integrarem o grupo de sociedades da qual a construtora e a incorporadora
encabeça ou pela identidade de sócios no capital social das empresas coligadas,
o que pressupõe o conhecimento das dificuldades de cumprir contratos e prazos.
(ZULIANI, Ênio S. Corretagem. In: GUERRA, Alexandre D. de M. et al.
Comentários ao código civil - direito privado contemporâneo. [livro
eletrônico]. São Paulo: Saraiva, 2019, cap. XIII)

No caso dos autos, entendo que o envolvimento da imobiliária no


empreendimento se limitou à comercialização das unidades.
É certo que a logomarca da imobiliária constou na publicidade do
empreendimento, ao lado da logomarca da incorporadora.

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 399


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Esse fato, contudo, não denota, por si só, que a parceria entre as empresas
teria extrapolado a fase de comercialização, de modo a atrair a responsabilidade
da imobiliária.
A bem da verdade, o uso das logomarcas foi uma forma de transmitir
a informação sobre qual seria a empresa responsável pela edificação do
empreendimento e qual seria a responsável pela comercialização, atendendo-se
assim ao dever de informação enunciado no art. 31, caput, do Código de Defesa
do Consumidor, abaixo transcrito:

Art. 31. A oferta e apresentação de produtos ou serviços devem assegurar


informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre
suas características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia,
prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que
apresentam à saúde e segurança dos consumidores.

Bem se vê, portanto, que o mero uso de logomarca na publicidade não


enseja a responsabilização da imobiliária pelos danos experimentados pelos
adquirentes da unidade entregue com atraso.
Ainda quanto ao dever de informação, os demandantes apontaram que
teria havido falha quanto à informação acerca da possibilidade de atraso na
obra, pois “o vendedor sempre foi enfático ao prometer que o prazo de entrega seria
rigorosamente cumprido” (fl. 17).
Ora, a possibilidade de cumprimento tardio da obrigação é algo inerente
a todo contrato. Não é por outra razão que o Código Civil dispõe de um título
dedicado ao inadimplemento da obrigação e suas consequências (Título IV).
A par das normas gerais do Código Civil, o próprio contrato sub examine
contém disposição sobre a mora na entrega da unidade imobiliária, prevendo
o pagamento de uma indenização de 0,5% sobre o valor do imóvel por mês de
atraso, indenização à qual a incorporadora se encontra condenada nestes autos.
Assim, por mais por mais enfático que tenha sido o corretor em exaltar a
pontualidade da incorporadora, como alegado na inicial, tal estratégia de vendas
não passa de dolus bonus[2], não havendo falar, portanto, em vício no dever de
informação.
Dessarte, seja pela ausência de vício de informação, seja pela ausência
de envolvimento da imobiliária no empreendimento, a conclusão a que se
chega, com base nos precedentes desta Corte Superior, é pela ausência de
responsabilidade da imobiliária pela indenização dos adquirentes.

400
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

Ao decidir em sentido contrário, pela responsabilização solidária da


imobiliária, o Tribunal de origem violou o enunciado normativo do art. 265 do
Código Civil, segundo o qual “a solidariedade não se presume; resulta da lei ou da
vontade das partes”.
Em termos processuais, essa conclusão se traduz na improcedência do
pedido indenizatório deduzido contra a imobiliária, restando procedente contra
esta tão somente o pedido de restituição da SATI.
Esclareça-se que não se chega ao ponto de declarar a imobiliária parte
ilegítima para a demanda, porque as condições da ação, dentre as quais
a legitimidade das partes, é aferida, à luz da teoria da asserção, conforme
as alegações deduzidas na inicial, abstraindo-se a veracidade dos fatos e a
probabilidade de êxito da pretensão.
Nesse sentido:

Agravo interno no recurso especial. Civil e Processual Civil. Decisão


interlocutória que rejeita a alegação de prescrição. Recorribilidade imediata
por agravo de instrumento. Possibilidade. Cabimento do recurso com base
no art. 1.015, II, do CPC/2015. Preclusão. Ocorrência. Ilegitimidade passiva.
Teoria da asserção. Violação ao contraditório e à legítima defesa. Ausência.
Divergência jurisprudencial prejudicada. Julgamento extra petita. Ausência de
prequestionamento. Súmulas 5 e 7 do STJ.
1- A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça se consolidou no sentido
de que as decisões interlocutórias que se pronunciam sobre a decadência ou a
prescrição, seja para reconhecê-la, seja para afastá-la, versam sobre o mérito do
processo, motivo pelo qual são agraváveis com base no art. 1.015, II, do CPC/2015.
Precedentes.
2- A abordagem da matéria relativa à prescrição em decisão interlocutória, sob
a égide do CPC/2015, deve ser atacada por Agravo de Instrumento, sob pena de
preclusão.
3- O exame das condições da ação, como a legitimidade ad causam, deve ser
realizado de acordo com a Teoria da Asserção, isto é, à luz das afirmações do autor
constantes na petição inicial, sem qualquer inferência sobre a veracidade das
alegações ou a probabilidade de êxito da pretensão deduzida.
4- Na hipótese dos autos, na linha do que decidido pelo Tribunal a quo, as
alegações constantes da exordial no sentido de que a ré seria responsável por
restituir os certificados não comercializados e cancelados é suficiente, de acordo
com a teoria da asserção, para considerar presente a sua legitimidade passiva.
5- No que diz respeito à alegação de ofensa aos princípios do contraditório e
da ampla defesa, verifica-se a inexistência de impugnação específica, como seria

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 401


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

de rigor, aos fundamentos da decisão agravada, circunstância que obsta, por si


só, a pretensão recursal, pois, à falta de contrariedade, permanecem incólumes os
motivos expendidos pela decisão recorrida.
6- No que diz respeito à divergência jurisprudencial, importa consignar
que não se pode conhecer do recurso especial pela alínea “c” do permissivo
constitucional, uma vez que pretende a parte recorrente discutir idêntica tese
já afastada, isto é, a tese relativa ao não cabimento do agravo de instrumento,
ficando prejudicada, portanto, a divergência jurisprudencial aduzida.
7- No que tange a alegação de julgamento extra petita, tem-se, no ponto,
inviável o debate, pois não se vislumbra o efetivo prequestionamento, o que
inviabiliza a apreciação da tese recursal apresentada, sob pena de supressão de
instâncias.
8- Conforme consignado na decisão recorrida, alterar o decidido no acórdão
impugnado, no tocante à obrigação das partes contratualmente especificada, à
comprovação da efetiva comercialização e devolução dos certificados de seguro
individual não utilizados pela agravante e ao acerto do relatório da perícia - que
concluiu pela existência de certificados a serem devolvidos ou o pagamento do
valor relativo ao prêmio estipulado em contrato, exigiria o reexame de fatos e
provas e a interpretação das cláusulas contratuais, procedimento vedado pelas
Súmulas 5 e 7 do STJ.
9- Agravo interno não provido.
(AgInt no REsp 1.931.519/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma,
julgado em 30/08/2021, DJe 02/09/2021)

Agravo interno no agravo em recurso especial. Ação de indenização por danos


morais movida por associado em face do Presidente do clube por extrapolação de
poderes. Legitimidade passiva. Teoria da asserção. Agravo não provido.
1. Em conformidade com o entendimento desta Corte Superior, segundo a
teoria da asserção, as condições da ação, entre elas a legitimidade passiva, devem
ser aferidas a partir das afirmações deduzidas na petição inicial.
2. No caso dos autos, não se discute uma conduta regular do ora agravante
enquanto Presidente do clube, mas sim uma conduta que teria extrapolado
os poderes a ele atribuídos, de modo que a comprovação do direito do autor
à indenização pleiteada, em razão de eventual irregularidade e abuso dos
atos praticados pelo recorrente, diz respeito ao mérito da causa, e não à sua
legitimidade ativa.
3. Agravo interno a que se nega provimento.
(AgInt no AREsp 1.710.782/SP, Rel. Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado
em 08/03/2021, DJe 26/03/2021)

402
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

No caso dos autos, tendo havido alegação de vício de informação e pedido


de condenação solidária da imobiliária, impõe-se reconhecer que se encontra
atendida a referida condição da ação, de modo que o resultado desfavorável à
pretensão deduzida configura julgamento de mérito.
Por fim, esclareça-se que, tendo sido possível enfrentar diretamente o
mérito recursal, descabe apreciar o pedido de anulação do acórdão recorrido por
negativa de prestação jurisdicional, pois tal providência afrontaria os princípios
da primazia do julgamento de mérito e da duração razoável do processo (art. 4º
do CPC/2015[3] e art. 5º, inciso LXXVIII, da CF[4]).
Destarte, o recurso especial merece ser provido.
Ante o exposto, voto no sentido de dar provimento ao recurso especial para,
julgando improcedente o pedido a condenação solidária da imobiliária ao pagamento
da parcela indenizatória.
Tendo havido alteração do grau de decaimento das partes na demanda
entre os adquirentes e a imobiliária, restringe-se a base de cálculo dos honorários
a que condenada a imobiliária ao valor da restituição da SATI, e condena-se
os autores a pagarem à imobiliária honorários advocatícios no percentual de
5% (cinco por cento) sobre o valor da parcela indenizatória da condenação,
mantendo-se incólume condenação em honorários já fixada na origem para a
demanda contra a incorporadora.
É o voto.

Referências
1. Professor e desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
2. “Quando o vendedor elogia exageradamente o seu produto, realçando em
demasia suas qualidades, não atua maliciosamente. Para tanto, exige-se do
adquirente grau mediano de diligência para que possa perceber as criativas
técnicas de marketing. A despeito disso, fica claro que a indicação de qualidades
inexistentes ou a afirmação de garantias inverídicas extrapolam o limite do
razoável, podendo conf igurar publicidade enganosa, sujeitando o infrator
a sanções administrativas, civis e criminais” (GAGLIANO, Pablo Stolze;
PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: parte geral. 12 ed.
São Paulo: Saraiva, 20l0. v. 1. pp. 398-399)
3. Art. 4º. As partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral
do mérito, incluída a atividade satisfativa.

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

4. Art. 5º [...]. LXXVIII - a todos, no âmbito judicial e administrativo, são


assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade
de sua tramitação. (Incluído pela Emenda Constitucional n. 45, de 2004)

RECURSO ESPECIAL N. 1.841.953-PR (2019/0230894-9)

Relatora: Ministra Nancy Andrighi


Recorrente: C G M
Advogados: Thiago José Mantovani de Azevedo e outro(s) - PR056690
Thiago de Freitas Marcolini - PR045607
Recorrido: R A B
Recorrido: S B M
Recorrido: B M
Advogados: Vladimir Stasiak e outro(s) - PR028354
Fabio Pasini Szakacs - PR059618

EMENTA

Recurso especial. Civil e Processual Civil. Vícios no acórdão


recorrido. Não ocorrência. Violação do art. 371 do CPC. Fatos
constitutivos do direito do autor. Livre convencimento motivado.
Súmula 7 do STJ. Conflitos familiares. Ameaças e perseguições
em escola, cursos e instituições religiosas. Medidas protetivas em
procedimento criminal. Compensação por dano moral. Possibilidade.
Dissídio jurisprudencial sem similitude. Prejudicado.
1- Recurso especial interposto em 24/8/2018 e concluso ao
gabinete em 27/3/2020.
2- Na origem, cuida-se de ação de indenização por danos
materiais e morais, proposta pela ex-mulher e pelos filhos menores,
ora recorridos, em razão da conduta do ora recorrente (ex-marido e
genitor), consistente em perseguições em escola, cursos e instituições
religiosas, que causaram transtornos irreparáveis, com a exposição a
escândalos e a situações vexatórias.

404
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

3- O propósito recursal consiste em dizer se seria possível


efetivar-se a compensação por danos morais, advinda de conflitos
familiares, concretizados em processo de separação judicial, por meio
de ameaças e perseguições do genitor à ex-mulher e aos filhos.
4- É de ser afastada a existência de vícios no acórdão recorrido,
à consideração de que a matéria impugnada foi enfrentada de forma
objetiva e fundamentada no julgamento do recurso, naquilo que o
Tribunal a quo entendeu pertinente à solução da controvérsia.
5- O princípio da persuasão racional ou do livre convencimento
motivado constitui prerrogativa concedida ao juiz, para que, com
fulcro nos elementos relevantes constantes nos autos, possa firmar a
convicção sobre a matéria debatida. Assim, o simples entendimento
da Corte de origem a respeito do tema, no sentido de reconhecer
que o recorrente causou acentuado sofrimento ao núcleo familiar,
afasta a violação do art. 371 do CPC, já que devidamente motivada.
Ademais, a questão probatória do ônus do autor é matéria inviável de
ser analisada por esta Corte Superior, em virtude do óbice da Súmula
n. 7 do STJ.
6- A dignidade e o afeto são valores que devem receber prestígio
em todas as relações jurídicas, especialmente às de ordem familiar,
em que se deve primar pela proteção integral de seus membros,
em dimensão individual e social, respeitadas as diferenças e as
vulnerabilidades, sob pena de a conduta lesiva gerar o dever de reparar
o dano. Está superada, portanto, a visão de que não se aplicam os
princípios da responsabilidade civil às relações familiares.
7- As provas delineadas, no acervo probatório constante nos
autos, dão conta da profunda tristeza dos recorridos, ao relatar os
diversos episódios que sofreram ao longo dos anos, em razão do
clima de beligerância que se estendeu por cerca de nove anos, desde
o processo de separação, de forma que foram atribuídos ao recorrente
os seguintes fatos, além da própria concessão de medida protetiva em
favor dos autores, na esfera criminal: a) foi diversas vezes ao colégio, às
aulas de espanhol e a instituições religiosas frequentadas pelos filhos,
entrando de forma violenta em tais locais, produzindo escândalos
diuturnamente; b) perseguiu constantemente os recorridos; c) ameaçou
a ex-mulher e os filhos; d) produziu situação vexatória na frente da

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 405


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

aula de karatê do filho menor; e) esmurrou a porta da empresa do ex-


casal em Arapongas/PR, causando pânico na filha.
8- Dessa forma, a ação volitiva do recorrente causou abjeto
transtorno aos recorridos, razão pela qual incide, na hipótese vertente,
o dever de compensar o dano moral sofrido, já que presentes os
elementos da responsabilidade civil, quais sejam conduta ilícita, nexo
de causalidade e dano.
9- Não é possível conhecer do recurso pela alínea “c” do permissivo
constitucional, uma vez que, além de os acórdãos colacionados não
possuírem similitude com a hipótese dos autos, pretende a parte
recorrente discutir idênticas teses já afastadas, ficando prejudicada a
divergência jurisprudencial aduzida.
10- Recurso especial não provido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira


Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas
taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, negar provimento ao
recurso especial nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a) Relator(a). Os
Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco
Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro votaram com a Sra. Ministra Relatora.
Brasília (DF), 25 de novembro de 2021 (data do julgamento).
Ministra Nancy Andrighi, Relatora

DJe 29.11.2021

RELATÓRIO

A Sra. Ministra Nancy Andrighi: Cuida-se de recurso especial interposto


por C. G. M., com fundamento nas alíneas “a” e “c” do permissivo constitucional.
Recurso especial interposto em: 24/8/2018.
Concluso ao gabinete em: 27/3/2020.

406
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

Ação: de indenização por danos materiais e morais, proposta pelos


recorridos, em razão das supostas atitudes do ora recorrente (ex-marido e
genitor), consistentes em perseguições em escola, cursos e instituições religiosas,
que causaram transtornos irreparáveis, com a exposição a escândalos e a situações
vexatórias.
Os autores, ora recorridos, requereram a condenação do réu, ora recorrente,
ao pagamento do valor de R$ 10.502,72 (dez mil, quinhentos e dois reais e
setenta e dois centavos), a título de danos materiais, além de danos morais a
serem arbitrados pelo juiz. Requereram, ainda, que o recorrente fosse condenado
a arcar, mensalmente, com o tratamento psicológico experimentado, caso
demonstrada a necessidade.
Sentença: julgou parcialmente procedente o pedido, para condenar o
requerido ao pagamento de compensação por danos morais, no valor de R$
10.000,00 (dez mil reais) a cada um dos três autores, com correção monetária
pela média do INPC e do IGPD-I e juros de mora de 1% ao mês, ambos
contados da citação, além de honorários advocatícios fixados em 10% do valor
da condenação.
Acórdão: por unanimidade, conheceu e negou provimento ao recurso de
apelação interposto pelos autores; e conheceu, em parte, e negou provimento à
apelação interposta pelo réu, nos termos da seguinte ementa:

Apelação cível. Ação de indenização por danos materiais e morais. Conflito


familiar. Genitor que constrange filhos e ex-cônjuge. Sentença de parcial procedência.
Reconhecimento do dano moral. Apelação 01. Insurgência dos autores. Majoração
dos danos morais. Valor fixado que atende aos critérios de razoabilidade. Recurso
conhecido e não provido. Apelação 02. 1. Preliminar de prescrição. Inocorrência de
prazo prescricional entre ascendentes e descendentes sob poder familiar. Código Civil
de 2002, art. 197, inc. II. 2. Insurgência contra a condenação por dano moral. Situações
vexatórias que ultrapassam o mero dissabor. Prova documental e oral suficientes.
Dano moral configurado. 3. Compensação. Impossibilidade de conhecimento.
Inovação recursal. Recurso conhecido em parte e não provido. (fl. 553)

Embargos de declaração: opostos por C. G. M., foram rejeitados.


Recurso especial: aponta, além de dissídio jurisprudencial, ofensa aos arts.
371 e 1.022, I e II, todos do Código de Processo Civil, sob os seguintes
argumentos:
a) ocorreu omissão no acórdão recorrido, pois deixou de manifestar-se
quanto à tese de compensação da verba indenizatória com a doação realizada
aos filhos;

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 407


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

b) o acórdão impugnado padeceu, ainda de contradição e omissão, na


medida em que não valorou as provas de maneira adequada, notadamente
quando a hipótese vertente demonstra a ocorrência de simples conflito familiar,
não passível de indenização;
c) a parte autora não conseguiu provar o fato constitutivo do seu direito,
no que tange à existência de dano moral, visto que os depoimentos apresentados
pelos filhos não demonstram a ocorrência de feridas profundas advindas da
relação familiar; ao passo que as afirmações da ex-mulher apenas retratam
mágoas de um casamento desgastado pelo tempo e por dificuldades financeiras;
e
d) restou comprovado que os recorridos não foram submetidos à
situação vexatória ou a qualquer forma de exposição anormal, que pudesse
gerar sentimento de eterna repulsa, mas, apenas, sofreram meros dissabores
provenientes de conflitos de ordem familiar, incapazes, portanto, de ensejar
indenização.
Prévio juízo de admissibilidade: o recurso recebeu crivo negativo de
admissibilidade na origem (fls. 728-729), ascendendo a esta Corte Superior
por meio da interposição de agravo (fls. 747-759), convertido, em seguida, no
presente recurso especial (fl. 796).
Parecer do MPF: da lavra do Subprocurador-Geral da República
Antonio Carlos Martins Soares, deixando de manifestar-se sobre o mérito da
controvérsia, por entender desnecessária a intervenção do Ministério Público
Federal (fls. 804-807).
É o relatório.

VOTO

A Sra. Ministra Nancy Andrighi (Relatora): Na origem, cuida-se de ação


de indenização por danos materiais e morais, proposta pela ex-mulher e pelos
filhos menores, ora recorridos, em razão da conduta do ora recorrente (ex-
marido e genitor), consistente em perseguições em escola, cursos e instituições
religiosas, que causaram transtornos irreparáveis, com a exposição a escândalos e
a situações vexatórias.
O propósito recursal consiste em dizer se seria possível efetivar-se a
compensação por danos morais, advinda de conflitos familiares, concretizados

408
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

em processo de separação judicial, por meio de ameaças perseguições do genitor


à ex-mulher e aos filhos.

I. Da ausência de vícios no acórdão recorrido

1. Inicialmente, impende consignar que a Corte de origem, ao contrário


do que aduz o recorrente, emitiu tese a respeito da compensação da verba
indenizatória com a doação realizada aos filhos, ao consignar que a referida
matéria constituía inovação recursal, o que impossibilitaria o conhecimento do
recurso, no ponto, sob pena de ofensa aos princípios da supressão de instância e
do duplo grau de jurisdição (fl. 554).
2. Veja-se, ainda, que não ocorreram os vícios no acórdão recorrido, quanto
à incorreta valoração das provas colacionadas aos autos, na medida em que o
Tribunal a quo, com base no princípio do convencimento motivado, apenas
chegou ao fundamento que considerou correto para a composição da lide,
ao reputar que o recorrente perseguiu os recorridos, expondo-os a situações
vexatórias.
3. No caso dos autos, pois, está nítido o propósito do recorrente de
rediscutir temas que foram devidamente apreciados, o que, contudo, não é
cabível na via estreita dos embargos de declaração.
4. Dessa forma, na hipótese em exame, é de ser afastada a existência de
vícios no acórdão recorrido, à consideração de que a matéria impugnada foi
enfrentada de forma objetiva e fundamentada no julgamento do recurso, naquilo
que o Tribunal a quo entendeu pertinente à solução da controvérsia.

II. Da ofensa ao art. 371 do CPC/2015

5. O recorrente sustenta que a parte autora não conseguiu provar o fato


constitutivo do seu direito, no que tange à existência de dano moral, visto que
os depoimentos apresentados pelos filhos não demonstram a ocorrência de
feridas profundas advindas da relação familiar; ao passo que as afirmações da ex-
mulher apenas retratam mágoas de um casamento desgastado pelo tempo e por
dificuldades financeiras.
6. Por outro lado, a Corte de origem asseverou que o recorrente ultrapassou,
em muito, os limites da razoabilidade, fazendo com que o processo de separação
causasse sofrimento profundo aos envolvidos, delineando um quadro de
constrangimentos, angústias, pressões e ameaças. Entendeu, em consequência,

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 409


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

provado o fato constitutivo do direito da parte autora, com fulcro nos elementos
de prova produzidos nos autos.
7. Nesse ponto, faz-se mister ressaltar que o princípio da persuasão racional
ou do livre convencimento motivado constitui prerrogativa concedida ao juiz,
para que, com fulcro nos elementos relevantes constantes nos autos, possa firmar
a convicção sobre a matéria debatida.
8. Com efeito, esta Corte Superior ressalta que cabe ao juiz, como
destinatário final, respeitando os limites adotados pelo Código de Processo
Civil, a interpretação da prova necessária à formação do seu convencimento.
Nesse sentido: AgRg no REsp 1.169.112/SC, Primeira Turma, DJe 2/8/2017;
AgRg no REsp 1.293.742/PA, Primeira Turma, DJe 9/11/2016; AgRg no
AREsp 282.045/DF, Quarta Turma, DJe 25/6/2013; AgRg no AREsp 189.265/
RN, Quarta Turma, DJe 22/3/2013; AgRg no AREsp 527.731/SP, Terceira
Turma, DJe 4/9/2014; AgRg no AREsp 15.400/GO, Quarta Turma, DJe
1º/2/2013; AgInt no AREsp 891.083/SP, Quarta Turma, DJe 20/9/2016; AgInt
no REsp 1.358.752/CE, Segunda Turma, DJe 20/9/2016; AgRg no AREsp
846.321/RS, Terceira Turma, DJe 1º/9/2016; AgRg no AREsp 655.945/MG,
Quarta Turma, DJe 21/10/2015; AgRg no REsp 1.301.328/RJ, Quarta Turma,
DJe 23/10/2015.
9. Em suma, como destinatário final da prova, cabe ao juiz, respeitando
os limites adotados pela civilística processual, proceder à exegese necessária à
formação do livre convencimento motivado.
10. Dessa forma, observa-se que a persuasão racional, efetivada na hipótese
em epígrafe, demonstra, conforme salientado alhures, o simples entendimento
da Corte de origem a respeito do tema, no sentido de reconhecer que o
recorrente causou acentuado sofrimento ao núcleo familiar, razão pela qual se
afasta a violação do art. 371 do CPC, já que devidamente motivada.
11. Ademais, registre-se que a questão probatória do ônus do autor é
matéria inviável de ser analisada por esta Corte Superior, em virtude do óbice
da Súmula n. 7 do STJ. A propósito: AgInt no AREsp 1.011.331/RS, Terceira
Turma, DJe 7/3/2018; AgInt no AREsp 698.414/RS, Segunda Turma, DJe
23/10/2017; REsp 741.235/PR, Terceira Turma, julgado em 03/06/2008, DJe
20/6/2008; AgInt no AREsp 876.079/PR, Quarta Turma, DJe 8/9/2016; AgRg
no AREsp 597.537/SP, Segunda Turma, DJe 30/3/2016; AgRg no AREsp
589.275/PR, Terceira Turma, DJe 27/10/2015.

410
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

III. Da responsabilidade civil. Compensação do dano moral

12. O vocábulo ‘responsabilidade’ contém a raiz latina spondeo, cujo


significado se manifestava na fórmula pela qual se vinculava o devedor nos
contratos verbais, no Direito Romano. Registra-se, ainda, a título propedêutico,
que a origem da palavra ‘responsabilidade’ advém do verbo latino respondere,
consubstanciando o fato de o indivíduo responder como garantidor de algo,
assumindo as consequências jurídicas de determinada atividade.
13. Verifica-se, amiúde, que a responsabilidade civil encontra respaldo,
prima facie, no apotegma de Ulpiano: neminem laedere. Nesse sentido, com
suporte no princípio da proibição da ofensa, procura-se restringir a liberdade
individual de forma circunspecta à sociedade.
14. Com efeito, “toda manifestação da atividade humana traz em si o
problema da responsabilidade” (DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil.
10. ed. rev. e atual., v. 1. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 1).
15. Na clássica lição de Miguel Maria de Serpa Lopes, um dos mais árduos
e complexos problemas jurídicos é inegavelmente o da responsabilidade civil.
Nele se refletem as atividades humanas, individuais e contratuais, de modo que
estudá-lo importa em imergir no exame atento da própria atividade humana,
o que vai além do campo convencional para atingir um outro mais vasto, cuja
pesquisa exige um apelo às análises psicológicas e a considerações deduzidas do
espírito do autor do ato. (SERPA LOPES. Miguel Maria de. Curso de direito
civil: fontes acontratuais das obrigações e responsabilidade civil. 4. ed. rev. e
atual., v. V. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1995, p. 158)
16. Na feliz síntese de Clóvis Veríssimo do Couto e Silva, “o dever de
indenizar surge como decorrência da necessidade de repartir os riscos na vida
social”. (SILVA, Clóvis Veríssimo do Couto e. Dever de indenizar. Revista de
jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, v. 2, n.
6, p. 1-20, 1967, p. 1).
17. De fato, o período atual de desenvolvimento da sociedade reclama a
participação concreta do Estado Democrático de Direito. A responsabilidade
civil hodierna transpôs o princípio consubstanciado na ordem de não prejudicar
ninguém (neminem laedere). No cerne da motivação em tela, exsurge o aspecto
funcional da reparação civil. Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho
ressaltam que “... na vereda de tais idéias, três funções podem ser facilmente
visualizadas no instituto da reparação civil: compensatória do dano à vítima;

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 411


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

punitiva do ofensor; e desmotivação social da conduta lesiva”. (GAGLIANO,


Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil:
responsabilidade civil. 2. ed. rev., ampl. e atual., v. III. São Paulo: Saraiva, 2004,
p. 23).
18. A função compensatória do dano é carreada com fulcro no
restabelecimento do status quo ante, isto é, à situação que se encontrava
anteriormente. Implica dizer que a reparação civil deverá proporcionar o retorno
à condição que antecedeu o ato lesivo. A compensação do dano pode ocorrer
por via direta, com a consequente reposição do bem, ou por via incidental, com
o pagamento de indenização concernente ao valor do bem perdido, quando se
torna irrealizável o restabelecimento ao estado anterior.
19. Ademais, o pressuposto fundamental para a reparação do dano causado
se pauta na noção de culpa. O Código Civil Brasileiro de 2002 consagrou a
responsabilidade subjetiva no artigo 186, ao dispor que “aquele que, por ação ou
omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a
outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”
20. No ponto, Marcos Bernardes de Mello coteja o ato ilícito de acordo
com o respectivo suporte fático:

Sempre que, por ação ou omissão voluntária, por negligência ou imprudência,


alguém imputável viola direito ou causa prejuízo a terceiro, comete um ato ilícito
stricto sensu, ou ato ilícito absoluto. Este configura a espécie definida no art. 186
do Código Civil.
Constituem elementos completantes do núcleo do ato ilícito stricto sensu,
caracterizando-o fundamentalmente:
(i) A espécie de direito ofendido. Com efeito, para que uma conduta seja
classificada como ato ilícito stricto sensu é essencial que entre o ofensor e o
ofendido (a) não exista qualquer relação jurídica ou, (b) se houver, que seja de
direito absoluto (=relação jurídica com sujeito passivo total, o alter). Se há relação
jurídica de direito relativo (= relação jurídica com sujeito passivo determinado,
individuado) e o direito violado é conteúdo dessa relação, o ato não é ilícito stricto
sensu, mas ato ilícito relativo ou ilícito caducificante. Mesmo quando há relação
jurídica de direito relativo entre o ofensor e o ofendido, mas o ilícito não decorre
de quebra de dever conteúdo da relação, há ato ilícito stricto sensu. Assim, as
violações a direitos reais, como a propriedade, ou a direito da personalidade, como
direito à vida, saúde, honra, liberdade, nome etc., constituem atos ilícitos stricto
sensu. Por essa razão, o ato ilícito stricto sensu também recebe a denominação de
ato ilícito absoluto, que seria, até, mais apropriada não fora existirem, também, o

412
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

fato stricto sensu ilícito absoluto e o ato-fato ilícito absoluto, o que poderia gerar
confusões terminológicas.
(ii) O dano, uma vez que todo ato ilícito stricto sensu é danoso. O dano pode
não ser apenas patrimonial; envolve também o dano moral e o dano estético. Em
qualquer espécie, porém, a sua reparação tem natureza patrimonial.
(iii) E, finalmente, a reparabilidade do dano, mediante indenização. Com a
indenização pretende-se reparar o dano, tornando o ato indene (sem dano).
(MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 12. ed.
São Paulo: Saraiva, 2003, p. 243-244)

21. Nesse sentido, observa-se que o dano é elemento indispensável à


responsabilidade civil. Configura pressuposto basilar para a viabilidade da
reparação. De fato, sem a cristalização de prejuízo a outrem, não se manifesta a
obrigação de reparar. Onde não existe dano, não paira a responsabilidade.
22. No referido contexto, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona
Filho assestam os requisitos para a corporificação do dano indenizável: a
violação de um interesse jurídico patrimonial ou extrapatrimonial de uma pessoa
física ou jurídica (o dano pressupõe ofensa ao bem material ou moral tutelado);
a certeza do dano (refere-se à existência de dano efetivo, não sobrepairando a
responsabilidade civil na recomposição de dano abstrato, hipotético, conjetural).;
e, por fim, a subsistência do dano (o dano deve subsistir no momento da devida
exigibilidade em juízo, pois, obviamente, o prejuízo já reparado malogra a
discussão judicial, devido à ausência de interesse). Definem, ainda, o dano moral,
de forma a retratar o prejuízo aos direitos de índole pessoal, como aquele que
lesiona a esfera personalíssima da pessoa, violando, por exemplo, a intimidade, a
vida privada, a honra e a imagem, bens jurídicos tutelados constitucionalmente.
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de
direito civil: responsabilidade civil. 2. ed. rev., ampl. e atual., v. III. São Paulo:
Saraiva, 2004, p. 43-44; e 61-62)
23. Em suma, o dano moral consubstancia lesão não material na esfera
de pessoa física ou jurídica. Não obstante a defesa da irreparabilidade do dano
moral, edificada na passada centúria, a Constituição Federal de 1988 exauriu
quaisquer dúvidas pertinentes à temática. De fato, a Carta Magna previu,
expressamente, no artigo 5º, incisos V e X, a reparação dos danos morais.
24. Nesse diapasão, Caio Mário da Silva Pereira itera a censura direcionada
a plausibilidade de discussão hodierna, quanto à reparabilidade do dano moral,
aduzindo:

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 413


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

A Constituição Federal de 1988 veio pôr uma pá de cal na resistência à


reparação do dano moral (...). Destarte, o argumento baseado na ausência de
um princípio geral desaparece. E assim, a reparação do dano moral integra-se
definitivamente em nosso direito positivo.
É de acrescer que a enumeração é meramente exemplificativa, sendo lícito à
jurisprudência e à lei ordinária aditar outros casos.
Com efeito:
Aludindo a determinados direitos, a Constituição estabeleceu o mínimo.
Não se trata, obviamente, de numerus clausus, ou enumeração taxativa. Esses,
mencionados nas alíneas constitucionais, não são os únicos direitos cuja violação
sujeita o agente a reparar. Não podem ser reduzidos, por via legislativa, porque
inscritos na Constituição. Podem, contudo, ser ampliados pela legislatura
ordinária, como podem ainda receber extensão por via de interpretação, que
neste teor recebe, na técnica do Direito Norte-Americano, a designação de
construction.
Com as duas disposições contidas na Constituição de 1988 o princípio da
reparação do dano moral encontrou o batismo que a inseriu em a canonicidade
de nosso direito positivo. Agora, pela palavra mais firme e mais alta da norma
constitucional, tornou-se princípio de natureza cogente o que estabelece a
reparação por dano moral em o nosso direito. Obrigatório para o legislador e
para o juiz. (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil. 9. ed. rev. Rio de
Janeiro: Forense, 1999, p. 58).

25. Com efeito, o dano moral é resultado da afronta a direito da


personalidade, entendida em seu amplo espectro (MARTINS-COSTA, Judith.
Dano moral à brasileira. In: Livro em Homenagem a Miguel Reale Júnior. Janaina
Conceição Paschoal, Renato de Mello Jorge Silveira (Org.). Rio de Janeiro:
LMJ Mundo Jurídico, 2014, p. 298).
26. Conclui-se, aprioristicamente, que a responsabilidade civil tenciona
reprimir a lesão causada, restituindo a vítima ao estado anterior, materializado
pela recomposição da coisa in natura ou pela compensação em pecúnia do dano.

IV. Da compensação do dano moral advindo de relação familiar

27. As vicissitudes sociais culminaram na passagem da família como


instituição, para a família como instrumento de realização de seus membros,
movida pela afetividade.
28. Nas palavras de Gustavo Tepedino, a família transpôs o valor intrínseco,
o simples fato de existir, para notabilizar-se como instrumento direcionado ao

414
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

desenvolvimento da personalidade e da dignidade dos respectivos membros.


(TEPEDINO, Gustavo. A disciplina civil-constitucional das relações familiares.
In: Temas de Direito Civil. Tomo I. 4ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 421-
422)
29. O vínculo entre os familiares não é mais de posse e domínio, mas
sim de amor, ternura, na busca da felicidade mútua, baseada na convivência
diuturna e no respeito recíproco. É unívoco o entendimento entre os juristas
no sentido de que o afeto deve ser apontado como o alicerce do núcleo familiar,
de modo que se passa a conferir maior relevância aos aspectos afetivos da
convivência, valorizando-se cada um dos membros da família. Em contrapartida,
tal enaltecimento do vínculo de afetividade passou a exigir a responsabilidade
por atos cometidos em âmbito familiar (MARCONDES, Laura de Toledo
Ponzoni. Dano Moral das Relações Familiares. Tese de Doutorado. Universidade
de São Paulo, 2013)
30. Com efeito, adverte Maria Celina Bodin de Moraes que a
“responsabilidade civil entra no seio familiar, reconhecendo danos a
serem ressarcidos por maridos às esposas e vice-versa, por pais aos filhos,
excepcionalmente até por avós aos netos, pessoas habituadas a querer-se bem
ou a relacionar-se com afeto”. E conclui: como em todas as demais relações
jurídicas, também nas relações familiares podem ocorrer lesão à igualdade, à
integridade psicofísica, à liberdade e à solidariedade familiar, que ensejarão a
compensação por danos morais. (MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos
morais em família? Conjugalidade, parentalidade e responsabilidade civil. Revista
Forense, v. 386, 2006, p. 184-191)
31. Por essas razões, como leciona Regina Beatriz Tavares da Silva, está
superada aquela visão de que não se aplicam os princípios da responsabilidade
civil às relações familiares. Aqui, “vale a pena observar que a corrente que
tenta, após essa superação, impedir a aplicação dos princípios da reparação de
danos, defende a desjuridicização da família”. (TAVARES DA SILVA, Regina
Beatriz. Responsabilidade civil nas relações de família. In: Revista Jurídica da FA7,
Fortaleza, v. 17, n. 2, maio/ago. 2020, p. 102)
32. Em verdade, o ato ilícito praticado entre membros da família se reveste
de natureza ainda mais grave do que o provocado por terceiro, justamente ante
a situação privilegiada em que se encontra o agressor, a possibilitar, portanto,
a reparação civil. Isso porque nada destrói mais uma família do que o dano
causado pelos próprios membros, de forma que a reparabilidade do dano moral

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 415


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

funciona como uma forma de fortalecer os valores atinentes à dignidade e ao


respeito humano. (CARDIN, Valéria Silva Galdino. Dano moral no direito de
família. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 71)
33. Nesse sentido, é justamente na relação familiar que deve ser realçada a
dignidade da pessoa humana, mormente porque a família constitui a primeira
destinatária dos direitos fundamentais. Com efeito, não é possível mencionar-se
a salvaguarda dos direitos de liberdade, de igualdade, de personalidade, se eles
não forem protegidos já no âmbito familiar.
34. Assim, como já tive oportunidade de expressar, “a família – mergulhada
em situação conflituosa pelo seu desmantelamento – necessita da tutela do
Direito, para fazer valer os deveres e responsabilidades assumidos quando
de sua constituição. Se o afeto deixou de existir e fez erguerem-se barreiras
de tormento e rancor entre os outrora enamorados, é salutar que, com o fim
do almejado sentimento, não seja varrida também a correspectiva reparação
do dano subjacente à quebra de regras de convivência, que tenha acarretado
sofrimento pungente ao espírito e ao físico do lesionado”. (Ministra Nancy
Andrighi. In: TAVARES DA SILVA, Regina Beatriz. Divórcio e Separação após a
EC n. 66/2010. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 11-13)
35. Em suma, a dignidade e o afeto são valores que devem receber o
prestígio em todas as relações jurídicas, especialmente às de ordem familiar,
em que se deve primar pela proteção integral de seus membros, em dimensão
individual e social, respeitadas as diferenças e as vulnerabilidades, sob pena de a
conduta lesiva gerar o dever de reparar o dano.

V. Da hipótese dos autos e do deslinde da controvérsia

36. Compulsando os autos, observa-se que a Corte de origem manteve


a compensação pelos danos morais sofridos, fixados na sentença, na ordem de
R$ 10.000,00 (dez mil reais) para cada recorrido. Isso porque considerou que o
recorrente ultrapassou, em muito, os limites da razoabilidade, fazendo com que
o processo de separação judicial causasse sofrimento profundo nos envolvidos,
fazendo, inclusive, que esse martírio se prolongasse ao longo de anos, atingindo
toda a adolescência da filha S. M. e boa parte da infância e da adolescência do
filho B.M.
37. O Tribunal a quo passa a enumerar as diversas provas colacionadas
aos autos, tais como mensagens postadas em redes sociais, e-mails, além de
um relatório psicológico que demonstra o sofrimento emocional dos menores.

416
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

Soma-se a isso procedimento instaurado na 2ª Vara Criminal de Arapongas/


PR, que resultou na aplicação de medidas protetivas em favor dos recorridos,
justamente devido à aproximação agressiva e constrangedora por parte do
recorrente. Em verdade, o acórdão recorrido traduz-se em uma verdadeira
miríade de condutas abusivas perpetradas contra os recorridos, com inúmeras
situações vexatórias, algumas registradas em boletim de ocorrência, outras
declaradas em documento.
38. Com efeito, as provas delineadas, no acervo probatório constante
nos autos, dão conta da profunda tristeza dos recorridos, ao relatar os diversos
episódios que sofreram ao longo dos anos, em razão do clima de beligerância
que se estendeu por cerca de nove anos, desde o processo de separação. Citam-
se, a título de exemplo, os seguintes fatos atribuídos ao recorrente: a) foi diversas
vezes ao colégio, às aulas de espanhol e a instituições religiosas frequentadas
pelos filhos, entrando de forma violenta em tais locais, produzindo escândalos
diuturnamente; b) perseguiu constantemente os recorridos; c) ameaçou a ex-
mulher e os filhos; d) produziu situação vexatória na frente da aula de karatê
do filho menor; e) esmurrou a porta da empresa do ex-casal em Arapongas/PR,
causando pânico na filha.
39. Há, nos autos, também, depoimento de testemunha, que trabalhou no
empreendimento do casal, acerca dos constantes exageros e comportamentos
desproporcionais praticados pelo recorrente dentro do próprio espaço
empresarial, geradores de discórdias e causadores de constrangimento à família.
40. Verifica-se, inclusive, que o próprio recorrente, em e-mail por ele
mesmo enviado, reconheceu que, em determinadas situações, a sua conduta foi
extremamente invasiva e desproporcional, admitindo, em suma, que extrapolou
os limites da razoabilidade.
41. Com efeito, a conduta do recorrente causa profunda espécie, em
particular nas feridas deixadas nos recorridos ao longo dos anos, com a
aproximação agressiva, invasiva e constrangedora, a ponto de a filha afirmar, no
depoimento transcrito, no acórdão recorrido, que “vivia fugindo do genitor, pois
o mesmo (sic) lhe causava um abalo psicológico imensurável”. (fl. 558)
42. Veja-se, portanto, que a ação volitiva do recorrente causou abjeto
transtorno aos recorridos, razão pela qual incide, na hipótese vertente, o
dever de compensar o dano moral sofrido, já que presentes os elementos da
responsabilidade civil, quais sejam conduta ilícita, nexo de causalidade e dano.

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 417


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

43. Ademais, o atual contato e possível entendimento com os filhos não


possui o condão de deslustrar os fatos pretéritos, porquanto a chaga do ultraje
se cristalizou a partir dos diversos atos ilícitos desferidos pelo recorrente. Não se
quer dizer, com isso, que a reparação do dano moral em dinheiro se estabelece
com base no pretio doloris. De fato, a compensação do dano moral não torna
possível a supressão do prejuízo sofrido. Significa dizer que o dinheiro não
estabelece relação de equivalência com o dano. Visa, tão somente, a atenuar
as consequências do infortúnio suportado. Nesse sentido, possui natureza
sancionadora-compensatória.
44. Realça-se, assim, a função satisfatória da reparação, isto é, a vítima não
requer a equivalência em pecúnia do preço da dor sofrida. Pretende, apenas,
suavizar o sofrimento moral, abrandando as sequelas penosas enlevadas pelo
espírito.
45. Nesse diapasão, com fulcro nos fundamentos em epígrafe, não merece
reforma o acórdão recorrido.

VI. Do dissídio jurisprudencial

46. Por fim, no que diz respeito à interposição do recurso especial pela alínea
“c” do permissivo constitucional, importa consignar que não se pode conhecer do
recurso, uma vez que, além de os acórdãos colacionados não possuírem similitude
com a hipótese dos autos, pretende a parte recorrente discutir idênticas teses já
afastadas, ficando prejudicada a divergência jurisprudencial aduzida.
VII. Conclusão
47. Forte nessas razões, nego provimento ao recurso especial.
48. Deixo de fixar honorários, em virtude da ausência de condenação na
instância de origem.

RECURSO ESPECIAL N. 1.930.256-SP (2021/0093404-0)

Relatora: Ministra Nancy Andrighi


Relator para o acórdão: Ministro Marco Aurélio Bellizze

418
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

Recorrente: F B C
Advogado: Julio Cesar Gorrasi - SP338430
Recorrente: G B I L
Advogados: Eduardo Bastos Furtado de Mendonça - RJ130532
Felipe de Melo Fonte - RJ140467
Luna Van Brussel Barroso - RJ224281
Recorrido: Os Mesmos

EMENTA

Recurso especial. Ação de indenização por danos materiais e


morais. Divulgação de fotografias de nudez (produzidas e cedidas
com fins comerciais) sem o consentimento da modelo retratada, em
endereços eletrônicos da internet. Responsabilidade do provedor para
promover a retirada do conteúdo indicado a partir da determinação
judicial para tanto. Art. 21 do Marco Civil da Internet. Inaplicabilidade.
Recurso especial provido do provedor de internet e prejudicado o
manejado pela parte demandante.
1. Controverte-se sobre a aplicabilidade do disposto no art. 21
do Marco Civil da Internet à hipótese de veiculação de fotografias
de nudez (produzidas e cedidas com fins comerciais), em endereços
eletrônicos da internet, sem a autorização da modelo fotografada,
tampouco da revista a quem o material foi cedido. Discute-se, assim,
especificamente, se a responsabilidade do provedor para promover
a retirada do conteúdo inicia-se a partir da notificação extrajudicial,
a atrair a incidência do art. 21 da Lei n. 12.965/2014, ou se haveria
necessidade de ordem judicial, nos termos do art. 19 da citada lei.
2. O art. 21 do Marco Civil da internet traz exceção à regra de
reserva da jurisdição estabelecida no art. 19 do mesmo diploma legal, a
fim de impor ao provedor, de imediato, a exclusão, em sua plataforma,
da chamada “pornografia de vingança” — que, por definição, ostenta
conteúdo produzido em caráter particular —, bem como de toda
reprodução de nudez ou de ato sexual privado, divulgado sem o
consentimento da pessoa reproduzida.
2.1 A motivação da divulgação de materiais contendo cenas de
nudez ou de atos sexuais, sem a autorização da pessoa reproduzida,

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 419


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

se por vingança ou por qualquer outro propósito espúrio do agente


que procede à divulgação não autorizada, é, de fato, absolutamente
indiferente para a incidência do dispositivo em comento, sobretudo
porque, de seu teor, não há qualquer menção a esse fator de ordem
subjetiva. Todavia, o dispositivo legal exige, de modo expresso e
objetivo, que o conteúdo íntimo, divulgado sem autorização, seja
produzido em “caráter privado”, ou seja, de modo absolutamente
reservado, íntimo e privativo, advindo, daí, sua natureza particular.
2.2 Há, dado o caráter absolutamente privado em que este
material foi confeccionado (independentemente do conhecimento ou
do consentimento da pessoa ali reproduzida quando de sua produção),
uma exposição profundamente invasiva e lesiva, de modo indelével, à
intimidade da pessoa retratada, o que justifica sua pronta exclusão da
plataforma, a requerimento da pessoa prejudicada, independentemente
de determinação judicial para tanto.
2.3 O preceito legal tem por propósito proteger/impedir a
“disponibilização, na rede mundial de computadores, de conteúdo
íntimo produzido em caráter privado, sem autorização da pessoa
reproduzida, independentemente da motivação do agente infrator.
Não é, porém, a divulgação não autorizada de todo e qualquer material
de nudez ou de conteúdo sexual que atrai a regra do art. 21, mas
apenas e necessariamente aquele que apresenta, intrinsecamente, uma
natureza privada, cabendo ao intérprete, nas mais variadas hipóteses
que a vida moderna apresenta, determinar o seu exato alcance.
2.4 É indiscutível que a nudez e os atos de conteúdo sexuais são
inerentes à intimidade das pessoas e, justamente por isso, dão-se, em
regra e na maioria dos casos, de modo reservado, particular e privativo.
Todavia — e a exceção existe justamente para confirmar a regra —
nem sempre o conteúdo íntimo, reproduzido em fotos, vídeos e outro
material, apresenta a referida natureza privada.
3. As imagens íntimas produzidas e cedidas com fins comerciais
— a esvaziar por completo sua natureza privada e reservada — não
se amoldam ao espectro normativo (e protetivo) do art. 21 do Marco
Civil da Internet, que excepciona a regra de reserva da jurisdição.
3.1 Sua divulgação, na rede mundial de computadores, sem
autorização da pessoa reproduzida, por evidente, consubstancia

420
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

ato ilícito passível de proteção jurídica, mas não tem o condão de


excepcionar a reserva de jurisdição (que se presume constitucional, até
declaração em contrário pelo Supremo Tribunal Federal).
3.2 A proteção, legitimamente vindicada pela demandante, sobre
o material fotográfico de conteúdo íntimo, produzido comercialmente
e divulgado por terceiros sem a sua autorização, destina-se a evitar/
reparar uma lesão de cunho primordialmente patrimonial à autora
(especificamente, os alegados lucros cessantes) e, apenas indiretamente,
a sua intimidade.
4. Recurso especial do Provedor de internet provido. Prejudicado
o recurso especial da demandante.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas,


acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por
maioria, dar provimento ao recurso especial interposto por G B I L e julgar
prejudicado o recurso especial interposto por F B C, nos termos do voto do Sr.
Ministro Marco Aurélio Bellizze, que lavrará o acórdão.
Vencidos a Sra. Ministra Nancy Andrighi e o Sr. Ministro Ricardo Villas
Bôas Cueva.
Brasília (DF), 07 de dezembro de 2021 (data do julgamento).
Ministro Marco Aurélio Bellizze, Relator p/Acórdão

DJe 17.12.2021

EMENTA

Civil. Recurso especial. Ação de indenização por danos materiais


e morais. Marco Civil da Internet. Provedor de aplicação. Divulgação
de imagens com conteúdo pornográfico sem o consentimento da
retratada. Âmbito de aplicação do art. 21 do MCI. Pornografia
não consensual. Prequestionamento parcial. Negativa de prestação
jurisdicional. Inocorrência. Realização de perícia. Preclusão. Dissídio
jurisprudencial. Não comprovação. Julgamento: CPC/2015.

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 421


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

1. Ação de indenização por danos materiais e morais ajuizada em


16/05/2017, da qual foram extraídos os presentes recursos especiais
interpostos em 16/12/2020 e 18/12/2020 e conclusos ao gabinete em
06/04/2021.
2. O propósito recursal de G B I L é definir a aplicabilidade do
disposto no art. 21 do Marco Civil da Internet à hipótese de veiculação
de fotografias com conteúdo pornográfico em endereços eletrônicos
da internet sem autorização da fotografada, tampouco da revista à
qual se destinaram as imagens. Por sua vez, o propósito recursal de
F B C é dizer sobre a) a ocorrência de negativa jurisdicional; b) a
possibilidade de realização de prova pericial, em sede de liquidação de
sentença, para quantificação dos danos materiais e c) a ocorrência de
sucumbência mínima.
3. Recurso especial de G B I L.
3.1. O entendimento desta Corte é no sentido de que a
responsabilidade dos provedores de aplicações é subjetiva. Precedentes.
O termo inicial para que o provedor seja considerado responsável
por conteúdo gerado por terceiro pode ser a notificação do próprio
usuário, pelos meios oferecidos pelo provedor, caso o ocorrido tenha se
verificado quando não estava em vigor o MCI ou a notificação judicial,
após a provocação do Poder Judiciário por aquele que se considera
ofendido (art. 19 do MCI). Todavia, a própria Lei n. 12.965/2014
consagra exceção à reserva de jurisdição para a retirada de conteúdo
infringente da internet na hipótese de “vídeos ou de outros materiais
contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado” (art.
21). Nessas circunstâncias, o provedor passa a ser subsidiariamente
responsável a partir da notificação extrajudicial formulada pelo
particular interessado na remoção desse conteúdo e não a partir da
ordem judicial com esse comando.
3.2. O art. 21 do MCI tutela a denominada “pornografia de
vingança” (revenge porn), a qual comumente se verifica em términos de
relacionamentos, quando uma das partes divulga o material produzido
durante a relação com vistas a punir a outra pelo encerramento do
vínculo afetivo. No entanto, tal dispositivo legal não se aplica apenas a
essas situações, haja vista que legislador não faz referência à motivação
do agente. Assim, o termo mais adequado para caracterizar a hipótese

422
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

retratada na norma é “pornografia não consensual”, que inclui tanto


a veiculação de cenas íntimas obtidas sem o consentimento da
vítima quanto com o seu consentimento, mas divulgadas sem a sua
autorização.
3.3. A proteção conferida pelo Marco Civil da Internet à
pessoa que teve a sua imagem íntima divulgada ilicitamente guarda
estreita relação com o direito à imagem, à intimidade e à privacidade
assegurados no plano constitucional e infraconstitucional.
3.4. O direito à imagem visa a proteger o interesse da pessoa de
insurgir-se contra a sua divulgação em circunstâncias relativas à sua
vida privada. Especialmente para fins de aplicação do art. 21 do MCI,
se a pessoa exposta consentiu com a realização da fotografia ou vídeo,
é imprescindível perquirir acerca do propósito do consentimento. Vale
dizer, se a pessoa posou nua para determinada revista, a publicação
das imagens em outras revistas ou meios de comunicação configura
violação ao seu direito de imagem.
3.5. Com relação à privacidade e à intimidade, considera-se como
local público aquele que pode ser acessado por qualquer indivíduo,
sem restrições. Mas, para a adequada tutela da privacidade e em
atenção à boa-fé objetiva, o mais importante é analisar a expectativa
de privacidade do retratado em torno do ato captado. Isto é, se a
pessoa representada tinha consciência de que a cena registrada seria
divulgada e em que extensão isso ocorreria.
3.6. Caso a vítima tenha participado de um ensaio fotográfico
para uma revista voltada ao público masculino e com acesso restrito
a maiores de idade e mediante pagamento, não houve autorização
para a exposição pública dessas imagens com conteúdo pornográfico.
A retratada não tinha expectativa de que as fotografias seriam
republicadas em blogs da internet e liberadas para acesso por qualquer
indivíduo que se conectasse à internet. A reprodução das imagens, em
tal circunstância, viola os direitos da retratada à imagem, à privacidade
e à intimidade, de modo que sobressai um interesse privado passível
de proteção pelo art. 21 do MCI. Portanto, esse dispositivo legal não
tem sua aplicação restrita às situações de pornografia de vingança,
mas alcança também a hipótese de divulgação de fotografias de
nudez obtidas com o consentimento da vítima para publicação em

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 423


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

determinada revista de acesso restrito, mas veiculadas em outros sites


da internet sem a sua autorização.
4. Recurso especial de F B C.
4.1. A ausência de decisão acerca dos argumentos invocados
pela recorrente em suas razões recursais impede o conhecimento do
recurso especial.
4.2. Não há ofensa ao art. 1.022 do CPC/15 quando o Tribunal de
origem, aplicando o direito que entende cabível à hipótese, soluciona
integralmente a controvérsia submetida à sua apreciação, ainda que de
forma diversa daquela pretendida pela parte. Precedentes.
4.3. A jurisprudência deste Tribunal Superior é consolidada no
sentido de que a ausência de depósito judicial da remuneração do
perito acarreta a preclusão do direito à produção da prova pericial.
4.4. Decisões monocráticas não servem como paradigmas para
fins de demonstração do dissídio jurisprudencial.
4.5. Não é possível a apreciação da existência de sucumbência
mínima ou recíproca, por demandar incursão no suporte fático da
demanda (Súmula 7/STJ). Precedentes.
5. Recurso especial de G B I L conhecido e desprovido e recurso
especial de F B C parcialmente conhecido e, nessa extensão, desprovido.

RELATÓRIO

A Sra. Ministra Nancy Andrighi: Cuida-se de recursos especiais interpostos


por G B I L e F B C, o primeiro com fundamento na alínea “a” e o segundo nas
alíneas “a” e “c” do permissivo constitucional, contra acórdão do TJ/SP.
Recursos especiais interpostos em: 16/12/2020 e 18/12/2020.
Conclusos ao gabinete em: 06/04/2021.
Ação: de obrigação de fazer c/c pedido de indenização por danos materiais
e morais movida por F B C em face d G B I L, em razão da divulgação gratuita
e sem a sua anuência de fotos com nudez explícita em blogs por ela hospedados
e que foram tiradas em ensaio fotográfico realizado para uma revista masculina.
Refere que, mesmo após a notificação de G B I L para remover os
conteúdos, diversas páginas permaneceram ativas.

424
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

Sentença: julgou parcialmente procedentes os pedidos, “para condenar


à requerida o cumprimento de obrigação de fazer, quanto ao (i) fornecimento
do nome e número de IP dos usuários relacionados às URLs de fls. 210/220; (ii)
remover o conteúdo indicado nas URLs de fls.210/220 e excluir dos resultados de
pesquisa do GOOGLE SEARCH, GOOGLE IMAGES as URLs fls. 210/225 e
253/261 (e os conteúdos nelas contidos)” (e-STJ, fl. 1.111).
Acórdão: conheceu parcialmente do recurso de apelação interposto pela
segunda recorrente e, na parte conhecida, deu-lhe parcial provimento, conforme
a seguinte ementa:

Obrigação de fazer combinada com indenização por danos materiais e morais.


Veiculação, sem autorização, de imagens de ensaio sensual por blogs hospedados
pela requerida. Parcial procedência. Insurgência da autora. Parcial cabimento.
Valor da causa. Alteração do valor da causa de ofício. Possibilidade. Incidência
do art. 292, § 3º, do CPC. Inocorrência de violação do princípio da não surpresa.
O fundamento a que faz referência o art. 10 do CPC é o jurídico, e não o legal
propriamente dito. Este último, como no caso, é aplicável pelo juiz, independente
de prévia manifestação das partes Valor da causa que foi fixado corretamente
pelo magistrado. Danos materiais. Inviabilidade de apurar quantas visitas as fotos
indevidamente publicadas teriam recebido nos sites discriminados. Preclusão da
prova pericial. Dano moral. Ocorrência. Responsabilidade da ré por publicação de
conteúdo ilícito praticada por terceiros que se inicia da notificação extrajudicial
em casos de nudez. Inaplicabilidade do art. 19 da Lei n. 12.965/14. Precedentes
do STJ. Valor que deve ser arbitrado em R$ 20.000,00. Multa por descumprimento
de ordem judicial liminar. Não conhecimento Questão que deve ser decidida em
sede própria. Cumprimento provisório que já foi movido pela autora. Recurso
parcialmente conhecido e, na parte conhecida, parcialmente provido.

Recurso especial de G B I L: suscita violação ao art. 1.022, II, do CPC/2015


e ao art. 21 do Marco Civil da Internet. Aduz que o Tribunal de origem não se
manifestou sobre o fato de que o debate gira em torno de questão contratual e
não de divulgação de conteúdo privado de nudez. Argumenta que o referido
art. 21 se aplica apenas à hipótese de exposição não consentida de material
pornográfico de caráter privado (pornografia da vingança), não se aplicando
à situação dos autos, que diz respeito à reprodução por terceiros de imagens
com cenas de nudez sem a correspondente remuneração. Defende, assim,
ser descabida sua responsabilização em decorrência do não atendimento do
pedido extrajudicial de remoção do conteúdo. Requer, por conseguinte, o
afastamento da condenação ao pagamento de indenização por danos morais ou,
subsidiariamente, o retorno dos autos à origem para novo julgamento.

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 425


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Recurso especial de F B C: alega afronta aos arts. 1.022, I a III e 86, parágrafo
único, do CPC/2015, ao art. 21 da Lei 12.965/14, aos arts. 186 e 927 do CC/02,
aos arts. 14, 17 e 34 do CDC e aos arts. 102 e 103 da Lei 9.610/98, além de
divergência jurisprudencial com o REsp 1.871.191/SP. Alega que o TJ/SP
não examinou os vícios indicados nos embargos de declaração. Sustenta ser
descabida a negativa de realização de perícia em sede de liquidação de sentença
para averiguar os danos materiais. Menciona que as inúmeras visualizações
geraram e continuam gerando prejuízos patrimoniais. Acrescenta ser evidente
a violação dos direitos autorais, haja vista que o acesso às fotos é autorizado
apenas por meio do site da revista licenciada e mediante o pagamento de
R$ 167,00. Ressalta que a ata notarial juntada aos autos revela que, após o
julgamento da apelação, as 27 URLs permanecem ativas. Por fim, salienta que
deve ser reconhecida a sua sucumbência mínima, condenando-se a recorrida a
arcar com a integralidade das custas processuais e honorários advocatícios.
Juízo prévio de admissibilidade: os recursos especiais foram admitidos pelo
Tribunal local.
É o relatório.

VOTO

A Sra. Ministra Nancy Andrighi (Relatora): O propósito recursal de G B I


L é definir a aplicabilidade do disposto no art. 21 do Marco Civil da Internet à
hipótese de veiculação de fotografias com conteúdo pornográfico em endereços
eletrônicos da internet sem autorização da fotografada, tampouco da revista à
qual se destinaram as imagens.
Por sua vez, o propósito recursal de F B C é dizer sobre a) a ocorrência
de negativa jurisdicional; b) a possibilidade de realização de prova pericial, em
sede de liquidação de sentença, para quantificação dos danos materiais e c) a
ocorrência de sucumbência mínima.

I. Recurso especial de G B I LTDA.


I.I. Dos provedores de aplicação na internet.

1. Com a publicação da Lei 12.965/2014, que institui o Marco Civil da


Internet, muitos dos elementos que compõem a rede mundial de computadores
foram definidos normativamente. Assim, temos que a internet foi definida

426
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

como “o sistema constituído do conjunto de protocolos lógicos, estruturado em


escala mundial para uso público e irrestrito, com a finalidade de possibilitar a
comunicação de dados entre terminais por meio de diferentes redes” (art. 5º, I).
2. Na internet, há uma multiplicidade de atores oferecendo diferentes tipos
de serviços e utilidades para os usuários. Ante a ausência de uma orientação
legislativa clara, a jurisprudência acabou por definir os diversos tipos de
provedores de serviços e utilidades na internet. Veja-se, nesse sentido, o que foi
estabelecido no REsp 1.316.921/RJ (Terceira Turma, DJe 29/06/2012):

Os provedores de serviços de Internet são aqueles que fornecem serviços


ligados ao funcionamento dessa rede mundial de computadores, ou por meio
dela. Trata-se de gênero do qual são espécies as demais categorias, como: (i)
provedores de backbone (espinha dorsal), que detêm estrutura de rede capaz de
processar grandes volumes de informação. São os responsáveis pela conectividade
da Internet, oferecendo sua infraestrutura a terceiros, que repassam aos usuários
finais acesso à rede; (ii) provedores de acesso, que adquirem a infraestrutura dos
provedores backbone e revendem aos usuários finais, possibilitando a estes
conexão com a Internet; (iii) provedores de hospedagem, que armazenam dados
de terceiros, conferindo-lhes acesso remoto; (iv) provedores de informação, que
produzem as informações divulgadas na Internet; e (v) provedores de conteúdo,
que disponibilizam na rede os dados criados ou desenvolvidos pelos provedores
de informação ou pelos próprios usuários da web. É frequente que provedores
ofereçam mais de uma modalidade de serviço de Internet; daí a confusão entre
essas diversas modalidades. Entretanto, a diferença conceitual subsiste e é
indispensável à correta imputação da responsabilidade inerente a cada serviço
prestado.

3. A partir do Marco Civil da Internet, em razão de suas diferentes


responsabilidades e atribuições, é possível distinguir simplesmente duas
categorias de provedores: (i) os provedores de conexão; e (ii) os provedores de
aplicação.
4. Os provedores de conexão são aqueles que oferecem “a habilitação de
um terminal para envio e recebimento de pacotes de dados pela internet, mediante
a atribuição ou autenticação de um endereço IP” (art. 5º, V, MCI). No Brasil,
os provedores de conexão acabam, em sua maioria, confundindo-se com os
próprios prestadores de serviços de telecomunicações, que em conjunto detêm a
esmagadora maioria de participação neste mercado.
5. Por sua vez, utilizando as definições estabelecidas pelo art. 5º, VII,
do Marco Civil da Internet, uma “aplicação de internet” é o conjunto de

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 427


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

funcionalidades que podem ser acessadas por meio de um terminal conectado à


internet.
6. Como é possível perceber, essas funcionalidades podem ser as mais
diversas possíveis, tais como serviços de e-mail, redes sociais, hospedagem de
dados, compartilhamento de vídeos, e muitas outras ainda a serem inventadas.
Por consequência, os provedores de aplicação são aqueles que, sejam com ou
sem fins lucrativos, organizam-se para o fornecimento dessas funcionalidades
na internet.
7. No particular, a recorrente oferece serviço de hospedagem de blogs.
Os blogs – contração da expressão inglesa weblog que, numa tradução literal,
significa diário da rede (mundial de computadores) – consistem em páginas na
internet cuja estrutura possibilita sua rápida e constante atualização mediante
acréscimo dos denominados posts (comentários, artigos), que em geral têm
como foco a temática que dá origem ao próprio blog.
8. Ressalte-se, por fim, que a recorrente se limita a abrigar e oferecer
ferramentas para edição de blogs criados e mantidos por terceiros, sem exercer
nenhum controle editorial sobre as mensagens postadas pelos usuários.

I.II. Da responsabilidade dos provedores de aplicação por conteúdos gerado por


terceiros.

9. As discussões acerca da responsabilidade civil dos provedores de


aplicações apresentam uma complexidade elevada, já que, em regra, não se
está a discutir uma ofensa diretamente causada pelo provedor, mas sim por
terceiros usuários das funcionalidades por ele fornecidas. A dificuldade é ainda
mais elevada quando os provedores não exercem nenhum controle prévio sobre
aquilo que fica disponível on-line, o que afasta a responsabilidade editorial sobre
as informações.
10. Este Superior Tribunal de Justiça já teve a oportunidade de examinar a
questão relativa ao regime de responsabilidade civil aplicável aos provedores de
aplicações por conteúdos gerados por terceiros. O entendimento desta Corte é
no sentido de que a responsabilidade dos provedores é subjetiva. A propósito:

Agravo interno no agravo em recurso especial. Ação condenatória. Decisão


monocrática que deu provimento ao reclamo. Insurgência da requerida.
1. Nos termos dos Enunciados Administrativos n. 2 e 3 deste Superior Tribunal
de Justiça, aplicam-se aos recursos as regras do diploma processual vigente ao
tempo da publicação desafiada.

428
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

1.1. No caso em tela, tanto o recurso especial quanto o respectivo agravo


foram interpostos em face de decisões publicadas na vigência do CPC/73, sendo
aplicáveis a eles tal regramento.
1.2. O agravo interno, por sua vez, desafia decisão publicada na vigência do
CPC/15, de modo que o prazo de interposição correspondente é de 15 (quinze)
dias úteis, o que foi respeitado pela insurgência sub judice.
2. Conforme a jurisprudência deste Tribunal Superior, não incide aos
provedores de conteúdo da internet a responsabilidade objetiva prevista no
art. 927, parágrafo único, do CC/02, sendo descabida, ainda, a exigência de
fiscalização prévia.
2.1. Aos provedores de conteúdo aplica-se a tese da responsabilidade subjetiva,
segundo a qual o provedor torna-se responsável solidariamente com aquele que
gerou o conteúdo ofensivo se, ao tomar conhecimento da lesão que determinada
informação causa, não tomar as providências necessárias para removê-la.
Precedentes.
2.2. A Corte de origem rejeitou o apelo da autora, em que se discutiam fatos
ocorridos antes da entrada em vigor da Lei 12.965/2014, o Marco Civil da Internet,
afirmando que a responsabilidade da requerida somente poderia ser reconhecida
caso descumprisse notificação judicial, sem ao menos analisar as alegações
quanto à empresa-ré ter sido devidamente comunicada a respeito de conteúdo
ofensivo, o que destoa da citada jurisprudência.
2.3. Deve ser mantida a decisão monocrática que determinou o retorno
dos autos à origem para novo julgamento, à luz da jurisprudência desta Corte
Superior, de modo a evitar a supressão de instância, uma vez que a causa não se
encontra madura para julgamento neste Tribunal.
3. Agravo interno desprovido.
(AgInt no AREsp 685.720/SP, Rel. Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado
em 13/10/2020, DJe 16/10/2020) (grifou-se)

Civil e Processual Civil. Recurso especial. Google. Blogger. Ação de reparação


por danos morais. Conteúdo reputado ofensivo. Monitoramento prévio. Ausência.
Responsabilidade objetiva. Afastamento.
1. Ação ajuizada em 09/07/2010. Recurso especial interposto em 08/08/2014 e
distribuído a este gabinete em 25/08/2016.
2. A verificação do conteúdo das imagens postadas por cada usuário não
constitui atividade intrínseca ao serviço prestado pelos provedores de
compartilhamento de vídeos, de modo que não se pode reputar defeituoso, nos
termos do art. 14 do CDC, a aplicação que não exerce esse controle.
3. Aos provedores de aplicação, utiliza-se a tese da responsabilidade subjetiva,
segundo a qual o provedor de aplicação torna-se responsável solidariamente com

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 429


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

aquele que gerou o conteúdo ofensivo se, ao tomar conhecimento da lesão que
determinada informação causa, não tomar as providências necessárias para a sua
remoção. Precedentes.
4. Na hipótese dos autos, não houve determinação de monitoramento prévio,
mas de retirada do conteúdo de blog, nos termos da jurisprudência deste STJ.
5. Recurso especial conhecido e não provido.
(REsp 1.501.603/RN, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em
12/12/2017, DJe 18/12/2017) (grifou-se)

11. Destaque-se que essa teoria se subdivide em duas vertentes a depender


do termo inicial para se considerar o provedor de aplicação responsável por
conteúdo gerado por terceiro. Esse termo a quo pode ser: (i) a notificação do
próprio usuário, pelos meios oferecidos pelo provedor, caso o ocorrido tenha
se verificado quando não estava em vigor o MCI ou (ii) a notificação judicial,
após a provocação do Poder Judiciário por aquele que se considera ofendido, nos
termos do art. 19 do MCI.
12. Todavia, a própria Lei n. 12.965/2014 consagra exceção à reserva
de jurisdição para a retirada de conteúdo infringente da internet na hipótese
de “vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais
de caráter privado” (art. 21). Nessas circunstâncias, o provedor passa a ser
subsidiariamente responsável a partir da notificação extrajudicial formulada
pelo particular interessado na remoção desse conteúdo e não a partir da ordem
judicial com esse comando.
13. A controvérsia devolvida a esta Corte por meio do presente recurso
especial diz com o âmbito de incidência desse dispositivo legal, a qual se passa a
analisar a seguir.

I.III. Da divulgação não consentida de cenas de nudez. Do âmbito de incidência


do art. 21 do MCI.

14. Inicialmente, convém transcrever o conteúdo do art. 21 do Marco


Civil:

Art. 21. O provedor de aplicações de internet que disponibilize conteúdo


gerado por terceiros será responsabilizado subsidiariamente pela violação da
intimidade decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes,
de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de
atos sexuais de caráter privado quando, após o recebimento de notificação
pelo participante ou seu representante legal, deixar de promover, de forma

430
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização


desse conteúdo.
Parágrafo único. A notificação prevista no caput deverá conter, sob pena
de nulidade, elementos que permitam a identificação específica do material
apontado como violador da intimidade do participante e a verificação da
legitimidade para apresentação do pedido.

15. Esse dispositivo legal tutela a denominada “pornografia de vingança”


(revenge porn), a qual comumente se verifica em términos de relacionamentos,
quando uma das partes divulga o material produzido durante a relação com
vistas a punir a outra pelo encerramento do vínculo afetivo.
16. No entanto, o art. 21 não tem sua aplicação restrita a tais situações,
haja vista que o legislador não faz referência à motivação do agente. Por essa
razão, defende-se que o termo mais adequado para caracterizar a hipótese
retratada na norma é “pornografia não consensual”, que inclui tanto a veiculação
de cenas íntimas obtidas sem o consentimento da vítima quanto com o seu
consentimento, mas divulgadas sem a sua autorização (SOUZA, Afonso Carlos;
LEMOS, Ronaldo; BOTTINO, Celina. Marco Civil da Internet: jurisprudência
comentada. E-book. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018; SCHREIBER,
Anderson. Marco Civil da Internet: avanço ou retrocesso? A responsabilidade
civil por dano derivado de conteúdo gerado por terceiro. LUCCA, Newton
de; SIMÃO FILHO, Adalberto; LIMA, Cíntia Rosa Pereira de. Direito &
Internet III. Tomo II. Quartier Latin, 2015, p. 296).
17. No julgamento do REsp 1.679.465/SP (DJe 19/03/2018), por mim
relatado, esta Terceira Turma teve a oportunidade de analisar com cuidado os
detalhes e contornos da exposição pornográfica não consentida e como esse
tipo de divulgação causa prejuízos às pessoas expostas. Segundo destacou-
se naquela oportunidade, “a ‘exposição pornográfica não consentida’, da qual a
‘pornografia de vingança’ é uma espécie, constituiu uma grave lesão aos direitos
de personalidade da pessoa exposta indevidamente, além de configurar uma grave
forma de violência de gênero que deve ser combatida de forma contundente pelos
meios jurídicos disponíveis”.
18. Nessa linha de intelecção, percebe-se que a proteção conferida pelo
Marco Civil da Internet à pessoa que teve a sua imagem íntima divulgada
ilicitamente guarda estreita relação com o direito à imagem, à intimidade e
à privacidade assegurados no plano constitucional (art. 5º, X, da CF/88) e
infraconstitucional (arts. 20 e 21 do CC/02).

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

19. O direito à imagem “é mera extrinsecação do direito sobre o próprio corpo


enquanto direito sobre o aspecto exterior deste que é objeto corporal ou material
por excelência” (MORAES, Walter. Direito à própria imagem. Revista dos
Tribunais, vol. 61, n. 443, set./1972, pp. 343-344). Sua finalidade consiste em
“proteger o interesse que tem a pessoa de opor-se à divulgação dessa imagem, em
circunstâncias concernentes à sua vida privada” (EREsp 230.268/SP, Segunda
Seção, DJ 04/08/2003).
20. Especialmente para fins de aplicação do art. 21 do MCI, se a pessoa
exposta consentiu com a realização da fotografia ou vídeo, é imprescindível
perquirir acerca do propósito do consentimento. Afinal, “a interpretação
do consentimento deve, em regra, ocorrer de forma restritiva, não podendo o
intérprete estender a autorização concedida para o uso da imagem para outros
meios além daqueles pactuados, para momento posterior, para fim diverso ou,
ainda, para pessoa distinta daquela que recebeu a autorização” (TEFFÉ, Chiara
Spadaccini de. Direito à imagem na internet: estudo sobre o tratamento do
Marco Civil da Internet para os casos de divulgação não autorizada de imagens
íntimas. Revista de Direito Civil Contemporâneo, Vol. 15, abr.- jun./2018, p.
100). A título de exemplo, se a pessoa posou nua para determinada revista, a
publicação das imagens em outras revistas ou meios de comunicação configura
violação ao seu direito de imagem.
21. Destarte, o fato de a pessoa ter consentido em ser fotografada, por
quem quer que seja, é insuficiente para tornar púbico o conteúdo inegavelmente
sensível.
22. Nessas circunstâncias, a intimidade e a privacidade também assumem
especial relevo, já que o próprio dispositivo em análise se refere, repise-se, a
“materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado”.
23. Valendo-se dos ensinamentos da doutrina civilista, tem-se que
“lugar público é aquele franqueado a todas as pessoas, sem nenhuma restrição”
(MONTEIRO FILHO, Rafael de Barros. Comentários ao Novo Código
Civil. Vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 246). Mas, para a adequada
tutela da privacidade e em atenção à boa-fé objetiva, o mais importante é
analisar a expectativa de privacidade do retratado em torno do ato captado
(SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. 2. ed. São Paulo: Atlas,
2013, pp. 145-146). Isto é, se a pessoa representada tinha consciência de que a
cena registrada seria divulgada e em que extensão isso ocorreria.

432
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

24. Na hipótese em julgamento, de acordo com o quadro fático traçado


pelas instâncias de origem, a recorrida participou de um ensaio fotográfico para
uma revista voltada ao público masculino. A revista poderia ser acessada por
um terminal com acesso à internet, por pessoas maiores de 18 (dezoito) anos e
mediante prévio pagamento de certa quantia. Ou seja, a recorrida não autorizou
a exposição pública dessas imagens com conteúdo pornográfico, mas apenas
a publicação naquele veículo específico e desde que observadas determinadas
condições.
25. Além de o consentimento ter se restringido a um fim específica, pelo
contexto narrado, é certo que a retratada não tinha a expectativa de que as
fotografias seriam republicadas em blogs da internet e passíveis de acesso por
qualquer indivíduo que se conectasse à internet.
26. Embora tenha havido o consentimento para a realização do ensaio
fotográfico, a publicação das fotografias com conteúdo pornográfico em meio
não autorizado pela vítima e para um público significativamente mais numeroso
qualifica-se como pornografia não consentida e viola os direitos da retratada
à imagem, à privacidade e à intimidade. Nessa circunstância, sobressai um
interesse privado passível de proteção pelo art. 21 da Lei n. 12.965/2014.
27. Em consequência, não tendo a recorrente atendido ao pedido de
exclusão das URLs formulado na notificação extrajudicial encaminhada
pela recorrida, é responsável pelos danos por ela suportados em virtude das
publicações.
28. Em síntese, o art. 21 do MCI não tem sua aplicação restrita às situações
de pornografia de vingança, mas alcança também hipótese de divulgação de
fotografias de nudez tiradas com o consentimento da vítima para publicação em
determinada revista de acesso restrito, mas veiculadas em outros sites da internet
sem a sua autorização.

II. Recurso especial de F B C.


II.I. Da ausência de prequestionamento.

29. O acórdão recorrido não decidiu acerca dos arts. 102 e 103 da Lei n.
9.610/98, tampouco dos arts. 17 e 34 do CDC, razão pela qual o julgamento do
recurso especial é inadmissível quanto ao ponto (Súmula 282/STF).
30. Esclareça-se que apesar de a recorrente ter suscitado violação ao art.
1.022 do CPC/2015, não o fez com relação aos argumentos atinentes aos

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 433


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

dispositivos supramencionados, os quais sequer foram invocados nos embargos


declaratórios.
31. Portanto, no tópico, não conheço do recurso especial.

II.II. Da negativa de prestação jurisdicional.

32. A recorrente alega que o Tribunal estadual deixou de se manifestar


acerca da possibilidade de quantificar os danos materiais em sede de liquidação
de sentença.
33. A jurisprudência do STJ é firme no sentido de que não há ofensa ao
art. 1.022 do CPC/15 quando o Tribunal de origem, aplicando o direito que
entende cabível à hipótese, soluciona integralmente a controvérsia submetida
à sua apreciação, ainda que de forma diversa daquela pretendida pela parte
(AgInt no AREsp 1.650.384/MG, DJe 26/10/2020; AgInt nos EDcl no REsp
1.871.018/SP, DJe 21/09/2020).
34. Na hipótese, verifica-se que a Corte de origem decidiu expressamente
acerca dos danos materiais pleiteados pela recorrente (e-STJ, fls. 1.640-1.641),
de modo que os embargos declaratórios visavam mesmo a rediscussão de
questão já apreciada.
35. Não há que se falar, por consequência, em vulneração do art. 1.022 do
CPC/2015.

II.III. Dos danos materiais. Da realização de perícia em liquidação de sentença.


Preclusão.

36. A recorrente sustenta que os danos materiais devem ser quantificados


em sede de liquidação de sentença, mediante a realização de prova pericial.
37. Conforme colhe-se dos autos, na petição inicial, a ora recorrente
postulou “seja o Réu condenado ao pagamento de indenização por danos materiais,
em quantia a ser apurada na fase de instrução” (e-STJ, fl. 50).
38. Na fase instrutória, foi deferida a produção de prova pericial, com a
consequente nomeação de expert em computação (e-STJ, fls. 647-649). Após
a apresentação de proposta pelo perito, a recorrente foi intimada para realizar
o depósito da verba honorária no prazo assinalado pelo juiz (e-STJ, fl. 867).
Entretanto, deixou de atender ao comando judicial e, segundo anotado na
sentença, requereu, em seguida, o julgamento antecipado do feito (e-STJ, fl.
1.101). Em decorrência disso, o juiz reconheceu a ocorrência de preclusão.
434
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

39. Da mesma forma, o Tribunal a quo concluiu que:

Contudo, a autora, devidamente intimada para recolher os honorários periciais


(R$2.000,00), não o fez.
Vale destacar que a prova técnica visava justamente aferir qual foi a quantidade
de visualizações das fotos da autora nos blogs indicados por ela.
Como não recolheu o valor dos honorários periciais, irrelevante a alegação
reiterada no apelo de “que os danos materiais estão atrelados aos números de
visitas que os sites ilícitos teriam recebido”.
Além disso, a própria autora pediu o julgamento antecipado da lide.
Logo, não há dano material a ser reconhecido e todas as longas considerações
sobre a questão não merecem ser acolhidas. Dessa forma, pouco importa se a ré
auferiu algum lucro por meio de publicidade nos blogs indicados. (e-STJ, fl. 1.641)

40. Acerca do assunto sublinhe-se, inicialmente, que o juízo acerca da


pertinência das provas para o adequado deslinde da controvérsia incumbe às
instâncias ordinárias. Destarte, para esta Corte alterar a conclusão a respeito da
dispensabilidade ou não de determinada prova é necessário o reexame dos fatos,
o que é vedado pela Súmula 7 do STJ (AgInt no AREsp 1.548.314/PR, Quarta
Turma, DJe 03/03/2020; AgRg no AREsp 641.921/RS, Terceira Turma, DJe
21/08/2015; AgRg no Ag 500.602/MG, Terceira Turma, DJ 06/12/2004).
41. Em acréscimo, a jurisprudência deste Tribunal Superior é consolidada
no sentido de que a ausência de depósito judicial da remuneração do perito
acarreta a preclusão do direito à produção da prova pericial. Nesse sentido:

Agravo interno nos embargos de declaração no agravo em recurso especial.


Embargos à arrematação. Decisão agravada. Inexistência de generalidade ou
de embasamento em premissa equivocada. Prova pericial requerida pela parte
ora insurgente. Ausência de recolhimento dos honorários periciais. Preclusão.
Súmula 83/STJ. Violação ao art. 1.022 do CPC/2015. Súmulas 283 e 284/STF.
Agravo desprovido.
1. Não há falar em generalidade da decisão que rejeitou os aclaratórios, por
considerar, de forma fundamentada, que a via seria imprópria para a análise da
pretensão ali trazida.
2. Impossível prosperar a alegação de que a decisão agravada se embasou
em premissa equivocada, uma vez que a ausência de recolhimento dos
honorários periciais é fato que consta expressamente do acórdão estadual e traz
consequências diretas ao pedido de reavaliação do imóvel, o que não pode ser
ignorado nesta instância simplesmente porque se mostra desinteressante aos
insurgentes.

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 435


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

3. Nos termos da jurisprudência desta Corte Superior, ocorre a preclusão do direito


à produção da prova pericial quando a parte que a requerer, embora intimada, não
efetua o depósito da remuneração do perito. Incidência do enunciado n. 83 da
Súmula do STJ.
4. Os insurgentes não se desincumbiram de demonstrar as razões pelas quais
consideram persistir a violação ao art. 1.022 do CPC/2015, não tendo impugnado
especificamente os fundamentos da decisão agravada, o que faz incidir, por
analogia, os enunciados n. 283 e 284 da Súmula do STF.
5. Agravo interno desprovido.
(AgInt nos EDcl no AREsp 1.607.172/SC, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze,
Terceira Turma, julgado em 24/08/2020, DJe 01/09/2020) (grifou-se)

Agravo interno no agravo (art. 544 do CPC/73). Ação ordinária. Decisão


monocrática que negou provimento ao reclamo. Insurgência da parte ré.
1. O Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento de que, nos precisos
termos do art. 33 do Código de Processo Civil/1973, a remuneração do perito será
adiantada pela parte que houver requerido a produção da prova, ou pelo autor,
quando requerido por ambas as partes ou determinado de ofício pelo juiz, tendo
em vista que será ressarcido no caso de sair vencedor.
No presente caso, a prova pericial foi pleiteada pela recorrente, que, embora
intimada, não realizou o depósito dos honorários periciais, ocorrendo assim a
preclusão.
(...)
4. Agravo interno desprovido.
(AgInt no AREsp 717.425/ES, Rel. Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado
em 10/04/2018, DJe 17/04/2018) (grifou-se)

42. Ante a preclusão, é descabida a realização de prova pericial para


identificação do prejuízo patrimonial em sede de liquidação de sentença.

II.IV. Do dissídio jurisprudencial.

43. Verifica-se que o recurso especial indicado como paradigma foi


decidido por meio de decisão monocrática da lavra da i. Ministra Maria Isabel
Gallotti.
44. Todavia, segundo entendimento do STJ, “decisões monocráticas não
servem como paradigmas para o fim de demonstração de dissídio jurisprudencial,
conforme o disposto no art. 266 do Regimento Interno deste Superior Tribunal”
(AgInt no REsp n. 1.650.529/RS, Segunda Turma, DJe 27/11/2017). No

436
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

mesmo sentido: AgInt no AREsp n. 1.180.952/RJ, Quarta Turma; DJe


24/5/2018; AgInt no AREsp 1.211.358/SP, Terceira Turma, DJe 20/04/2018.
45. Desse modo, não restou comprovada a alegada divergência
jurisprudencial.

II.V. Da sucumbência mínima.

46. Este Tribunal Superior consolidou entendimento segundo o qual não


é possível a apreciação da existência de sucumbência mínima ou recíproca,
por demandar incursão no suporte fático da demanda, esbarrando no óbice
da Súmula 7/STJ (AgInt no AREsp 1.571.169/RJ, Terceira Turma, DJe
12/03/2021; AREsp 1.700.955/GO, Segunda Turma, DJe 18/12/2020; AgInt
no REsp n. 1.418.989/RS, Quarta Turma, DJe 01/10/2020; AgInt no REsp
1.750.080/MG, Terceira Turma, DJe 21/08/2020).
47. Assim, não conheço da irresignação recursal.

III. Conclusão.

48. Forte nessas razões, conheço e nego provimento ao recurso especial de G


B I L e conheço parcialmente do recurso especial de F B C e, nessa extensão, nego-
lhe provimento.
49. Nos termos do art. 85, § 11, do CPC/2015, majoro os honorários
advocatícios arbitrados na origem para R$ 6.500,00 ao patrono de G B I L e
para 17% do valor da condenação para o representante de F B C.

VOTO

O Sr. Ministro Marco Aurélio Bellizze: Como bem acentuado pela


Relatora, Ministra Nancy Andrighi, discute-se, no recurso especial manejado
pela Google do Brasil Internet Ltda., se a publicação em blogs, por terceiros, de
ensaio de nudez objeto de licenciamento com a Revista Sexy possui, ou não, o
condão de atrair a responsabilidade civil do provedor de aplicações, com base no
regime do art. 21 do Marco Civil da Internet.
Na hipótese, de acordo com o quadro fático traçado pelas instâncias
ordinárias, a autora da ação participou de um ensaio fotográfico para uma revista
voltada ao público masculino. A revista poderia ser acessada por um terminal
com acesso à internet, por pessoas maiores de 18 (dezoito) anos e mediante

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 437


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

prévio pagamento de certa quantia. Segundo a moldura fática, terceiros, por


meio de blogs da internet, hospedado pelo provedor Google, divulgaram tais
imagens/conteúdo de nudez, sem autorização da demandante, a ensejar-lhes
prejuízos de ordem material (lucros cessantes).
Controverte-se, assim, sobre a responsabilidade subsidiária do provedor,
especificamente se sua responsabilidade para a retirada do conteúdo iniciar-se-
ia a partir da notificação extrajudicial, a atrair a incidência do art. 21 da Lei n.
12.965/2014, ou se haveria necessidade de ordem judicial, nos termos do art. 19
da citada lei.
A relatora, em seu voto, compreende que o Provedor, na hipótese dos autos,
em que houve a divulgação de imagens/vídeos contendo cenas de nudez, para
um público significativamente mais numeroso ao pré-determinado em contrato,
qualifica-se como pornografia não consentida e viola os direitos da retratada
à imagem, à privacidade e à intimidade, sobressaindo, nesse caso, um interesse
privado passível de proteção pelo art. 21 da Lei n. 12.965/2014.
Pelo que se depreende da fundamentação adotada pela Relatora, em seu
judicioso voto, o art. 21 do Marco Civil da Internet não traria uma motivação
específica, a chamada “pornografia de vingança”, aplicando-se, indistintamente,
a toda e qualquer divulgação de imagens de nudez ou com conteúdo de sexo
sem autorização de seus participantes. Logo, não se exigiria, também para a
hipótese dos autos, ordem judicial para a retirada do conteúdo, bastando a
notificação extrajudicial, como se deu no caso.
Permissa venia, tem-se, diversamente, que o caso dos autos não retrata a
hipótese de divulgação não autorizada de imagens ou vídeos com cenas de nudez
ou de atos sexuais de caráter privado”, a atrair a exceção à reserva de jurisdição
estabelecida no art. 21 do Marco Civil da Internet.
Tampouco o objeto da presente demanda, conforme se demonstrará,
consiste, primordialmente, na proteção de direito personalíssimo da autora,
mas sim, diretamente, no ressarcimento pelos alegados prejuízos decorrentes
da divulgação, por terceiros, sem a sua autorização, das imagens com conteúdo
íntimo licenciadas comercialmente.
De plano, registre-se que o art. 21 do Marco Civil da internet traz exceção
à regra de reserva da jurisdição estabelecida no art. 19 do mesmo diploma
legal, a fim de impor ao provedor, de imediato, a exclusão, em sua plataforma,
da chamada “pornografia de vingança” — que, por definição, ostenta conteúdo

438
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

produzido em caráter particular —, bem como de toda reprodução de nudez ou


de ato sexual privado, divulgado sem o consentimento da pessoa reproduzida.
Há, dado o caráter absolutamente privado em que este material foi confeccionado
(independentemente do conhecimento ou do consentimento da pessoa ali
reproduzida quando de sua produção), uma exposição profundamente invasiva e
lesiva, de modo indelével, à intimidade da pessoa retratada, o que justifica sua pronta
exclusão da plataforma, a requerimento da pessoa prejudicada, independentemente de
determinação judicial para tanto.
Pela relevância, transcrevem-se os dispositivos legais:

Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir


a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser
responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por
terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no
âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar
indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições
legais em contrário.

Art. 21. O provedor de aplicações de internet que disponibilize conteúdo gerado


por terceiros será responsabilizado subsidiariamente pela violação da intimidade
decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de
vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais DE
CARÁTER PRIVADO quando, após o recebimento de notificação pelo participante ou
seu representante legal, deixar de promover, de forma diligente, no âmbito e nos
limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização desse conteúdo.
Parágrafo único. A notificação prevista no caput deverá conter, sob pena
de nulidade, elementos que permitam a identificação específica do material
apontado como violador da intimidade do participante e a verificação da
legitimidade para apresentação do pedido.

Como se constata, o art. 21 do Marco Civil da Internet refere-se


especificamente à divulgação não autorizada de imagens, de vídeos ou de outros
materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado.
Ressalta-se que a motivação da divulgação de materiais contendo cenas
de nudez ou de atos sexuais, sem a autorização da pessoa reproduzida, se por
vingança ou por qualquer outro propósito espúrio do agente que procede
à divulgação não autorizada, é, de fato, absolutamente indiferente para a
incidência do dispositivo em comento, sobretudo porque, de seu teor, não há
qualquer menção a esse fator de ordem subjetiva.

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 439


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Todavia, o dispositivo legal exige, de modo expresso e objetivo, que o


conteúdo íntimo, divulgado sem autorização, seja produzido em “caráter privado”,
ou seja, de modo absolutamente reservado, íntimo e privativo, advindo, daí, sua
natureza particular. É dizer, o preceito legal tem por propósito proteger/
impedir a “disponibilização, na rede mundial de computadores, de conteúdo
íntimo produzido em caráter privado, sem autorização da pessoa reproduzida,
independentemente da motivação do agente infrator.
Não é, portanto, a divulgação não autorizada de todo e qualquer material
de nudez ou de conteúdo sexual que atrai a regra do art. 21, mas apenas e
necessariamente aquele que apresenta, intrinsecamente, uma natureza privada,
cabendo ao intérprete, nas mais variadas hipóteses que a vida moderna apresenta,
determinar o seu exato alcance.
Do contrário, o dispositivo legal em comento não faria constar em seu teor
— até porque a lei não contém expressões inúteis —, o termo “caráter privado”
(“cenas de nudez ou de atos sexuais DE CARÁTER PRIVADO”).
É indiscutível que a nudez e os atos de conteúdo sexuais são inerentes
à intimidade das pessoas e, justamente por isso, dão-se, em regra e na maioria
dos casos, de modo reservado, particular e privativo. Todavia — e a exceção
existe justamente para confirmar a regra — nem sempre o conteúdo íntimo,
reproduzido em fotos, vídeos e outro material, apresenta a referida natureza
privada.
As imagens de nudez, produzidas e cedidas para fins comerciais — absolutamente
lícitos, consigna-se —, não ostentam, permissa venia, a natureza privada a qual a
norma protetiva do art. 21 visa tutelar.
Sua divulgação, na rede mundial de computadores, sem autorização da
pessoa reproduzida, por evidente, consubstancia ato ilícito passível de proteção
jurídica, mas não tem o condão de excepcionar a reserva de jurisdição (que se
presume constitucional, até declaração em contrário pelo Supremo Tribunal
Federal).
No caso dos autos, ressai evidenciado que a proteção, legitimamente
vindicada pela demadante, sobre o material fotográfico (de conteúdo íntimo),
produzido comercialmente e divulgado por terceiros sem a sua autorização,
destina-se a evitar/reparar uma lesão de cunho primordialmente patrimonial à
autora e, apenas indiretamente, a sua intimidade, do que ressai claro da própria
pretensão exarada em sua inicial, in verbis (e-STJ, fl. 8):

440
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

a vendagem de sua publicação prejudicada já que todo material está sendo


disponibilizado de maneira gratuita e tudo hospedado na plataforma Blogger
operada pela Ré, além de desgaste de sua imagem já que algo que deveria
ser para um público especifico e pagante é distribuído a milhares de pessoas
gratuitamente sem autorização da Autora lhe causando infindáveis prejuízos
tanto materiais quanto morais

É indiscutível que a exposição não autorizada de imagens íntimas, produzidas


e cedidas comercialmente pela demandante, tem repercussão direta em seu direito
patrimonial e apenas reflexa a seu direito da personalidade (direito à intimidade).
Como é de sabença, a indisponibilidade do direito personalíssimo
intimidade — corolário do Princípio vetor da dignidade da pessoa humana
— é passível de mitigação por seu titular, tal como se deu no caso dos autos,
em que a demandante, de modo livre e com intuito de lucro, produziu e cedeu
comercialmente imagens de nudez. Pertence, pois, à demandante o direito de
determinar em que extensão e em que condições suas imagens íntimas podem
ser acessadas na internet.
Não se olvida, tampouco se dissuade, portanto, da conclusão de que
a divulgação dessas imagens, sem autorização da pessoa reproduzida, tem
o condão de violar, em certa medida, o direito à intimidade (considerada a
mitigação voluntariamente levada a efeito por seu titular), passível, portanto, de
proteção jurídica.
Não, porém, na extensão do art. 19 da Lei n. 12.965/2014.
Justamente porque as cenas de nudez, produzidas e cedidas comercialmente,
não guardam em si, até por definição, um caráter reservado e particular, a
exposição não autorizada — indiscutivelmente ilícita — não consubstancia
circunstância idônea, segundo a exigência legal, para excepcionar a reserva de
jurisdição.
A proteção, legitimamente vindicada pela demandante, a essas imagens de
nudez, cujo conteúdo íntimo não foi produzido em caráter privado, deve se dar
segundo os ditames do art. 19, que estabelece a responsabilização do provedor,
caso, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, nos limites
técnicos do seu serviço, tornar indisponível o conteúdo apontando.
De igual modo, a pretensão de obter a reparação pelos prejuízos advindos
da exposição de tais imagens deve ser dirigida diretamente em face dos
responsáveis pela publicação não autorizada de material com conteúdo íntimo

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 441


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

— inclusive a partir dos dados de identificação a ser fornecido pelo provedor,


em cumprimento de ordem judicial.
Por sua vez, a responsabilidade subsidiária do provedor pelos danos
materiais e morais apenas se dá após ordem judicial específ ica e em caso de
descumprimento.
No caso dos autos, a Google afirma e demonstra, a esse propósito,
que removeu 380 URLs mediante ordem judicial e forneceu os dados dos
responsáveis pelo conteúdo, o que, nos termos da fundamentação supra, afasta
sua responsabilidade subsidiária.
Tem-se, em resumo, que a exposição não autorizada de imagens íntimas
produzidas e cedidas comercialmente — a esvaziar por completo sua natureza privada
e reservada — não se amolda ao espectro normativo (e protetivo) do art. 21 do Marco
Civil da Internet, que excepciona a regra de reserva da jurisdição.
Assim, com base em tais considerações, entendo que o desfecho trazido
pela relatora, permissa venia, confere interpretação demasiadamente extensiva ao
dispositivo legal em comento (art. 21 do Marco Civil da Internet), abarcando
situação fática contrária aos seus termos (que, como dito, exige que as imagens
íntimas sejam de “caráter privado”).
Em arremate, na esteira dos fundamentos acima delineados, dou
provimento ao recurso especial da Google do Brasil Internet Ltda., para
julgar improcedentes os pedidos de reparação pelos danos materiais e morais
suportados, mantida a procedência quanto ao pedido de obrigação de fazer (já
cumprida).
Ante tal desfecho, resta prejudicado o recurso especial da parte demandante.
Invertidos os ônus sucumbenciais, fixo os honorários advocatícios em 10%
sobre o valor atribuído à causa, nos termos do art. 85, § 2º, CPC.
É o voto.

VOTO-VISTA

Trata-se de ação de obrigação de fazer cumulada com pedido de


indenização por danos materiais e morais ajuizada por F B C (F) contra G B
I L (Google), em virtude da divulgação gratuita e sem autorização em “blogs”
hospedados e vinculados a ele, de fotos suas com nudez, que foram tiradas
em ensaio fotográfico que fez para uma revista voltada para o público adulto
(Revista Sexy).

442
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

A autora afirmou que a exploração comercial da sua imagem foi licenciada


e é de exclusividade da Editora Rickdan, acrescentando que, apesar de ter
notificado extrajudicialmente a provedora de aplicativos (Google) para remover o
conteúdo dos “blogs”, alguns permanecem ativos.
O Juízo de primeiro grau julgou parcialmente procedentes os pedidos
para condenar a Google ao cumprimento de obrigação de fazer, quanto (i) ao
fornecimento do nome e número de IP dos usuários relacionados às URLs
indicados por F; (ii) a remoção do conteúdo indicado nas referidas URLs; e
(iii) exclusão dos resultados de pesquisa do Google “Search”, Google “Imagens”,
referente as URLs indicadas.
A Google não foi responsabilizada solidariamente por fato dos terceiros
que incluíram em seus “blogs” da internet o ensaio fotográfico de F, segundo o
Magistrado, porque nos termos do art. 19 da Lei n. 12.965/2014, ela somente
pode ser responsabilizada se, após ordem judicial específica para retirar o
conteúdo apontado, nada fizer.
A sentença foi reformada no julgamento da apelação dos litigantes pelo
Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ/SP), nos termos do acórdão relatado pelo
Desembargador Miguel Brandi, que concluiu pela aplicação do disposto no art.
21 da Lei n. 12.965/2014, reconhecendo a responsabilidade solidária da Google,
que foi condenada a pagar R$ 40.000,00 (quarenta mil reais), a título de danos
morais para F.
A Google, no recurso especial especial, sustentou que o art. 21 da Lei
n. 12.965/14 somente se destina a quem usa de má-fé para vazar imagens
íntimas de caráter privado, o que não seria a hipótese dos autos, devendo ser
aplicada a norma do art. 19 do mesmo Marco Civil da Internet, que somente
responsabiliza os provedores de aplicação por conteúdo de terceiros quando
deixa de removê-los após determinação judicial.
Já F, no seu apelo nobre, queixou-se de negativa de prestação jurisdicional e
sustentou que os danos materiais sofridos devem ser quantificados em liquidação
de sentença, mediante prova pericial.
Isso posto, a controvérsia trazida ao STJ consiste em definir, como destacou
a em. Relatora, a Ministra Nancy Andrighi, a aplicabilidade do disposto no art.
21 do Marco Civil da Internet à hipótese de veiculação de fotografias com
conteúdo pornográfico em endereços eletrônicos da internet sem autorização da
fotografada, e nem da revista à qual se destinaram as fotos.

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 443


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

A propósito, os dispositivos legais da Lei n. 12.965/2014 objeto de


discussão dispõem que:

Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura,


o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado
civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após
ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos
limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível
o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em
contrário.

Art. 21. O provedor de aplicações de internet que disponibilize conteúdo


gerado por terceiros será responsabilizado subsidiariamente pela violação da
intimidade decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes,
de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de
atos sexuais de caráter privado quando, após o recebimento de notificação
pelo participante ou seu representante legal, deixar de promover, de forma
diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização
desse conteúdo.

No judicioso voto que proferiu na Sessão de Julgamento do dia 17 de


agosto de 2021, a em. Relatora defendeu a aplicação do disposto no art. 21 da
referida lei, segundo a qual o provedor passa a ser subsidiariamente responsável
a partir da notificação extrajudicial formulada pelo interessado na remoção
do conteúdo infringente da internet e não a partir da ordem judicial com esse
comando.
Argumentou, para tanto que a referida norma não se destina apenas a
chamada “pornografia de vingança”, porque o legislador não fez referência a
motivação do agente, mas sim a “pornografia não consensual”, que inclui tanto a
veiculação de cenas íntimas obtidas sem o consentimento da vítima quanto com
o seu consentimento, mas divulgadas sem a sua autorização.
Ao final, encaminhou o seu voto pelo não provimento do recurso especial
da Google, asseverando que embora tenha havido o consentimento para a
realização do ensaio fotográfico, a publicação das fotografias com conteúdo
pornográfico em meio não autorizado pela vítima e para um público mais
numeroso qualifica-se como pornografia não consentida e viola os direitos de F
à imagem, à privacidade e à intimidade, que encontra proteção na norma do art.
21 da Lei n. 12.965/2014, por não ter a Google atendido o pedido de exclusão
dos conteúdos na notificação extrajudicial que aquela encaminhou.

444
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

Após a prolação do referido voto, o em. Ministro Marco Aurélio Bellizze


abriu a divergência, assinalando, de início, que o caso dos autos não retrata
a hipótese de divulgação não autorizada de imagens ou vídeos com cenas
de nudez ou atos sexuais de caráter privado, a atrair a exceção à reserva de
jurisdição estabelecida no art. 21 do Marco Civil da Internet.
Acrescentou o em. Ministro, ainda, que o objeto da demanda não consiste,
primordialmente, na proteção ao direito personalíssimo da autora, F, mas
sim, diretamente, no ressarcimento pelos alegados prejuízos decorrentes da
divulgação, por terceiros, sem sua autorização, das imagens com conteúdo
íntimo licenciadas comercialmente.
Argumentou que o art. 21 do Marco Civil da Internet refere-se
especificamente à divulgação não autorizada de imagens, de vídeos ou de outros
materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado, sendo
que as imagens produzidas e cedidas para fins comerciais, absolutamente lícitas,
não ostentam natureza privada, objeto da proteção da referida norma.
O Ministro Marco Aurélio Bellizze finalizou o seu raciocínio, assinalando
que a proteção vindicada por F, as imagens de nudez, cujo conteúdo íntimo não
produzido em caráter privado, deve se dar segundo os ditames do art. 19, que
estabelece a responsabilização do provedor, caso, após ordem judicial específica,
não tomar as providências para, nos seus limites técnicos, tornar indisponível o
conteúdo apontado.
Nessa marcha, encaminhou o seu voto no sentido de dar provimento ao
recurso especial da Google, para julgar improcedente o pedido de reparação por
danos morais formulado por F.
Em seguida, o em. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, proferiu voto verbal
acompanhando a Relatora, lembrando, naquela oportunidade, que o art. 19
da Lei n. 12.965/2014 tem a sua constitucionalidade discutida no Supremo
Tribunal Federal, no RE n. 1.037.396, da Relatoria do Ministro Dias Tofoli, no
rito da repercussão geral (Tema n. 987).
Seguiu-se, então, meu pedido de vista para refletir sobre o melhor
encaminhamento do relevante tema que, volta e meia, vem chegando ao
Tribunal da Cidadania.
A questão, de fato, é complexa, como ressaltou no seu voto a Ministra
Nancy Andrighi, pois diz respeito a responsabilidade civil de provedores de
aplicações de Internet por conteúdo de terceiros, dificultando a solução da

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 445


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

controvérsia o fato de que não se pode impor a eles o dever de fiscalização prévia
dos conteúdos que são postados nas suas plataformas.
Conforme o caso, o que pode ensejar reparação civil subsidiária dos
provedores de aplicações é o descumprimento de ordem judicial de retirada do
conteúdo impróprio ou ofensivo divulgado nas suas plataformas por obra de
terceiros, ou a notificação extrajudicial do(a) ofendido(a), pois a responsabilidade,
como já dito, não é objetiva.
E nessa toada, após uma reflexão sobre o tema e a respeito dos
posicionamentos adotados nos bem elaborados votos proferidos, adianto que
estou acompanhando a divergência inaugurada pelo Ministro Marco Aurélio
Bellizze, porque tenho para mim que as fotos de nudez de F não foram
mesmo produzidas em caráter privado e o Google, quando instado a fazê-lo
judicialmente, de pronto, removeu os conteúdos divulgados ilicitamente nos
“blogs” hospedados por ele.
Antes, faço algumas considerações a respeito dos dispositivos legais objeto
da controvérsia.
Extrai-se da norma contida no art. 19 da Lei 12.965/14, que ficou a cargo
do Poder Judiciário definir o que é ou não conteúdo inapropriado ou ilícito
gerados por terceiros na rede mundial de computadores, e o que deve ou não ser
removido, de modo a buscar exercer um equilíbrio entre o que é liberdade de
expressão e de informação e o que pode violar direito constitucional de outrem,
como a proteção da intimidade e privacidade, nascendo a responsabilidade civil
do provedor se não cumprir a ordem judicial que determinou a remoção de
certo material.
A este respeito, esta Terceira Turma, no julgamento do REsp n. 1.568.935/
RJ, da relatoria do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe de 13/4/2016,
proclamou que:

Não se pode exigir dos provedores que determinem o que é ou não


apropriado para divulgação pública. Cabe ao Poder Judiciário, quando instigado,
aferir se determinada manifestação deve ou não ser extirpada da rede mundial
de computadores e, se for o caso, fixar a reparação civil cabível contra o real
responsável pelo ato ilícito. Ao provedor não compete avaliar eventuais ofensas,
em virtude da inescapável subjetividade envolvida na análise de cada caso.
Somente o descumprimento de uma ordem judicial, determinando a retirada
específica do material ofensivo, pode ensejar a reparação civil.

446
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

Na mesma linha da jurisprudência destacada é a doutrina de CARLOS


AFFONSO SOUZA, RONALDO LEMOS e CELINA BOTTINO, que
lecionam:

Da interpretação dos artigos 19 a 21 do Marco Civil, pode-se concluir que


a notificação privada, em regra, não gerará o dever de remoção do conteúdo
questionado nem a consequente responsabilização do provedor, caso ela não
seja atendida. Assim, caberá ao poder judiciário, em grande parte dos casos,
determinar o que é ou não ilícito, ou melhor, o que deve ou não ser removido
de determinado local da rede. Decidindo o magistrado que certo conteúdo é
efetivamente ilícito, caberá ao provedor removê-lo prontamente (Marco Civil da
Internet: jurisprudência comentada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2017, p. 119).

Desse modo, a teor do art. 19 da Lei do Marco Civil da Internet, o que se


tem, é que a responsabilidade civil do provedor de aplicações de Internet pelo
conteúdo de terceiro é subjetiva por omissão quando este não retira o conteúdo
ofensivo, após a específica e indispensável notificação judicial, pois o intuito da
norma é assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, possuindo o
Poder Judiciário melhores condições de fazê-lo em maior extensão.
As exceções ao disposto no referido dispositivo estão expressas na mesma
lei, como por exemplo, no seu § 2º, que afasta sua aplicação as questões de direito
autoral, e também no art. 21, que é o que importa ao caso, para as hipóteses de
divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeo ou de
outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado,
englobando a chamada “pornografia de vingança”, que não enseja uma ordem
judicial para retirada do conteúdo, bastando tão somente a notificação privada
do ofendido ao provedor apontando o material ilícito ofensivo.
Verifica-se, a teor do art. 21 da Lei n. 1.2965/14, que o legislador optou
por excepcionar a regra da notificação judicial, atento a gravidade que emana
da disponibilização na Internet, sem a devida autorização de seus participantes,
de imagens contendo cenas de nudez de caráter privado, que indubitavelmente
tem a aptidão de violar a intimidade e a privacidade da vítima, conferindo um
tratamento diferenciado para tal hipótese, privilegiando a celeridade da exclusão
do conteúdo ofensivo para não prolongar o dano, pois a veiculação de tal
material na rede ocorre numa velocidade impressionante.
Feitas essas considerações a respeito da aplicação dos dispositivos legais
em discussão, tenho para mim, como bem consignou o Ministro Marco Aurélio

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 447


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Bellizze, que as imagens de nudez, divulgadas ilicitamente em plataforma


digital, mas produzidas para fins comerciais, como na hipótese dos autos, não
possuem, de fato, a natureza de caráter privado a que faz menção a norma do art.
21 da mencionada lei.
Isso fica claro, com a leitura das razões da petição inicial que revela,
efetivamente, que a pretensão indenizatória tem o escopo de reparar lesão de
cunho eminentemente patrimonial (divulgação gratuita não autorizada do
ensaio fotográfico), e não diretamente a intimidade da autora pela divulgação de
conteúdo não autorizado, não se amoldando o caso, ao comando do art. 21 da já
mencionada lei.
O ensaio fotográfico de nudez realizado especificamente para sua
exploração econômica por revista adulta, voltada para público seleto mediante
pagamento pelo acesso no seu website, não pode mesmo ser definida como de
caráter privado.
A pretensão de F, repito, é a obtenção de reparação civil por uso indevido
da sua imagem, sem o seu prévio consentimento e a distribuição gratuita do
seu ensaio fotográfico realizado para a Revista Sexy em Janeiro de 2017, que
não foi feito pela Google, e não especificamente em virtude da violação de sua
intimidade.
Vai daí que tirar fotos íntimas para divulgação em revista voltada para o
público adulto e receber contraprestação por isso não é ilícito; ilícito é divulgar
fotos tiradas em caráter particular e sem o consentimento da fotografada, o que
não é o caso.
Como o ensaio fotográfico de nudez para a revista adulta foi feita por
F com o fim específico de lucro, no meu sentir, elas perderam a sua natureza
íntima e privada, motivo pelo qual deve ser aplicada a norma do art. 19 da Lei n.
12.965/14 e não a do art. 21.
E não vejo, em absoluto, nenhum viés machista neste entendimento,
porque a minha conclusão seria a mesma se o autor da ação, por ventura, fosse
do sexo masculino ou de qualquer gênero, até porque as normas legais aqui
destacadas, têm incidência abstrata e genérica sobre fatos diversos.
Deve-se ressaltar que não foi a Google que disponibilizou as fotos íntimas
de F produzidas para uma revista masculina destinada ao público adulto e, sim
os “blogs” por ela hospedados, que são os únicos que devem suportar a reparação
do dano aqui buscado.

448
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

Por isso, a Google somente poderia ser responsabilizada subsidiariamente se


não cumprisse a ordem judicial para retirar o conteúdo postado ilicitamente na
plataforma dos “blogs” que hospeda, o que não ocorreu, atraindo a incidência do
art. 21 da Lei n. 12.965/14.
Diante do exposto, rogando todas as vênias a em. Ministra Nancy Andrighi
e ao em. Ministro Ricado Villas Bôas Cueva, acompanho o voto divergente para
também dar provimento ao recurso especial da Google, e julgar improcedentes os
pedidos de indenização por danos materiais e morais, mantendo a procedência
quanto a obrigação de fazer, já cumprida.
Por conseguinte, voto também no sentido de julgar prejudicado o recurso
especial interposto por F.

VOTO-VISTA

O Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino: Eminentes Colegas, pedi


vista dos autos na sessão do dia 19 de outubro de 2021, para melhor exame da
controvérsia, notadamente em razão do empate havido entre o voto da eminente
relatora e o voto divergente, inaugurado pelo eminente Ministro Marco Aurélio
Bellizze.
Relembro que o recurso especial foi interposto no curso de ação
cominatória e indenizatória proposta por F B C contra G B I L, com o objetivo
de que a demandada fosse condenada a remover da internet páginas de blogs
contendo ensaio de nudez realizado para revista, bem como a indenizar os
prejuízos advindos da publicação indevida de sua imagem.
O Tribunal de origem afirmou ser aplicável, ao presente caso, o art. 21
do Marco Civil da Internet (Lei n. 12.965/14), que confere proteção contra a
divulgação de conteúdo sexual de caráter íntimo. Concluiu pela responsabilidade
do provedor, que, uma vez notificado, não procedeu à remoção imediata do
conteúdo, providência que prescindiria de determinação judicial. Condenou a
demandada, pois, ao pagamento de indenização por danos morais e materiais.
A recorrente, em seu recurso especial, alega, além de violação do art.
1.022, II, do CPC, a ofensa ao art. 21 do Marco Civil da Internet, sustentando
que o caso não envolve publicação de fotos de nudez de caráter privado, mas,
sim, reprodução não remunerada de fotografias tiradas em ensaio consensual,
objeto de licenciamento para fins comerciais. Defende, assim, a inaplicabilidade
do art. 21 do Marco Civil da Internet ao presente caso, argumentando que

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 449


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

a determinação judicial era imprescindível para a remoção do conteúdo, nos


termos do art. 19 do mesmo diploma.
A eminente relatora, Ministra Nancy Andrighi, votou no sentido de negar
provimento ao recurso especial, por entender ser aplicável o referido art. 21, já
que “se a pessoa posou nua para determinada revista, a publicação das imagens em
outras revistas ou meios de comunicação configura violação ao seu direito de imagem”.
Concluiu, assim, que “o art. 21 do MCI não tem sua aplicação restrita às situações de
pornografia de vingança, mas alcança também hipótese de divulgação de fotografias de
nudez tiradas com o consentimento da vítima para publicação em determinada revista
de acesso restrito, mas veiculadas em outros sites da internet sem a sua autorização”.
O eminente Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva acompanhou
integralmente o voto da eminente Ministra relatora.
A divergência foi inaugurada pelo eminente Ministro Marco Aurélio
Bellizze, que, acompanhado do eminente Ministro Moura Ribeiro, entendeu
que o caso dos autos não se enquadra na exceção à reserva de jurisdição prevista
no art. 21 do Marco Civil da Internet, uma vez que tal dispositivo legal aplica-
se exclusivamente à divulgação não autorizada de imagens ou de vídeos com
cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter necessariamente privado. Ressaltou,
ademais, que a presente demanda não envolve a proteção a direito personalíssimo
da autora, mas tão somente o ressarcimento pelos prejuízos decorrentes da
divulgação, sem a devida contraprestação, de suas imagens.
Rogando vênia à eminente relatora, acompanho integralmente a
divergência.
Preliminarmente, consigno que, assim que o recurso foi pautado para
a presente sessão de julgamento, a autora peticionou nos autos (e-STJ fls.
1.949-1.963) alegando apresentar fatos supostamente novos, consistentes no
descumprimento, pela ré, da ordem de remoção do conteúdo da Internet, o que
justificaria o reconhecimento da violação, se não do art. 21 do Marco Civil da
Internet, ao menos do art. 19 do mesmo diploma legal.
Porém, os fatos ora alegados não são novos. O suposto descumprimento
vem sendo alegado desde a apelação, sendo que a ata notarial, embora
recentemente lavrada, apenas comprovaria, conforme afirmado pela própria
autora, o descumprimento que já teria sido arguido anteriormente, antes mesmo
do início do julgamento do presente recurso.
Ocorre que a alegada violação do art. 19 do Marco Civil da Internet sequer
é objeto do presente recurso especial, uma vez que tal dispositivo legal não

450
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

integra a causa de pedir da presente demanda, fundada no art. 21 do mesmo


diploma legal, conforme se depreende da fundamentação da petição inicial
(e-STJ fls. 14-16) e dos próprios pedidos (e-STJ fls. 50, item d).
Estando a ação fundada no art. 21 do Marco Civil da Internet, não pode a
autora pretender, diante de julgamento contrário à sua pretensão, alterar a causa
de pedir, para passar a fundamentar seus pedidos no art. 19.
O que se depreende da mencionada petição – apresentada quando prestes
a se concluir o julgamento, antes do voto de desempate – é um mero intuito de
tumultuar o feito e de protelar a decisão final no recurso. Tal petição, portanto,
não tem o condão de interferir no julgamento, razão pela qual passo a proferir
meu voto.
A controvérsia recursal versa acerca da possibilidade de aplicação do art.
21 do Marco Civil da Internet aos casos de divulgação indevida de materiais
contendo cenas de nudez ou de atos sexuais produzidas em ensaio fotográfico
destinado a fins comerciais.
A presente demanda não versa acerca da responsabilidade civil direta da
recorrente, mas, sim, de sua responsabilidade enquanto provedora de conteúdo,
por atos de seus usuários.
Em hipóteses como a presente, o provedor apenas pode ser responsabilizado
pelos conteúdos publicados por seus usuários quando, tendo sido determinada
judicialmente a remoção, ele permanece omisso, nos termos do art. 19 do Marco
Civil da Internet.
Portanto, em regra, para a remoção de qualquer conteúdo da internet, deve
ser necessariamente observada a reserva de jurisdição.
A regra do art. 21 prevê que, excepcionalmente, o provedor de conteúdo
será responsável subsidiário pela violação da intimidade de terceiros causada pela
“divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou de outros
materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado” se permanecer
omisso após a notificação pelo participante ou por seu representante legal.
Tal dispositivo legal, por configurar exceção à regra de que a remoção de
conteúdo da internet deve ser necessariamente objeto de determinação judicial,
deve ser interpretada restritivamente, sendo imprescindível notar que o texto
normativo refere-se especificamente a cenas ou atos de caráter privado.
Esta regra visa a garantir uma proteção contra a disseminação de imagens
íntimas não consentidas (também conhecida como NCII, da expressão em
inglês Non-Consensual Intimate Images).

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 451


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Não se resume à pornografia de vingança, porquanto o verdadeiro intuito


daquele que dissemina imagens íntimas de forma não consentida se afigura
irrelevante, mas abrange toda e qualquer forma com a qual se pode revestir esta
modalidade contemporânea de violência digital.
A mens legis do art. 21 do Marco Civil da Internet, portanto, traduz-se
em uma tentativa de possibilitar à vítima desse tipo de violência uma remoção
mais célere e simplificada do conteúdo que viola de forma direta, pungente e
absolutamente irreparável o seu direito fundamental à intimidade.
Isso é o que se depreende da doutrina especializada (SOUZA, Carlos
Affonso; LEMOS, Ronaldo. Marco civil da internet: construção e aplicação.
Juiz de Fora: Editar Editora Associada Ltda, 2016, p. 107):

Essa norma decorreu de uma demanda presente nos trabalhos legislativo de


aprovação do Marco Civil no sentido de se proteger situações infelizmente usuais
em que um conteúdo de natureza íntima é divulgado na rede sem a autorização
de uma ou mais pessoas retratadas. Episódios de suicídios de meninas retratadas
em vídeos íntimos publicados e compartilhados online sem a sua autorização no
ano que antecedeu a aprovação do Marco Civil contribuíram também para que
esse dispositivo fosse adicionado à redação original do projeto.

Nesse contexto, mostram-se essenciais à aplicação do mencionado art.


21: i) o caráter não consensual da imagem íntima; ii) a natureza privada das
cenas de nudez ou dos atos sexuais disseminados; iii) a violação à intimidade,
elementos que não se encontram presentes no caso em tela.
A recorrida, conforme se depreende do acórdão recorrido e do minucioso
relatório da eminente Ministra Nancy Andrighi, cedeu os direitos de sua
imagem para a Editora RickDan sobre fotografias e outros materiais produzidos
em ensaio sensual realizado para a Revista Sexy, a ser disponibilizado para
maiores de idade mediante pagamento em sites específicos.
A realização e a divulgação do material, tanto virtual quanto fisicamente,
foram devidamente consentidas pela recorrida, inclusive internacionalmente.
Ademais, não se trata de material de natureza privada, mas, sim, de obras
produzidas de forma profissional, com intuito exclusivamente comercial e
destinados precipuamente à circulação.
Quanto mais o material circulasse (de forma lícita), maior seria o benefício
econômico auferido pela editora e pela própria recorrida.
Por fim, não houve violação direta ao direito de intimidade da recorrida,
que sequer fundamentou a presente ação em ofensa a direito da personalidade.

452
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

Conforme bem notado pelo eminente Ministro Marco Aurélio Bellizze, a


presente demanda busca apenas evitar e reparar os lucros cessantes decorrentes
da disseminação gratuita do material em que figura a recorrida. Como é evidente,
se as fotos e os vídeos permanecerem disponíveis na internet de forma gratuita,
haverá menos interessados em adquiri-los mediante pagamento, reduzindo,
assim, o proveito econômico oriundo da cessão do direito de imagem.
A toda evidência, não se pode equiparar o caso dos autos à situação de
disseminação de imagens íntimas não consentidas, em que a vítima tem sua
intimidade devassada e publicamente violada, com a ampla e vexaminosa
exposição de seu corpo de forma não consentida.
A ora recorrida não é vítima de violência, mas pretende apenas repor o
que deixou de ganhar pela utilização não autorizada de suas fotografias em sites
piratas. Seu interesse, portanto, é única e exclusivamente econômico.
Não se discute que a publicação gratuita e não autorizada de seu material
configura ato ilícito, não apenas violador de seu direito de imagem, mas também
dos direitos autorais de que são titulares, a princípio, a própria editora e os
profissionais que trabalharam em sua realização.
Porém, essa ilicitude, por si só, não autoriza a aplicação do art. 21 do
Marco Civil da Internet, de modo que seria imprescindível uma determinação
judicial para a remoção do referido conteúdo, nos termos do art. 19 do mesmo
diploma legal.
Esta parece ser a solução mais adequada a partir de duas constatações,
verificadas à luz do art. 20 da LINDB, que determina que, também na esfera
judicial, não se pode decidir com base em valores jurídicos abstratos, sem que se
levem em consideração as consequências práticas da decisão.
Em primeiro lugar, uma interpretação excessivamente extensiva do art. 21
do Marco Civil da Internet poderia acabar por atribuir ao provedor de conteúdo
a obrigação de examinar cláusulas contratuais de negócios jurídicos envolvendo
terceiros, a fim de averiguar, por exemplo, se a publicação de ensaio sensual em
determinado blog, rede social ou página da internet estava ou não dentro do
consentimento dado pelo(a) modelo, tarefa que reconhecidamente não lhe pode
ser atribuída.
Em segundo lugar, equiparar casos como o presente – de divulgação pirata
de fotos sensuais de caráter comercial – a casos de disseminação não consentida
de imagens íntimas poderia acabar por desvirtuar a proteção dada às vítimas

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 453


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

dessa violência, diminuindo o grau de reprovabilidade desse tipo de conduta e


diluindo os esforços da sociedade civil e do legislador no sentido de aumentar
a conscientização acerca dessa nova forma de violência surgida com a internet.
Ante o exposto, rogando novamente vênia à eminente relatora, acompanho
integralmente o voto do eminente Ministro Marco Aurélio Bellizze.
É o voto.

RECURSO ESPECIAL N. 1.947.652-GO (2021/0037981-4)

Relator: Ministro Moura Ribeiro


Recorrente: Nivaldo Batista Lima
Advogados: Marcelo Pelegrini Barbosa - SP199877
Pedro Scudellari Filho - SP194574
Claudio Dias Bessas - MG129591
Ana Carolina Delfino Bortolotto - SP318499
Recorrido: Andre Luiz Goncalves da Silva
Advogado: Adolfo Kennedy Marques Junior - GO036543

EMENTA

Processual Civil. Recurso especial. Recurso manejado sob a égide


do NCPC. Ação declaratória c/c nulidade de negócio jurídico c/c
indenização por danos materiais e morais e obrigação de fazer. Direito
Autoral. Decadência. Não ocorrência. Prazo prescricional incidente
sobre a pretensão decorrente da responsabilidade civil contratual.
Inaplicabilidade do art. 206, § 3º, V, do CC/2002. Subsunção a regra
geral do art. 205, do CC/2002. Prazo decenal. Recurso não provido.
1. Aplicabilidade do NCPC neste julgamento conforme
o Enunciado Administrativo n. 3 aprovado pelo Plenário do STJ
na sessão de 9/3/2016: Aos recursos interpostos com fundamento no
CPC/2015 (relativos a decisões publicadas a partir de 18 de março de
2016) serão exigidos os requisitos de admissibilidade recursal na forma do
novo CPC.

454
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

2. Cinge-se a controvérsia em dirimir a incidência do prazo


decadencial ou prescricional às pretensões deduzidas em juízo, que
digam respeito ao direito de reivindicar a autoria de obra musical e
as pretensões indenizatórias e compensatórias decorrentes da relação
contratual entabulada pelas partes.
3. O direito da personalidade é inato, absoluto, imprescritível,
está amparado na Declaração Universal dos Diretos Humanos, na
Constituição pátria e na Lei n. 9.610/98 (art. 27). Por serem os
direitos morais do autor inerentes aos direitos da personalidade, não se
exaurem pelo não uso ou pelo decurso do tempo, sendo autorizado ao
autor, a qualquer tempo, pretender a execução específica das obrigações
de fazer ou não fazer decorrentes dos direitos elencados no art. 24, da
Lei n. 9.610/98.
4. A legislação especial que rege a matéria, portanto, afasta o
decurso do prazo decadencial quanto a pretensão de reivindicar a
autoria da obra musical, razão por que não incidem as regras gerais do
Código Civil na hipótese em exame (art. 178, II, do CC/2002).
5. A retribuição pecuniária por ofensa aos direitos patrimoniais
do autor se submete ao prazo decenal, inseridos no contexto da relação
contratual existente entre as partes.
6. Recurso especial não provido.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas,


acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por
unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr.
Ministro Relator.
Os Srs. Ministros Nancy Andrighi, Paulo de Tarso Sanseverino
(Presidente), Ricardo Villas Bôas Cueva e Marco Aurélio Bellizze votaram com
o Sr. Ministro Relator.
Brasília (DF), 15 de março de 2022 (data do julgamento).
Ministro Moura Ribeiro, Relator

DJe 28.3.2022

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 455


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Moura Ribeiro: André Luiz Gonçalves da Silva (André)


ajuizou “ação declaratória c/c ação de nulidade de negócio jurídico c/c
indenização por danos materiais e morais c/c obrigação de fazer” contra Nivaldo
Batista Lima, conhecido como cantor “Gusttavo Lima” (Gusttavo), objetivando
ver reconhecido seu direito autoral sobre a integralidade das músicas intituladas
“Fora do Comum” e “Armadura da Paixão”, indevidamente registradas em
coautoria pelo cantor.
Pleiteou, assim, a declaração de nulidade do contrato ou documento
que atribuiu a coautoria da obra musical, a condenação ao pagamento de
indenização por danos materiais e morais, além do dever de o cantor declarar ao
público que a música “Fora do Comum” é de sua autoria exclusiva, ou seja, do
autor, André (e-STJ, fls. 2/12).
A sentença julgou extinto o feito com resolução do mérito diante da
ocorrência da prescrição, nos termos do art. 487, II, do CPC/2015, sob o
fundamento de que o prazo prescricional aplicável aos fatos é de três anos, nos
termos do art. 206, § 3º, V, do CPC/2015 (e-STJ, fls. 290/295).
O Tribunal de Justiça do Estado de Goiás deu provimento ao recurso de
apelação de André para afastar a ocorrência da prescrição e cassar a sentença a
fim de permitir a dilação probatória, além de afastar também a decadência do
direito do autor, em acórdão assim ementado:

Ementa: Apelação cível. Ação declaratória c/c nulidade de negócio jurídico


c/c indenização por danos materiais e morais e obrigação de fazer. Gratuidade
da justiça. Impugnação. Violação aos direitos do autor. Obrigação contratual.
Decadência afastada. Prescrição decenal. Não ocorrência. Teoria da causa madura.
Inaplicabilidade. Necessidade de dilação probatória.
I - Compete à parte contrária comprovar, mediante prova inconteste,
a inexistência ou desaparecimento dos requisitos essenciais à concessão do
benefício de assistência judiciária. Não produzida pelo requerido/apelado prova
documental robusta, incontestável e apta a comprovar que o autor/apelante não
faz jus à gratuidade da justiça concedida pelo magistrado singular, não deve ser
acolhida a impugnação.
II- Em relação aos direitos morais do autor, a legislação especial prevê
expressamente (art. 24, inciso I, da Lei 9.610/1988) que o autor pode, a qualquer
tempo, reivindicar a autoria da obra, bem como que se tratam de direitos
irrenunciáveis e inalienáveis. Portanto, os direitos morais do autor, dentre eles,
o direito de paternidade sobre os fonogramas ora reivindicados, podem ser

456
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

pleiteados a qualquer tempo, devendo ser afastada a alegada decadência. Não


se aplicam as regras gerais do Código Civil ao caso em exame, pois a legislação
especial que regula a matéria afasta a incidência da decadência.
III- No tocante aos casos de violação de direitos do autor, nem a Lei n.
9.610/1988, tampouco o Código Civil de 2002, possuem previsão expressa quanto
ao prazo prescricional, portanto, aplica-se “o prazo de 03 anos (artigo 206, § 3º, V)
quando tiver havido ilícito extracontratual ou então o prazo de 10 anos (artigo
205), quando a ofensa ao direito autoral se assemelhar a um descumprimento
contratual (REsp 1.159.317/SP e REsp 1.313.786/MS).
IV- É incontroverso o estabelecimento de acordo, principalmente após
a petição apresentada pelo apelado/requerido, que confessa a realização do
negócio jurídico entre as partes em relação às canções objeto do litígio, sendo
controvertido apenas os limites relativos ao que restou acordado. Logo, o prazo
prescricional aplicável é de 10 (dez) anos, previsto no 205 do Código Civil de 2002.
V- Deve ser considerando como termo inicial para a fluência do prazo
prescricional decenal, a data em que o autor assinou o contrato de cessão de
direitos autorais com a sua então editora, pois o referido documento demonstra
que o apelante já tinha pleno conhecimento que a canção debatida não havia
sido registrada integralmente em seu nome.
VI- Afastada a alegação de prescrição, não há que se falar na aplicação ao
caso em estudo do disposto no art. 1.013, §§ 3º e 4º, do Código de Processo Civil,
sem que se tenha oportunizado a produção das provas requeridas por ambas
as partes, e reiterada pelo apelado nas contrarrazões recursais, por violação às
garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa, inerentes ao devido
processo legal.
Apelo conhecido e provido. Sentença cassada. (e-STJ, fl. 453)

Contra esse acórdão Gusttavo interpôs recurso especial com base no art.
105, III, a, da CF, alegando ofensa aos arts. 178, II, 206, § 3º, V, do CC/2002
e aos arts. 24, I, e 27, da Lei de Direitos Autorais (Lei 9.610/1988), uma vez
que (1) ocorreu o decurso do prazo decadencial de quatro anos para pleitear a
anulação de negócio jurídico fundado em erro/dolo; (2) a discussão não se refere
a direito autoral, pelo contrário, se refere a negócio jurídico que resultou em
obras musicais, devendo receber a tutela do CC/2002 que prevê a decadência
do direito para pleitear a nulidade do negócio celebrado entre as partes; e (3) é
aplicável ao caso o prazo de prescrição trienal previsto no art. 206, § 3º, V, do
CC/2002 (e-STJ, fls. 457/482).
As contrarrazões foram apresentadas às e-STJ, fls. 493/494.
O recurso especial não foi admitido pelo Tribunal de Justiça do Estado de
Goiás sob o fundamento de que a conclusão sobre o acerto ou desacerto da decisão

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 457


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

recorrida demandaria incursão no acervo fático-probatório dos autos, o que impede o


trânsito do Recurso Especial, nos termos da Súmula 7 do Superior Tribunal de Justiça
(e-STJ, fls. 497/499).
Contra o juízo de prelibação do Tribunal local Gusttavo interpôs agravo
em recurso especial sustentando que não incide o óbice da Súmula n. 7 do STJ
porque não há necessidade de reexame de fatos, mas de matéria exclusivamente
de direito relacionada à interpretação da lei quanto a ocorrência de decadência
e/ou prescrição do direito do autor (e-STJ, fls. 503/509).
A contraminuta não foi apresentada, conforme certificado à e-STJ, fl. 514.
O agravo foi convertido em recurso especial para melhor análise da
controvérsia (e-STJ, fls. 522/525).
É o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Moura Ribeiro (Relator): De plano vale pontuar que


as disposições do NCPC, no que se refere aos requisitos de admissibilidade
dos recursos, são aplicáveis ao caso concreto ante os termos do Enunciado
Administrativo n. 3, aprovado pelo Plenário do STJ na sessão de 9/3/2016:

Aos recursos interpostos com fundamento no CPC/2015 (relativos a decisões


publicadas a partir de 18 de março de 2016) serão exigidos os requisitos de
admissibilidade recursal na forma do novo CPC.

Cinge-se a controvérsia em dirimir a incidência do prazo decadencial


ou prescricional às pretensões deduzidas em juízo, que digam respeito ao
direito de reivindicar a autoria de obra musical e as pretensões indenizatórias e
compensatórias decorrentes da relação contratual entabulada pelas partes.

(1) Breve histórico dos fatos

Conforme constou no relatório, André, compositor, ajuizou “ação


declaratória c/c ação de nulidade de negócio jurídico c/c indenização por
danos materiais e morais c/c obrigação de fazer” contra Gusttavo, cantor,
objetivando o reconhecimento do seu direito autoral sobre a integralidade das
músicas intituladas “Fora do Comum” e “Armadura da Paixão”, indevidamente
registradas em coautoria pelo cantor.

458
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

Pleiteou, assim, a declaração de nulidade do contrato ou documento que


atribuiu a coautoria da obra musical, a condenação ao pagamento de indenização
por danos materiais e morais, além do dever de o cantor declarar ao público que
a música “Fora do Comum” é de autoria exclusiva dele, André (e-STJ, fls. 2/12).
A sentença julgou extinto o feito com resolução do mérito diante da
ocorrência da prescrição, nos termos do art. 487, II, do CPC/2015, sob o
fundamento de que o prazo prescricional aplicável aos fatos é de três anos, nos
termos do art. 206, § 3º, V, do CPC/2015 (e-STJ, fls. 290/295).
O Tribunal de Justiça do Estado de Goiás deu provimento ao recurso de
apelação de André para afastar a prescrição e cassar a sentença a fim de permitir
a dilação probatória, além de afastar, também, a decadência do direito do autor.
É contra esse acórdão o inconformismo de Gusttavo, alegando ofensa aos
arts. 178, II, 206, § 3º, V, do CC/2002 e aos arts. 24, I, e 27, da Lei de Direitos
Autorais (Lei 9.610/1988), firme na tese de que a pretensão autoral é natimorta
diante do decurso dos prazos de decadência e de prescrição para o ajuizamento
da demanda.

(2) Da proteção conferida pela legislação aos direitos autorais

A CF/1988, em seu art. 5º, XXVII e XXVIII, alíneas a e b, trata da


proteção ao direito autoral, reconhecendo a exclusividade dos direitos dos
autores de obras científicas, literárias e artísticas de utilização, publicação ou
reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar.
O direito autoral é considerado como um direito personalíssimo, espécie
inerente ao núcleo de direitos fundamentais do qual fazem parte a privacidade, a
liberdade, a vida, e está vinculado com a proteção da individualidade.
Por tal razão, o direito autoral é, na sua parcela mais subjetiva, intransferível,
inegociável, indisponível e irrenunciável, tanto quanto o são integralmente o
direito à liberdade ou o direito à privacidade.
O art. 22 da Lei n. 9.610/98 dispõe que pertencem ao autor os direitos morais
e patrimoniais sobre a obra que criou.
Os direitos morais do autor, de essência personalíssima, garantem ao
titular os direitos elencados no art. 24 da Lei n. 9.610/98, dentre eles o direito à
paternidade, de reivindicar a autoria da obra e de ter o seu nome nela indicado.
Estão ligados, essencialmente, à integridade criativa e à paternidade da obra.

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 459


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Precisamente sobre os direitos morais do autor, o art. 24, I da Lei n.


9.610/98, dispositivo suscitado na irresignação recursal, dispõe que:

Art. 24. São direitos morais do autor:


I – o de reivindicar, a qualquer tempo, a autoria da obra;

Os direitos patrimoniais, de índole material, por seu turno, conferem


ao autor o direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor da obra literária, artística
ou científica (art. 28). Dizem respeito, portanto, a exploração econômica da
criatividade do autor.
Desse modo, os direitos autorais de obra intelectual devem ser visualizados
sob uma dualidade de atributos: direito de natureza patrimonial e direito de
caráter extrapatrimonial, isto é, detém o autor a titularidade de direitos material
e moral.
PONTES DE MIRANDA já reconhecia essa dualidade dos direitos do
autor:

A obra científica, artística ou literária dá ensejo a diferentes direitos, o primeiro


dos quais é o direito autoral de personalidade [...] que precede, gnoseológica e
logicamente, às relações jurídicas em que o objeto é bem patrimonial ou tem
valor patrimonial. O direito autoral de personalidade e o direito autoral patrimonial
são inconfundíveis. (Tratado de Direito Privado. Parte Especial, Tomo XVI. Direito
das Coisas, Propriedade Intelectual e Propriedade Industrial. Atualizado por
Marcos Alberto Sant´Anna Bitelli. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.
pp. 65/66 - sem destaque no original).

CARLOS ALBERTO BITTAR bem destacou as funções próprias dos


direitos extrapatrimoniais e patrimoniais do autor:

Cada bloco de direitos cumpre funções próprias: os direitos de cunho moral


se relacionam à defesa da personalidade do criador, consistindo em verdadeiros
óbices a qualquer ação de terceiros com respeito à sua criação; já os direitos de
ordem patrimonial se referem à utilização econômica da obra, representando os
meios pelos quais o autor dela pode retirar proventos pecuniários” (Direito de
autor. Rio de Janeiro: Forense, 2015, pág. 68 – sem destaques no original).

Na mesma linha é o entendimento de ARNALDO RIZZARDO,


para quem o direito autoral envolve duas dimensões: a pessoal (ou moral) e a
patrimonial, a primeira corresponde ao aspecto intelectual, reconhecendo-se ao autor
a paternidade da obra, que é sua criação. Daí torna-se a mesma inseparável do autor
(Direito das Coisas. 2007. 3ª ed. RJ. Forense. pág. 672).
460
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

Os direitos patrimoniais diferenciam-se dos direitos morais


particularmente pela possibilidade de o autor poder deles dispor, já que é
alienável, penhorável, temporário e prescritível, enquanto os direitos morais
se encontram permanentemente investidos, incrustados, na pessoa do autor,
criador da obra artística.
Relevante, pois, perceber que a decadência ou prescrição devem ser
analisadas a partir da pretensão deduzida em juízo e, especificamente, em relação
ao direito do autor, a aplicação dos institutos deve observar a dicotomia entre a
pretensão relacionada ao direito patrimonial ou extrapatrimonial do autor.

(3) Da pretensão de reivindicar a autoria da obra

O direito do autor está protegido pelo direito da personalidade, que são


direitos subjetivos da pessoa de defender o que lhe é próprio, ou seja, a sua
integridade física (vida, alimentos, ...), a sua integridade intelectual (liberdade
de pensamento, autoria científica, artística e literária), e sua integridade moral
(honra, recato, segredo pessoal, profissional e doméstico, imagem, identidade
pessoal, familiar e social), como pondera MARIA HELENA DINIZ (Curso de
Direito Civil. São Paulo: Ed. Saraiva, vol. 1, pág. 135).
Segundo PONTES DE MIRANDA, o direito à personalidade é inato, no
sentido que nasce com o indivíduo; é aquele poder “in se ipsum”, [...] que não é direito
sobre a própria pessoa: é direito que se irradia do fato jurídico da personalidade
(= entrada, no mundo jurídico, do fato do nascimento do ser humano com vida),
consagrando a tutela dos direitos fundamentais e os próprios da pessoa humana
(vida, liberdade e igualdade). (Tratado de Direito Privado. São Paulo: Ed.
Revista dos Tribunais, 2012, Tomo VII, págs. 68 e 69).
A proteção ao direito do autor é de tal monta que dele se preocupou o
inciso XXVII, item 2, da Declaração Universal dos Direito Humanos, deixando
ali construído o princípio de que todo ser humano tem direito a proteção
dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica
literária ou artística da qual seja autor.
Na Constituição Federal, destacam-se os incisos V, X e XVII, do art. 5º,
que veiculam princípios expressos no sentido de proteger os autores de obras,
de tal modo que a eles pertence o uso exclusivo de utilização, publicação e
reprodução delas, só sendo transmissível aos herdeiros, nos termos da lei (inciso
XVII).

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 461


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Bem por isso, os direitos da personalidade têm caráter absoluto, com eficácia
erga omnes (contra todos), principalmente se confrontados com os direitos
pessoais puros, como os direitos obrigacionais e contratuais (TARTUCE,
Flávio. Direito Civil. Rio de Janeiro: Ed. gen/Forense, 12ª edição, vol. 1, pág.
158).
Sobre as características dos direitos da personalidade, vem à luz a lição de
FRANCISCO AMARAL para quem eles são inerentes à pessoa, intransmissíveis,
inseparáveis do titular, e por isso se chamam, também, personalíssimos, pelo que se
extinguem com a morte do titular. Consequentemente, são absolutos, indisponíveis,
irrenunciáveis, imprescritíveis e extrapatrimoniais. [...] Indisponíveis, porque
insuscetíveis de alienação, não podendo o titular a eles renunciar, por inerentes à
pessoa, ou até limitá-los, salvo nos casos previstos em lei. Essa indisponibilidade não
é, porém, absoluta, admitindo-se, por exemplo, no acordo que tenha por objeto direito
da personalidade, como ocorre no caso de cessão do direito de imagem para fins de
publicidade. (Direito Civil - Introdução. 8ª edição. Rio de Janeiro: Ed. Renovar,
2014, pág. 303).
E não é só: CARLOS ALBERTO BITTAR ensina com lucidez e na
mesma toada sobre os direitos da personalidade que eles são inatos (originários),
absolutos, extrapatrimoniais, intransmissíveis, imprescritíveis, impenhoráveis,
vitalícios, necessários e oponíveis “erga omnes” (Os Direitos da Personalidade. 8ª
edição. São Paulo: Ed. Saraiva, 2015, pág. 43).
O art. 11 do CC/02 estabelece que os direitos da personalidade são
intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação
voluntária.
O Enunciado n. 4 do CJF/STJ, que foi aprovado na I Jornada de Direito
Civil, tem o seguinte teor: o exercício dos direitos da personalidade pode sofrer
limitação voluntária, desde que não seja permanente nem geral.
Por seu turno, o art. 27 da Lei n. 9.610/98 afirma que os direitos morais do
autor são inalienáveis e irrenunciáveis.
Em arremate, a doutrina de ATALÁ CORREIA exemplifica a teoria
com a situação analisada no presente caso, de reivindicação de autoria de obra
artística:

Diante desse cenário, é legítimo perquirir se todas as pretensões que surgem


da violação do direito prescrevem e estão sujeitas aos mesmos prazos. Para
bem exemplificar o problema, tome-se a situação de um autor que teve sua obra

462
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

usurpada, ou seja, que foi reproduzida e republicada por outrem, com atribuição
falsa de autoria. Nessa situação, além de poder pleitear a reparação de danos
materiais e morais, ele pode também pleitear que seja corrigida a falsidade, com
atribuição correta da autoria. Havendo inércia de sua parte, sua pretensão haveria
de se extinguir? Em outras palavras, mantendo-se as obras em público, com falsa
atribuição de autoria, esse ilícito haveria de se perpetuar no tempo?
A situação se passa de modo semelhante àquela que vimos quando tratamos
do direito de propriedade. Domínio sem sequela, propriedade não é. Direito de
autor sem certo poder-exigir, de igual modo, não é direito. Dito de outra maneira, o
autor não perde sua propriedade intelectual pelo não-uso. Os direitos de autor não
se extinguem por usucapião. O autor pode, mesmo após muitos anos da divulgação
de uma obra, exigir que ela passe a ser identificada como sua. (Prescrição – Entre
Passado e Futuro. São Paulo: Ed. Almedina, 2021, págs. 259/260).

Portanto, a autoria da obra pode ser reivindicada a qualquer tempo, se


encontra amparada pelo direito moral do autor, oponível erga omnes e protegida
pelo direito autoral.
Na hipótese dos autos, a pretensão veiculada na inicial de reivindicar a
autoria integral da obra e de ter o seu nome anunciado como sendo o autor
exclusivo da composição musical configuram direitos morais do autor, que
impõem obrigações de fazer ou não fazer oponíveis erga omnes, elencadas no art.
24, I e II da Lei n. 9.610/98.
Como direito potestativo que é, aplica-se em relação a esta vertente do
direito autoral as regras relativas à decadência.
A decadência, segundo JOSÉ FERNANDO SIMÃO é o fenômeno
extintivo de direitos potestativos aos quais se fixou um prazo para seu exercício
(Prescrição e Decadência: Início dos Prazos. São Paulo: Ed. Atlas, 2013, pág.
193).
No entanto, a Lei n. 9.610/98 não prevê prazo decadencial para os direitos
morais do autor, ao contrário, afirma expressamente que o autor da obra pode
reivindicá-los a qualquer momento:

Art. 24. São direitos morais do autor:


I - o de reivindicar, a qualquer tempo, a autoria da obra;

A legislação especial que rege a matéria, portanto, afasta o decurso do


prazo decadencial, razão por que não incidem as regras gerais do Código Civil
na hipótese em exame (art. 178, II, do CC/2002).

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 463


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Em suma, diante do contexto destacado e sopesando que o direito da


personalidade é inato, absoluto, imprescritível, está amparado na Declaração
Universal dos Diretos Humanos, na Constituição pátria e na Lei n. 9.610/98
(art. 27), por serem os direitos morais do autor inerentes aos direitos da
personalidade, não se exaurem pelo não uso ou pelo decurso do tempo, sendo
autorizado ao autor, a qualquer tempo, pretender a execução específica das
obrigações de fazer ou não fazer decorrentes dos direitos elencados no art. 24,
da Lei n. 9.610/98.

(4) Da pretensão indenizatória

A cobrança dos direitos decorrentes da reprodução da obra musical se


insere na pretensão de reparação civil, uma vez que a ausência de pagamento dos
valores referentes aos direitos autorais implica inobservância de um dever legal,
com inegável prejuízo ao titular ou beneficiário.
A essa vertente do direito autoral aplicam-se as regras relativas à prescrição.
Os prazos prescricionais não destroem o direito, que é; não cancelam,
não apagam as pretensões; apenas, encobrindo a ef icácia da pretensão, atendem
à conveniência de que não perdure por demasiado tempo a exigibilidade ou
acionabilidade (PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado – Parte
Geral – tomo VI. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais. 2013, pág. 219).
No tocante aos casos de violação de direitos do autor, nem a Lei n.
9.610/1998, tampouco o CC/2002, possuem previsão expressa quanto ao prazo
prescricional aplicável à espécie.
Na legislação pátria de direito do autor tradicionalmente se atribuiu o
prazo prescricional de cinco anos para as pretensões de cunho patrimonial,
indenizatórias ou creditórias, conforme previsão expressa do art. 178, §10, VII
do CC/1916 e do art. 131 da Lei n. 5.988/1973.
Com o advento da Lei n. 9.610/1998 o art. 111, que previa igualmente o
prazo quinquenal, foi vetado, passando a jurisprudência a entender que o prazo
aplicável era o vintenário, nos termos da regra geral do art. 177 do CC/1916.
Sob a égide do CC/2002 a prescrição geral foi reduzida para o prazo
decenal (art. 205) e, ainda, foi previsto o prazo trienal para a pretensão de
reparação civil (art. 206, § 3º, V).
Apresentam-se, assim, dois dispositivos legais passíveis de aplicação no
caso concreto: (1) o art. 206, § 3º, V, fixa prazo prescricional de três anos para a

464
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

pretensão de reparação civil, e (2) o art. 205, de caráter subsidiário, que fixa prazo
de 10 anos.
A Corte Especial do STJ, no julgamento do EREsp n. 1.281.594/SP,
concluiu que, nas pretensões relacionadas a responsabilidade contratual, aplica-
se a regra geral (art. 205 do CC/2002), que prevê dez anos de prazo prescricional
e, nas demandas que versem sobre responsabilidade extracontratual, aplica-se o
disposto no art. 206, § 3º, V, do mesmo diploma, com prazo prescricional de três
anos.
Confira-se a ementa do aludido julgado:

Civil e Processual Civil. Embargos de divergência no recurso especial. Dissenso


caracterizado. Prazo prescricional incidente sobre a pretensão decorrente da
responsabilidade civil contratual. Inaplicabilidade do art. 206, § 3º, V, do Código
Civil. Subsunção à regra geral do art. 205, do Código Civil, salvo existência de
previsão expressa de prazo diferenciado. Caso concreto que se sujeita ao disposto
no art. 205 do Diploma Civil. Embargos de divergência providos.
[...] III - A unidade lógica do Código Civil permite extrair que a expressão “reparação
civil” empregada pelo seu art. 206, § 3º, V, refere-se unicamente à responsabilidade
civil aquiliana, de modo a não atingir o presente caso, fundado na responsabilidade
civil contratual.
IV - Corrobora com tal conclusão a bipartição existente entre a responsabilidade
civil contratual e extracontratual, advinda da distinção ontológica, estrutural e
funcional entre ambas, que obsta o tratamento isonômico.
V - O caráter secundário assumido pelas perdas e danos advindas do
inadimplemento contratual, impõe seguir a sorte do principal (obrigação
anteriormente assumida). Dessa forma, enquanto não prescrita a pretensão
central alusiva à execução da obrigação contratual, sujeita ao prazo de 10 anos
(caso não exista previsão de prazo diferenciado), não pode estar fulminado pela
prescrição o provimento acessório relativo à responsabilidade civil atrelada ao
descumprimento do pactuado.
VI - Versando o presente caso sobre responsabilidade civil decorrente de possível
descumprimento de contrato de compra e venda e prestação de serviço entre
empresas, está sujeito à prescrição decenal (art. 205, do Código Civil). Embargos de
divergência providos.
(EREsp 1.281.594/SP, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Rel. p/ Acórdão Ministro
Felix Fischer, Corte Especial, j. 15/5/2019, DJe 23/5/2019 – sem destaques no
original)

No mesmo sentido são os seguintes precedentes:

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 465


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Processual Civil. Agravo interno no agravo em recurso especial. Ação


de obrigação de fazer cumulada com reparação por dano material.
Prequestionamento. Ausência. Súmula 211/STJ. Reexame de fatos e provas.
Inadmissibilidade. Consonância entre o acórdão recorrido e a jurisprudência do
STJ. Responsabilidade civil. Prescrição da pretensão. Inadimplemento contratual.
Prazo de dez anos.
[...] 4. A jurisprudência do STJ firmou-se no sentido de ser aplicável o prazo
prescricional decenal (artigo 205 do Código Civil) às pretensões indenizatórias
decorrentes de inadimplemento contratual. Precedentes.
5. O dissídio jurisprudencial deve ser comprovado mediante o cotejo analítico
entre acórdãos que versem sobre situações fáticas idênticas.
6. Agravo interno no agravo em recurso especial não provido.
(AgInt no AgInt no AgInt no AREsp 1.246.079/PR, Rel. Ministra Nancy Andrighi,
Terceira Turma, j. 24/6/2019, DJe 26/6/2019 – sem destaque no original)

Agravo regimental em agravo em recurso especial. Consonância do acórdão


recorrido com o entendimento preconizado por esta Corte. Súmula 83/STJ.
1. De acordo com a jurisprudência desta Corte, incide a prescrição decenal à
hipótese de indenização por violação de direito autoral, assemelhado a um
descumprimento contratual. Precedentes.
2. Agravo regimental não provido.
(AgRg no AREsp 707.210/RJ, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, j.
18/8/2015, DJe 25/8/2015 – sem destaque no original)

Civil e Processo Civil. Direito Autoral. Prescrição. Pretensão de cobrança do


ECAD. Sucessão de leis no tempo.
1.- O art. 131 da Lei n. 5.988/73 revogou o art. 178, § 10, VII, do CC/16, que
fixava prazo prescricional de 05 anos por ofensa a direitos do autor, pois regulou
inteiramente a matéria tratada neste.
2.- Revogada a Lei n. 5.988/73 pela Lei n. 9.610/98, que não dispôs sobre
prazo prescricional e nem determinou a repristinação do 178, § 10, VII, do CC/16,
a matéria passou a ser regulada pelo art. 177 do CC/16, aplicando-se o prazo
prescricional de 20 anos.
3.- O Código Civil de 2002 não trouxe previsão específica quanto ao prazo
prescricional incidente em caso de violação de direitos do autor, sendo de se aplicar
o prazo de 03 anos (artigo 206, § 3º, V) quando tiver havido ilícito extracontratual
ou então o prazo de 10 anos (artigo 205), quando a ofensa ao direito autoral se
assemelhar a um descumprimento contratual, como na hipótese.
4.- Recurso Especial a que se nega provimento.

466
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

(REsp 1.159.317/SP, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, j. 11/3/2014, DJe
18/3/2014 – sem destaques no original)

Na hipótese, o Tribunal goiano, ao analisar o contexto fático dos autos,


concluiu que a relação entabulada entre as partes configurou responsabilidade
civil fundada em suposto descumprimento contratual, razão por que se aplica o
prazo de prescrição decenal:

[...]
No feito em tela, o autor ajuizou a presente ação declaratória c/c nulidade
de negócio jurídico c/c indenização por danos materiais e morais e obrigação
de fazer, sob a alegação de ser o único autor das músicas intituladas “Fora do
Comum” e “Armadura da Paixão”, sendo, portanto, o detentor de 100% (cem por
cento) sobre os direitos autorais dos referidos fonogramas.
Relatou, em suma, que entre os anos de 2010 e 2011, o requerido entrou em
contato com o autor, através de aplicativo da internet, momento em que teriam
formulado o seguinte acordo “o Requerido Gusttavo Lima, em troca da exploração
da canção Fora do Comum e Armadura da Paixão, propõe ao Requerente que
daria parceria a ele em duas (2) músicas de sua autoria (Amor de Poeta e Sol) em
troca da parceria nas duas (2) músicas que o Requerente havia composto, qual
seja, Fora do Comum e Armadura da Paixão.”
Alegou que o pacto não foi cumprido pelo requerido, não tendo este ofertado
a parceria nas 2 (duas) músicas de sua autoria, tendo, ainda, registrado a música
“Fora do Comum” como se fosse de sua coautoria, em 50% (cinquenta por cento).
Asseverou que o requerido enviou, por correio, toda a documentação relativa
ao registro e exploração das músicas, tendo o autor, segundo afirma, por
desconhecer a lei e estar de boa fé, assinado os papéis e devolvido ao requerido.
O requerido, na contestação (evento 26), em relação aos fatos ocorridos,
alegou que o autor entrou em contato diretamente consigo ofertando suas
canções para gravação; recebeu as músicas e fez as adequações devidas, com o
consentimento do autor; a conversa juntada pelo autor não reflete a realidade
do ocorrido; todas as músicas (“fora do comum”, “armadura da paixão” e “amor de
um poeta”, sendo esta última de exclusiva autoria do requerido, sem nenhuma
participação do autor), foram devidamente registradas junto ao ECAD na razão
de 50% para cada um; em 31/01/2011, o autor editou sua cota parte da obra “fora
do comum” junto a Editora Pantanal, outorgando-lhe poderes para negociar seus
direitos sobre a obra com terceiros; como o autor editou justamente o percentual
que lhe competia, qual seja, 50%, não há que se falar que foi surpreendido ou
que houve má-fé por parte do requerido; o autor assinou, à época, documentos
para a gravadora Som Livre, que não fixa fonograma sem a devida autorização do
compositor, concedendo autorização de gravação; os direitos autorais são pagos

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 467


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

a cada uma das partes pelo ECAD através de suas respectivas associações de
defesa de direitos autorais; que “ao contrário do alegado pelo Autor, o Requerido
cumpriu todo o pactuado, não restando nenhuma obrigação”.
[...]
É incontroverso o estabelecimento de acordo, principalmente após a petição
apresentada pelo apelado/requerido, que confessa a realização do negócio jurídico
entre as partes (evento 97), em relação às músicas “Fora do Comum”, “Armadura da
Paixão” e “Amor de um Poeta”, sendo controvertido apenas os limites relativos ao que
restou pactuado.
Ademais, acrescente-se que, embora se possa afirmar que o suposto registro
de obra na condição de coautor, sem a efetiva participação/permissão na sua
elaboração, constitua um ato ilícito, não é possível comparar esse ilícito, dentro do
contexto descrito nos autos, ao ato ilícito tradicionalmente associado aos danos
que dão causa à reparação civil.
Consequentemente, tratando-se de pretensão de cobrança de direitos autorais
derivada de suposto descumprimento contratual, o prazo prescricional aplicável é de
10 (dez) anos, previsto no 205 do Código Civil de 2002.
[...]
Na confluência do exposto, dou provimento ao recurso de apelação, para o
fim de afastar no caso concreto a ocorrência da prescrição e cassar a sentença
vergastada a fim de permitir a dilação probatória, em especial a realização da
audiência de instrução e julgamento, ficando afastada a ocorrência de decadência
suscitada pelo apelado, nos termos da fundamentação.
É o voto. (e-STJ, fls. 438/453)

Desse modo, tendo a Corte local apurado que a demanda diz respeito a
pretensão indenizatória em razão do descumprimento de obrigação contratual,
não é aplicável ao caso o prazo de prescrição trienal previsto no artigo 206, § 3º,
V, do CC/2002.
Observa-se, assim, que o acórdão recorrido está em sintonia com a
jurisprudência firmada nesta Corte, que reconhece a incidência da prescrição
decenal, prevista no art. 205 do CC/2002, na pretensão relacionada a
responsabilidade contratual, como é a hipótese dos autos.
Ainda que assim não fosse, a aplicação ao caso da prescrição trienal
prevista no art. 206, § 3º, V, do CPC/2015 também não atingiria a pretensão
indenizatória autoral, uma vez que os danos patrimoniais se perpetuam no
tempo, configurando lesões continuadas, cujo prazo prescricional deve ser
contado do último ato praticado ou a cada dia em que o direito é violado,
conforme precedente da minha relatoria sobre o tema:

468
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA

Civil. Processual Civil. Agravo regimental no agravo em recurso especial.


Recurso manejado sob a égide do CPC/73. Ação indenizatória. Violação de direito
autoral. Plágio de obra literária. Dano moral e material. Arts. 189 e 206, § 3º, V,
do CC. Prazo prescricional. Violação continuada. Termo inicial. Data da última
exibição da novela. Precedente. Pedido de produção de prova pericial feito por
ambas as partes. Deferimento. Julgamento antecipado da lide. Cerceamento de
defesa configurado. Reforma. Incidência da Súmula n. 7 do STJ.
1. Inaplicabilidade do NCPC neste julgamento ante os termos do Enunciado
Administrativo n. 2 aprovado pelo Plenário do STJ na sessão de 9/3/2016:
Aos recursos interpostos com fundamento no CPC/1973 (relativos a decisões
publicadas até 17 de março de 2016) devem ser exigidos os requisitos de
admissibilidade na forma nele prevista, com as interpretações dadas até então
pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.
2. O prazo prescricional para a propositura de ação indenizatória por ofensa a
direito autoral é de 3 anos. Porém, o termo a quo nasce a cada dia em que o direito
é violado. Assim, se a violação do direito é continuada, de tal forma que os atos se
sucedam em sequência, a prescrição ocorre do último deles.
3. No caso concreto, a alegada lesão ao direito da autora se protraiu no tempo,
de 20/6/2005, data em que apresentado o primeiro capítulo, até 10/3/2006,
quando exibido o último capítulo do folhetim, não se encontrando prescrita a
ação ajuizada aos 9/9/2008).
4. Prevalece nesta Corte o entendimento de que o magistrado, como
destinatário final das provas, pode, com base em seu livre convencimento,
indeferir ou deferir aquelas que considere dispensável ou não à solução da lide,
sendo inviável, em recurso especial, “rever se determinada prova era de fato
necessária, porquanto tal procedimento é vedado pela Súmula 7 do Tribunal.”
(AgRg no AREsp 604.807/PI, Rel. Ministro Sérgio Kukina, Primeira Turma, j.
17/3/2016, DJe 1º/4/2016).
5. O julgamento antecipado da lide, sem oportunizar às partes a produção
de prova anteriormente deferida constitui cerceamento ao direito de defesa.
Precedentes.
6. Agravo regimental não provido.
(AgRg no AREsp 661.692/RJ, Rel. Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, j.
27/6/2017, DJe 4/8/2017 – sem destaque no original)

Em suma, a retribuição pecuniária por ofensa aos direitos patrimoniais do


autor se submete ao prazo decenal, inseridos no contexto da relação contratual
existente entre as partes.
Nessas condições, nego provimento ao recurso especial.

RSTJ, a. 34, (265): 339-470, Janeiro/Março 2022 469


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Deixo de majorar os honorários advocatícios com fundamento no art. 85,


§ 11, do NCPC, porque o acórdão do Tribunal estadual que deu provimento
a apelação do autor, André, afastou a prescrição e cassou a sentença a fim de
permitir a dilação probatória, em especial a realização da audiência de instrução e
julgamento (e-STJ, fl. 452).
É o voto.

470
Quarta Turma
RECURSO ESPECIAL N. 1.237.567-MT (2011/0026377-9)

Relator: Ministro Marco Buzzi


Recorrente: Carlos Roberto Ruvieri de Souza
Advogados: Charles Baccan Júnior - SP196702
Paula Cardoso Pires e outro(s) - DF023668
Charles Baccan Júnior e outro(s) - RO002823A
Recorrido: Jorge Luiz Villas Boas
Advogados: Francisco Anis Faiad - MT003520
Tânia Regina Ignotti Faiad - MT005931
Felipe Cardoso de Souza Higa - MT014500
Murilo Mateus Moraes Lopes - MT012636
Marina Ignotti Faiad - MT016735
Bruno Sampaio Saldanha - MT008764O

EMENTA

Recurso especial (art. 105, inc. III, “a” e “c”, da CF/88). Ação
desconstitutiva (resolução de contrato de arrendamento rural) c/c
reintegração de posse e pedido condenatório (indenização por danos
patrimoniais e extrapatrimoniais). Pleitos julgados parcialmente
procedentes pelas instâncias ordinárias.
Irresignação do réu/arrendante.
Coisa julgada superveniente à interposição do recurso especial.
Resolução do compromisso de compra e venda de fração ideal de imóvel
rural no qual amparado o direito do autor da demanda subjacente a
este apelo nobre. Pressuposto lógico-jurídico para propositura da ação
desconstituído. Reconhecimento da ilegitimidade ativa ad causam.
Hipótese: cinge-se a controvérsia em decidir acerca de pedido
de resolução de contrato de arrendamento rural celebrado com o
antigo usufrutuário do imóvel, ajuizado por aquele que se diz novo
proprietário do aludido bem, considerando-se, ainda, a alegação de
fato novo (coisa julgada superveniente).
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

1. Ausente qualquer conteúdo decisório no ato impugnado, revela-se


manifestamente inadmissível a interposição de agravo interno em face de
despacho, a impor o não conhecimento do reclamo manejado às fls. 1.901-
1.937
2. O incidente de falsidade não se destina a eventual reconhecimento de
invalidade de sentença, com trânsito em julgado (fato novo a ser considerado
no presente julgamento), na medida em que estabelecidas, no ordenamento
jurídico pátrio, vias próprias e adequadas para desconstituição ou invalidação de
decisão judicial com trânsito em julgado, quais sejam a ação rescisória e a querela
nullitatis.
3. A suspensão deste feito por eventual prejudicialidade externa não é
admissível, pois superado em muito o prazo de um ano previsto no § 4º do artigo
313 do NCPC (correspondente ao art. 265, § 5º, do CPC/73), haja vista ter sido
este recurso especial distribuído a esta Corte Superior em 24 de fevereiro de
2011, não podendo aguardar indefinidamente o desfecho de outras demandas,
notadamente porque, in casu, o processo encontra-se hábil a julgamento, a
considerar a situação jurídica vigente.
4. Reconhecimento, em sentença transitada em julgado, proferida em outra
ação judicial, da circunstância de que o autor da presente lide de rescisão
de contrato e reintegração de posse jamais, em tempo algum, fora titular
(proprietário) do bem imóvel em disputa na demanda ora em julgamento, fato
que, agora demonstrado, enseja a constatação superveniente, neste grau de
jurisdição, da intransponível ilegitimidade ativa ad causam, conforme determina
o artigo 493 do atual Código de Processo Civil (art. 462 do CPC/73). Ainda assim,
a matéria (ausência de legitimidade ativa) foi deduzida nas instâncias ordinárias e
prequestionada.
4.1 Conhecido o recurso especial, esta Corte detém cognição ampla para o
julgamento da lide, podendo, ao aplicar o direito à espécie, levar em consideração
fatos novos, extintivos do direito de uma das partes, ocorridos posteriormente ao
ajuizamento da ação, nos termos do art. 462 do CPC/73 (art. 493 do CPC/15). (cf.
AgInt nos EDcl no REsp 1.327.956/SP, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino,
Terceira Turma, julgado em 27/06/2017, DJe 03/08/2017)
4.2 Havendo posterior decisão judicial, com trânsito em julgado, reconhecendo
a resolução do compromisso de compra e venda de imóvel rural - título no qual se
fundava o alegado direito do autor -, evidente sua ilegitimidade ativa para ajuizar
demanda de resolução de contrato de arrendamento rural, relativo ao bem em
questão.
5. Recurso especial provido, a fim declarar a ilegitimidade ativa, e, em
consequência, deixar de apreciar o mérito, nos termos do artigo 485, inciso VI, do
Código de Processo Civil.

474
Jurisprudência da QUARTA TURMA

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,


acordam os Ministros da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, por
unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr.
Ministro Relator. Os Srs. Ministros Luis Felipe Salomão (Presidente), Raul
Araújo, Maria Isabel Gallotti e Antonio Carlos Ferreira votaram com o Sr.
Ministro Relator.
Brasília (DF), 22 de março de 2022 (data do julgamento).
Ministro Marco Buzzi, Relator

DJe 1º.4.2022

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Marco Buzzi: Cuida-se de recurso especial interposto por


Carlos Roberto Ruvieri de Souza, com fulcro no artigo 105, inciso III, alíneas a
e c, da Constituição da República, contra acórdão proferido pelo Tribunal de
Justiça do Estado de Mato Grosso.
Da análise dos autos, verifica-se que o conflito subjacente ao presente
reclamo refere-se a imóvel originariamente objeto de usufruto vitalício,
instituído em 1996 em favor de Francisco José de Souza, o qual era pai tanto de
Sandra A. R. de Souza, cessionária de fração ideal do bem em questão, quanto
do ora recorrente (Carlos Roberto Ruvieri de Souza).
Em 17 de dezembro de 1997, Jorge Luiz Villas Boas, ora recorrido, celebrou
compromisso de compra e venda com Sandra Aparecida Ruvieri de Souza, sua
companheira à época e irmã do ora recorrente, para aquisição de fração ideal que
a ela pertencia (50% - cinquenta por cento) do aludido imóvel rural, com área
total de 978,4 hectares (matrículas n. 3.030, 5.587, 6.853 e 8.275), denominado
Fazenda da Prata, localizado às margens da Rodovia BR-070, no Município de
Poconé, no Estado do Mato Grosso.
Consoante se depreende da exordial, em 5 de junho de 2003, o usufrutuário
Francisco J. Souza firmou contrato de arrendamento rural da totalidade da
Fazenda Prata com um de seus filhos, Carlos R. R. de Souza, ora recorrente,
ao custo de R$ 20.000,00 (vinte mil reais) anuais, para exploração da pecuária
extensiva.

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 475


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Em 17 de janeiro de 2004, Francisco José de Souza veio a falecer, de modo


que o usufruto fora extinto. No entender de Jorge Luiz Villas Boas, ora recorrido,
tendo adquirido 50% (cinquenta por cento) da Fazenda Prata em 1997, com o
levantamento do usufruto em 2004, sucedera o usufrutuário falecido na posição
de arrendante no contrato celebrado em 2003.
Assim, diante da alegada ausência de pagamento da parcela do
arrendamento, vencida no início de 2004, por parte de Carlos Roberto Ruvieri de
Souza, o ora recorrido procedeu ao ajuizamento da presente ação de resolução
de contrato de arrendamento rural, cumulada com pedido de reintegração de
posse e condenação à compensação dos danos morais e à indenização pelos
prejuízos materiais.
Em contestação (fls. 72-88, e-STJ), Carlos Roberto Ruvieri de Souza, em
suma, aduziu: i) a ilegitimidade ativa do proponente, porquanto esse não seria
legítimo proprietário de 50% (cinquenta por cento) das terras, que nunca
teriam deixado de ser de titularidade de sua irmã e ex-companheira do autor -
Sandra Aparecida Ruvieri de Souza -, pois o compromisso de compra e venda
para aquisição da gleba consistiu em mera simulação; ii) a inadequação da via
eleita, uma vez que cabível apenas a ação de despejo, conforme previsto no
Decreto 59.566/1966; iii) não haver descumprimento do contrato, porquanto
as prestações estariam sendo pagas à legítima proprietária do bem (Sandra);
iv) inexistência de esbulho possessório; e v) não ter havido comprovação da
existência de danos materiais e morais.
Em 11 de maio de 2009, o magistrado singular da Vara Única da
Comarca de Poconé/MT, em sede de julgamento antecipado, após afastar as
questões preliminares, acolheu parte dos pedidos, para “declarar rescindido o
instrumento particular de arrendamento rural para exploração pecuária firmado
entre Francisco José de Souza e Carlos Roberto Ruvieri de Souza, determinando
a reintegração de posse do autor Jorge Villas Boas em 50% (cinquenta por cento)
do imóvel, condenando, ainda, o requerido Carlos Roberto Ruvieri de Souza ao
pagamento de danos materiais, consistente em 50% (cinquenta por cento) do prêmio
anual do arrendamento, correspondente a R$ 10.000,00 (dez mil reais) anuais, a
partir do período de 2004, pelo tempo em que o requerido permaneceu no imóvel, cujo
valor apurado em liquidação de sentença, indeferindo, por outro lado, o pedido de
condenação do réu em pagamento de danos morais, com fundamento no art. 269, I, do
Código de Processo Civil” (fl. 243, e-STJ).

476
Jurisprudência da QUARTA TURMA

Interposto recurso de apelação pelo réu, a Sexta Câmara Cível do TJMT,


na assentada de 18 de agosto de 2010, negou provimento ao reclamo e manteve
a sentença, conforme denota a ementa transcrita abaixo (fls. 389, e-STJ):

Apelação. Rescisão de contrato de arrendamento rural c/c com reintegração de


posse e indenização por perdas e danos materiais e morais e tutela antecipada.
Preliminar de impropriedade da ação afastada. Cumulação do pedido de rescisão
com o de reintegração. Possibilidade. Inadimplemento. Indenização devida.
Precedentes do STJ. Inovação recursal. Impossibilidade de pronunciamento sob
pena de ofensa ao duplo grau de jurisdição. Recurso desprovido.
Admite-se a cumulação da ação de rescisão contratual com o pedido de
reintegração de posse. A única exigência é que haja a prévia resolução do
contrato.
Se na ação de rescisão de contrato de arrendamento rural cumulada com
reintegração de posse, restou demonstrado que o autor é o proprietário do
imóvel objeto da lide, possível e legítima a sua pretensão de rescisão do pacto em
razão da inadimplência do arrendatário.
O inadimplemento gera a obrigação do arrendatário inadimplente de arcar
com o pagamento das indenizações devidas em favor do arrendante. Precedentes
do STJ (3ª Turma).
Em atenção ao princípio do duplo grau de jurisdição o Tribunal deixa de se
pronunciar sobre matéria arguida apenas na seara recursal.

Opostos embargos de declaração, esses foram rejeitados (fls. 420-428,


e-STJ).
Irresignado, Carlos Roberto Ruvieri de Souza interpôs recurso especial (fls.
450-459, e-STJ), em que apontou a existência de violação ao artigo 108 do
Código Civil e 32 do Decreto 59.566/1966, além de divergência jurisprudencial.
Sustentou, em síntese, a ilegitimidade do recorrido para figurar no pólo
ativo da demanda. Defendeu, outrossim, a inadequação da via eleita, uma
vez que cabível seria a ação de despejo e não a de reintegração de posse,
conforme previsto no Decreto n. 59.566/1966. Aduziu, ainda, ser necessária
escritura pública para a validade da transferência da propriedade de parte da
Fazenda Prata, inexistente na hipótese. Ressalvou que, apesar da matéria ter sido
articulada apenas nas razões da apelação - ofensa ao artigo 108 do Código Civil
-, o colegiado estadual deveria ter apreciado o tema por se tratar de matéria
de ordem pública, devendo ser conhecida até mesmo de ofício, em qualquer
instância ou grau de jurisdição.

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 477


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Não foram apresentadas contrarrazões (fl. 477, e-STJ).


Em juízo provisório de admissibilidade, admitiu-se o processamento do
recurso, ascendendo os autos a esta Corte Superior, em 24 de fevereiro de 2011.
Às fls. 495/516, e-STJ, Carlos Roberto Ruvieri de Souza, ora recorrente,
informou a ocorrência de fato superveniente relevante, consubstanciado no
trânsito em julgado, em 18 de abril de 2011, da sentença proferida em 9 de março
de 2011, no bojo de Ação de Rescisão Contratual n. 0054917-41.2010.8.26.0576,
que tramitou perante a 4ª Vara Cível da Comarca de São José do Rio Preto/SP,
a qual resolvera o compromisso de compra e venda da Fazenda Prata, celebrado
em 17 de dezembro de 1997 entre Sandra Aparecida Ruvieri de Souza e Jorge
Luiz Villas Boas, diante do inadimplemento. Nesses termos, o ora recorrente
concluiu pela perda de objeto, falta de interesse de agir e ilegitimidade ativa ad
causam do ora recorrido, porquanto não mais subsiste o negócio jurídico que
dava sustentação a sua posição de proprietário/arrendante.
A partir desse fato, as partes, sucessivamente, fizeram juntar aos autos
inúmeras petições, em que veiculada a ocorrência de graves eventos, com
acusações mútuas.
Jorge Luiz Villas Boas, ora recorrido, às fls. 520-547, 550-576, 639-646,
654-702, 846-847, 848-1.073, 1.091-1.134 e 1.192-1.204 defende que a
sentença juntada pelo recorrente é inválida, não produzindo nenhum efeito,
porquanto proferida: i) por juízo absolutamente incompetente para processar e
julgar a causa, nos termos do art. 95 do CPC/73; ii) em afronta à coisa julgada
decorrente da Ação de Rescisão Contratual n. 0138411-65.2008.8.11.0000,
demanda que tramitara perante o Poder Judiciário do Estado de Mato Grosso,
discutindo a validade do compromisso de compra e venda da Fazenda Prata e
que teria sido julgada improcedente; e iii) no bojo de uma fraude perpetrada
por Sandra Aparecida Ruvieri de Souza, com a conivência do Juiz de Direito
prolator da sentença, mediante pagamento de Carlos Roberto Ruvieri de Souza,
ora recorrente.
Consoante relatado pelo autor, a alegada fraude processual foi realizada da
seguinte forma: i) o ora recorrente ajuizara a Ação de Consignação de Pagamento
0033370-42.2010.8.26.0576 perante a Comarca de São José do Rio Preto/SP,
distribuída à 4ª Vara Cível, onde sua irmã Sandra A. R. de Souza era assessora
do Juiz de Direito titular da unidade, a fim de afastar a mora quanto ao contrato
de arrendamento rural da Fazenda Prata, objeto de discussão nestes autos; ii)
por sua vez, Sandra A. R. de Souza propusera a Ação de Rescisão Contratual

478
Jurisprudência da QUARTA TURMA

0054917-41.2010.8.26.0576, distribuída ao mesmo juízo por dependência à


ação consignatória, pleiteando a resolução do compromisso de compra e venda
do imóvel rural, celebrado em 1997, com Jorge Luiz Villas Boas, ora recorrido;
iii) ato contínuo, a própria Sandra A. R. de Souza teria elaborado as decisões
das respectivas ações, com conivência do Juiz de Direito, para determinar a
rescisão do compromisso de compra e venda por falta de pagamento, de modo
que ela, Sandra, voltasse a ser proprietária do imóvel; iv) finalmente, após o
trânsito em julgado da sentença de rescisão do compromisso de compra e venda,
o ora recorrente fez juntar nestes autos a cópia da decisão judicial, postulando a
decretação de extinção do feito, diante da ilegitimidade ativa.
Com vistas a corroborar suas alegações, o ora recorrido juntou reportagens
noticiando que Sandra A. R. de Souza teria participado de outros esquemas
fraudulentos em outras demandas, nas quais eram falsificadas assinaturas de
servidores e juízes, razão pela qual foi demitida a bem do serviço público e
condenada a quase 10 (dez) anos de reclusão.
Informou, ademais, que, diante desses fatos, propôs a Ação Declaratória
de Inexistência de Sentença n. 0000535-51.2013.8.11.0046 - querela nullitatis
insanabilis - perante a 1ª Vara Cível da Comarca de Comodoro/MT, para ter
por reconhecida a inexistência da sentença, obtendo a antecipação de tutela para
suspensão de seus efeitos.
Nesses termos, Jorge Luiz Villas Boas requereu: i) a instauração de incidente
de falsidade, nos termos do art. 390 do CPC/73, para apurar se a sentença
transitada em julgado juntada aos autos foi realmente proferida pelo Juiz
de Direito Paulo Sérgio Romero Vicente Rodrigues, à época titular da 4ª
Vara Cível da Comarca de São José do Rio Preto/SP; ii) o reconhecimento
da inexistência jurídica de referida sentença, de modo que não interfira no
julgamento deste recurso especial; e iii) o desprovimento do recurso especial
e consequente manutenção da procedência do pedido veiculado na demanda
subjacente ao recurso especial.
Pugnou, ainda, para que fosse enviado ofício ao Ministério Público
competente para adoção de providências cabíveis à apuração e responsabilização
criminal de Sandra A. R. de Souza e Carlos R. R. de Souza pela fraude processual
praticada nestes autos, bem assim à Ordem dos Advogados do Brasil para
apuração de infração disciplinar por parte de Charles Baccan Júnior, inscrito no
Conselho Seccional de Rondônia sob o n. 2.823-A, em face da juntada autos de
documento sabidamente falso.

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 479


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Por sua vez, Carlos R. R. de Souza às fls. 582-624, 627-636, 651, 710-843,
1.080-1.088 e 1.139-1.188 informou que: i) a decisão de tutela provisória
proferida pelo juízo da 1ª Vara Cível da Comarca de Comodoro/MT, nos autos
da Ação Declaratória de Inexistência de Sentença 0000535-51.2013.8.11.0046
- querela nullitatis insanabilis - foi reformada pela Sexta Câmara Cível do
TJMT ao julgar o Agravo de Instrumento 0088990-33.2013.8.11.0000, de modo
que a sentença que acolhera o pedido de resolução de contrato permanece
válida para todos os fins de direito; ii) o inquérito policial instaurado em
face das representações movidas pelo ora recorrido em detrimento de Juiz
de Direito Paulo Sérgio Romero Vicente Rodrigues foi arquivado, diante da
inexistência de indícios de sua participação no esquema de fraudes descoberto
na Comarca de São José do Rio Preto; iii) o próprio Juiz de Direito Paulo
Sérgio R. V. Rodrigues reconhece a sentença proferida nos autos da Ação de
Rescisão Contratual 0054917-41.2010.8.26.0576 como sendo de sua autoria
(fls. 1.146/1.188), inexistindo qualquer mácula ou ilegalidade; e iv) o juiz
Paulo Sérgio R. V. Rodrigues representou criminalmente Jorge Luiz Villas Boas,
em razão das alegações de que o julgamento da Ação de Rescisão Contratual
0054917-41.2010.8.26.0576 teria sido feito mediante fraude.
Reiterou, assim, seu interesse no prosseguimento do feito, defendendo a
total higidez da sentença juntada aos autos, de maneira que deverá ser dado
provimento ao seu recurso especial diante da perda de objeto da demanda, falta
de interesse de agir e ilegitimidade ativa ad causam do ora recorrido, porquanto
não mais subsiste o título que dava sustentação a sua posição de proprietário.
O recurso especial foi incluído, pela primeira vez, na pauta de julgamentos
desta Quarta Turma de 8 de março de 2016; contudo, minutos antes do
início da sessão, foi protocolada petição eletrônica (fls. 1.207-1.208, e-STJ)
de desistência do reclamo, em nome de Carlos R. R. de Souza, assinada
eletronicamente por seu advogado Charles Baccan Júnior (com número de
certificado 1196291811415876103).
Diante desse pedido, o feito foi retirado de pauta.
Às fls. 1.267-1.313, e-STJ, o advogado Charles Baccan Júnior aduziu não
ter formulado qualquer pedido de desistência do recurso, asseverando a falsidade
da petição de fls. 1.207/1.208, e-STJ, porquanto o certificado eletrônico com
número de série 1196291814151876103 não seria de sua titularidade. Postulou,
ainda, pela desconsideração do aludido petitório, bem assim pelo regular
julgamento do feito.
Em face da alegação do causídico, determinou-se que os autos fossem
encaminhados à Secretaria de Tecnologia da Informação e Comunicação (STI)
480
Jurisprudência da QUARTA TURMA

desta Corte Superior, órgão responsável pela gestão do processo eletrônico no


âmbito do Tribunal, para que esclarecesse o ocorrido (fl. 1.315, e-STJ).
Após instrução sumária do incidente, determinou-se a nova inclusão do
feito em pauta para julgamento perante o órgão fracionário - Quarta Turma;
contudo, foi apresentada nos autos exceção de suspeição (fls. 1.437-1.487,
e-STJ), em razão do que se proferiu a decisão de fls. 1.502-1.510, e-STJ, na qual:
i) não se acolheu a exceção de suspeição; ii) determinou-se a imediata suspensão
do recurso especial (REsp n. 1.237.567/MT), inclusive com a retirada do feito
da pauta da sessão do dia 14/06/2016; iii) ordenou-se a autuação em apartado
do incidente, com a livre e imediata distribuição.
À fl. 1.518, e-STJ, a Coordenadoria da Segunda Seção deste Superior
Tribunal de Justiça certificou que a Exceção de Suspeição n. 167/DF, distribuída
no âmbito da Segunda Seção ao Exmo. Sr. Ministro Luis Felipe Salomão, fora
rejeitada liminarmente por decisão publicada em 25 de agosto de 2016, tendo
transitado em julgado em 16 de setembro de 2016.
O recorrido Jorge Luiz Villas Boas apresentou novas manifestações às fls.
1.521-1.544, e-STJ, em que reiterou a necessidade de ser desconsiderada a
sentença proferida pelo juízo de São José do Rio Preto/SP.
Dando-se prosseguimento ao feito, foi submetida ao Colegiado da
Quarta Turma, na sessão do dia 08/11/2016, questão de ordem - a fim de
deliberar acerca do pedido de desistência indigitado falso -, bem assim acerca do
requerimento de concessão de tutela provisória.
Na oportunidade, acolheu-se a questão de ordem, para desconsiderar a
desistência, tendo em vista a existência de fortes elementos a denotar que o
referido petitório decorrera de fraude grosseira, bem assim se deferiu o almejado
efeito suspensivo ao apelo extremo, de modo a obstar a reintegração de posse.
O acórdão em comento está assim ementado:

Tutela provisória incidental. Pedido de atribuição de efeito suspensivo


a recurso especial já admitido. Ação de resolução de contrato c/c pedido de
reintegração de posse e condenação em perdas e danos. Instâncias ordinárias
que julgaram parcialmente procedentes os pedidos. Instauração do cumprimento
provisório. Fumus boni iuris e periculum in mora. Concessão do efeito almejado.
Hipótese: após acolhida a questão de ordem e desconsiderado o pedido de
desistência, analisa-se a pretensão de atribuição de efeito suspensivo a recurso
especial já admitido, a fim de suspender os efeitos do acórdão que mantivera a
parcial procedência do pedido de resolução de contrato de arrendamento rural,
com a determinação da reintegração do autor na posse de 50% (cinquenta por
cento) do imóvel.

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 481


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

1. À concessão do efeito suspensivo aos recursos extraordinários, faz-se


necessária a presença concomitante dos requisitos do fumus boni iuris e periculum
in mora: o primeiro relativo à plausibilidade, aferida em juízo sumário, da
pretensão recursal veiculada no apelo extremo (sua probabilidade de êxito) e
o segundo consubstanciado no risco de dano irreparável que, em uma análise
objetiva, revele-se concreto e real.
2. In casu, estão satisfeitos os aludidos pressupostos. 2.1 No que concerne ao
fumus boni iuris, depreende-se a relevância do fato novo trazido pelo recorrente,
consistente na existência de posterior decisão judicial, com trânsito em julgado,
reconhecendo a rescisão do compromisso de compra e venda de imóvel rural,
título no qual se embasa/funda a presente demanda. 2.2 Quanto ao periculum
in mora, infere-se presente diante da existência de cumprimento provisório de
sentença, com a determinação de expedição de mandado de reintegração de
posse.
3. Tutela cautelar deferida. (fls. 1.692-1.693, e-STJ)

Opostos embargos de declaração por Jorge Luiz Villas Boas (fls. 1.700-
1.725, e-STJ), esses foram rejeitados (fls. 1.831-1.843, e-STJ).
À fl. 1.847, e-STJ, em despacho, determinou-se a expedição de ofício ao
juízo da 1ª Vara Cível e Criminal da Comarca de Comodoro/MT, a fim de
obter dados acerca do andamento processual da querela nullitatis, ajuizada para
declarar a inexistência da sentença proferida pelo juízo da 4ª Vara Cível da
Comarca de São José do Rio Preto/SP - juntada por Carlos Roberto Ruvieri de
Souza, às fls. 495-516, e-STJ (alegado fato novo).
Em resposta (fls. 1.853-1.856, e-STJ; 27.06.2017), informou-se que, no
bojo da aludida demanda, fora apresentada exceção de incompetência, a qual foi
acolhida, determinando-se a remessa dos autos para a Comarca de São José do
Rio Preto/SP, ao juízo em que prolatada a sentença cuja nulidade se pretende
declarar.
Em seguida, considerando o teor da citada resposta, determinou-se (fl.
1.858, e-STJ) à Coordenadoria da Quarta Turma que expedisse ofício ao juízo
da 4ª Vara Cível da Comarca de São José do Rio Preto/SP, de modo a ter
notícias sobre o andamento processual da querela nullitatis em comento.
Em resposta (fl. 1.865, e-STJ), destacou-se que o processo n. 535-
51.2013.811.0046, oriundo da 1ª Vara da comarca de Comodoro/MT, foi
recebido naquele juízo em 06 de novembro de 2017, sendo determinada sua
distribuição em 07 de novembro de 2017, encontrando-se em fase de autuação
e conclusão.

482
Jurisprudência da QUARTA TURMA

Em despacho (fl. 1.869, e-STJ), ordenou-se a intimação das partes para


manifestação acerca da aludida resposta, no prazo de 10 (dez) dias.
Às fl. 1.872-1.877, e-STJ, sobreveio novo ofício, em que o magistrado
titular da 4ª Vara Cível da Comarca de São José do Rio Preto informou, “em
complemento ao ofício anterior de 10/11/2017, [...], que foi proferida a decisão cuja
cópia segue em frente” (com o histórico da demanda), em que se declarou suspeito
por questão de foro íntimo.
Às fls. 1.880-1.893, e-STJ, o recorrente Carlos R. R. de Souza manifestou-
se quanto aos dois ofícios, requerendo o julgamento do recurso especial.
Em despacho (fl. 1.895, e-STJ), afirmou-se que, após a publicação do
expediente de fl. 1.869, e-STJ, sobreveio novo ofício da 4ª Vara Cível da
Comarca de São José do Rio Preto/SP, com informações adicionais acerca do
andamento da querela nullitatis, tendo havido manifestação espontânea apenas
da parte recorrente (fls. 1.880-1.893, e-STJ); assim, ante o fato de a intimação
de fl. 1.870, e-STJ, ter se referido apenas ao primeiro ofício (fls. 1.865-1.867,
e-STJ), determinou-se a intimação da parte recorrida a fim de, no prazo de 10
(dez dias), querendo, manifestar-se acerca do novo ofício, juntado às fls. 1.872-
1.877, e-STJ.
Às fls. 1.901-1.937, e-STJ, o recorrido Jorge Luiz Villas Boas interpôs
agravo interno em face do despacho de fl. 1.895, e-STJ, em cujas razões
asseverou que, em havendo duas coisas julgadas sobre o mesmo objeto, deve
prevalecer a primeira. Pugnou, ao final, pelo não conhecimento do recurso
especial, determinando-se “a extração e remoção das informações prestadas, pois
advieram de um processo (um segundo) tentando sobrepor o primeiro, contrariando a
jurisprudência desta Corte”
Impugnação às fls. 1.940-1.942, e-STJ.
Em novo despacho (fls. 1.945, e-STJ), determinou-se a expedição de mais
um ofício ao juízo da 3ª Vara Cível da Comarca de São José do Rio Preto/SP,
a fim de obter informações sobre o andamento processual da querela nullitatis.
Resposta à missiva às fls. 1.948-1.956, e-STJ, em que informada a prolação
de sentença nos autos de n. “0030756-20.2017.8.26.0576, julgando extinta a ação
proposta por Jorge Luiz Villas Boas contra Sandra Aparecida Ruvieri de Souza, sem
resolução do mérito, com fundamento no artigo 485, inciso VI (interesse processual), do
Código de Processo Civil”.
Determinada a intimação das partes para manifestação (fl. 1.958, e-STJ), a
qual foi cumprida, conforme certificado à fl. 1.971, e-STJ, apenas o recorrente se

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 483


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manifestou, às fls. 1.964-1.967, e-STJ, em que reiterou o pedido de provimento


do recurso especial, a fim de julgar improcedente o pedido veiculado na demanda
ou, subsidiariamente, a declaração da perda superveniente de objeto da ação.
À fl. 1.975, deliberou-se por oficiar à Corte de origem para obter dados
quanto ao andamento atualizado da ação rescisória mencionada pela parte
recorrente, o que foi reiterado à fl. 1.989, e-STJ.
Informações prestadas pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo às
fls. 1.994-2.028, e-STJ.
Manifestação da parte recorrente às fls. 2.029-2.038, e-STJ, em que pugna
“sejam interpretadas as informações prestadas como que transitado em julgado o
indeferimento da justiça gratuita da Ação Rescisória 0242473-03.2012.8.26.0000
e indeferida a petição inicial, com o trânsito em julgado em 17/08/2016, para fim de
dar o regular seguimento ao presente feito”.
Após ser instada (fl. 2.040, e-STJ), a parte recorrida discorreu sobre o fato
não ter sido apreciado o mérito da ação rescisória, reiterando o pleito de que seja
negado provimento ao recurso especial (fs. 2.046-2.049, e-STJ).
É o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Marco Buzzi (Relator): O recurso especial merece


conhecimento e, em aplicação do direito à espécie, declara-se a ilegitimidade
ativa superveniente de Jorge Luiz Villas Boas para o ajuizamento/prosseguimento
da demanda subjacente ao presente recurso especial, a obstar a análise de mérito.

1. Agravo interno interposto às fls. 1901-1937, e-STJ, por Jorge Luiz Villas
Boas

Preliminarmente, não se conhece do agravo interno interposto às fls.


1.901-1.937, e-STJ, por Jorge Luiz Villas Boas, porquanto manejado contra
despacho de mero expediente, no qual se determinou sua a intimação para
manifestação em relação ao ofício acostado aos autos às fls. 1.872-1.877, e-STJ,
o qual dá ciência da decisão dada na querela nullitatis, na qual o Juiz declarou-se
suspeito.
Ausente qualquer conteúdo decisório no ato impugnado, revela-se
manifestamente inadmissível o aludido recurso.

484
Jurisprudência da QUARTA TURMA

2. Recurso especial interposto por Carlos Roberto Ruvieri de Souza (fls. 450-
459, e-STJ)

No que se refere à controvérsia versada no apelo extremo, necessário repisar


que a ação subjacente ao presente recurso especial está fundamentada em
compromisso de compra e venda firmado entre o autor e sua companheira
na época, Sandra Aparecida Ruvieri de Souza, em 17 de dezembro de 1997,
relativamente a 50% (cinquenta por cento) de um imóvel rural com área total
de 978,4 hectares, denominado de Fazenda Prata, localizado às margens da
Rodovia BR-070, no Município de Poconé, no Estado do Mato Grosso.
No entender do autor, quando do falecimento do arrendante/usufrutuário
- Francisco José de Souza -, houve sua sucessão na posição de arrendante,
porquanto detentor da fração ideal de 50% (cinquenta por cento) da Fazenda
Prata, em razão do compromisso de compra e venda celebrado em 1997 com a
sua ex-companheira, também filha e sucessora de Francisco José.
Em virtude de alegado inadimplemento de parcela do arrendamento,
vencida no início de 2004, que seria devida pelo ora recorrente (Carlos),
argumentou o demandante não ter alternativa senão o ajuizamento da presente
ação de resolução de contrato de arrendamento rural, cumulada com reintegração
de posse e indenização por danos materiais e morais, a fim de receber a parcela
em atraso, bem assim resolver o contrato e ser reintegrado na posse da fazenda.
Carlos Roberto Ruvieri de Souza, ora recorrente, aduziu no recurso especial,
entre outras questões, a ilegitimidade de Jorge Luiz Villas Boas para ajuizar esta
demanda, porquanto esse não seria proprietário de 50% da Fazenda Prata, fração
do imóvel que, a rigor, pertence a sua irmã e ex-companheira do autor - Sandra
Aparecida Ruvieri de Souza - vez que o compromisso de compra e venda para
aquisição da fazenda não teria validade, pois se trataria de negócio simulado.
A preliminar em questão foi afastada pelas instâncias ordinárias, tendo a
Corte de origem adotado os seguintes fundamentos:

[...] não há dúvidas de que a Sra. Sandra Aparecida Ruvieri de Souza celebrou
contrato particular de compra e venda da parte que lhe cabia no imóvel objeto
desta lide, com o Sr. Jorge Luiz Villas Boas, autor e ora apelado, como se pode ver
do item número 2 do resumo supra.
Registra-se que Sandra Aparecida discutiu, mediante propositura de ação
declaratória de nulidade de negócio jurídico, o contrato que celebrou com o
autor/apelado, Jorge Luiz, todavia, não obteve sucesso, porquanto referida ação
foi julgada extinta, sem apreciação do mérito.

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 485


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A autora da ação declaratória, Sra. Sandra Aparecida, ainda não obteve sucesso
na apelação, recurso especial e nem no agravo de instrumento que interpôs.
A apelação (n. 63.194/07) foi desprovida por este Tribunal.
O Recurso Especial (57.654/2009) teve negada a subida para o STJ e, o agravo
de instrumento (87.518/2009), cujo objetivo era fazer subir o Recurso Especial,
teve negado o seguimento pelo Superior Tribunal de Justiça.
Dessa forma, o contrato celebrado entre Sandra Aparecida e o autor/apelado,
Jorge Luiz Villas Boas, está em plena validade, fato que afasta inclusive a alegação
do recorrente, de ilegitimidade ativa de Jorge Luiz para propor a ação de rescisão
de contrato de arrendamento rural c/c reintegração de posse. (fl. 396, e-STJ).

Contudo, às fls. 495-516, e-STJ, ocasião em que o recurso especial já havia


sido distribuído a esta Corte Superior, o recorrente informou a ocorrência de
fato superveniente relevante, consubstanciado no trânsito em julgado, em 18 de
abril de 2011, da sentença proferida em 9 de março de 2011, na Ação de Rescisão
Contratual 0054917-41.2010.8.26.0576, que tramitara perante a 4ª Vara Cível
da Comarca de São José do Rio Preto/SP, em que se declarou a resolução
do compromisso de compra e venda da Fazenda Prata, celebrado em 17 de
dezembro de 1997 entre Sandra Aparecida Ruvieri de Souza e Jorge Luiz Villas
Boas, por falta de pagamento (inadimplemento contratual).
Instado a se manifestar, o autor/recorrido defende que a sentença juntada
pelo recorrente é inválida, não produzindo nenhum efeito, porquanto fora
proferida: i) por juízo absolutamente incompetente para processar e julgar
a causa, nos termos do art. 95 do CPC/73; ii) em afronta à coisa julgada
decorrente da Ação de Rescisão Contratual 0138411-65.2008.8.11.0000, demanda
que tramitou perante o Poder Judiciário do Estado de Mato Grosso, discutindo
a validade do compromisso de compra e venda da Fazenda Prata e que teria
sido julgada improcedente; e iii) no bojo de uma fraude perpetrada por Sandra
Aparecida Ruvieri de Souza, com a conivência do Juiz de Direito titular da
unidade à época, mediante pagamento de Carlos Roberto Ruvieri de Souza, ora
recorrente.
Não se olvida o teor das gravíssimas alegações articuladas por Jorge Luiz
Villas Boas com o intuito de desconstituir a sentença, contudo, af igura-se
inadequada a sua discussão nestes autos, sobretudo em sede de recurso especial.
Efetivamente, referidas matérias devem ser aduzidas e analisadas na via própria
para desconstituição de decisão judicial transitada em julgado.
A propósito, menciona-se que o autor/recorrido, em 5 de novembro de
2012, ajuizou a Ação Rescisória 0242473.03.2012.8.26.0000 em face de Sandra

486
Jurisprudência da QUARTA TURMA

A. R. de Souza, perante o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, com o


intuito de desconstituir a sentença citada. Verifica-se que o pedido de concessão
de gratuidade de justiça formulado na petição inicial dessa ação fora indeferido
pela Terceira Câmara de Direito Privado da Corte paulista, que determinou o
recolhimento do décuplo das custas processuais inicialmente devidas, bem assim
o depósito de 5% do valor da causa, nos moldes do artigo 488, II, do CPC/73,
sob pena de indeferimento da inicial.
Irresignado, o recorrido interpôs recurso especial, inadmitido na origem.
Apresentado agravo, foi autuado neste Tribunal Superior como AREsp 652.135/
SP e distribuído ao Ministro Ricardo Villas Boas Cueva, que não conheceu
do reclamo com base no art. 544, § 4º, I, do CPC/73. Opostos embargos
de declaração, não foram conhecidos por falta de procuração ao advogado
subscritor da petição, de maneira que interposto agravo regimental, o qual foi
desprovido, tendo o respectivo acórdão transitado em julgado, com a baixa dos
autos.
Consoante informado pelo Tribunal Paulista às fls. 1.994-2.028, e-STJ, em
dezembro de 2021, “o mérito da Ação Rescisória ainda não foi julgado, tendo transitado
em julgado apenas a questão incidental referente ao pedido de justiça gratuita”.
Em consulta ao andamento processual do referido feito, no sítio eletrônico
do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, cujo acesso (e ciência) é
assegurado às partes, depreende-se que, em 10.02.2022, em julgamento virtual,
o órgão fracionário indeferiu a petição inicial da ação recisória e, assim, deixou
de apreciar o seu mérito.
Ou seja, embora não operada a preclusão máxima em relação ao decisum
(indeferimento da inicial), observa-se a existência de decisão desfavorável (de
cunho terminativo) ao ora recorrido, no âmbito da referida ação rescisória.
Outrossim, depreende-se do feito que o autor/recorrido ajuizara também
a Ação Declaratória de Inexistência de Sentença 0000535-51.2013.8.11.0046 -
querela nullitatis insanabilis - em face de Sandra Aparecida Ruvieri de Souza
perante a 1ª Vara Cível da Comarca de Comodoro/MT. No âmbito do referido
processo, houve o acolhimento de exceção de incompetência, tendo sido
redistribuído ao juízo da 4ª Vara Cível da Comarca de São José do Rio Preto/SP,
cujo magistrado titular, de sua vez, deu-se por suspeito, com a remessa dos autos à
3ª Vara Cível da Comarca de São José do Rio Preto/SP.
Após o requerimento de informações ao referido juízo, sobreveio ofício, às
fls. 1.948-1.956, e-STJ, em que o magistrado singular aduziu: “Na data de ontem

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 487


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

prolatei sentença nos autos n. 0030756-20.2017.8.26.0576, julgando extinta a ação


proposta por Jorge Luiz Villas Boas contra Sandra Aparecida Ruvieri de Souza, sem
resolução do mérito, com fundamento no artigo 485, inciso VI (interesse processual), do
Código de Processo Civil, cuja cópia segue em anexo”.
Da referida sentença, cujo conteúdo foi disponibilizado às partes,
destacam-se os seguintes trechos:
A hipótese comporta julgamento no estado em que se encontra, porquanto
as provas constantes dos autos são suficientes ao deslinde da questão, sendo
desnecessária a produção de perícia grafotécnica, como pretende o autor, pois
não há dúvida acerca da autenticidade da sentença objurgada.
Com efeito, o próprio Magistrado prolator da decisão admitiu ter julgado referida
ação em informação dirigida ao Corregedor Geral de Justiça à época: “A escrevente
Sandra Aparecida Ruviéri de Souza litigou com o ex-marido, o representante Jorge
Luiz Villas Boas. Não me senti constrangido em julgar porque não tinha amizade nem
vislumbrei nenhum dos casos legais de suspeição.” (sic fls. 519/520), segue em aludido
expediente, justificando os motivos da resolução da lide parcialmente favorável à ora
requerida (fls. 512/532).
Pretende o autor a declaração de nulidade ou inexistência da sentença
proferida os autos n. 354/2013 desta Vara (antigo n. 2.119/2010 da 4ª Vara Cível)
em virtude da suspeição do magistrado prolator, incompetência absoluta do juízo
e ofensa a coisa julgada.
Não obstante a motivação da decisão que recebeu a inicial e concedeu
parcialmente a tutela antecipada, no recurso de Agravo de Instrumento n.
88990/2013 o relator Des. Juracy Persiani da Sexta Câmara Cível do e. Tribunal
de Justiça de Mato Grosso, além de revogar a decisão singular, pontuou que
“a ação declaratória de nulidade de relação jurídica ou de inexistência jurídica
da sentença, proposta pelo ora agravado, foi ajuizada no Juízo da Comarca de
Comodoro-MT, todavia, para desconstituir sentença prolatada na jurisdição da
Comarca de São José do Rio Preto-SP, o que, a princípio, é inapropriado.” (sic fls.
437 verso), colaciou, ainda, vários arestos indicando que a competência para
processar e julgar a ação anulatória ou querela nullitatis é do Juízo prolator da
sentença invectivada (fls. 435/439).
Nesta senda, apesar da denominação dada a esta ação pelo autor Ação
Declaratória de Nulidade de Relação Jurídica ou Inexistência Jurídica tem-se que, em
verdade, trata-se de ação anulatória na qual se busca anular sentença judicial.
Pois bem. No caso, os motivos que levaram o autor a promover a presente ação
não foram apenas a suspeição do magistrado da 4ª Vara Cível local, mas, como
dito alhures, a incompetência absoluta do juízo e a ofensa a coisa julgada, as quais
configuram hipóteses para o ajuizamento de ação rescisória (art. 966, incisos II e III,
CPC).

488
Jurisprudência da QUARTA TURMA

Destarte, equivocou-se a parte autora ao ajuizar a presente ação anulatória,


ao invés da ação rescisória, vale frisar, ação de competência originária do Tribunal
de Justiça de São Paulo, o que caracteriza falta de interesse processual na vertente
adequação.
Em verdade, ao que parece, o autor utilizou-se da presente via processual,
pois, ao tempo do ajuizamento desta ação (09/11/2017), já havia escoado o prazo
para propositura da rescisória (02 anos artigo 495/CPC/73 correspondente ao
artigo 975, NCPC), eis que o trânsito em julgado da sentença que ora se pretende
anular ocorreu em 06/04/2011 (fls. 432 autos n. 354/2013 desta Vara antigo feito
n. 2119/2010 da 4ª Vara Cível).
[...]
Assim, injustificável o equívoco perpetrado pelo autor ao optar pelo
ajuizamento da presente ação nominada declaratória, mas de cunho anulatório,
eis que, mesmo havendo dissídio doutrinário a respeito do tema, o cabimento da
ação rescisória no caso versado era inconteste.
Portanto, diante da inadequação da via eleita, a extinção do feito sem
resolução de mérito é medida que se impõe. (fls. 1.953-1.956, e-STJ; grifou-se).

Em análise ao andamento processual da referida demanda, verifica-se


ter sido interposto recurso de apelação contra a sentença em questão, ainda
pendente de julgamento.
De todo modo, no atual contexto processual, o que se observa é que o autor,
ora recorrido, procedeu ao ajuizamento de ação rescisória e de querela nullitatis
insanabilis, sem ter obtido, até o presente momento, decisão a si favorável.
2.1 Também é necessário afastar o requerimento deduzido pelo recorrido
às fls. 848-1.043, e-STJ, relativo à instauração de incidente de falsidade no
âmbito desta Corte Superior, pois, além de intempestivo (art. 390 do CPC/73),
o ordenamento jurídico pátrio preceitua vias próprias e adequadas para
desconstituição ou declaração de nulidade de decisão judicial com trânsito em
julgado, quais sejam a ação rescisória e a querela nullitatis, não se prestando o
incidente de falsidade a tanto.
2.2 De igual modo, não há falar em suspensão deste feito por eventual
prejudicialidade externa, na medida em que superado em muito o prazo de
um ano previsto no § 4º do artigo 313 do NCPC (correspondente ao § 5º do
art. 265 do CPC/73), pois a ação rescisória foi ajuizada em 2012 e a querela
em 2013. Por outro vértice, este recurso especial foi distribuído a esta Corte
Superior em 24 de fevereiro de 2011 -, não podendo aguardar indefinidamente o
desfecho de feitos diversos.

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 489


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Sobre a possibilidade de suspensão e o período de duração, convém destacar


que, segundo orientação de Corte Especial desta Corte,

quanto à suspensão do processo nas hipóteses em que a sentença de mérito


dependesse do julgamento de outra causa, o art. 265 do CPC/1973 preceituava,
em seu § 5º, que, “nos casos enumerados nas letras a, b e c do n. IV, o período
de suspensão nunca poderá exceder 1 (um) ano” e que, “findo este prazo, o juiz
mandará prosseguir no processo”.
5. Sendo assim, é inviável qualquer interpretação do art. 265, § 5º, que
desconsidere a incidência do prazo legal ânuo, notadamente pela inexistência,
na redação do dispositivo, de qualquer exceção à regra de que o sobrestamento
nunca excederá 1 (um) ano, em evidente prestígio à razoável duração do processo
anunciada pela Constituição Federal. [...] (cf. EDcl no MS 22.157/DF, Rel. Ministro
Herman Benjamin, Rel. p/ Acórdão Ministro Luis Felipe Salomão, Corte Especial,
julgado em 14/03/2019, DJe 11/06/2019)

O Código de Processo Civil de 2015, a seu turno, dispôs expressamente a


impossibilidade de o prazo de suspensão, nessas hipóteses, superar um ano, in
verbis: Art. 313 [...] § 4º O prazo de suspensão do processo nunca poderá exceder 1
(um) ano nas hipóteses do inciso V e 6 (seis) meses naquela prevista no inciso II.
Ademais, conforme acima indicado, o autor, ora recorrido, não obteve
decisão a si favorável, seja na ação rescisória, seja no âmbito da querela nullitatis,
de modo a afastar os efeitos da coisa julgada trazida aos presentes autos como
fato novo.
Consoante cediço, há presunção de legitimidade da coisa julgada - cujo
respeito é garantia de status constitucional (art. 5º, inc. XXXVI, da CRFB/88)
-, de modo que o simples ajuizamento de ação rescisória ou querela não obsta a
produção de seus efeitos [coisa julgada].
Na hipótese, como mencionado acima, nas referidas demandas, não há
concessão de tutela provisória vigente ou determinação equivalente, a fim
de sustar a produção de efeitos da preclusão máxima operada no âmbito do
feito em que formado o “fato novo” - Ação de Rescisão Contratual 0054917-
41.2010.8.26.0576.
A considerar, portanto: i) a data de distribuição do presente recurso especial
(ano de 2011); ii) o indeferimento da inicial da ação recisória (ainda embora não
transitado em julgado); iii) o fato de a ação de querela nullitatis, ajuizada no ano
de 2013, ter sido extinta, sem apreciação de mérito, ainda que pendente o julgamento
de recurso de apelação; iv) a presunção de legitimidade inerente às coisas julgadas; v)

490
Jurisprudência da QUARTA TURMA

a impossibilidade de suspensão indefinida do presente reclamo, impõe-se a apreciação


do inconformismo, nos moldes em que atualmente se encontra o feito, em atenção à
situação jurídica vigente/estabelecida.
Portanto, apesar dos fatos articulados pelo autor/recorrido com o fito
de questionar o comando, não se pode desconsiderar a existência de sentença
judicial transitada em julgado, que resolveu contrato implicado nestes autos, o
que interfere de algum modo no resultado da presente demanda.
2.3 Passa-se, pois, uma vez aferida a admissibilidade do recurso
especial (pressupostos intrínsecos e extrínsecos), ao julgamento do reclamo,
considerando-se o alegado fato novo, consistente na coisa julgada formada no
bojo da Ação de Rescisão Contratual 0054917-41.2010.8.26.0576, que declarou a
resolução do compromisso de compra e venda da Fazenda Prata firmado entre o
autor e sua ex-companheira.
Referida decisão se baseou em perícia contábil, que demonstrou não ter
havido nenhum tipo de pagamento ou transferência de numerário de Jorge Luiz
Villas Boas em favor de Sandra A. R. de Souza, razão pela qual o magistrado
singular entendeu que o contrato de venda da Fazenda Prata não passou da fase
de tratativas. Esse decisum transitou em julgado em 18 de abril de 2011, após,
portanto, o julgamento deste feito realizado pelas instâncias ordinárias.
Por oportuno, transcreve-se a parte dispositiva do aludido decisum:

Posto isto, julga-se parcialmente procedente esta ação judicial, para confirmar
a liminar, bem como rescindir o compromisso de compra e venda lavrado entre
as partes em 17/12/97, tendo como objeto a Fazenda da Prata em Poconé/MT, de
978,4 hectares, objeto das matrículas n. 3.030, 5.587, 6.853 e 8.275, todos do 1º
Cartório de Registro de Imóveis de Poconé/MT (fl. 502, e-STJ).

Ato contínuo, o juízo da 4ª Vara Cível da Comarca de São José do Rio


Preto/SP, na consignação de pagamento conexa - Ação de Consignação de
Pagamento 0033370-42.2010.8.26.0576 - declarou ser Sandra A. R. de Souza
a credora do contrato de arrendamento rural discutido nestes autos, porquanto
proprietária da Fazenda Prata.
Frise-se, apenas para esclarecimento do colegiado, que, a despeito das
alegações do autor/recorrido de que haveria decisão anterior, transitada em
julgado, nos autos da Ação de Rescisão Contratual 0138411-65.2008.8.11.0000,
reconhecendo a validade do compromisso de compra e venda da Fazenda Prata,
em verdade, referida demanda foi extinta, sem julgamento de mérito, de modo

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 491


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

que ao tempo da prolação da sentença na Ação de Rescisão Contratual 0054917-


41.2010.8.26.0576, acima indicada, inexistia coisa julgada material sobre o
tema, não havendo falar em duplicidade de coisas julgadas.
Cabe ressaltar que o Código de Processo Civil de 1973 preceituava em seu
artigo 462 que: se, depois da propositura da ação, algum fato constitutivo, modificativo
ou extintivo do direito influir no julgamento da lide, caberá ao juiz tomá-lo em
consideração, de ofício ou a requerimento da parte, no momento de proferir a sentença.
A referida regra foi mantida no Novo Código de Processo Civil, cujo
artigo 493 assim dispõe: “Se, depois da propositura da ação, algum fato constitutivo,
modificativo ou extintivo do direito influir no julgamento do mérito, caberá ao juiz
tomá-lo em consideração, de ofício ou a requerimento da parte, no momento de proferir
a decisão. Parágrafo único. Se constatar de ofício o fato novo, o juiz ouvirá as partes
sobre ele antes de decidir.”
Isso porque “a tutela jurisdicional deve retratar o contexto litigioso que existe
entre as partes da maneira como esse se afigura no momento de sua concessão. Daí a
razão pela qual nosso Código de Processo Civil empresta relevo ao direito objetivo e
ao direito subjetivo supervenientes à postulação em juízo [...]” (cf. ARENHART;
Sérgio Cruz; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Código
de Processo Civil Comentado. 2 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2016, p. 582).
O julgamento deve refletir o estado de fato da lide no momento da entrega
da prestação jurisdicional, de modo que a ocorrência de fato/circunstância
jurídica superveniente deve ser considerada quando da apreciação da
controvérsia, inclusive no âmbito dos recursos extraordinários, a fim de evitar
decisões contraditórias ou violação à coisa julgada posteriormente formada.
Nesse sentido, os seguintes precedentes:

Agravo interno nos embargos de declaração no recurso especial. Direito


Comercial. Propriedade industrial. Marcas. Ação anulatória de registro. Anulação
de alguns dos registros da marca “Trussardi” realizados pelas agravantes.
Possibilidade de consideração desse fato no julgamento do recurso especial
interposto no curso da ação cominatória cumulada com indenizatória por uso
indevido de marca. Aplicabilidade do art. 462 do CPC/73 (art. 493 do CPC/15).
Aplicação do direito à espécie.
1. Conhecido o recurso especial, esta Corte detém cognição ampla para o
julgamento da lide, podendo, ao aplicar o direito à espécie, levar em consideração
fatos novos, extintivos do direito de uma das partes, ocorridos posteriormente ao
ajuizamento da ação, nos termos do art. 462 do CPC/73 (art. 493 do CPC/15).

492
Jurisprudência da QUARTA TURMA

3. Caso concreto em que a ação anulatória de registro de marca, julgada


parcialmente procedente, teve efeito direto sobre o resultado da presente ação
cominatória pelo uso indevido de marca, cuja relação de prejudicialidade foi
considerada no momento do julgamento do presente recurso.
4. Anulados alguns dos registros da marca “Trussardi” realizados pelas
agravantes, deve-se reconhecer o direito das agravadas, como titulares de marca
notoriamente conhecida em território brasileiro, à sua utilização exclusiva,
julgando-se parcialmente procedentes os pedidos formulados na reconvenção.
5. Agravo interno desprovido.
(AgInt nos EDcl no REsp 1.327.956/SP, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino,
Terceira Turma, julgado em 27/06/2017, DJe 03/08/2017)

Processual Civil. Execução. Embargos declaratórios. Omissão e contradição


inexistentes. Posterior decretação de nulidade dos títulos executivos em ação
revisional. Trânsito em julgado. Fato superveniente. CPC, art. 462. Aplicação à
espécie.
I. Nulidade não detectada no julgado recorrido, que apreciou as questões
levantadas pela parte, porém em sentido desfavorável.
II. O trânsito em julgado de sentença que em ação revisional, posteriormente,
anulou os títulos que embasam a execução, prejudicam a pretensão executória,
que deve ser extinta pelo reconhecimento do fato superveniente, ainda que na
instância especial.
III. Recurso conhecido em parte e provido.
(REsp 604.377/MA, Rel. Ministro Aldir Passarinho Junior, Quarta Turma, julgado
em 19/05/2005, DJ 27/06/2005, p. 405)

Especificamente acerca da possibilidade de uma decisão proferida em


outro processo poder ser considerada como fato superveniente, destaca-se o
seguinte julgado deste órgão fracionário, em cuja ementa assim se consignou:

Processo Civil. Direito Civil. Recurso especial. Art. 462 do CPC. Direito
superveniente. Error in procedendo. Execução de título executivo judicial civil
decorrente da prática de ato ilícito. Penhora de bem de família. Lei 8.009/1990.
Interpretação estrita. Violação do art. 535 do CPC não configurada.
1. Não ocorre violação ao art. 535 do Código de Processo Civil quando o
Juízo, embora de forma sucinta, aprecia fundamentadamente todas as questões
relevantes ao deslinde do feito, apenas adotando fundamentos divergentes da
pretensão do recorrente. Precedentes.
2. O acórdão prolatado em agravo de instrumento torna preclusa a questão
decidida, sendo certo que a preclusão é um fenômeno endoprocessual, ou seja,

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 493


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

somente diz respeito ao processo em curso e às suas partes, não alcançando


direito de terceiro, da mesma forma que nem sempre terá repercussões para as
próprias partes em outros processos nos quais a mesma questão venha a ser
incidentalmente tratada.
3. No caso em apreço, à toda evidência, verifica-se a existência de
dois processos, os quais têm partes distintas - o executivo, em que figuram
o condomínio e o cônjuge da recorrente, e o de embargos de terceiro, cuja
relação jurídico-processual tem como atores o mesmo condomínio e a esposa ora
recorrente, por isso não se há falar em coisa julgada.
4. É dever do magistrado, no momento de proferir a sentença, levar em
consideração, de ofício ou a requerimento da parte, a superveniência de fato ou
direito novo, nos termos do art. 462 do CPC, incorrendo em error in procedendo
o Tribunal que, ignorando tal providência, prolata acórdão que dá ensejo à
coexistência de duas decisões inconciliáveis - uma no processo de execução,
determinando a impenhorabilidade do bem de família, e outra nos embargos,
estabelecendo a possibilidade de excussão desse mesmo bem.
5. Ademais, a Lei 8.009/1990 ostenta natureza excepcional, de modo que as
exceções à regra geral da impenhorabilidade do bem de família são previstas de
forma taxativa, sendo insuscetíveis de interpretação extensiva. Precedentes.
6. Recurso especial provido.
(REsp 1.074.838/SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado
em 23/10/2012, DJe 30/10/2012)

No mesmo sentido, ao dispor acerca da necessidade de considerar a coisa


julgada posterior como fato superveniente, destaca-se:

Recurso especial. Ação de cobrança. Execução. Arguição incidental de


nulidade da citação. Superveniência do trânsito em julgado de sentença em
ação declaratória com o mesmo objetivo. Fato superveniente. Art. 462 do CPC.
Consideração. Respeito à coisa julgada.
1. O julgamento deve refletir o estado de fato da lide no momento da entrega da
prestação jurisdicional.
2. O fato superveniente (art. 462 do CPC) deve ser tomado em consideração
no momento do julgamento a fim de evitar decisões contraditórias e prestigiar os
princípios da economia processual e da segurança jurídica.
3. No caso dos autos, o fato superveniente - consubstanciado na coisa julgada
produzida em lide (ação declaratória) que tramitava paralelamente ao processo
de execução que deu origem aos presentes autos - é tema relevante e deve guiar
a solução do presente recurso especial sob pena ofensa à coisa julgada.
4. Recurso especial provido para restabelecer a decisão de primeira instância.
(REsp 911.932/RJ, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma,
julgado em 19/03/2013, DJe 25/03/2013 - grifou-se)

494
Jurisprudência da QUARTA TURMA

2.4 Partindo das referidas premissas, havendo decisão judicial, com trânsito
em julgado, reconhecendo a resolução do compromisso de compra e venda
da Fazenda Prata - título no qual se embasava o alegado direito do autor,
ora recorrido, e, por conseguinte, a sua sucessão na posição de arrendante no
contrato de arrendamento celebrado pelo usufrutuário falecido -, sobressai a sua
ilegitimidade ativa para a demanda ajuizada em face do arrendatário do imóvel
rural, Carlos Roberto Ruvieri de Souza, a fim de o compelir ao pagamento das
prestações vencidas, bem assim rescindir o contrato e ser reintegrado na posse
do bem.
É dizer, não sendo o autor/recorrido proprietário (ou promissário
comprador) da Fazenda Prata, conforme reconhecido em sentença judicial
transitada em julgado, não detém ele legitimidade para prosseguir com a ação
de resolução do contrato de arrendamento rural outrora celebrado por quem
detinha o usufruto do bem, cumulada com reintegração de posse..
3. Do exposto, não conheço do agravo interno de fls. 1.901-1.937, e-STJ e,
outrossim, conheço do recurso especial para, ao considerar o fato novo trazido aos
autos, provê-lo e extinguir o feito, sem apreciação do mérito, com fundamento
no artigo 485, inciso VI, do NCPC, em face da ilegitimidade do autor para o
ajuizamento da demanda em tela.
Em consequência, condena-se o recorrido ao pagamento das despesas
processuais, assim como de honorários aos advogados do réu/recorrente, no
importe de 20% sobre o valor atualizado da causa constante da petição inaugural
(R$ 10.000,00), nos termos do artigo 85, § 2º, do NCPC.
Saliente-se, por fim, que, diante dos eventos narrados nos autos, bem assim
das intercorrências que se deram ao longo da tramitação deste feito no âmbito
do Superior Tribunal de Justiça, já foi determinada a expedição de ofícios - ao
Ministério Público - bem assim aos demais órgão com atribuição para adoção
de providências.
É como voto.

RECURSO ESPECIAL N. 1.334.097-RJ (2012/0144910-7)

Relator: Ministro Luis Felipe Salomão


Recorrente: Globo Comunicações e Participações S/A

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 495


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Advogados: José Perdiz de Jesus e outro(s) - DF010011


João Carlos Miranda Garcia de Sousa e outro(s) - RJ075342
Carolina Furtado de Mendonça Teixeira de Macedo - RJ152408
Filipe Seixo de Figueiredo - RJ180663
Gustavo Binenbojm - DF058607
Rafael Lorenzo Fernandez Koatz - DF046142
Recorrido: Jurandir Gomes de França
Advogados: Pedro D’Alcântara Miranda Filho e outro(s) - RJ069620
Gabriel Corrêa Junqueira - RJ177979

EMENTA

Recurso especial. Repercussão geral. Julgamento concluído.


Juízo de retratação ou ratificação. Direito Civil-Constitucional.
Conflito aparente de valores constitucionais. Direito de informação
e Expressão vs. Direitos da personalidade. Documentário exibido
em rede nacional. Chacina da Candelária. Tema n. 786/STF. RE
n. 1.010.606/RJ. Compatibilidade entre os acórdãos do STJ e STF.
Ratificação do julgado.
1. A dinâmica das transformações sociais, culturais e tecnológicas
confere à vida em sociedade novas feições que o direito legislado tem
dificuldades de acompanhar, originando conflitos entre a liberdade
de informação e de expressão e os direitos inerentes à personalidade,
todos de estatura constitucional.
2. O conflito entre os direitos da personalidade e o direito
de informar e de expressão por meio de publicações jornalísticas
singulariza-se num contexto em que falta aos fatos o elemento
“contemporaneidade”, capaz de trazer à tona dramas já administrados
e de reacender o juízo social sobre os sujeitos envolvidos.
3. No julgamento realizado em 28/5/2013, a Quarta Turma
do STJ, atenta à circunscrição da questão jurídica a ser solucionada,
sem prender-se a denominações e a institutos, estabeleceu que a
Constituição Federal, ao proclamar a liberdade de informação e
de manifestação do pensamento, assim o fez traçando as diretrizes
principiológicas de acordo com as quais essa liberdade será exercida,
esclarecendo a natureza não absoluta daqueles direitos e que, no

496
Jurisprudência da QUARTA TURMA

conflito entre a liberdade de informação e os direitos da personalidade,


eventual prevalência sobre os segundos, após realizada a necessária
ponderação para o caso concreto, encontra amparo no ordenamento
jurídico, não consubstanciando, em si, a apontada censura vedada pela
Constituição Federal de 1988.
4. No julgamento mencionado no item anterior, realçou-se
que a história da sociedade é patrimônio imaterial do povo, capaz
de revelar para o futuro os traços políticos, sociais ou culturais de
determinada época. Todavia, em se tratando da historicidade do
crime, a divulgação dos fatos há de ser vista com cautela, merecendo
ponderação casuística, a fim de resguardar direitos da personalidade
dos atores do evento narrado.
5. Apreciados os mesmos fatos pelo STF (RE n. 1.010.606/
RJ), a Suprema Corte sintetizou o julgamento numa tese com a
identificação de duas situações distintas, tendo sido previstas para cada
qual, naturalmente, soluções diferenciadas para o aparente conflito
entre os valores e os direitos que gravitam a questão.
6. Na primeira parte da tese firmada, reconheceu-se a ilegitimidade
da invocação do direito ao esquecimento, autonomamente, com o
objetivo de obstar a divulgação dos fatos, que, embora lamentavelmente
constituam uma tragédia, são verídicos, compõem o rol dos casos
notórios de violência na sociedade brasileira e foram licitamente
obtidos à época de sua ocorrência, não tendo o decurso do tempo,
por si só, tornado ilícita ou abusiva sua (re)divulgação, sob pena de
se restringir, desarrazoadamente, o exercício do direito à liberdade de
expressão, de informação e de imprensa.
7. Na segunda parte da tese, asseverou-se o indispensável
resguardo dos direitos da personalidade das vítimas de crimes, inclusive
dos seus familiares, sobretudo no que tange aos crimes bárbaros:
“todos esses julgamentos têm algo em comum, além da necessidade
de compatibilidade interpretativa entre a liberdade de expressão, a
dignidade da pessoa humana, a intimidade e privacidade; a exigência
de análise específica – caso a caso – de eventuais abusos nas divulgações,
da necessidade de atualização dos dados, da importância dos fatos, do
desvio de finalidade ou na exploração ilícita das informações.”
8. Nessa linha, não bastasse a literalidade da segunda parte da
tese apresentada (Tema n. 786/STF), os pressupostos que alicerçaram

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 497


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

o entendimento do Supremo Tribunal Federal foram coincidentes


com aqueles nos quais se estruturou a decisão tomada no recurso
especial pela Quarta Turma do STJ, justificando-se a confirmação do
julgado proferido por este colegiado.
9. De fato, no caso em exame, conforme análise pormenorizada
dos fatos e julgamento desta Turma, constatou-se exatamente a
situação abusiva referida pelo Supremo, situação para a qual aquele
Tribunal determinou: em sendo constatado o excesso na divulgação de
fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios
de comunicação social analógicos ou digitais, se proceda o julgador
competente ao estancamento da violação, com base nas legítimas
formas previstas pelo ordenamento.
10. Sublinhe-se que tal excesso e o ataque aos direitos
fundamentais do autor foram bem sintetizados no voto condutor, que
salientou que a permissão de nova veiculação do fato, com a indicação
precisa do nome e imagem do autor, no caso concreto, significaria
uma segunda ofensa à dignidade, justificada pela primeira, uma vez
que, além do crime em si, o inquérito policial se consubstanciava em
reconhecida “vergonha nacional” à parte.
11. Recurso especial não provido. Ratificação do julgamento
originário, tendo em vista sua coincidência com os fundamentos
apresentados pelo STF.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, os Ministros da Quarta Turma


do Superior Tribunal de Justiça acordam, após o voto-vista do Ministro Raul
Araújo dando provimento ao recurso especial, divergindo do relator, por maioria,
negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do relator. Vencido o
Ministro Raul Araújo (voto-vista).
A Sra. Ministra Maria Isabel Gallotti e os Srs. Ministros Antonio Carlos
Ferreira e Marco Buzzi votaram com o Sr. Ministro Relator.
Brasília (DF), 09 de novembro de 2021 (data do julgamento).
Ministro Luis Felipe Salomão, Relator

DJe 1º.2.2022

498
Jurisprudência da QUARTA TURMA

RELATÓRIO
O Sr. Ministro Luis Felipe Salomão: 1. Jurandir Gomes de França,
ora recorrido, ajuizou ação de reparação de danos morais em face de Globo
Comunicações e Participações S.A., ora recorrente, aduzindo que a ré o procurou
com o intuito de entrevistá-lo em programa televisivo (Linha Direta - Justiça)
que teria como tema uma série de homicídios ocorridos na cidade do Rio de
Janeiro, em 23 de julho de 1993, evento trágico mundialmente conhecido como
Chacina da Candelária. O autor teria sido um dos indiciados como coautor/
partícipe do crime, mas, após julgamento pelo Tribunal do Júri, foi absolvido por
negativa de autoria pela unanimidade dos membros do Conselho de Sentença.
Na ocasião, afirmou que teria recusado a entrevista e mencionado o desinteresse
em ter sua imagem exposta em rede nacional. Em junho de 2006, o programa
foi ao ar com referência ao autor como um dos envolvidos no evento chacina.
Entendeu o ora recorrido que a transmissão levou a público situação que
já havia sido superada, reacendendo na comunidade onde reside a imagem
de chacinador e o ódio social, ferindo, assim, seu direito à paz, anonimato e
privacidade, com prejuízos diretos também a seus familiares.
Salientou que a exposição de sua imagem e nome no mencionado programa
foi ilícita e causou-lhe intenso abalo moral. Nessa extensão, pleiteou indenização
no valor de 300 (trezentos) salários mínimos.
O juízo de piso, sopesando, de um lado, o interesse público da notícia
acerca de “evento traumático da história nacional” que repercutiu “de forma
desastrosa na imagem do país junto à comunidade internacional” e, de outro, o
“direito ao anonimato e ao esquecimento” do autor, entendeu por bem mitigar o
segundo, julgando improcedente o pedido indenizatório (fls. 130-137).
Em apelação, a sentença foi reformada, por maioria, nos termos da seguinte
ementa (fls. 195-196):

Apelação. Autor que, acusado de envolvimento na Chacina da Candelária, vem


a ser absolvido pelo Tribunal do Júri por unanimidade. Posterior veiculação do
episódio, contra sua vontade expressa, no programa Linha Direta, que declinou
seu nome verdadeiro e reacendeu na comunidade em que vivia o autor o
interesse e a desconfiança de todos. Conflito de valores constitucionais. Direito
de Informar e Direito de Ser Esquecido, derivado da dignidade da pessoa humana,
prevista no art. 1º, III, da Constituição Federal.
I - O dever de informar, consagrado no art. 220 da Carta de 1988, faz-se no
interesse do cidadão e do país, em particular para a formação da identidade
cultural deste último.

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 499


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

II - Constituindo os episódios históricos patrimônio de um povo, reconhece-se


à imprensa o direito/dever de recontá-los indefinidamente, bem como rediscuti-
los, em diálogo com a sociedade civil.
III - Do Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana, e do direito
que tem todo cidadão de alcançar a felicidade, restringe-se a informação,
contudo, no que toca àqueles que, antes anônimos, foram absolvidos em
processos criminais e retornaram ao esquecimento.
IV - Por isto, se o autor, antes réu, viu-se envolvido em caráter meramente
lateral e acessório, em processo do qual foi absolvido, e se após este voltou ao
anonimato, e ainda sendo possível contar a estória da Chacina da Candelária
sem a menção de seu nome, constitui abuso do direito de informar e violação
da imagem do cidadão a edição de programa jornalístico contra a vontade
expressamente manifestada de quem deseja prosseguir no esquecimento.
V - Precedentes dos tribunais estrangeiros. Recurso ao qual se dá provimento
para condenar a ré ao pagamento de R$ 50.000,00 a título de indenização.

Opostos embargos infringentes, também por maioria, foram rejeitados, nos


termos da seguinte ementa (fls. 297-299):

Embargos Infringentes. Indenizatória. Matéria televisivo-jornalística: “Chacina


da Candelária”. Pessoa acusada de participação no hediondo crime e, alfim,
inocentada. Uso inconsentido de sua imagem e nome. Conflito aparente entre
princípios fundamentais de Direito: Informação “vs” Vida Privada, Intimidade e
Imagem. Direito ao esquecimento e direito de ser deixado em paz: sua aplicação.
Proteção da identidade e imagem de pessoa não-pública. Dados dispensáveis
à boa qualidade jornalística da reportagem. Dano moral e dano à imagem:
distinção e autonomia relativa. Indenização. Quantificação: critérios.
1. Trata-se de ação indenizatória por dano moral e à imagem, fundada não
em publicação caluniosa ou imprecisa, mas no só revolver de fatos pretéritos
que impactaram drasticamente a esfera da vida privada do autor - acusado que
fora, injustamente, de participação na autoria de crime de inglória lembrança, a
“chacina da Candelária”.
Por isto mesmo, não aproveita à ré a alegação de cuidado com a verdade dos
fatos e sua não distorção - alegação que, conquanto veraz, não guarda relação
com a causa de pedir.
2. Conquanto inegável seja o interesse público na discussão aberta de fatos
históricos pertencentes à memória coletiva, e de todos os pormenores a ele
relacionados, é por outro lado contestável a necessidade de revelarem-se nome
completo e imagem de pessoa envolvida, involuntariamente, em episódio
tão funesto, se esses dados já não mais constituem novidade jornalística nem
acrescem substância ao teor da matéria vocacionada a revisitar fatos ocorridos há
mais de década.

500
Jurisprudência da QUARTA TURMA

Não é leviano asseverar que, atendido fosse o clamor do autor de não


ter revelados o nome e a imagem, o distinto público não estaria menos bem
informado sobre a Chacina da Candelária e o desarranjado inquérito policial que
lhe sucedeu, formando uma vergonha nacional à parte.
3. Recorre-se ao juízo de ponderação de valores para solver conflito (aparente)
de princípios de Direito: no caso, o da livre informação, a proteger o interesse
privado do veículo de comunicação voltado ao lucro, e o interesse público dos
destinatários da notícia; e o da inviolabilidade da intimidade, da imagem e da vida
privada.
A desfiguração eletrônica da imagem do autor e o uso de um pseudônimo
(como se faz, em observância a nosso ordenamento, para proteção de menores
infratores) consistiria em sacrifício mínimo à liberdade de expressão, em favor de
um outro direito fundamental que, no caso concreto, merecia maior atenção e
preponderância.
4. Das garantias fundamentais à intimidade e à vida privada, bem assim
do princípio basilar da dignidade da pessoa humana, extraíram a doutrina e a
jurisprudência de diversos países, como uma sua derivação, o chamado “direito
ao esquecimento”, também chamado pelos norte-amercianos de “direito de ser
deixado em paz”.
Historicamente, a construção desses conceitos jurídicos fez-se a bem da
ressocialização de autores de atos delituosos, sobretudo quando libertados ou
em vias de o serem.
Se o direito ao esquecimento beneficia os que já pagaram por crimes que de
fato cometeram, com maior razão se deve observá-lo em favor dos inocentes,
involuntariamente tragados por um furacão de eventos nefastos para sua vida
pessoal, e que não se convém revolver depois que, com esforço, a vítima logra
reconstruir sua vida.
5. Analisado como sistema que é, nosso ordenamento jurídico, que protege
o direito de ressocialização do apenado (art. 748 do CPP) e o direito do menor
infrator (arts. 17 e 18 do ECA), decerto protegerá também, por analogia, a vida
privada do inocente injustamente acusado pelo Estado.
6. O direito de imagem não se confunde com o direito à honra: para a violação
daquele, basta o uso inconsentido da imagem, pouco importando se associada
ou não a um conteúdo que a denigra.
Não sendo o autor pessoa pública, porque a revelação de sua imagem já não
traz novidade jornalística alguma (pois longínqua a data dos fatos), o uso de sua
imagem, a despeito da expressa resistência do titular, constitui violação de direito
a todos oponível, violação essa que difere da ofensa moral (CF. art. 5º, V, da CF).
7. Tomando em linha de conta a centralidade do princípio da dignidade da
pessoa humana, a severidade dos danos decorrentes da exibição do programa

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 501


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

televisivo na vida privada do autor (relançado na persona de “suspeito” entre


as pessoas de sua convivência comunal), e o conteúdo punitivo-pedagógico
do instituto da indenização por dano moral, a verba aparentemente exagerada
de R$ 50.000,00 se torna adequada - tanto mais em se tratando do veículo de
comunicação de maior audiência e, talvez, de maior porte econômico.
Desprovimento do recurso.

Foi interposto recurso especial por Globo Comunicações e Participações S.A.,


com fundamento na alínea “a” do permissivo constitucional, com alegação de
ofensa aos arts. 333, I, e 535 do CPC/1973 e arts. 186, 188, I, 927 e 944 do
CC/2002.
Nas razões do recurso, a recorrente afirmou a inexistência do dever de
indenizar por ausência de ilicitude, uma vez que a ideia do programa Linha
Direta Justiça é comum no Brasil e no exterior, sendo natural a divulgação de
casos criminais célebres de grande repercussão no passado, por diversos meios
de comunicação jornalísticos (livros, jornais, revistas, rádio, cinema e televisão).
Sustentou não ter havido invasão à privacidade/intimidade do autor,
porque os fatos noticiados já eram públicos e fartamente discutidos na sociedade,
fazendo parte do acervo histórico do povo.
Argumentou que o programa jornalístico tinha a forma de documentário,
sobre acontecimentos de relevante interesse público, tendo a emissora se
limitado a narrar os fatos tais como ocorridos, sem dirigir nenhuma ofensa à
pessoa do autor, ao contrário, deixando claro que teria sido inocentado.
Defendeu ser incabível o acolhimento de “um direito ao esquecimento ou
do direito de ser deixado em paz”, que sobrepujaria o direito de informar da
recorrente, bem como não ser possível retratar a trágica história dos homicídios
da Candelária sem mencionar o recorrido, porque se tornou, infelizmente, uma
peça-chave do episódio e do conturbado inquérito policial. Assim, a ocultação
do recorrido ou dos demais inocentados pelo crime “seria o mesmo que deixar
o programa jornalístico sem qualquer lógica, pois um dos mais relevantes
aspectos que envolveram o crime foi justamente a conturbada e incompetente
investigação promovida pela polícia” (fl. 343).
Sintetizou que “o simples fato da pessoa se relacionar com a notícia ou fato
histórico de interesse coletivo é suficiente para mitigar seu direito à intimidade,
tornando lícita a divulgação de seu nome e de sua imagem independentemente
de autorização”. Pleiteou, subsidiariamente, o reconhecimento de inexistência
de dano moral ou a exorbitância da indenização.

502
Jurisprudência da QUARTA TURMA

Julgado o recurso especial, esta colenda Turma, por unanimidade, negou-


lhe provimento, nos termos da ementa que segue (fls. 583-587):

Recurso especial. Direito Civil-Constitucional. Liberdade de imprensa vs.


direitos da personalidade. Litígio de solução transversal. Competência do Superior
Tribunal de Justiça.
Documentário exibido em rede nacional. Linha Direta-Justiça. Sequência de
homicídios conhecida como Chacina da Candelária. Reportagem que reacende
o tema treze anos depois do fato. Veiculação inconsentida de nome e imagem
de indiciado nos crimes. Absolvição posterior por negativa de autoria. Direito
ao esquecimento dos condenados que cumpriram pena e dos absolvidos.
Acolhimento. Decorrência da proteção legal e constitucional da dignidade da
pessoa humana e das limitações positivadas à atividade informativa. Presunção
legal e constitucional de ressocialização da pessoa. Ponderação de valores.
Precedentes de direito comparado.
1. Avulta a responsabilidade do Superior Tribunal de Justiça em demandas
cuja solução é transversal, interdisciplinar, e que abrange, necessariamente,
uma controvérsia constitucional oblíqua, antecedente, ou inerente apenas à
fundamentação do acolhimento ou rejeição de ponto situado no âmbito do
contencioso infraconstitucional, questões essas que, em princípio, não são
apreciadas pelo Supremo Tribunal Federal.
2. Nos presentes autos, o cerne da controvérsia passa pela ausência de
contemporaneidade da notícia de fatos passados, que reabriu antigas feridas
já superadas pelo autor e reacendeu a desconfiança da sociedade quanto à
sua índole. O autor busca a proclamação do seu direito ao esquecimento, um
direito de não ser lembrado contra sua vontade, especificamente no tocante
a fatos desabonadores, de natureza criminal, nos quais se envolveu, mas que,
posteriormente, fora inocentado.
3. No caso, o julgamento restringe-se a analisar a adequação do direito ao
esquecimento ao ordenamento jurídico brasileiro, especificamente para o
caso de publicações na mídia televisiva, porquanto o mesmo debate ganha
contornos bem diferenciados quando transposto para internet, que desafia
soluções de índole técnica, com atenção, por exemplo, para a possibilidade de
compartilhamento de informações e circulação internacional do conteúdo, o que
pode tangenciar temas sensíveis, como a soberania dos Estados-nações.
4. Um dos danos colaterais da “modernidade líquida” tem sido a progressiva
eliminação da “divisão, antes sacrossanta, entre as esferas do ‘privado’ e do
‘público’ no que se refere à vida humana”, de modo que, na atual sociedade
da hiperinformação, parecem evidentes os “riscos terminais à privacidade e
à autonomia individual, emanados da ampla abertura da arena pública aos
interesses privados [e também o inverso], e sua gradual mas incessante
transformação numa espécie de teatro de variedades dedicado à diversão ligeira”

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 503


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

(BAUMAN, Zygmunt. Danos colaterais: desigualdades sociais numa era global.


Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2013, pp. 111-113).
Diante dessas preocupantes constatações, o momento é de novas e necessárias
reflexões, das quais podem mesmo advir novos direitos ou novas perspectivas
sobre velhos direitos revisitados.
5. Há um estreito e indissolúvel vínculo entre a liberdade de imprensa e todo
e qualquer Estado de Direito que pretenda se autoafirmar como Democrático.
Uma imprensa livre galvaniza contínua e diariamente os pilares da democracia,
que, em boa verdade, é projeto para sempre inacabado e que nunca atingirá
um ápice de otimização a partir do qual nada se terá a agregar. Esse processo
interminável, do qual não se pode descurar - nem o povo, nem as instituições
democráticas -, encontra na imprensa livre um vital combustível para sua
sobrevivência, e bem por isso que a mínima cogitação em torno de alguma
limitação da imprensa traz naturalmente consigo reminiscências de um passado
sombrio de descontinuidade democrática.
6. Não obstante o cenário de perseguição e tolhimento pelo qual passou
a imprensa brasileira em décadas pretéritas, e a par de sua inegável virtude
histórica, a mídia do século XXI deve fincar a legitimação de sua liberdade em
valores atuais, próprios e decorrentes diretamente da importância e nobreza da
atividade. Os antigos fantasmas da liberdade de imprensa, embora deles não
se possa esquecer jamais, atualmente, não autorizam a atuação informativa
desprendida de regras e princípios a todos impostos.
7. Assim, a liberdade de imprensa há de ser analisada a partir de dois
paradigmas jurídicos bem distantes um do outro. O primeiro, de completo
menosprezo tanto da dignidade da pessoa humana quanto da liberdade de
imprensa; e o segundo, o atual, de dupla tutela constitucional de ambos os
valores.
8. Nesse passo, a explícita contenção constitucional à liberdade de informação,
fundada na inviolabilidade da vida privada, intimidade, honra, imagem e, de
resto, nos valores da pessoa e da família, prevista no art. 220, § 1º, art. 221 e no §
3º do art. 222 da Carta de 1988, parece sinalizar que, no conflito aparente entre
esses bens jurídicos de especialíssima grandeza, há, de regra, uma inclinação ou
predileção constitucional para soluções protetivas da pessoa humana, embora
o melhor equacionamento deva sempre observar as particularidades do caso
concreto. Essa constatação se mostra consentânea com o fato de que, a despeito
de a informação livre de censura ter sido inserida no seleto grupo dos direitos
fundamentais (art. 5º, inciso IX), a Constituição Federal mostrou sua vocação
antropocêntrica no momento em que gravou, já na porta de entrada (art. 1º,
inciso III), a dignidade da pessoa humana como - mais que um direito - um
fundamento da República, uma lente pela qual devem ser interpretados os
demais direitos posteriormente reconhecidos. Exegese dos arts. 11, 20 e 21 do
Código Civil de 2002. Aplicação da filosofia kantiana, base da teoria da dignidade

504
Jurisprudência da QUARTA TURMA

da pessoa humana, segundo a qual o ser humano tem um valor em si que supera
o das “coisas humanas”.
9. Não há dúvida de que a história da sociedade é patrimônio imaterial do
povo e nela se inserem os mais variados acontecimentos e personagens capazes
de revelar, para o futuro, os traços políticos, sociais ou culturais de determinada
época. Todavia, a historicidade da notícia jornalística, em se tratando de
jornalismo policial, há de ser vista com cautela. Há, de fato, crimes históricos
e criminosos famosos; mas também há crimes e criminosos que se tornaram
artificialmente históricos e famosos, obra da exploração midiática exacerbada
e de um populismo penal satisfativo dos prazeres primários das multidões,
que simplifica o fenômeno criminal às estigmatizadas figuras do “bandido” vs.
“cidadão de bem”.
10. É que a historicidade de determinados crimes por vezes é edificada à
custa de vários desvios de legalidade, por isso não deve constituir óbice em si
intransponível ao reconhecimento de direitos como o vindicado nos presentes
autos. Na verdade, a permissão ampla e irrestrita a que um crime e as pessoas
nele envolvidas sejam retratados indefinidamente no tempo - a pretexto da
historicidade do fato - pode significar permissão de um segundo abuso
à dignidade humana, simplesmente porque o primeiro já fora cometido no
passado. Por isso, nesses casos, o reconhecimento do “direito ao esquecimento”
pode significar um corretivo - tardio, mas possível - das vicissitudes do passado,
seja de inquéritos policiais ou processos judiciais pirotécnicos e injustos, seja da
exploração populista da mídia.
11. É evidente o legítimo interesse público em que seja dada publicidade
da resposta estatal ao fenômeno criminal. Não obstante, é imperioso também
ressaltar que o interesse público - além de ser conceito de significação fluida -
não coincide com o interesse do público, que é guiado, no mais das vezes, por
sentimento de execração pública, praceamento da pessoa humana, condenação
sumária e vingança continuada.
12. Assim como é acolhido no direito estrangeiro, é imperiosa a aplicabilidade
do direito ao esquecimento no cenário interno, com base não só na principiologia
decorrente dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana, mas
também diretamente do direito positivo infraconstitucional. A assertiva de que
uma notícia lícita não se transforma em ilícita com o simples passar do tempo
não tem nenhuma base jurídica. O ordenamento é repleto de previsões em
que a significação conferida pelo Direito à passagem do tempo é exatamente o
esquecimento e a estabilização do passado, mostrando-se ilícito sim reagitar o
que a lei pretende sepultar. Precedentes de direito comparado.
13. Nesse passo, o Direito estabiliza o passado e confere previsibilidade ao
futuro por institutos bem conhecidos de todos: prescrição, decadência, perdão,
anistia, irretroatividade da lei, respeito ao direito adquirido, ato jurídico perfeito,
coisa julgada, prazo máximo para que o nome de inadimplentes figure em

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 505


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

cadastros restritivos de crédito, reabilitação penal e o direito ao sigilo quanto à


folha de antecedentes daqueles que já cumpriram pena (art. 93 do Código Penal,
art. 748 do Código de Processo Penal e art. 202 da Lei de Execuções Penais).
Doutrina e precedentes.
14. Se os condenados que já cumpriram a pena têm direito ao sigilo da folha
de antecedentes, assim também a exclusão dos registros da condenação no
Instituto de Identificação, por maiores e melhores razões aqueles que foram
absolvidos não podem permanecer com esse estigma, conferindo-lhes a lei o
mesmo direito de serem esquecidos.
15. Ao crime, por si só, subjaz um natural interesse público, caso contrário
nem seria crime, e eventuais violações de direito resolver-se-iam nos domínios
da responsabilidade civil. E esse interesse público, que é, em alguma medida,
satisfeito pela publicidade do processo penal, finca raízes essencialmente na
fiscalização social da resposta estatal que será dada ao fato. Se é assim, o interesse
público que orbita o fenômeno criminal tende a desaparecer na medida em
que também se esgota a resposta penal conferida ao fato criminoso, a qual,
certamente, encontra seu último suspiro, com a extinção da pena ou com a
absolvição, ambas consumadas irreversivelmente. E é nesse interregno temporal
que se perfaz também a vida útil da informação criminal, ou seja, enquanto
durar a causa que a legitimava. Após essa vida útil da informação seu uso só
pode ambicionar, ou um interesse histórico, ou uma pretensão subalterna,
estigmatizante, tendente a perpetuar no tempo as misérias humanas.
16. Com efeito, o reconhecimento do direito ao esquecimento dos condenados
que cumpriram integralmente a pena e, sobretudo, dos que foram absolvidos em
processo criminal, além de sinalizar uma evolução cultural da sociedade, confere
concretude a um ordenamento jurídico que, entre a memória - que é a conexão
do presente com o passado - e a esperança - que é o vínculo do futuro com
o presente -, fez clara opção pela segunda. E é por essa ótica que o direito ao
esquecimento revela sua maior nobreza, pois afirma-se, na verdade, como um
direito à esperança, em absoluta sintonia com a presunção legal e constitucional
de regenerabilidade da pessoa humana.
17. Ressalvam-se do direito ao esquecimento os fatos genuinamente históricos
- historicidade essa que deve ser analisada em concreto -, cujo interesse público e
social deve sobreviver à passagem do tempo, desde que a narrativa desvinculada
dos envolvidos se fizer impraticável.
18. No caso concreto, a despeito de a Chacina da Candelária ter se tornado
- com muita razão - um fato histórico, que expôs as chagas do País ao mundo,
tornando-se símbolo da precária proteção estatal conferida aos direitos humanos
da criança e do adolescente em situação de risco, o certo é que a fatídica história
seria bem contada e de forma fidedigna sem que para isso a imagem e o nome do
autor precisassem ser expostos em rede nacional. Nem a liberdade de imprensa
seria tolhida, nem a honra do autor seria maculada, caso se ocultassem o nome

506
Jurisprudência da QUARTA TURMA

e a fisionomia do recorrido, ponderação de valores que, no caso, seria a melhor


solução ao conflito.
19. Muito embora tenham as instâncias ordinárias reconhecido que a
reportagem se mostrou fidedigna com a realidade, a receptividade do homem
médio brasileiro a noticiários desse jaez é apta a reacender a desconfiança geral
acerca da índole do autor, o qual, certamente, não teve reforçada sua imagem de
inocentado, mas sim a de indiciado.
No caso, permitir nova veiculação do fato, com a indicação precisa do nome
e imagem do autor, significaria a permissão de uma segunda ofensa à sua
dignidade, só porque a primeira já ocorrera no passado, uma vez que, como
bem reconheceu o acórdão recorrido, além do crime em si, o inquérito policial
consubstanciou uma reconhecida “vergonha” nacional à parte.
20. Condenação mantida em R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), por não se
mostrar exorbitante.
21. Recurso especial não provido.

Em face do acórdão acima destacado, Globo Comunicações e Participações


S.A. interpôs recurso extraordinário (fls. 593-616), com alegação de ofensa aos
arts. 5º, IV, V, IX, X e XIV, 220 e 221 da Constituição Federal.
Defendeu, em síntese, que, na hipótese, no conflito entre a liberdade de
imprensa e o direto à privacidade do recorrido, a primeira deve prevalecer. Alegou
que “não deve ser garantido às pessoas que integram episódios criminosos de
repercussão nacional ou internacional, independentemente da sua posição nos
fatos narrados, o direito de esquecimento, uma vez que a história da sociedade
e o interesse público que a norteia devem prevalecer ao direito de recolhimento
do indivíduo” (fl. 605). Asseverou que “não é possível retirar do acusado a
qualidade de pessoa pública que foi submetida a um julgamento histórico do
país, atraindo em seu desfavor, data venia, o direito de ter sua imagem e nome
explorados pelos meios de comunicação sempre que o interesse público exigir”.
Inadmitido o recurso pela Vice-Presidência deste Superior Tribunal (fls.
633-638), a recorrente interpôs o pertinente agravo (fls. 642-656).
Analisado o agravo na Suprema Corte, o excelentíssimo Ministro Marco
Aurélio Mello destacou que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, apreciando
o ARE n. 833.248/RJ, posteriormente substituído pelo RE n. 1.010.606/
RJ, ambos de relatoria do eminente Ministro Dias Toffoli, teria reconhecido a
repercussão geral da questão constitucional naquela suscitada, coincidente, em todos os
seus aspectos, com a controvérsia jurídica versada na presente causa. Determinou-se,
assim, a devolução dos autos a este Superior Tribunal (fls. 773-774), nos termos
do art. 328 do RISTF.

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Após, com fundamento no art. 1.030, III, do CPC, foi determinado


pela Presidência desta Casa o sobrestamento do recurso extraordinário, até a
publicação da decisão de mérito do Supremo Tribunal Federal acerca do Tema
786/STF da sistemática da repercussão geral (fls. 778-784).
Em despacho proferido em junho do corrente ano (fls. 791-798), a
Vice-Presidência deste Tribunal Superior encaminhou os autos a este relator,
informando a conclusão do julgamento da questão aqui tratada pelo Supremo
Tribunal Federal, para análise por este egrégio Colegiado da conformação dos
entendimentos externados. Confira-se:

No RE n. 1.010.606/RJ, julgado sob o regime da repercussão geral, o


Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento de que “é incompatível com
a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como
o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou
dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação
social analógicos ou digitais”, acrescentando que “eventuais excessos ou abusos
no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados
caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais - especialmente os relativos
à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral - e
das expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível” (Tema 786/
STF).
(...)
Na espécie, compulsando-se os autos verifica-se que o entendimento firmado por
esta Corte Superior de Justiça destoa, em princípio, do Tema 786/STF.
Ante o exposto, nos termos do art. 1.040, inciso II, do Código de Processo Civil,
encaminhem-se os autos à Turma para eventual juízo de retratação.

É o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Luis Felipe Salomão (Relator): 2. O presente recurso


especial retorna à apreciação deste órgão julgador para fins do disposto no
art. 1.040, II, do CPC, em razão do julgamento do Recurso Extraordinário
n. 1.010.606/RJ, realizado pelo Supremo Tribunal Federal, sob o regime da
repercussão geral, em que foi firmado o entendimento segundo o qual “é
incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim
entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação
de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de

508
Jurisprudência da QUARTA TURMA

comunicação social analógicos ou digitais”, além de que “eventuais excessos


ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser
analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais - especialmente
os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade
em geral - e das expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e
cível”.
Abaixo, confira-se a ementa do julgado:

Recurso extraordinário com repercussão geral. Caso Aída Curi. Direito ao


esquecimento. Incompatibilidade com a ordem constitucional. Recurso
extraordinário não provido.
1. Recurso extraordinário interposto em face de acórdão por meio do qual
a Décima Quinta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de
Janeiro negou provimento a apelação em ação indenizatória que objetivava a
compensação pecuniária e a reparação material em razão do uso não autorizado
da imagem da falecida irmã dos autores, Aída Curi, no programa Linha Direta:
Justiça.
2. Os precedentes mais longínquos apontados no debate sobre o
chamado direito ao esquecimento passaram ao largo do direito autônomo ao
esmaecimento de fatos, dados ou notícias pela passagem do tempo, tendo
os julgadores se valido essencialmente de institutos jurídicos hoje bastante
consolidados. A utilização de expressões que remetem a alguma modalidade
de direito a reclusão ou recolhimento, como droit a l’oubli ou right to be let
alone, foi aplicada de forma discreta e muito pontual, com significativa menção,
ademais, nas razões de decidir, a direitos da personalidade/privacidade. Já
na contemporaneidade, campo mais fértil ao trato do tema pelo advento da
sociedade digital, o nominado direito ao esquecimento adquiriu roupagem
diversa, sobretudo após o julgamento do chamado Caso González pelo Tribunal
de Justiça Europeia, associando-se o problema do esquecimento ao tratamento e
à conservação de informações pessoais na internet.
3. Em que pese a existência de vertentes diversas que atribuem significados
distintos à expressão direito ao esquecimento, é possível identificar elementos
essenciais nas diversas invocações, a partir dos quais se torna possível nominar
o direito ao esquecimento como a pretensão apta a impedir a divulgação, seja
em plataformas tradicionais ou virtuais, de fatos ou dados verídicos e licitamente
obtidos, mas que, em razão da passagem do tempo, teriam se tornado
descontextualizados ou destituídos de interesse público relevante.
4. O ordenamento jurídico brasileiro possui expressas e pontuais previsões
em que se admite, sob condições específicas, o decurso do tempo como razão
para supressão de dados ou informações, em circunstâncias que não configuram,
todavia, a pretensão ao direito ao esquecimento. Elas se relacionam com o

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 509


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

efeito temporal, mas não consagram um direito a que os sujeitos não sejam
confrontados quanto às informações do passado, de modo que eventuais notícias
sobre esses sujeitos – publicadas ao tempo em que os dados e as informações
estiveram acessíveis – não são alcançadas pelo efeito de ocultamento. Elas
permanecem passíveis de circulação se os dados nelas contidos tiverem sido, a
seu tempo, licitamente obtidos e tratados. Isso porque a passagem do tempo, por
si só, não tem o condão de transmutar uma publicação ou um dado nela contido
de lícito para ilícito.
5. A previsão ou aplicação do direito ao esquecimento afronta a liberdade de
expressão. Um comando jurídico que eleja a passagem do tempo como restrição
à divulgação de informação verdadeira, licitamente obtida e com adequado
tratamento dos dados nela inseridos, precisa estar previsto em lei, de modo
pontual, clarividente e sem anulação da liberdade de expressão. Ele não pode,
ademais, ser fruto apenas de ponderação judicial.
6. O caso concreto se refere ao programa televisivo Linha Direta: Justiça, que,
revisitando alguns crimes que abalaram o Brasil, apresentou, dentre alguns casos
verídicos que envolviam vítimas de violência contra a mulher, objetos de farta
documentação social e jornalística, o caso de Aida Curi, cujos irmãos são autores
da ação que deu origem ao presente recurso. Não cabe a aplicação do direito ao
esquecimento a esse caso, tendo em vista que a exibição do referido programa
não incorreu em afronta ao nome, à imagem, à vida privada da vítima ou de seus
familiares. Recurso extraordinário não provido.
8. Fixa-se a seguinte tese: “É incompatível com a Constituição a ideia de um
direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da
passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos
e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais. Eventuais
excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem
ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais - especialmente
os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em
geral - e das expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível”.
(RE n. 1.010.606, rel. Min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, julgado em 11/2/2021,
processo eletrônico, repercussão geral, mérito, DJe-096 divulg. 19/5/2021, public.
20/5/2021.)

3. No que diz respeito à controvérsia destes autos, relembro que se


circunscreve ao conflito aparente entre valores e direitos, todos, igualmente, de
estatura constitucional.
O choque aparente, é certo, tem origem numa realidade cada vez mais
dinâmica, que se revela em transformações sociais, culturais e tecnológicas,
que atribuem àqueles valores e direitos uma nova aparência, conferindo ao
homem e à vida em sociedade novas feições que o estático direito legislado tem
dificuldade de acompanhar.

510
Jurisprudência da QUARTA TURMA

Nessa ordem de ideias, o Judiciário tem sido, de maneira recorrente,


instado a resolver conflitos entre a liberdade de informação e de expressão e os
direitos inerentes à personalidade, todos de estatura constitucional.
Na hipótese, o aparente conflito tem sua nascente na opção eleita pela
própria Carta Magna em proteger valores por vezes antagônicos, representados,
de um lado, pelo legítimo interesse de “querer ocultar-se” e, de outro, pelo,
também legítimo, direito de “revelarem-se os fatos” e de “conhecer esses mesmos
fatos”.
Como se sabe, inúmeros precedentes das Cortes de Justiça já analisaram
casos de confronto entre publicações jornalísticas e alegadas ofensas aos direitos
da personalidade, tendo as soluções conferidas, quase sempre, ficado inseridas
em um contexto de ilicitude da publicação - em razão de conteúdo difamatório
ou inverídico -, contendo também um cenário de contemporaneidade da notícia.
Neste caso, o conflito entre a liberdade de informação e os direitos da
personalidade “incrementou-se” e desafiou o julgador a solucioná-lo com base
em uma nova arquitetura, que proporcionou a invocação de novos direitos,
hauridos que sejam dos já estabelecidos direitos à honra, à privacidade e à
intimidade, todos, diga-se uma vez mais, albergados constitucionalmente.
No caso ora em julgamento, recorde-se, a controvérsia se singulariza
pela ausência de contemporaneidade dos fatos noticiados, cuja divulgação,
segundo o autor da ação indenizatória, ora recorrido, trouxe à tona dramas já
administrados e resolvidos, assim como fez reascender juízo social impiedoso
quanto à sua índole, circunstâncias que lhe teriam causado abalo, do qual se
pleiteia a reparação.
Nesse passo, o autor busca o reconhecimento do direito de não ser
lembrado contra sua vontade, especificamente no tocante a fatos desabonadores,
de natureza criminal, nos quais se envolveu, principalmente por se tratar de
acusação da qual, posteriormente, fora inocentado.
4. O exame dessa questão, destarte, deve ser feito à luz do que a Suprema
Corte decidiu, com repercussão geral, no multicitado recurso extraordinário n.
1.010.606/RJ (caso chamado “Aída Cury”, também julgado por esta egrégia
Turma na mesma ocasião em que apreciou este recurso que ora se reexamina),
para, posteriormente, proceder-se à análise da coincidência ou não daquele
entendimento com o que foi alcançado por esta colenda Turma na apreciação do
recurso especial.

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 511


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Para tanto, penso mais acertado transcrever excertos fundamentais do voto


condutor do julgamento, de relatoria do ilustre Ministro Dias Toffoli, rogando
escusas antecipadas pela extensão:

II - Direito ao esquecimento: nomenclatura e elementos essenciais


II.1 – Nomenclatura
II. 2. Elementos essenciais do direito ao esquecimento
(a) Licitude da Informação
Começo destacando que, para fins de abordar o direito ao esquecimento, é
necessário apartar de sua abrangência as informações ilícitas, ou seja: é preciso
desconsiderar as informações inverídicas e as informações adquiridas ou utilizadas
contrariamente à lei.
Para a proteção contra informações inverídicas ou ilicitamente obtidas/utilizadas,
o ordenamento jurídico é farto, seja em âmbito penal, seja em âmbito cível.
Penalmente, tutela-se, por exemplo, a honra por meio de tipificação das
condutas de injúria, calúnia e difamação (arts. 138 a 140 do CP); pune-se a
divulgação de fatos inverídicos em âmbito eleitoral (art. 323 do Código Eleitoral) (...)
No âmbito cível, a par da previsão de indenização nos crimes contra a honra
(art. 953 do CC/02), inúmeras normas asseguram medidas para impedir ou fazer
cessar o comportamento ilícito dirigido ao nome ou à imagem (...)
No contexto digital, observa-se, em escala global, intensa movimentação
jurídica.
(...)
No Brasil, foi editado o Marco Civil da Internet (Lei n. 12.965/14).
(...)
Diferentemente, o que se invoca com o direito ao esquecimento é a proteção
jurídica para impedir a divulgação de fatos ou dados verdadeiros licitamente
obtidos, amparando-se na alegação, em essência, de que, pelo decurso do tempo,
as informações de outrora não guardariam relevância jurídica, ao passo que sua
ocultação (ou ocultação dos elementos pessoais dos envolvidos) melhor serviria aos
propósitos constitucionais, sobretudo à proteção dos direitos da personalidade.
Porém, como salientei, o ordenamento brasileiro é farto em dispositivos
voltados à proteção da pessoa, da personalidade e da privacidade humana
diante de divulgação ilícita (fato inverídico ou dado coletado/utilizado em
desconformidade com a lei).
(...)
Reafirmo, portanto, ser necessário esse recorte para melhor precisar o conceito
do direito ao esquecimento: as informações cuja comunicação se pretende obstar
devem ser lícitas.

512
Jurisprudência da QUARTA TURMA

Não basta, todavia, a licitude da informação para caracterizar o pretenso direito


ao esquecimento. No cerne da alegação em favor de um direito ao esquecimento
de fatos passados está a compreensão de que, não obstante se trate de fatos
verdadeiros, sua utilização temporalmente distante de sua ocorrência os tornaria
descontextualizados. É nesse aspecto que surge o segundo elemento definidor do
direito ao esquecimento: o decurso do tempo.
(b) Decurso do tempo: o aspecto temporoespacial
(...)
A pretensão ao direito ao esquecimento vincula-se, então, a um elemento
temporoespacial: a passagem do tempo seria capaz de tornar opacas as informações
no contexto espacial, a tal ponto que sua publicação não retrataria a completude dos
fatos nem a atual identidade dos envolvidos.
(...) neste voto, nos ateremos ao que aproxima as diferentes vertentes do direito
ao esquecimento, tendo em vista o interesse de quem o invoca de não vir a ser
confrontado por outros elementos de seu passado (informações ou dados) que se
alega não serem mais relevantes no presente.
(...)
Em conclusão, a partir desses elementos essenciais, podemos entender
o nominado direito ao esquecimento como a pretensão apta a impedir a
divulgação, seja em plataformas tradicionais ou virtual, de fatos ou dados
verídicos e licitamente obtidos, mas que, em razão da passagem do tempo,
teriam se tornado descontextualizados ou destituídos de interesse público
relevante.
É, então, sob tais elementos da pretensão, que, nestes autos, se deve apreciar a
aceitação ou não pelo ordenamento jurídico pátrio de um direito correspondente.
III. Existiria um direito fundamental ao esquecimento?
É possível identificar três posições sobre a suposta existência de um direito
fundamental ao esquecimento.
A primeira posição é a que reconhece existir um direito fundamental explícito.
A segunda posição é a que afirma haver um direito fundamental implícito,
decorrente, ora da dignidade humana, ora da privacidade, nada impedindo que
o Congresso Nacional venha a restringir ou ampliar seu suporte fático em cada
circunstância (...)
A terceira posição é a que não reconhece sua existência como direito
fundamental autônomo, mas que admite identificá-lo como integrante do suporte
fático de algum dos direitos fundamentais do art. 5º, inciso X (a intimidade, a vida
privada, a honra e a imagem das pessoas), com reflexos no direito ordinário.
Verifica-se, portanto, ser comum a todas as concepções a íntima associação do
direito ao esquecimento com os direitos da personalidade.

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 513


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

(...)
A meu ver, a resposta para tais questionamentos vai claramente no sentido da
inexistência no ordenamento jurídico brasileiro de um direito genérico com essa
conformação, seja expressa ou implicitamente.
O que existe no ordenamento são expressas e pontuais previsões em que
se admite, sob condições específicas, o decurso do tempo como razão para
supressão de dados ou informações.
Vide a previsão do Código de Defesa do Consumidor (art. 43, § 1º, da Lei n.
8.078/90) de que os cadastros de consumidores não podem “conter informações
negativas referentes a período superior a cinco anos”, ou, ainda, a previsão do
Código Penal (arts. 93 a 95) quanto à reabilitação do condenado, que “poderá ser
requerida, decorridos 2 (dois) anos do dia em que for extinta, de qualquer modo,
a pena ou terminar sua execução”, assegurando-se ao condenado “o sigilo dos
registros sobre o seu processo e condenação”. Ou, ademais, a previsão, quanto
ao universo digital, trazida pela Lei n. 12.965/14 (o Marco Civil da Internet), que
assegura como direito do usuário da rede a “exclusão definitiva dos dados pessoais
que tiver fornecido a determinada aplicação de internet a seu requerimento, ao
término da relação entre as partes”, ressalvadas apenas “as hipóteses de guarda
obrigatória de registros” (art. 7º, X).
Tais previsões, todavia, não configuram a pretensão do direito ao
esquecimento. Relacionam-se com o efeito temporal, mas não consagram um
direito a que os sujeitos não sejam confrontados quanto às informações do
passado. Desse modo, eventuais notícias que tenham sido formuladas – ao
tempo em que os dados e/ou as informações estiveram acessíveis – não são
alcançadas pelo efeito de ocultamento.
Elas permanecem passíveis de circulação se os dados nelas contidos tiverem sido,
a seu tempo, licitamente obtidos e tratados.
Não nego o impacto do tempo na percepção humana dos acontecimentos
que envolvem informações ou dados dos indivíduos, pois é certo que a mesma
informação ao tempo dos acontecimentos e anos após servirá, a cada divulgação,
a propósitos diversos. Porém, a meu ver, a passagem do tempo, por si só, não tem o
condão de transmutar a condição de uma publicação ou um dado nela contido de
lícita para ilícita.
(...)
A mudança promovida pelo tempo, porém, é de contexto social, não de fatos.
Esses se mantêm preservados e são, inclusive, objeto de estudo das ciências sociais,
tanto quanto os fenômenos da natureza são objeto das ciências naturais. E as
ciências sociais não se debruçam apenas sobre o tempo presente. Ao contrário, há
ciências que se dirigem, de modo especial, ao tempo passado. Há outras, por seu
turno, cujo objeto é exatamente o comportamento ou a psique humanos. De modo
especial, a essas últimas importa conhecer o sujeito: seus hábitos, sua vida, sua
história, seus atos.

514
Jurisprudência da QUARTA TURMA

Se não cogitamos apresentar o Sistema Solar sem indicar o Sol, como podemos
supor falar de fatos sem consideração ao comportamento humano?
Negar acesso a fatos ou dados simplesmente porque já passados é interferir, ainda
que indiretamente, na ciência, em sua independência e em seu progresso.
(...)
Entretanto, a verdade dos fatos e, no mesmo sentido, a busca por ela, nunca esteve
sob o jugo do tempo. São coisas distintas.
Não há, assim, que se confundir o cumprimento da ordem penal – do qual
pode decorrer eventual punibilidade, prescrição, anistia ou qualquer outro meio de
atendimento a suas normas -– com o intuito de divulgação dos fatos.
A reabilitação, por exemplo, é instituto penal, com requisitos específicos.
Uma vez atendidos, assegura-se ao condenado “o sigilo dos registros sobre o seu
processo e condenação”. Isso não implica, todavia, prejuízo ao conhecimento –
mesmo a posteriori – dos fatos criminosos eventualmente noticiados. A lógica não
se restringe ao âmbito penal, mas a toda ordem jurídica.
(...)
Ressalte-se que, quando se fala em verdade histórica, não se está apenas
falando em fatos atinentes a pessoas mais proeminentes da ordem social, mas
a todos os fatos que possam, de algum modo, compor o objeto de interesse das
ciências sociais ou mesmo das relações humanas.
Os homens, em suas relações, também possuem interesse em conhecer os fatos,
em apurar suas instituições e em rever seus acertos e erros como sociedade. A isso se
chama, comumente, de interesse público no conhecimento dos fatos.
Mas observe-se: é de potencial interesse público o que possa ser licitamente obtido
e divulgado. Desse modo, um dado que não possa ser objeto de divulgação não é, em
qualquer circunstância, dotado de interesse público.
Interesse público pressupõe licitude. E licitude implica respeito aos direitos da
personalidade. Nossa Constituição é rica em previsões protetivas dos direitos da
privacidade e de inviolabilidades do indivíduo.
(...)
Seguindo a autorização constitucional, o legislador brasileiro, em inúmeras
ocasiões, procedeu à ponderação entre direitos fundamentais na direção da
máxima proteção aos direitos da personalidade, restringindo, em alguma medida,
a liberdade de expressão.
O Código Penal tipificou as condutas dirigidas contra a honra nos tipos de
calúnia, injúria e difamação (arts. 138 a 145 do CP); no mesmo passo, o Código
Civil previu indenização em tais situações (art. 953 do CC/02). O mesmo Código
Civil, em seu art. 20, protege a imagem, dispondo que sua utilização pode ser
proibida e mesmo indenizada se atingir “a honra, a boa fama ou a respeitabilidade”

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 515


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do sujeito. O direito ao nome, em sua função de individuar a pessoa, encontra


resguardo nos arts. 16 a 19 do CC/02, assegurando-se, inclusive, que o nome
“não pode ser empregado por outrem em publicações ou representações que
a exponham ao desprezo público, ainda quando não haja intenção difamatória”
(art. 17). Adicionalmente, o art. 21 do CC/02 dispôs sobre a proteção à vida
privada da pessoa natural e, salvo disposição legal em contrário, todos esses
direitos da personalidade são “intransmissíveis e irrenunciáveis”.
(...)
Como se observa, portanto, há uma vasta proteção constitucional, legal e
jurisprudencial a todos os direitos da personalidade que independe do efeito do
tempo sobre o contexto fático em que inseridos.
O contexto fático tem sido preservado.
Tampouco, por fim, a passagem do tempo induz ao surgimento de um dever social
de perdão. Nenhuma lei pode estipular obrigações afetivas ou cognitivas. Ninguém,
assim, é obrigado a se desfazer de seu direito à informação para permitir a terceiros
uma vida livre do conhecimento de seus erros passados.
(...)
Eventualmente, destaco, o perdão, a compaixão e mesmo o exame de
consciência podem conduzir a uma conduta de esquecimento de fatos passados
ou ao reconhecimento do valor atual do indivíduo. Mas essa percepção,
conquanto possa ser estimulada pela lei, não pode ser imposta à custa da
proibição de veiculação de notícias (lícitas) em que conste a descrição do passado
(...)
Demonstrado, desse modo, que os direitos fundamentais de personalidade
encontram guarida constitucional e legal que não depende, em qualquer medida,
do direito ao esquecimento nem a esse se associa, importa considerar o espaço de
proteção normativa conferida aos dados pessoais na rede.
V. Violação ao direito constitucional da liberdade de expressão
(...)
A liberdade de expressão é um dos grandes legados da Carta Cidadã, resoluta
que foi em romper definitivamente com um capítulo triste de nossa história em
que esse direito – dentre tantos outros – foi duramente sonegado ao cidadão.
Graças a esse ambiente pleno de liberdade, temos assistido ao contínuo avanço
das instituições democráticas do país. Por tudo isso, a liberdade e os direitos dela
decorrentes devem ser defendidos e reafirmados firmemente.
Nesse cenário, também assume relevância o direito à informação, pois é a
partir dela que o cidadão reúne elementos para a formação de opinião e ideias.
Não por outra razão, a Constituição Federal de 1988, de conteúdo fortemente
democrático, em diversos momentos refere-se à liberdade de expressão, bem
como à liberdade de informação.

516
Jurisprudência da QUARTA TURMA

(...)
Nesse quadro, nota-se que um dos aspectos centrais do direito fundamental à
liberdade de expressão – aspecto esse que deve ser reforçado tanto mais democrática
for dada sociedade – é, que, como regra geral, não são admitidas restrições prévias ao
exercício dessa liberdade.
É certo, no entanto, que a liberdade de expressão deve ser exercida em harmonia
com os demais direitos e valores constitucionais.
Parafraseando o célebre juiz Oliver Wendell Holmes, grande defensor da liberdade
de expressão, o direito à manifestação do pensamento pode ceder nos casos que
impliquem perigo evidente e atual capaz de produzir males gravíssimos.
E em que situações se identificaria esse perigo? A meu ver, a manifestação do
pensamento, por mais relevante que seja, não deve respaldar a alimentação do ódio,
da intolerância e da desinformação.
Essas situações representam o exercício abusivo desse direito, por atentarem
sobretudo contra o princípio democrático, que compreende o equilíbrio dinâmico
entre as opiniões contrárias, o pluralismo, o respeito às diferenças e a tolerância.
Questiona-se, então, se a manifestação do pensamento (inclusive em âmbito
digital) pode ser restringida se dela decorrer a divulgação de fatos da vida de um
indivíduo que lhe causem profundo desgosto ou de dados que ele não deseje ver
acessados.
Ao questionamento respondo me valendo de definição de autoria do Ministro
Edson Fachin, em tudo pertinente ao caso e que sintetiza a primazia da liberdade de
expressão, ao conceituá-la no sentido de que “representa tanto o direito de não ser
arbitrariamente privado ou impedido de manifestar seu próprio pensamento quanto
o direito coletivo de receber informações e de conhecer a expressão do pensamento
alheio” (ADI n. 2.566, Rel. p/ o ac. Min. Edson Fachin, Tribunal Pleno, DJe de
23/10/18).
A liberdade de expressão protege não apenas aquele que comunica, mas
também a todos os que podem dele receber informações ou com ele partilhar
os pensamentos.
A ponderação, assim, na pretensão ao direito ao esquecimento não se faz
apenas entre o interesse do comunicante, de um lado, e o do indivíduo que
pretende ver tornados privados dados ou fatos de sua vida, de outro. Envolve
toda a coletividade, que poderá ser privada de conhecer os fatos em toda a sua
amplitude.
Embora a pretensão inserta no direito ao esquecimento não corresponda ao
intuito de propalar uma notícia falsa, ao pretender o ocultamento de elementos
pessoais constantes de informações verdadeiras em publicações lícitas, ela finda
por conduzir notícias fidedignas à incompletude, privando seus destinatários de
conhecer, na integralidade, os elementos do contexto informado.

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 517


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VI. O necessário diálogo constitucional


(...)
Os valores em exame (liberdade de expressão e privacidade/proteção de
dados) são especialmente caros à ordem jurídica, especialmente na sociedade de
informação, e requerem sempre a concordância prática de seus comandos.
Mas é preciso conhecer os critérios de precedência nessa ponderação.
(...)
No mesmo sentido, o Ministro Roberto Barroso fez questão de destacar que
“a liberdade de expressão, na democracia brasileira, deve ser tratada como uma
liberdade preferencial”, o que, esclareceu, “não significa hierarquizá-la em relação
a outros direitos fundamentais”. E acrescentou:
“[D]izer-se que a liberdade de expressão é um direito ou uma liberdade
preferencial significa, em primeiro lugar e acima de tudo, uma transferência de
ônus argumentativo. Quem desejar afastar a liberdade de expressão é que tem que
ser capaz de demonstrar as suas razões, porque, prima facie, em princípio, é ela, a
liberdade de expressão, que deve prevalecer”
(...)
Tanto quanto possível, portanto, deve-se priorizar: o complemento da
informação, em vez de sua exclusão; a retificação de um dado, em vez de sua
ocultação; o direito de resposta, em lugar da proibição ao posicionamento; o
impulso ao desenvolvimento moral da sociedade, em substituição ao fomento
às neblinas históricas ou sociais. Máxime em sistemas jurídicos com acanhada
tradição democrática, essa ordem de precedência deve ser observada.
(...)
A preocupação constante da declaração sintetiza o que ao longo deste voto fiz
consignar: a previsão ou aplicação de um direito ao esquecimento afronta
a liberdade de expressão. A existência de um comando jurídico que eleja a
passagem do tempo como restrição à divulgação de informação verdadeira,
licitamente obtida e com adequado tratamento dos dados nela inseridos,
precisa estar prevista em lei, de modo pontual, clarividente e sem anulação da
liberdade de expressão.
Não pode, ademais, ser fruto apenas de ponderação judicial.
Parece-me que admitir um direito ao esquecimento seria uma restrição excessiva
e peremptória às liberdades de expressão e de manifestação de pensamento e ao
direito que todo cidadão tem de se manter informado a respeito de fatos relevantes
da história social.
Ademais, tal possibilidade equivaleria a atribuir, de forma absoluta e em abstrato,
maior peso aos direitos à imagem e à vida privada, em detrimento da liberdade
de expressão, compreensão que não se compatibiliza com a ideia de unidade da
Constituição.

518
Jurisprudência da QUARTA TURMA

(...)
Entendo, assim, que o ordenamento jurídico brasileiro está repleto de
previsões constitucionais e legais voltadas à proteção da personalidade, aí
inserida a proteção aos dados pessoais, com repertório jurídico suficiente a que
essa norma fundamental se efetive em consagração à dignidade humana.
Em todas essas situações legalmente definidas, é cabível a restrição, em alguma
medida, à liberdade de expressão, sempre que afetados outros direitos fundamentais,
mas não como decorrência de um pretenso e prévio direito de ver dissociados fatos ou
dados por alegada descontextualização das informações em que inseridos, por força
da passagem do tempo.
Não há dúvidas de que é preciso buscar a proteção dos direitos da
personalidade pela via da responsabilização diante do abuso no exercício da
liberdade de expressão e pela ampliação da segurança na coleta e no tratamento
dos dados, a fim de se evitarem os acessos ilegais, as condutas abusivas e a
concentração do poder informacional.
Mas não se protegem informações e dados pessoais com obscurantismo.
VII - Proposta de tese
“É incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim
entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de
fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação
social analógicos ou digitais.
Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de
informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais
- especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da
personalidade em geral - e das expressas e específicas previsões legais nos âmbitos
penal e cível”
Conforme destaquei ao longo deste voto, não reputo existente no ordenamento
jurídico brasileiro proteção constitucional ao direito ao esquecimento.
Desse modo, tenho que se afigura ilegítima a invocação pelos recorrentes de
suposto direito ao esquecimento para obstar a divulgação dos fatos que, embora
constituam uma tragédia familiar, infelizmente, são verídicos, compõem o rol dos
casos notórios de violência na sociedade brasileira e foram licitamente obtidos à
época de sua ocorrência, não tendo o decurso do tempo, por si só, tornado ilícita
ou abusiva sua (re) divulgação – ainda que sob nova roupagem jornalística –, sob
pena de se restringir, desarrazoadamente, o exercício pela ora recorrida do direito à
liberdade de expressão, de informação e de imprensa.
De outra perspectiva, dissociada da pretensão de esquecimento, também não
vislumbro abuso na forma adotada para a comunicação.
Como salientei ao longo deste voto, tenho que a veracidade da informação
e a licitude da obtenção e do tratamento dos dados pessoais importam

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 519


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significativamente na análise da legalidade de sua utilização. E, no caso concreto,


os fatos narrados no programa, lamentavelmente, são verídicos, sendo as imagens
reais usadas na exibição fruto de obtenção legítima pela recorrida ao tempo dos
acontecimentos.
(...)
Ademais, todos os crimes são de interesse da sociedade, mas há aqueles em
que, por seu contexto de brutalidade, tornam-se objeto de documentação social e
jornalística, sendo sua descrição e seus contornos alvo de farto registro. Tais registros
(em fotos, livros, reportagens da época e testemunhos) não são, em princípio,
violadores da honra ou da imagem dos envolvidos, mesmo no que toca à vítima.
Eventual lucro, ademais, na divulgação dos fatos não deve ser entendido, por si,
como violador dos direitos de personalidade. Essa é a atividade comercial precípua
da recorrida, e a obtenção de recursos por meio dela não é, em si, condenável,
nem lhe impõe ordem de indenização, pois, nos termos do art. 188, I, do CC/02,
“não constituem atos ilícitos os praticados (…) no exercício regular de um direito
reconhecido”.
(...)
Ante o exposto, voto pelo não provimento do recurso extraordinário e pelo
indeferimento do pedido de reparação de danos formulado contra a recorrida.

5. Com base na transcrição acima destacada e, principalmente, na leitura


da tese que sintetiza o julgamento do Supremo Tribunal, percebe-se, de maneira
clara, que as conclusões daquela Corte resultaram na identificação de duas situações
distintas, tendo sido previstas para cada qual, naturalmente, soluções diferenciadas
para o aparente conflito entre os valores e os direitos que gravitam a questão.
5.1. Com efeito, após detido estudo e vigoroso debate acerca da matéria, o
Tribunal constitucional concluiu pela ilegitimidade da invocação de um suposto
direito ao esquecimento, com o objetivo de “obstar a divulgação dos fatos que,
embora constituam uma tragédia familiar, infelizmente, são verídicos, compõem
o rol dos casos notórios de violência na sociedade brasileira e foram licitamente
obtidos à época de sua ocorrência, não tendo o decurso do tempo, por si só,
tornado ilícita ou abusiva sua (re) divulgação – ainda que sob nova roupagem
jornalística –, sob pena de se restringir, desarrazoadamente, o exercício pela ora
recorrida do direito à liberdade de expressão, de informação e de imprensa”.
Noutras palavras, em um primeiro momento, o STF concluiu que o
ordenamento jurídico brasileiro não alberga a pretensão de determinado sujeito
de impedir a divulgação de fatos verídicos dos quais tenha sido protagonista
ou com os quais tenha relação íntima, que sejam de relevância social, pelo

520
Jurisprudência da QUARTA TURMA

simples argumento de que aquela divulgação lhe é desfavorável, causa-lhe


descontentamento ou não lhe é conveniente e além de ter transcorrido relevante
intervalo de tempo.
Para essas situações, enfatizou o preclaro relator, Ministro Dias Toffoli e os
votos de peso que o seguiram em entendimento que o direito à informação e a
liberdade de imprensa assumem posição preponderante em relação à intimidade,
à imagem, à vida privada.
Por oportuno, deve ser destacado que, mesmo diante da conclusão posta,
o cuidadoso e sensível Ministro Relator não deixou de asseverar: “Há que se
ter, por certo, um adicional cuidado no exame do resguardo dos direitos da
personalidade das vítimas de crimes (e, nesse ponto, incluo seus familiares, tão
duramente atingidos pelas consequências do delito), sobretudo no que tange aos
crimes bárbaros que ainda assolam nossa sociedade”.
Essa a primeira situação destacada na Tese (Tema n. 786) de repercussão
geral.
5.2. Em outra perspectiva, ainda que o eminente Relator tenha-
se dissociado da pretensão de um direito autônomo ao esquecimento, ficou
estabelecida, na segunda parte da tese fixada, orientação de idêntico valor
vinculante, por óbvio, no sentido de que a forma adotada para a comunicação
de determinados fatos, mesmo os de relevante valor social e interesse público, assim
como a “veracidade da informação e a licitude da obtenção e do tratamento dos dados
pessoais importam significativamente na análise da legalidade de sua utilização”.
Nesse passo, a depender das nuances da hipótese concreta, podem evidenciar o exercício
leviano, porque abusivo, dos direitos de informação, expressão e liberdade de imprensa;
e, se assim forem reconhecidos e, nessa extensão, violarem direitos da personalidade, o
controle dessa violação será imperativo, destacadamente, caso a caso.
Referida constatação foi muito bem sintetizada em passagem do voto
apresentado pelo eminente Ministro Alexandre de Moraes que, em conclusão, é
transcrita (pp. 138 e 139):

Independentemente - e logicamente para vítima, familiares, sempre é muito


triste e trágico - da gravidade da situação ou do sofrimento causado ou mesmo
do lapso temporal transcorrido, desde que - repito, aquele substrato que disse
que seria possível retirar de todos esses julgados - os fatos pretéritos tenham sido
narrados no presente de maneira séria, lícita, objetiva, fidedigna e respeitosa, não
é possível apagá-los como se nunca tivessem existido.

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 521


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Todos esses julgamentos têm algo em comum, além da necessidade de


compatibilidade interpretativa entre a liberdade de expressão, a dignidade da pessoa
humana, a intimidade e privacidade; a exigência de análise específica – caso a
caso – de eventuais abusos nas divulgações, da necessidade de atualização dos
dados, da importância dos fatos, do desvio de finalidade ou na exploração ilícita das
informações.
A solução para essa equação me parece ser a aplicação do binômio
constitucional consagrado no artigo 5º da Constituição Federal em relação à
liberdade de expressão: Liberdade e Responsabilidade
(...)
O positivo, eu me manifesto, eu divulgo o que eu bem entender, só que com
responsabilidade, sob pena de poder ser acionado cível e criminalmente. Agora,
não é possível, a Constituição não autoriza, no aspecto negativo, que o Estado,
ilegitimamente, consagre uma intervenção prévia, uma censura prévia. O
reconhecimento de um genérico, abstrato e amplo direito ao esquecimento
configuraria, a meu ver, censura prévia.
(...)
O reconhecimento amplo e genérico do “direito ao esquecimento” traz
presente o traço marcante da censura prévia, com seu caráter preventivo e
abstrato, buscando interditar o conteúdo que se pretende futuramente expressar,
atribuindo-lhe supostas repercussões adversas que justificariam a restrição, sem a
análise caso a caso das circunstâncias e características próprias.

5.3. Em conclusão, a Suprema Corte, ao fixar a tese, esclareceu que o


suposto direito ao esquecimento - entendido naquele julgado (a despeito da
inconformidade deste conceito com o da doutrina) como a busca da proteção
jurídica para impedir a divulgação de fatos ou dados verdadeiros licitamente
obtidos, amparando-se na alegação, em essência, de que, pelo decurso do tempo,
as informações de outrora não guardariam relevância jurídica, ao passo que
sua ocultação (ou ocultação dos elementos pessoais dos envolvidos) melhor
serviria aos propósitos constitucionais, sobretudo à proteção dos direitos da
personalidade -, esse direito autônomo não seria compatível com a Constituição.
Todavia, a segunda parte da tese deixa nítido que, a depender das nuances da
hipótese concreta, ficando evidenciado o exercício leviano, porque abusivo, dos
direitos de informação, expressão e liberdade de imprensa e, nessa extensão,
assim reconhecidos, se eles violarem direitos da personalidade, o controle
judicial dessa violação será imperativo, destacadamente, caso a caso.
6. Diante desse cenário, para cumprir com o adequado cotejo, indispensável
à definição da necessidade de retratação dos termos do julgamento do recurso
522
Jurisprudência da QUARTA TURMA

especial ou da ratif icação da solução alcançada, por unanimidade, por esta


Quarta Turma, caso verificada a compatibilidade de entendimentos de ambas as
Cortes, na forma do que dispõe expressamente o art. 1.040, inciso II, do Código
de Processo Civil, passo à reprodução de trechos do voto condutor capazes de
sintetizar o que ficou assentado por este Superior Tribunal na ocasião daquela
sessão de julgamento.
De pronto, merece destaque o fato de esta Turma, ao delimitar a questão
controvertida, não ter-se prendido a denominações e institutos, mas, de maneira
acertada, a meu ver, preocupou-se com a circunscrição da questão jurídica que haveria
de ser solucionada. Veja-se, nesse sentido:

4. Nesse passo - e já avançando para a questão de fundo -, a controvérsia


ora instalada nos presentes autos diz respeito a conhecido conflito de valores e
direitos, todos acolhidos pelo mais alto diploma do ordenamento jurídico, mas que
as transformações sociais, culturais e tecnológicas encarregaram-se de lhe atribuir
também uma nova feição, confirmando a máxima segundo a qual o ser humano e a
vida em sociedade são bem mais inventivos que o estático direito legislado.
(...)
Agora, uma vez mais, o conflito entre liberdade de informação e direitos
da personalidade ganha a tônica da modernidade, analisado por outro prisma,
desafiando o julgador a solucioná-lo a partir de nova realidade social, ancorada
na informação massificada que, diariamente, se choca com a invocação de novos
direitos, hauridos que sejam dos já conhecidos direitos à honra, à privacidade e à
intimidade, todos eles, por sua vez, resultantes da proteção constitucional conferida à
dignidade da pessoa humana.
Nos presentes autos, o cerne da controvérsia transita exatamente na ausência de
contemporaneidade da notícia de fatos passados, a qual, segundo o entendimento do
autor, reabriu antigas feridas já superadas e reacendeu a desconfiança da sociedade
quanto à sua índole, circunstância que lhe teria causado abalo cuja reparação ora se
pleiteia.

Na sequência, no que de perto interessa, passou-se à análise das


circunstâncias, a fim de encontrar-lhes solução jurídica adequada:

Portanto, a seguir, analisa-se a possível adequação (ou inadequação) do


mencionado direito ao esquecimento ao ordenamento jurídico brasileiro,
especificamente para o caso de publicações na mídia televisiva, porquanto o
mesmo debate ganha contornos bem diferenciados quando transposto para
internet, que desafia soluções de índole técnica, com atenção, por exemplo, para a
possibilidade de compartilhamento de informações e circulação internacional do
conteúdo, o que pode tangenciar temas sensíveis, como a soberania dos Estados-
nações.

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 523


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

(...)
Porém, sem nenhuma dúvida, mais grave que a venda ou a entrega graciosa
da privacidade à arena pública, como uma nova mercadoria para o consumo da
coletividade, é sua expropriação contra a vontade do titular do direito, por vezes
um anônimo que pretende assim permanecer.
(...)
Portanto, diante dessas preocupantes constatações acerca do talvez inevitável
- mas Admirável - Mundo Novo do hiperinformacionismo, o momento é de
novas e necessárias reflexões, das quais podem mesmo advir novos direitos ou novas
perspectivas sobre velhos direitos revisitados.
8. Outro aspecto a ser analisado é a aventada censura à liberdade de imprensa.
(...)
O novo cenário jurídico subjacente à atividade da imprensa apoia-se no fato
de que a Constituição Federal, ao proclamar a liberdade de informação e de
manifestação do pensamento, assim o faz traçando as diretrizes principiológicas
de acordo com as quais essa liberdade será exercida, reafirmando, assim como a
doutrina sempre afirmou, que os direitos e garantias protegidos pela Constituição,
em regra, não são absolutos.
Desse modo, depois de a Carta da República afirmar, no seu art. 220, que “[a]
manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer
forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição”, logo cuida de explicitar
alguns princípios norteadores dessa liberdade, como a inviolabilidade da intimidade,
vida privada, honra e imagem das pessoas (art. 220, § 1º). Na mesma direção, como
que o § 3º do art. 222, em alguma medida, dirigisse o exercício de tal liberdade,
afirma-se que “[os] meios de comunicação social eletrônica, independentemente
da tecnologia utilizada para a prestação do serviço, deverão observar os princípios
enunciados no art. 221”, princípios dos quais se destaca o “respeito aos valores éticos e
sociais da pessoa e da família” (inciso IV).
(...)
Vale dizer, o cenário protetivo da atividade informativa que atualmente é extraído
diretamente da Constituição converge para a liberdade de “expressão, da atividade
intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou
licença” (art. 5º, inciso IX), mas também para a inviolabilidade da “intimidade, vida
privada, honra e imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano
material ou moral decorrente de sua violação” (art. 5º, inciso X).
Nesse passo, a explícita contenção constitucional à liberdade de informação,
fundada na inviolabilidade da vida privada, intimidade, honra, imagem e, de
resto, nos valores da pessoa e da família, prevista no art. 220, § 1º, art. 221 e no
§ 3º do art. 222 da Carta de 88, parece sinalizar que, no conflito aparente entre
esses bens jurídicos de especialíssima grandeza, há, de regra, uma inclinação ou

524
Jurisprudência da QUARTA TURMA

predileção constitucional para soluções protetivas da pessoa humana, embora o


melhor equacionamento deva sempre observar as particularidades do caso
concreto.
(...)
A cláusula constitucional da dignidade da pessoa humana garante que o
homem seja tratado como sujeito cujo valor supera ao de todas as coisas criadas
por ele próprio, como o mercado, a imprensa e até mesmo o Estado, edificando um
núcleo intangível de proteção oponível erga omnes, circunstância que legitima,
em uma ponderação de valores constitucionalmente protegidos, sempre em vista
os parâmetros da proporcionalidade e razoabilidade, que algum sacrifício possa ser
suportado, caso a caso, pelos titulares de outros bens e direitos.
(...)
Com efeito, no conflito entre a liberdade de informação e direitos da personalidade
- aos quais subjaz a proteção legal e constitucional da pessoa humana -, eventual
prevalência pelos segundos, após realizada a necessária ponderação para o
caso concreto, encontra amparo no ordenamento jurídico, não consubstanciando,
em si, a apontada censura vedada pela Constituição Federal de 1988.
(...)
9.1. Não há dúvida de que a história da sociedade é patrimônio imaterial do povo
e nela se inserem os mais variados acontecimentos e personagens capazes de revelar,
para o futuro, os traços políticos, sociais ou culturais de determinada época.
Assim, um crime, como qualquer fato social, pode entrar para os arquivos da
história de uma sociedade e deve ser lembrado por gerações futuras por inúmeras
razões. É que a notícia de um delito, o registro de um acontecimento político, de
costumes sociais ou até mesmo de fatos cotidianos (sobre trages de banho, por
exemplo), quando unidos, constituem um recorte, um retrato de determinado
momento e revelam as características de um povo na época retratada.
Nessa linha de raciocínio, a recordação de crimes passados pode significar
uma análise de como a sociedade - e o próprio ser humano - evolui ou regride,
especialmente no que concerne ao respeito por valores éticos e humanos, assim
também qual foi a resposta dos aparelhos judiciais ao fato, revelando, de certo modo,
para onde está caminhando a humanidade e a criminologia.
(...)
O que se espera é mesmo que as futuras gerações, por intermédio do registro
histórico de crimes presentes e passados, experimentem idêntico sentimento de
evolução cultural, quando, na posteridade, se falar em Chacina da Candelária,
Chacina do Carandiru, Massacre de Realengo, Doroty Stang, Galdino Jesus dos
Santos (Índio Galdino-Pataxó), Chico Mendes, Zuzu Angel, Honestino Guimarães
ou Vladimir Herzog.
(...)

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 525


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A historicidade da notícia jornalística, todavia, em se tratando de jornalismo


policial, há de ser vista com cautela por razões bem conhecidas por todos.
Há, de fato, crimes históricos e criminosos famosos, mas também há
crimes e criminosos que se tornaram artificialmente históricos e famosos,
obra da exploração midiática exacerbada e de um populismo penal satisfativo
dos prazeres primários das multidões, que simplifica o fenômeno criminal às
estigmatizadas figuras do “bandido” vs. “cidadão de bem”. No ponto, faz-se
necessário desmistificar a postura da imprensa no noticiário criminal, a qual -
muito embora seja uma instituição depositária de caríssimos valores democráticos
- não é movida por um desinteressado compromisso social de combate ao crime.
(..)
Com efeito, a historicidade de determinados crimes por vezes é edificada à custa
das mencionadas vicissitudes, e, por isso, penso que a historicidade do crime não
deve constituir óbice em si intransponível ao reconhecimento de direitos como o
vindicado nos presentes autos. Na verdade, a permissão ampla e irrestrita a que um
crime e as pessoas nele envolvidas sejam retratados indefinidamente no tempo
– a pretexto da historicidade do fato – pode significar permissão de um segundo
abuso à dignidade humana, simplesmente porque o primeiro já fora cometido no
passado.
(...)
Portanto, a questão da historicidade do crime, embora relevante para o desate
de controvérsias como a dos autos, pode ser ponderada caso a caso, devendo ser
aferida também a possível artificiosidade da história criada na época.
(...)
Por outro lado, dizer que sempre e sempre o interesse público na divulgação de
casos judiciais deve prevalecer sobre a privacidade ou intimidade dos envolvidos
pode confrontar a própria letra da Constituição, que prevê solução exatamente
contrária, ou seja, de sacrifício da publicidade (art. 5º, inciso LX):
(...)
A solução que harmoniza esses dois interesses em conflito é a preservação
da pessoa, com a restrição à publicidade do processo, tornando pública apenas a
resposta estatal aos conflitos a ele submetidos, dando-se publicidade da sentença
ou do julgamento, nos termos do art. 155 do Código de Processo Civil e art. 93,
inciso IX, da Constituição Federal.
10. Cabe agora enfrentar a tese de aplicação do direito ao esquecimento no direito
brasileiro.
(...)
Em essência, o que se propõe aqui é, a um só tempo, reafirmar essa máxima,
mas fazer acerca dela uma nova reflexão, que conduz à conclusão de que essa

526
Jurisprudência da QUARTA TURMA

assertiva, na verdade, é de mão única, e a recíproca não é verdadeira. Embora


a notícia inverídica seja um obstáculo à liberdade de informação, a veracidade da
notícia não confere a ela inquestionável licitude, muito menos transforma a liberdade
de imprensa em um direito absoluto e ilimitado.
Nesse ponto, a verossimilhança da informação é apenas um, mas não o único,
requisito interno do exercício da liberdade de imprensa.
(...)
Se é assim, o interesse público que orbita o fenômeno criminal tende a desaparecer
na medida em que também se esgota a resposta penal conferida ao fato criminoso,
a qual, certamente, encontra seu último suspiro com a extinção da pena ou com a
absolvição, ambas consumadas irreversivelmente.
(...)
Após essa vida útil da informação, seu uso só pode ambicionar, ou um interesse
histórico, ou uma pretensão subalterna, estigmatizante, tendente a perpetuar no
tempo as misérias humanas.
Não se pode, pois, nesses casos, permitir a eternização da informação.
(...)
11. Voltando-me para o caso concreto, julgado na mesma assentada com o
REsp n. 1.335.153/RJ, não tenho dúvida em manter o acórdão ora hostilizado.
A despeito de a Chacina da Candelária ter se tornado – com muita razão –
um fato histórico, que expôs as chagas do País ao mundo, tornando-se símbolo
da precária proteção estatal conferida aos direitos humanos da criança e do
adolescente em situação de risco, o certo é que a fatídica história seria bem
contada e de forma fidedigna sem que para isso a imagem e o nome do autor
precisassem ser expostos em rede nacional.
Nem a liberdade de imprensa seria tolhida nem a honra do autor seria
maculada, caso se ocultassem o nome e a fisionomia do recorrido, ponderação de
valores que, no caso, seria a melhor solução ao conflito.
Muito embora tenham as instâncias ordinárias reconhecido que a reportagem
mostrou-se fidedigna com a realidade, a receptividade do homem médio brasileiro
a noticiários desse jaez é apta a reacender a desconfiança geral acerca da índole do
autor, o qual, certamente, não teve reforçada sua imagem de inocentado, mas sim a
de indiciado.
No caso, permitir nova veiculação do fato, com a indicação precisa do nome e
imagem do autor, significaria a permissão de uma segunda ofensa à sua dignidade,
só porque a primeira já ocorrera no passado, uma vez que, como bem reconheceu
o acórdão recorrido, além do crime em si, o inquérito policial consubstanciou uma
reconhecida “vergonha” nacional à parte.
(...)

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 527


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Deveras, os valores sociais ora cultuados conduzem a sociedade a uma


percepção invertida dos fatos, o que gera também uma conclusão às avessas:
antes de enxergar um inocente injustamente acusado, visualiza um culpado
acidentalmente absolvido.

7. A partir das análises expostas, constata-se que o entendimento desta


Casa sobre a questão controvertida destes autos está em consonância com que
apresentado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE n. 1.010.606/RJ,
levando, a meu juízo, à ratificação do acórdão proferido unanimemente por esta
egrégia Turma.
Com efeito, cumpre registrar a indiscutível singularidade da questão em
apreço, que se revela na natureza casuística das análises, singularidade refletida
pela própria tese firmada pelo Supremo Tribunal Federal, que determina a
realização do melhor direito, caso a caso, pelos julgadores competentes.
Assim, não bastasse a literalidade da segunda parte da tese apresentada
(Tema n. 786/STF), percebe-se que os pressupostos que alicerçaram o
entendimento do Supremo Tribunal Federal são absolutamente coincidentes
com aqueles nos quais se estruturou a decisão tomada no recurso especial aqui
decidido, justificando-se, como dito, a confirmação do julgado proferido por este
colegiado.
Aliás, faz-se mister ressaltar que a coincidência das premissas consideradas
por ambas as Casas de Justiça evidencia-se no fato de que, no julgamento do
REsp n. 1.335.153/RJ, caso “Aída Curi”, exatamente o que serviu de paradigma
para a fixação da Tese no Tema 786, este Superior Tribunal alcançou, quando da
realização da subsunção dos legítimos pressupostos no caso concreto, a mesma
solução encontrada pela Suprema Corte, não reconhecendo, naquela hipótese,
na verificação dos valores e direitos em aparente conflito, violação de direitos
da personalidade ou abuso de exercício dos direitos de informação e expressão.
Assim como a Suprema Corte, naquele caso não houve acolhimento da tese
indenizatória.
É que, da mesma forma, no caso em exame, não há falar-se em retratação,
uma vez que, conforme análise pormenorizada dos fatos e julgamento desta Turma,
constatou-se exatamente a situação abusiva referida pelo Supremo, situação para a
qual aquele Tribunal determinou: em sendo constatado o excesso na divulgação de
fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação
social analógicos ou digitais, proceda o julgador competente ao estancamento da
violação, com base nas legítimas formas previstas pelo ordenamento.

528
Jurisprudência da QUARTA TURMA

O excesso e o ataque aos direitos fundamentais do autor vieram bem


sintetizados nesta parte do voto condutor: “No caso, permitir nova veiculação do
fato, com a indicação precisa do nome e imagem do autor, significaria a permissão de
uma segunda ofensa à sua dignidade, só porque a primeira já ocorrera no passado, uma
vez que, como bem reconheceu o acórdão recorrido, além do crime em si, o inquérito
policial consubstanciou uma reconhecida ‘vergonha’ nacional à parte”.
Ou seja, mesmo tendo sido absolvido de forma unânime pelo Tribunal do
Júri e depois de ter passado por uma verdadeira via crucis para se restabelecer,
o autor, apesar de advertir a emissora da gravidade da situação, ainda assim
foi novamente envolvido como um dos possíveis autores do bárbaro crime da
“chacina da Candelária” e foi assim retratado no programa.
Foi então mantida a indenização de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais),
como reparação pelo dano moral, o que penso ser acertado.
8. Por fim, ressalto, pela indiscutível relevância, que pontos específicos dessa
“grande questão”, tais como os anunciados pela Lei Geral de Proteção de Dados
Pessoais (Lei n. 12.695/2014), não se apresentaram a esta Corte para a devida
interpretação das situações que, em torno deles, por certo, se desenvolverão.
Nessa linha, destaco, a título exemplificativo, a previsão do direito à
eliminação dos dados, independentemente de seu tratamento ter sido precedido
do consentimento do titular (art. 18, VI) e ainda que condicionada à ordem
judicial, capaz de tornar indisponível conteúdo considerado infringente de
direitos da personalidade (art. 19).
É certo que a preocupação dos dispositivos citados é a garantia da
autodeterminação informacional, consistente no direito pessoal de determinar que
dado pessoal será divulgado, para quem e com qual propósito. Nessa esteira, é
intuitivo prever a potencialidade de aquele direito, basilar no regime de proteção
de dados pessoais brasileiro e, igualmente, no regime europeu, contundir-se com
direitos nobres, tais como as liberdades de comunicação (expressão, informação,
imprensa e radiodifusão), constitucionalmente protegidas, como reiteradamente
afirmado.
Dveras, institutos tais como a autodeterminação informacional e a correlata
prerrogativa de eliminação de dados merecerão das Cortes de Justiça análise
comprometida e direcionada dos desdobramentos de sua interação com os já
consolidados contornos do ordenamento jurídico pátrio.
9. Ante o exposto, voto no sentido de se ratificarem os termos do julgamento
do recurso especial proferido pela colenda Quarta Turma, mantendo a negativa

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 529


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

de provimento ao recurso, porquanto os fundamentos ali adotados encontram-


se em consonância com a segunda parte da tese vinculante da Suprema Corte.
É o voto.

VOTO VENCIDO

O Sr. Ministro Raul Araújo: Relembro o caso reportando-me ao bem


lançado relatório do eminente Ministro Luis Felipe Salomão, com destaques aqui
negritados:

1. Jurandir Gomes de França, ora recorrido, ajuizou ação de reparação de


danos morais em face de Globo Comunicações e Participações S.A., ora
recorrente, aduzindo que a ré o procurou com o intuito de entrevistá-lo em
programa televisivo (Linha Direta - Justiça), que teria como tema evento
trágico ocorrido na cidade do Rio de Janeiro, consistente em uma série
de homicídios ocorridos em 23 de julho de 1993, evento mundialmente
conhecido como Chacina da Candelária. O autor teria sido um dos indiciados
como coautor/partícipe do crime, mas, após julgamento pelo Tribunal do
Júri, fora absolvido por negativa de autoria, pela unanimidade dos membros
do Conselho de Sentença. Na ocasião, afirmou que teria recusado a entrevista e
mencionado o desinteresse em ter sua imagem exposta em rede nacional. Em
junho do ano de 2006, o programa foi ao ar, com referência ao autor como
um dos envolvidos no evento chacina.
Entendeu o ora recorrido que a transmissão levou a público situação que
já havia superado, reacendendo na comunidade onde reside a imagem de
chacinador e o ódio social, ferindo, assim, seu direito à paz, anonimato e
privacidade, com prejuízos diretos também a seus familiares.
Salientou que a exposição de sua imagem e nome no mencionado
programa foi ilícita e causou-lhe intenso abalo moral. Nessa extensão, pleiteou
indenização no valor de 300 (trezentos) salários mínimos.
O juízo de piso, sopesando, de um lado, o interesse público da notícia
acerca de “evento traumático da história nacional” e que repercutiu “de forma
desastrosa na imagem do país junto à comunidade internacional”, e, de outro,
o “direito ao anonimato e ao esquecimento” do autor, entendeu por bem
mitigar o segundo, julgando improcedente o pedido indenizatório (fls. 130-137).
Em apelação, a sentença foi reformada, por maioria, nos termos da seguinte
ementa (fls. 195-196):

Apelação. Autor que, acusado de envolvimento na Chacina da


Candelária, vem a ser absolvido pelo Tribunal do Júri por unanimidade.

530
Jurisprudência da QUARTA TURMA

Posterior veiculação do episódio, contra sua vontade expressa, no


programa Linha Direta, que declinou seu nome verdadeiro e reacendeu na
comunidade em que vivia o autor o interesse e a desconfiança de todos.
Conflito de valores constitucionais. Direito de Informar e Direito de Ser
Esquecido, derivado da dignidade da pessoa humana, prevista no art.
1º, III, da Constituição Federal.
I - O dever de informar, consagrado no art. 220 da Carta de 1988,
faz-se no interesse do cidadão e do país, em particular para a formação da
identidade cultural deste último.
- Constituindo os episódios históricos patrimônio de um
povo, reconhece-se à imprensa o direito/dever de recontá-los
indefinidamente, bem como rediscuti-los, em diálogo com a sociedade
civil.
- Do Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana, e
do direito que tem todo cidadão de alcançar a felicidade, restringe-se a
informação, contudo, no que toca àqueles que, antes anônimos, foram
absolvidos em processos criminais e retornaram ao esquecimento.
- Por isto, se o autor, antes réu, viu-se envolvido em caráter meramente
lateral e acessório, em processo do qual foi absolvido, e se após este voltou
ao anonimato, e ainda sendo possível contar a estória da Chacina da
CandeIária sem a menção de seu nome, constitui abuso do direito
de informar e violação da imagem do cidadão a edição de programa
jornalístico contra a vontade expressamente manifestada de quem
deseja prosseguir no esquecimento.
- Precedentes dos tribunais estrangeiros. Recurso ao qual se dá
provimento para condenar a ré ao pagamento de R$ 50.000,00 a título de
indenização.

Opostos embargos infringentes, também por maioria, foram rejeitados,


nos termos da seguinte ementa (fls. 297-299):

Embargos Infringentes. Indenizatória. Matéria televisivo-jornalística:


“chacina da Candelária”. Pessoa acusada de participação no hediondo crime
e, alfim, inocentada. Uso inconsentido de sua imagem e nome. Conflito
aparente entre princípios fundamentais de Direito: Informação “vs”
Vida Privada, Intimidade e Imagem. Direito ao esquecimento e direito
de ser deixado em paz: sua aplicação. Proteção da identidade e imagem
de pessoa não-pública. Dados dispensáveis à boa qualidade jornalística
da reportagem. Dano moral e dano à imagem: distinção e autonomia
relativa. Indenização. Quantificação: critérios.
Trata-se de ação indenizatória por dano moral e à imagem, fundada
não em publicação caluniosa ou imprecisa, mas no só revolver de fatos

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 531


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

pretéritos que impactaram drasticamente a esfera da vida privada do autor


- acusado que fora, injustamente, de participação na autoria de crime de
inglória lembrança, a “chacina da Candelária”.
Por isto mesmo, não aproveita à ré a alegação de cuidado com a
verdade dos fatos e sua não distorção - alegação que, conquanto veraz,
não guarda relação com a causa de pedir.
Conquanto inegável seja o interesse público na discussão aberta
de fatos históricos pertencentes à memória coletiva, e de todos os
pormenores a ele relacionados, é por outro lado contestável a
necessidade de revelarem-se nome completo e imagem de pessoa
envolvida, involuntariamente, em episódio tão funesto, se esses dados
já não mais constituem novidade jornalística nem acrescem substância
ao teor da matéria vocacionada a revisitar fatos ocorridos há mais de
década.
Não é leviano asseverar que, atendido fosse o clamor do autor de
não ter revelados o nome e a imagem, o distinto público não estaria
menos bem informado sobre a Chacina da Candelária e o desarranjado
inquérito policial que lhe sucedeu, formando uma vergonha nacional
à parte.
Recorre-se ao juízo de ponderação de valores para solver conflito
(aparente) de princípios de Direito: no caso, o da livre informação, a
proteger o interesse privado do veículo de comunicação voltado ao lucro,
e o interesse público dos destinatários da notícia; e o da inviolabilidade da
intimidade, da imagem e da vida privada.
A desfiguração eletrônica da imagem do autor e o uso de um
pseudônimo (como se faz, em observância a nosso ordenamento, para
proteção de menores infratores) consistiria em sacrifício mínimo à
liberdade de expressão, em favor de um outro direito fundamental que, no
caso concreto, merecia maior atenção e preponderância.
Das garantias fundamentais à intimidade e à vida privada, bem
assim do princípio basilar da dignidade da pessoa humana, extraíram
a doutrina e a jurisprudência de diversos países, como uma sua
derivação, o chamado “direito ao esquecimento”, também chamado
pelos norte-amercianos de “direito de ser deixado em paz”.
Historicamente, a construção desses conceitos jurídicos fez-se a bem da
ressocialização de autores de atos delituosos, sobretudo quando libertados
ou em vias de o serem.
Se o direito ao esquecimento beneficia os que já pagaram por
crimes que de fato cometeram, com maior razão se deve observá-lo em
favor dos inocentes, involuntariamente tragados por um furacão de
eventos nefastos para sua vida pessoal, e que não se convém revolver
depois que, com esforço, a vítima logra reconstruir sua vida.

532
Jurisprudência da QUARTA TURMA

Analisado como sistema que é, nosso ordenamento jurídico, que


protege o direito de ressocialização do apenado (art. 748 do CPP) e o direito
do menor infrator (arts. 17 e 18 do ECA), decerto protegerá também, por
analogia, a vida privada do inocente injustamente acusado pelo Estado.
O direito de imagem não se confunde com o direito à honra: para a
violação daquele, basta o uso inconsentido da imagem, pouco importando
se associada ou não a um conteúdo que a denigra.
Não sendo o autor pessoa pública, porque a revelação de sua
imagem já não traz novidade jornalística alguma (pois longínqua
a data dos fatos), o uso de sua imagem, a despeito da expressa
resistência do titular, constitui violação de direito a todos oponível,
violação essa que difere da ofensa moral (CF. art. 5º, V, da CF).
Tomando em linha de conta a centralidade do princípio da dignidade
da pessoa humana, a severidade dos danos decorrentes da exibição do
programa televisivo na vida privada do autor (relançado na persona de
“suspeito” entre as pessoas de sua convivência comunal), e o conteúdo
punitivo-pedagógico do instituto da indenização por dano moral, a
verba aparentemente exagerada de R$ 50.000,00 se torna adequada - tanto
mais em se tratando do veículo de comunicação de maior audiência e,
talvez, de maior porte econômico. Desprovimento do recurso.

Foi interposto recurso especial por Globo Comunicações e Participações S.A.,


com fundamento na alínea “a” do permissivo constitucional, com alegação de
ofensa aos arts. 333, I, e 535 do CPC/1973 e arts. 186, 188, I, 927 e 944 do
CC/2002.
Nas razões do recurso, a recorrente afirmou a inexistência do dever de indenizar
por ausência de ilicitude, uma vez que a ideia do programa Linha Direta
Justiça é comum no Brasil e no exterior, sendo natural a divulgação de casos
criminais célebres de grande repercussão no passado, por diversos meios de
comunicação jornalísticos (livros, jornais, revistas, rádio, cinema e televisão).
Sustentou não ter havido invasão à privacidade/intimidade do autor, porque
os fatos noticiados já eram públicos e fartamente discutidos na sociedade,
fazendo parte do acervo histórico do povo.
Argumentou que o programa jornalístico tinha a forma de documentário,
sobre acontecimentos de relevante interesse público, tendo a emissora se
limitado a narrar os fatos tais como ocorridos, sem dirigir nenhuma ofensa à
pessoa do autor, ao contrário, deixando claro que teria sido inocentado.
Defendeu ser incabível o acolhimento de “um direito ao esquecimento
ou o direito de ser deixado em paz”, que sobrepujaria o direito de informar
da recorrente e que não seria possível retratar a trágica história dos homicídios
da Candelária sem mencionar o recorrido, porque se tornou, infelizmente, uma

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 533


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

peça chave do episódio e do conturbado inquérito policial. Assim, a ocultação


do recorrido ou dos demais inocentados pelo crime “seria o mesmo que
deixar o programa jornalístico sem qualquer lógica, pois um dos mais
relevantes aspectos que envolveram o crime foi justamente a conturbada e
incompetente investigação promovida pela polícia” (fl. 343).
Sintetizou que “o simples fato da pessoa se relacionar com a notícia ou
fato histórico de interesse coletivo é suficiente para mitigar seu direito à
intimidade, tornando lícita a divulgação de seu nome e de sua imagem
independentemente de autorização”. Pleiteou, subsidiariamente, o
reconhecimento de inexistência de dano moral ou a exorbitância da indenização.
Julgado o recurso especial, esta colenda Turma, por unanimidade, a ele
negou provimento, nos termos da ementa que segue abaixo (fls. 583-587):

Recurso especial. Direito Civil-Constitucional. Liberdade de


imprensa vs. direitos da personalidade. Litígio de solução transversal.
Competência do Superior Tribunal de Justiça. Documentário exibido em
rede nacional. Linha Direta Justiça. Sequência de homicídios conhecida
como Chacina da Candelária. Reportagem que reacende o tema treze
anos depois do fato. Veiculação inconsentida de nome e imagem
de indiciado nos crimes. Absolvição posterior por negativa de autoria.
Direito ao esquecimento dos condenados que cumpriram pena e dos
absolvidos. Acolhimento. Decorrência da proteção legal e constitucional
da dignidade da pessoa humana e das limitações positivadas à
atividade informativa. Presunção legal e constitucional de ressocialização
da pessoa. Ponderação de valores. Precedentes de direito comparado.
I. Avulta a responsabilidade do Superior Tribunal de Justiça em demandas
cuja solução é transversal, interdisciplinar, e que abrange, necessariamente,
uma controvérsia constitucional oblíqua, antecedente, ou inerente apenas
à fundamentação do acolhimento ou rejeição de ponto situado no âmbito
do contencioso infraconstitucional, questões essas que, em princípio, não
são apreciadas pelo Supremo Tribunal Federal.
II. Nos presentes autos, o cerne da controvérsia passa pela ausência
de contemporaneidade da notícia de fatos passados, que reabriu
antigas feridas já superadas pelo autor e reacendeu a desconfiança da
sociedade quanto à sua índole. O autor busca a proclamação do seu
direito ao esquecimento, um direito de não ser lembrado contra
sua vontade, especificamente no tocante a fatos desabonadores, de
natureza criminal, nos quais se envolveu, mas que, posteriormente,
fora inocentado.
III. No caso, o julgamento restringe-se a analisar a adequação
do direito ao esquecimento ao ordenamento jurídico brasileiro,
especificamente para o caso de publicações na mídia televisiva, porquanto
o mesmo debate ganha contornos bem diferenciados quando transposto

534
Jurisprudência da QUARTA TURMA

para internet, que desafia soluções de índole técnica, com atenção, por
exemplo, para a possibilidade de compartilhamento de informações
e circulação internacional do conteúdo, o que pode tangenciar temas
sensíveis, como a soberania dos Estados nações.
IV. Um dos danos colaterais da “modernidade líquida” tem sido a
progressiva eliminação da “divisão, antes sacrossanta, entre as esferas do
‘privado’ e do ‘público’ no que se refere à vida humana”, de modo que,
na atual sociedade da hiperinformação, parecem evidentes os “riscos
terminais à privacidade e à autonomia individual, emanados da ampla
abertura da arena pública aos interesses privados [e também o inverso],
e sua gradual mas incessante transformação numa espécie de teatro
de variedades dedicado à diversão ligeira” (BAUMAN, Zygmunt. Danos
colaterais: desigualdades sociais numa era global. Tradução de Carlos
Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2013, pp. 111-113). Diante dessas
preocupantes constatações, o momento é de novas e necessárias reflexões,
das quais podem mesmo advir novos direitos ou novas perspectivas sobre
velhos direitos revisitados.
V. Há um estreito e indissolúvel vínculo entre a liberdade de imprensa
e todo e qualquer Estado de Direito que pretenda se autoafirmar como
Democrático. Uma imprensa livre galvaniza contínua e diariamente os
pilares da democracia, que, em boa verdade, é projeto para sempre
inacabado e que nunca atingirá um ápice de otimização a partir do qual
nada se terá a agregar. Esse processo interminável, do qual não se pode
descurar - nem o povo, nem as instituições democráticas -, encontra na
imprensa livre um vital combustível para sua sobrevivência, e bem por
isso que a mínima cogitação em torno de alguma limitação da imprensa
traz naturalmente consigo reminiscências de um passado sombrio de
descontinuidade democrática.
VI. Não obstante o cenário de perseguição e tolhimento pelo qual passou
a imprensa brasileira em décadas pretéritas, e a par de sua inegável virtude
histórica, a mídia do século XXI deve fincar a legitimação de sua liberdade
em valores atuais, próprios e decorrentes diretamente da importância e
nobreza da atividade. Os antigos fantasmas da liberdade de imprensa,
embora deles não se possa esquecer jamais, atualmente, não autorizam a
atuação informativa desprendida de regras e princípios a todos impostos.
VII. Assim, a liberdade de imprensa há de ser analisada a partir de
dois paradigmas jurídicos bem distantes um do outro. O primeiro, de
completo menosprezo tanto da dignidade da pessoa humana quanto da
liberdade de imprensa; e o segundo, o atual, de dupla tutela constitucional
de ambos os valores.
VIII. Nesse passo, a explícita contenção constitucional à liberdade de
informação, fundada na inviolabilidade da vida privada, intimidade,

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 535


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

honra, imagem e, de resto, nos valores da pessoa e da família, prevista


no art. 220, § 1º, art. 221 e no § 3º do art. 222 da Carta de 1988,
parece sinalizar que, no conflito aparente entre esses bens jurídicos de
especialíssima grandeza, há, de regra, uma inclinação ou predileção
constitucional para soluções protetivas da pessoa humana, embora
o melhor equacionamento deva sempre observar as particularidades do
caso concreto. Essa constatação se mostra consentânea com o fato de que,
a despeito de a informação livre de censura ter sido inserida no seleto
grupo dos direitos fundamentais (art. 5º, inciso IX), a Constituição
Federal mostrou sua vocação antropocêntrica no momento em
que gravou, já na porta de entrada (art. 1º, inciso III), a dignidade
da pessoa humana como - mais que um direito - um fundamento da
República, uma lente pela qual devem ser interpretados os demais
direitos posteriormente reconhecidos. Exegese dos arts. 11, 20 e 21
do Código Civil de 2002. Aplicação da filosofia kantiana, base da teoria
da dignidade da pessoa humana, segundo a qual o ser humano tem um
valor em si que supera o das “coisas humanas”.
IX. Não há dúvida de que a história da sociedade é patrimônio imaterial
do povo e nela se inserem os mais variados acontecimentos e personagens
capazes de revelar, para o futuro, os traços políticos, sociais ou culturais
de determinada época. Todavia, a historicidade da notícia jornalística,
em se tratando de jornalismo policial, há de ser vista com cautela. Há, de
fato, crimes históricos e criminosos famosos; mas também há crimes
e criminosos que se tornaram artificialmente históricos e famosos,
obra da exploração midiática exacerbada e de um populismo penal
satisfativo dos prazeres primários das multidões, que simplifica o
fenômeno criminal às estigmatizadas figuras do “bandido” vs. “cidadão
de bem”.
X. É que a historicidade de determinados crimes por vezes é edificada
à custa de vários desvios de legalidade, por isso não deve constituir óbice
em si intransponível ao reconhecimento de direitos como o vindicado nos
presentes autos. Na verdade, a permissão ampla e irrestrita a que um
crime e as pessoas nele envolvidas sejam retratados indefinidamente
no tempo - a pretexto da historicidade do fato - pode significar
permissão de um segundo abuso à dignidade humana, simplesmente
porque o primeiro já fora cometido no passado. Por isso, nesses casos,
o reconhecimento do “direito ao esquecimento” pode significar um
corretivo - tardio, mas possível - das vicissitudes do passado, seja de
inquéritos policiais ou processos judiciais pirotécnicos e injustos, seja da
exploração populista da mídia.
XI. É evidente o legítimo interesse público em que seja dada publicidade
da resposta estatal ao fenômeno criminal. Não obstante, é imperioso
também ressaltar que o interesse público - além de ser conceito de

536
Jurisprudência da QUARTA TURMA

significação fluida - não coincide com o interesse do público, que é guiado,


no mais das vezes, por sentimento de execração pública, praceamento da
pessoa humana, condenação sumária e vingança continuada.
XII. Assim como é acolhido no direito estrangeiro, é imperiosa a
aplicabilidade do direito ao esquecimento no cenário interno, com
base não só na principiologia decorrente dos direitos fundamentais e
da dignidade da pessoa humana, mas também diretamente do direito
positivo infraconstitucional. A assertiva de que uma notícia lícita não se
transforma em ilícita com o simples passar do tempo não tem nenhuma
base jurídica. O ordenamento é repleto de previsões em que a significação
conferida pelo Direito à passagem do tempo é exatamente o esquecimento
e a estabilização do passado, mostrando-se ilícito sim reagitar o que a lei
pretende sepultar. Precedentes de direito comparado.
XIII. Nesse passo, o Direito estabiliza o passado e confere
previsibilidade ao futuro por institutos bem conhecidos de todos:
prescrição, decadência, perdão, anistia, irretroatividade da lei, respeito ao
direito adquirido, ato jurídico perfeito, coisa julgada, prazo máximo para
que o nome de inadimplentes figure em cadastros restritivos de crédito,
reabilitação penal e o direito ao sigilo quanto à folha de antecedentes
daqueles que já cumpriram pena (art. 93 do Código Penal, art. 748 do
Código de Processo Penal e art. 202 da Lei de Execuções Penais). Doutrina
e precedentes.
XIV. Se os condenados que já cumpriram a pena têm direito ao sigilo
da folha de antecedentes, assim também a exclusão dos registros da
condenação no Instituto de Identificação, por maiores e melhores razões
aqueles que foram absolvidos não podem permanecer com esse estigma,
conferindo-lhes a lei o mesmo direito de serem esquecidos.
XV. Ao crime, por si só, subjaz um natural interesse público, caso
contrário nem seria crime, e eventuais violações de direito resolver-se-iam
nos domínios da responsabilidade civil. E esse interesse público, que é, em
alguma medida, satisfeito pela publicidade do processo penal, finca raízes
essencialmente na fiscalização social da resposta estatal que será dada
ao fato. Se é assim, o interesse público que orbita o fenômeno criminal
tende a desaparecer na medida em que também se esgota a resposta
penal conferida ao fato criminoso, a qual, certamente, encontra seu último
suspiro, com a extinção da pena ou com a absolvição, ambas consumadas
irreversivelmente. E é nesse interregno temporal que se perfaz também
a vida útil da informação criminal, ou seja, enquanto durar a causa
que a legitimava. Após essa vida útil da informação seu uso só pode
ambicionar, ou um interesse histórico, ou uma pretensão subalterna,
estigmatizante, tendente a perpetuar no tempo as misérias humanas.
XVI. Com efeito, o reconhecimento do direito ao esquecimento dos
condenados que cumpriram integralmente a pena e, sobretudo, dos que

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 537


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

foram absolvidos em processo criminal, além de sinalizar uma evolução


cultural da sociedade, confere concretude a um ordenamento jurídico
que, entre a memória - que é a conexão do presente com o passado
- e a esperança - que é o vínculo do futuro com o presente -, fez clara
opção pela segunda. E é por essa ótica que o direito ao esquecimento
revela sua maior nobreza, pois afirma-se, na verdade, como um direito à
esperança, em absoluta sintonia com a presunção legal e constitucional
de regenerabilidade da pessoa humana.
XVII. Ressalvam-se do direito ao esquecimento os fatos
genuinamente históricos - historicidade essa que deve ser analisada em
concreto -, cujo interesse público e social deve sobreviver à passagem
do tempo, desde que a narrativa desvinculada dos envolvidos se fizer
impraticável.
XVIII. No caso concreto, a despeito de a Chacina da Candelária ter se
tornado - com muita razão - um fato histórico, que expôs as chagas do País
ao mundo, tornando-se símbolo da precária proteção estatal conferida
aos direitos humanos da criança e do adolescente em situação de risco,
o certo é que a fatídica história seria bem contada e de forma fidedigna
sem que para isso a imagem e o nome do autor precisassem ser expostos
em rede nacional. Nem a liberdade de imprensa seria tolhida, nem a honra
do autor seria maculada, caso se ocultassem o nome e a fisionomia do
recorrido, ponderação de valores que, no caso, seria a melhor solução ao
conflito.
XIX. Muito embora tenham as instâncias ordinárias reconhecido que
a reportagem se mostrou fidedigna com a realidade, a receptividade
do homem médio brasileiro a noticiários desse jaez é apta a reacender a
desconfiança geral acerca da índole do autor, o qual, certamente, não teve
reforçada sua imagem de inocentado, mas sim a de indiciado. No caso,
permitir nova veiculação do fato, com a indicação precisa do nome
e imagem do autor, significaria a permissão de uma segunda ofensa
à sua dignidade, só porque a primeira já ocorrera no passado, uma vez
que, como bem reconheceu o acórdão recorrido, além do crime em si, o
inquérito policial consubstanciou uma reconhecida “vergonha” nacional à
parte.
XX. Condenação mantida em R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), por não
se mostrar exorbitante.
XXI. Recurso especial não provido.

Em face do acórdão acima destacado, Globo Comunicações e Participações S.A.


interpôs recurso extraordinário (fls. 593-616), com alegação de ofensa aos arts.
5º, IV, V, IX, X e XIV, 220 e 221 da Constituição Federal.

538
Jurisprudência da QUARTA TURMA

Defendeu, em síntese, que, na hipótese, no conflito entre a liberdade de


imprensa e o direto à privacidade do recorrido, a primeira deve prevalecer. Alegou
que “não deve ser garantido às pessoas que integram episódios criminosos
de repercussão nacional ou internacional, independentemente da sua posição
nos fatos narrados, o direito de esquecimento, uma vez que a história da
sociedade e o interesse público que a norteia, devem prevalecer ao direito de
recolhimento do indivíduo” (fl. 605). Asseverou que “não é possível retirar do
acusado a qualidade de pessoa pública que foi submetida a um julgamento
histórico do país, atraindo em seu desfavor, data venia, o direito de ter sua
imagem e nome explorados pelos meios de comunicação sempre que o interesse
público exigir”.
Inadmitido o recurso pela Vice-Presidência deste Superior Tribunal (fls. 633-
638), a recorrente interpôs o pertinente agravo (fls. 642-656).
Analisado o agravo na Suprema Corte, o Excelentíssimo Ministro Marco
Aurélio Mello destacou que o Plenário do Supremo Tribunal Federal,
apreciando o ARE n. 833.248/RJ, posteriormente substituído pelo RE n.
1.010.606/RJ, ambos de relatoria do eminente Ministro Dias Toffoli, teria
reconhecido a repercussão geral da questão constitucional nele suscitada,
coincidente, em todos os seus aspectos, com a controvérsia jurídica versada
na presente causa. Determinou-se, assim, a devolução dos autos a este
Superior Tribunal (fls. 773-774), nos termos do art. 328 do RISTF.
Após, com fundamento no art. 1.030, III, do CPC, foi determinado pela
Presidência desta Casa o sobrestamento do recurso extraordinário, até a
publicação da decisão de mérito do Supremo Tribunal Federal acerca do Tema
786/STF da sistemática da repercussão geral (fls. 778-784).
Em despacho proferido em junho do corrente ano (fls. 791-798), a
VicePresidência deste Tribunal Superior encaminhou os autos a este
relator, informando a conclusão do julgamento da questão aqui tratada
pelo Supremo Tribunal Federal, para análise, por este egrégio Colegiado, da
conformação dos entendimentos externados.
Confira-se:

No RE n. 1.010.606/RJ, julgado sob o regime da repercussão


geral, o Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento de que
“é incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao
esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão
da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e
licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social
analógicos ou digitais”, acrescentando que “eventuais excessos ou
abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem
ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais -
especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 539


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

e da personalidade em geral - e das expressas e específicas previsões legais


nos âmbitos penal e cível” (Tema 786/STF).
(...)
Na espécie, compulsando-se os autos verifica-se que o entendimento
firmado por esta Corte Superior de Justiça destoa, em princípio, do
Tema 786/STF.
Ante o exposto, nos termos do art. 1.040, inciso II, do Código de Processo
Civil, encaminhem-se os autos à Turma para eventual juízo de retratação.

O douto relator, na sessão ocorrida em 3 agosto de 2021, votou no sentido


de “RATIFICAR os termos do julgamento do recurso especial proferido pela
colenda Quarta Turma, mantendo a negativa de provimento ao recurso, porquanto
os fundamentos ali adotados encontram-se em consonância com a segunda parte
da tese vinculante da Suprema Corte”, mantendo a condenação da recorrente
ao pagamento de indenização por danos morais no valor de R$ 50.000,00
(cinquenta mil reais), sob os seguintes fundamentos:

É que, da mesma forma, no caso em exame, não há se falar em retratação,


uma vez que, no caso dos autos, conforme análise pormenorizada dos fatos e
julgamento desta Turma, constatou-se exatamente a situação abusiva referido pelo
Supremo, situação para qual aquele Tribunal determinou: em sendo constatado o
excesso na divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados
em meios de comunicação social analógicos ou digitais, proceda-se o julgador
competente ao estancamento da violação, a partir das legítimas formas previstas
pelo ordenamento.
O excesso e o ataque aos direitos fundamentais do autor vieram bem
sintetizados nesta parte do voto condutor: “No caso, permitir nova veiculação do
fato, com a indicação precisa do nome e imagem do autor, significaria a permissão de
uma segunda ofensa à sua dignidade, só porque a primeira já ocorrera no passado,
uma vez que, como bem reconheceu o acórdão recorrido, além do crime em si, o
inquérito policial consubstanciou uma reconhecida “vergonha” nacional à parte.”.
Ou seja, mesmo tendo sido absolvido de forma unânime pelo Tribunal do Júri, e
depois de ter passado por uma verdadeira “via crucis” para se restabelecer, o autor,
apesar de advertir a emissora diante da gravidade da situação, ainda assim foi
novamente envolvido como um dos possíveis autores do bárbaro crime da “chacina
da Candelária” e foi assim retratado no programa.

Pedi vista para um exame mais próximo do caso. Passo ao voto.


Trata a hipótese de pedido de reparação por danos morais, ajuizado por
Jurandir Gomes de França em face de Globo Comunicações e Participações

540
Jurisprudência da QUARTA TURMA

S/A, em razão da veiculação do programa intitulado “Linha Direta Justiça”,


em junho de 2006, documentário jornalístico sobre o evento conhecido como
“Chacina da Candelária”, ocorrido em 23 de julho de 1993.
O eg. Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 1.010.606/RJ, sob o
regime da repercussão geral, Rel. Min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, julgado em
11/02/2021 e publicado no DJe em 20/05/2021, fixou a seguinte tese:

É incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim


entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação
de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de
comunicação social analógicos ou digitais. Eventuais excessos ou abusos no exercício
da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a
partir dos parâmetros constitucionais - especialmente os relativos à proteção da
honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral - e das expressas e
específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível. (Tema 786/STF)

Consoante se extrai dos autos e das fartas transcrições supra, no julgamento


do presente processo pela eg. Quarta Turma desta Corte Superior, na sessão do
dia 28/05/2013, foi negado provimento, por unanimidade, ao recurso especial
interposto por Globo Comunicações e Participações S/A, sob a motivação
amplamente acima reproduzida e novamente decalcada abaixo, agora bem
resumidamente:

Com efeito, o reconhecimento do direito ao esquecimento dos condenados que


cumpriram integralmente a pena e, sobretudo, dos que foram absolvidos em
processo criminal, além de sinalizar uma evolução cultural da sociedade, confere
concretude a um ordenamento jurídico que, entre a memória – que é a conexão do
presente com o passado – e a esperança – que é o vínculo do futuro com o presente –,
fez clara opção pela segunda.
E é por essa ótica que o direito ao esquecimento revela sua maior nobreza, pois
afirma-se, na verdade, como um direito à esperança, em absoluta sintonia com a
presunção legal e constitucional de regenerabilidade da pessoa humana.
Voltando-me para o caso concreto, julgado na mesma assentada com o REsp n.
1.335.153/RJ, não tenho dúvida em manter o acórdão ora hostilizado.
A despeito de a Chacina da Candelária ter se tornado – com muita razão – um
fato histórico, que expôs as chagas do País ao mundo, tornando-se símbolo da
precária proteção estatal conferida aos direitos humanos da criança e do adolescente
em situação de risco, o certo é que a fatídica história seria bem contada e de forma
fidedigna sem que para isso a imagem e o nome do autor precisassem ser expostos
em rede nacional.

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 541


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Nem a liberdade de imprensa seria tolhida nem a honra do autor seria maculada,
caso se ocultassem o nome e a fisionomia do recorrido, ponderação de valores que,
no caso, seria a melhor solução ao conflito.
Muito embora tenham as instâncias ordinárias reconhecido que a reportagem
mostrou-se fidedigna com a realidade, a receptividade do homem médio brasileiro
a noticiários desse jaez é apta a reacender a desconfiança geral acerca da índole do
autor, o qual, certamente, não teve reforçada sua imagem de inocentado, mas sim a
de indiciado.
No caso, permitir nova veiculação do fato, com a indicação precisa do nome e
imagem do autor, significaria a permissão de uma segunda ofensa à sua dignidade,
só porque a primeira já ocorrera no passado, uma vez que, como bem reconheceu
o acórdão recorrido, além do crime em si, o inquérito policial consubstanciou uma
reconhecida “vergonha” nacional à parte. (fl. 575)

Nessas condições, entendo que o julgado unânime desta Quarta Turma,


tendo como principal supedâneo o reconhecimento do chamado “direito ao
esquecimento” como corolário do princípio da dignidade da pessoa humana, sendo
este fundamento do Estado Democrático de Direito consagrado no art. 1º da
Constituição da República, está em franca dissonância com o entendimento do
colendo Supremo Tribunal Federal firmando a tese de ser “incompatível com a
Constituição a ideia de um direito ao esquecimento”.
Recordo, fora também esse mesmo essencial reconhecimento do
direito ao esquecimento, como direito fundamental supostamente positivado
constitucionalmente, que embasara o v. acórdão do Tribunal de Justiça, o qual,
por sua vez, reformara a sentença apelada, e veio a ser confirmado pela eg.
Quarta Turma.
Com efeito, o il. Juízo de primeiro grau, ao julgar improcedente o pedido
do autor, ora recorrido, não identificara “qualquer abuso de direito” perpetrado
pela ora recorrente, consoante se colhe da conclusão da r. sentença:

A pretensão do autor é fincada na existência de violação à sua intimidade e


imagem em razão da publicação de um programa de televisão que relatou os
eventos relacionados à trágica “Chacina da Candelária”.
0 programa foi exibido em audiência, sendo que seus dados elementares
foram apreendidos pelo magistrado.
Submetendo-o aos testes tirados da experiência norte-americana acima
ventilados, é válido afirmar que não há como se extrair a actual malice da conduta do
réu, dado que os eventos narrados são verdadeiros.
No que diz com o interesse público, resta evidente a sua presença na matéria
exibida, posto curar de evento trágico da história nacional, repercutindo de forma

542
Jurisprudência da QUARTA TURMA

desastrosa na imagem do país junto à comunidade internacional. Não há motivo


em se lançar o manto do esquecimento sobre o ocorrido, seja quanto ao atrapalhado
inquérito policial pirotécnico e mambembe que culminou com o indiciamento
do autor ou quanto ao fato criminoso em si, já que ambos, em escala mais ou
menos divulgada, continuam a ocorrer, ou seja, ainda existem inquéritos circenses
e totalmente nulos e também homicídios em massa de pessoas carentes. Para ao
largo de uma imolação dos autores dos fatos criminosos, a simples apresentação
dos fatos de forma objetiva pela ré responde à opinião pública mundial no
que se refere à impunidade que assombra nosso país, cumprindo um papel de
“prevenção geral indireta”’.
Em regra, os programas da série “Linha Direta Justiça” cuidam de apresentar os
fatos como noticiados à época, colhendo depoimentos de pessoas envolvidas com
a apuração, investigação e julgamento dos infratores, o que não é ilícito, eis que
o direito ao anonimato e ao esquecimento, em questões traumáticas à sociedade é
mitigado, já que é impossível contar a história sem os dados elementares.
Na espécie, saber que o autor foi indiciado de forma errônea, sofreu violações
à sua condição humana e conseguiu se livrar da pena é essencial para a história de
terror chamada “Chacina da Candelária”, não havendo qualquer abuso de direito.
Dessarte, ausente qualquer prova que venha em seu socorro, dado que a
publicação apresentada em nada manifesta o exercício irregular do direito/dever
de informar, não há que se falar em dever de reparar. (fls. 136-137)

Cabe ressaltar que o autor, intimado para emendar a inicial e esclarecer


“objetivamente, se o programa levado ao ar pela ré imputou afirmação falsa e injuriosa
ao autor, ou se a causa petendi da demanda consiste apenas na veiculação dos fatos
ocorridos e das consequencias que daí resultaram” (fl. 20), manifestou expressamente
que “a causa petendi da presente demanda consiste apenas da veiculação dos
fatos ocorridos sem sua autorização, o que por consequência resultou-lhe em sua
expulsão da comunidade onde morava, sendo inclusive ameaçado de morte” (fl. 22).
O eg. Tribunal de origem, ao dar provimento à apelação do recorrido,
reconheceu o direito do autor ao esquecimento, nos seguintes termos:

Não há como negar, com efeito, que certos episódios históricos são, ao final,
bem como seus participantes, insuscetíveis de serem esquecido. São fatos que
se prendem à própria essência de um povo ou marcaram de forma indelével a
história, que a seu turno há de ser recontada para formação da identidade cultural
do país. Não há, por exemplo, como falar da história americana sem mencionar
o assassinato de Kennedy em novembro de 1963 por um homem chamado Lee
Oswald. Tampouco é razoável supor a impossibilidade de lançar no esquecimento
as circunstâncias que levaram à morte de Euclides da Cunha e mais tarde de seu
próprio filho. Como Capitu e Bentinho, são todas estas pessoas reféns de um
momento em que saíram do anonimato e entraram na história.

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 543


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Todavia, contra esta regra devem ser erguidas necessárias barreiras de


proteção ao cidadão. Assim, por exemplo, não se justifica o retorno ao passado com
a divulgação de nomes dos envolvidos se o réu foi absolvido e o episódio, embora
marcante e hediondo, possa ser contado sem a revelação de sua presente identidade.
Porque ao lado do direito coletivo de conhecer os fatos do passado, há também
aquele inerente à dignidade da pessoa humana, de não ter a existência sacrificada
por um erro judiciário ou pela notoriedade que o episódio involuntariamente
conquistou.
Penso que esta seja a hipótese dos autos. O crime da Candelária teve os seus
culpados e estes foram condenados. Quem queira recontar a estória, que o faça
preservando o anonimato daqueles que foram absolvidos. Estes têm o direito de
serem esquecidos, nada justificando o sacrifício de sua própria vida, além da tomada
daqueles anos durante os quais tramitou o processo.
Vem a calhar um trecho de Carnelutti, contido no seu “As Misérias do Processo
Penal”. Dizia a propósito o Professor italiano: “O homem, quando é suspeito de um
delito, é jogado às feras, como se dizia uma vez dos condenados oferecidos como
alimento às feras. A fera, a indomável e insaciável fera, é a multidão. O artigo da
Constituição, que se ilude de garantir a incolumidade do acusado, é praticamente
inconciliável com aquele outro que sanciona a liberdade de imprensa. Logo que
surge o suspeito, o acusado, a sua família, a sua casa, o seu trabalho são inquiridos,
investigados, despidos na presença de todos. O indivíduo, assim, é feito em
pedaços. E o indivíduo, assim, relembremo-nos, é o único valor da civilização que
deveria ser protegido.”
Portanto, concluo que a estória veiculada pela Rede Globo poderia sê-lo com a
omissão do nome do autor e o emprego de pseudônimo, sem que nenhum prejuízo
adviesse para a substância da narrativa, reservando-se, assim, a privacidade de
quem, absolvido, exige o direito, derivado da dignidade da pessoa humana, de ser
simplesmente esquecido. (fls. 199-200)

No julgamento dos embargos infringentes opostos pela ora recorrente, o


eg. Tribunal a quo consignou que a recorrente “não faltou com a verdade ao narrar
os fatos”, nem se reportou ao recorrido de “maneira desrespeitosa”, mas manteve
a decisão majoritária que condenou a empresa recorrente ao pagamento de
indenização por danos morais em razão do reconhecimento do direito constitucional
do recorrido ao esquecimento.
Transcrevo, a propósito, trecho do voto condutor do referido acórdão:

Resta incontroverso que a ora embargante não faltou com a verdade ao narrar
os fatos, nem se reportou ao ora embargado de maneira desrespeitosa. Não é nesses
termos que o pedido se coloca.
Por outro lado, parece-nos de fato inquestionável que a balbúrdia que marcou
a investigação policial da “Chacina da Candelária” se tornou fato indissociável do

544
Jurisprudência da QUARTA TURMA

próprio crime, e que qualquer documentário que se disponha a revisitar aquele


triste episódio cometeria falta jornalística se não mencionasse as trapalhadas do
inquérito.
Também não se questiona que aquele inglório episódio faz parte de nossa História
coletiva, como um seu triste capítulo, que convém recontar às presentes e futuras
gerações, para que não mais se repita, e para que se especulem as raízes de tal
mazela.
Mas não é esta a questão central. Não se quer negar à imprensa o direito de contar
fatos notórios, nem seus pormenores.
Quer-se, antes, chamar atenção para a necessária ponderação entre o direito de
informar, que diz com toda a coletividade, de um lado, e o direito à vida privada e à
intimidade, de outro - ambos, direitos fundamentais garantidos por cláusula pétrea
da Constituição Federal.
Essa ponderação nos conduz, no caso concreto, àquilo que em doutrina e
jurisprudência se convencionou chamar “direito ao esquecimento”, ou “direito de
ser deixado m paz” (right to be let alone, para os americanos), como derivado da
garantia constitucional à intimidade e à vida privada.
O douto voto vencido, de insigne lavra, invoca a necessidade de mitigação do
direito ao esquecimento, quando de outro lado o justificar o interesse público.
Mas, embora não haja dúvida do interesse público em revisitar os fatos envolvidos
na investigação da Chacina da Candelária, será correto supor que a omissão do
nome e imagem do autor, ora embargado, atentaria conta o interesse público?
Estaria a reportagem comprometida? Estaria comprometido o direito coletivo à
informação, caso fosse poupada a imagem do autor e se usasse um pseudônimo?
Isto é o que a Lei impõe para o caso de infrações cometidas por menores de
idade, em defesa dos direitos da criança e do adolescente que, porventura, tenha
acabado de cometer ato delituoso.
Sem dúvida há, nisto, uma restrição à informação; mas não nos parece que
essa restrição atente contra o interesse público, nem contra o interesse privado do
veículo de comunicação: a população em geral não estará menos bem informada,
nem estará o meio de comunicação impedido de transmitir a noticia em sua
essência.
Igualmente, penso que, se houvesse sido atendido o clamor do ora
embargado, também nessa hipótese o distinto público não estaria menos bem
informado sobre a Chacina da Candelária, apenas e tão-somente por ignorar
o nome completo e a imagem de alguém que, acusado há mais de década da
prática de crime hediondo, foi absolvido à unanimidade pelo Tribunal do Júri.
Não seria leviano supor que o nome e a imagem do autor só foram
memorizados por pessoas de seu círculo de convivência, pois a enorme maioria
dos telespectadores, minutos depois da exibição do programa, sequer lembraria
o seu primeiro nome.

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 545


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Daí que, num juízo de ponderação, nos pareça forçoso concluir que a omissão
do nome e imagem do autor em nada comprometeria a qualidade jornalística do
documentário; mas, por outro lado, a sua publicação repercutiu, severamente, no
âmbito da vida privada do ora embargado. (fls. 303-304)

Assim, verifica-se que tanto os acórdãos proferidos pelo eg. Tribunal a


quo quanto o proferido por esta Corte em sede de recurso especial adotaram
como precípua razão de decidir o reconhecimento do chamado “direito ao
esquecimento”, como direito fundamental constitucional, qual seja, direito
constitucional do autor de não ter divulgado seu nome e imagem relacionado ao
evento narrado no programa veiculado pela recorrente.
Não se tratou precipuamente, no presente caso, de hipótese concreta
de excesso ou abuso no direito de informar ou no exercício da liberdade de
expressão e de informação, que, nos termos da segunda parte da tese consolidada
pelo eg. Supremo Tribunal Federal, é passível de responsabilização. Ao contrário,
foi reconhecido pelas instâncias ordinárias não haver abuso de direito (fl. 136),
e que a recorrente “não faltou com a verdade ao narrar os fatos”, nem se reportou
ao recorrido de “maneira desrespeitosa” (fl. 303), e o próprio recorrido afirmou
que a causa de pedir “consiste apenas da veiculação dos fatos ocorridos sem sua
autorização”, com graves consequências para sua pessoa (fl. 22), excluindo-se a
existência de afirmação falsa ou injuriosa divulgada no documentário veiculado.
A propósito, vai em sentido inverso o voto do eminente Ministro Dias
Toffoli proferido no invocado RE 1.010.606/RJ, como se tem no seguinte trecho:

Parece-me que admitir um direito ao esquecimento seria uma restrição excessiva


e peremptória às liberdades de expressão e de manifestação de pensamento e ao
direito que todo cidadão tem de se manter informado a respeito de fatos relevantes
da história social.
Ademais, tal possibilidade equivaleria a atribuir, de forma absoluta e em abstrato,
maior peso aos direitos à imagem e à vida privada, em detrimento da liberdade
de expressão, compreensão que não se compatibiliza com a ideia de unidade da
Constituição.
Nesse sentido, também prevê o Pacto Internacional dos Direitos Civis e
Políticos:

Artigo 19
1. ninguém poderá ser molestado por suas opiniões.
2. Toda pessoa terá direito à liberdade de expressão; esse direito incluirá
a liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideias de qualquer

546
Jurisprudência da QUARTA TURMA

natureza, independentemente de considerações de fronteiras, verbalmente


ou por escrito, em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro meio
de sua escolha.
3. O exercício do direito previsto no parágrafo 2 do presente artigo
implicará deveres e responsabilidades especiais. Consequentemente,
poderá estar sujeito a certas restrições, que devem, entretanto, ser
expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para:
a) assegurar o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas;
b) proteger a segurança nacional, a ordem, a saúde ou a moral públicas.

Entendo, assim, que o ordenamento jurídico brasileiro está repleto de


previsões constitucionais e legais voltadas à proteção da personalidade, aí
inserida a proteção aos dados pessoais, com repertório jurídico suficiente a que
essa norma fundamental se efetive em consagração à dignidade humana.
Em todas essas situações legalmente definidas, é cabível a restrição, em
alguma medida, à liberdade de expressão, sempre que afetados outros direitos
fundamentais, mas não como decorrência de um pretenso e prévio direito de ver
dissociados fatos ou dados por alegada descontextualização das informações em
que inseridos, por força da passagem do tempo.
Não há dúvidas de que é preciso buscar a proteção dos direitos da personalidade
pela via da responsabilização diante do abuso no exercício da liberdade de
expressão e pela ampliação da segurança na coleta e no tratamento dos dados, a
fim de se evitarem os acessos ilegais, as condutas abusivas e a concentração do poder
informacional.
Mas não se protegem informações e dados pessoais com obscurantismo.

Assim, a divulgação do nome e imagem do recorrido, sem sua autorização,


em programa documentário razoavelmente fiel aos fatos narrados não
caracteriza, por si só, conduta ilícita, notadamente por ser tratar de evento
marcante e amplamente divulgado na época dos fatos, inclusive na mídia
internacional e com fartos registros publicados em revistas, jornais e livros.
Tratou-se de episódio de grande notoriedade e interesse público que
integra a história do país, de modo que não seria obrigatório realizar-se o
documentário sem informar dados considerados elementares, como a injusta
acusação contra o recorrido, sua indevida prisão e posterior absolvição, fatos
que, ao lado de outros também reportados na mesma divulgação, compõem
substancialmente o evento narrado.
Ressalta-se também, conforme registrado pela eminente Ministra Rosa
Weber, em voto-vogal no citado RE 1.010.606/RJ, a necessidade de autorização

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 547


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

dos envolvidos nos fatos descritos para publicação de obras de teor jornalístico
configuraria censura prévia, vedada pela Constituição Federal.
A propósito, transcrevo trecho do referido voto:

No caso em exame, a sujeição da produção televisiva de cunho histórico-


jornalístico à autorização dos familiares para o uso da imagem de pessoa falecida,
envolvida nos acontecimentos tratados, aniquilaria a proteção às liberdades de
manifestação do pensamento, de expressão da atividade intelectual, artística e
científica e de informação, golpeando-as em seu núcleo essencial. Tais liberdades,
de um lado, e a autorização ou licença, de outro, são conceitos excludentes.
Assim como incompatível com o Estado Democrático de Direito instituído pela
Carta de 1988 o arrogar-se, pelo Poder Judiciário, ou qualquer dos outros Poderes
da República, do comando da linha editorial de qualquer veículo de imprensa, a
publicação de obras de teor histórico, jornalístico ou documental em absoluto pode
ficar na dependência da chancela das pessoas envolvidas nos fatos retratados.
A necessidade de autorização traduz censura prévia, em dissonância com as
garantias albergadas nos arts. 5º, IV, IX e XIV, e 220, §§ 2º e 6º, da Lei Maior,
em indevida reintrodução do espírito autoritário expurgado pela Constituição
vigente.

Desta forma, não se constata violação ao direito à imagem e à vida privada


do recorrido capaz de ensejar reparação por danos morais.
Diante do exposto, peço vênia ao eminente Relator, para, em juízo de
retratação, dar provimento ao recurso especial, a fim de julgar improcedente o pedido
inicial, em conformidade com o entendimento exarado pelo eg. Supremo
Tribunal Federal no RE 1.010.606/RJ.

VOTO

A Sra. Ministra Maria Isabel Gallotti: Sr. Presidente, instigantes os debates


ora travados. Penso que a palavra final haverá de ser dada novamente pelo
Supremo Tribunal Federal, caso a maioria da Quarta Turma entenda de não
retratar o presente acórdão.
Penso que, no presente caso, é possível fazer a distinção em relação à
primeira parte da tese estabelecida pelo Supremo, ficando com a segunda parte,
assim como propõe o Ministro Salomão, com a devida vênia do voto divergente
trazido pelo Ministro Raul Araújo. A questão se dá em torno de interpretar o
que quis o Supremo significar com eventuais excessos ou abusos no exercício da
liberdade de expressão e de informação, a serem analisados caso a caso.

548
Jurisprudência da QUARTA TURMA

Entende o Ministro Raul Araújo que, para que se configure abuso ou


excesso, haveria necessidade de adjetivação extra ou de algum fato que não fosse
narrado de forma fidedigna. Já a interpretação dessa ressalva pelo Ministro
Salomão é mais extensiva.
Considero que realmente não há, como já assentou o Supremo e estamos
vinculados a essa tese, direito ao esquecimento. O autor da ação foi levado a júri
por esse crime odioso, que virou uma notícia nacional e internacional. Embora
absolvido, ele não poderá evitar que, em documentos a respeito desse triste
episódio, seu nome seja citado, desde que não haja informação falsa, o que, no
caso, não houve.
Ocorre que o programa Linha Direta, a meu ver, é muito mais do que uma
reportagem jornalística meramente informativa. Ele não tinha atualidade, era
exibido em horário nobre da rede emissora, uma das principais do País, e tinha
um caráter sensacionalista.
Penso que esse episódio lamentável, que realmente não deve ser esquecido,
para que sirva de alerta às novas gerações, pode muito bem ser narrado sem
que se mencione o nome e mesmo a figura, a imagem desta pessoa que sofreu o
processo e depois terminou absolvido.
Em se tratando de um programa de televisão, pode haver atores que
representem cada um dos processados. Não me parece necessário, para efeito
jornalístico e, sobretudo, para um programa de televisão que não se destina
a dar a notícia do dia, do que está acontecendo no memento, mas, sim,
retratar episódio de relevância nacional, não faz diferença para propagação,
esclarecimento e lembrança do fato que se use a imagem daquele que foi
processado e, posteriormente, ao fim de um doloroso processo-crime, absolvido.
Essa mesma história pode ser contada, sem nenhum prejuízo à informação
daqueles que assistem o programa, com a utilização de atores e nomes fictícios.
Não haverá perda alguma daquilo que interessa, o jornalismo histórico que
propõe o programa fazer. Seria diferente se estivéssemos tratando de um
episódio histórico envolvendo personagens da República que não poderiam ter
seus nomes omitidos, porque fizeram parte, por suas trajetórias profissionais, por
exemplo, da história do País.
Mas, no caso, penso que a figura desta pessoa, que se viu envolvida nesse
episódio, ganhou notoriedade, infelizmente, não por sua trajetória de vida ou
eventual papel que tenha desempenhado no cenário nacional, de forma positiva
ou negativa. Trata-se de pessoa anônima, sem nenhuma importância histórica.

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 549


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Ela ganhou essa repercussão, na época dos fatos, de forma altamente negativa e
infamante, porque se viu envolvida nesse inquérito e nessa ação penal.
A parte que interessa para a narração e não esquecimento do fato histórico
não implica a exibição pública em horário nobre de televisão da sua figura e do
seu nome.
No caso em exame, considero que o excesso e o abuso não estão em
haver um fato inverídico ou alguma adjetivação a ele. O excesso, ao meu
sentir, consistiu na exibição da figura do autor e seu nome em horário nobre
de televisão, o que me parece, assim como ao Ministro Relator, inteiramente
desnecessário para que se narre o fato histórico ocorrido.
É diferente do que pode acontecer num documento, num livro de Direito,
em que se reproduza o acórdão do Tribunal do Júri em que haverá o nome de
todas as partes. Mas, a meu ver, não é necessário que se faça isso num programa
em horário nobre de televisão, cujo único escopo não é documental, mas, sim, de
deixar a população sempre lembrada daquele triste episódio.
Observo que as consequências na vida do autor de aparecer nesse programa
Linha Direta, pelo que foi trazido de matéria de fato da origem, foram nefastas.
Ele sofreu ameaças de morte, teve de mudar da comunidade onde residia. Foram
consequências seríssimas que recairam sobre ele, depois de enfrentar todo
aquele processo penal e ser absolvido. Não me parece razoável que tenha que
passar novamente pela lembrança desse calvário, uma vez que sua figura poderia
ter sido omitida, utilizando-se qualquer nome fictício e qualquer ator, sem
diminuição alguma ao caráter informativo, histórico e documental do episódio,
porque, friso, não se trata de personagem histórico.
Portanto, peço a maxima venia à divergência e acompanho o voto do
Relator.

RECURSO ESPECIAL N. 1.450.667-PR (2014/0094787-3)

Relator: Ministro Antonio Carlos Ferreira


Recorrente: Antônio Carlos Rampazzo
Recorrente: José Carlos Rampazzo
Recorrente: Ondina de Queiroz Rampazzo
550
Jurisprudência da QUARTA TURMA

Advogado: Giovana Picoli e outro(s) - PR051189


Recorrido: Fundo de Investimento em Direitos Creditorios Nao-
Padronizados Alternative Assets I
Advogado: Roberto Antonio Busato - DF028208

EMENTA

Processual Civil. Recurso especial. Embargos do devedor.


Execução fundada em título executivo extrajudicial.Cédula de produtor
rural financeira e cédula rural pignoratícia. Prequestionamento.
Ausência. Nulidade do título por falta dos requisitos. Não ocorrência.
Frustração da safra. Caso fortuito ou força maior. Reexame do conjunto
fático-probatório dos autos. Inadmissibilidade. Incidência da Súmula
n. 7 do STJ. Recurso desprovido.
1. A simples indicação dos dispositivos legais tidos por violados,
sem que o tema tenha sido enfrentado pelo acórdão recorrido, obsta
o conhecimento do recurso especial, por falta de prequestionamento.
Incidência das Súmulas n. 282 e 356 do STF.
2. Não é nula a cédula de produtor rural financeira que não
contém a indicação do índice de preços a ser utilizado no resgate do
título e da instituição responsável por sua apuração ou divulgação, se
a cártula prevê sua futura liquidação, na data de vencimento pactuada,
por valor certo, obtido a partir da multiplicação da quantidade de
produto nela previsto e do preço unitário do produto nela indicado,
conforme o padrão e a safra a que se refere, pois o título contém os
referenciais necessários à clara identificação do preço, conforme exige
a primeira parte do inciso I do art. 4º-A da Lei n. 8.929/1994.
3. O recurso especial não comporta exame de questões que
impliquem revolvimento do contexto fático-probatório dos autos
(Súmula n. 7 do STJ).
4. No caso concreto, para que se conclua, como pretendem os
recorrentes, que as adversidades climáticas enfrentadas nos últimos
anos caracterizaram situação de caso fortuito ou força maior, indo além
das intempéries habituais reconhecidas pelo acórdão, seria necessário
o reexame de matéria fática, vedado em recurso especial.
5. Recurso especial a que se nega provimento.

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 551


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

ACÓRDÃO

A Quarta Turma, por unanimidade, negou provimento ao recurso especial,


nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Marco Buzzi,
Raul Araújo (Presidente) e Maria Isabel Gallotti votaram com o Sr. Ministro
Relator.
Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Luis Felipe Salomão.
Brasília (DF), 19 de outubro de 2021 (data do julgamento).
Ministro Antonio Carlos Ferreira, Relator

DJe 26.10.2021

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Antonio Carlos Ferreira: Trata-se de recurso especial


interposto contra acórdão do TJPR assim ementado (e-STJ fls. 474/475):

Processual Civil. Recurso. Apelação. Embargos do devedor. Titulo executivo


extrajudicial. Cédula de produto rural financeira e cédula rural pignoratícia.
Seguro. Inovação recursal. Matéria não submetida ao crivo do contraditório
e ao devido processo legal. Ausência de manifestação em primeiro grau. Não
conhecimento.
Cédula rural pignoratícia. Juros remuneratórios. Limitação em 12% ao ano.
Interesse recursal. Ausência. Matéria julgada favoravelmente ao recorrente. Não
conhecimento.
Cédula de produto rural financeira. Liquidação. Individualização do preço.
Exegese do art. 4º-A da Lei 10.200/2001. Requisitos presentes.
Inexigibilidade da divida. Frustração da safra. Estiagem. Caso fortuito e força
maior. Inocorrência. Atividade de risco.
Extrato de conta gráfica. Demonstração dos lançamentos do débito.
Regularidade.
Cédula de produto rural financeira. Juros remuneratórios. Crédito subsidiado.
Cobrança acima da taxa legal. Autorização do CMN. Ausência. Limitação em 12%
ao ano.
Cédula de crédito rural pignoratícia. Juros remuneratórios e juros moratórios.
Cumulação. Possibilidade.

Principio da sucumbência. Honorários advocatícios. Majoração. Apreciação


equitativa. Exegese do art. 20, § 4º, do CPC.

552
Jurisprudência da QUARTA TURMA

1. Inovação recursal. Não merece apreciação em sede recursal a matéria que


não foi oportunamente postulada, e que, por consequência, não se submeteu ao
crivo do contraditório e do devido processo legal.
2. Juros remuneratórios. Interesse recursal. Ausência. De acordo com o
princípio da congruência e da adstrição, não se pode recorrer de uma decisão que
lhe favorece.
3. Cédula de produto rural financeira. Regularidade do título. Exegese do art.
4º-A da Lei 10.200/2001. É regular a cédula de produto rural financeira que indica,
para a hipótese de liquidação financeira da obrigação, a identificação do preço a
ser utilizado, nos termos do art. 4º-A da Lei 10.200/2001.
4. Inexigibilidade da dívida. Frustração da safra. Caso fortuito e força maior -
inocorrência. A falta ou excesso de chuvas, bem como oscilações de preço, são
circunstâncias perfeitamente previsíveis na produção agrícola e não se qualificam
como eventos extraordinários, principalmente por ser atividade de risco,
afastando, assim, qualquer possibilidade de alteração na execução do contrato.
5. Extrato da conta vinculada ao empréstimo. O extrato da conta gráfica
vinculada à cédula rural pignoratícia, encontra-se juntado aos autos, e nele
constam todos os lançamentos referentes à operação, logo não há que se falar
em nulidade da execução. Ademais, o extrato da conta vinculada não constitui
documento indispensável à execução do crédito oriundo de cédula rural, desde
que a petição inicial seja instruída com documento hábil à demonstração
pormenorizada do débito, propiciando ampla defesa ao devedor.
6. Juros remuneratórios. Nas cédulas de produto rural financeira o ônus é
do credor em demonstrar que os juros foram pactuados acima do limite legal
mediante autorização expressa do Conselho Monetário Nacional, o que in casu
não ocorreu.
7. Juros remuneratórios e juros moratórios. Cumulação - possibilidade. Não há
impedimentos para a cumulação dos juros moratórios com os remuneratórios,
pois os dois desempenham funções distintas no curso da relação contratual. Ao
passo em que os juros remuneratórios exercem a função de remunerar o capital
emprestado, os juros moratórios servem para punir e desestimular o atraso no
cumprimento da obrigação.
8. Princípio da sucumbência. A sucumbência deve ser sopesada tanto pelo
aspecto quantitativo quanto pelo jurídico em que cada parte decai de suas
pretensões e resistências, respectivamente impostas.
Recurso de apelação 1 parcialmente conhecido e desprovido.
Recurso de apelação 2 parcialmente provido.

Cuida-se, na origem, de embargos do devedor opostos por Antonio Carlos


Rampazzo, José Carlos Rampazzo e Ondina de Queiroz Rampazzo à execução

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 553


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

fundada em cédula de produto rural financeira e cédula rural pignoratícia


que lhes move o Banco do Brasil S.A., alegando, quanto ao primeiro título: (a)
inexigibilidade da obrigação diante da ocorrência de caso fortuito e força maior,
consubstanciado na quebra generalizada da safra de algodão, resultante de
condições climáticas desfavoráveis, (b) ausência dos requisitos legais da cártula,
(c) ilegalidade da cobrança conjunta dos juros, fixados em 2% ao mês, e da taxa
Selic, e (d) nulidade da cláusula que convencionou o anatocismo.
Em relação ao segundo título (cédula rural pignoratícia), sustentaram os
embargantes: (a) nulidade da execução por ausência de conta gráfica vinculada
ao empréstimo, (b) abusividade da cláusula de vencimento antecipado, (c)
invalidade da cláusula que fixou juros remuneratórios em taxa superior a 12% ao
ano, (d) inviabilidade da cobrança da comissão de permanência, (e) ilegalidade
da cobrança de juros capitalizados, e (f ) impossibilidade de incidência de multa
sobre juros.
A sentença (e-STJ fls. 339/360) julgou parcialmente procedente o pedido
dos embargantes, ora recorrentes, a fim de reduzir os juros remuneratórios para
12% (doze por cento) ao ano, nos dois títulos, e vedar a incidência da multa
moratória sobre os juros moratórios, mantendo-se os demais encargos conforme
pactuados.
Inconformadas, apelaram as partes ao TJPR, que deu parcial provimento
ao recurso do banco, apenas para majorar a verba honorária, e negou provimento
ao apelo dos recorrentes, nos termos da ementa transcrita.
Nas razões recursais (e-STJ fls. 493/513), fundamentadas no art. 105, III,
“a”, da CF, os recorrentes alegam ofensa aos seguintes dispositivos legais, sob as
respectivas teses:
(i) Art. 515, § 1º, do CPC/1973, sustentando que a questão referente
à cobertura securitária não pode ser considerada indevida inovação recursal,
pois, embora a sentença não tenha tratado do tema, a contratação do seguro
e a quitação da respectiva apólice foram objeto tanto de deliberação na fase
instrutória quanto de pronunciamento específico “por ocasião das alegações
finais, tendo os Recorrentes pugnado pela manifestação do Juízo acerca do
assunto, vez que implicaria no decreto de nulidade da execução, já que afeto
aos requisitos do título executivo” (e-STJ fl. 499). Nesse contexto, o silêncio
da sentença sobre a questão suscitada e discutida no processo não configuraria
óbice para o seu exame no julgamento da apelação.
(ii) Art. 267, § 3º, do CPC/1973, sob a alegação de que o exequente, ora
recorrido, seria carecedor da ação, por falta de interesse processual, uma vez que

554
Jurisprudência da QUARTA TURMA

“a existência do seguro implica em afastamento dos requisitos legais do título, já


que o mesmo tornar-se-ia inexigível” (e-STJ fl. 499).
(iii) Art. 4º-A, I e II, da Lei n. 8.929/1994, alterado pela Lei n. 10.200/2001,
argumentando que a cédula de produto rural financeira objeto da execução
é nula de pleno direito, porque não consta do título a indicação do índice de
preços a ser utilizado no resgate do título e a instituição responsável por sua
apuração ou divulgação, requisito essencial à validade da cédula.
(iv) Arts. 393, parágrafo único, do CC e 586 do CPC/1973, defendendo que
as dificuldades que resultaram na quebra da safra não configuraram “intempéries
climáticas habituais, com as quais anualmente o agricultor está sujeito, mas sim
de adversidades absurdamente desfavoráveis, atingindo não só os Recorrentes,
mas toda uma região”, razão pela qual ficou configurada a ocorrência de caso
fortuito ou força maior a ensejar a inexigibilidade da obrigação.
O recorrido apresentou contrarrazões (e-STJ fls. 524/534).
O recurso especial foi admitido na origem (e-STJ fls. 538/539).
Às fls. 651/652 (e-STJ), proferi decisão deferindo o ingresso do Fundo de
Investimento em Direitos Creditórios Alternative Assets I no polo passivo do feito,
por ser tal entidade cessionária dos títulos objeto da execução (e-STJ fl. 554).
É o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Antonio Carlos Ferreira (Relator): O recurso especial foi


interposto com fundamento no Código de Processo Civil de 1973, motivo
por que devem ser exigidos os requisitos de admissibilidade recursal na forma
nele prevista, com as interpretações dadas pela jurisprudência desta Corte
(Enunciado Administrativo n. 2/STJ).

I - Do seguro

A respeito da suposta inexigibilidade da dívida em razão da existência de


seguro, assim se pronunciou a Corte local (e-STJ fl. 478):

Do seguro. Inovação recursal.


1. Analisando os autos, verifica-se que a questão referente ao seguro, não
foi submetida ao crivo do contraditório e do devido processo. Note-se que o
embargante, na petição inicial, não faz qualquer menção acerca desta alegação.

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 555


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Dessa forma, ao ventilar questão não arguida oportunamente, descumpriu o


apelante a orientação contida no princípio da eventualidade, de modo que seu
conhecimento, por respeito à disciplina dos arts. 128 e 460 do CPC, resta obstado
por se tratar de inovação em sede recursal.
1.1. Nesse sentido a orientação da doutrina acerca do tema:

Não se julga novo litígio na apelação. Mas a lide decidida em primeiro


grau é de novo apreciada e julgada em segundo grau. As linhas que o autor
demarcou para o litígio, no libelo apresentado com a inicial, são as mesmas
que traçam o parâmetro da res judicanda na instância de segundo grau
quando plena a devolução. O Juízo ad quem examina do mérito tal como
o Juízo a quo.1

1.2. Assim sendo, impossível conhecer desta matéria, sob pena de violação do
princípio do duplo grau de jurisdição.

Como se vê, os temas tratados nos arts. 267, § 3º, e 515, § 1º, do CPC/1973
não foram analisados pelo Tribunal estadual.
Com efeito, não houve debate no acórdão recorrido a respeito das teses
defendidas no recurso especial relativas à carência da ação, por falta de interesse
processual, e à possibilidade de o Tribunal examinar questão não decidida pelo
Juízo de origem, mas discutida na fase instrutória e objeto de “manifestação
específica por ocasião das alegações finais” (e-STJ fl. 499). Além disso, não
foram opostos embargos de declaração com a finalidade de sanar omissão
porventura existente sobre a matéria.
Nos termos da jurisprudência pacífica desta Corte, a simples indicação
dos dispositivos legais tidos por violados, sem que o tema tenha sido enfrentado
pela decisão recorrida, impede o conhecimento do recurso especial, por falta de
prequestionamento. A insurgência, nesse ponto, encontra óbice nas Súmulas n.
282 e 356 do STF.
Nada obstante, cumpre consignar que, de fato, nem na petição inicial
dos embargos do devedor (e-STJ fls. 1/26), nem na resposta apresentada à
impugnação ofertada pelo Banco do Brasil (e-STJ fls. 155/173), os recorrentes
fizeram qualquer menção ao aludido seguro.

II - Da nulidade da cédula de produto rural financeira

Em relação à alegada ofensa ao art. 4º-A, I e II, da Lei n. 8.929/1994,


com a redação dada pela Lei n. 10.200/2001, a questão objeto da controvérsia
cinge-se em saber se deve ser considerada nula a cédula de produto rural

556
Jurisprudência da QUARTA TURMA

financeira objeto da execução, por não constar do título a indicação do índice de


preço utilizado nem a instituição responsável por sua apuração ou divulgação,
conforme os recorrentes entendem ser expressamente exigido pela norma.
A Lei n. 8.929, de 22 de agosto de 1994, instituiu a Cédula de Produto
Rural (CPR) representativa de promessa de entrega de produtos rurais, com
ou sem garantias cedularmente constituídas, como um novo instrumento no
sistema de crédito rural, destinado a proporcionar ao agricultor a possibilidade
de obter capital necessário para o fomento do seu negócio por meio da venda
antecipada de parte ou da totalidade da produção esperada.
Com a emissão da cédula de produto rural, o emitente se a obriga a
entregar o produto rural indicado conforme as especificações de quantidade e
qualidade avençadas, recebendo antecipadamente parte do valor que pretende
obter com a venda desse produto.
Conforme destaca Arnoldo Wald, “A nova legislação criou, assim, um
interessante tipo de ativo financeiro, negociável nos mercados de bolsa e de
balcão, cujo pagamento não está atrelado à moeda, mas à entrega de produtos
rurais de qualquer espécie. Essa negociabilidade ampla deve servir como
estímulo à difusão da CPR como título de financiamento de atividades rurais”
(WALD, Arnoldo. Do regime legal da Cédula de Produto Rural (CPR). Revista
de Informação Legislativa, Senado Federal, v. 34, n. 136, dez/1997, p. 241).
A Medida Provisória n. 2.017, de 19/1/2000, posteriormente convertida na
Lei n. 10.200/2000, alterou a norma mencionada, criando uma nova modalidade
de cédula de produto rural, a Cédula de Produto Rural Financeira. Essa nova
variante, prevista no art. 4º-A, que foi acrescido ao texto da Lei n. 8.929/1994,
trouxe como principal inovação a possibilidade de liquidação do título com
o pagamento em dinheiro do valor correspondente ao produto, nos termos
previstos na cártula, ao invés da entrega in natura do produto rural nela indicado.
Confira-se o teor do art. 4º-A da Lei n. 8.929/1994:

Art. 4º-A. Fica permitida a liquidação financeira da CPR de que trata esta Lei,
desde que observadas as seguintes condições:
I - que seja explicitado, em seu corpo, os referenciais necessários à clara
identificação do preço ou do índice de preços a ser utilizado no resgate do título, a
instituição responsável por sua apuração ou divulgação, a praça ou o mercado de
formação do preço e o nome do índice;
II - que os indicadores de preço de que trata o inciso anterior sejam apurados
por instituições idôneas e de credibilidade junto às partes contratantes, tenham

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 557


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

divulgação periódica, preferencialmente diária, e ampla divulgação ou facilidade


de acesso, de forma a estarem facilmente disponíveis para as partes contratantes;
III - que seja caracterizada por seu nome, seguido da expressão “financeira”.
§ 1º A CPR com liquidação financeira é um título líquido e certo, exigível, na
data de seu vencimento, pelo resultado da multiplicação do preço, apurado
segundo os critérios previstos neste artigo, pela quantidade do produto
especificado.
§ 2º Para cobrança da CPR com liquidação financeira, cabe ação de execução
por quantia certa. (Grifei.)

Não há dúvidas de que a cédula de produtor rural financeira somente


constitui título executivo, nos termos no art. 4º-A da Lei n. 8.929/1994, se nela
estiverem contidos os requisitos ali exigidos, entre eles a clara identificação do
preço ou as especificações que propiciem a apuração do valor do produto na data
avençada para o resgate.
Com efeito, os títulos de crédito são documentos formais. Conforme
destaca Fran Martins: “(...) o formalismo é o fator preponderante para a
existência do título e sem ele não terão eficácia os demais princípios próprios
dos títulos de crédito. Tanto a autonomia das obrigações como a literalidade e
a abstração só poderão ser invocadas se o título estiver legalmente formalizado,
donde dizerem as leis que não terão o valor de título de crédito os documentos
que não se revestirem das formalidades exigidas por ditas leis. Cada espécie de
título possui, assim, uma forma própria. Isso se obtém através do cumprimento
de requisitos, expressamente enumerados na lei. Devem, desse modo, tais
requisitos constar obrigatoriamente dos títulos, e do modo preconizado na lei”
(MARTINS, Fran. Títulos de crédito: letra de câmbio e nota promissória. 13ª
ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. v. 1).
Assim, entre os requisitos de validade da cédula de produtor rural financeira
estão os referenciais (i) necessários à clara identificação do preço (primeira parte
do inciso I do art. 4º-A da Lei n. 8.929/1994) ou (ii) do índice de preços a ser
utilizado no resgate do título (segunda parte do mesmo dispositivo), sendo que,
nessa última hipótese, é imprescindível a identificação da instituição responsável
por sua apuração ou divulgação, a praça ou o mercado de formação do preço e o
nome do índice.
A necessidade de indicação, no corpo da cédula, do índice de preços e
da instituição responsável por sua apuração ou divulgação tem a finalidade de
evitar a potestatividade da cláusula de apuração do preço. A ausência dessas

558
Jurisprudência da QUARTA TURMA

informações implica a nulidade do título pois deixa a apuração dos valores ao


arbítrio exclusivo do credor.
No entanto, se o próprio título contém os referenciais necessários à clara
identificação do preço, conforme prevê a primeira parte do inciso I do art. 4º-A
da Lei n. 8.929/1994, o devedor fica ciente, desde o momento da contratação,
do valor que pagará ao final, tornando desnecessárias as referidas informações
complementares. Com efeito, não há como ser potestativa a cláusula que prevê
a liquidação financeira por preço fixo, pois o valor final a ser pago independe da
variação de preço do produto ou de índices de preços.
No caso concreto, conforme se extrai da sentença: “(...) as partes firmaram
Cédula de Produto Rural Financeira de n. 2004/149351, referente à safra de
algodão em caroço, base tipo 6 – 10.070 arrobas – preço unitário R$ 14,40 a
arroba – do ano de 2004/2005, com data de pagamento em 14/11/2005” (e-STJ
fl. 343).
Conforme destacou o Juízo de primeiro grau, “Do título executivo em
questão, o qual está às fls. 09 dos autos de execução em apenso, extrai-se que
consta do mesmo a quantidade de produto, o padrão deste produto, a safra que
se refere, a quantidade, o preço unitário, além da data do vencimento e o valor
do resgate da mesma. Consta ainda que em moeda corrente o valor do resgate
corresponde ao resultado da multiplicação do preço unitário do produto pela
quantidade de produto especificado” (e-STJ fl. 346).
Assim, as partes pactuaram a cédula de produtor rural financeira prevendo
sua futura liquidação por valor certo.
O acórdão recorrido, por sua vez, ao interpretar o dispositivo em comento
e examinar a cédula objeto da execução, também entendeu que (e-STJ fls.
480/482):

Da leitura do citado dispositivo pode-se concluir que, a liquidação da cédula


ficará vinculada à indicação do preço dos produtos ou de índice que permita a
mensuração do débito de forma objetiva. Logo, compete às partes no momento
da celebração do negocio jurídico, optar por um dos critérios determinados pelo
art. 4º-A, inciso I, da Lei 8.929/94.
(...)
No caso, infere-se da cédula de produto rural financeira (fls. 09/10 - exec.),
objeto da execução, a indicação da quantidade de produto, o padrão deste
produto, a safra a que se refere, o preço unitário, além da data do vencimento e
do valor do resgate da mesma. Consta ainda que em moeda corrente o valor do

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 559


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

resgate corresponde ao resultado da multiplicação do preço unitário do produto


pela quantidade de produto especificado.
Dessa forma, não há que se falar em nulidade do título, pois restou previamente
individualizado o preço do produto, critério que permite a liquidação objetiva da
dívida.

Portanto, como a cédula de produtor rural financeira objeto da execução


contém os referenciais necessários à clara identificação do preço, conforme
observaram as instâncias ordinárias a partir do exame das provas dos autos, em
especial das cláusulas pactuadas, a falta de indicação do índice de preços a ser
utilizado no resgate do título e da instituição responsável por sua apuração ou
divulgação não torna o título nulo, porque tais informações não são requisitos
para a modalidade de cédula pactuada.

III - Do caso fortuito ou força maior

Por fim, os recorrentes pretendem afastar a conclusão da Corte local de que


“a falta ou excesso de chuvas, bem como oscilações de preço, são circunstâncias
perfeitamente previsíveis na produção agrícola e não se qualificam como eventos
extraordinários, principalmente por ser atividade de risco, afastando, assim,
qualquer possibilidade de alteração na execução do contrato” (e-STJ fl. 483).
Alegam, para tanto que, ao contrário do que constou do acórdão recorrido,
“as provas produzidas durante a instrução processual, dão conta que os fatores
climáticos adversos suplantaram a normalidade, atingindo todos os agricultores
de maneira igualitária” (e-STJ fl. 510).
Assim, no entender dos recorrentes, embora seja certo que as intempéries
climáticas sejam inerentes às atividades por eles desenvolvidas, “Não menos
certo, todavia, é que as adversidades enfrentadas nos últimos anos sobrepõem-se
à normalidade, colhendo todos os agricultores de surpresa e causando imensos
prejuízos” (e-STJ fl. 511).
Observa-se, no entanto, que, no caso concreto, para alterar a conclusão do
acórdão recorrido, a fim de acatar a pretensão recursal e reconhecer que “a seca
que apanhou os Recorrentes é, sem sombra de dúvida, causa de extinção da
obrigação, enquadrando-se como caso fortuito ou força maior” (e-STJ fl. 512),
seria imprescindível o reexame do conjunto fático-probatório dos autos, o que é
inviável, conforme dispõe a Súmula n. 7 do STJ.
Anote-se, por fim, que, malgrado os recorrentes não mencionem a “teoria
da imprevisão” para amparar a pretensão nesse ponto e apenas se reportem à

560
Jurisprudência da QUARTA TURMA

existência de caso fortuito ou força maior, a jurisprudência desta Corte é no


sentido de que a teoria mencionada não se aplica a ajustes de venda antecipada
de safra agrícola, pois, nessa modalidade de contrato, as partes assumem, de
forma consciente, os riscos conhecidos e inerentes ao próprio negócio jurídico,
de sorte que o elemento aleatório representado pela incerteza do resultado da
safra futura é naturalmente sopesado e implicitamente aceito pelas partes no
momento da celebração do negócio e da fixação comutativa do preço.
Nesse diapasão, os fatores climáticos não podem ser invocados pelo
produtor rural, a título de caso fortuito e força maior, para impor ao credor a
inexigibilidade da dívida, haja vista ser notório que suas atividades estão sempre
sujeitas a tais intempéries e ainda a outros fenômenos da natureza, constituindo-
se risco próprio da atividade agrícola.
A propósito:

Agravo interno no agravo em recurso especial. Execução. Contrato de


financiamento. Conclusão acerca da liquidez, certeza e exigibilidade. Súmulas
5 e 7/STJ. Fundamento inatacado. Súmula 283/STF. Inaplicabilidade do CDC.
Súmula 83/STJ. Ausência de bis in idem. Súmula 5/STJ. Inviabilidade do pleito por
aplicação da multa contratual em 2%. Ausência de relação consumerista. Súmula
83/STJ. Impossibilidade de aplicação da teoria da imprevisão. Não ocorrência de
seus requisitos. Agravo interno desprovido.
[...]
6. A jurisprudência desta Corte Superior tem “entendimento segundo o qual
a Teoria da Imprevisão somente se aplica quando for demonstrada a ocorrência,
após a vigência do contrato, de evento imprevisível e extraordinário que onere
excessivamente uma das partes contratantes, não se inserindo, nesse contexto, as
intempéries climáticas. Incidência da Súmula 83/STJ, aplicável tanto aos recursos
interpostos pela alínea “c” como pela alínea “a” do permissivo constitucional”
(AgInt no AREsp 1.309.282/PR, Rel. Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado
em 12/8/2019, DJe 15/8/2019).
7. Agravo interno desprovido.
(AgInt no AREsp 1.602.292/RJ, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira
Turma, julgado em 24/08/2020, DJe 01/09/2020.)

Agravo regimental no agravo em recurso especial. Cerceamento de defesa não


configurado. Necessidade de produção de provas. Art. 130 do CPC. Julgamento
antecipado da lide. Faculdade do juiz. Reexame de provas. Súmula 7/STJ.
Teoria da imprevisão. Intempéries climáticas. Inaplicabilidade. Produtor rural.
Compra e venda de insumos agrícolas. Revisão de contrato. Código de Defesa do
Consumidor. Não incidência. Cobrança abusiva de juros. Capitalização. Súmula 7/
STJ.

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 561


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

(...)
2. A jurisprudência desta Corte é pacífica em afirmar que a Teoria da Imprevisão
como forma de revisão judicial dos contratos somente será aplicada quando ficar
demonstrada a ocorrência, após a vigência do contrato, de evento imprevisível
e extraordinário que onere excessivamente uma das partes contratantes, não se
inserindo nesse contexto as intempéries climáticas.
(...)
5. Agravo regimental a que se nega provimento.
(AgRg no AREsp 155.702/MS, Rel. Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado
em 16/05/2013, DJe 27/06/2013.)

Diante do exposto, nego provimento ao recurso especial.


É como voto.

RECURSO ESPECIAL N. 1.545.217-PR (2015/0181174-9)

Relator: Ministro Luis Felipe Salomão


Relatora para o acórdão: Ministra Maria Isabel Gallotti
Recorrente: N M F R
Advogados: Vânia Aparecida Viotto Fuga - PR053799
Shinji Gohara e outro(s) - PR053800
Recorrido: N P de A
Advogado: Airton Keiji Ueda e outro(s) - PR018555

EMENTA

Recurso especial. Previdência privada. Entidade fechada.


Proventos complementares. Regaste de reserva de poupança após o
início do recebimento do benefício em razão da retirada de patrocínio
pela ex-empregadora. Posterior extinção vínculo matrimonial.
Regime de comunhão universal ou parcial de bens. Verba excluída do
patrimônio comum e da partilha de bens.
1. As contribuições feitas para plano de previdência fechado,
em percentual do salário do empregado, aportadas pelo beneficiário e

562
Jurisprudência da QUARTA TURMA

pelo patrocinador, conforme definido pelo estatuto da entidade, não


integram o patrimônio sujeito à comunhão de bens a ser partilhado
quando da extinção do vínculo conjugal.
2. Hipótese em que, após o início do recebimento do benefício
complementar, houve a retirada do patrocínio pelo ex-empregador,
ensejando a opção pelo resgate da reserva de poupança pelo assistido.
O resgate dos valores originalmente destinados a custear, ao longo
dos anos, o benefício extinto não lhes retira a natureza previdenciária
e personalíssima, motivo pelo qual não se trata de bem integrante da
comunhão sujeito à partilha decorrente do fim do casamento ou união
estável (art. 1.659, inc VII, c/c o art. 1.668, inc. V, do CC/2002 e art.
263, inc. I, do CC/2016). Precedentes.
3. Recurso especial ao qual se nega provimento.

ACÓRDÃO

Após o voto-desempate do Ministro Marco Buzzi negando provimento


ao recurso especial, acompanhando a divergência, a Quarta turma, por maioria,
negou provimento ao recurso especial, nos termos do voto divergente da
Ministra Maria Isabel Gallotti, que lavrará o acórdão. Vencidos o relator e o
Ministro Antonio Carlos Ferreira, que davam provimento ao recurso especial.
Votaram vencidos os Srs. Ministros Luis Felipe Salomão (Presidente) e Antonio
Carlos Ferreira.
Votaram com a Sra. Ministra Maria Isabel Gallotti os Srs. Ministros Raul
Araújo e Marco Buzzi.
Brasília (DF), 07 de dezembro de 2021 (data do julgamento).
Ministra Maria Isabel Gallotti, Relatora p/ acórdão

DJe 9.2.2022

VOTO VENCIDO

O Sr. Ministro Luis Felipe Salomão: 1. N. M. F. R., separada judicialmente,


ajuizou, em dezembro de 2010, ação de sobrepartilha em face de seu ex-marido
N. P. de A. Narra que esteve casada com o réu, sob o regime de comunhão
universal de bens, no período de de 26 de novembro de 1977 a 31 de agosto de
2005.

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 563


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Assinala que, em 26 de fevereiro de 2010, ajuizou ação de alimentos


também em face do requerido e que, em junho do mesmo ano, teve conhecimento
de que seu ex-cônjuge fez um saque, no valor de R$ 437.716,44 (quatrocentos
e trinta e sete mil, setecentos e dezesseis reais e quarenta e quatro centavos), de
saldo existente em fundo de previdência privada administrado pela Fundação
Francisco Martins Bastos, patrocinado por sua ex-empregadora.
Pondera que, com a dedução do imposto de renda, o réu recebeu o valor de
R$ 302.996,26 (trezentos e dois mil, novecentos e noventa e seis reais e vinte e
seis centavos) e que o vínculo laboral mantido com a patrocinadora do plano de
benefícios foi extinto ainda durante o casamento, devendo ser partilhado, por
caracterizar bem sonegado.
O Juízo da 1ª Vara de Família da Comarca de Maringá julgou procedente
o pedido formulado na inicial.
Interpôs o réu apelação para o Tribunal de Justiça do Paraná, que deu
provimento ao recurso.
A decisão tem a seguinte ementa:

Apelação cível. Ação de sobrepartilha. Procedência. Inconformismo.


Previdência privada. Mudanças na empresa financiadora. Opção pelo recebimento
adiantado de todas as parcelas. Valor excluído da comunhão. Art. 1.668, VI e VII do
CC. Direito individual de aposentadoria e não aplicação financeira. Requerido
que já recebia aposentadoria comum e complementar quando da separação.
Sentença reformada. Inversão dos ônus da sucumbência.
1. “Assim como os valores do fundo de garantia por tempo de serviço, a quantia
depositada com o escopo de garantia da aposentadoria (previdência privada),
quando não sacada durante a união, não se reverte em proveito do casal, porque
mantém a sua natureza personalíssima” (Apelação Cível n. 70047144035, Oitava
Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Alzir Felippe Schmitz, Julgado em
28/06/2012).
2. Recurso conhecido e provido.

Sobreveio recurso especial da autora, com fundamento no art. 105, inciso


III, alíneas a e c, da Constituição Federal, sustentando divergência jurisprudencial
e violação do art. 1º da Lei Complementar n. 109/2001.
Afirma que foi casada com o recorrido no período de 26/11/1977 a
31/8/2005 e que, por ocasião da separação judicial, seu ex-cônjuge omitiu
ser titular de um fundo de previdência privada no valor de R$ 437.716,44

564
Jurisprudência da QUARTA TURMA

(quatrocentos e trinta e sete mil, setecentos e dezesseis reais e quarenta e quatro


centavos), perfazendo um montante líquido de R$ 302.996,26, utilizado para
aquisição de apartamento no Município de Joinville.
Aduz ter manejado a ação de sobrepartilha com o intuito de receber
50% do numerário resgatado pelo investimento feito durante o matrimônio
e que não concorda com a reforma da sentença pelo acórdão recorrido, pois,
analisando caso idêntico, este Colegiado, por ocasião do julgamento do REsp
n. 1.121.179/SP, relator Ministro Raul Araújo, perfilhou entendimento de
que se trata meramente de aplicação financeira, e não de direito individual de
aposentadoria.
Expõe que, em novo e mais recente julgamento desta Turma, esse
entendimento foi reafirmado, não procedendo o julgado perfilhado pela Corte
local acerca de se tratar de uma aposentadoria, e que, conforme julgado de outro
Tribunal de Justiça, é possível a partilha das cotas de previdência complementar
adquiridas, pois a previdência privada não pode ser considerada pecúlio e, antes
de se alcançar a idade instituída no plano, não passa de aplicação financeira
como qualquer outra.
Argumenta que o art. 1º da Lei Complementar n. 109/2001 deixa claro
que o regime de previdência privada se distingue do pecúlio de aposentadoria,
pois estabelece sua autonomia em relação ao regime previdenciário comum, e
que trata de apenas um complemento de renda, com todos os aspectos relativos
a um fundo de investimento de renda fixa, inclusive com possibilidade aportes
financeiros periódicos em uma única aplicação.
No tocante à previdência pública, não há uma relação contratual, e o titular
não tem a opção de sacar os valores pagos, devendo receber sua aposentadoria.
Em contrarrazões recursais, afirma o recorrido que: a) a recorrente pretende
o reexame de provas; b) recebeu a quantia de R$ 302.996,26, em 26/11/2009, e
que, por ocasião da separação, já recebia benefício de previdência complementar,
não havendo falar em sonegação de bens na partilha; c) foi participante do plano
de benefícios patrocinado por sua ex-empregadora desde antes do casamento;
d) a quantia vindicada foi adquirida por motivo de força maior/caso fortuito,
após a dissolução do vínculo matrimonial; e) o art. 19 da Lei Complementar
n. 109 estabelece que as contribuições têm caráter previdenciário, sendo direito
personalíssimo, excluído da comunhão de bens, por ser benefício/bônus do
trabalho pessoal; f ) sacou o valor integral quatro anos após a separação judicial,
tendo em vista que o art. 1.668, V, combinado com os incisos VI e VII do art.

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 565


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

1.659, ambos do CC, estabelece que são excluídos da comunhão os proventos do


trabalho pessoal de cada cônjuge, as pensões e rendas semelhantes; g) se houver
modificação do acórdão recorrido, é preciso levar em consideração que a Súmula
n. 290/STJ orienta que não cabe ao beneficiário a devolução da contribuição
efetuada pelo patrocinador, tendo-se operado a prescrição ânua prevista no art.
2.027 do CC para anulação da partilha.
O Ministério Público, desde a primeira instância, conforme consignado
na sentença, “deixou de se manifestar nos autos ao argumento de que nesta
demanda não se debate direitos de incapaz” (fl. 324).
O recurso especial foi admitido.
É o relatório.
A principal questão controvertida consiste em saber se a reserva de
poupança de plano de benefícios de previdência complementar, durante o
período de formação da reserva de benefício a conceder, tem natureza
previdenciária personalíssima ou caracteriza-se como mero investimento,
partilhável em caso de dissolução de casamento (vínculo conjugal) em regime de
comunhão universal ou parcial de bens.
Para melhor compreensão da controvérsia e por ser uma das linhas de
intelecção usualmente utilizadas para solução de controvérsias similares, cumpre
referir o que a sentença anotou:

Na a Autora expôs: ( ) casou-se com o Réu aos 26.11.1977, pelo regime da


comunhão universal de inicial a bens, separando-se judicialmente aos 31.08.2005
(autos n. 930/2005, que tramitaram na 2ª Vara da Família desta Comarca); ( )
por ocasião da separação os cônjuges declararam que os bens já haviam sido
partilhados, b porque a Autora nada sabia quanto aos bens que o Réu omitia;
( ) aforou demanda de alimentos em face do c Réu, em trâmite na 2ª Vara, aí
tomando conhecimento de que ele teria sacado saldo existente em fundo de
previdência privada, adquirindo, com este valor, um apartamento em Joinville, SC;
( ) o Réu omitiu, por ocasião d da separação, que era titular desse fundo, no valor
R$ 437.716,44 (ou R$ 302.996,26 líquidos); ( ) pede a e procedência da demanda,
com a partilha desse montante. Juntou documentos (sequências 1.2-1.56).
O Réu, na (sequência 16.3), aduziu: (a) a Autora tinha ciência da previdência
privada, porque contestação a somente com o benefício do INSS não conseguiria
arcar com todas as despesas domésticas; (b) a b empregadora, Ipiranga, contribuía
integralmente para a previdência antes da celebração do casamento; (c) quando
a empresa fora adquirida por um grupo internacional, o novo empregador deixou
de continuar contribuindo; (d) este lhe deu a opção de manter a aposentadoria,
mas em valor inferior ao que percebia, ou a d título de indenização, a de antecipar

566
Jurisprudência da QUARTA TURMA

o resgate do valor das parcelas pelo tempo decorrido; (e) optou por esta e
alternativa, deixando de receber o benefício privado; (f) o pleito da Autora não
respeita direito personalíssimo, do f Réu, inerente à época da separação; (g) o
numerário aludido pela Autora consistia em frutos gerados por sua g renda,
pertencentes, portanto, exclusivamente a si; (h) pede a improcedência da
demanda. Juntou documentos (sequências 16.4-16.10).
[...]
A previdência privada enquanto não plenamente alcançada pelo segurado
(ou seja, enquanto não preenchidos os requisitos para obtê-la, , por exemplo, o
atingimento de certa idade), é considerada como in concreto , ou seja, , que
será comum se assim forem os recursos investidos (ainda aplicação financeira
investimento que em nome de um, de outro ou de ambos).
Assim, as verbas injetadas (e/ou seus frutos) em poupanças, em imóveis ou
em qualquer outro, investimento sem dúvida, são e, de corolário, . Vai daí que os
fundos de previdência privada comuns suscetíveis à partilha são personalíssimos.
Ao contrário, são e, por conseguinte, sujeitos à comunicação, sobretudo não comuns
quando há (restituição, compensação ou indenização), consoante o Réu informou na
reembolso antecipado resposta.
A propósito, se o cônjuge que governa as finanças comuns livre para aplicá-las
em previdência privada fosse que em benefício unicamente dele (o que aconteceria
se essa contratação caracterizasse haver viesse personalíssimo), decerto, o caminho
para quebra ou fraude no regime da comunhão parcial de bens estaria aberto àquele
que assim agisse, e, obviamente, em indevido prejuízo ao outro consorte.
Realce-se que há de personalíssimo nos direitos percebidos pelo Réu, pouco
importando tenham sido nada cobrados e/ou recebidos do rompimento, porque o
é que o desse direito foi depois determinante nascimento contemporâneo a então
união das partes, porque os ou aconteceram durante ela (o investimentos aplicações
que, a propósito, é fato incontroverso).

O acórdão recorrido, por seu turno, dispôs:

Portanto, em decorrência da própria nomenclatura do plano (Plano de Previdência


Privada), trata-se em princípio de um direito individual de aposentadoria e não de
aplicação financeira, sem embargo da ressalva anotada na r. sentença: “A previdência
privada enquanto não plenamente alcançada pelo segurado (ou seja, enquanto não
preenchidos os requisitos para obtê-la, in concreto, por exemplo, o atingimento de
certa idade), é considerada como aplicação financeira, ou seja, investimento, que será
comum se assim forem os recursos investidos (ainda que em nome de um, de outro ou
de ambos)”.
Mas não é esse o caso dos autos. Aliás, no tocante a esse fundamento, o
decisum destoa das provas produzidas, uma vez que na data que em houve a
separação consensual (31/08/2005 – doc. 01, mov. 16.4) o apelante já estava

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 567


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

recebendo a aposentadoria, que lhe fora concedida a partir de 03.05.2005,


conforme documento da Previdência Social (doc. 06, mov. 16.4), com a
complementação oriunda da previdência privada (doc. 15, mov. 16.6).
Cabe assinalar que, no caso vertente, a previdência privada não se constituiu
somente através de investimento do apelante, pois o respectivo fundo era
patrocinado pelo empregador – fato que não ensejou controvérsia -, assumindo
assim a natureza de verba trabalhista, ao menos parcialmente, depositada na conta
vinculada simultaneamente com o salário.
Posteriormente, em razão de alterações da própria instituição financeira, o
apelante fez a opção de receber todo o valor da aposentadoria privada de uma só
vez, em 26/11/2009 (cf. demonstrativo de pagamento e extrato bancário – doc. 11,
mov. 16.4).
Trata-se de valores creditados juntamente com os proventos do trabalho, durante
a constância da sociedade conjugal (comunhão universal), e que geraram em favor
do cônjuge-varão o benefício da aposentadoria complementar, já vigente por
ocasião da separação judicial.
Assim, se naquela ocasião da separação aqueles bens não integravam o
patrimônio comum, em virtude de sua natureza alimentar (proventos), após
a separação, não passarão a integrá-lo pelo fato de o apelante receber verba
indenizatória em razão da cessação de seu pagamento. Esse argumento se mantém,
mesmo que tal verba tenha resultado de opção feita pelo apelante, de obter o
pagamento de uma só vez (daí seu caráter indenizatório), ao invés de passar a
receber uma complementação mensal menor.
De qualquer modo, verifica-se que a soma visa a compensar a perda de proventos
de aposentadoria complementar que seriam recebidos no futuro, e não parcelas que
deixaram de ser pagas em período pretérito que tivesse alguma coincidência com o
período do matrimônio.

3. Para logo, é oportuno ressaltar que, conforme corrente doutrinária


e informado pela própria SUSEP - Órgão público supervisor das entidades
abertas de previdência complementar -, em seu site, apenas o Plano Gerador
de Benefícios Livres (PGBL) caracteriza genuíno plano de benefícios de
previdência complementar:

VGBL (Vida Gerador de Benefícios Livres) e PGBL (Plano Gerador de Benefícios


Livres) são planos por sobrevivência (de seguro de pessoas e de previdência
complementar aberta, respectivamente) que, após um período de acumulação
de recursos (período de diferimento), proporcionam aos investidores (segurados
e participantes) uma renda mensal - que poderá ser vitalícia ou por período
determinado - ou um pagamento único. O primeiro (VGBL) é classificado como
seguro de pessoa, enquanto o segundo (PGBL) é um plano de previdência
complementar.

568
Jurisprudência da QUARTA TURMA

A principal diferença entre os dois reside no tratamento tributário dispensado


a um e outro. Em ambos os casos, o imposto de renda incide apenas no momento
do resgate ou recebimento da renda. Entretanto, enquanto no VGBL o imposto
de renda incide apenas sobre os rendimentos, no PGBL o imposto incide sobre o
valor total a ser resgatado ou recebido sob a forma de renda.
No caso do PGBL, os participantes que utilizam o modelo completo
de declaração de ajuste anual do I.R.P.F podem deduzir as contribuições do
respectivo exercício, no limite máximo de 12% de sua renda bruta anual.
(Disponível em: <ttp://www.susep.gov.br/setores-susep/seger/coate/
perguntas-mais-frequentes-sobre-planos-por-sobrevivencia-pgbl-e-vgbl >.
Acesso em: 7 de fevereiro de 2020)

No entanto, como bem reconhecido pelo órgão supervisor, não há diferença


ontológica entre esses planos - ambos, se o contrato seguir seu curso natural,
ostentam feição nitidamente de seguro social -, mas apenas no tratamento
tributário conferido.
Deveras, na mesma toada, segundo preconiza Adacir Reis, “o Vida Gerador
de Benefícios Livres - VGBL é um seguro com cobertura de sobrevivência”
(REIS, Adacir. Curso básico de previdência complementar. 3. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2018, p. 119).
4. De outro lado, dependendo da vontade das partes, como também de
disposições cogentes, os bens das pessoas casadas podem-se comunicar, isto é,
passar à titularidade também do outro consorte. Pela comunicação, instaura-
se um condomínio entre marido e mulher; mas um condomínio de direito de
família, sujeito a regras próprias, que não coincidem necessariamente com as de
direito das coisas (COELHO, Fábio Ulhoa. Direito de Família. 4. ed. São Paulo:
Saraiva, 2011, p. 77).
O CC/2002 aponta quatro regimes: comunhão universal, comunhão
parcial, separação absoluta e participação final nos aquestos. Se os consortes
nada contrataram sobre seus bens ou se o que convencionaram resultou nulo ou
ineficaz, será observado o regime da comunhão parcial (art. 1.640).
Assim, no caso ora em julgamento, a sociedade conjugal outrora mantida
pelas partes submetia-se a regime da comunhão universal de bens, e a lei exclui
da comunhão pensões, meios-soldos, montepios e outras rendas semelhantes, como
prevê o art. 1.668, V, c/c o art. 1.659, VII, do CC. No mesmo diapasão, também
dispunha o art. 263, I, do CC/1916, vigente por ocasião do matrimônio.
Com efeito, mesmo em se tratando de comunhão universal de bens, os
proventos do trabalho pessoal (CC, arts. 1.668, V, e 1.659, VI) são excluídos

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 569


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

da universalidade da comunhão. Dessarte, a título ilustrativo, no tocante aos


honorários que um profissional liberal tem a receber, ainda que o trabalho
profissional tenha sido prestado predominantemente durante a constância do
casamento, se o recebimento da remuneração ocorre quando finda a sociedade
conjugal, o outro cônjuge nenhum direito titula sobre o dinheiro correspondente
(COELHO, Fábio Ulhoa Curso de direito civil: Família e Sucessões. 4. ed. São
Paulo: Saraiva, 2011, p. 88-89).
Por dever de lealdade, consigno que, de fato, quando do julgamento
do acórdão paradigma, REsp n. 1.121.179/SP, analisando pela ótica da
penhorabilidade da verba, este Colegiado perfilhou o entendimento de que a
reserva de poupança de plano de benefício de previdência complementar não
ostenta nítido caráter alimentar, constituindo aplicação financeira de longo
prazo, passível até mesmo de penhora. Na ocasião, aderindo ao voto-condutor,
ponderei que se percebe que o PGBL é tratado como produto que os bancos
oferecem como fundo de investimento, com possibilidade de resgate.
O precedente tem a seguinte ementa:

Recurso especial. Ex-diretor de banco. Intervenção. Posterior falência.


Indisponibilidade de todos os bens dos administradores (Lei n. 6.024/74, art.
36). Fundo de Previdência Privada. PGBL. Natureza de poupança previdenciária.
Impenhorabilidade (Lei n. 6.024/74, art. 36, § 3º; CPC, art. 649, IV). Inocorrência.
Verba que não detém nítido caráter alimentar.
1. O art. 36 da Lei n. 6.024/74 estabelece que a indisponibilidade atinge todos
os bens das pessoas nele indicadas, não fazendo distinção seja acerca da duração
do período de gestão, seja entre os haveres adquiridos antes ou depois do
ingresso na administração da instituição financeira sob intervenção ou liquidação
extrajudicial ou em falência.
2. Essa rígida indisponibilidade, que, de lege ferenda, talvez esteja a
merecer alguma flexibilização por parte do legislador, tem como fundamento
a preservação dos interesses dos depositantes e aplicadores de boa-fé, que
mantinham suas economias junto à instituição financeira falida, sobre a qual
pairam suspeitas de gestão temerária ou fraudulenta.
3. Por outro lado, consoante se vê do § 3º do mesmo art. 36, os bens
considerados impenhoráveis, como é o caso daqueles relacionados no art. 649,
inciso IV, do CPC, não se incluem no severo regime de indisponibilidade de bens
imposto pela Lei 6.024/74 aos administradores de instituição financeira falida.
4. O saldo de depósito em PGBL - Plano Gerador de Benefício Livre não ostenta
nítido caráter alimentar, constituindo aplicação financeira de longo prazo, de
relevante natureza de poupança previdenciária, porém susceptível de penhora.

570
Jurisprudência da QUARTA TURMA

O mesmo sucede com valores em caderneta de poupança e outros tipos de


aplicações e investimentos, que, embora possam ter originalmente natureza
alimentar, provindo de remuneração mensal percebida pelo titular, perdem essa
característica no decorrer do tempo, justamente porque não foram utilizados
para manutenção do empregado e de sua família no período em que auferidos,
passando a se constituir em investimento ou poupança.
5. Assim, a lei considera irrelevante o fato de os valores em fundo de plano de
previdência privada terem sido depositados antes de o recorrente ter ingressado
na gestão do Banco Santos, na qual permaneceu por apenas cinquenta e dois
dias.
6. Recurso especial a que se nega provimento.
(REsp 1.121.719/SP, Rel. Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em
15/03/2011, DJe 27/04/2011)

No entanto, ressalto que a questão acerca da reserva de poupança, segundo


entendo, sofreu um amadurecimento jurisprudencial no âmbito da Segunda
Seção desta Corte, o que permite um novo olhar sobre o relevante tema.
Com efeito, o precedente mencionado foi reformado pela Segunda Seção,
em Embargos de Divergência, relatora Ministra Nancy Andrighi, em que se
estabeleceu que o regime de previdência privada complementar é, nos termos do
art. 1º da LC n. 109/2001, “baseado na constituição de reservas que garantam o
benefício, nos termos do caput do art. 202 da Constituição Federal”, que, por sua
vez, está inserido na seção que dispõe sobre a Previdência Social. A decisão tem
a seguinte ementa:

Processual Civil. Embargos de divergência em recurso especial. Saldo em fundo


de previdência privada complementar. Impenhorabilidade. Indisponibilidade de
bens determinada à luz do art. 36 da Lei 6.024/74. Medida desproporcional.
1. O regime de previdência privada complementar é, nos termos do art. 1º da
LC 109/2001, “baseado na constituição de reservas que garantam o benefício,
nos termos do caput do art. 202 da Constituição Federal”, que, por sua vez, está
inserido na seção que dispõe sobre a Previdência Social.
2. Embora não se negue que o PGBL permite o “resgate da totalidade das
contribuições vertidas ao plano pelo participante” (art. 14, III, da LC 109/2001),
essa faculdade concedida ao participante de fundo de previdência privada
complementar não tem o condão de afastar, de forma inexorável, a natureza
essencialmente previdenciária e, portanto, alimentar, do saldo existente.
3. Por isso, a impenhorabilidade dos valores depositados em fundo de
previdência privada complementar deve ser aferida pelo Juiz casuisticamente, de
modo que, se as provas dos autos revelarem a necessidade de utilização do saldo

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para a subsistência do participante e de sua família, caracterizada estará a sua


natureza alimentar, na forma do art. 649, IV, do CPC.
4. Ante as peculiaridades da espécie (curto período em que o embargante
esteve à frente da instituição financeira e sua ínfima participação no respectivo
capital social), não se mostra razoável impor ao embargante tão grave medida,
de ter decretada a indisponibilidade de todos os seus bens, inclusive do saldo
existente em fundo de previdência privada complementar - PGBL.
5. Embargos de divergência conhecidos e providos.
(EREsp 1.121.719/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Segunda Seção, julgado em
12/02/2014, DJe 04/04/2014)

Nesse mencionado precedente, Sua Excelência dispôs:

2. Da indisponibilidade do fundo de previdência privada complementar


O regime de previdência privada complementar é, nos termos do art. 1º da
LC 109/2001, “baseado na constituição de reservas que garantam o benefício, nos
termos do caput do art. 202 da Constituição Federal”, que, por sua vez, está inserido
na seção que dispõe sobre a Previdência Social.
Como bem esclareceu o i. Relator, Min. Raul Araújo, na aplicação em PGBL –
Plano Gerador de Benefício Livre – o participante realiza depósitos periódicos, os
quais são aplicados e transformam-se em uma reserva financeira, que poderá ser
por ele antecipadamente resgatada ou recebida em data definida, seja em uma
única parcela, seja por meio de depósitos mensais.
Em qualquer hipótese, não se pode perder de vista que, em geral, o
participante adere a esse tipo de contrato com o intuito de resguardar o próprio
futuro e/ou de seus beneficiários, garantindo o recebimento de certa quantia, que
julga suficiente para a manutenção futura do atual padrão de vida. Essa é, aliás, a
finalidade precípua dos fundos de previdência privada, e o principal diferenciador
das aplicações financeiras convencionais.
Assim, não se nega que o PGBL permite o “resgate da totalidade das
contribuições vertidas ao plano pelo participante” (art. 14, III, da LC 109/2001),
no entanto, essa faculdade concedida ao participante não tem o condão de
afastar, de forma absoluta, a natureza essencialmente previdenciária e, portanto,
alimentar, do saldo existente naquele fundo.
Veja-se que a mesma razão que protege os proventos advindos da
aposentadoria privada deve valer para a reserva financeira que visa
justamente a assegurá-los, sob pena de se tornar inócua a própria garantia da
impenhorabilidade daqueles proventos.
Outrossim, se é da essência do regime de previdência complementar a
inscrição em um plano de benefícios de caráter previdenciário, não é lógico
afirmar que os valores depositados pelo participante possam, originalmente, ter

572
Jurisprudência da QUARTA TURMA

natureza alimentar, e, com o decorrer do tempo, “justamente porque não foram


utilizados para a manutenção do empregado e de sua família no período em que
auferidos”, passem a se constituir em investimento ou poupança, como decidiu o
acórdão embargado.
Por isso, a impenhorabilidade dos valores depositados em fundo de
previdência privada complementar deve ser aferida pelo Juiz casuisticamente, de
modo que, se as provas dos autos revelarem a necessidade de utilização do saldo
para a subsistência do participante e de sua família, caracterizada estará a sua
natureza alimentar.
Ou seja, a menos que fique comprovado que, no caso concreto, o participante
resgatou as contribuições vertidas ao Plano, sem consumi-las para o suprimento
de suas necessidades básicas, valendo-se, pois, do fundo de previdência privada
como verdadeira aplicação financeira, o saldo existente se encontra abrangido
pelo art. 649, IV, do CPC.

5. Com efeito, proclama o art. 202 da CF que o regime de previdência


complementar é baseado na constituição de reservas que garantam o benefício
contratado e regulado por lei complementar.
Como fica nítido, o dispositivo constitucional, na mesma linha do art. 1º
da Lei Complementar n. 109/2001 - dispositivo tido por violado -, consagra
o regime financeiro de capitalização, o que constitui o pilar da previdência
complementar.
De fato, como se extrai do pontuado no abalizado escólio de Adacir Reis,
os recursos são capitalizados, isto é, investidos como lastro para que os benefícios
sejam pagos, sem perderem a característica de recurso previdenciário – havendo
inclusive uma projeção de rentabilidade até a elegibilidade do benefício, o que
se constitui de extrema relevância para a formação da reserva de benefício a
conceder. Veja-se:

Está no art. 202 da CF/1988: a constituição de reservas deve garantir o


benefício contratado.
[...]
A previdência complementar é baseada no regime de capitalização.
O § 1º do art. 18 da LC 109/2001 estabelece: “o regime financeiro de
capitalização é obrigatório para os benefícios de pagamento em prestações que
sejam programada e continuadas”.
Portanto, para pagamento de benefícios de aposentadoria complementar,
é indispensável o prévio custeio, o que significa mobilizar e gerenciar recursos
financeiros, aqui chamados de recursos previdenciários.

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As contribuições e os rendimentos decorrentes das aplicações constituem o


lastro para que os benefícios previdenciários sejam pagos.
[...]
Como o dinheiro não pode ficara parado, nem guardado debaixo do colhão, entra
em cena a área de investimentos da entidade previdenciária.
Cada plano de previdência complementar possui seus recursos garantidores
(REIS, Adacir. Curso básico de previdência complementar. 3 ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2018, p. 88).

Conforme a uníssona doutrina especializada, o fim da formação do fundo para


assegurar benefício previdenciário não é o enriquecimento, mas a manutenção de um
padrão equivalente de vida em fase madura da vida.
A leitura do art. 1º, § 1º, da Lei n. 12.618/2012, que institui o regime de
previdência complementar para os servidores públicos federais, deixa claro que
se estabeleceu a possibilidade de o servidor que tenha ingressado no serviço
público antes da vigência da lei, mediante prévia e expressa opção, poder aderir
ao regime de que trata esse artigo, passando a contribuição previdenciária
superior ao limite máximo estabelecido para os benefícios do Regime Geral
de Previdência Social, a ser vertida pelo servidor no regime de previdência
complementar. O art. 92 da Lei n. 13.328/2016 inclusive propiciou ao servidor
público federal a reabertura de prazo para opção pelo regime de previdência
complementar.
Como é inequívoco, a formação da reserva matemática para prover o
benefício constitui, a um só tempo, instrumento de política para prevenção
da pobreza, de proteção à família e de formação da poupança nacional para
fomento da economia.
Aliás, cumpre observar que o benefício do regime geral de previdência
social, a par de ser limitado por teto, é corrigido tão somente pelo índice de
inflação INPC, conforme o art. 41-A da Lei n. 8.213/1991, tendo o piso (salário
mínimo) historicamente sofrido reajustes mais robustos. É dizer, a par de o
benefício oficial decorrer de uma média de remunerações, no longo prazo, tende
a ir-se aproximando do poder de compra do piso.
Especialmente em relação ao benefício da previdência complementar,
por todos, é lapidar o escólio de Rolf Madaleno propugnando o caráter
personalíssimo e incomunicável da verba, que “não produzem nenhum incremento
patrimonial, mas formam, em realidade, um fundo de pensão que será gerido por
um terceiro, estando o pagamento do fundo condicionado às vicissitudes futuras

574
Jurisprudência da QUARTA TURMA

e estritamente pessoais, provenientes da aposentadoria, invalidez ou morte do


participante”. “Os fundos de pensão foram justamente criados para oportunizar
uma forma complementar ou às vezes única de lograr um recurso futuro ou uma
aposentadoria em valores mais dignos, efetivamente capazes de garantir uma renda
de subsistência.” Confira-se a íntegra da transcrição:

Os fundos privados de pensão são benefícios de caráter personalíssimo e


visam à subsistência da pessoa em certa passagem de sua vida, eis se tratar
de renda pessoal e incomunicável, tal como acontece com os proventos do
trabalho de cada cônjuge e, portanto, nessa linha de pensamento também não se
comunicam. Interessante discussão doutrinária deita sobre a incomunicabilidade
dos fundos particulares de pensão, que respeitam a chamada previdência privada,
formada pelo próprio beneficiário com reservas periódicas que faz de seus
recursos pessoais ao longo dos anos, de forma a converter este pecúlio em renda
vitalícia ou por certo período de tempo, quando ele atingir determinada idade,
ou quando o fundo é constituído por aportes depositados pela empresa na
qual trabalha o beneficiário. O sistema de previdência social brasileiro é misto,
composto por um Regime Geral de Previdência Social, que é um regime público
e compulsório, a cargo da autarquia Instituto nacional de Seguro Social (INSS),
que cobre a perda da capacidade de gerar meios para a subsistência até um teto
máximo, mas que não se concilia com a pretensão daqueles que almejam uma
renda maior. Para estes, ao lado da previdência pública foi previsto o chamado
Regime Complementar privado e facultativo, gerido por entidades abertas e
fechadas de previdência.
[...]
O plano de previdência privada tenciona haver o direito futuro de receber
prestações que nascem da acumulação de uma poupança e que nos planos abertos
variam entre a modalidade VGBL ou PGBL. O resgate está diretamente relacionado
a certas contingências da vida [...] como aposentadoria, a incapacidade ou a morte.
Conforme observa Marcos de Campos Ludwig, o contrato de previdência privada
é celebrado pela preocupação da pessoa quanto à sua segurança financeira no
futuro, e o fundamento do plano de previdência é o de prover mediante aportes e
aplicações atuais e periódicas, a cobertura no futuro, de um benefício devido diante
das conjunturas da aposentadoria, incapacidade ou morte, em favor do próprio
contribuinte ou de terceiro por ele indicado. Estas prestações pagas ao largo da
vida do contribuinte da previdência privada não produzem nenhum incremento
patrimonial, mas formam, em realidade, um fundo de pensão que será gerido por
um terceiro, estando o pagamento do fundo condicionado às vicissitudes futuras
e estritamente pessoais, provenientes da aposentadoria, invalidez ou morte do
participante.
[...]

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Os fundos de pensão foram justamente criados para oportunizar uma forma


complementar ou às vezes única de lograr um recurso futuro ou uma aposentadoria
em valores mais dignos, efetivamente capazes de garantir uma renda de subsistência,
mas estes fundos geralmente são construídos ao longo dos anos e durante a fase
produtiva do investidor. Tratando-se de fundo de pensão, e tendo exatamente esta
função de segurança futura, não podem ser considerados como comunicáveis,
apenas porque estes investimentos, enquanto construídos com as periódicas
contribuições, pensa uma vertente doutrinária e jurisprudencial não passar
de uma aplicação financeira, um ativo construído em longo prazo, existindo
aqueles que se protegem do porvir investindo no ramo imobiliário, para perceber
aluguéis, outros montam carteiras de ações para perceber dividendos e terceiros
que optam por investimentos em renda fixa ou variável. [...]
A previdência privada está excluída da comunhão pelo inciso VII do artigo
1.659 do Código Civil, quando trata das pensões, meios-soldos, montepios e
outras rendas semelhantes. A previdência tem e deve ter bases mais sólidas e
sobre ela deve incidir a crença de que estes recursos realmente se destinam à
futura aposentadoria, que foi planejada para uma estimativa da porvindoura
jubilação, e não para perceber meia-aposentadoria, e desta forma assegurar a
renda contratada e programada [...].
[...] porque se trata de um direito que tem por objeto o ressarcimento de
danos personalíssimos do titular do plano, como no caso de sua incapacidade
para o trabalho, parcial ou total, ou sua aposentadoria, que o exclui pela idade
da capacidade de continuar produzindo, ou por decorrência de sua morte. São
bens privativos inerentes à pessoa e não podem ser transmitidos inter vivos, já
que o direito a perceber as prestações futuras nasce do plano que está direta e
exclusivamente relacionado com as circunstâncias pessoais do participante do
plano, embora o contribuinte possa indicar quem serão os seus beneficiários
em caso de morte e o percentual de participação de cada um. Acaso o titular
do plano venha a falecer no curso do casamento e sua esposa tenha sido indicada
como beneficiária, será ela a única credora deste fundo e ninguém certamente
haverá de afirmar que metade deste fundo deva ingressar no inventário do sucedido
(MADALENO, Rolf. Direito de família. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 771-
775).

Dessarte, segundo penso, a formação da cultura previdenciária é questão


de interesse público, que não deve ser desestimulada. Como assentado em
precedente da Terceira Turma, REsp n. 1.477.937/MG, relator Ministro
Ricardo Villas Bôas Cueva, a previdência privada possibilita a constituição
de reservas para contingências da vida por meio de entidades organizadas de
forma autônoma em relação ao regime geral de previdência social, e o art. 1.659,
inciso VII, do CC/2002 expressamente exclui da comunhão de bens as pensões,
meios-soldos, montepios e outras rendas semelhantes, como, por analogia, é o
caso da previdência complementar fechada:

576
Jurisprudência da QUARTA TURMA

Recurso especial. Direito de Família. União estável. Regime de bens. Comunhão


parcial. Previdência privada. Modalidade fechada. Contingências futuras. Partilha.
Art. 1.659, VII, do CC/2002. Benefício excluído. Meação de dívida. Possibilidade.
Súmula n. 7/STJ. Preclusão consumativa. Fundamento autônomo.
1. Cinge-se a controvérsia a identificar se o benefício de previdência privada
fechada está incluído dentro no rol das exceções do art. 1.659, VII, do CC/2002 e,
portanto, é verba excluída da partilha em virtude da dissolução de união estável,
que observa, em regra, o regime da comunhão parcial dos bens.
2. A previdência privada possibilita a constituição de reservas para contigências
futuras e incertas da vida por meio de entidades organizadas de forma autônoma
em relação ao regime geral de previdência social.
3. As entidades fechadas de previdência complementar, sem fins lucrativos,
disponibilizam os planos de benefícios de natureza previdenciária apenas aos
empregados ou grupo de empresas aos quais estão atrelados e não se confundem
com a relação laboral (art. 458, § 2º, VI, da CLT).
4. O artigo 1.659, inciso VII, do CC/2002 expressamente exclui da comunhão de
bens as pensões, meios-soldos, montepios e outras rendas semelhantes, como,
por analogia, é o caso da previdência complementar fechada.
5. O equilíbrio financeiro e atuarial é princípio nuclear da previdência
complementar fechada, motivo pelo qual permitir o resgate antecipado de renda
capitalizada, o que em tese não é possível à luz das normas previdenciárias e
estatutárias, em razão do regime de casamento, representaria um novo parâmetro
para a realização de cálculo já extremamente complexo e desequilibraria todo
o sistema, lesionando participantes e beneficiários, terceiros de boa-fé, que
assinaram previamente o contrato de um fundo sem tal previsão.
6. Na partilha, comunicam-se não apenas o patrimônio líquido, mas também
as dívidas e os encargos existentes até o momento da separação de fato.
7. Rever a premissa de falta de provas aptas a considerar que os empréstimos
beneficiaram a família, demanda o revolvimento do acervo fático-probatório dos
autos, o que atrai o óbice da Súmula n. 7 deste Superior Tribunal.
8. Recurso especial não provido.
(REsp 1.477.937/MG, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma,
julgado em 27/04/2017, DJe 20/06/2017)

De fato, a formação do fundo não é um fim em si mesmo e, da leitura


da Constituição Federal, a previdência complementar, embora seja relação
contratual de direito civil autônoma, está disciplinada no art. 202, integrante
topograficamente do Título VIII, relativo à ordem social. O fundo comum é
formado com finalidade protetivo-previdenciária.

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

É lapidar a lição de de Jerônimo Jesus dos Santos:

A atenção com o futuro faz parte da vida moderna. Mais que a simples
sobrevivência, homens e mulheres procuram hoje garantir seus padrões de vida, tidos
como um direito reconhecido.
No mundo inteiro, inclusive no brasil, os sistemas de previdência se desenvolveram
a partir do reconhecimento desse direito de qualquer pessoa a um nível de vida digno.
[...]
A previdência privada aberta representa a oportunidade de profissionais liberais,
desvinculados de empresas, também, assegurarem seu futuro e o de suas famílias.
[...]
Aliás, nos países mais desenvolvidos, o montante acumulado na previdência
privada se aproxima, em termos de valor, do próprio PIB da nação. Além das
vantagens inerentes aos planos previdenciários.
De efeito, como por exemplo, a previdência complementar pode amparar um
beneficiário que, devido a um acidente, não pode mais trabalhar, e passa a usufruir
dos benefícios da previdência complementar. Isto ocorre quando ele possui um plano
de previdência complementar, possibilitando preservar, a partir daquele momento, o
sustento da família.
Outro exemplo da vantagem da previdência complementar é quando um
beneficiário (filho ou esposa) que hoje usufrui dos benefícios em decorrência da morte
do participante (pai ou marido).
[...]
Previdência é, na realidade, uma garantia essencialmente voltada para um
evento futuro e, como tal, guarda uma certa semelhança com a garantia do
seguro, embora ambos tenham objetivos e princípios distintos, pois o seguro
visa proteger o segurado contra um evento futuro, incerto e imprevisível, que
é determinado com base no risco, enquanto que a previdência oferece proteção
contra um evento futuro, relativamente, certo e determinado, que é a velhice. Aqui,
velhice significa a sobrevivência ao período de vida dita ativa, ou seja, ao se contratar
um plano de previdência a principal pretensão é a manutenção do poder aquisitivo
na inatividade.
[...]
Sob o aspecto material, entretanto, não há como negar que previdência e
assistência social são institutos do mesmo gênero e, se alguma diferença existe
entre ambos, esta somente pode ser entendida como a diferença que distingue
o gênero da espécie.
A assistência social é, indubitavelmente, “uma espécie do gênero previdência.
basta que se leia o artigo 201, da Constituição de 1988 e seus incisos, que definem

578
Jurisprudência da QUARTA TURMA

o instituto da previdência social e se compare o seu teor com o do artigo 203, e seus
incisos, que dispõe, sobre a assistência social, e chegar-se-á a essa conclusão” (Reis &
Borges, 2002:12).
Oportuno se faz aqui lembrar que esta LC n. 109, de 2001 não trata do sistema
previdenciário privado brasileiro.
Considera-se sistema quando existir um princípio unificador no
relacionamento dos elementos que o compõem (ordem e unidade). Neste ponto,
a norma fundamental é o princípio unificador que dá origem à ordem constitucional.
[...]
Arion Sayão Romita (2002:2) registra que dois são os ramos em que se bifurca
a previdência social no Brasil: um, oficial e outro, privado. O primeiro, obrigatório,
é gerido pelo Estado, por intermédio de órgãos descentralizados (administração
indireta, isto é, autarquias). O outro, facultativo, é desenvolvido por pessoas jurídicas
de direito privado (sociedades anônimas, sociedades civis ou fundações).
[...]
Ora, tanto o legislador constitucional quanto o desta lei Complementar tiveram
o cuidado de resguardar os direitos dos optantes do regime de previdência
complementar quando impõem que a entidade constitua reservas conhecida
como reservas técnicas. Estas são reservas econômico-financeiras que objetivam
garantir o pagamento dos benefícios contratados.
Aliás, as chamadas Reservas Técnicas são, na verdade, Provisões Técnicas, pois
trata-se aqui de obrigações potenciais das Entidades com os seus participantes.
As entidades recolhendo uma pequena contribuição de cada participante,
correspondente à probabilidade de ocorrência e os efeitos do evento danoso
e outros elementos estatísticos, garantem o pagamento dos benefícios aos
participantes.
Contudo, para que essa garantia seja eficaz, as entidades estão obrigadas a
constituir Provisões Técnicas (SANTOS, Jerônimo Jesus dos. Previdência privada:
Lei da Previdência Complementar Comentada. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora e
Livraria Jurídica do Rio de Janeiro, 2005, p. 43-76).

É nítido que a previdência social compreende o regime geral de previdência


social e o regime facultativo complementar. Aliás, o art. 2º da Lei Complementar
n. 109/2001 estabelece que o regime de previdência complementar é operado por
entidades de previdência complementar que têm por objetivo instituir e executar
planos de benefícios de caráter previdenciário, na forma dessa lei Complementar.
O art. 69 da Lei Complementar n. 109/2001 deixa explícito que,
independentemente de o plano de benefícios ser administrado por entidade
fechada (sem fins lucrativos) ou aberta (instituição financeira), as contribuições

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REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

vertidas para as entidades de previdência complementar são destinadas ao


custeio dos planos de benefícios de natureza previdenciária, explicitando o
caráter personalíssimo e incomunicável da verba ao estabelecer, no parágrafo 2º,
que a portabilidade de recursos de reservas técnicas, fundos e provisões entre
planos de benefícios de entidades de previdência complementar devem ser
titulada pelo mesmo participante.
Não se pode também perder de vista que o art. 6º da CF estabelece que
são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o
transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à
infância, a assistência aos desamparados, estando topograficamente localizados
no Título II - Dos Direitos e Garantias Fundamentais - da Lei Maior.
Nesse passo, é cediça a natureza previdenciária dos planos de benefícios
instituídos e executados pelas entidades de previdência complementar (arts. 1º
e 2º da LC n. 109/2001), a apontar o caráter alimentar e personalíssimo desses
recursos, mormente ante o disposto no art. 114 da Lei n. 8.213/1991, que,
dispondo sobre os planos de benefícios da previdência social, confere-lhes a
proteção da impenhorabilidade:

Art. 114. Salvo quanto a valor devido à Previdência Social e a desconto


autorizado por esta Lei, ou derivado da obrigação de prestar alimentos
reconhecida em sentença judicial, o benefício não pode ser objeto de penhora,
arresto ou seqüestro, sendo nula de pleno direito a sua venda ou cessão, ou a
constituição de qualquer ônus sobre ele, bem como a outorga de poderes irrevogáveis
ou em causa própria para o seu recebimento.

6. Por outro giro, no tocante às ponderações contidas na sentença acerca


de ensejar possível ocorrência de fraude - similares à da corrente doutrinária
que propugna que a verba integre a partilha em caso de dissolução da sociedade
conjugal -, respeitado o entendimento diverso, não se pode ignorar que há uma
presunção geral de boa-fé nos atos praticados pelos cidadãos, e não o contrário,
constituindo-se a possibilidade de resgate da verba forma anômala de extinção
da relação contratual previdenciária, que, bem refletindo sobre o tema, não pode
ser tomada como se fosse a regra para solucionar as questões que envolvem a
dissolução do vínculo conjugal
Como adverte Rolf Madaleno, “pensar desta forma seria inviabilizar
qualquer investimento em fundos de pensão, porque ninguém poderia romper
sociedade afetiva, pois sofreria o ônus de ter de partilhar sua previdência privada
e abortar sua futura aposentadoria” (MADALENO, Rolf. Direito de família. 7.
ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 771-775).

580
Jurisprudência da QUARTA TURMA

O resgate - isto é, a extinção do vínculo ou da proteção previdenciária - é


fortemente desestimulado pela lei, sendo certo que, salvo previsão regulamentar
mais benéfica, o art. 14, III, da Lei Complementar n. 109/2001 garante apenas
- claramente como forma de evitar tão somente o enriquecimento sem causa - o
resgate das contribuições vertidas para o plano pelo participante, descontadas as
parcelas do custeio administrativo, na forma regulamentada. É o que também
orienta a Súmula n. 289/STJ, disciplinando que as contribuições do ex-
participante devem ser devolvidas com atualização monetária.
Muito embora o art. 14, III, da Lei Complementar n.109/2001 preveja
que os regulamentos dos planos de benefícios deverão estabelecer o resgate
da totalidade das contribuições vertidas pelo ex-participante para o plano
de benefícios, dispõe que caberá aos órgãos públicos regulador e fiscalizador
estabelecer regulamentação específica disciplinando acerca do resgate. Nesse
diapasão, dispositivo de resolução vigente do Conselho Nacional de Previdência
Complementar - órgão regulador do regime de previdência complementar
operado pelas entidades fechadas - estabelece que, no caso de plano de benefícios
instituído por patrocinador, o regulamento deverá condicionar o pagamento do
resgate à cessação do vínculo empregatício (REsp n. 1.189.456/RS, relator
Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 12/5/2015, DJe
11/6/2015).
Ademais, nos planos de benefícios instituídos por instituidor, o art. 23
da Resolução CGPC n. 6/2003, estabelece que o regulamento do plano de
benefícios deverá prever prazo de carência para o pagamento do resgate de seis
meses a dois anos, contado a partir da data de inscrição no plano de benefícios.
Por um lado, como claro estímulo à cultura previdenciária decorrente de
política pública, desde a Lei n. 9.250/1995, as contribuições vertidas para os
planos de previdência complementar deixaram de compor a base de cálculo para
efeito de imposto de renda da pessoa física (o que, evidentemente, beneficia
reflexamente o outro cônjuge). Ademais, para mero investimento, não há
falar em instituto similar ao da portabilidade, em que, sem incidência de
tributação, conforme o art. 69, § 2º, da LC n. 109/2001, evitando-se o resgate
ou a cessação de vínculo previdenciário, é possível a transferência de recursos de
reservas técnicas, fundos e provisões entre planos de benefícios de entidades de
previdência complementar.
Por outro lado, enquanto investimentos em renda fixa e renda variável
se sujeitam à tributação de Imposto de Renda, em geral de 15% sobre o
ganho de capital, “a tributação do IR sobre Resgate é calculada pela Tabela de

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Assalariados, sendo aplicado ao valor total resgatado” (SANTOS, Jerônimo Jesus


dos. Previdência privada: Lei da Previdência Complementar Comentada. 2. ed.
Rio de Janeiro: Editora e Livraria Jurídica do Rio de Janeiro, 2005, p. 513-514).
Ademais, como é cediço, o patrocínio de planos de benefícios de previdência
privada constitui importante elemento/estratégia para atração e manutenção
de talentos para as empresas patrocinadoras, que podem propiciar benefício
econômico indireto a seus empregados, sem os pesados encargos trabalhistas.
No caso dos planos patrocinados, como há a coparticipação do patrocinador,
é inegável que, em vista dessa vantagem, o mais das vezes, a adesão, embora
facultativa, é quase que irresistível.
Não se pode também perder de vista que a vinculação de um dos cônjuges
ao regime de previdência complementar constitui proteção à família, visto que,
em regra, os regulamentos dos planos de benefícios preveem algum benefício
previdenciário ao viúvo/ à viúva, e que o art. 226 da CF estabelece que a família
é a base da sociedade e tem especial proteção do Estado.
6. No entanto, no presente caso, a questão não fica assim resolvida, em
vista de que é incontroverso que a reserva matemática (de poupança) foi
inequivocamente resgatada - o que também se deduziria da incontroversa
tributação que incidiu sobre o montante -, perdendo o caráter previdenciário.
No caso, conforme documento de fl. 68 e o apurado na sentença, o recorrido
resgatou, em novembro de 2009, o valor de R$ 417.011,48 (quatrocentos e
dezessete mil, onze reais e quarenta e oito centavos), existente em fundo de
previdência privada administrado pela Fundação Francisco Martins Bastos,
patrocinado por sua ex-empregadora. Com a dedução do imposto de renda no
valor de R$ 114.015,22 (cento e quatorze mil, quinze reais reais e vinte e dois
centavos), o réu recebeu o montante líquido “de R$ 302.996,26 (trezentos e dois
mil novecentos e noventa e seis reais e vinte e seis centavos)” (fl. 325).
Como é cediço, o instituto do resgate implica o desligamento do
participante do regime jurídico de previdência privada, com o recebimento dos
valores que verteu para o plano de benefícios (Súmula n. 289/STJ), ficando certo,
pois, que a verba deixa de ter finalidade previdenciária protetivo-previdenciária
(REsp n. 1.190.083/RJ, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma,
julgado em 20/8/2015, DJe 29/9/2015).
A doutrina especializada anota que “o resgate é o saque, presumivelmente para
atender alguma necessidade do participante que não seja de cunho previdenciário.
Assim, o resgate é a quebra da vocação previdenciária dos recursos alocados em um

582
Jurisprudência da QUARTA TURMA

plano de previdência complementar, pois opera-se o cancelamento da inscrição do


participante, com seu desligamento do plano de benefícios e consequente disponibilização
dos recursos aportados. Nos termos da Res. CGPC 06/2003 (art. 19), o resgate é
o instituto que faculta ao participante o recebimento de valor decorrente de seu
desligamento do plano de benefícios” (REIS, Adacir. Curso básico de previdência
complementar. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 79).
Mutatis mutandis, mencionam-se os seguintes precedentes das duas Turmas
de Direito Privado:

Recurso especial. Civil e Processual Civil. Previdência privada fechada. Negativa


de prestação jurisdicional. Inexistência. Ação de rescisão contratual. Resgate da
reserva de poupança. Decretação de intervenção na entidade de previdência
complementar. Liquidação extrajudicial do fundo previdenciário. Efeitos.
Suspensão da ação. Habilitação automática do crédito do participante. Perda do
interesse processual. Não ocorrência. Levantamento da liquidação. Possibilidade.
1. Cinge-se a controvérsia a saber se há perda superveniente de interesse
processual do participante de plano de previdência privada que postula a rescisão
contratual e o resgate da reserva de poupança na ocorrência de decretação de
liquidação extrajudicial do plano de benefícios (no caso, dos planos I e II outrora
patrocinados pela Varig S.A., geridos pelo Instituto Aerus de Seguridade Social,
atualmente sob intervenção).
2. A liquidação extrajudicial pode se dar em entidades de previdência
complementar ou em um plano de benefícios em específico, sobretudo, no último
caso, em entes multipatrocinados e de multiplano, desde que reste evidenciada a
inviabilidade de sua continuidade. Precedentes.
3. Caracteriza error in procedendo o prosseguimento do feito que discute
direitos e interesses relativos ao acervo da liquidanda após a decretação da
liquidação extrajudicial do plano previdenciário ou do ente de previdência
privada, pois, nos termos do art. 49, I, da Lei Complementar n. 109/2001, a
suspensão imediata é a medida de rigor. No caso dos autos, desde a contestação.
4. Quando decretada a liquidação extrajudicial, não só os assistidos mas
também os participantes dos planos de benefícios já ficam dispensados de
habilitarem seus créditos, estejam estes sendo recebidos ou não, no quadro geral
de credores, gozando de privilégio especial sobre os ativos garantidores das
reservas técnicas e, caso estes não sejam suficientes para a cobertura dos direitos
respectivos, privilégio geral sobre as demais partes não vinculadas ao ativo (art.
50, §§ 1º e 2º, da Lei Complementar n. 109/2001).
5. Se já existir decisão judicial transitada em julgado deferindo o resgate da reserva
de poupança quando decretada a liquidação extrajudicial do plano, o credor deve,
por si, proceder à habilitação, visto que não ostenta mais a condição de participante,
dado o rompimento do vínculo contratual, o que afasta a aplicação dos benefícios do

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 583


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

art. 50 da Lei Complementar n. 109/2001. Nessa hipótese, o crédito não mais goza de
privilégio, por perder a vocação previdenciária, mas enquadra-se como quirografário.
6. Não pode ser extinto o feito por perda superveniente de interesse de agir
se ainda subsistir a possibilidade de levantamento da liquidação extrajudicial,
a exemplo da constatação de fatos posteriores que viabilizem a recuperação
da entidade de previdência complementar (art. 52 da Lei Complementar n.
109/2001). Precedentes da Quarta Turma.
7. Recurso especial provido para anular o acórdão estadual e a sentença,
devendo o processo retornar à origem e permanecer suspenso até o encerramento
ou até o levantamento da liquidação extrajudicial.
(REsp 1.326.890/RJ, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma,
julgado em 10/05/2016, DJe 23/05/2016)

Previdência privada. Recurso especial. Omissão. Inexistência. Liquidação


extrajudicial de plano de benefícios, após o ajuizamento de ação vindicando
resgate. A decretação da liquidação extrajudicial da entidade de previdência
privada ou de plano de benefícios implica suspensão das ações e execuções
iniciadas sobre direitos e interesses relativos ao acervo e vencimento antecipado
das obrigações. A teor da legislação de regência, caso ainda não haja decisão
com trânsito em julgado deferindo o resgate, cumpre ser suspensa a tramitação
processual, não necessitando o participante praticar nenhum outro ato para
resguardar seus interesses. Todavia, nas hipóteses em que, por ocasião da
decretação da liquidação extrajudicial, já exista decisão sob o manto da coisa
julgada, cabe ao credor habilitar seu crédito, que não gozará de privilégio, nem do
benefício concedido pelo art. 50, § 1º, da Lei Complementar n. 109/2001.
[...]
3. Dessarte, a teor da legislação de regência, caso ainda não haja decisão com
trânsito em julgado deferindo o resgate, isto é, rompendo o vínculo contratual
entre participante e entidade de previdência complementar, cumpre ser suspensa
a tramitação processual, não necessitando o participante praticar nenhum outro
ato para resguardar seus interesses. Todavia, nas hipóteses em que, por ocasião
da decretação da liquidação extrajudicial, já exista decisão sob o manto da coisa
julgada material, cabe ao credor habilitar seu crédito, que não gozará de privilégio,
nem do benefício concedido pelo art. 50, § 1º, da Lei Complementar n. 109/2001
(que dispensa aqueles que ostentam a qualidade de participantes e assistidos do
plano de benefício em liquidação “de se habilitarem a seus respectivos créditos,
estejam estes sendo recebidos ou não”).
4. Não é cabível a vindicada extinção do processo por superveniente perda do
interesse de agir. Isso porque, em tese, subsiste a hipótese prevista no art. 52 da
Lei Complementar n. 109/2001, de a liquidação extrajudicial, a qualquer tempo,
ser levantada, desde que constatados fatos supervenientes que viabilizem a
recuperação da entidade de previdência complementar.

584
Jurisprudência da QUARTA TURMA

5. É prematura a apreciação da segunda tese recursal acerca da impossibilidade


jurídica do pedido, em vista do fato de o autor, por ocasião do ajuizamento da
ação, já ser elegível ao benefício e, nos moldes do disposto em resolução do
órgão público regulador, não poder mais efetuar o resgate. De fato, é matéria que
não foi nem mesmo prequestionada, e o seu enfrentamento exigiria exame de
provas e interpretação do regulamento do plano de benefícios para constatação
da alegada elegibilidade ao benefício.
6. Recurso especial provido para anular o acórdão e a sentença.
(REsp 1.190.083/RJ, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado
em 20/08/2015, DJe 29/09/2015)

No mesmo diapasão, no âmbito do direito de família, mesmo a corrente


doutrinária que propugna a incomunicabilidade da verba, bem representada por
Rolf Madaleno, pondera que somente é “passível a partilha do dinheiro juntado
no fundo se o investidor resgatá-lo antes do prazo contratado, pois neste caso se
configurou um mero investimento, que não corresponde ao exercício antecipado
do direito ao benefício” (MADALENO, Rolf. Direito de família. 7. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2017, p. 771-775).
Ademais, segundo entendo, não calha considerar essa verba, em caso de
resgate, como incomunicável por ser provento do trabalho, como cogitado
por parte minoritária da doutrina, posto ser interpretação incompatível com
o art. 202, § 2º, da CF, que estabelece que as contribuições do empregador,
os benefícios e as condições contratuais previstas nos estatutos, regulamentos
e planos de benefícios das entidades de previdência privada não integram o
contrato de trabalho dos participantes, assim como, à exceção dos benefícios
concedidos, não integram a remuneração dos participantes, nos termos da lei.
Dessarte, como reforço de argumento, conforme entendimento sufragado
pela Segunda Seção, no suso mencionado EREsp n. 1.121.719/SP, “a menos que
fique comprovado que, no caso concreto, o participante resgatou as contribuições
vertidas ao Plano, sem consumi-las para o suprimento de suas necessidades
básicas, valendo-se, pois, do fundo de previdência privada como verdadeira
aplicação financeira, o saldo existente se encontra abrangido pelo art. 649, IV,
do CPC”.
No caso em julgamento, a separação judicial com partilha de bens ocorreu
em 31 de agosto de 2005, e o resgate foi solicitado em 26/11/2009 (quando
exsurgiu a pretensão da autora), não havendo sonegação de bens na ocasião,
tampouco há falar no prazo decadencial ânuo para anular a partilha suscitado
em contrarrazões.

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 585


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Com efeito, a par de o prescricional, na linha da jurisprudência do STJ,


de dez anos não ter escoado, há ainda a circunstância bastante peculiar de a
pretensão ter exsurgido apenas de modo superveniente à dissolução da sociedade
conjugal.
Veja-se o seguinte precedente:

Civil. Processual Civil. Ação de sobrepartilha. Prescrição. Término da sociedade


conjugal e dissolução do casamento válido. Diferença restrita ao aspecto de
reversibilidade do matrimônio. Consequências patrimoniais idênticas, inclusive
no que diz respeito ao fim do regime de bens do casamento e possibilidade
de partilha. Separação judicial e partilha parcial homologadas judicialmente,
com decretação de divórcio posterior. Termo inicial da prescrição da ação de
sobrepartilha. Data da homologação da separação e partilha. Vínculo matrimonial
remanescente. Irrelevância para fins patrimoniais. Questões suscitadas, mas
não examinadas na origem. Ausência de prequestionamento. Súmula 211/STJ.
Dessemelhança fática entre o acórdão recorrido e o paradigma. Inexistência de
dissenso jurisprudencial.
1- Ação distribuída em 17/09/2013. Recurso especial interposto em 30/08/2017
e atribuído à Relatora em 29/01/2018.
2- O propósito recursal é definir se o termo inicial do prazo prescricional da
ação de sobrepartilha é deflagrado com a sentença que homologou a separação
judicial e a partilha de bens ou se, ao revés, tem início apenas com a decretação
do divórcio do casal.
3- Não se deve confundir o término da sociedade conjugal com a dissolução
do casamento válido, residindo a diferença substancial entre ambos no fato
de que apenas a dissolução do casamento torna irreversível o matrimônio e,
consequentemente, permite às partes contraírem um novo casamento.
4- São as mesmas, todavia, as consequências patrimoniais do término da
sociedade conjugal e do término do casamento válido, colocando-se fim ao
regime de bens do matrimônio e permitindo-se a realização da partilha dos ativos
e passivos de bens comunicáveis.
5- Na hipótese, tendo havido a separação e a partilha consensuais, ambas
homologadas por sentença no ano de 1987, também houve, naquele momento, a
dissolução do regime de bens do casamento e consequentemente nasceu, para as
partes, a pretensão de sobrepartilhar bens remotos, litigiosos, sonegados ou que
propositalmente ficaram fora da partilha inicial, como é a hipótese de recebíveis
de pessoa jurídica de que o varão é sócio majoritário, de modo que a ação de
sobrepartilha está prescrita, quer seja sob a ótica do prazo vintenário do CC/1916,
quer seja sob a perspectiva do prazo decenal do CC/2002, sendo irrelevante, o fato
de o vínculo matrimonial ter remanescido até 2014, ano em que decretado o
divórcio.

586
Jurisprudência da QUARTA TURMA

6- As alegações de não fluência da prescrição entre cônjuges, de inexistência


de doação do referido crédito e de enriquecimento ilícito da outra parte, a
despeito de suscitadas em aclaratórios, não foram examinadas no acórdão
recorrido, que carece do indispensável prequestionamento. Incidência da Súmula
211/STJ.
7- A notória dessemelhança fática entre o acórdão recorrido e o paradigma
impede o conhecimento do recurso especial pela divergência jurisprudencial.
8- Recurso especial conhecido em parte e, nessa extensão, desprovido.
(REsp 1.719.739/RS, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em
05/06/2018, DJe 07/06/2018)

No caso, os autores casaram-se em 26/11/1977 pelo regime da comunhão


universal de bens, separando-se judicialmente em 31/08/2005.
Conforme também apurado pelas instâncias ordinárias, fato incontroverso
nos autos (vide a inicial e a Contestação, às fls. 119-123), as contribuições
previdenciárias foram efetuadas no decorrer do vínculo conjugal, tendo cessado
pouco antes do rompimento, no ano de 2005, conforme se extrai do acórdão
recorrido (fl. 419). Havendo resgate que implica o desligamento do participante
do regime jurídico de previdência privada, com o recebimento dos valores que
verteu para o plano de benefícios (Súmula n. 289/STJ), devida é a partilha.
7. Diante do exposto, dou provimento ao recurso especial para julgar
procedente o pedido formulado na inicial, reconhecendo o o direito da autora ao
recebimento de 50% do numerário resgatado líquido. Em vista da sucumbência
do réu, estabeleço custas e honorários advocatícios a cargo do recorrido, estes
fixados em R$ 10.000,00 (dez mil reais)
É como voto.

VOTO-VISTA

A Sra. Ministra Maria Isabel Gallotti: Trata-se de recurso especial


interposto em face de acórdão assim ementado (fl. 416):

Apelação cível. Ação de sobrepartilha. Procedência. Inconformismo.


Previdência privada. Mudanças na empresa financiadora. Opção pelo recebimento
adiantado de todas as parcelas. Valor excluído da comunhão. Art. 1.668, VI e VII do
CC. Direito individual de aposentadoria e não aplicação financeira. Requerido
que já recebia aposentadoria comum e complementar quando da separação.
Sentença reformada. Inversão dos ônus da sucumbência.

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 587


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

1. “Assim como os valores do fundo de garantia por tempo de serviço, a quantia


depositada com o escopo de garantia da aposentadoria (previdência privada),
quando não sacada durante a união, não se reverte em proveito do casal, porque
mantém a sua natureza personalíssima” (Apelação Cível n. 70047144035, Oitava
Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Alzir Felippe Schmitz, Julgado em
28/06/2012).
2. Recurso conhecido e provido.

Alega a recorrente, em suma, violação ao art. 1º da Lei Complementar


109/2001, sob o argumento de que os valores resgatados pelo ex-cônjuge de
entidade fechada de previdência complementar, oriundos das contribuições
vertidas na constância do casamento celebrado sob o regime da comunhão
universal de bens, integram o patrimônio comum e devem ser partilhados, ainda
que o saque tenha ocorrido após a dissolução da sociedade conjugal.
Argumenta que a previdência privada é autônoma em relação ao contrato
de trabalho e que constitui um fundo de investimento, o qual pode ser resgatado,
sendo uma aplicação financeira como qualquer outra.
Sustenta que o entendimento do acórdão recorrido de excluir essas parcelas
da partilha encontra-se em divergência com a orientação da Quarta Turma
o STJ que, ao examinar “caso idêntico”, no julgamento do REsp 1.121.719/
SP, concluiu que os valores investidos em plano de previdência privada não
possuem natureza alimentar, motivo pelo qual ficam sujeitos à penhora, mesmo
posicionamento que também teria sido adotado pela Quarta Turma no AgInt
no AG 1.284.772/RS.
O Relator, Ministro Luís Felipe Salomão, entendeu que na hipótese de
resgate da “reserva matemática (de poupança)”, decorrente do desligamento
do participante da entidade de aberta ou fechada de previdência privada, essas
verbas perdem a natureza previdenciária, equiparando-se às demais espécies
de aplicações financeiras. Por esse motivo, tendo sido demonstrado, no caso
concreto, que as contribuições foram vertidas para a entidade de previdência
privada na vigência do casamento e sacadas após a extinção da sociedade conjugal,
determinou a partilha de 50% do valor líquido resgado pelo ora recorrido.
Pedi vista.

II

Segundo o entendimento esposado pelo eminente relator, não tem relevância


para a solução da presente controvérsia a circunstância de a previdência privada

588
Jurisprudência da QUARTA TURMA

ser mantida em entidade fechada ou aberta. O que importa é o fato de os valores


terem ou não sido resgatados. Enquanto não resgatados, conservam a natureza
personalíssima, sendo portanto, incomunicáveis. Se houver o resgate, mesmo
em momento posterior à extinção da vida conjugal, o valor correspondente deve
integrar o patrimônio comum dos ex-cônjuges a ser partilhado.
Do voto do Relator, destaco as seguintes passagens:

Para logo, é oportuno ressaltar que, conforme corrente doutrinária e


informado própria Susep - órgão supervisor das entidades abertas de previdência
complementar - em seu site, apenas o Plano Gerador de Benefícios Livres - PGBL,
caracteriza genuíno plano de benefícios de previdência complementar:

VGBL (Vida Gerador de Benefícios Livres) e PGBL (Plano Gerador de


Benefícios Livres) são planos por sobrevivência (de seguro de pessoas e de
previdência complementar aberta, respectivamente) que, após um período
de acumulação de recursos (período de diferimento), proporcionam aos
investidores (segurados e participantes) uma renda mensal - que poderá ser
vitalícia ou por período determinado - ou um pagamento único. O primeiro
(VGBL) é classificado como seguro de pessoa, enquanto o segundo (PGBL) é
plano de previdência complementar.
A principal diferença entre os dois reside no tratamento tributário
dispensado a um e outro. Em ambos os casos, o imposto de renda incide
apenas no momento do resgate ou recebimento da renda. Entretanto,
enquanto no VGBL o imposto de renda incide apenas sobre os rendimentos,
no PGBL o imposto incide sobre o valor total resgatado ou recebido sob a
forma de renda.
No caso do PGBL, os participantes que utilizam o modelo completo de
declaração de ajuste anual no I.R.P.F. podem deduzir as contribuições do
respectivo exercício, no limite máximo de 12% de sua renda bruta anual.
(Disponível em: https://susep.gov.br/setores-susep/seger/coate /
perguntas-mais-frequentes-sobre-planos-por-sobrevivência-pgbl-e-vgbl.
Acesso em 7 de fevereiro de 2020).

No entanto, como bem reconhecido pelo órgão supervisor, não há diferença


ontológica entre esses planos (ambos, se o contrato seguir o seu curso natural,
ostentam feição nitidamente de seguro social), mas apenas no tratamento
tributário conferido.
Deveras, nas mesma toada, segundo preconiza Adacir Reis, “o Vida Gerador
de Benefícios Livres - VGBL é um seguro com cobertura de sobrevivência” (REIS,
Adacir. Curso básico de previdência complementar. 3 ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2018, p. 119).
(...)

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 589


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

E, após citar o julgamento dos EREsp. 1.121.719/SP - no qual a Segunda


Seção, por maioria, afastou a indisponibilidade de valores aportados por
administrador de instituição financeira sob intervenção extrajudicial em PGBL,
plano de previdência complementar aberta - acrescentou o Ministro Luis Felipe
Salomão:

De efeito, proclama o art. 202 da CF que a previdência complementar o


regime de previdência complementar é baseado na constituição de reservas que
garantam o benefício contratado, e regulado por lei complementar.
(...)
De fato, a formação do fundo não é um fim em si mesmo. Da leitura da
Constituição Federal, a previdência complementar, embora seja relação
contratual de direito civil autônoma, está disciplinada no art. 202, integrante
topograficamente do Titulo VIII, relativo à ordem social. O fundo comum é
formado com finalidade protetivo-previdenciária.
(...)
É nítido que a previdência social compreende o regime geral de previdência
social e o regime facultativo complementar. Aliás, o art. 2º da Lei Complementar
n. 109/2001 estabelece que o regime de previdência complementar é operado por
entidades de previdência complementar que têm por objetivo instituir e executar
planos de benefícios de caráter previdenciário, na forma desta Lei Complementar.
O art. 69 da Lei Complementar n. 109/2001 deixa explícito que, independentemente
de o plano de benefícios ser administrado por entidade fechada (sem fins lucrativos)
ou aberta (instituição financeira), as contribuições vertidas para as entidades de
previdência complementar são destinadas ao custeio dos planos de benefícios de
natureza previdenciária, explicitando o caráter personalíssimo e incomunicável da
verba ao estabelecer no parágrafo 2º que a portabilidade de recursos de reservas
técnicas, fundos e provisões entre planos de benefícios de entidades de previdência
complementar, deve ser titulados pelo mesmo participante.
(...)
Nesse passo, é cediço a natureza previdenciária dos planos de benefícios
instituídos e executados pelas entidades de previdenciária complementar (arts.
1º e 2º da LC n. 109/2001), a apontar o caráter alimentar e personalíssimo desses
recursos, mormente ante o teor do art. 114 da Lei 8.213/1991 que, dispondo
sobre os planos de benefícios da previdência social, confere-lhes a proteção da
impenhorabilidade.
(...)
No caso, conforme documento de fl. 68 e o apurado na sentença, o recorrido
resgatou em novembro de 2009 o valor de R$ 417.011,48 (quatrocentos

590
Jurisprudência da QUARTA TURMA

e dezessete mil, onze reais e quarenta e oito centavos), existente em fundo


de previdência privada administrado pela Fundação Francisco Martins Bastos,
patrocinado por sua ex-empregadora. com a dedução do imposto de renda
no valor de R$ 114.015,22 (cento e quatorze mil e quinze reais e vinte e dois
centavos), o réu recebeu o montante líquido “de R$ 302.996,26 (trezentos e dois
mil, novecentos e noventa e seis reais e vinte e seis centavos)” (fl. 325).
Como é cediço, o instituto do regate implica o desligamento do participante
do regime jurídico de previdência privada, com o recebimento dos valores que
verteu ao plano de beneficios (Súmula 289/STJ), ficando certo, pois, que a verba
deixa de ter finalidade previdenciária (protetivo-previdenciária) REsp 1.190.083/
RJ, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 20/8/2015, DJe
29/9/2015). (grifos não constantes do original).

A sentença entendeu tal verba partilhável, como qualquer aplicação


financeira realizada durante o casamento, aduzindo (e-STJ, fl. 139):

(...) Assim, as verbas injetadas (e/ou seus frutos) em poupanças, em imóveis


ou em qualquer outro investimento, sem dúvida, são comuns e, de corolário,
suscetíveis à partilha. Vai daí que os fundos de previdência privada não são
personalíssimos. Ao contrário, são comuns e, por conseguinte, sujeitos à
comunicação, sobretudo quando há reembolso (restituição, compensação ou
indenização) antecipado, consoante o Réu informou na resposta.
A propósito, se o cônjuge que governa as finanças comuns fosse livre para
aplicá-las em previdência privada que viesse em benefício unicamente dele
(o que aconteceria se essa contratação caracterizasse haver personalíssimo),
decerto, o caminho para quebra ou fraude no regime da comunhão parcial de
bens estaria aberto àquele que assim agisse, e, obviamente, em indevido prejuízo
ao outro consorte.
Realce-se que nada há de personalíssimo nos direitos percebidos pelo Réu,
pouco importando tenham sido cobrados e/ou recebidos depois do rompimento,
porque o determinante é que o nascimento desse direito foi contemporâneo
a então união das partes, porque os investimentos ou aplicações aconteceram
durante ela (o que, a propósito, é fato incontroverso).

O acórdão recorrido, por sua vez, decidiu que os valores referentes ao plano
de previdência privada fechada não devem integrar o conjunto de bens comuns.
Enfatizou que, na época na separação, o ora recorrido já estava recebendo os
proventos de aposentadoria complementar ao benefício pago pela Previdência
Social e que o resgate, no caso, decorrera de alterações na própria entidade, as
quais o levaram a optar por receber todo o valor da aposentadoria de uma só vez
em 26.11.2009.

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 591


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

III

Assim posta a controvérsia, com a devida vênia do eminente Relator, penso


que é relevante distinguir entre os segmentos aberto e fechado de previdência
complementar.
A Lei 6.435/1977, primeira legislação brasileira a regulamentar
especificamente o regime de previdência complementar, tratou de forma similar
as entidades abertas e fechadas apenas no tocante ao objetivo (instituir planos de
pecúlio ou renda semelhantes aos do Regime Geral de Previdência Social - art.
1º), exigência de prévia autorização para constituição e funcionamento (art. 2º),
finalidade da ação do poder público (determinar padrões mínimos adequados de
segurança econômico-financeira, visando à preservação da liquidez e solvência
de cada plano de benefício - art. 3º), bem assim em relação às regras gerais de
fiscalização, intervenção e liquidação extrajudicial, dispostas no Capitulo IV.
Quanto ao mais, a subdivisão das entidades de previdência complementar
em “fechadas, quando acessíveis exclusivamente aos empregados de uma
só empresa ou de grupo de empresas” e “abertas, as demais” (art. 4º, inc. I),
demonstra a clara diferença do tratamento a elas dispensado.
As entidades abertas integram o Sistema Nacional de Seguros Privados
(art. 7º), razão pela qual se sujeitam à fiscalização e controle do órgão normativo
correspondente, no caso, a Superintendência de Seguros Privados - SUSEP (art.
8º) e à aplicação subsidiária da legislação à qual estão sujeitas as entidades de
seguro privado (art. 10).
As entidades fechadas, de outra parte, foram consideradas complementares
ao sistema oficial de previdência e assistência social e, portanto, suas atividades
foram enquadradas na área de competência do Ministério da Previdência e
Assistência Social (art. 34), ao qual foram atribuídas as funções de supervisão,
controle e fiscalização desse segmento, mediante órgãos normativo e executivo
a serem designados (art. 35), a aplicando-se a elas, subsidiariamente, a legislação
do regime geral de previdência social (art. 36).
Em cumprimento ao disposto no art. 87, da Lei 6.435/1977, a parte
relativa às entidades abertas foi regulamentada pelo Decreto 81.402/78, e a
parte que diz respeito às entidades fechadas, pelo Decreto 81.240/78.
Com a edição da Lei Complementar 109/2001, promulgada para dar
cumprimento ao art. 202 da Constituição, a separação entre os segmentos
aberto e fechado da previdência complementar foi estabelecida de forma ainda
mais evidente.

592
Jurisprudência da QUARTA TURMA

Ficou mantida a subdivisão entre as entidades abertas e fechadas, com os


planos de benefícios administrados pelas abertas disponíveis para quaisquer
pessoas físicas ou pessoa jurídica que queira contratar o investimento para
um grupo de pessoas físicas a ela vinculadas, direta ou indiretamente (art. 26);
aplicação subsidiária da legislação regente das sociedades seguradoras (art. 73) e
fiscalização e controle pela SUSEP (art. 74).
O planos de benefícios geridos por entidades fechadas, por outro lado,
permaneceram restritos aos funcionários de uma empresa ou grupo de empresas;
servidores públicos da União, estados, Distrito Federal e municípios; e de
associações, profissionais classistas ou setoriais (art. 31), e submetidos ao controle
e fiscalização da Superintendência Nacional de Previdência Complementar -
PREVIC e do Conselho de Gestão da Previdência Complementar - CGPC
(arts. 5º e 74 e Lei 12.154/2009).
Entre as alterações no regime de previdência privada procedidas pela LC
109/2001, destaca-se o intuito de lucro das entidades abertas, as quais devem ser
constituídas exclusivamente na forma de sociedades anônimas.
Penso que a obrigatoriedade de constituição das entidades abertas
unicamente sob a forma de sociedade anônima revela que a finalidade de
obtenção de lucro expressa o claro critério adotado pelo legislador para
distinguir o segmento aberto de previdência complementar. Nessa linha, a
propósito, ressaltou o Ministro Luis Felipe Salomão no voto que proferiu
perante a Segunda Seção no REsp 1.536.786/MG, leading case da Súmula 563/
STJ (“O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às entidades abertas
de previdência complementar, não incidindo nos contratos previdenciários
celebrados com entidades fechadas”), do qual destaco as seguintes passagens:

No ponto em exame, parece evidente que há diferenças sensíveis e marcantes


entre as entidades de previdência privada aberta e fechada.
Embora ambas exerçam atividade econômica, apenas as abertas operam
em regime de mercado, podem auferir lucro das contribuições vertidas pelos
participantes (proveito econômico), não havendo também nenhuma imposição legal
de participação de participantes e assistidos, seja no tocante à gestão dos planos de
benefícios, seja ainda da própria entidade.
Daniel Pulino, em extenso e profícuo estudo, confronta as diferenças, no
tocante aos regimes jurídicos a envolver os dois gêneros de entidades de
previdência privada (aberta e fechada):

Há marcante diferença entre as entidades fechadas e abertas, diferença


esta que se verifica quanto à finalidade por elas perseguida. É esta, aliás, a

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 593


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

principal diferença da previdência privada aberta para a fechada, quanto às


entidades, a ponto de ser ela a fonte de grande parte das demais distinções
que a lei faz entre uma e outra dessas modalidades. Vejamos por que.
Embora a lei geral de regulação do regime de previdência privada - a Lei
Complementar n. 109, de 2001 - estabeleça, em seu art. 2º, ser o mesmo
o objetivo principal de entidades abertas e fechadas, à segunda delas,
às fechadas, foi vedada a finalidade lucrativa, o que, no entanto, será
perseguido pelas entidades abertas de previdência complementar [...].
Com efeito, dispõe o art. 31, § 1º, e o art. 8º, parágrafo único,
respectivamente, das Leis Complementares n. 109 e 108, de 2001, em
idêntica redação, que as entidades fechadas “organizar-se-ão sob a forma
de fundação ou sociedade civil, sem fins lucrativos”. Foi, portanto, vedada por
lei a busca de lucro pelas entidades fechadas de previdência complementar.
Por seu turno, embora não esteja explícito no texto da lei, as entidades
abertas, diferentemente, perseguirão lucros, porque, primeiramente, elas se
organizam, como visto, sob a forma de sociedades anônimas - sociedades
regidas pela Lei n. 6.404, de 1976, que, em seu art. 2º (e 154), expressamente,
se refere à finalidade lucrativa, que jamais poderá ser recusada - e, em
segundo lugar, porque, apenas por respeito a situações já estabelecidas
perante a legislação anterior, a Lei Complementar n. 109, de 2001, admitiu,
transitoriamente, a existência de entidades abertas sem fins lucrativos (art.
77), que foram, assim, tratadas como figuras em extinção.
Diante dessa diferenciação que a lei estabeleceu, pode-se dizer, numa
análise funcional do regime de previdência privada, que a proteção
previdenciária - o intuito protetivo protetivo-previdenciário - corresponde à
finalidade legal do instituto da previdência privada ou complementar; vale
dizer, o bem ou valor em razão do qual existe esse conjunto estruturado de
normas conformadoras de um regime de previdência privada consiste na
proteção previdenciária complementar - em esquema previdenciário - dos
indivíduos.
Entendemos por proteção previdenciária complementar a cobertura
autônoma àquela conferida pelo regime básico - mas tendente à sua
melhoria - aos participantes dos planos de beneficios e seus beneficiários,
trazendo vantagens diretas para estes e para as patrocinadoras ou
instituidoras, e que justamente por isso foi contratada pelas partes no
intuito específico de preservação, em alguma medida (a medida contratada),
do particular nível de vida do participante e dos seus beneficiários.
[...]
Assim, por exemplo, enquanto uma é organizada como fundação (as
fechadas), a outra (abertas) o é enquanto companhia - sociedade na qual, já o
dissemos, a finalidade lucrativa é da sua essência -; uma (a entidade fechada)
terá gestão participativa, e a outra (aberta), não; apenas aos planos de uma

594
Jurisprudência da QUARTA TURMA

delas (os das fechadas) foi imposta disciplina específica para tratamento
de resultado superavitário (art. 20 da lei Complementar n. 109, de 2001),
possibilidade nem sequer cogitada para planos de entidades abertas (onde,
atingidos os resultados contratados, os excedentes podem ser considerados
lucros, a serem distribuídos entre os acionistas); uma (fechada) pode existir
para administrar plano de benefícios para apenas uma empresa patrocinadora
ou entidade instituidora (entidade fechada singular), o que é inimaginável
para as abertas; uma, enfim, terá disciplina jurídica ainda mais próxima das
instituições financeiras e de seguro (é o caso das abertas), do que aquela
imposta às entidades fechadas. (PULINO, Daniel. Previdência complementar:
natureza jurídico-constitucional e seu desenvolvimento pelas entidades
fechadas. São Paulo: Conceito, 2011, p. 130-133)

Nesse passo, assinalo que, conforme disposto no art. 36 da Lei Complementar


n. 109/2001, as entidades abertas de previdência complementar são constituídas
unicamente sob a forma de sociedade anônimas. Elas, salvo as instituídas
antes da mencionada lei, têm, pois, necessariamente, finalidade lucrativa e são
formadas por instituições financeiras e seguradoras, autorizadas e fiscalizadas pela
Superintendência de Seguros Privados - Susep, vinculada ao Ministério da Fazenda,
tendo por órgão regulador o Conselho Nacional de Seguros Privados - CNSP.
As operações de previdência privada aberta são realizadas em regime de mercado
e resultam em captação de poupança popular. Não há intuito exclusivamente
protetivo-previdenciário. (grifos não constantes do original).

A propósito dos fundos mantidos em entidades de previdência


complementar abertas, observa o professor de economia da Unicamp e
pequisador do IPEA, Bruno de Conti:

Nos últimos dez anos, os recursos dos fundos abertos mais que triplicaram
em termos reais, pela incorporação desses novos funcionários de empresas que
outrora ofereciam fundos fechados, mas não apenas por isso. O que ocorre,
adicionalmente, é que esses fundos são geralmente administrados por bancos
comerciais, sendo oferecidos aos seus correntistas na forma de uma aplicação
financeira como outra qualquer. Como consequência, esses recursos não são
necessariamente encarados segundo a lógica precípua dos fundos de previdência;
qual seja, a de constituir uma poupança financeira que será utilizada apenas no
momento da aposentadoria dos participantes. Alternativamente, são vistos como
uma aplicação financeira que concorre com os demais produtos oferecidos pelo
banco. Isso acaba sendo inclusive estimulado pelos privilégios tributários incidentes
sobre alguns planos e, sobretudo, sobre a modalidade vida gerador de benefício
livre (VGBL), que apresenta o benefício da tributação exclusiva sobre os rendimentos,
enquanto em outras aplicações financeiras os tributos incidem na contribuição e no
resgate.

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 595


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Diante disso, os gestores desses planos abertos de previdência têm por hábito
apresentá-los aos seus clientes como uma alternativa rentável de aplicação
financeira, ainda que na ausência de propósitos propriamente previdenciários por
parte do participante. A consequência inevitável é que esses fundos precisam
apresentar um desempenho constantemente satisfatório em relação à média das
outras aplicações financeiras, não apenas para atrair novos participantes, mas
também para mantê-los. Se a rentabilidade desses fundos não for “competitiva”
– mesmo que por um curto período –, os participantes migrarão para outras
modalidades de investimento. Esse comportamento, bastante lógico do ponto
de vista microeconômico, tem importantes implicações macro, sobretudo para
os propósitos desta pesquisa, já que a possibilidade de que esses recursos
dos fundos abertos de previdência constituam um funding de longo prazo
fica problematizada. Isso ocorre porque seus administradores se adaptam à
necessidade de obtenção de resultados constantemente competitivos, praticando
uma gestão de caráter preponderantemente “curtoprazista”. Nos fundos fechados,
por sua vez, os participantes preveem o uso desses recursos apenas no momento
de sua aposentadoria, e esse horizonte temporal permite – ou, ao menos, deveria
permitir – aos administradores uma gestão menos preocupada com os resultados
de curto prazo,
(Disponível em https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/ TDs/
td_2175.pdf ) (grifos não constantes do original).

Considero, pois, que os valores depositados em planos de previdência


complementar aberta equiparam-se a investimentos financeiros como outro
qualquer, motivo pelo qual acompanhei o posicionamento do relator, Ministro
Raul Araújo, que prevaleceu na Quarta Turma por ocasião do julgamento do
REsp 1.121.719/SP, nos termos do voto que proferi naquela oportunidade e do
qual transcrevo o seguinte trecho:

No caso, verifico que pretende o recorrente o resgate antecipado de valores


que alcançavam mais de um milhão de reais em fevereiro de 2005. Portanto,
assim como o eminente Relator, não vejo diferença substancial entre essa
poupança feita a título de previdência complementar e a poupança que pudesse
eventualmente ter sido feita por ele ao longo desses anos em uma caderneta de
poupança comum.
Penso que a situação é diferente do que se sucederia no caso de uma pessoa
que estivesse gozando de aposentadoria com complementação de instituto de
previdência privada. Este benefício mensal complementar, a meu ver, gozaria
da mesma impenhorabilidade do salário ou da aposentadoria previdenciária.
Aquilo que ele recebesse mensalmente como complemento de um benefício
previdenciário penso eu que seria impenhorável. Mas, aqui, o que pretende
não é continuar a receber, ou passar a receber, mensalmente, um benefício

596
Jurisprudência da QUARTA TURMA

previdenciário complementar, mas o resgate antecipado do capital formado


para futuro pagamento, o que, a meu ver, torna esse fundo de previdência
complementar com características similares a uma caderneta de poupança.

Como ressaltou o ministro Luis Felipe Salomão no voto prolatado nos


presentes autos, a despeito de esse entendimento ter sido alterado pela Segunda
Seção, ao apreciar os EREsp 1.121.719/SP, no qual fiquei vencida juntamente
com os ministros Raul Araújo, Ricardo Villas Bôas Cueva e Marco Buzzi, o
certo é que esse julgamento limitou-se a afastar a penhorabilidade de valores
aplicados no PGBL, espécie de plano de previdência complementar aberta, mas
a determinação não ocorreu de forma genérica.
Na verdade, a tese ficou restrita às hipóteses nas quais demonstrada a
precípua finalidade previdenciária das contribuições, evidenciando, portanto,
natureza alimentar da verba, requisito que, no caso concreto, a maioria entendeu
configurada, diante das peculiaridades de o administrador que, em ação civil
pública, teve decretada a indisponibilidade de seus bens, ter ficado curto período
à frente da instituição financeira sob liquidação ou intervenção extrajudicial (52
dias), deter ele participação ínfima no capital social da empresa (0,01%), a sua
avançada idade (70 anos) e o longo período em que realizou depósitos para o
PGBL (20 anos), conforme sumariado na ementa:

Processual Civil. Embargos de divergência em recurso especial. Saldo em fundo


de previdência privada complementar. Impenhorabilidade. Indisponibilidade de
bens determinada à luz do art. 36 da Lei 6.024/74. Medida desproporcional.
1. O regime de previdência privada complementar é, nos termos do art. 1º da
LC 109/2001, “baseado na constituição de reservas que garantam o benefício,
nos termos do caput do art. 202 da Constituição Federal”, que, por sua vez, está
inserido na seção que dispõe sobre a Previdência Social.
2. Embora não se negue que o PGBL permite o “resgate da totalidade das
contribuições vertidas ao plano pelo participante” (art. 14, III, da LC 109/2001),
essa faculdade concedida ao participante de fundo de previdência privada
complementar não tem o condão de afastar, de forma inexorável, a natureza
essencialmente previdenciária e, portanto, alimentar, do saldo existente.
3. Por isso, a impenhorabilidade dos valores depositados em fundo de
previdência privada complementar deve ser aferida pelo Juiz casuisticamente, de
modo que, se as provas dos autos revelarem a necessidade de utilização do saldo
para a subsistência do participante e de sua família, caracterizada estará a sua
natureza alimentar, na forma do art. 649, IV, do CPC.
4. Ante as peculiaridades da espécie (curto período em que o embargante
esteve à frente da instituição financeira e sua ínfima participação no respectivo

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 597


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

capital social), não se mostra razoável impor ao embargante tão grave medida,
de ter decretada a indisponibilidade de todos os seus bens, inclusive do saldo
existente em fundo de previdência privada complementar - PGBL.
5. Embargos de divergência conhecidos e providos.
(Relatora Ministra Nancy Andrighi, DJ 4.4.2014)

Do voto de desempate proferido pelo Ministro Luís Felipe Salomão, na


condição de Presidente da Segunda Seção, destaco:

Tenho que a primeira premissa para correto deslinde da questão, vista por
esse prisma, reside na definição acerca da impenhorabilidade ou não dos valores
depositados no mencionado PGBL.
Nesse passo, é cediça a natureza previdenciária dos planos de benefícios
instituídos e executados pelas entidades de previdência complementar (arts. 1º e
2º da LC n. 109/2001), o que, em linha de princípio, parece apontar para o caráter
alimentar desses recursos, mormente ante o teor do art. 114 da Lei n. 8.213/1991
que, dispondo sobre os planos de benefícios da previdência social, confere-lhes a
proteção da impenhorabilidade:
(...)
Não obstante, o regime da previdência privada admite não só a acumulação
de recursos e a transformação desses em renda futura, como também o resgate
antecipado dos valores depositados (art. 14, III, da LC n. 109/2001), atuando, nessa
hipótese, como uma aplicação financeira regular, o que, decerto, não parece ter
sido objeto da proteção do legislador ao elaborar a norma insculpida no art. 649,
IV, do CPC.
Com efeito, o regime de previdência complementar aberta, diversamente do que
ocorre na fechada, caracteriza-se pela livre comercialização de planos previdenciários
- via de regra, pelos canais bancários -, a cujos recursos os aderentes têm amplo
acesso a qualquer momento, a depender das regras do plano.
Essa é uma das razões a justificar o entendimento acerca da penhorabilidade
dos valores depositados nesses fundos na fase de acumulação, porquanto:

[...] não faria sentido oferecer uma ‘blindagem’ unicamente para recursos
que fossem aportados em planos de previdência privada, uma vez que é sabido
que com a profusão do fenômeno do bancassurance os “produtos financeiros”
são comercializados no mesmo balcão - sejam “produtos” de previdência, de
investimento ou do próprio banco. Permitir que tal “roupagem” fosse capaz
de afastar os efeitos danosos de uma execução seria abrir uma porta para que
os fraudadores pudessem entrar. (CASSA, Ivy. Penhorabilidade de recursos de
planos de previdência privada. In Aspectos jurídicos dos contratos de seguro.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 149). (grifos não constantes do
original).

598
Jurisprudência da QUARTA TURMA

Essa foi, seguramente, uma das preocupações da Quarta Turma no julgamento


do REsp 1.121.179, que deu origem aos presentes embargos de divergência.
4.2. Por outro lado, deparamo-nos, agora, com relevante impasse decorrente
do fato de que a situação presente ostenta singularidades que não se assemelham
à conduta acima referida.
Ao revés, dessume-se dos autos que o embargante: a) foi indicado pelo Banco
Central para o cargo de presidente do Banco Santos, tendo-o ocupado por apenas
52 dias; b) está com setenta anos de idade; e c) encontra-se impossibilitado
de exercer qualquer cargo em instituições financeiras, como consequência
automática da intervenção no Banco que presidia.
Impende salientar, ainda, que os recursos em tela, malgrado os valores elevados,
foram integralmente depositados ao longo de muitos anos, principalmente
quando o recorrente ocupava o cargo de presidente do Banco Real e do Grupo
Visa, antes, portanto, de seu ingresso na presidência da instituição liquidada.
Outrossim, consoante exposto pelo douto representante do Ministério Público,
o Subprocurador Washington Bolívar de Brito Junior, ficou claro que o intento
basilar do embargante não foi o de utilizar o referido fundo de previdência como
mera aplicação financeira; vislumbrou, assim, a natureza alimentar da pretensão
recursal.”
(...)
7. Ante o exposto, com as ressalvas acima, rogo vênia à divergência para,
no caso concreto, diante das circunstâncias antes apontadas, acompanhar a
eminente relatora para dar provimento aos embargos de divergência, e, por
conseguinte, determinar o desbloqueio das verbas pretendidas.

No caso ora em julgamento, ao contrário do precedente acima transcrito,


não está em questão a proteção da entidade familiar em face de terceiro, credor
que possa ser satisfeito mediante a penhora dos valores.
Discute-se a partilha do patrimônio após a extinção da sociedade conjugal.
É certo que proventos de aposentadoria que estejam sendo percebidos por
cada cônjuge não se comunicam (Código Civil, art. 1.659, VII).
A controvérsia diz respeito a valores aportados a planos de benefícios
administrados por entidades fechadas de previdência complementar.
No caso de planos mantidos em entidades abertas, o titular escolhe a
quantia a ser destinada ao fundo de previdência privada, a periodicidade de sua
contribuição, e tem assegurado, pelo art. 27 da Lei Complementar 109/2001
(inserido em Seção intitulada “Dos Planos de Benefícios de Entidades Abertas”),
o direito a resgate total ou parcial dos recursos, in verbis:

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 599


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Art. 27. Observados os conceitos, a forma, as condições e os critérios fixados


pelo órgão regulador, é assegurado aos participantes o direito à portabilidade,
inclusive para plano de benefício de entidade fechada, e ao resgate de recursos
das reservas técnicas, provisões e fundos, total ou parcialmente.

A propósito do resgate no regime aberto de previdência privada, o art. 20


da Circular 563, de 24.12.2017, da SUSEP dispõe:

Art. 20. O participante poderá solicitar, independentemente do número de


contribuições pagas, resgate, parcial ou total, de recursos do saldo da provisão
matemática de benefícios a conceder, após o cumprimento de período de
carência, que deverá estar compreendido entre 60 (sessenta) dias e 60 (sessenta)
meses, a contar da data de protocolo da proposta de inscrição na EAPC.

Idêntica regra foi inserida na Resolução SUSEP 564, de 24.12.2017, que


trata dos planos de seguro de pessoas, como o VGBL, confira-se:

Art. 20. O segurado poderá solicitar, independentemente do número


de prêmios pagos, resgate, parcial ou total, de recursos do saldo da provisão
matemática de benefícios a conceder, após o cumprimento de período de
carência, que deverá estar compreendido entre 60 (sessenta) dias e 60 (sessenta)
meses, a contar da data de protocolo da proposta de contratação, no caso de
contratação individual, ou adesão, no caso de contratação coletiva, na sociedade
seguradora.

Concluo, portanto, que as reservas financeiras aportadas, durante a


sociedade conjugal, em entidades abertas de previdência privada, constituem
patrimônio que pode ser resgatado, vencida a carência contratual, e, portanto,
deve ser partilhado de acordo com as regras do regime de bens, assim como o
seriam tais valores se depositadas em outro tipo de aplicação financeira, como
contas bancárias e cadernetas de poupança.
O intuito com que feita a aplicação - criação de uma reserva de valor em
prol da segurança e amparo futuro da família - está presente na previdência
privada aberta, assim como também existe quando o investimento é feito em
imóveis, ações ou aplicações financeiras, independentemente do nome do
cônjuge em que formalizado.
Durante o casamento, que, no caso presente, adotou a regra da comunhão
universal de bens, os rendimentos do trabalho de cada cônjuge a ele pertencem
individualmente e não se desvinculam da destinação própria dos salários de
suprir as despesas com moradia, alimentação, vestuário, entre outras de seu

600
Jurisprudência da QUARTA TURMA

beneficiário, observados, naturalmente, os deveres de ambos os cônjuges de


mútua assistência, sustento e educação dos filhos e responsabilidade pelos
encargos da família (arts. 1.566, III, 1.568 e 1.565, caput, do CC/2002).
Atendidas as necessidades individuais do cônjuge que auferiu os
rendimentos do trabalho e cumpridas as obrigações de sustento e manutenção
do lar conjugal, os recursos financeiros eventualmente excedentes e os bens
com eles adquiridos passam a integrar o patrimônio comum do casal, sejam
eles móveis, imóveis, direitos ou quaisquer espécies de reservas monetárias de
que ambos os cônjuges disponham, tais como depósitos bancários, aplicações
financeiras, moeda nacional ou estrangeira acumuladas em residência, entre
outros.
Assim, a importância em dinheiro, depositada em instituição bancária, ou
investida nas diversas espécies de aplicações financeiras disponíveis no mercado,
oriunda dos proventos do trabalho - única fonte de renda na maioria dos casais
brasileiros - sobejante do custeio das despesas cotidianas da família, integra o
patrimônio do casal, do mesmo modo como ocorre quando esse numerário é
convertido em bens móveis, imóveis ou direitos.
Nesse sentido, entre muitos outros:

Recurso especial (art. 105, III, a, da CF). Procedimento de inventário. Primeiras


declarações. Aplicação financeira mantida por esposa do de cujus na vigência da
sociedade conjugal. Depósito de proventos de aposentadoria. Possibilidade de
inclusão dentre o patrimônio a ser partilhado. Perda do caráter alimentar. Regime
de comunhão universal. Bem que integra o patrimônio comum e se comunica ao
patrimônio do casal. Exegese dos arts. 1.668, V e 1.659, VI, ambos do Código Civil.
Recurso desprovido.
(...)
2. Os proventos de aposentadoria, percebidos por cônjuge casado em regime
de comunhão universal e durante a vigência da sociedade conjugal, constituem
patrimônio particular do consorte ao máximo enquanto mantenham caráter
alimentar.
Perdida essa natureza, como na hipótese de acúmulo do capital mediante
depósito das verbas em aplicação financeira, o valor originado dos proventos de
um dos consortes passa a integrar o patrimônio comum do casal, devendo ser
partilhado quando da extinção da sociedade conjugal. Interpretação sistemática
dos comandos contidos nos arts. 1.659, VI e 1.668, V, 1.565, 1.566, III e 1.568, todos
do Código Civil.
3. Recurso especial parcialmente conhecido e desprovido.
(Rel. Min. Marco Buzzi, DJ 10.10.2012)

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 601


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Recurso especial. Casamento. Regime de comunhão parcial de bens. Doação


feita a um dos cônjuges. Incomunicabilidade. FGTS. Natureza jurídica. Proventos
do trabalho. Valores recebidos na constância do casamento. Composição da
meação. Saque diferido. Reserva em conta vinculada específica.
1. No regime de comunhão parcial, o bem adquirido pela mulher com o
produto auferido mediante a alienação do patrimônio herdado de seu pai não se
inclui na comunhão. Precedentes.
2. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do ARE 709.212/DF, debateu a
natureza jurídica do FGTS, oportunidade em que afirmou se tratar de “direito dos
trabalhadores brasileiros (não só dos empregados, portanto), consubstanciado na
criação de um pecúlio permanente, que pode ser sacado pelos seus titulares em
diversas circunstâncias legalmente definidas (cf. art. 20 da Lei 8.036/1995)”. (ARE
709.212, Relator (a): Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgado em 13/11/2014,
DJe-032 divulg 18-02-2015 public 19-02-2015)
3. No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, a Egrégia Terceira Turma
enfrentou a questão, estabelecendo que o FGTS é “direito social dos trabalhadores
urbanos e rurais”, constituindo, pois, fruto civil do trabalho. (REsp 848.660/RS, Rel.
Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, DJe 13/05/2011)
4. O entendimento atual do Superior Tribunal de Justiça é o de que os proventos
do trabalho recebidos, por um ou outro cônjuge, na vigência do casamento,
compõem o patrimônio comum do casal, a ser partilhado na separação, tendo
em vista a formação de sociedade de fato, configurada pelo esforço comum
dos cônjuges, independentemente de ser financeira a contribuição de um dos
consortes e do outro não.
5. Assim, deve ser reconhecido o direito à meação dos valores do FGTS
auferidos durante a constância do casamento, ainda que o saque daqueles
valores não seja realizado imediatamente à separação do casal.
6. A fim de viabilizar a realização daquele direito reconhecido, nos casos
em que ocorrer, a CEF deverá ser comunicada para que providencie a reserva
do montante referente à meação, para que num momento futuro, quando da
realização de qualquer das hipóteses legais de saque, seja possível a retirada do
numerário.
7. No caso sob exame, entretanto, no tocante aos valores sacados do FGTS, que
compuseram o pagamento do imóvel, estes se referem a depósitos anteriores ao
casamento, matéria sobre a qual não controvertem as partes.
8. Recurso especial a que se nega provimento.
(REsp 1.399.199/RS, Segunda Seção, Relator p/ acórdão Ministro Luis Felipe
Salomão, DJ 22.4.2016)

Agravo regimental no recurso especial. Civil. Direito de Família. Regime de


bens do casamento. Comunhão parcial de bens. Créditos trabalhistas originados
na constância do casamento. Comunicabilidade.

602
Jurisprudência da QUARTA TURMA

1. A jurisprudência da Terceira Turma é firme no sentido de que integra a


comunhão a indenização trabalhista correspondente a direitos adquiridos na
constância do casamento.
2. Agravo regimental a que se nega provimento.
(AgRg no REsp 1.250.046/SP, Terceira Turma, Relator Ministro Paulo de Tarso
Sanseverino, DJ 13.11.2012)

Recurso especial. Casamento. Comunhão parcial de bens. Servidor público.


Reajuste de 28,86%. Lei 8.622 e 8.627 de 1993. Diferenças de remuneração.
Patrimônio comum. Partilha de bens.
1. Os rendimentos do trabalho, pertinentes a fato gerador ocorrido durante
a vigência da sociedade conjugal, integram o patrimônio comum na hipótese
de dissolução do vínculo matrimonial, desde que convertidos em patrimônio
mensurável de qualquer espécie, imobiliário, mobiliário, direitos ou mantidos em
pecúnia.
2. Os atrasados oriundos de diferenças salariais relativas ao reajuste de 28,86%
concedido aos servidores públicos federais pelas Leis 8.622 e 8.627, ambas de
1993, recebidos por um dos ex-cônjuges por força de decisão judicial, após
a dissolução do vínculo conjugal, mas correspondentes a direitos adquiridos
na constância do casamento celebrado sob o regime da comunhão parcial de
bens, integram o patrimônio comum do casal e devem ser objeto da partilha
decorrente da dissolução do vínculo conjugal. Precedentes.
3. Recurso especial provido.
(REsp 1.096.537/RS, Relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, DJ 23.10.2014)

Penso que o mesmo entendimento haverá de ser aplicado aos valores


depositados em planos abertos de previdência privada durante a vida em comum
do casal.
Segundo meu entendimento, data maxima vênia, não cabe deixar ao
exclusivo talante daquele em cujo nome foi aberto o fundo a decisão de resgatar
ou não os valores. Do contrário, o direito de um dos cônjuges seria deixado a
depender do implemento de condição meramente potestativa, a depender da
conveniência ou não do outro de proceder ao resgate.
Tal consideração não se relaciona a ponderação alguma acerca de boa ou
má-fé do investidor em relação ao seu consorte. O direito ao resgate ad nutum
do beneficiário decorre da natureza do instituto, fazendo-o se aproximar da
generalidade das aplicações financeiras.
Ao meu sentir, não é relevante apurar a intenção subjetiva do cônjuge que
escolheu investir seus recursos sobejantes do custeio das necessidades familiares

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em fundo aberto de previdência privada, caderneta de poupança ou fundo de


ações, entre outros investimentos possíveis. Não importa se pretendia investir
para uso em período médio de tempo ou se sua intenção era complementar
sua renda na velhice. Se era complementar a renda futura, essa proteção há de
ser presumida em prol da família e as contribuições vertidas na constância da
sociedade conjugal hão de ser partilhadas para assegurar a velhice de ambos os
consortes.
Anoto que, diversamente do que ocorre com o FGTS, fundo de natureza
pública, na previdência aberta o direito ao resgate, cumprida a carência
contratual, pode ser obtido a qualquer momento, não tendo por pressuposto o
preenchimento de um rol taxativo de hipóteses legais e sequer depende, como
ocorre na previdência fechada, do rompimento do vínculo com o patrocinador.
Na previdência privada aberta, quaisquer valores podem ser investidos
em PGBL ou VGBL, de acordo com a conveniência do investidor (e não
apenas um percentual definido em regulamento sobre o salário de contribuição,
como ocorre na previdência fechada), e resgatados livremente após cumprida a
carência contratual.
Rompida a sociedade conjugal, ao meu sentir, tais valores devem ser
partilhados conforme o regime de bens. O intuito previdenciário poderá subsistir
com o aporte dos recursos, metade em nome de cada ex-convivente, caso assim
o desejem. Entendimento contrário, data maxima vênia, tornaria possível que,
durante a sociedade conjugal, a margem do regime de bens aplicável, fosse
permitida uma reserva de capital aberta e alimentada, em prol de apenas um dos
consortes.

IV

No caso em exame, todavia, é incontroverso que as verbas cuja partilha


pretende a autora da ação ver incluídas na meação têm por origem o resgate das
contribuições vertidas pelo ora recorrido para plano de benefício administrado
por entidade fechada de previdência complementar - Fundação Francisco
Martins Bastos, patrocinada pela Companhia Brasileira de Petróleo Ipiranga
(“Grupo Ipiranga”).
Conforme consta do acórdão recorrido, o réu já estava aposentado e em
gozo do benefício complementar quando da separação. Tais fatos, também
incontroversos, são assim descritos na contestação (fls. 120-121):

604
Jurisprudência da QUARTA TURMA

Convém frisar que o Requerido era funcionário da empresa Ipiranga desde


antes da celebração do casamento, e, para tanto, já contribuía com a previdência
privada patrocinada pela empresa empregadora e também para a previdência
social.
Após o tempo necessário para a aposentadoria, o Requerido recebia
aposentadoria comum e também a suplementar, através da Fundação Francisco
Martins Bastos.
Entretanto, com a venda da empresa Ipiranga para outro grupo internacional,
o novo comprador informou que não continuaria patrocinando a previdência
privada (doc. anexo).
(...)
Pelo fato de ter sido extinto o patrocínio, o Requerido recebeu a opção de
manter a aposentadoria (portabilidade), mas por valor menor, ou resgatar
antecipadamente o valor das aposentadorias mensais.
Assim, como o Requerido perderia boa parte de sua aposentadoria privada,
optou pela retirada do aporte financeiro para adquirir um imóvel próprio.
Deste modo, o Requerido perdeu sua aposentadoria privada, sendo indenizado
pelo valor de R$ 302.996,26 (trezentos dois mil, novecentos noventa seis reais e
vinte seis centavos), através da Fundação Francisco Martins Bastos, mas deixou de
receber mensalmente a quantia de R$4.000,00 (quatro mil reais). Tal fato ocorreu
04 (quatro) anos após a separação judicial.”

No segmento fechado de previdência complementar, o tratamento legal


é inteiramente diverso, conforme acima exposto. Ressalto a peculiaridade de
as entidades fechadas atuarem de forma complementar à Previdência Social,
sujeitas ao controle e fiscalização da Superintendência Nacional de Previdência
Complementar - PREVIC e do Conselho de Gestão da Previdência
Complementar - CGPC, sendo constituídas sob a forma de fundação ou
sociedade civil (LC 109/2001, art. 31, § 1º), sem intuito de obter lucro, tendo
por objeto exclusivamente a administração de planos de benefícios de natureza
previdenciária em prol de empregados e servidores públicos de determinada
empresa ou ente estatal ou associação, para os quais tenham autorização do
órgão regulador (LC 109/2001, art. 32).
Ademais, na modalidade fechada de previdência privada, foi estabelecido
conceito específico de resgate, com regras restritivas que impedem sua utilização
a qualquer tempo, destinadas a coibir eventual pretensão do participante de
utilizar esses recursos com finalidade diversa da precípua proteção previdenciária
para a qual foi concebida, circunstância que afasta a liquidez própria das
aplicações financeiras.

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 605


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Dentre essas regras, destaco a constante do art. 22 da Resolução 6 do


Conselho de Gestão da Previdência Complementar - CNPC, órgão regulador
do segmento fechado (LC 109/2001, art. 74 e Lei 12.154/2009, art. 13),
impositiva do rompimento do vínculo empregatício como condição para o
pagamento do resgate. Confira-se:

Art. 22. No caso de plano de benefícios instituído por patrocinador, o


regulamento deverá condicionar o pagamento do resgate à cessação do vínculo
empregatício.

Observo, a propósito, que a Segunda Seção deste Tribunal consolidou


a orientação de que é válida essa exigência estabelecida em regulamento da
entidade fechada de previdência, como condição para o resgate das contribuições
vertidas, de forma a manter o equilíbrio financeiro e atuarial do sistema e para
dar cumprimento às normas expedidas pelo órgão regulador do regime fechado
de previdência complementar.
Nesse sentido, entre muitas outros, lembro o seguinte precedente:

Processual Civil. Agravo interno nos embargos de divergência em recurso


especial. Harmonia entre o acórdão embargado e a jurisprudência do STJ. Súmula
168/STJ. Não cabimento. Previdência privada. Resgate. Contribuições pessoais.
Exigência de prévio rompimento do vínculo empregatício. Possibilidade.
1. Não cabem embargos de divergência quando o acórdão embargado
encontra-se no mesmo sentido da jurisprudência consolidada deste Tribunal.
Súmula 168/STJ.
2. É válida a norma estatutária da entidade fechada de previdência privada
que exija a extinção do vínculo empregatício com o patrocinador para que o ex-
participante seja autorizado a efetuar o resgate de suas contribuições.
3. Agravo interno não provido.
(AgInt nos EREsp 1.694.100/MG, Segunda Seção, Relatora Ministra Nancy
Andrighi, DJ 14.9.2018).

Acrescento que o CNPC vedou, ainda, a possibilidade de resgate por


participante em gozo de benefício, nos termos do art. 24 da referida Resolução
6, com a redação da Resolução 19, de 25.9.2006, nos seguintes termos:

Art. 24. O resgate não será permitido caso o participante esteja em gozo de
benefício.

No caso presente, é incontroverso que o ora recorrido encontrava-se


em gozo do benefício de complementação de aposentadoria e, portanto, não
606
Jurisprudência da QUARTA TURMA

poderia pleitear o resgate de sua reserva de poupança por ocasião da separação


do casal.
O pagamento das quantias a ele destinadas decorreu exclusivamente
da retirada do patrocinador da entidade, hipótese prevista no art. 25 da LC
109/2001 e efetivada mediante autorização do órgão regulador, após análise
da situação econômico-financeira e atuarial do plano de benefícios, conforme
os rigorosos procedimentos destinados a “acerto de contas” minuciosamente
descritos na Resolução CNPC n. 11, de 13.5.2013, na qual também se encontra
estabelecida a forma de apuração do cálculo dos recursos que couber a cada
participante (reserva matemática individual final), montante diferente do
conceito de resgate de reserva de poupança, tudo nos termos dos arts. 2º, inc. IX,
8º, 16, inc. I a IV, e 17, assim redigidos:

Art. 2º Para os fins desta Resolução, entende-se por:


(...)
IX - reserva matemática individual final, corresponde ao montante a que o
participante ou o assistido fará jus em face da retirada de patrocínio, obtido a partir
do valor correspondente à reserva matemática individual, atuarialmente calculado,
acrescido ou subtraído respectivamente do excedente ou da insuficiência patrimonial;
(...)
Art. 8º O processo de retirada de patrocínio será protocolado na Previc
acompanhado de estudo da situação econômico-financeira e atuarial do plano de
benefícios, e contemplará:
I – avaliação atuarial realizada na data-base por atuário legalmente habilitado;
II – precificação de ativos a valores de mercado;
III – valor estimado da reserva matemática individual de cada participante e
assistido, posicionado na data-base; e
IV – outros quesitos previstos em instrução específica expedida pela Previc.
(...)
§ 2º O valor individualizado da reserva matemática a que se refere o inciso III
do caput corresponderá, na data do cálculo:
I – para os assistidos, ao valor presente dos benefícios sob o regime de
capitalização, incluída, quando for o caso, a reversão em pensão por morte,
descontados desse resultado o valor presente das contribuições de assistido e do
custeio administrativo, quando aplicáveis;
II – para participantes elegíveis, ao valor presente dos benefícios sob o regime
de capitalização, incluída, quando for o caso, a reversão em pensão por morte,

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 607


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descontados desse resultado o valor presente das contribuições de assistido e do


custeio administrativo, quando aplicáveis, observado como mínimo o valor do
resgate; e
III – para os demais participantes, ao valor presente dos benefícios sob o
regime de capitalização, descontados do valor presente das contribuições de
assistido e do custeio administrativo, quando aplicáveis, proporcional ao tempo
de participação no plano, acrescido do valor do tempo de serviço passado,
acumulado conforme as regras do regulamento, observado como mínimo o valor
do resgate.
§ 3º O disposto no § 2º não se aplica aos planos de contribuição definida ou à
parcela de contribuição definida das demais modalidades de planos de benefícios,
em relação aos quais os participantes terão direito ao valor correspondente ao
respectivo saldo de conta, obedecidas as disposições do regulamento do plano
aplicadas na sua formação e manutenção.
§ 4º Aos valores individuais correspondentes às reservas matemáticas de que trata
o § 2º, serão acrescidos ou subtraídos os montantes relativos, respectivamente, ao
excedente ou insuficiência patrimonial, formando dessa forma a reserva matemática
individual final.
§ 5º Em relação aos assistidos de planos de benefício estruturados na
modalidade de benefício definido ou de contribuição variável, o valor
individualizado da reserva matemática será calculado considerando que a
sobrevida esperada, independentemente da tábua de mortalidade utilizada,
não será inferior a sessenta meses, cabendo ao patrocinador assumir a
responsabilidade pela diferença de custos decorrentes dessa reavaliação dos
cálculos.
§ 6º Os valores resultantes dos procedimentos previstos neste artigo serão
recalculados na data do cálculo e atualizados até a data-efetiva.
Art. 16. Os participantes e assistidos exercerão seu direito de opção,
individualmente, em relação ao montante dos recursos que lhes couber:
I - pela adesão ao plano instituído por opção, quando cabível, mediante prévia e
expressa manifestação individual;
II – por sua transferência para outro plano de benefícios de caráter previdenciário,
observadas as disposições legais aplicáveis;
III – pelo seu recebimento em parcela única; e
IV – pela combinação das opções previstas nos incisos II e III.

Em síntese:
- No segmento fechado de previdência complementar, os proventos de
complementação de aposentadoria e o resgate de reserva de poupança realizado

608
Jurisprudência da QUARTA TURMA

após a extinção do vínculo matrimonial, nos termos da legislação específica e


regulamentos que regem esse modalidade não se confundem com investimentos
em instituição financeira, mas possuem nítido feitio previdenciário,
enquadrando-se nas definições de “pensões, meios-soldos, montepios e outras
rendas semelhantes”, verbas excluídas da comunhão no regimes da comunhão
universal ou parcial de bens, nos termos do art. 1.659, inc. VII c/c o art. 1.668,
inc. V, do CC/2002 (art. 263, inc. I, do CC/2016);
- Os valores depositados em planos abertos, de outra parte, equiparam-se
a aplicações financeiras como outra qualquer e, portanto, as parcelas investidas
na vigência da sociedade conjugal integram o patrimônio comum do casamento
celebrado sobre o regime da comunhão total ou parcial de bens (arts. 1668, inc. V
e 1.659, inc. VI, do Código Civil de 2002, correspondentes aos arts. 262, 263, inc.
XIII, 269, inc. IV e 271, inc. IV, Código Civil de 1916), motivo pelo qual, desde
que não esteja o beneficiário recebendo os proventos complementares, devem
ser partilhados no momento da dissolução da sociedade conjugal. Diversamente,
se, por ocasião da ruptura da vida conjugal, o titular do plano já estiver no gozo
do benefício previdenciário contratado com entidade aberta, tal circunstância
deve ser ponderada na sentença de partilha, para evitar o desamparo do outro
cônjuge, não beneficiário do investimento realizado durante a união com valores
integrantes do patrimônio comum.
Essa distinção encontra apoio em precedentes da Terceira Turma.
Com efeito, rejeitando a pretensão de partilha das contribuições vertidas
por participante de plano de benefícios administrado por entidade fechada de
previdência privada, lembro os seguintes precedentes:

Recurso especial. Direito de Família. União estável. Regime de bens. Comunhão


parcial. Previdência privada. Modalidade fechada. Contingências futuras. Partilha.
Art. 1.659, VII, do CC/2002. Benefício excluído. Meação de dívida. Possibilidade.
Súmula n. 7/STJ. Preclusão consumativa. Fundamento autônomo.
1. Cinge-se a controvérsia a identificar se o benefício de previdência privada
fechada está incluído dentro no rol das exceções do art. 1.659, VII, do CC/2002 e,
portanto, é verba excluída da partilha em virtude da dissolução de união estável, que
observa, em regra, o regime da comunhão parcial dos bens.
2. A previdência privada possibilita a constituição de reservas para contigências
futuras e incertas da vida por meio de entidades organizadas de forma autônoma
em relação ao regime geral de previdência social.
3. As entidades fechadas de previdência complementar, sem fins lucrativos,
disponibilizam os planos de benefícios de natureza previdenciária apenas aos

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 609


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empregados ou grupo de empresas aos quais estão atrelados e não se confundem


com a relação laboral (art. 458, § 2º, VI, da CLT).
4. O artigo 1.659, inciso VII, do CC/2002 expressamente exclui da comunhão de
bens as pensões, meios-soldos, montepios e outras rendas semelhantes, como,
por analogia, é o caso da previdência complementar fechada.
5. O equilíbrio financeiro e atuarial é princípio nuclear da previdência
complementar fechada, motivo pelo qual permitir o resgate antecipado de renda
capitalizada, o que em tese não é possível à luz das normas previdenciárias e
estatutárias, em razão do regime de casamento, representaria um novo parâmetro
para a realização de cálculo já extremamente complexo e desequilibraria todo o
sistema, lesionando participantes e beneficiários, terceiros de boa-fé, que assinaram
previamente o contrato de um fundo sem tal previsão.
6. Na partilha, comunicam-se não apenas o patrimônio líquido, mas também
as dívidas e os encargos existentes até o momento da separação de fato.
7. Rever a premissa de falta de provas aptas a considerar que os empréstimos
beneficiaram a família, demanda o revolvimento do acervo fático-probatório dos
autos, o que atrai o óbice da Súmula n. 7 deste Superior Tribunal.
8. Recurso especial não provido.
(REsp 1.477.937/MG, Relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, DJ 20.6.2017).

Civil. Processual Civil. Ação de sobrepartilha. Crédito previdenciário recebido


por ex-cônjuge. Pleito de aposentadoria por tempo de serviço indeferido
administrativamente e objeto de ação judicial ajuizada durante o matrimônio,
mas que foi objeto de pagamento pelo INSS somente após o divórcio. Comunhão
e partilha. Possibilidade. Semelhança com as indenizações de natureza trabalhista,
com valores atrasados originados de diferenças salariais e valores de FGTS.
Aposentadoria pela previdência pública. Proventos do trabalho que se revertem
ao ente familiar. Presunção de colaboração, de esforço comum dos cônjuges
e comunicabilidade dos valores recebidos como fruto do trabalho de ambos.
Previdência privada fechada e previdência social. Dessemelhanças.
1 - Ação ajuizada em 20/01/2014. Recurso especial interposto em 16/09/2016 e
atribuído à Relatora em 03/02/2017.
2 - O propósito recursal é definir se dever. ser objeto de partilha o crédito
previdenciário recebido pelo cônjuge em razão de trânsito em julgado de
sentença de procedência de ação. o por ele ajuizada em face do INSS, por meio da
qual lhe foi concedida aposentadoria por tempo de serviço.
3 - As indenizações de natureza trabalhista, os valores atrasados originados de
diferenças salariais e decorrente do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço –
FGTS, quando referentes a direitos adquiridos na constância do vínculo conjugal e
na vigência dele pleiteados, devem ser objeto de comunhão e partilha, ainda que

610
Jurisprudência da QUARTA TURMA

a quantia tenha sido recebida apenas posteriormente à dissolução do vínculo.


Precedentes.
4 - A previdência privada fechada, por sua vez, é bem incomunicável e insuscetível
de partilha por ocasião do divórcio, tendo em vista a sua natureza personalíssima, eis
que instituída mediante planos de benefícios de natureza previdenciária apenas aos
empregados de uma empresa ou grupo de empresas aos quais os empregados estão
atrelados, sem se confundir, contudo, com a relação laboral e o respectivo contrato de
trabalho. Precedente.
5 - O crédito previdenciário decorrente de aposentadoria pela previdência
pública que, conquanto recebido somente veio a ser recebido após o divórcio,
tem como elemento causal uma ação judicial ajuizada na constância da sociedade
conjugal e na qual se concedeu o benefício retroativamente a período em que as
partes ainda se encontravam vinculadas pelo casamento, deve ser objeto de
partilha, na medida em que, tal qual na hipótese de indenizações trabalhistas e
recebimento de diferenças salariais em atraso, a eventual incomunicabilidade
dos proventos do trabalho geraria uma injustificável distorção em que um dos
cônjuges poderia possuir inúmeros bens reservados frutos de seu trabalho e o
outro não poderia tê-los porque reverteu, em prol da família, os frutos de seu
trabalho.
6 - Em se tratando de ente familiar e de regime matrimonial da comunhão
parcial de bens, a colaboração, o esforço comum e, consequentemente,
a comunicabilidade dos valores recebidos como fruto de trabalho deve ser
presumida.
7 - Recurso especial conhecido e provido, para reformar o acórdão recorrido e
julgar procedente o pedido formulado na ação de sobrepartilha, invertendo-se a
sucumbência fixada na sentença.
(REsp 1.651.292/RS, Relatora Ministra Nancy Andrighi, DJ 5.5.2020)

Em relação aos valores investidos em planos abertos, a Terceira Turma, no


julgamento do REsp 1.698.774/RS, julgou procedente o pedido de partilha, por
considerar equiparadas essas parcelas a aplicações financeiras em geral. Confira-
se:

Civil. Processual Civil. Ação de de divórcio e partilha de bens. Dever de


fundamentação. Art. 489, § 1º, VI, do CPC/15. Inobservância de súmula,
jurisprudência ou precedente condicionada à demonstração de distinção ou
superação aplicabilidades às súmulas e precedentes vinculantes, mas não às
súmulas e precedentes persuasivos. Planos de previdência privada aberta. Regime
marcado pela liberdade do investidor. Contribuição, depósitos, depósitos, aportes
e resgates flexíveis. Natureza jurídica multifacetada. Seguro previdenciário.
Investimento ou aplicação financeira. Dessemelhanças entre os planos de

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 611


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

previdência privada aberta e fechada, este último insuscetível de partilha.


Natureza securitária e previdenciária dos planos privados abertos verificada
após o recebimento dos valores acumulados, futuramente e em prestações,
como complementação de renda. Natureza jurídica de investimento e aplicação
financeira antes da conversão em renda e pensionamento ao titular. Partilha por
ocasião do vínculo conjugal. Necessidade. Art. 1.659, VII, do CC/2002 inaplicável.
Hipótese. Prestação de informações equivocadas e juntada de documentos de
declarações de imposto de renda falseadas. Litigância de má-fé. Impossibilidade
de reexame da matéria. Súmula 7/STJ. Recurso especial interposto apenas pelo
dissenso jurisprudencial. Impossibilidade. Súmula 284/STF.
1 - Ação ajuizada em 28/09/2007. Recurso especial interposto em 13/02/2017 e
atribuído à Relatora em 09/08/2017.
2 - Os propósitos recursais consistem em definir: (i) se o dever de seguir
enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte,
previsto no art. 489, § 1º, VI, do CPC/15, abrange também o dever de seguir
julgado proferido por Tribunal de 2º grau distinto daquele a que o julgador
está vinculado; (ii) se o valor existente em previdência complementar privada
aberta na modalidade VGBL deve ser partilhado por ocasião da dissolução do
vínculo conjugal; (iii) se a apresentação de declaração de imposto de renda com
informação o incorreta tipifica litigância de má-fé.; (iv) se é possível partilhar valor
existente em conta bancária alegadamente em nome de terceiro.
3 - A regra do art. 489, § 1º, VI, do CPC/15, segundo a qual o juiz, para deixar de
aplicar enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte,
deve demonstrar a existência de distinção ou de superação, somente se aplica
às súmulas ou precedentes vinculantes, mas não às súmulas e aos precedentes
apenas persuasivos, como, por exemplo, os acórdãos proferidos por Tribunais de
2º grau distintos daquele a que o julgador está vinculado.
4 - Os planos de previdência privada aberta, operados por seguradoras
autorizadas pela SUSEP, podem ser objeto de contratação por qualquer pessoa
física e jurídica, tratando-se de regime de capitalização no qual cabe ao investidor,
com amplíssima liberdade e flexibilidade, deliberar sobre os valores de contribuição,
depósitos adicionais, resgates antecipados ou parceladamente até o fim da vida,
razão pela qual a sua natureza jurídica ora se assemelha a um seguro previdenciário
adicional, ora se assemelha a um investimento ou aplicação financeira.
5 - Considerando que os planos de previdência privada aberta, de que são
exemplos o VGBL e o PGBL, não apresentam os mesmos entraves de natureza
financeira e atuarial que são verificados nos planos de previdência fechada, a eles
não se aplicam os óbices à partilha por ocasião da dissolução do vínculo conjugal
apontados em precedente da 3ª Turma desta Corte (REsp 1.477.937/MG).
6 - Embora, de acordo com a SUSEP, o PGBL seja um plano de previdência
complementar aberta com cobertura por sobrevivência e o VGBL seja um plano
de seguro de pessoa com cobertura por e sobrevivência, a natureza securitária

612
Jurisprudência da QUARTA TURMA

e previdenciária complementar desses contratos é marcante no momento em


que o investidor passa a receber, a partir de determinada data futura e em
prestações periódicas, os valores que acumulou ao longo da vida, como forma de
complementação do valor recebido da previdência pública e com o prop.sito de
manter um determinado padrão de vida.
7 - Todavia, no período que antecede a percepção dos valores, ou seja, durante
as contribuições e formação do patrimônio, com múltiplas possibilidades de
depósitos, de aportes diferenciados e de retiradas, inclusive antecipadas, a natureza
preponderante do contrato de previdência complementar aberta é de investimento,
razão pela qual o valor existente em plano de previdência complementar aberta,
antes de sua conversão em renda e pensionamento ao titular, possui natureza de
aplicação e investimento, devendo ser objeto de partilha por ocasião da dissolução
do vínculo conjugal por não estar abrangido pela regra do art. 1.659, VII, do CC/2002.
(...)
10- Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, desprovido.
(REsp 1.698.774/RS, Relatora Miinistra Nancy Andrighi, DJ 9.9.2020).

No caso presente, os valores resgatados pelo ora recorrido são oriundos


do plano de beneficios administrado pela Fundação Francisco Martins Bastos,
entidade fechada de previdência complementar patrocinada pela Cia Brasileira
de Petróleo Ipiranga (Grupo Ipiranga), motivo pelo qual se trata de verbas que
não integram o patrimônio comum do casamento celebrado sob os regimes da
comunhão universal ou parcial de bens, nos termos do art. 1.659 do Código Civil.
A impossibilidade de partilha de tal verba parece-me ainda mais manifesta,
data maxima vênia, em razão da circunstância de que o recorrido já estava em
gozo do benefício de previdência complementar quando da separação, o que,
por si só, impediria o resgate conforme o já citado art. 24 da Resolução 6, com a
redação dada pela Resolução 19/2006 do CNPC.
O resgate decorreu de fato superveniente, alheio à vontade do recorrido, a
saber, a retirada do patrocínio pela sua ex-empregadora, o que lhe impôs a opção
entre passar a receber um benefício menor ou fazer o resgate da sua reserva
matemática individual.
Conforme acentuado pelo acórdão recorrido, tal resgate consistiu no
recebimento, de uma só vez, dos proventos de aposentadoria a que, conforme
cálculos atuariais, faria ele jus ao longo dos anos. Assim, segundo meu
entendimento, a partilha desses valores equivaleria incluir na meação os próprios
proventos de aposentadoria do recorrido.

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 613


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

A possibilidade de opção pelo resgate da reserva matemática individual,


no caso de retirada de patrocínio, é expressa na legislação de regência da
previdência complementar, e, ao meu sentir, não retira o caráter previdenciário
e personalíssimo do benefício. Em sentido análogo, o parágrafo único do art.
950 do Código Civil permite à vítima de lesões corporais, que impeçam ou
prejudiquem o exercício de sua profissão, optar pelo recebimento da pensão
correspondente à importância do trabalho para que se inabilitou em parcela
única, a título de indenização. Também aqui, segundo entendo, o pagamento em
parcela única não descaracterizará o caráter personalíssimo da verba destinada a
compensar o prejuízo à capacidade laborativa.
Em face do exposto, com a devida vênia do voto do eminente Relator, nego
provimento ao recurso especial.
Deixo de majorar os honorários advocatícios nos termos do disposto no
art. 85, § 11, do CPC/2015, em razão de o recurso especial ter sido interposto
contra acórdão proferido antes de 18.3.2016 (Enunciado Administrativo n. 7/
STJ).
É como voto.

VOTO-DESEMPATE

O Sr. Ministro Marco Buzzi: Cuida-se de voto desempate tendo como


tema central a análise da questão atinente à possibilidade de partilha de valores
resgatados de plano de benefícios de previdência complementar firmado com entidade
fechada de previdência, em caso de rompimento de casamento no qual estabelecido o
regime de comunicação universal de bens, principalmente qual a natureza jurídica
aplicável (previdenciária personalíssima ou mero investimento).
O acórdão proferido pela Corte de origem encontra-se assim ementado (fl.
416):

Apelação cível. Ação de sobrepartilha. Procedência. Inconformismo.


Previdência privada. Mudanças na empresa financiadora. Opção pelo recebimento
adiantado de todas as parcelas. Valor excluído da comunhão. Art. 1.668, VI e VII do
CC. Direito individual de aposentadoria e não aplicação financeira. Requerido
que já recebia aposentadoria comum e complementar quando da separação.
Sentença reformada. Inversão dos ônus da sucumbência.
1. “Assim como os valores do fundo de garantia por tempo de serviço, a quantia
depositada com o escopo de garantia da aposentadoria (previdência privada),

614
Jurisprudência da QUARTA TURMA

quando não sacada durante a união, não se reverte em proveito do casal, porque
mantém a sua natureza personalíssima” (Apelação Cível n. 70047144035, Oitava
Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Alzir Felippe Schmitz, Julgado em
28/06/2012).
2. Recurso conhecido e provido.

Nas razões do recurso especial, a insurgente alega, em síntese, violação ao


art. 1º da Lei Complementar n. 109/2001, sob o argumento de que os valores
resgatados pelo ex-cônjuge de entidade fechada de previdência complementar,
oriundos das contribuições vertidas na constância do casamento celebrado sob o
regime da comunhão universal de bens, integram o patrimônio comum e devem
ser partilhados, ainda que o saque tenha ocorrido após a dissolução da sociedade
conjugal.
Assevera que a previdência privada é autônoma em relação ao contrato de
trabalho e que constitui um fundo de investimento, o qual pode ser resgatado,
constituindo-se como aplicação financeira.
Sustenta que o entendimento do acórdão recorrido de excluir essas parcelas
da partilha encontra-se em divergência com a orientação da Quarta Turma do
STJ que, ao examinar “caso idêntico”, no julgamento do REsp n. 1.121.719/
SP, concluiu que os valores investidos em plano de previdência privada não
possuem natureza alimentar, motivo pelo qual ficam sujeitos à penhora, mesmo
posicionamento também adotado pela Quarta Turma no AgInt no AG n.
1.284.772/RS.
O e. relator, Ministro Luiz Felipe Salomão, dá provimento ao recurso
especial para julgar procedente o pedido formulado na inicial, reconhecendo
o direito da autora ao recebimento de 50% do numerário resgatado líquido e
estabelece custas e honorários advocatícios a cargo do recorrido, esses últimos
fixados em R$ 10.000,00 (dez mil reais).
Extrai-se dos fundamentos lançados no voto do e. relator que, na hipótese
de resgate da reserva matemática (de poupança) decorrente do desligamento do
participante de entidade aberta ou fechada de previdência privada, a verba perde
a natureza previdenciária, equiparando-se a aplicações financeiras. Na hipótese,
por ter ficado demonstrado que as contribuições foram vertidas para a entidade
de previdência privada na vigência do casamento e objeto de resgate após a
extinção da sociedade conjugal, deveria ser objeto de partilha 50% do valor
líquido sacado pelo ora recorrido.

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 615


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Segundo o entendimento esposado pelo e. relator e pelo e. Ministro


Antonio Carlos Ferreira que o acompanhou na fundamentação de mérito,
não tem relevância para a solução da presente controvérsia a circunstância de
a previdência privada ser mantida em entidade fechada ou aberta, dado que a
questão central reside no fato dos valores terem ou não sido resgatados, pois
enquanto não levantados, conservam a natureza personalíssima, sendo portanto,
incomunicáveis e, havendo o resgate, mesmo em momento posterior à extinção
da vida conjugal, o valor correspondente deve integrar o patrimônio comum dos
ex-consortes a ser partilhado.
Abrindo divergência, a e. Ministra Isabel Galloti, no que foi acompanhada
pelo e. Ministro Raul Araújo - na integralidade - e pelo Ministro Antonio
Carlos Ferreira apenas quanto ao desfecho do caso concreto, nega provimento
ao reclamo especial.
Dos fundamentos elencados, extrai-se:
a) “no segmento fechado de previdência complementar, o tratamento legal
é inteiramente diverso daquele estabelecido nos planos de beneficios mantidos
por entidades abertas de previdência;
b) “na modalidade fechada de previdência privada, foi estabelecido conceito
específico de resgate, com regras restritivas que impedem sua utilização a
qualquer tempo, destinadas a coibir eventual pretensão do participante de utilizar
esses recursos com finalidade diversa da precípua proteção previdenciária para a
qual foi concebida, circunstância que afasta a liquidez própria das aplicações
financeiras”;
c) “os valores resgatados pelo ora recorrido são oriundos do plano de
beneficios administrado pela Fundação Francisco Martins Bastos, entidade
fechada de previdência complementar patrocinada pela Cia Brasileira de Petróleo
Ipiranga (Grupo Ipiranga), motivo pelo qual se trata de verbas que não integram
o patrimônio comum do casamento celebrado sob os regimes da comunhão
universal ou parcial de bens, nos termos do art. 1.659 do Código Civil”;
d) impossível a partilha de tal verba, porquanto “o recorrido já estava
em gozo do benefício de previdência complementar quando da separação, o
que, por si só, impediria o resgate conforme o já citado art. 24 da Resolução
6, com a redação dada pela Resolução 19/2006 do CNPC”, ou seja, “o resgate
decorreu de fato superveniente, alheio à vontade do recorrido, a saber, a retirada
do patrocínio pela sua ex-empregadora, o que lhe impôs a opção entre passar

616
Jurisprudência da QUARTA TURMA

a receber um benefício menor ou fazer o resgate da sua reserva matemática


individual”;
e) “conforme acentuado pelo acórdão recorrido, tal resgate consistiu no
recebimento, de uma só vez, dos proventos de aposentadoria a que, conforme
cálculos atuariais, faria ele jus ao longo dos anos. Assim, segundo meu
entendimento, a partilha desses valores equivaleria incluir na meação os próprios
proventos de aposentadoria do recorrido”.
Diante do empate estabelecido relativamente à fundamentação, os autos
vieram conclusos para definição por parte deste signatário.
É o relatório.

Voto
Com a devida vênia do e. Relator e do Ministro Antonio Carlos, acompanho
a divergência inaugurada pela e. Ministra Isabel Gallotti e corroborada pelo
Ministro Raul Araújo, para negar provimento ao recurso especial diante da
impossibilidade de partilha dos recursos resgatados do plano de benefício de
previdência do ora recorrido junto à entidade fechada de previdência.
1. Ressalta-se que, nessa oportunidade, apenas se discute a possibilidade de
partilha em vida de patrimônio resgatado de plano de benefício previdenciário
firmado com entidade fechada de previdência, decorrente de rompimento do
vínculo conjugal no qual estabelecido o regime de comunicação universal de bens.
No caso em exame, é incontroverso que as verbas cuja partilha pretende
a autora da ação ver incluídas na meação têm por origem o resgate das
contribuições vertidas pelo ora recorrido para plano de benefício administrado
por entidade fechada de previdência complementar - Fundação Francisco
Martins Bastos, patrocinada pela Companhia Brasileira de Petróleo Ipiranga
(“Grupo Ipiranga”).
Conforme consta do acórdão recorrido, os contendores casaram-se
em 26/11/1977 pelo regime da comunhão universal de bens, separando-se
judicialmente em 31/08/2005, momento no qual o réu já estava aposentado e
em gozo do benefício complementar, tendo, no entanto, em momento posterior
à separação, ocorrido o “resgate” da aposentadoria em razão da perda do
patrocínio por parte da empregadora.
Pois bem, é inegável que, os planos de previdência, sejam eles firmados com
entidades fechadas ou abertas, sempre se constituem em planos de sobrevivência

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 617


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

(opondo-se a seguros de vida, que somente pagam indenizações na hipótese de


falecimento da pessoa), com o intuito de gerar renda previdenciária.
Porém, no segmento fechado de previdência complementar, o tratamento
legal é peculiar dado que as entidades fechadas atuam de forma complementar
à Previdência Social, sujeitas ao controle e fiscalização da Superintendência
Nacional de Previdência Complementar - PREVIC e do Conselho de Gestão
da Previdência Complementar - CGPC, sendo constituídas sob a forma de
fundação ou sociedade civil (LC 109/2001, art. 31, § 1º), sem intuito de obter
lucro, tendo por objeto exclusivamente a administração de planos de benefícios
de natureza previdenciária em prol de empregados e servidores públicos de
determinada empresa ou ente estatal ou associação, para os quais tenham
autorização do órgão regulador (LC 109/2001, art. 32).
Consequentemente, os recursos vertidos aos planos das entidades fechadas
devem ser analisados segundo a lógica precípua dos fundos de previdência; qual
seja, a de constituir um acervo financeiro a ser utilizado apenas no momento da
aposentadoria dos participantes, tendo, portanto, nítido caráter previdenciário,
em oposição aquele de investimento/aplicação financeira próprio das entidades
abertas.
Ademais, na modalidade fechada de previdência privada, foi estabelecido
conceito específico de resgate, com regras restritivas que impedem sua utilização
a qualquer tempo, destinadas a coibir eventual pretensão do participante de
utilizar esses recursos com finalidade diversa da precípua proteção previdenciária
para a qual foi concebida, circunstância que afasta a liquidez própria das
aplicações financeiras.
Dentre essas regras, destaca-se a constante do art. 22 da Resolução 6 do
Conselho de Gestão da Previdência Complementar - CNPC, órgão regulador do
segmento fechado (LC 109/2001, art. 74 e Lei 12.154/2009, art. 13), impositiva
do rompimento do vínculo empregatício como condição para o pagamento do
resgate, bem ainda a disposta no artigo 24 da mesma resolução, porém com a
redação conferida pela Resolução 19, de 25/09/2006, que estabelece: “O resgate
não será permitido caso o participante esteja em gozo de benefício”.
Conforme referido pela e. Ministra isabel Gallotti, “é incontroverso
que o ora recorrido encontrava-se em gozo do benefício de complementação de
aposentadoria e, portanto, não poderia pleitear o resgate de sua reserva de poupança
por ocasião da separação do casal. O pagamento das quantias a ele destinadas decorreu
exclusivamente da retirada do patrocinador da entidade, hipótese prevista no art.

618
Jurisprudência da QUARTA TURMA

25 da LC 109/2001 e efetivada mediante autorização do órgão regulador, após


análise da situação econômico-financeira e atuarial do plano de benefícios, conforme
os rigorosos procedimentos destinados a ‘acerto de contas’ minuciosamente descritos
na Resolução CNPC n. 11, de 13.5.2013, na qual também se encontra estabelecida
a forma de apuração do cálculo dos recursos que couber a cada participante (reserva
matemática individual final), montante diferente do conceito de resgate de reserva de
poupança, tudo nos termos dos arts. 2º, inc. IX, 8º, 16, inc. I a IV, e 17”.
Confira-se, por oportuno, o seguinte precedente da Terceira Turma no qual
fora rejeitada a pretensão de partilha das contribuições vertidas por participante
de plano de benefícios administrado por entidade fechada de previdência
privada:

Recurso especial. Direito de Família. União estável. Regime de bens. Comunhão


parcial. Previdência privada. Modalidade fechada. Contingências futuras. Partilha.
Art. 1.659, VII, do CC/2002. Benefício excluído. Meação de dívida. Possibilidade.
Súmula n. 7/STJ. Preclusão consumativa. Fundamento autônomo.
1. Cinge-se a controvérsia a identificar se o benefício de previdência privada
fechada está incluído dentro no rol das exceções do art. 1.659, VII, do CC/2002 e,
portanto, é verba excluída da partilha em virtude da dissolução de união estável,
que observa, em regra, o regime da comunhão parcial dos bens.
2. A previdência privada possibilita a constituição de reservas para contigências
futuras e incertas da vida por meio de entidades organizadas de forma autônoma
em relação ao regime geral de previdência social.
3. As entidades fechadas de previdência complementar, sem fins lucrativos,
disponibilizam os planos de benefícios de natureza previdenciária apenas aos
empregados ou grupo de empresas aos quais estão atrelados e não se confundem
com a relação laboral (art. 458, § 2º, VI, da CLT).
4. O artigo 1.659, inciso VII, do CC/2002 expressamente exclui da comunhão de
bens as pensões, meios-soldos, montepios e outras rendas semelhantes, como, por
analogia, é o caso da previdência complementar fechada.
5. O equilíbrio financeiro e atuarial é princípio nuclear da previdência
complementar fechada, motivo pelo qual permitir o resgate antecipado de renda
capitalizada, o que em tese não é possível à luz das normas previdenciárias e
estatutárias, em razão do regime de casamento, representaria um novo parâmetro
para a realização de cálculo já extremamente complexo e desequilibraria todo o
sistema, lesionando participantes e beneficiários, terceiros de boa-fé, que assinaram
previamente o contrato de um fundo sem tal previsão.
6. Na partilha, comunicam-se não apenas o patrimônio líquido, mas também
as dívidas e os encargos existentes até o momento da separação de fato.

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 619


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

7. Rever a premissa de falta de provas aptas a considerar que os empréstimos


beneficiaram a família, demanda o revolvimento do acervo fático-probatório dos
autos, o que atrai o óbice da Súmula n. 7 deste Superior Tribunal.
8. Recurso especial não provido.
(REsp 1.477.937/MG, Relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, DJ 20.6.2017)
- grifo nosso.

Efetivamente, no presente caso, os valores resgatados pelo ora recorrido são


oriundos do plano de beneficios administrado entidade fechada de previdência
complementar, motivo pelo qual se constituem em verbas que não integram
o patrimônio comum do casamento celebrado sob os regimes da comunhão
universal ou parcial de bens, nos termos do art. 1.659 do Código Civil.
Ademais, a corroborar mais uma vez a impossibilidade de partilha de tal
verba, é fato que o recorrido já estava em gozo do benefício de previdência
complementar quando da separação e o resgate decorreu de fato superveniente
decorrente da retirada do patrocínio pela sua ex-empregadora, o que impôs o
recebimento, de uma só vez, dos proventos de aposentadoria a que, conforme
cálculos atuariais, faria ele jus ao longo dos anos, ou seja, a possibilidade de
opção pelo resgate da reserva matemática individual, no caso de retirada de
patrocínio, não retira o caráter previdenciário e personalíssimo do benefício.
2. Do exposto, rogando as mais respeitosas venias ao e. relator e ao e.
Ministro Antonio Carlos, acompanho a divergência inaugurada pela e. Ministra
Isabel Gallotti - na fundamentação e no caso concreto - para negar provimento
ao recurso especial.
É como voto.

RECURSO ESPECIAL N. 1.783.269-MG (2017/0262755-5)

Relator: Ministro Antonio Carlos Ferreira


Recorrente: Facebook Servicos Online do Brasil Ltda.
Advogado: Janaina Castro de Carvalho e outro(s) - DF014394
Advogados: Isabela Braga Pompilio e outro(s) - DF014234
Eduardo Antonio Lucho Ferrão e outro(s) - DF009378
Bruno Beserra Mota - DF024132

620
Jurisprudência da QUARTA TURMA

Celso de Faria Monteiro - MG145559


Bruno Miarelli Duarte - MG093776N
Recorrido: G O D
Repr. por: G D N
Advogado: Robson Santiago de Freitas - MG117670

EMENTA
Direito Civil, Infantojuvenil e Telemático. Provedor de aplicação.
Rede social. Danos morais e à imagem. Publicação ofensiva. Conteúdo
envolvendo menor de idade. Retirada. Ordem judicial. Desnecessidade.
Proteção integral. Dever de toda a sociedade. Omissão relevante.
Responsabilidade civil configurada.
1. O Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 18) e
a Constituição Federal (art. 227) impõem, como dever de toda a
sociedade, zelar pela dignidade da criança e do adolescente, colocando-
os a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão, com a finalidade, inclusive, de evitar
qualquer tipo de tratamento vexatório ou constrangedor.
1.1. As leis protetivas do direito da infância e da adolescência
possuem natureza especialíssima, pertencendo à categoria de diploma
legal que se propaga por todas as demais normas, com a função de
proteger sujeitos específicos, ainda que também estejam sob a tutela
de outras leis especiais.
1.2. Para atender ao princípio da proteção integral consagrado
no direito infantojuvenil, é dever do provedor de aplicação na rede
mundial de computadores (Internet) proceder à retirada de conteúdo
envolvendo menor de idade – relacionado à acusação de que seu
genitor havia praticado crimes de natureza sexual – logo após ser
formalmente comunicado da publicação ofensiva, independentemente
de ordem judicial.
2. O provedor de aplicação que, após notificado, nega-se a
excluir publicação ofensiva envolvendo menor de idade, deve ser
responsabilizado civilmente, cabendo impor-lhe o pagamento de
indenização pelos danos morais causados à vítima da ofensa.
2.1. A responsabilidade civil, em tal circunstância, deve ser
analisada sob o enfoque da relevante omissão de sua conduta, pois

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 621


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

deixou de adotar providências que, indubitavelmente sob seu alcance,


minimizariam os efeitos do ato danoso praticado por terceiro, o que
era seu dever.
2.2. Nesses termos, afigura-se insuficiente a aplicação isolada do
art. 19 da Lei Federal n. 12.965/2014, o qual, interpretado à luz do
art. 5º, X, da Constituição Federal, não impede a responsabilização
do provedor de serviços por outras formas de atos ilícitos, que não
se limitam ao descumprimento da ordem judicial a que se refere o
dispositivo da lei especial.
3. Recurso especial a que se nega provimento.

ACÓRDÃO
A Quarta Turma, por maioria, negou provimento ao recurso especial, nos
termos do voto do Sr. Ministro Relator. Vencido o Sr. Ministro Marco Buzzi,
que dava provimento ao recurso especial. Com acréscimos de fundamentação
dos Ministros Raul Araújo e Maria Isabel Gallotti. Votou vencido o Sr. Ministro
Marco Buzzi.
Os Srs. Ministros Luis Felipe Salomão (Presidente), Raul Araújo e Maria
Isabel Gallotti votaram com o Sr. Ministro Relator.
Brasília (DF), 14 de dezembro de 2021 (data do julgamento).
Ministro Antonio Carlos Ferreira, Relator

DJe 18.2.2022

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Antonio Carlos Ferreira: Trata-se de recurso especial


interposto por Facebook Serviços Online do Brasil Ltda. contra acórdão do
Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, que, por unanimidade, negou
provimento ao recurso de apelação do agora recorrente, em acórdão assim
ementado (e-STJ, fl. 218):

Apelação cível. Ação indenizatória. Dano moral. Conteúdo difamatório. Rede


social. Não retirada de material ofensivo quando denunciado. Responsabilidade.
Dever de indenizar. Reconhecimento. Quantum indenizatório. Fixação. Razoabilidade
e proporcionalidade. Observância necessária. Restando demonstrado nos
autos que à apelante compete diligenciar no sentido de evitar conteúdos

622
Jurisprudência da QUARTA TURMA

difamatórios e ofensivos disponibilizados ao acesso público, e, abstendo-se


de fazê-lo, responderá por eventuais danos à honra e dignidade dos usuários
decorrentes da má utilização dos serviços disponibilizados. No arbitramento
do valor da indenização por dano moral devem ser levados em consideração a
reprovabilidade da conduta ilícita e a gravidade do dano impingido, de acordo
com os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, cuidando-se para que
ele não propicie o enriquecimento imotivado do recebedor, bem como não seja
irrisório a ponto de se afastar do caráter pedagógico inerente à medida.

Os embargos de declaração foram rejeitados (e-STJ, fls. 245/255).


Nas razões do recurso especial, fundamentado no art. 105, III, “a” e “c” da
CF, o recorrente aponta, além de dissídio jurisprudencial, violação dos seguintes
dispositivos legais:
(i) art. 19, caput e § 1º, do Marco Civil da Internet, “segundo o qual a
responsabilidade civil do provedor de aplicações de internet decorre do não
atendimento de ordem judicial específica” (e-STJ, fl. 265), e
(ii) arts. 186 e 927 do CC/2002 e 14, § 3º, do CDC, “já que inexistindo
descumprimento de ordem judicial para a remoção do conteúdo impugnado, o
não atendimento da denúncia online não caracteriza ato ilícito, o que impede a
condenação para reparação civil” (e-STJ, fl. 265).
Em suma, busca seja afastada a condenação ao pagamento de indenização
por danos morais e, por consequência, os ônus sucumbenciais, pelos seguintes
fundamentos (e-STJ, fl. 305):

(i) a legislação aplicável à hipótese dos autos é o art. 19 da Lei 12.965/2014,


expressa quanto à limitação da responsabilidade do provedor de aplicações às
hipóteses de descumprimento de ordem judicial (que jamais ocorreu no caso em
tela, uma vez que o conteúdo estava indisponível quando do cumprimento da
liminar); e,
(ii) a manutenção da condenação sem que tenha havido defeito e sem que se
tenha praticado ato ilícito viola o art. 14, § 1º, II do CDC, os arts. 186 e 927 do CC,
bem como nega vigência ao art. 14, § 3º, II do CDC, uma vez que o Recorrente não
pode ser responsabilizado por ato exclusivo de terceiro.
[...] Subsidiariamente, na remota e exclusiva hipótese de V. Exas. entenderem
que não há prequestionamento da matéria ora debatida - o que de admite
ad argumentandum -, requer-se seja reconhecida a nulidade do acórdão dos
embargos de declaração, nos termos expostos nas razões recursais, com a
remessa dos autos à Corte a quo para novo julgamento e expressa manifestação
sobre as omissões/obscuridades apontadas, de forma a suprir o requisito de
prequestionamento.

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 623


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Contrarrazões apresentadas às fls. 404/419 (e-STJ).


Parecer do Ministério Público Federal pelo desprovimento do recurso
(e-STJ, fls. 561/564).
É o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Antonio Carlos Ferreira (Relator): Trata-se de ação de


obrigação de fazer cumulada com indenização por danos morais ajuizada por
G. D. N., por si e representando seu filho, o menor G. O. D., contra Facebook
Serviços Online do Brasil Ltda, cujos fatos encontram-se assim descritos na
petição inicial (e-STJ, fls. 3/4; grifei):

No dia 30 de setembro de 2014, aproximadamente por volta das 11hs00min


o 1º Autor recebeu telefonema de um de seus amigos lhe informando que
uma fotografia sua e de seu filho, neste ato na qualidade de 2º Autor, havia sido
publicada em uma página da rede social Facebook com a seguinte mensagem
(DOC.01):

Atenção comunicado urgente cuidado com esse homem ele é pedófilo


estuprou a própria sobrinha se alguém o ver denuncie ele é perigoso seu nome
é [G. D.] não deixe seus filhos perto dele.

Com a referida informação o 1º Autor procurou a referida página e constatou


que o perfil estava em nome de [C. D.] e que esta suposta pessoa havia enviado
convite para todos aqueles que estavam cadastrados como seus amigos na
referida rede social.
Ante a este fato, o 1º Autor imediatamente denunciou o ato ilícito à empresa
Ré que respondeu com a seguinte mensagem (DOC.02):

Agradecemos o tempo dedicado em denunciar algo que você acredita


violar nossos Padrões da comunidade. Denúncias como a sua são uma
parte importante do processo para tornar o Facebook um local seguro e
acolhedor. Analisamos a foto denunciada por você por assédio e constatamos
que ela não viola nossos Padrões de comunidade.

O Juízo de primeira instância julgou procedente o pedido inicial “para


condenar o Réu a pagar aos Autores a importância de R$ 60.000,00 (sessenta
mil reais) a título de danos morais, sendo devido a cada Autor o valor de R$
30.000,00 (trinta mil reais)” (e-STJ, fl. 148), pelos seguintes fundamentos
(e-STJ, fls. 144/147; grifei):

624
Jurisprudência da QUARTA TURMA

Pois bem, pela análise dos documentos de fls. 23 e 25 verifico que não há
dúvida quanto à existência de conteúdo que denigre a imagem do Autor e o expõe
de forma abusiva, tal como seu filho.
Não obstante, o conteúdo pejorativo repercutiu entre conhecidos dos Autores,
como se depreende das fls. 25/26, os submetendo claramente a uma situação
vexatória.
Diante do exposto, tendo em vista que a publicação que veiculou a imagem dos
Autores com conteúdo difamatório e ofensivo partiu de um perfil hospedado em site
de incumbência do Réu, este possui responsabilidade civil frente aos Autores, tendo
em vista que deixou de tomar imediatas providências para coibir o comportamento
do usuário infrator tão logo informado a respeito por meio de denúncia oferecida
pelo Autor (fl. 24).
Desse modo, deve o Réu indenizar os Autores pelos prejuízos a que deu causa,
independentemente da análise da culpa, porquanto permaneceu inerte face à
denúncia feita.
[...]
Quanto à Lei 12.965/14, é certo que o Réu se enquadra no conceito de
provedor de conteúdo, pois possibilita a seus usuários inserirem informações na
Internet através das páginas nele hospedadas.
Lado outro, é fato notório que o Réu firma contrato de adesão com seus
usuários, que o possibilita remover mensagens e fotos inapropriadas, publicadas
na página pessoal desses.
Por tal motivo, ainda que o Réu não seja obrigado a controlar, de forma prévia, o
conteúdo postado por seus usuários, é certo que, por controle posterior, pode retirar
aquele de cunho ofensivo e que causa lesão os direitos de terceiros, se assim for
notificado.
Dessa forma, descumprida esta obrigação, ou seja, quedando-se inerte o
provedor diante do uso temerário da página pelo internauta, torna-se aquele
responsável pelos eventuais danos daí decorrentes, como na hipótese dos autos,
em que a notificação ao Réu foi devidamente feita e comprovada pelos Autores
(fl. 24).
Assim, entendo que não há dúvida de que o comportamento do Réu constitui
ato ilícito e gera, não só a obrigação de corrigir o ato ofensivo, como também o
dever de indenizar os danos morais suportados pelos Autores decorrentes do
referido ato, em que a imagem dos Autores foi veiculada com graves acusações
criminais, vindo os Autores a serem identificados por diversas pessoas do seu
ciclo social.
É inquestionável o sofrimento dos Autores com a situação relatada na inicial,
ao ver seu nome exposto na internet, de maneira pública, indevida, agressiva e
desproporcional, ultrapassando, a toda evidência, o direito à livre manifestação
do pensamento.

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 625


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Por conseguinte, a inércia do Réu fez com que a honra e a credibilidade dos Autores
continuassem a ser atacados, restando patente o nexo causal entre a conduta do Réu
e a lesão a direito de personalidade dos Autores.
[...]
Desse modo, por tudo o que foi exposto, deve o pedido de indenização por
danos morais ser julgado procedente.

Interposto recurso de apelação, o Tribunal estadual, por unanimidade,


manteve a sentença, nos seguintes termos (e-STJ, fls. 222/224 - grifei):

Dessa maneira, infere-se da resposta acima, a recusa da apelante, e certamente


o art. 19 do Marco Civil da Internet não pode isentá-la da responsabilidade civil
decorrente de sua inércia, como defendido nas razões do apelo.
Impende destacar que, a meu ver, a proteção da honra, da imagem e da
privacidade não pode ser condicionada a uma ordem judicial, às custas de evidente
prejuízo à parte hipossuficiente, que não possui meios eficazes de impedir a
continuação de circulação de seu nome e imagem de forma difamatória.
Destarte, o provedor da rede social não lança mão de ferramentas para
apuração da “denúncia” de material difamatório, mas apenas aguarda uma ordem
judicial para a retirada deste material, ao invés de, preventivamente, diligenciar
para proteger a imagem do cidadão.
Qual seria, então, a utilidade do link, disponibilizado pelo próprio apelante,
para denúncia de material ofensivo, se se mantém omisso, no aguardo de uma
futura decisão judicial para a retirada da rede do citado material?
[...]
Assim, uma vez ciente de publicações ofensivas, o provedor da rede social
deve retirá-las de circulação, sob pena de ser responsabilizado pelos danos por
elas causados, mesmo que não seja exigível o controle prévio dos conteúdos que
circulam no ambiente virtual.
Neste contexto, entendo como regra geral, que os provedores de serviços de
internet devem responder solidariamente pelo conteúdo que disponibilizam à
consulta na rede, caso não tomem a devida providência quando denunciados.
Assim, para excluir a responsabilidade do apelante, configurando-se a hipótese
de fato de terceiro, necessária seria a imediata retirada da rede social do perfil
ofensivo, quando denunciado, o que não foi feito.
Portanto, no que concerne ao dano moral, entendo que restou induvidoso,
devendo a ré indenizar aos autores pelos prejuízos a que deu causa,
independentemente da análise da culpa.

626
Jurisprudência da QUARTA TURMA

Nas razões do recurso especial, não se contesta o fato de que houve recusa
na exclusão da publicação da imagem, com conteúdo ofensivo, em prejuízo
do genitor e de seu filho menor de idade (e-STJ, fl. 270). O propósito da
irresignação consiste apenas em afastar a responsabilidade civil do provedor
por ausência de ordem judicial, prévia e específica, determinando a retirada
do conteúdo gerado por terceiros, conforme dispõe a Lei do Marco Civil da
Internet.
Nesse contexto, verifica-se que os autores tiveram ciência da publicação
com conteúdo ofensivo em 30/9/2014 (e-STJ, fl. 3), data em que já vigorava
a Lei n. 12.965/2014, o Marco Civil da Internet. De acordo com o art. 19 da
norma em referência, o provedor somente será responsável civilmente, em razão
de publicação gerada por terceiro, se descumprir ordem judicial determinando
as providências necessárias para cessar a exibição do conteúdo ofensivo, com
a finalidade de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, nos
seguintes termos:

Art. 19 – Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura,


o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado
civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após
ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites
técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o
conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em
contrário (grifei).

De fato, a norma do Marco Civil da Internet exige o descumprimento


de ordem judicial para a responsabilização civil do provedor do serviço de
comunicação – por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros –,
circunstância que, a rigor, poderia ensejar o decreto de improcedência dos
pedidos iniciais. Ressalto que o dispositivo legal tem sido eloquentemente
criticado pela doutrina, que entende constituir um retrocesso em termos de
proteção à pessoa:

O que antes era uma faculdade o recurso ao poder judiciário - passa a ser uma
obrigatoriedade, invertendo-se a lógica do direito fundamental ao amplo acesso
à justiça (art. 5º XXXV da CF/88) pela obrigatoriedade de acesso à justiça, para
efeitos de configuração da responsabilidade civil do provedor que se mantém
inerte.
Enquanto a responsabilidade civil caminha rumo à erosão de seus filtros, a
responsabilidade civil no segmento da internet incorpora novos requisitos para

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 627


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

que os provedores se responsabilizem pelos danos causados em seu ambiente


virtual.
(QUEIROZ, João Quinelato. Responsabilidade Civil na Rede: danos e liberdades à
luz do Marco Civil da Internet. Editora Processo. Rio de Janeiro: 2019, p. 245).

Nesse mesmo sentido, João Victor Rozatti Longhi afirma a deficiência


normativa do Marco Civil da Internet na proteção da dignidade da pessoa, ao
condicionar a necessidade de ordem judicial específica para a responsabilização
do provedor:

Utilizar como subterfúgio o caráter absoluto da liberdade de expressão


para acobertar modelos de negócios irresponsáveis parece ser a subversão
completa dos valores constitucionais, que sempre tiveram as situações subjetivas
existenciais como corolário do epicentro axiológico do ordenamento: a dignidade
da pessoa humana em todos os seus aspectos. Em outros termos, usar o direito
fundamental à liberdade de expressão como base da “inimputabilidade” de todo e
qualquer intermediário da rede esconde a tutela de um único direito fundamental
em detrimento de todos os outros: a livre iniciativa.
(LONGHI, João Victor Rozatti. Responsabilidade Civil e Redes Sociais. Retirada de
conteúdo, perfis falsos, discurso de ódio e fake news. Editora Foco. São Paulo: 2020,
p. 95).

No mais, a constitucionalidade do art. 19 da Lei n. 12.965/2014 será ainda


decidida pelo Supremo Tribunal Federal (Tema n. 987/STF), que reconheceu
repercussão geral da questão constitucional suscitada, sem determinar a
suspensão dos processos em curso. O acórdão está assim ementado:

Direito Constitucional. Proteção aos direitos da personalidade. Liberdade de


expressão e de manifestação. Violação dos arts. 5º, incisos IV, IX, XIV; e 220, caput,
§§ 1º e 2º, da Constituição Federal. Prática de ato ilícito por terceiro. Dever de
fiscalização e de exclusão de conteúdo pelo prestador de serviços. Reserva de
jurisdição. Responsabilidade civil de provedor de internet, websites e gestores de
aplicativos de redes sociais. Constitucionalidade ou não do art. 19 do Marco Civil
da Internet (Lei n. 12.965/14) e possibilidade de se condicionar a retirada de perfil
falso ou tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente somente
após ordem judicial específica. Repercussão geral reconhecida.
(RE 1.037.396 RG, Relator(a): Dias Toffoli, Tribunal Pleno, julgado em 01/03/2018,
Processo Eletrônico DJe-063 divulg 03-04-2018 public 04-04-2018.)

No caso dos autos, há um importante fator a ser considerado: a publicação


de terceiro contém imagem de menor de idade com seu genitor, correlacionada

628
Jurisprudência da QUARTA TURMA

a grave acusação dos crimes de pedofilia e de estupro, supostamente praticados


pelo pai, cujo texto transcrevo (e-STJ, fl. 3):

Atenção comunicado urgente cuidado com esse homem ele é pedófilo


estuprou a própria sobrinha se alguém o ver denuncie ele é perigoso seu nome é
G D não deixe seus filhos perto dele.

A mensagem com a fotografia foi inclusive divulgada para os amigos da


rede social do genitor, conforme relatado na petição inicial (e-STJ, fl. 3):

Com a referida informação o 1º Autor procurou a referida página e constatou


que o perfil estava em nome de [C. D.] e que esta suposta pessoa havia enviado
convite para todos àqueles que estavam cadastrados como seus amigos na
referida rede social.

Notificado pelo autor G. D. N., o provedor Facebook Serviços Online do


Brasil Ltda recusou-se excluir a publicação, por entender que não violava seus
“padrões de comunidade” (e-STJ, fl. 3):

Agradecemos o tempo dedicado em denunciar algo que você acredita violar


nossos Padrões da comunidade. Denúncias como a sua são uma parte importante
do processo para tornar o Facebook um local seguro e acolhedor. Analisamos
a foto denunciada por você por assédio e constatamos que ela não viola nossos
Padrões de comunidade (grifei).

Em tais circunstâncias, considerando a relevante omissão do agora


recorrente, entendo que houve grave violação, por terceiro, do direito do menor
de idade de preservar sua imagem e identidade, em razão da divulgação de sua
fotografia, sem autorização dos representantes legais, vinculada a conteúdo
impróprio, em total desacordo com a proteção conferida pelo Estatuto da
Criança e do Adolescente. Nesses termos, impõe-se avaliar se a recusa do
provedor em excluir a publicação ofenderia as normas protetivas da infância e
da juventude.
De pronto, ressalto que o ECA prevê, de forma expressa, a inviolabilidade
da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a
preservação de sua imagem e de sua identidade, in verbis:

Art. 17 – O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física,


psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da
imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços
e objetos pessoais.

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 629


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Inobstante todas as pessoas possuírem o direito ao respeito como forma


de resguardo da integridade física, psíquica e moral, “em relação às crianças e
adolescentes, esse direito surge potencializado, pois os danos que podem surgir em
razão de sua inobservância são irreversíveis, acompanhando aquelas pessoas por toda
a sua vida” (ROSSATO, Luciano Alves, LÉPORE, Paulo Eduardo, CUNHA,
Rogério Sanches. Estatuto da criança e do adolescente comentado: Lei 8.069/1990:
artigo por artigo. Editora Revista dos Tribunais, 4ª edição, São Paulo: 2012, p.
145).
Como garantia de que essa proteção será de fato implementada, a
lei compele toda a sociedade – no que se incluem as pessoas jurídicas e seus
responsáveis – a velar pela dignidade do menor, pondo-o a salvo de exposição
vexatória ou constrangedora:

Art. 18 – É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente,


pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante,
vexatório ou constrangedor.

Assim, há uma imposição legal, com eficácia erga omnes, determinando


não apenas que se respeite a integridade física, psíquica e moral da criança e
do adolescente, mas prevendo uma obrigação de agir, direcionada a todos da
sociedade, que passam a ser agentes de proteção dos direitos do menor, na
medida do razoável e do possível.
Esse dispositivo encontra-se em consonância com o comando inserto no
art. 227 da Constituição Federal, o qual, ao consagrar o princípio da prioridade
absoluta da criança e do adolescente, impõe a todos o dever de preservá-los de
“toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”:

Art. 227 – É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança,


ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade,
ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-
los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão.

A responsabilidade civil do recorrente, dessarte, deve ser analisada sob a


ótica da relevante omissão de sua conduta, pois deixou de adotar providências
que, indubitavelmente a seu alcance – e, sobretudo, após requerimento da parte
interessada –, minimizariam os efeitos do ato danoso praticado por terceiro, o
que era seu dever.

630
Jurisprudência da QUARTA TURMA

Nesses termos, parece-me insuficiente a aplicação isolada do art. 19 da Lei


n. 12.965/2014, que, interpretado à luz do art. 5º, X, da Constituição Federal,
não impede a responsabilização do provedor de serviços por outras formas de
atos ilícitos, não se limitando ao descumprimento da ordem judicial a que se
refere o dispositivo da lei especial.
Não pesa controvérsia sobre o fato de que o recorrente, como gestor da
rede social, possui condições de excluir, independendemente de ordem judicial
e imediatamente após ser cientificado da gravidade dos fatos, a publicação
contendo fotografia de criança, relacionada a conduta sexual criminosa. Causa
estranheza a resposta oferecida pelo recorrente, de que a foto de uma criança
acompanhada de um adulto (pai do infante), acusado de pedofilia, não viola
os padrões da comunidade do Facebook. Mesmo diante de um requerimento
motivado, feito pelo genitor, absteve-se de adotar qualquer forma de conduta
protetiva, não cuidando sequer de ocultar a imagem do menor, assim protegendo
sua identidade.
Ainda que se cogitasse da existência de antinomia entre o disposto na Lei do
Marco Civil da Internet – que estabelece, como condição para responsabilidade
civil do provedor de internet, o descumprimento de ordem judicial determinando
a exclusão de conteúdo ofensivo publicado por terceiro – e o Estatuto da
Criança e do Adolescente – que impõe o dever de todos de zelar pela integridade
moral do menor de idade, protegendo sua imagem e identidade –, é forçoso
reconhecer a preponderância das normas protetivas do direito infantojuvenil
em hipóteses como a que se examina nestes autos, seja pela supremacia do
preceito constitucional (art. 227), seja porque, enquanto o Estatuto da Criança
e do Adolescente traduz-se em disciplina especial por decorrência do sujeito
tutelado, o Marco Civil da Internet reserva sua especialidade para o campo de
atuação da modalidade de prestação de serviço.
Nessa perspectiva, para Maria Helena Diniz, a “falta de um critério
que possa resolver a antinomia de segundo grau, o critério dos critérios para
solucionar o conflito normativo seria o princípio supremo da justiça: entre duas
normas incompatíveis dever-se-á escolher a mais justa. Isso é assim porque
os referidos critérios não são axiomas, visto que gravitam na interpretação
ao lado de considerações valorativas, fazendo com que a lei seja aplicada de
acordo com a consciência jurídica popular e com os objetivos sociais. Portanto,
excepcionalmente, o valor justum deve lograr entre duas normas incompatíveis”
(DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro
Interpretada. Editora Saraiva. 15ª edição, São Paulo: 2010, p. 102).

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 631


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Com efeito, o Estatuto da Criança e do Adolescente pertence à categoria


de lei que se propaga por todas as demais normas, com a função de proteger
sujeitos específicos – a criança e o adolescente –, ainda que estejam sob a tutela
de outras leis especiais.
Portanto, o ECA possui caráter “especialíssimo”, prevalecendo como
sistema protetivo da Criança e do Adolescente, em detrimento da lei regente do
serviço de informação prestado pelo provedor de internet.
Nessa mesma linha de pensamento, observo que esta Quarta Turma
ratificou voto que proferi para julgamento do HC n. 648.097/MG, do qual se
extrai a assertiva de que “no exame de demandas envolvendo interesses de crianças
deve ser eleita solução da qual resulte maior conformação aos princípios norteadores do
Direito da Infância e da Adolescência, notadamente a proteção integral e, sobretudo,
o melhor interesse dos infantes, derivados da prioridade absoluta apregoada pelo art.
227, caput, da Constituição Federal”.
A previsão constitucional trouxe como prioridade do Estado e da
sociedade a preservação da imagem do menor, de forma a evitar que a pessoa em
desenvolvimento tenha sua integridade moral violada.
Assim, o regime diferenciado de tratamento deve-se principalmente à
peculiar condição de vulnerabilidade social da criança e do adolescente, na
maior parte das vezes, incapazes de defender seus próprios interesses, conforme
ressaltado por Canotilho e Jónatas Machado:

Em causa está a prevenção de lesões irreversíveis ao desenvolvimento da


personalidade dos menores, à sua adequada socialização e à sua capacidade de
autodeterminação, nos planos físico, intelectual, moral, emocional e relacional,
às quais os mesmos, pela sua maior sugestionabilidade e impressionabilidade,
são particularmente vulneráveis. (CANOTILHO, J.J. Gomes. MACHADO, Jónatas E.
M. Reality shows e liberdade de programação. Coimbra Editora, Coimbra: 2003,
p. 59).

Com a disseminação rápida da informação, principalmente de notícias


falsas (fake news), propiciada pela democratização da internet, é essencial que
as normas disciplinares da responsabilidade do provedor sejam analisadas sob o
enfoque da proteção integral do menor.
É inegável que as redes sociais se tornaram um campo fecundo para
difusão de manifestações ofensivas, discriminatórias e repletas de discurso de
ódio. Aspecto salientado por Eduardo Nunes de Souza, na apresentação do livro
Responsabilidade Civil na Rede:

632
Jurisprudência da QUARTA TURMA

A falta de amadurecimento da sociedade para o uso de ferramentas


tecnológicas ainda historicamente recentes tomou o ambiente virtual e, em
especial, a chamada social media uma espécie de dimensão paralela, onde
muitos usuários se comportam de modo agressivo e incivilizado, impensável
nos espaços de relações humanas presenciais. Postar, comentar ou responder de
modo ofensivo tomou-se um hábito banal para muitos frequentadores de redes
sociais, que se sentem confortáveis para tanto em um espaço sem ostensiva
regulamentação jurídica e para cuja utilização não há, ainda, regras sociais ou
culturais consolidadas. (QUEIROZ, “op. cit.”)

Diante dessa hipertrofia da liberdade de expressão, proporcionada pelo


avanço da internet, em descompasso com a velocidade de sua regulamentação
normativa, crianças e adolescentes têm sido constantes alvos do uso indevido da
tecnologia por pessoas mal intencionadas, sendo expostos a situações vexatórias
e aviltantes, com traumáticos reflexos na formação do adulto que um dia serão.
Com efeito, por força do princípio da proteção integral da criança e do
adolescente e sob a ótica de sua vulnerabilidade social, esta Corte Superior
uniformizou o entendimento de que a veiculação da imagem de menor de idade
pelos meios de comunicação, sem autorização do responsável, caracteriza ato
ilícito por abuso do direito de informar, sendo o dever de indenizar o dano in re
ipsa. A propósito:

Processual Civil. Agravo regimental no recurso especial. Sobrestamento.


Descabimento. Imagem de menor. Prática de ato infracional. Divulgação sem
autorização. Matéria jornalística. Dano moral in re ipsa. Honorários advocatícios.
Ausência de prequestionamento. Decisão mantida.
[...]
2. A veiculação sem autorização da imagem de menor de idade configura ato
ilícito, por infração direta ao disposto no Estatuto da Criança e do Adolescente.
3. Segundo a jurisprudência desta Corte Superior, “O dever de indenização por
dano à imagem de criança veiculada sem a autorização do representante legal é
in re ipsa” (REsp n. 1.628.700/MG, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira
Turma, julgado em 20/02/2018, DJe 01/03/2018).
[...]
5. Agravo regimental a que se nega provimento.
(AgRg no REsp 1.295.652/PR, de minha relatoria, Quarta Turma, julgado em
30/05/2019, DJe 10/06/2019 - grifei.)

Agravo interno no agravo em recurso especial. Danos morais. Reportagem


jornalística. Fato inverídico. Imagem de crianças. Divulgação. Ausência de

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 633


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

autorização dos representantes legais. Princípio do melhor interesse da criança.


Violação. Valor da indenização. Revisão. Impossibilidade. Súmula n. 7/STJ.
[...]
2. O dever de indenização por dano à imagem de criança veiculada sem a
autorização do representante legal é in re ipsa.
3. Na hipótese, as fotos veiculadas na reportagem retrataram situação
inverídica e violadora do direito à privacidade.
4. O ordenamento pátrio assegura o direito fundamental da dignidade
das crianças (art. 227 da Constituição Federal), cujo melhor interesse deve ser
preservado de interesses econômicos de veículos de comunicação. Há, portanto,
expressa vedação da identificação de criança quando se noticia evento, sem
autorização dos pais, em reportagem veiculada tanto na internet, como por meio
impresso.
5. Em regra, é inviável acolher a pretensão recursal de reduzir o valor arbitrado
a título de indenização por danos morais na estreita via do recurso especial, o que
se revela possível apenas quando o montante fixado pelas instâncias ordinárias é
irrisório ou abusivo. Incidência da Súmula n. 7/STJ.
6. Agravo interno não provido.
(AgInt no AREsp 1.085.507/RJ, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira
Turma, julgado em 09/03/2020, DJe 13/03/2020 - grifei.)

Agravo interno no agravo em recurso especial. Responsabilidade civil. Matéria


jornalística. Veiculação da imagem de menores para ilustrar reportagem sobre
gravidez precoce. Ausência de autorização dos responsáveis legais. Abuso no
direito de informar. Ocorrência de dano moral indenizável. Decisão mantida.
Agravo não provido.
1. Não obstante o caráter informativo do noticiário demandado e seu
perceptível interesse público, verifica-se o abuso no direito de informar, decorrente
do uso indevido de imagem de menores (mãe adolescente e seu filho), sem
autorização dos responsáveis legais, para ilustrar matéria relativa à gravidez precoce.
2. A obrigação de reparação decorre do próprio uso indevido da imagem, não
havendo que se cogitar da prova da existência concreta de prejuízo ou dano, nem
se investigar as consequências reais do uso, sendo completamente desinfluente
aferir se ofensivo ou não o conteúdo do ilícito.
[...]
5. Agravo interno a que se nega provimento.
(AgInt no AREsp 312.647/SP, Rel. Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado
em 21/05/2019, DJe 06/06/2019 - grifei.)

634
Jurisprudência da QUARTA TURMA

Agravo interno no recurso especial. Responsabilidade civil. Dano moral.


Divulgação indevida do nome completo e da foto de adolescente falecido na
prática de ato infracional. Abuso no direito de informar. Ocorrência de dano moral
indenizável. Valor razoável do quantum indenizatório. Juros moratórios. Termo
inicial. Súmula 54/STJ. Decisão mantida. Agravo não provido.
1. Modo de veiculação de reportagens, noticiando a morte do filho dos
autores, em confronto com policiais militares, que maculou a honra do menor e
de sua família, expondo-os a situação extremamente vexatória e constrangedora.
2. Não obstante o caráter informativo dos noticiários demandados e seu
perceptível interesse público, ficou claro o abuso no direito de informar. Em se
tratando de adolescente, cabia às empresas jornalísticas maior prudência e cautela
na divulgação dos fatos, do nome, da qualificação e da própria fotografia do menor,
de forma a evitar a indevida e ilícita violação de seu direito de imagem e dignidade
pessoal.
[...]
5. Agravo interno a que se nega provimento.
(AgInt no REsp 1.406.120/SP, Rel. Ministro Lázaro Guimarães (Desembargador
Convocado do TRF 5ª Região), Quarta Turma, julgado em 16/11/2017, DJe
22/11/2017 - grifei.)

Recurso especial. Direito Civil. Ação indenizatória. Responsabilidade civil.


Danos morais. Direito à imagem. Uso indevido da imagem de menor. Ausência de
autorização. Fotografia estampada em material impresso de propaganda eleitoral.
1. Ação indenizatória, por danos morais, movida por menor que teve sua
fotografia estampada, sem autorização, em material impresso de propaganda
eleitoral de candidato ao cargo de vereador municipal.
2. Recurso especial que veicula a pretensão de que seja reconhecida a
configuração de danos morais indenizáveis a partir do uso não autorizado da
imagem de menor para fins eleitorais.
3. Para a configuração do dano moral pelo uso não autorizado da imagem de
menor não é necessária a demonstração de prejuízo, pois o dano se apresenta in
re ipsa.
4. O dever de indenizar decorre do próprio uso não autorizado do
personalíssimo direito à imagem, não havendo de se cogitar da prova da
existência concreta de prejuízo ou dano, nem de se investigar as consequências
reais do uso.
5. Revela-se desinfluente, para fins de reconhecimento da procedência do
pleito indenizatório em apreço, o fato de o informativo no qual indevidamente
estampada a fotografia do menor autor não denotar a existência de finalidade
comercial ou econômica, mas meramente eleitoral de sua distribuição pelo réu.

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 635


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

6. Hipótese em que, observado o pedido recursal expresso e as especificidades


fáticas da demanda, afigura-se razoável a fixação da verba indenizatória, por
danos morais, no importe de R$ 10.000,00 (dez mil reais).
7. Recurso especial provido.
(REsp 1.217.422/MG, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma,
julgado em 23/09/2014, DJe 30/09/2014 - grifei.)

Por conseguinte, em complementação aos fundamentos do Tribunal de


origem, rejeito a tese do recorrente de inexistência de ato ilícito, por ausência
de prévia e específica ordem judicial determinando a retirada da publicação
ofensiva, e mantenho as razões do acórdão recorrido quanto ao reconhecimento
do dano ocasionado a ambas as vítimas, por se tratar de questão não impugnada
no recurso especial.
Concluo que, em razão da prevalência das normas de proteção da criança
e do adolescente sobre a legislação protetiva da informação telemática, houve
ato ilícito por parte do provedor de aplicações de hospedagem, ao não excluir
a imagem do menor de idade, publicada sem autorização dos responsáveis,
relacionada a conteúdo inapropriado, mesmo após requerimento motivado do
genitor, devendo, consequentemente, ser mantida a sentença que reconheceu
a responsabilidade civil e condenou o recorrente ao pagamento de indenização
por danos morais.
Diante do todo o exposto, nego provimento ao recurso especial.
Na forma do art. 85, § 11, do CPC/2015, majoro os honorários advocatícios
em 20% (vinte por cento) do valor arbitrado, observando-se os limites dos §§ 2º
e 3º do referido dispositivo.
É como voto.

VOTO VENCIDO

O Sr. Ministro Marco Buzzi: Com todas as vênias do e. Ministro Relator,


e cumprimentando-o pelo brilhante voto apresentado, entendo deva ser provido
o recurso especial, para afastar a condenação ao pagamento de indenização por
danos morais.
A jurisprudência do STJ considerava, antes da vigência do Marco Civil da
Internet, que o provedor deve remover conteúdo ofensivo quando notificado
(por qualquer forma) do fato, sob pena de ser responsabilizado civilmente.
Considerava-se, portanto, desnecessária a notificação judicial.
636
Jurisprudência da QUARTA TURMA

Todavia, o Marco Civil da Internet (Lei n. 12.965/14) trouxe previsão


específica, exigindo a notificação judicial:

Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a


censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado
civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após
ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites
técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o
conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em
contrário.

Com isso, a jurisprudência da Terceira Turma desta Casa tem caminhado


no sentido de que, para os fatos ocorridos antes da Lei n. 12.965/14, a
responsabilidade do provedor depende apenas de notificação (por qualquer
meio). Após o advento do referido diploma, todavia, exige-se a notificação
judicial.
Nesse sentido:

Recurso especial. Ação de indenização por danos morais cumulada com


obrigação de fazer. Internet. Conteúdo ofensivo. Remoção. Controle editorial.
Inexistência. Monitoramento da rede. Censura prévia. Impossibilidade.
Responsabilidade civil subjetiva. Solidariedade. Provedor. Caracterização. Culpa.
Notificação. Omissão. Indenização. Valor. Revisão. Impossibilidade. Reexame do
conjunto fático-probatório. Súmula n. 7/STJ. Vedação. Multa diária. Revisão. Valor
inicial. Excesso verificado.
[...]
4. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça define que (a) para fatos
anteriores à publicação do Marco Civil da Internet, caso dos autos, basta a
ciência inequívoca do conteúdo ofensivo pelo provedor, sem sua retirada em prazo
razoável, para que este se torne responsável e, (b) após a entrada em vigor da Lei n.
12.965/2014, o termo inicial da responsabilidade solidária do provedor é o momento
da notificação judicial que ordena a retirada do conteúdo da internet.
5. A responsabilidade dos provedores de conteúdo de internet em geral
depende da existência ou não do controle editorial do material disponibilizado
na rede. Não havendo esse controle, a responsabilização somente é devida se,
após notificação para a retirada do material, mantiver-se o provedor inerte.
Precedentes.
6. O provedor, ao ser comunicado que determinado texto ou imagem tem
conteúdo difamatório, deve retirá-lo imediatamente, sob pena de responder
solidariamente com o autor direto do dano. Precedentes.
[...]

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 637


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

11. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, parcialmente


provido.
(REsp 1.593.249/RJ, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma,
julgado em 23/11/2021, DJe 09/12/2021)

Agravo interno no recurso especial. Direito Civil. Marco Civil da Internet.


Nome, imagem e telefone. Veiculação. Site. Conteúdo erótico. Cenas de nudez.
Notificação extrajudicial. Provedor de aplicação. Ciência inequívoca. Recusa. Fato
anterior à Lei n. 12.965/2014. Danos morais. Indenização. Cabimento. Redução.
Conjunto fático-probatório dos autos. Reexame. Súmula n. 7/STJ.
[...]
2. No caso em apreço, aplica-se a jurisprudência do Superior Tribunal de
Justiça, que se orienta no sentido de que a responsabilidade do provedor de
aplicação quanto a atos lesivos anteriores à publicação da Lei n. 12.965/2014
independe da notificação judicial. Precedentes.
[...]
5. Agravo interno não provido.
(AgInt no REsp 1.652.406/MG, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira
Turma, julgado em 30/09/2019, DJe 04/10/2019)

Civil e Processual Civil. Recursos especiais. Ação de obrigação de fazer. Retirada


de conteúdo infringente. Provedor de pesquisa. Filtragem prévia das buscas.
Exclusão de links. Impossibilidade. Dano moral caracterizado. Valor de reparação.
Não alterado.
[...]
3. A regra a ser utilizada para a resolução de controvérsias deve levar em
consideração o momento de ocorrência do ato lesivo ou, em outras palavras,
quando foram publicados os conteúdos infringentes: (i) para fatos ocorridos
antes da entrada em vigor do Marco Civil da Internet, deve ser obedecida a
jurisprudência desta corte; (ii) após a entrada em vigor da Lei 12.965/2014, o
termo inicial da responsabilidade da responsabilidade solidária do provedor de
aplicação, por força do art. 19 do Marco Civil da Internet, é o momento da notificação
judicial que ordena a retirada de determinado conteúdo da internet.
[...]
8. Recursos especiais não providos, com ressalva.
(REsp 1.694.405/RJ, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em
19/06/2018, DJe 29/06/2018)

Portanto, no que se refere à responsabilidade do provedor, para fatos


ocorridos na vigência do Marco Civil da Internet, somente resta configurada em

638
Jurisprudência da QUARTA TURMA

caso de inércia após notificação judicial específica - o que sequer se cogita nos
autos.
Esta Corte, ademais, deve se abster de fazer interpretação da Lei que possa
gerar insegurança jurídica. No caso, o Marco Civil da Internet foi aprovado
após amplo debate perante o Poder Legislativo, tendo sido expressa a opção
do legislador no sentido de outorgar ao Judiciário o poder de controle dos
conteúdos que devam ser removidos.
Necessário destacar, ainda, que a notificação encaminhada ao Facebook
relatava que a publicação configuraria assédio, e não a utilização indevida de
imagem do menor.
Eventual indenização, portanto, deverá ser buscada em face do responsável
pela publicação - ressaltando-se que a sentença proferida em primeira
instância, inclusive, determinou o fornecimento dos dados necessários para sua
identificação.
Ante o exposto, renovando as vênias ao e. Ministro Relator, voto no
sentido de dar provimento ao recurso especial, para afastar a condenação por
danos morais.
É como voto.

VOTO-VOGAL

O Sr. Ministro Raul Araújo: Cumprimento o ilustre advogado, Dr. José


Rollemberg, por sua sustentação, assim como o nobre Relator, Ministro Antonio
Carlos Ferreira, e o eminente Ministro Marco Buzzi, por seus votos.
As posições apresentadas trazerem visões antagônicas, espelhando muito
bem duas concepções juridicamente viáveis e defensáveis em torno da questão,
envolvendo a aplicação da Lei do Marco Civil da Internet.
Meu entendimento talvez concilie as compreensões em choque.
Penso que o eminente Relator, Ministro Antonio Carlos Ferreira, talvez
pudesse enfatizar mais o aspecto acerca da possibilidade de se examinar
caso a caso a hipótese de responsabilização do provedor de conteúdo, ou de
conexão à internet, para além daquelas hipóteses dos arts. 19 e 21 da Lei.
Porque o problema, a dificuldade estará, parece-me, na nítida configuração, de
determinado conteúdo que se quer excluir, como ofensivo.

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 639


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Nem sempre haverá clareza, isto é, nem sempre será possível constatar
claramente tratar-se de matéria ofensiva. Em muitos casos, haverá dúvidas se a
matéria é realmente ofensiva ou não. Fora das previsões dos arts. 19 e 21 da
Lei, poderá ocorrer a responsabilização do provedor de conteúdo ou de conexão
à internet, a depender do caso concreto.
Este caso sob exame espelha bem essa circunstância.
Como traz o voto do eminente Relator, invocando outras disposições
legais também aplicáveis numa hipótese como esta, chega-se à conclusão da
responsabilização do provedor da internet para além daquela previsão específica
do art. 19. Por quê? Porque, tratava-se da exposição da imagem de pessoa menor
de idade. Então, após advertido pela parte, deveria o provedor ter adotado uma
postura mais cautelosa, mais cuidadosa, mais sensível para com a hipótese que
lhe era denunciada. Deveria ter adotado alguma providência, pois claramente
havia indícios de conteúdo ofensivo na hipótese que temos.
De outro lado, lembro que, em tese, noutra hipótese, com outra
conformação, poderá haver utilidade pública em determinada denúncia veiculada
na internet, acerca de indivíduo dado a molestar crianças. Será possível, noutro
caso, chegarmos a resultado diferente, aplicando, aí sim, a solução mais positiva,
mais referente à lei, como sugere o voto divergente do eminente Ministro Marco
Buzzi.
Faço essas ponderações, embora acompanhando o eminente Relator
na hipótese, para destacar que, fora das previsões dos arts. 19 e 21 da Lei,
conforme o caso concreto, poderá haver a responsabilização, a excepcional
responsabilização, do provedor de conteúdo ou de conexão à internet.
É o que o faz, o voto do eminente Relator neste caso. Pondera acerca
de outros valores constitucionais, sociais, envolvidos na questão, em razão da
presença de um menor, e chega à conclusão que responsabiliza o provedor de
internet.
Estou acompanhando o eminente Relator, com a devida vênia do Ministro
Marco Buzzi, com quem também concordo, anuo parcialmente. Também
compreendo que, em regra, será mesmo de se observar as hipóteses previstas no
marco regulador da internet. Mas, quando outros fatores relevantes puderem ser
invocados, como neste caso concreto, aí poderemos chegar à responsabilização
do provedor.
São essas as minhas considerações, acompanhando o eminente Relator,
com acréscimos de fundamentação.

640
Jurisprudência da QUARTA TURMA

VOTO

A Sra. Ministra Maria Isabel Gallotti: Sr. Presidente, ouvi com atenção
o debate, o voto cuidadoso do eminente Relator e a divergência trazida pelo
Ministro Marco Buzzi.
Peço vênia à divergência para aderir ao voto do Relator, também
acompanhando as ponderações feitas pelo Ministro Raul Araújo quanto à
necessidade de se examinar com cuidado as circunstâncias do caso concreto.
Penso que o art. 19 do Marco Civil da Internet deve ser interpretado de
forma teleológica e sistemática, tendo em vista a literalidade do seu comando,
mas também também o ordenamento jurídico em que se insere como um
todo. O dispositivo assegura a liberdade de expressão e também visa a impedir
a censura. Ou seja, a idéia preconizada pelo dispositivo é não cercear a livre
manifestação e debate de idéias, que encontram assento constitucional na
liberdade de expressão e na vedação à censura. Por outro lado, o ordenamento
jurídico é composto por normas de Direito Penal e por normas de proteção à
criança, essas examinadas profundamente no voto do eminente Relator.
Penso que a existência de um dispositivo legal no Marco Civil da Internet,
que, no intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura,
estabelece que o provedor de aplicações somente poderá ser responsabilizado
civilmente se, após ordem judicial específica, não tomar providências para,
no âmbito dos limites técnicos do seu serviço e, no prazo assinalado, tornar
indisponível o conteúdo apontado como infringente, não retira a força normativa
de dispositivos do Código Penal que impedem crimes contra a honra e nem
dispositivos da legislação de proteção ao menor.
O caso ora em exame é muito grave, porque mostra a imagem de um
menor em situação muito constrangedora. É intuitivo o sofrimento desse
menor na escola, por exemplo, diante da imagem de seu pai e a dele própria,
sendo o menino tido como filho estuprado pelo próprio pai. Penso que coibir
a divulgação de imagens com textos desse tipo significa evitar a propagação
do crime e, portanto, diante da flagrante ocorrência de um crime, não devem
a pessoa, que pode concorrer com o término da prática desse crime ou, pelo
menos, a sua não difusão, ficar aguardando a ordem judicial, até porque há um
tempo necessário para que se consiga essa ordem judicial. E, no ambiente da
internet, a propagação de mensagens delituosas é muito rápida.

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 641


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Penso, portanto, que esse dispositivo convive com o sistema jurídico como
um todo, o qual inclui normas proteção ao menor, regras de Direito Penal,
e, diante de manifesta ilicitude do conteúdo, deve o provedor de internet,
provocado pela vítima, tomar uma atitude imediata para frear o cometimento
do crime.
Essa compreensão não tem como pressuposto a declaração de
inconstitucionalidade do art. 19 do Marco Civil da Internet, mas a interpretação
restritiva do mencionado dispositivo, para estabelecer que ele convive com
outras normas do mesmo sistema jurídico, que coíbem a prática de crimes
contra a honra e estabelecem regras de proteção dos menores.
Porquanto, tratando-se apenas de conferir à lei interpretação de cunho
restritivo, tendo em vista o conteúdo racional da norma - que é impedir o
cerceamento da liberdade de expressão e impedir a censura - e a interpretação
sistemática, pela qual a examino em cotejo com outras regras do ordenamento
jurídico de igual relevância - que também têm estatura constitucional e
não foram afetadas pelo Marco Civil da Internet - é possível darmos essa
interpretação restritiva ao dispositivo legal tal como preconizado pelo eminente
Relator.
Mas, assim como o Ministro Raul Araújo, verifico que, em algumas
situações, será útil a informação de que há um pedófilo à solta numa determinada
comunidade e isso deve merecer divulgação.
Mas não é o caso dos autos em que não houve a menor tentativa de
demonstrar que estivéssemos tratando de um alerta à comunidade contra um
criminoso.
O réu, simplesmente, mencionou que tal tipo de matéria, expondo a foto
de um menor como vítima de estupro pelo próprio pai, não fugia aos parâmetros
de controle, de conformidade do provedor de internet. Não buscou o provedor
sustentar nenhuma defesa de mérito no sentido de que fosse lícito aquilo que
parece, de prima facie, ilícito, que é mostrar o próprio filho como vítima de
estupro do próprio pai (ou tio, como constou equivocadamente do texto).
Penso que uma ilicitude de tal monta, sendo propagada pela internet, até
que se consiga uma ordem judicial, merece repulsa imediata pelo provedor,
com base em todas as outras normas do ordenamento jurídico, não apenas a lei
de proteção ao menor, mas também o Código Penal, e andou certo o Juízo de
primeira e segunda instância em conceder a indenização.

642
Jurisprudência da QUARTA TURMA

Com essas considerações, sem deixar de verificar a delicadeza da hipótese


em julgamento, acompanho o voto do Relator, com a devida vênia da divergência.

RECURSO ESPECIAL N. 1.789.505-SP (2018/0344105-2)

Relator: Ministro Marco Buzzi


Recorrente: Gilberto Sampaio Moura
Recorrente: Norma Justi Moura
Advogado: Daniel Fernandes Marques - SP194380
Recorrido: Leandro Figueredo D Oliveira
Advogado: Leandro Saad - SP139386

EMENTA

Recurso especial. Locação. Autos de agravo de instrumento na


origem. Pretensão de reconhecimento de impenhorabilidade de bem
de família oferecido em caução. Instâncias ordinárias que rejeitaram o
pedido. Insurgência recursal da parte agravante.
Hipótese: possibilidade de penhora de bem de família oferecido
como caução, pelos recorrentes, em contrato de locação comercial
firmado entre o recorrido e terceiro.
1. O escopo da Lei n. 8.009/90 não é proteger o devedor contra
suas dívidas, mas sim a entidade familiar no seu conceito mais amplo,
razão pela qual as hipóteses permissivas da penhora do bem de família,
em virtude do seu caráter excepcional, devem receber interpretação
restritiva. Precedentes.
2. O benefício conferido pela mencionada lei é norma cogente,
que contém princípio de ordem pública, motivo pelo qual o
oferecimento do bem em garantia, como regra, não implica renúncia à
proteção legal, não sendo circunstância suficiente para afastar o direito
fundamental à moradia, corolário do princípio da dignidade da pessoa
humana. Precedentes.

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 643


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

3. A caução levada a registro, embora constitua garantia real, não


encontra previsão em qualquer das exceções contidas no artigo 3º da
Lei n. 8.009/1990, devendo, em regra, prevalecer a impenhorabilidade
do imóvel, quando se tratar de bem de família.
4. Na hipótese, contudo, verifica-se inviável reconhecer, de plano,
a alegada impenhorabilidade, pois os requisitos para que o imóvel
seja considerado bem de família não foram objeto de averiguação na
instância de origem, sendo inviável proceder-se à aplicação do direito
à espécie no âmbito desta Corte Superior por demandar o exame de
fatos e provas, cuja análise compete ao Tribunal de origem.
5. Recurso especial parcialmente provido a fim de determinar o
retorno dos autos à Corte a quo para que, à luz da proteção conferida
ao bem de família pela Lei n. 8.009/1990 e afastada a exceção invocada
no acórdão recorrido, proceda ao reexame do agravo de instrumento,
analisando-se se o imóvel penhorado no caso concreto preenche os
requisitos para se caracterizar como tal.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,


acordam os Ministros da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, por
unanimidade, dar parcial provimento ao recurso especial, nos termos do voto
do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Luis Felipe Salomão (Presidente),
Raul Araújo, Maria Isabel Gallotti e Antonio Carlos Ferreira votaram com o Sr.
Ministro Relator.
Brasília (DF), 22 de março de 2022 (data do julgamento).
Ministro Marco Buzzi, Relator

DJe 7.4.2022

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Marco Buzzi: Cuida-se de recurso especial, interposto por


Gilberto Sampaio Moura e Norma Justi Moura, com fundamento nas alíneas a e c
do inciso III do art. 105 da Constituição Federal, desafiando acórdão proferido
pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

644
Jurisprudência da QUARTA TURMA

Na origem, os ora recorrentes manejaram agravo de instrumento, nos


autos da ação de execução de título extrajudicial movida por Leandro Figueiredo
D’Oliveira, em face de decisão proferida pelo juízo de primeira instância, o qual
rejeitou a alegação de impenhorabilidade de bem de família oferecido como
caução pelos então agravantes em contrato de locação comercial firmado pelo
agravado e terceiro.
A Corte local entendeu pelo perecimento do direito de invocar o benefício
da impenhorabilidade, porquanto (i) a semelhança da caução com o instituto
da hipoteca faz incidir a exceção prevista no artigo 3º, V, da Lei n. 8.009/90
e (ii) houve renúncia expressa à eventual proteção de bem de família pelos
caucionantes.
O acórdão restou assim ementado (e-STJ, fl. 260):

Agravo de instrumento. Ação de execução. Locação. Caução. Garantia real.


Penhora de imóvel residencial. Exceção à regra da impenhorabilidade do bem de
família. Exegese do artigo 3º, V, da Lei 8.009/90. Agravo de instrumento conhecido
em parte e, na parte conhecida, não provido.

Não foram opostos embargos de declaração.


Daí a interposição do recurso especial às fls. 264-292 (e-STJ), em cujas
razões a parte recorrente sustenta a existência de violação ao art. 3º da Lei n.
8.009/90. Defende, em síntese, que a impenhorabilidade do bem de família
só pode ser afastada nas hipóteses taxativas previstas no mencionado artigo, as
quais, portanto, não devem ser estendidas para abarcar casos em que a garantia é
prestada na forma de caução.
Aponta, ainda, divergência jurisprudencial acerca do tema e requer a
reforma do aresto estadual para desconstituir o ato de constrição do imóvel.
Contrarrazões apresentadas às fls. 317-336 (e-STJ).
Admitido o processamento do recurso na origem, consoante decisão de fls.
337-338 (e-STJ), ascenderam os autos a esta Corte.
Em decisão monocrática (fls. 344/347, e-STJ), deu-se provimento ao
recurso especial para desconstituir a penhora do imóvel tido como bem de
família e objeto de caução.
Irresignada, a parte adversa manejou agravo interno (fls. 349/370, e-STJ),
o qual foi parcialmente provido pela Quarta Turma, na sessão de julgamento de
28/09/2021, para anular a decisão monocrática agravada a fim de que o recurso
especial fosse futuramente incluído em pauta de julgamento.

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 645


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

É o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Marco Buzzi (Relator): O reclamo merece prosperar em


parte, nos termos a seguir expostos.
1. Cinge-se a controvérsia recursal à possibilidade de penhora de bem
de família, o qual, conforme se depreende da leitura do acórdão recorrido, foi
oferecido como caução pelos recorrentes em contrato de locação comercial
firmado entre recorrido e terceiro.
Tal como narrado, o Tribunal de origem entendeu pelo perecimento do
direito de invocar o benefício da impenhorabilidade, porquanto (i) a semelhança
da caução com o instituto da hipoteca faz incidir a exceção prevista no artigo 3º,
V, da Lei n. 8.009/90 e (ii) houve renúncia expressa à eventual proteção de bem
de família pelos caucionantes.
Com efeito, a impenhorabilidade do bem de família é instituto que protege
direitos fundamentais, tais como a dignidade da pessoa humana e a moradia,
que devem funcionar como vetores axiológicos do nosso ordenamento jurídico.
O bem de família, por sua vez, “é um patrimônio especial, que se institui por ato
jurídico de natureza especial, pelo qual o proprietário de determinado imóvel, nos
termos da lei, cria um benefício de natureza econômica, com escopo de garantir a
sobrevivência da família, em seu mínimo existencial, como célula indispensável à
realização da justiça social” (AZEVEDO, Villaça Azevedo; Bem de Família.
Comentários à Lei 8.009/90; Revista dos Tribunais, 2002; p. 107).
Por tal razão, as normas protetivas desses direitos devem ser interpretadas
restritivamente, sendo vedado ao julgador criar novas hipóteses de limitação
da impenhorabilidade do bem de família, isto é, dos direitos fundamentais que
regem a matéria. O escopo da Lei n. 8.009/90 não é proteger o devedor contra
suas dívidas, mas sim a entidade familiar no seu conceito mais amplo, razão pela
qual as hipóteses permissivas da penhora do bem de família, em virtude do seu
caráter excepcional, devem receber interpretação restritiva.
Nesse sentido:

Recurso especial. Cumprimento de sentença que decretou o divórcio do casal


com partilha de bens. Decisão interlocutória que reputou impenhorável o imóvel
pertence à ex-cônjuge virago, por se tratar de bem de família. Tribunal a quo
que autorizou a penhora em razão da ex-consorte ter se obrigado a indenizar

646
Jurisprudência da QUARTA TURMA

o exequente pela parte que lhe cabia na meação, tendo inserido a hipótese na
exceção estabelecida no inciso II do artigo 3º da Lei n. 8.009/90. Irresignação da
executada.
[...]
2.2 Há violação pelo acórdão local aos ditames da Lei n. 8.009/90, dada a
interpretação elastecida ao texto legal, por considerar que o crédito do exequente,
embora não seja decorrente de financiamento do imóvel ou sua construção,
mas oriundo de dívida civil estabelecida quando da meação de bens em ação
de divórcio, se enquadraria na exceção prevista no inciso II, do art. 3º da Lei n.
8.009/90.
2.3 O escopo da Lei n. 8.009/90 não é proteger o devedor contra suas dívidas,
mas visa à proteção da entidade familiar no seu conceito mais amplo, motivo pelo
qual as hipóteses de exceção à impenhorabilidade do bem de família, em virtude
do seu caráter excepcional, devem ser interpretados restritivamente. Precedentes.
[...]
3. Recurso especial conhecido em parte e, na extensão, provido. (REsp
1.862.925/SC, Rel. Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 26/05/2020,
DJe 23/06/2020)

Agravo interno no recurso especial. Ação de rescisão de contrato cumulada


com pedido de perdas e danos. Cumprimento de sentença. Levantamento de
penhora sobre imóvel considerado como bem de família. Indenização civil
oriunda de conduta tipificada como ilícito penal. Aplicação analógica da exceção
prevista no art. 3º, VI, da Lei 8.009/90. Impossibilidade. Impenhorabilidade
mantida. Recurso desprovido.
1. O escopo da Lei 8.009/90 não é proteger o devedor contra suas dívidas, mas
visa à proteção da entidade familiar no seu conceito mais amplo, motivo pelo
qual as hipóteses de exceção à impenhorabilidade do bem de família, em virtude
do seu caráter excepcional, devem receber interpretação restritiva.
[...]
3. O art. 3º, VI, da Lei 8.009/90 representa norma de exceção à ampla proteção
legal conferida ao bem de família. Dessa forma, a regra interpretativa aplicável
não deve ser estendida a outras hipóteses não previstas pelo legislador.
[...]
5. Agravo interno não provido.
(AgInt no REsp 1.357.413/SP, Rel. Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado
em 18/10/2018, DJe 25/10/2018)

Agravo interno no recurso especial. Processual Civil e Civil. Bem de família.


Violação ao art. 3º, V, da Lei n. 8.009/90 caracterizada. Interpretação restritiva.
Agravo desprovido.

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 647


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

1. O art. 3º, V, da Lei n. 8.009/90 representa norma de exceção à ampla proteção


legal conferida ao bem de família; dessa forma, a regra interpretativa aplicável não
deve ser estendida a outras hipóteses não previstas pelo legislador, uma vez que,
do contrário, estar-se-ia ampliando as restrições à proteção legal. Precedentes.
2. Agravo interno desprovido.
(AgInt no REsp 1.561.079/DF, Rel. Ministro Lázaro Guimarães (Desembargador
Convocado do TRF 5ª Região), Quarta Turma, julgado em 26/06/2018, DJe
29/06/2018)

É sabido que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça orienta


que a exceção prevista no art. 3º, VII, da Lei n. 8.009/90, concernente à fiança
concedida em contrato de locação, não deve ser estendida, isto é, interpretada de
forma ampliativa, para abarcar casos de bem de família oferecidos em caução.
Isso porque a fiança e a caução são institutos explicitamente diferenciadas
pelo legislador enquanto modalidades de garantia do contrato de locação, nos
termos do art. 37 da Lei 8.245/1991. Trata-se de mecanismos com regras e
dinâmica de funcionamento próprias, cuja equiparação em suas consequências
implicaria inconsistência sistêmica.
Sobre o tema, o doutrinador Luiz Antonio Scavone Júnior esclarece que “a
caução é a cautela, precaução e, juridicamente, a submissão de um bem ou uma pessoa
a uma obrigação ou dívida pré-constituída. Portanto, a caução é gênero, do qual são
espécies a hipoteca, o penhor, a anticrese, o aval, a fiança etc” (SCAVONE JR., Luiz
Antonio; Direito Imobiliário - Teoria e Prática; 7. ed. rev. atual. e ampl.; Rio de
Janeiro: Forense, 2014; p. 1.062).
A partir dessa conceituação, ensina Abílio Manuel Mota Veloso de Araújo:

No entanto, o art. 38 da LI determina que a caução pode ser de bens móveis,


imóveis, dinheiro, títulos ou ações. Ou seja, apesar de a caução poder apresentar
natureza de garantia real ou fidejussória, é certo que a Lei do Inquilinato restringe
esta modalidade de garantia apenas àquela primeira natureza, posto que a fiança,
outra modalidade prevista na lei, já assume a qualidade da garantia pessoal.
É importante lembrar que o imóvel ou móvel caucionados não estão dentre
as exceções da Lei 8.009/1990, de modo que, sendo o imóvel único da entidade
familiar ou do casal, ou móvel que guarneça o imóvel nos termos do art. 1º e §
1º desta lei, serão impenhoráveis e não poderão servir para satisfação do crédito
do locador em eventual demanda judicial. Não se trata, in casu, de obrigação
decorrente da fiança, excepcionada pelo inc. VII, do art. 3º, da mesma Lei
8.009/1990.

648
Jurisprudência da QUARTA TURMA

[...]
Neste contexto, a caução de imóvel não se confunde com a fiança, que possui
natureza pessoal, nem mesmo com a hipoteca, que apesar de também ser uma
garantia real, somente se formaliza por meio de escritura pública de hipoteca,
com o necessário registro na matrícula do imóvel, ao passo que a caução de
imóvel deverá ser averbada à margem da respectiva matrícula do bem dado em
garantia, nos termos do art. 38, § 1º, da LI.
[...]
Desse modo, configurada a distinção da caução de imóvel entre a fiança e a
hipoteca, não se poderia enquadrar a caução de imóvel em qualquer das hipóteses
de exceção da impenhorabilidade do bem de família descritas no art. 3º da Lei
8.009/1990, por duas simples razões: a um - apesar de ser classificada como
caução real (que a assemelha à hipoteca), sua formalização se dá pela averbação
à margem da respectiva matrícula do imóvel dado em garantia e não por meio
de escritura pública de hipoteca, além de no momento de sua constituição ainda
não existir crédito específico e determinado, afastando, portanto, a exceção
prevista no inc. V, do art. 3º, da LBF; a dois por força normativa (art. 38 da LI), a
caução, enquanto garantia locatícia, não poderá ser fidejussória, diferenciando-a
da fiança e, portanto, isolando-a da exceção contida no inc. VII, do art. 3º, da LBF.
(ARAÚJO, Abílio Manuel Mota Veloso de; Locação de Imóvel Comercial e o Bem
de Família do Fiador; Curitiba: Juruá, 2021; p. 54-55)

Assim sendo, consoante asseverado pela eminente Ministra Nancy


Andrigui, relatora do REsp 1.873.594/SP, julgado em 02/03/2021 pela Terceira
Turma, “o legislador optou, expressamente, pela espécie (fiança), e não pelo gênero
(caução), não deixando, por conseguinte, margem para dúvidas [...]. Caso o legislador
desejasse afastar da regra da impenhorabilidade o imóvel residencial oferecido em
caução o teria feito, assim como o fez no caso do imóvel dado em garantia hipotecária
(art. 3º, V, da Lei 8.009/90)”.
Dessa forma, violaria a isonomia e a própria previsibilidade das relações
jurídicas estender à caução as gravosas consequências aplicadas à fiança pela
Lei n. 8.009/1990. É que o ofertante do bem em caução não aderiu aos efeitos
legais atribuídos ao contrato de fiança. Noutros termos, a própria autonomia
da vontade, elemento fundamental das relações contratuais, restaria solapada se
equiparados os regimes jurídicos em tela.
Aliás, a leitura estrita das hipóteses legais de impenhorabilidade do bem
de família foi o principal fundamento do Supremo Tribunal Federal ao analisar
a possibilidade de penhora de bem de família de fiador de contrato de locação

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 649


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

comercial, em contraste com a locação residencial, nos autos do RE 1.307.334,


julgado em 08/03/2022.
Confira-se, a propósito, trecho do voto condutor do Ministro Alexandre de
Moraes:

Efetivamente, o inciso VII do artigo 3º da Lei 8.009/1990, introduzido pela Lei


8.245/1991, não faz nenhuma distinção quanto à locação residencial e locação
comercial, para fins de excepcionar a impenhorabilidade do bem de família do
fiador (Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução
civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido: VII -
por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação).
O legislador, quando quis distinguir os tipos de locação, o fez expressamente,
como se observa da Seção III, da própria Lei 8.245/1991 – que, em seus artigos 51
a 57 disciplinou a “Locação não residencial”. Logo, caso a intenção do legislador
fosse a de restringir a possibilidade de penhora do imóvel do fiador ao contrato
de locação residencial, teria feito expressamente essa ressalva.
[...]
Destarte, o fiador, desde a celebração do contrato (seja de locação comercial
ou residencial), já tem ciência de que todos os seus bens responderão pelo
inadimplemento do locatário - inclusive seu bem de família, por expressa
disposição do multicitado artigo 3º, VII, da Lei 8.009/1990.

Ressalte-se ainda que, mesmo nos casos de execução de hipoteca


sobre o imóvel oferecido como garantia real, hipótese de afastamento da
impenhorabilidade do bem de família expressamente prevista em lei (art. 3º,
inciso V, da Lei n. 8.009/90), a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça
só tem admitido a penhora do bem de família hipotecado quando a garantia
foi prestada em benefício da própria entidade familiar, e não em benefício de
terceiro, sendo vedada a presunção de que a garantia fora dada em benefício da
família, de sorte a afastar a impenhorabilidade do bem.
Nesse sentido, entre outros: AgInt no AREsp 1.806.412/PR, Rel.
Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 14/02/2022;
AgInt no AgInt no AREsp 1.155.639/SP, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze,
Terceira Turma, julgado em 23/08/2021; AgInt no REsp 1.798.345/PR, Rel.
Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 26/11/2019; AgInt
no REsp 1.732.108/MT, Rel. Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em
27/05/2019.
No caso dos autos, segundo noticiado no acórdão da Corte de origem, os
recorrentes firmaram contrato com o recorrido na qualidade de caucionantes,

650
Jurisprudência da QUARTA TURMA

sendo o objeto da avença locação comercial, cuja locatária e, portanto,


beneficiária era a Sra. Shirlei de Brito.
Ademais, no que concerne ao segundo fundamento do acórdão
recorrido, esta Corte superior firmou o entendimento no sentido de que a
impenhorabilidade do bem de família, por ser decorrente de direitos
fundamentais como a dignidade da pessoa humana e a moradia, não só
impõe interpretação restritiva de suas exceções como também é, como regra,
irrenunciável.
Essa compreensão é reforçada pelo fato do benefício conferido pela Lei n.
8.009/90 ser norma cogente, que contém princípio de ordem pública, de modo
que sua incidência somente pode ser afastada quando caracterizada hipótese
descrita no art. 3º da Lei 8.009/90, não se sustentando o argumento de que a
parte dele “abriu mão”.
Acerca da norma de ordem pública, veja-se a lição doutrinária:

Uma de suas principais características é servir como elemento limitador da


autonomia privada. Elas constituem um mínimo normativo que não pode ser
objeto de disposição pelos sujeitos. São, portanto, inderrogáveis e irrenunciáveis.
Outra importante característica, segundo a doutrina majoritária, é sua
imperatividade. As normas de ordem pública são cogentes, ou seja, impõem-
se por si mesmas, não dando espaço ao arbítrio individual, sendo aplicáveis ex
lege, mesmo quando as pessoas por elas beneficiadas tenham renunciado à
tutela normativamente garantida (Lopes, 1960). Isso acontece porque, mesmo
nas relações privadas, o desiderato de tais normas não é a proteção específica
de determinada parte contratual, mas sim a proteção do bem-comum e dos
interesses sociopolíticos de toda a sociedade na qual estão inseridas.
(SANTOS, Igor Ladeira dos; A (im)penhorabilidade do bem de família oferecido
como garantia pelo devedor; Revista Síntese: Direito de Família, São Paulo, v. 22, n.
129, p. 19, dez./jan. 2021/2022)

Logo, em regra, o oferecimento do bem em garantia não implica renúncia


à proteção legal, não sendo circunstância suficiente para afastar o direito
fundamental à moradia, corolário do princípio da dignidade da pessoa humana
e, portanto, indisponível. Nesse sentido: REsp 1.604.422/MG, Rel. Ministro
Paulo de Tarso Sanseverino, julgado recentemente pela Terceira Turma, em
24/08/2021. E ainda:

Processual Civil. Agravo interno no recurso especial. Submissão à regra prevista


no Enunciado Administrativo 03/STJ. Execução fiscal. Bem de família. Proteção legal.

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 651


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

1. No regime do CPC/73, a orientação desta Corte firmou-se no sentido de que


“a indicação do imóvel como garantia não implica em renúncia ao benefício da
impenhorabilidade do bem de família, em razão da natureza de norma cogente,
prevista na Lei n. 8.009/90” (AgRg no REsp 1.108.749/SP, Rel. Ministra Maria Thereza
de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 13/08/2009, DJe 31/08/2009), ou
seja, “conforme já assentado pelo STJ, a proteção conferida pela Lei 8.009/1990
não admite renúncia pelo proprietário” (REsp 1487028/SC, Rel. Ministro Herman
Benjamin, Segunda Turma, julgado em 13/10/2015, DJe 18/11/2015). No mesmo
sentido: REsp 828.375/RS, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado
em 16/12/2008, DJe 17/02/2009; REsp 864.962/RS, Rel. Ministro Mauro Campbell
Marques, Segunda Turma, julgado em 04/02/2010, DJe 18/02/2010; AgRg nos
EREsp 888.654/ES, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, Segunda Seção, julgado
em 14/03/2011, DJe 18/03/2011.
2. Agravo interno não provido.
(AgInt no REsp 1.754.525/RS, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda
Turma, julgado em 21/11/2019, DJe 27/11/2019)

Processual Civil. Embargos de divergência. Agravo regimental. Ausência de


impugnação dos fundamentos da decisão agravada. Súmula n. 182/STJ. Incidente
de uniformização de jurisprudência. Suscitação a destempo. Dissídio entre
julgados da mesma Turma. Inviabilidade. Alteração na composição do Colegiado.
Irrelevância. Bem de família. Lei n. 8.009/1990. Impenhorabilidade absoluta.
Renúncia. Impossibilidade. Súmula n. 168/STJ.
[...]
6. A proteção legal conferida ao bem de família pela Lei n. 8.009/1990 não
pode ser afastada por renúncia do devedor ao privilégio, pois é princípio de
ordem pública, prevalente sobre a vontade manifestada. Incidência da Súmula n.
168/STJ.
7. Agravo regimental desprovido.
(AgRg nos EREsp 888.654/ES, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, Segunda
Seção, julgado em 14/03/2011, DJe 18/03/2011)

Embargos de declaração recebidos como agravo regimental no agravo em


recurso especial. Processual Civil. Execução. Constrição de imóvel de propriedade
de sociedade comercial utilizado como residência dos sócios. Bem de família.
Impenhorabilidade reconhecida. Art. 1º da Lei 8.009/90. Precedentes. Agravo não
provido.
1. A jurisprudência do STJ tem, de forma reiterada e inequívoca, pontuado que
o benefício conferido pela Lei 8.009/90 se trata de norma cogente, que contém
princípio de ordem pública, e sua incidência somente é afastada se caracterizada
alguma hipótese descrita no art. 3º da Lei 8.009/90.

652
Jurisprudência da QUARTA TURMA

[...]
(EDcl no AREsp 511.486/SC, Rel. Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado
em 03/03/2016, DJe 10/03/2016)

Direito Civil e Processual Civil. Bem de família. Impenhorabilidade. Renúncia.


Descabimento. Imóvel de propriedade da mãe do devedor. Proveito econômico
revertido para o núcleo familiar. Inexistência. Não incidência do inciso V do art. 3º
da Lei n. 8.009/1990.
1. A Lei n. 8.009/1990 é norma cogente e de ordem pública, por isso não
remanesce espaço para renúncia à proteção legal quanto à impenhorabilidade do
bem de família.
[...]
(REsp 1.180.873/RS, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado
em 17/09/2015, DJe 26/10/2015)

Processual civil e civil. Agravo regimental. Embargos de declaração. Recurso


especial. Direito real de garantia. Cédula rural hipotecária. Imóvel dado em
garantia. Bem de família. Impenhorabilidade. Não incidência. Dívida constituída
em favor da entidade familiar. Art. 3º, V, da Lei n. 8.009/90. Agravo desprovido.
1. O benefício conferido pela Lei n. 8.009/90 ao instituto do bem de família
constitui princípio de ordem pública que não admite a renúncia pelo titular,
podendo ser elidido somente se caracterizada qualquer das hipóteses previstas
nos incisos do art. 3º e no caput do art. 4º da referida lei.
[...]
(AgRg nos EDcl no REsp 1.463.694/MS, Rel. Ministro João Otávio de Noronha,
Terceira Turma, julgado em 06/08/2015, DJe 13/08/2015)

Vale destacar que não se desconhece julgados desta Quarta Turma, mais
especificamente envolvendo imóveis dados como garantia em contratos com
cláusula de alienação fiduciária, nos quais se reconheceu a possibilidade de
afastar tal entendimento diante da utilização abusiva do benefício, pautados
notadamente na vedação ao comportamento contraditório (venire contra factum
proprium) e na premissa de que que ninguém pode se beneficiar da própria
torpeza (nemo auditur propriam turpitudinem allegans). Nesse sentido, cita-se:
REsp 1.595.832/SC, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado
em 29/10/2019, DJe 04/02/2020; REsp 1.559.348/DF, Rel. Ministro Luis
Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 18/06/2019, DJe 05/08/2019.
Todavia, tais casos não se assemelham ao ora em exame, pois aqui não
está em discussão a boa-fé dos caucionantes, mas apenas se é viável alargar as
exceções à impenhorabilidade do bem de família descritas na norma.

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 653


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Ainda assim, no caso em foco, ausente a demonstração de que o objeto


contratado tenha revertido em favor da entidade familiar dos caucionantes,
tampouco a configuração de venire contra factum proprium no caso concreto,
não se pode presumir a má-fé. Consoante já consignado, o bem foi oferecido
em caução pelos recorrentes em contrato de locação comercial firmado pelo
recorrido e terceiro.
Dessa forma, a caução levada a registro, embora constitua garantia real,
não encontra previsão em qualquer das exceções legais, devendo prevalecer a
impenhorabilidade do imóvel, quando se tratar de bem de família. Em outros
termos, tendo em vista que a caução não se enquadra nas exceções previstas
no art. 3º da Lei n. 8.009/1990 e que o oferecimento do bem em garantia não
implica em renúncia à proteção legal, constata-se que o acórdão estadual diverge
do entendimento firmado por esta Corte Superior.
É esse o entendimento também da Terceira Turma desta Corte, confira-se:

Direito Civil. Recurso especial. Ação de despejo c/c pedido de cobrança. Fase
de cumprimento de sentença. Contrato de locação comercial. Caução. Bem de
família. Impenhorabilidade.
[...]
2. O propósito recursal consiste em dizer acerca da possibilidade de penhora
de bem de família oferecido em caução pelo locatário em contrato de locação
comercial.
3. Em se tratando de caução, em contratos de locação, não há que se falar na
possibilidade de penhora do imóvel residencial familiar.
4. Recurso especial conhecido e provido.
(REsp 1.887.492/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em
13/04/2021, DJe 15/04/2021)
Direito Civil. Recurso especial. Ação de execução de título executivo
extrajudicial. Contrato de locação. Caução. Bem de família. Impenhorabilidade.
1. Ação de execução de título executivo extrajudicial - contrato de locação.
[...]
3. O propósito recursal é definir se imóvel - alegadamente bem de família -
oferecido como caução imobiliária em contrato de locação pode ser objeto de
penhora.
4. Em se tratando de caução, em contratos de locação, não há que se falar na
possibilidade de penhora do imóvel residencial familiar.
5. Recurso especial conhecido e provido.

654
Jurisprudência da QUARTA TURMA

(REsp 1.873.203/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em


24/11/2020, DJe 01/12/2020)

Contudo, verifica-se inviável, nessa oportunidade, reconhecer, de plano, a


alegada impenhorabilidade, pois os requisitos para que o imóvel seja considerado
bem de família não foram objeto de averiguação, sendo inviável proceder-se à
aplicação do direito à espécie no âmbito desta Corte Superior por demandar, na
hipótese dos autos, o exame de fatos e provas, cuja análise compete, sob pena de
supressão de instância, ao Tribunal de origem.
2. Do exposto, vota-se no sentido de dar parcial provimento ao recurso
especial a fim de determinar o retorno dos autos à Corte a quo para que, à luz
da proteção conferida ao bem de família pela Lei n. 8.009/1990, proceda ao
reexame do agravo de instrumento, analisando se o imóvel penhorado, no caso
concreto, preenche os requisitos para se caracterizar como tal.
É como voto.

RECURSO ESPECIAL N. 1.914.596-RJ (2021/0002643-4)

Relator: Ministro Luis Felipe Salomão


Recorrente: Anielle Silva dos Reis Barboza
Recorrente: Monica Tereza Azeredo Benicio
Advogados: Evelyn Melo Silva - RJ165970
Samara Mariana de Castro - RJ206635
Recorrido: Google Brasil Internet Ltda
Advogados: Eduardo Bastos Furtado de Mendonça - RJ130532
Felipe de Melo Fonte - RJ140467
Naiana do Amaral Porto - RJ167818

EMENTA

Recurso especial. Ação cominatória. Pedido de fornecimento de


dados cadastrais. Identificação de usuários para futura reparação civil e/

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 655


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

ou criminal. Propagação de conteúdo ofensivo e difamante. Fake news.


Vedação. Marco Civil da Internet e Lei Geral de Proteção de Dados.
Compatibilização. Provedores de conexão que não integraram relação
jurídico-processual. Dever de guarda previsto na Lei n. 12.965/2014
(Marco Civil da Internet). Possibilidade. Inexistência de violação dos
limites objetivos e subjetivos da lide. Apresentação prévia dos IPS pela
provedora de internet (Google).
1. “Nos termos da Lei n. 12.965/2014 (art. 22), a parte
interessada poderá pleitear ao juízo, com o propósito de formar
conjunto probatório em processo judicial cível ou penal, em caráter
incidental ou autônomo, que ordene ao responsável pela guarda o
fornecimento de registros de conexão ou de registros de acesso a
aplicações de internet [...] (REsp n. 1.859.665/SC, de minha relatoria,
Quarta Turma, julgado em 09/03/2021, DJe 20/04/2021)
2. Em relação ao dever jurídico em si de prestar informações
sobre a identidade de usuário de serviço de internet, ofensor de direito
alheio, o entendimento mais recente da Corte reconhece a obrigação
do provedor de conexão/acesso à internet de, uma vez instado pelo
Poder Judiciário, fornecer, com base no endereço de IP (“Internet
Protocol”), os dados cadastrais de usuário autor de ato ilícito, sendo
possível a imposição de multa no caso de descumprimento da ordem,
“mesmo que seja para a apresentação de dados cadastrais” (REsp n.
1.785.092/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado
em 07/5/2019, DJe 9/5/2019).
3. Tal conclusão encontra apoio no entendimento já consagrado
nesta Corte Superior de que, enquanto aos provedores de aplicação é
exigida a guarda dos dados de conexão (nestes incluído o respectivo IP),
aos provedores de acesso ou de conexão cumprirá a guarda de dados
pessoais dos usuários, sendo evidente, na evolução da jurisprudência
da Corte, a tônica da efetiva identificação do usuário.
4. No caso em análise, ao contrário do que firmado pelas instâncias
ordinárias, os pedidos autorais traduziram com rigor a finalidade do
provimento judicial, não havendo falar-se, portanto, em inobservância
aos limites objetivos da lide. Do mesmo modo, a obrigatoriedade de
identificação dos usuários pelas empresas de conexão de internet,
ainda que não tenham integrado a relação jurídico processual, decorre
do próprio dever legal da guarda, nos termos dos arts. 10, § 1º, e 22

656
Jurisprudência da QUARTA TURMA

da Lei n. 12.956/2014, circunstância que não implica a condenação de


terceiros, mas sim desdobramento do processo.
5. Nesse contexto, havendo indícios de ilicitude e em se tratando
de pedido específico voltado à obtenção dos dados cadastrais (como
nome, endereço, RG e CPF) dos usuários cuja remoção já tenha
sido determinada – a partir dos IPs já apresentados pelo provedor de
aplicação –, a privacidade do usuário não prevalece. Conclui-se, assim,
pela possibilidade de que os provedores de conexão/acesso forneçam os
dados pleiteados, ainda que não tenham integrado a relação processual
em que formulado o requerimento para a identificação do usuário.
6. Recurso especial provido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, os Ministros da Quarta Turma


do Superior Tribunal de Justiça acordam, por unanimidade, dar provimento ao
recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros
Raul Araújo, Maria Isabel Gallotti, Antonio Carlos Ferreira e Marco Buzzi
votaram com o Sr. Ministro Relator.
Sustentou oralmente o Dr. Eduardo Bastos Furtado de Mendonça, pela
parte recorrida: Google Brasil Internet Ltda
Brasília (DF), 23 de novembro de 2021 (data do julgamento).
Ministro Luis Felipe Salomão, Relator

DJe 8.2.2022

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Luis Felipe Salomão: 1. Anielle Silva dos Reis Barboza
e Mônica Tereza Azeredo Benício, respectivamente irmã e companheira de
Marielle Francisco da Silva, conhecida como Marielle Franco, ajuizaram ação
cominatória em face de Google Brasil Internet Ltda., tendo como objeto
principal o pedido de remoção de matérias e vídeos ofensivos à honra de Marielle
das plataformas Google e Youtube, além do fornecimento de identificação dos
IPs e usuários responsáveis pela veiculação de notícias ofensivas.

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 657


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Segundo narrado, após o “episódio fatídico” do assassinato de Marielle


Franco, ocorrido em 14/3/2018, passaram a ser veiculados nas redes sociais
conteúdos criminosos e inverídicos sobre a ex-vereadora do Rio de Janeiro, com
ofensas à sua honra e memória.
As autoras apresentaram uma relação de vídeos que reputaram ilícitos,
nome do canal que os publicou, URLs, datas e as visualizações, que já somavam
13.405.111 (treze milhões, quatrocentos e cinco mil, cento e onze).
Formularam pretensão de exclusão das postagens indicadas, de “condenação
da ré a retirar da internet todas as matérias que caluniam e ofendem a imagem
de Marielle Franco” e a identificação dos ofensores “para futuras ações de
reparação civil e criminal”.
Inicialmente, houve o deferimento da tutela de urgência apenas para
determinar à ré, ora recorrida, a exclusão de matérias e vídeos com conteúdo
ofensivo publicados na plataforma Youtube, administrada pela Google, no prazo
de 72 horas, sob pena de multa diária (fls. 37-46).
Na audiência de conciliação designada (fls. 100-101), o Juízo de primeiro
grau determinou à ré o fornecimento dos dados de identificação e de conexão dos
responsáveis pelos links cuja retirada foi determinada “a fim de que as autoras
possam adotar as providências pertinentes quanto à alegada ofensa” (fls. 174-
176).
As autoras, posteriormente, argumentando ser necessário conferir
efetividade ao pedido de identificação dos usuários, requereram que, “após
a identificação dos IPs, pelo princípio da economia processual, que o réu
identifique e esclareça quem são os provedores de conexão (como, por exemplo,
TIM, NET, GVT, etc), responsáveis pelos IPs que serão apresentados” (fl. 330).
O Juízo da 47ª Vara da Comarca do Rio de Janeiro, confirmando
parcialmente os efeitos antecipatórios da tutela, julgou parcialmente procedentes
os pedidos para condenar a ré a remover, em caráter definitivo, os conteúdos
ofensivos relacionados a Marielle Franco, sob pena multa diária de R$ 1.000,00
(mil reais). Afastou, contudo, a obrigatoriedade de identificação do provedor de
conexão pela ré (fls. 384-389).
Irresignada, a parte autora interpôs apelação (fls. 428-442).
O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro negou provimento ao apelo.
Confira-se a ementa do acórdão recorrido (fls. 472-493):

658
Jurisprudência da QUARTA TURMA

Apelação cível. Ação cominatória com pedido de tutela provisória.


Google. Pretensão de retirada do ar de conteúdos impróprios. Sentença de parcial
procedência. Apelo autoral requerendo a reforma parcial do julgado, com a
quebra do sigilo de dados com a expedição de ofício para as empresas de
conexão à internet informem quem são os usuários que publicaram os vídeos
com conteúdo apontado como infringente, bem como condene a empresa ré
ao pagamento de custas processuais e honorários advocatícios. Decisão judicial
que deve se restringir aos limites subjetivos e objetivos da lide, não podendo
haver condenação fora do que foi pleiteado, tampouco atingindo terceiros
estranhos a lide. Empresas de conexão à internet que não fizeram parte da presente
demanda, não havendo como impor a estas quaisquer obrigações. Quanto aos
honorários advocatícios, mais uma vez não assiste razão as apelantes. Com efeito, foi
devidamente reconhecido pela sentença que “... O texto legal é claro ao prever que a
remoção de conteúdo deve ser realizada mediante ordem judicial.” Nesta toada, não
há como se aplicar ao caso a teoria da causalidade. Por outro lado, observa-se que
o réu não resistiu a pretensão autoral, bem como constata-se que as autoras
sucumbiram na maior parte de seus pedidos, motivo pelo qual não há como
condenar o apelado ao pagamento da sucumbência. Entendimento deste e. Tribunal
de justiça acerca do tema. Desprovimento do apelo.

Sobreveio o recurso especial interposto pelas autoras, com esteio no art.


105, III, a, da Constituição da República, em que alegam ofensa ao disposto nos
arts. 10, § 1º, e 22 da Lei n. 12.956/2014 (Marco Civil da Internet) e art. 114 do
Código de Processo Civil (fls. 495-513).
Sustentam, em síntese, que os fundamentos declinados pelas instâncias
ordinárias para indeferir a identificação dos usuários que postaram os vídeos e
as manifestações ofensivas, com expedição de ofício às provedoras de conexão,
evidenciam a imposição de “um litisconsórcio necessário, que sequer era exigido,
nos termos pelo art. 114/CPC”, esclarecendo, ainda, ser esta a única via possível
de se pleitear e ver deferido o pedido de identificação dos usuários.
Pugnam, assim, pela reforma do acórdão a fim de que “seja ordenada a
quebra do sigilo de dados com a expedição de ofício para [que] as empresas
de conexão com a internet informem quem são os usuários que publicaram
os vídeos ofensivos à honra e memória de Marielle Franco, para que, assim, a
família adote as medidas que julgar necessárias contra cada usuário identificado”.
Apresentadas contrarrazões à fl. 517, o recurso foi admitido na origem (fl.
519).
É o relatório.

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 659


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

VOTO

O Sr. Ministro Luis Felipe Salomão (Relator): 2. A controvérsia recursal


ainda pendente consiste em analisar a possibilidade de se impor a pessoas
jurídicas provedores de conexão de internet que não integraram a relação
jurídico-processual a identificação dos usuários responsáveis pela veiculação de
notícias ofensivas.
A questão ora em julgamento envolve alguns aspectos processuais, além
de circunstâncias subjacentes relacionadas ao conhecido episódio envolvendo
o trágico assassinato da ex-vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco em
2008, cuja repercussão social, evidenciada pela expressiva manifestação nas redes
sociais, configura a tônica do litígio em tela.
Confira-se o quanto narrado na peça inaugural (fls. 2-27):

As autoras são irmã e companheira, respectivamente, de Marielle Francisco da


Silva, conhecida como Marielle Franco, assassinada no último dia 14 de março.
[...]
Após seu assassinato, diante da comoção e perplexidade da população, além
de manifestações de amigos e familiares de Marielle, começaram a surgir nas redes
sociais mentiras a respeito da vereadora, com acusações falsas e criminosas, além de
discursos de ódio sobre sua vida pessoal, história e atuação na política e na defesa de
direitos humanos.
As fake news, os discursos de ódio e a divulgação de conteúdos criminosos e,
obviamente, inverídicos, começaram a surgir a partir de quinta-feira, dia 15/03/2018,
e foram tomando vulto na internet. Então, no sábado, dia 17/03/2018, foram tomadas
medidas para proteção e preservação da honra e da memória de Marielle Franco e
sua família. No mesmo dia foi disponibilizado o e-mail: contato@ejsadvogadas.com.
br para receber tais denúncias e este endereço eletrônico foi amplamente divulgado
na mídia em geral.
Várias pessoas, do Brasil e do mundo, enviaram mensagens se solidarizando
com a família e denunciando vídeos, comentários falsos e maliciosos,
compartilhamentos e publicações em geral, todas criminosas e atentatórias à
imagem e à memória de Marielle Franco. Foram mais de 16 mil e-mails e serviram
de base para a propositura da presente ação. Foi uma mobilização coletiva visando
combater as fake news e o discurso de ódio.
Destaca-se a gravidade da divulgação, do compartilhamento e da manutenção
“no ar” destes conteúdos falsos, deliberadamente mentirosos, criminosos e
atentatórios à honra e à dignidade das pessoas que são vítimas da difusão das
fake news e dos discursos de ódio.

660
Jurisprudência da QUARTA TURMA

Por ora, já foi possível mapear 40 (quarenta) vídeos com conteúdos criminosos,
falsos, discursos de ódio e atentatórios à dignidade, honra e memória de Marielle
Francisco da Silva, sem prejuízo de outros que venham a ser indicados. A tabela
abaixo demonstra a quantidade de vídeos e classifica por nome do vídeo, nome
do canal que publicou o vídeo, a URL, a data das postagens (entre os dias 15 e 20
de março) e as visualizações que cada vídeo teve até o momento do ajuizamento
desta ação. Destaca-se que após o anúncio de que as autoras ingressariam com
a medida judicial cabível para proteger a honra e a memória de Marielle Franco,
dois vídeos do rol dos denunciados pelos e-mails já foram excluídos.
Segue tabela abaixo (DOC. 1):
[...]
Até agora foram contabilizadas 13.405.111 (treze milhões, quatrocentos e cinco
mil, cento e onze) visualizações, a honra e a memória de Marielle Franco foram
manchadas para quase treze milhões e meio de pessoas. É um registro sem
precedentes. É um caso sem precedentes!
[...]
Destaca-se a notícia veiculada no jornal O Globo’:

O movimento coletivo de reação às informações falsas espalhadas


pelas redes sociais e por aplicativos contra a vereadora Marielle Franco,
assassinada a tiros na última quarta-feira, não tem precedentes na internet
brasileira, afirmaram especialistas ouvidos ontem pelo Globo. O fenômeno
desencadeou ainda uma série de iniciativas que visam também a exigir
punição jurídica contra os responsáveis pelas fake news.
Concentrada num escritório de advocacia carioca, uma força-tarefa
criada para reunir provas contra pessoas ou grupos que espalharam as
calúnias já contabilizou 16 mil e-mails com denúncias.
- Analiso a opinião pública digital há 11 anos, e nunca vi uma reação tão
forte em defesa de alguém. É a mais estruturada contra uma notícia falsa
e difamação que já vimos - afirmou Manoel Fernandes, diretor da Bites,
consultoria que faz análise de dados transmitidos na internet. - E acho
que aí tem um aprendizado muito importante para a sociedade: é possível
reagir.
(Disponívelem:https://oglobo.globo.com/rio/iniciativas-para-combater-
informacoes-falsas - contra-marielle-mobilizam-web-22506243>. Acesso
em 20 de março).

Os títulos dos vídeos descritos na inicial foram reproduzidos pelo Juízo


sentenciante, na decisão que analisou o pedido de antecipação de tutela.
Verifique-se (fls. 38-39):

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 661


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

[...] Tais vídeos e áudios fizeram referência direta à Marielle, apontando-a como
vinculada a facções criminosas e tráfico ou imputações maliciosas sobre as suas
bandeiras políticas, como o aborto, fatos que podem caracterizar violação à honra
e à imagem da falecida e que certamente causam desconforto e angústia a seus
familiares. Note-se que nenhum dos divulgadores apresentou prova concreta
sobre o declarado. Ao contrário, foram meras suposições e opiniões, sem lastro
probatório identificado e que se continuarem a ser propagadas poderão atingir
de forma irrecuperável a dignidade da falecida Marielle, com repercussões
danosas a seus familiares.
São eles:

“Suposta conversa mostra que vereadora Marielle traiu Comando


Vermelho Força Brasileira https://youtu.be/TBP7XPfRw_o 16/3/18 783.243
(em que há expressa referência à vinculação de Marielle ao Comando
Vermelho);
“Vereadora Marielle Franco do PSOL é morta ....Sifudeu! Reginaldo
Sincero https://youtu.be/ZEHvMKWxLjw 15/3/18 19.393 (em que a pessoa
expressamente se refere à Marielle como defensora da bandidagem e
utiliza expressão bastante vil sobre a morte dela);
“Cidadão entrega o jogo sobre o assassinato da vereadora Força
Brasileira https://youtu.beLyP1cgIGXz8 17/3/18 912.393 (Com vinculação
da pessoa de Marielle ao tráfico de drogas, por ter se eleito apoiada pelo
tráfico);
“Marielle Franco e o Comando Vermelho? - Nilce e Leon (Cadê a Chave) e
Cauê Moura (Parte 2) Etnia Brasileira por Lívia Zaruty https://www.youtube.
com/watch?v=ckJRIAHbHhg 18/3/18 59.23 (faz referência ao apoio dos
bandidos supostamente recebido por Marielle para ingressar na política em
nome da comunidade).
Urgente: Morador revela quem era a vereadora Marielle
Franco (PSOL) Questionar & Refletir (https://www.youtube.com/
watch?v=HgzRfoBUnvE&t=2s 18/3/18 161.155 (Divulga a informação de
que Marielle defendia os interesses da facção responsável pela comunidade
de ACARI).
“A origem do PSOL e E a ligação da Esquerda com o Crime Organizado!
Luiz Camargo Vlog https://www.youtube.com/watch?v=z7dJ5DoPDug
18/3/18 60.383 (insinuando que a execução decorreu de uma quebra de
acordo ou uma ausência de contrapartida a criminosos)
“Áudio Revela Autores da Execução da Marielle Franco Primeira Mão
https://www.youtube.com/watch?v=QQ7JjYlyxN4 16/3/18 549.999
(reproduz áudio divulgado nas redes sociais que acusando o apoio do
Comando Vermelho à eleição de Marielle).

662
Jurisprudência da QUARTA TURMA

“Os mistérios por detrás da vereadora do PSOL conde loppeux https://


www.youtube.com/watch?v=rh2DwH79sMM 16/3/18 18.54 - (faz referência
a insinuações de que houve o envolvimento de Marielle com criminosos)”
“Áudio Revela Autores da Execução da Marielle Franco Primeira Mão
https://www.youtube.com/watch?v=QQ7JjYlyxN4 16/36/18 550.006
(reproduz áudio divulgado nas redes sociais que acusando o apoio do
Comando Vermelho à eleição de Marielle).
“Cidadão deixa claro o real culpado pela morte de Marielle Franco Vereadora
do PSOL Notícias Now https://www.youtube.com/watch?v=c7gdnwm6pOw
17/3/18 655 (referência à eleição dela com apoio do Comando Vermelho e
sua defesa à comunidade de Acari).
“O Lado Oculto de Marielle Franco. A vereadora do [PSOL] Questionar &
Refletir https://www.youtube.com/watch?v=KBXSLgiP2s1 20/3/18 10.363
(reproduz declaração de Marielle sobre o aborto, mas insere texto dizendo
se tratar de projeto satânico)
“PM da resposta dura contra freixo e aproveitadores da Esquerda no caso
da Vereadora Morta Marielle Notícias Política BR https://www.youtube.com/
watch?v=c08drc29FPM 18/3/18 69.55 (afirmando que Marielle foi eleita por
favores de uma facção criminosa)
“Marielle Franco, antes e depois da Rede Globo conde loppeux https://
www.youtube.com/watch?v=-YWSHhUgIWO (faz comentários sobre a
defesa de Marielle ao aborto, com afirmação de que se formou um mito em
fraude)
“Desembargadora detona Marielle Franco do psol Primeira 218.59
Mão https://www.youtube.com/watch?v=fBhilF_iTMo&feature=youtu.
be mensagens 17/3/18 218.59 (reproduz mensagens de FB envolvendo
Desembargadora, com menção ao Comando Vermelho)
“Marielle Franco e o Comando Vermelho? - Nilce e Leon (Cadê a Chave) e
Moura (Parte 2) Etnia Brasileira por Lívia Zaruty https://www.youtube.com/
watch?v=ckJRIAHbHhg 18/3/18 61.326 - mesmo conteúdo já analisado
acima.

Os demais vídeos indicados pelas autoras apresentam, em sua grande maioria,


críticas duras à política exercida pelo partido PSOL e também ao tratamento
que a mídia, especialmente as Organizações Globo, deram ao fato criminoso.
Outros vídeos apenas reproduzem debates parlamentares, discursos públicos
e entrevistas de outras pessoas sobre o fato que, seja por conta do ambiente
público em que foram produzidos, seja porque integraram matérias e opiniões
difundidas por organizações jornalísticas formalmente constituídas, estão no
domínio público e podem ser objeto de responsabilização direta se constatado
excesso. Alguns outros vídeos veicularam a opinião, às vezes severas, das pessoas

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 663


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

que os produziram, mas sem que importassem, no juízo desta Magistrada,


excessos ou ataques diretos à honra, à moral ou à memória de Marielle.
Por fim, há um vídeo absolutamente incompreensível e que não deveria estar
sendo veiculado por uma questão de bom senso até pelos termos grosseiros de
seu conteúdo, mas não verifiquei algum ataque frontal à pessoa de Marielle (Cauê
Moura REVOLTZ!!! Nando Moura https://www.youtube.com/watch?v=g4ZYzBwRR
5l&feature=youtu.be).
[...]

Inicialmente, como já assinalado no relatório, houve o deferimento da


tutela de urgência apenas para determinar à ré, ora recorrida, a exclusão de
matérias e vídeos com conteúdo ofensivo publicados na plataforma Youtube,
administrada pela Google, no prazo de 72 horas, sob pena de multa diária (fls.
37-46).
Na audiência de conciliação designada (fls. 100-101), o Juízo de primeiro
grau determinou à ré o fornecimento dos dados de identificação e de conexão dos
responsáveis pelos links cuja retirada foi determinada “a fim de que as autoras
possam adotar as providências pertinentes quanto à alegada ofensa” (fls. 174-
176).
As autoras, posteriormente, argumentando ser necessário conferir
efetividade ao pedido de identificação dos usuários, requereram que, “após
a identificação dos IPs, pelo princípio da economia processual, que o réu
identifique e esclareça quem são os provedores de conexão (como, por exemplo,
TIM, NET, GVT, etc), responsáveis pelos IPs que serão apresentados” (fl. 330).
No entanto, quando da sentença e do acórdão, as instâncias ordinárias
concluíram pela impossibilidade de se impor aos provedores de conexão o
dever de identificar os usuários responsáveis pela veiculação das matérias,
argumentando que tal determinação desborda dos limites objetivos e subjetivos
da lide, devendo ser realizada em procedimento próprio.
Leiam-se os termos da sentença (fls. 384-389):

Na hipótese dos autos, a partir do proferimento das decisões do id. 38 e id.


175, o réu cumpriu imediatamente o determinado e identificou os IPs responsáveis
pelas publicações conforme documentos dos ids. 229/267, satisfazendo a pretensão
das autoras exposta na petição inicial, o que afasta qualquer responsabilização
subsidiária pelos fatos que deram ensejo à propositura da ação.
Posteriormente ao proferimento da decisão liminar (id. 324), as autoras pleitearam
que o réu fornecesse a identificação dos provedores de conexão, de forma a conseguir

664
Jurisprudência da QUARTA TURMA

a quebra do sigilo dos dados dos usuários dos IPs identificados pela ré, além da
remoção global do conteúdo impugnado, com controle prévio das manifestações.
[...]
Além disso, a identificação e responsabilização pessoal dos responsáveis pelo
conteúdo apontado como ofensivo à honra e à imagem de Marielle deve se dar
através do procedimento judicial próprio, inclusive criminal. O réu cumpriu, nestes
autos, a determinação judicial e forneceu o número dos IPs e, com tais dados, as
autoras podem, independentemente de ordem judicial, identificar os provedores de
conexão através da própria rede mundial de computadores, como por exemplo
através do site https://registro.br/2/whois. A quebra do sigilo dos dados telefônicos
e de identificação dos usuários deve se dar através do procedimento criminal - para
tanto há no Rio de Janeiro delegacia especializada para tanto - ou até através
de nova ação judicial, esta sim com pedido indenizatório específico em face do
responsável pela postagem tida como agressora.
É claro que a liberdade de manifestação do pensamento (art. 5º, IV, da CF)
não é ilimitada, sendo vedado o anonimato, como também é evidente que os
provedores devem manter meios de identificar e excluir de suas redes usuários que
externem manifestações que configurem a prática de algum tipo de ilícito civil
ou criminal. Mas a identificação do IP é a medida adequada e suficiente para a
busca dos causadores do dano e tal conduta foi regularmente adotada pelo réu em
cumprimento às decisões proferidas nestes autos.
[...]

O Tribunal de origem, confirmando esse entendimento, apresentou os


seguintes delineamentos:

Apela a parte autora requerendo a reforma parcial do julgado, com a quebra


do sigilo de dados com a expedição de ofício para as empresas de conexão à internet
informem quem são os usuários que publicaram os vídeos com conteúdo apontado
como infringente, bem como condene a empresa ré ao pagamento de custas
processuais e honorários advocatícios.
Por certo, a decisão judicial deve se restringir aos limites subjetivos e objetivos da
lide, não podendo haver condenação fora do que foi pleiteado, tampouco atingindo
terceiros estranhos a lide.
Esta é a inteligência do artigo 506 do Novo Código de Processo Civil, é ver:

Art. 506. A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não
prejudicando terceiros.

Neste diapasão, se mostra inviável a condenação de terceiros que não


compuseram a lide, conforme jurisprudência deste Colendo Tribunal de Justiça:

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 665


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

[...]
Na presente hipótese, pretende a autora, ora apelante, a expedição de oficio
para as empresas de conexão à internet, com o objetivo de que estas informem quem
são os usuários que publicaram os vídeos com conteúdo apontado como infringente
na demanda.
Entretanto, as empresas de conexão à internet não fizeram parte da presente
demanda, não havendo como impor a estas quaisquer obrigações.

A recorrente, por outro lado, defende que a identificação dos usuários pelas
empresas de conexão decorre do dever legal de guarda dos registros de conexão a
estas imposto, nos termos dos arts. 10, § 1º, e 22 da Lei 12.956/2014, revelando-
se, assim, mera consequência do processo, não havendo falar-se em condenação
de terceiro, como consignado no acórdão recorrido.
Pondera que a intervenção judicial, na hipótese, é imprescindível ao
propósito de se obterem os dados pessoais dos usuários, como “nome completo,
RG, CPF, endereço físico e demais dados capazes de identificar efetivamente
os usuários”, visando à “formação do conjunto probatório para futuro processo
judicial cível ou penal contra os usuários que publicaram conteúdo ofensivo à
honra e memória da Vereadora Marielle Franco”.
Como base fática incontroversa, sobressai, destarte, além do pedido de
remoção de conteúdo, o requerimento expresso das autoras para que a ré seja
“obrigada a fornecer a identificação dos IPs e dos usuários, para futuras ações de
reparação civil e criminal (item 6 da petição inicial)”.
Ainda, é incontroverso que a Google forneceu os IPs relacionados aos
conteúdos cuja exclusão fora determinada judicialmente (documentos dos ids.
229/267).
3. Assim delineados os fatos, a resolução da controvérsia passa pela análise
primeira dos conceitos apresentados na Lei n. 12.965/2014 (Marco Civil da
Internet), notadamente quanto ao dever de guarda dos dados pelos provedores de
internet – provedores de aplicação e de conexão ou acesso – e a responsabilidade pela
guarda dos referidos dados.
Transcrevo:

Art. 5º Para os efeitos desta Lei, considera-se:


I - internet: o sistema constituído do conjunto de protocolos lógicos,
estruturado em escala mundial para uso público e irrestrito, com a finalidade de
possibilitar a comunicação de dados entre terminais por meio de diferentes redes;

666
Jurisprudência da QUARTA TURMA

II - terminal: o computador ou qualquer dispositivo que se conecte à internet;


III - endereço de protocolo de internet (endereço IP): o código atribuído a um
terminal de uma rede para permitir sua identificação, definido segundo parâmetros
internacionais;
[...]
VI - registro de conexão: o conjunto de informações referentes à data e hora de
início e término de uma conexão à internet, sua duração e o endereço IP utilizado
pelo terminal para o envio e recebimento de pacotes de dados;
[...]
VIII - registros de acesso a aplicações de internet: o conjunto de informações
referentes à data e hora de uso de uma determinada aplicação de internet a partir
de um determinado endereço IP.

Art. 10. A guarda e a disponibilização dos registros de conexão e de acesso a


aplicações de internet de que trata esta Lei, bem como de dados pessoais e do
conteúdo de comunicações privadas, devem atender à preservação da intimidade,
da vida privada, da honra e da imagem das partes direta ou indiretamente
envolvidas.
§ 1º O provedor responsável pela guarda somente será obrigado a disponibilizar
os registros mencionados no caput, de forma autônoma ou associados a dados
pessoais ou a outras informações que possam contribuir para a identificação do
usuário ou do terminal, mediante ordem judicial, na forma do disposto na Seção IV
deste Capítulo, respeitado o disposto no art. 7º.
§ 2º O conteúdo das comunicações privadas somente poderá ser
disponibilizado mediante ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei
estabelecer, respeitado o disposto nos incisos II e III do art. 7º.
§ 3º O disposto no caput não impede o acesso aos dados cadastrais que informem
qualificação pessoal, filiação e endereço, na forma da lei, pelas autoridades
administrativas que detenham competência legal para a sua requisição.
§ 4º As medidas e os procedimentos de segurança e de sigilo devem ser
informados pelo responsável pela provisão de serviços de forma clara e atender
a padrões definidos em regulamento, respeitado seu direito de confidencialidade
quanto a segredos empresariais

Art. 15. O provedor de aplicações de internet constituído na forma de pessoa


jurídica e que exerça essa atividade de forma organizada, profissionalmente e
com fins econômicos deverá manter os respectivos registros de acesso a aplicações
de internet, sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de 6
(seis) meses, nos termos do regulamento.
§ 1º Ordem judicial poderá obrigar, por tempo certo, os provedores de
aplicações de internet que não estão sujeitos ao disposto no caput a guardarem

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 667


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

registros de acesso a aplicações de internet, desde que se trate de registros


relativos a fatos específicos em período determinado.

Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a


censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser
responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por
terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no
âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar
indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições
legais em contrário.
§ 1º A ordem judicial de que trata o caput deverá conter, sob pena de nulidade,
identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que
permita a localização inequívoca do material.
§ 2º A aplicação do disposto neste artigo para infrações a direitos de autor ou
a direitos conexos depende de previsão legal específica, que deverá respeitar a
liberdade de expressão e demais garantias previstas no art. 5º da Constituição
Federal.
[...]
Art. 22. A parte interessada poderá, com o propósito de formar conjunto
probatório em processo judicial cível ou penal, em caráter incidental ou autônomo,
requerer ao juiz que ordene ao responsável pela guarda o fornecimento de registros
de conexão ou de registros de acesso a aplicações de internet.
Parágrafo único. Sem prejuízo dos demais requisitos legais, o requerimento
deverá conter, sob pena de inadmissibilidade:
I - fundados indícios da ocorrência do ilícito;
II - justificativa motivada da utilidade dos registros solicitados para fins de
investigação ou instrução probatória; e
III - período ao qual se referem os registros.

Para melhor compreensão do tema, cumpre diferenciar as diversas


atividades desses atores mencionados pela lei.
Segundo Guilherme Martins, “o provedor de conexão corresponde à
nomenclatura provedor de acesso, definido no anexo da Portaria do Ministério
das Telecomunicações 148/95 como prestador de serviço de conexão à
Internet (PCSI). Conforme o art. 3º, d, daquela norma, trata-se da “entidade
que presta o serviço de conexão à internet”. Trata-se de um “intermediário
entre o equipamento do usuário e a Internet”, atribuindo-lhe um endereço.IP.
(MARTINS, Guilherme Magalhães. Responsabilidade civil por acidente de
consumo na internet. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 285).

668
Jurisprudência da QUARTA TURMA

Frederico Meinberg, em referência à conceituação apresentada pelo


Professor Marcel Leonardi, em artigo anterior ao próprio marco civil, assim
dispõe:

Para Leonardi, provedor de serviços de internet é gênero do qual as demais


categorias são espécies. Assim, provedor de internet é a pessoa natural ou jurídica
que fornece serviços relacionados ao funcionamento da internet, ou por meio
dela.
[...]
Já o Provedor de Acesso ou Provedor de Conexão é a pessoa jurídica fornecedora
de serviços que consistem em possibilitar o acesso de seus consumidores à
internet. Para sua caracterização, basta que ele possibilite a conexão dos terminais
de seus clientes à internet. Em nosso país os mais conhecidos são: Net Virtua, Brasil
Telecom, GVT e operadoras de telefonia celular como TIM, Claro e Vivo, estas últimas
que fornecem o serviço 3G e 4G.
Quanto a este provedor, é importante frisar que o marco civil da internet operou
certa alteração no mencionado conceito ao afirmar que, na provisão de conexão à
internet, cabe ao administrador de sistema autônomo o respectivo dever de manter
os registros de conexão. Tendo, ainda, definido como administrador de sistema
autônomo a pessoa física ou jurídica que administra blocos de endereço IP específicos
e o respectivo sistema autônomo de roteamento devidamente cadastrado no ente
nacional responsável pelo registro e distribuição de endereços IP geograficamente
referentes ao país.
[...]
Provedor de Aplicação de Internet (PAI) é um termo que descreve qualquer
empresa, organização ou grupo que forneça um conjunto de funcionalidades que
podem ser acessadas por meio de um terminal conectado à internet.
Em primeira análise, o conceito já exclui o provedor de infraestrutura (backbone) e
o provedor de conexão (provedor de acesso ou PSAs), este último pela clara separação
realizada no bojo do próprio Marco Civil entre provisão de conexão e provisão de
aplicações de internet.
Em um segundo momento, concluo que o conceito de PAI inclui o provedor de
correio eletrônico, o provedor de hospedagem e o provedor de conteúdo. Por óbvio,
o provedor de serviços online (PSOs) também está incluído no conceito, mesmo
porque os dois estão intimamente entrelaçados.
Continuando o estudo, nota-se que o artigo 15, caput, ajuda na tarefa de
chegar a um conceito final de provedor de aplicação de internet. Diz o citado
artigo que:
O provedor de aplicações de internet constituído na forma de pessoa jurídica
e que exerça essa atividade de forma organizada, profissionalmente e com fins

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 669


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

econômicos deverá manter os respectivos registros de acesso a aplicações de


internet, sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de 6 (seis)
meses, nos termos do regulamento.

Apresentadas as distinções entres as modalidades de provedores de


internet, ou seja, provedores de aplicação (como no caso da Google) e provedores
de conexão (Net Virtua, Brasil Telecom, GVT e operadoras de telefonia celular
como TIM, Claro e Vivo, entre outras), cumpre analisar a responsabilidade
atribuída a cada modalidade.
O tema já foi enfrentado pelo STJ, tendo a Corte bem delimitado a
responsabilização de cada provedor.
Consagrou a Corte, em síntese, que aos provedores de aplicação é exigida
a guarda dos dados de conexão (neles incluído o respectivo IP), enquanto aos
provedores de conexão cumpre a guarda de dados pessoais do usuário.
Nesse sentido:

No caso dos provedores de aplicação:


Civil e Processual Civil. Recurso especial. Ação de obrigação de fazer.
Fornecimento de dados pessoais. Qualificação e endereço. Impossibilidade. Registro
de acesso a aplicações. Marco Civil da Internet. Delimitação. Proteção à privacidade.
Restrição.
1. Ação ajuizada em 07/11/2016, recurso especial interposto em 07/11/2018 e
atribuído a este gabinete em 01/07/2019.
2. O propósito recursal consiste em determinar, nos termos do Marco Civil da
Internet, a qualidade das informações que devem ser guardadas e, por consequência,
fornecidas sob ordem judicial pelos provedores de aplicação. Em outras palavras,
quais dados estaria o provedor de aplicações de internet obrigado a fornecer.
3. Ainda que não exija os dados pessoais dos seus usuários, o provedor de
conteúdo, que registra o número de protocolo na internet (IP) dos computadores
utilizados para o cadastramento de cada conta, mantém um meio razoavelmente
eficiente de rastreamento dos seus usuários, medida de segurança que
corresponde à diligência média esperada dessa modalidade de provedor de
serviço de internet. Precedentes.
4. A jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça é consolidada no sentido de
- para adimplir sua obrigação de identificar usuários que eventualmente publiquem
conteúdos considerados ofensivos por terceiros - é suficiente o fornecimento do
número IP correspondente à publicação ofensiva indicada pela parte.
5. O Marco Civil da Internet tem como um de seus fundamentos a defesa
da privacidade e, assim, as informações armazenadas a título de registro de

670
Jurisprudência da QUARTA TURMA

acesso a aplicações devem estar restritas somente àquelas necessárias para


o funcionamento da aplicação e para a identificação do usuário por meio do
número IP.
6. Recurso especial conhecido e provido.
(REsp 1.829.821/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em
25/08/2020, DJe 31/08/2020)

No caso dos provedores de conexão ou de acesso:

Recurso especial. Internet. Obrigação de fazer. Provedor de acesso. Usuários.


Identificação. Dever. Guarda dos dados. Obrigação. Prazo. Dever de armazenamento.
Possibilidade fática e jurídica do pedido. Multa diária. Cabimento.
[...]
2. O propósito recursal consiste na verificação da obrigatoriedade
da apresentação de informações relativas ao número IP o qual acessou
sem autorização a conta de e-mail da recorrida, apesar das alegações de
impossibilidade técnica da recorrente.
[...]
4. A jurisprudência do STJ está orientada no sentido de estabelecer um dever
jurídico dos provedores de acesso de armazenar dados cadastrais de seus usuários
durante o prazo de prescrição de eventual ação de reparação civil. Julgados desta
Corte Superior.
5. Descabimento da alegação de impossibilidade fática ou jurídica do fornecimento
de dados cadastrais a partir da identificação do IP, conforme precedentes do STJ.
6. Não subsiste a alegação de que o uso de IP dinâmico - consistente naquele
não atribuído privativamente a um único dispositivo - impediria a identificação
do seu usuário em determinado momento.
7. É possível a imposição de multa diária para o caso de descumprimento da
ordem, mesmo que seja para a apresentação de dados cadastrais.
8. Recurso especial não provido.
(REsp 1.785.092/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em
07/05/2019, DJe 09/05/2019)

Tal entendimento decorre, portanto, do “dever de guarda de registros


de acesso a aplicações de internet e o dever de escrituração reconhecido pela
jurisprudência brasileira”, sendo certo que, na evolução da jurisprudência desta
Corte, verifica-se a tônica da efetiva identificação do usuário nos casos em que a
lei autoriza a quebra de sigilo de dados pelos provedores de internet.

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 671


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Note-se:

Direito Civil. Obrigação de fazer e não fazer. Vídeos divulgados em site


de compartilhamento (Youtube). Contrafação a envolver a marca e material
publicitário dos autores. Ofensa à imagem e ao nome das partes. Dever de
retirada. Indicação de URL’s. Desnecessidade. Individualização precisa do
conteúdo do vídeo e do nome a ele atribuído. Multa. Reforma. Prazo para a
retirada dos vídeos (24 h). Manutenção.
1. Atualmente, saber qual o limite da responsabilidade dos provedores de
internet ganha extrema relevância, na medida em que, de forma rotineira,
noticiam-se violações à intimidade e à vida privada de pessoas e empresas,
julgamentos sumários e linchamentos públicos de inocentes, tudo praticado na
rede mundial de computadores e com danos substancialmente potencializados
em razão da natureza disseminadora do veículo. Os verdadeiros “apedrejamentos
virtuais” são tanto mais eficazes quanto o são confortáveis para quem os pratica:
o agressor pode recolher-se nos recônditos ambientes de sua vida privada, ao
mesmo tempo em que sua culpa é diluída no anonimato da massa de agressores
que replicam, frenética e instantaneamente, o mesmo comportamento hostil,
primitivo e covarde de seu idealizador, circunstância a revelar que o progresso
técnico-científico não traz consigo, necessariamente, uma evolução ética e
transformadora das consciências individuais. Certamente, os rituais de justiça
sumária e de linchamentos morais praticados por intermédio da internet são as
barbáries típicas do nosso tempo.
Nessa linha, não parece adequado que o Judiciário adote essa involução
humana, ética e social como um módico e inevitável preço a ser pago pela
evolução puramente tecnológica, figurando nesse cenário como mero
expectador.
2. Da leitura conjunta da inicial e do que ficou decidido nas instâncias de
origem, o presente recurso especial cinge-se à obrigação remanescente relativa
aos vídeos com o título difamante, tenham sido eles indicados precisamente
pelas autoras (com a menção das URL’s), ou não, mas desde que existentes no site,
com aquele preciso título, depois de o provedor ter sido formalmente notificado
de sua existência.
3. Por outro lado, há referência nos autos acerca de perícia já realizada na
qual se constatou a viabilidade técnica de controle dos vídeos no site youtube,
concluindo o perito judicial que apenas por questões de conveniência e
oportunidade o provedor não o realiza.
4. Com efeito, dada a moldura fática delineada, e diante da precisão do
conteúdo do vídeo indicado e da existência de perícia nos autos a sugerir a
possibilidade de busca pelo administrador do site, reafirma-se entendimento
segundo o qual o provedor de internet - administrador de redes sociais -, ainda
em sede de liminar, deve retirar informações difamantes a terceiros manifestadas

672
Jurisprudência da QUARTA TURMA

por seus usuários, independentemente da indicação precisa, pelo ofendido, das


páginas em que foram veiculadas as ofensas (URL’s).
5. A jurisprudência da Casa é firme em apregoar que a responsabilidade dos
provedores de internet, quanto a conteúdo ilícito veiculado em seus sites, envolve
também a indicação dos autores da informação (número de IP).
6. Multa cominatória reajustada para que incida somente a partir deste
julgamento, no valor de R$ 500,00 (quinhentos reais) por dia de descumprimento,
mantido o prazo de 24 (vinte e quatro) horas para a retirada dos vídeos difamantes.
7. Recurso especial parcialmente provido, apenas no tocante ao valor das
astreintes.
(REsp 1.306.157/SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado
em 17/12/2013, DJe 24/03/2014)

Recurso especial. Civil. Internet. Dever de guarda de registros de aplicação.


Prequestionamento. Ausente em parte. Fotos divulgadas ilicitamente. Numeros
IPs de usuários que acessaram perfil em rede social. Fornecimento. Possibilidade.
Indícios de ilicitude e utilidade da ordem judicial. Reexame de matéria fática. Prazo
de guarda. Termo a ser considerado. Decisão liminar de 1º grau de jurisdição.
1. Agravo de instrumento interposto em 22/08/2017, recurso especial
interposto em 07/02/2018 e atribuído a este gabinete em 05/06/2018.
2. O propósito consiste em determinar: (i) a possibilidade jurídica de obrigação
ao fornecimento de IPs e dados cadastrais solicitados, referentes aos usuários que
acessaram dado perfil de rede social num período tempo determinado; (ii) se, na
hipótese, há indício de ato ilícito suficiente para fundamentar a ordem judicial
de fornecimento de informações (art. 22, parágrafo único, I, do MCI); (iii) se, na
hipótese, há utilidade na ordem judicial para identificação de eventuais infratores
(art. 22, parágrafo único, II, do MCI); e (iv) se as informações requeridas na hipótese
estão dentro do prazo legal de obrigatoriedade de guarda pelos provedores de
aplicação (art. 15 do MCI).
3. A ausência de decisão acerca dos dispositivos legais indicados como
violados, não obstante a interposição de embargos de declaração, impede o
conhecimento do recurso especial.
4. Diante da obrigação legal de guarda de registros de acesso a aplicações de
internet e o dever de escrituração reconhecido por este STJ, não há como afastar a
possibilidade jurídica de obrigar os provedores de aplicação ao fornecimento da
informação em discussão - quais usuários acessaram um perfil na rede social num
período - por se tratar de mero desdobramento dessas obrigações.
5. Não está em discussão a possibilidade técnica ou fática de tal fornecimento
na hipótese em julgamento. Qualquer alegação nesse sentido, deve ser
devidamente comprovada no Juízo de origem, o que necessita de dilação
probatória e exame de matérias de fato, discussões que descabem a este STJ.

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 673


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

6. Rever o entendimento do Tribunal de origem acerca da presença de indícios


de ilicitude e sobre a utilidade da ordem judicial necessitaria, obrigatoriamente,
no reexame do acervo fático probatório, o que é vedado pela Súmula 7 do STJ.
7. O art. 15 do Marco Civil da Internet obriga a guarda dos registros de
aplicação apenas por 6 (seis) meses. Na hipótese, o termo a ser contabilizado é a
data de notificação da recorrente da decisão judicial de 1º grau de jurisdição que
determinou a entrega das informações requeridas pelos recorridos.
8. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, provido em parte.
(REsp n. 1.738.651/MS, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado
em 25/08/2020, DJe 28/08/2020)

Processual Civil. Recurso especial. Ação de obrigação de fazer. Internet.


Provedor de aplicação. Usuários. Identificação. Endereço IP. Porta lógica de
origem. Dever. Guarda dos dados. Obrigação. Marco Civil da Internet. Interpretação
teleológica.
[...]
2. Ação de obrigação de fazer cumulada com pedido de tutela antecipada,
na qual relata a recorrida que foi surpreendida com a informação de que suas
consultoras estariam recebendo e-mails com comunicado falso acerca de
descontos para pagamento de faturas devidas à empresa.
3. O propósito recursal consiste em definir a obrigatoriedade de guarda e
apresentação, por parte da provedora de aplicação de internet, dos dados
relacionados à porta lógica de origem associadas aos endereços IPs.
4. Os endereços IPs são essenciais arquitetura da internet, que permite a bilhões
de pessoas e dispositivos se conectarem à rede, permitindo que trocas de volumes
gigantescos de dados sejam operadas com sucesso.
5. A versão 4 dos endereços IPs (IPv4) esgotou sua capacidade e, atualmente,
há a transição para a versão seguinte (IPv6). Nessa transição, adotou-se o
compartilhamento de IP, via porta lógica de origem, como solução temporária.
6. Apenas com as informações dos provedores de conexão e de aplicação quanto
à porta lógica de origem é possível resolver a questão da identidade de usuários na
internet, que estejam utilizam um compartilhamento da versão 4 do IP.
7. O Marco Civil da Internet dispõe sobre a guarda e fornecimento de dados
de conexão e de acesso à aplicação em observância aos direitos de intimidade e
privacidade.
8. Pelo cotejamento dos diversos dispositivos do Marco Civil da Internet
mencionados acima, em especial o art. 10, caput e § 1º, percebe-se que é inegável a
existência do dever de guarda e fornecimento das informações relacionadas à porta
lógica de origem.

674
Jurisprudência da QUARTA TURMA

9. Apenas com a porta lógica de origem é possível fazer restabelecer a


univocidade dos números IP na internet e, assim, é dado essencial para o correto
funcionamento da rede e de seus agentes operando sobre ela. Portanto, sua
guarda é fundamental para a preservação de possíveis interesses legítimos a serem
protegidos em lides judiciais ou em investigações criminais.
10. Recurso especial não provido.
(REsp 1.777.769/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em
05/11/2019, DJe 08/11/2019)

4. No caso em análise, as instâncias ordinárias, conforme consignado,


negaram o pedido para expedição de ofício às empresas provedoras de conexão,
com esteio nos argumentos que podem ser assim sintetizados: 1) a intervenção
judicial é desnecessária para a identificação dos provedores de conexão, sendo a
identificação do IP “medida adequada e suficiente para a busca dos causadores
do dano; 2) que a quebra do sigilo de dados telefônicos e de identificação dos
usuários deve ocorrer por meio de procedimento criminal; 3) impossibilidade de
condenação fora do que foi pedido; 4) impossibilidade de impor condenação a
terceiro que não integrou a lide.
Nessa esteira, tomando como base o que dispõem os arts. 10, § 1º, e 22
da Lei n. 12.956/2014, tenho que o acórdão recorrido, observada sempre a
máxima vênia, ao tempo que contrariou a legislação de regência, afastou-se da
jurisprudência mais recente da Corte sobre o tema.
4.1. Com efeito, é entendimento pacífico da Corte, nos termos do art.
22 do Marco Civil da Internet, a necessidade da intervenção judicial, diante de
indícios de ilicitude, para obtenção de dados protegidos pelo sigilo, como forma
de instruir processos cíveis e criminais.
Nesse sentido, o já referido REsp n. 1.738.651/MS:

Recurso especial. Civil. Internet. Dever de guarda de registros de aplicação.


Prequestionamento. Ausente em parte. Fotos divulgadas ilicitamente. Numeros
IPs de usuários que acessaram perfil em rede social. Fornecimento. Possibilidade.
Indícios de ilicitude e utilidade da ordem judicial. Reexame de matéria fática. Prazo
de guarda. Termo a ser considerado. Decisão liminar de 1º grau de jurisdição.
1. Agravo de instrumento interposto em 22/08/2017, recurso especial
interposto em 07/02/2018 e atribuído a este gabinete em 05/06/2018.
2. O propósito consiste em determinar: (i) a possibilidade jurídica de obrigação
ao fornecimento de IPs e dados cadastrais solicitados, referentes aos usuários que
acessaram dado perfil de rede social num período tempo determinado; (ii) se, na

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 675


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

hipótese, há indício de ato ilícito suficiente para fundamentar a ordem judicial


de fornecimento de informações (art. 22, parágrafo único, I, do MCI); (iii) se, na
hipótese, há utilidade na ordem judicial para identificação de eventuais infratores
(art. 22, parágrafo único, II, do MCI); e (iv) se as informações requeridas na hipótese
estão dentro do prazo legal de obrigatoriedade de guarda pelos provedores de
aplicação (art. 15 do MCI).
3. A ausência de decisão acerca dos dispositivos legais indicados como
violados, não obstante a interposição de embargos de declaração, impede o
conhecimento do recurso especial.
4. Diante da obrigação legal de guarda de registros de acesso a aplicações de
internet e o dever de escrituração reconhecido por este STJ, não há como afastar a
possibilidade jurídica de obrigar os provedores de aplicação ao fornecimento da
informação em discussão - quais usuários acessaram um perfil na rede social num
período - por se tratar de mero desdobramento dessas obrigações.
5. Não está em discussão a possibilidade técnica ou fática de tal fornecimento
na hipótese em julgamento. Qualquer alegação nesse sentido, deve ser
devidamente comprovada no Juízo de origem, o que necessita de dilação
probatória e exame de matérias de fato, discussões que descabem a este STJ.
6. Rever o entendimento do Tribunal de origem acerca da presença de indícios
de ilicitude e sobre a utilidade da ordem judicial necessitaria, obrigatoriamente,
no reexame do acervo fático probatório, o que é vedado pela Súmula 7 do STJ.
7. O art. 15 do Marco Civil da Internet obriga a guarda dos registros de
aplicação apenas por 6 (seis) meses. Na hipótese, o termo a ser contabilizado é a
data de notificação da recorrente da decisão judicial de 1º grau de jurisdição que
determinou a entrega das informações requeridas pelos recorridos.
8. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, provido em parte.
(REsp n. 1.738.651/MS, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado
em 25/08/2020, DJe 28/08/2020)

Nesse ponto, vale aqui destacar que a alegação da possibilidade (fática) da


obtenção dos dados do usuário pela própria vítima não se sustenta, tendo em
vista que a mera indicação dos provedores de conexão, como sabido, não é apta a
identificar o usuário respectivo.
4.2. Do mesmo modo, não há falar-se na obtenção de dados exclusivamente
no âmbito de procedimento criminal, conforme a previsão expressa do art.
22 do Marco Civil da Internet, sobretudo considerando que não se trata aqui
da proteção do fluxo de comunicações, disciplinada com os rigores necessários da Lei
n. 9.296/1996 (RMS n. 61.302/RJ, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz,
Terceira Seção, julgado em 26/08/2020, DJe 04/09/2020).

676
Jurisprudência da QUARTA TURMA

Neste ponto, confira-se o recentíssimo entendimento firmado por esta Quarta


Turma por ocasião do julgamento do REsp n.1.859.665/SC, cuja relatoria me
coube:

[...]
5. Nos termos da Lei n. 12.965/2014 (art. 22), a parte interessada poderá pleitear
ao juízo, com o propósito de formar conjunto probatório em processo judicial
cível ou penal, em caráter incidental ou autônomo, que ordene ao responsável
pela guarda o fornecimento de registros de conexão ou de registros de acesso
a aplicações de internet. Para tanto, sob pena de admissibilidade, exige a norma
que haja: I - fundados indícios da ocorrência do ilícito; II - justificativa motivada
da utilidade dos registros solicitados para fins de investigação ou instrução
probatória; e III - período ao qual se referem os registros (parágrafo único).
(REsp 1.859.665/SC, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado
em 09/03/2021, DJe 20/04/2021)

4.3. Terceiro ponto refere-se ao fundamento adotado pelo acórdão quanto


à inobservância aos limites objetivos da lide.
Conforme descrito, foi formulado pedido expresso para que a empresa ré
fornecesse a identificação dos IPs e dos usuários responsáveis pela veiculação dos
vídeos (item 6 da inicial - 6. que seja obrigada a fornecer a identificação dos IPs
e dos usuários, para futuras ações de reparação civil e criminal).
Vale ressaltar que, a despeito de qualquer discussão quanto ao cabimento
ou à possibilidade técnica na identificação dos usuários no caso concreto,
o pedido de identificação dos usuários foi formulado, encontrando-se em
consonância com a causa de pedir declinada na peça inaugural.
Por outro lado, as recorrentes, após a decisão liminar, requereram, como
forma de conferir efetividade ao pedido de identificação dos usuários, que a
empresa ré apresentasse os provedores de conexão (como, por exemplo, TIM,
NET, GVT, etc.), vinculados aos IPs por elas fornecidos.
Note-se (fl. 330):

que após o conhecimento do provedores de conexão dos IPs, requer a quebra


do sigilo de dados desses usuários, e que o provedor de conexão seja oficiado por
este juízo para fornecer os dados pessoais disponíveis em seu sistema, como nome
completo, RG, CPF, endereço físico, e demais dados que tenha disponível, capaz
de identificar, efetivamente, os usuários das publicações indicadas na exordial.

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 677


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Nesse sentido, seja por qual ângulo se analise, não há falar-se em


infringência aos limites objetivos da lide.
Ademais, vale ressaltar que a jurisprudência assente da Corte, há muito,
consigna que é permitido ao magistrado extrair a interpretação lógico-
sistemática da peça inicial, o que se pretende obter com a demanda.
Confiram-se:

Agravo regimental. Agravo regimental. Recurso especial. Responsabilidade


civil. Termo final de pensionamento. Adstrição aos limites do pedido. Pedido
implícito.
1. “Não ocorre julgamento extra ou ultra petita na hipótese em que o tribunal
reconhece os pedidos implicitamente formulados na inicial.
O princípio de que os pedidos são interpretados restritivamente não impede
que os implícitos sejam conhecidos” (REsp 222.644/RS, Rel. Min. Antônio de Pádua
Ribeiro, DJ 13.06.2005).
2. Tendo o julgador respeitado os limites da causa, não há que se falar em
julgamento ultra petita.
3. Agravo regimental a que se nega provimento.
(AgRg no AgRg no REsp 805.422/DF, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta
Turma, julgado em 20/09/2012, DJe 05/10/2012)

Agravo regimental no recurso especial. Administrativo. Diploma expedido por


universidade estrangeira. Revalidação. Violação do art. 535 do CPC. Alegações
genéricas. Súmul) 284/STF. Acórdão com fundamento nas Resoluções n. 01/2001
e 01/2002 - CNE/CES. Análise da via do especial. Impossibilidade. Julgamento
extra petita. Não ocorrência.
[...] 3. Para que se verifique ofensa ao princípio da congruência, encartado nos
artigos 2º, 128, 459, 460 e 512, do Código de Processo Civil, é necessário que a
decisão ultrapasse o limite dos pedidos deduzidos no processo, extrapolando-se
os pleitos da exordial, o que definitivamente não ocorreu no caso vertente.
4. A jurisprudência desta Corte Superior é assente no sentido de que o
julgamento pelo Tribunal de origem não se restringe ao que está expresso no
capítulo referente aos pedidos, sendo-lhe permitido extrair da interpretação
lógico-sistemática da peça inicial que se pretende obter com a demanda, o que
abrange, evidentemente, o pagamento das diferenças salariais decorrentes do
desvio de função.
5. Agravo regimental não provido.
(AgRg no REsp 1.253.140/SC, Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma,
julgado em 16/02/2012, DJe 05/03/2012)

678
Jurisprudência da QUARTA TURMA

Recurso especial. Processo Civil e Civil. Cumulação de pedidos. Rito ordinário.


Art. 292 CPC. Venda de imóveis simulada. Informação falsa. Desembaraço dos
bens. Má-fé configurada. Hipoteca em prol da recorrente. Empréstimo irregular
a terceiros. Perdas e danos. Ressarcimento integral. Vício extra petita. Inovação da
tese recursal. Preclusão. Observância do princípio da congruência.
Decadência e prescrição. Fenômenos distintos. Reexame de cláusulas
contratuais e de matéria fático-probatória. Inviabilidade. Conduta danosa.
Súmulas n. 5 e 7/STJ. Incidência das Súmulas n. 283 e 284/STF.
[...] 3. Inovação recursal quanto à alegação de julgamento extra petita no que
tange à extensão do pedido de perdas e danos.
4. No caso, tanto a sentença como o acórdão guardam inteira correlação com
o pleito autoral de ressarcimento integral dos prejuízos sofridos, à luz do princípio
da congruência (arts. 128 e 460 do CPC), a partir da interpretação sistemática do
pedido, examinado dentro dos limites da lide.
5. O reconhecimento da decadência do direito de anulação das escrituras
particulares de compra e venda de imóveis não interfere no direito pessoal de
indenização por perdas e danos decorrente da conduta culposa da recorrente,
porquanto relações de natureza distintas.
[...] 8. Recurso Especial não provido.
(REsp 647.456/SP, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma,
julgado em 16/04/2013, DJe 25/04/2013)

No caso concreto, é bem de ver que os pedidos formulados pela recorrente


traduzem, com rigor, a finalidade do provimento judicial, qual seja, a preservação
da honra e memória da falecida, mediante a retirada de vídeos ou matérias
ofensivas do ar, bem como a obtenção de dados para futura (e eventual)
responsabilização pessoal dos usuários responsáveis pelas divulgações injuriosas
e inverídicas, circunstâncias que se encontram demonstradas pelas razões
apresentadas na petição inicial.
Assim, os pedidos evidenciam pretensão amparada pelo Marco Civil da
Internet, nos exatos termos do art. 22 da legislação aplicável.
A propósito, vale destacar que o caso em análise não se confunde com a
solução dada pela Quarta Turma no já referido REsp n. 1.859.665/SC.
Por certo, no julgamento do recurso supracitado, indeferiu-se o
requerimento formulado contra o Facebook para que o provedor de conteúdo
identificasse, de maneira indiscriminada, todos os usuários responsáveis
pelo compartilhamento do vídeo de conteúdo ilícito – e não apenas aqueles
responsáveis pela inclusão da mídia na internet.

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 679


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

No caso descrito, portanto, diferentemente do que ora se analisa, concluiu-


se pela impossibilidade da quebra do sigilo de dados de maneira genérica e dissociada
de elementos indiciários mínimos da existência de ilícitos civis ou penais.
Confira-se:

Recurso especial. Obrigação de fazer c/c exibição de documentos. Postagem


de vídeo contendo informações alegadamente falsas, prejudiciais à imagem da
sociedade empresária autora, em rede social. Quebra do sigilo de todos os usuários
que compartilharam o conteúdo potencialmente difamatório na plataforma do
Facebook. Impossibilidade. Pleito sem exposição de fundadas razões para a quebra.
Marco Civil da Internet (Lei n. 12.965/2014, art. 22). Preservação da privacidade e do
direito ao sigilo de dados.
1. O Marco Civil da Internet (Lei n. 12.965/2014) estabelece que, na provisão
de conexão à internet, cabe ao administrador de sistema autônomo respectivo
o dever de manter os registros de conexão sob sigilo, em ambiente controlado
e de segurança, pelo prazo de 1 ano, nos termos do regulamento (art. 13); e o
provedor de aplicações de internet, custodiar os respectivos registros de acesso a
aplicações de internet pelo prazo de 6 meses (art. 15).
2. O propósito da norma foi criar instrumental que consiga, por autoridade
constituída e precedida de autorização judicial, acessar os registros de conexão,
rastreando e sancionando eventuais condutas ilícitas perpetradas por usuários da
internet e inibindo, de alguma forma, a falsa noção de anonimato no uso das redes.
Por outro lado, a Lei n. 12.965/2014 possui viés hermenêutico voltado ao zelo pela
preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem do usuário (art.
23), com a previsão de cláusula de reserva judicial para qualquer quebra de sigilo.
3. Portanto, se é certo afirmar que o usuário das redes sociais pode livremente
reivindicar seu direito fundamental de expressão, também é correto sustentar que a
sua liberdade encontrará limites nos direitos da personalidade de outrem, sob pena
de abuso em sua autonomia, já que nenhum direito é absoluto, por maior que seja
a sua posição de preferência, especialmente se tratar-se de danos a outros direitos
de elevada importância.
4. No caso, a autora requereu a suspensão imediata do vídeo disponibilizado
em redes sociais no qual um homem, anonimamente, afirmava ter comprado
um lanche que estaria contaminado com larvas nas dependências da sua
empresa, não sendo tal notícia verdadeira, já que a refeição jamais fora adquirida
no estabelecimento da requerente, que, em razão disso, foi afetada em seus
negócios e em sua imagem. Além disso, requereu fosse a empresa de rede social
obrigada a fornecer o IP de todos os responsáveis pelo compartilhamento do
vídeo difamador.
5. Nos termos da Lei n. 12.965/2014 (art. 22), a parte interessada poderá pleitear
ao juízo, com o propósito de formar conjunto probatório em processo judicial

680
Jurisprudência da QUARTA TURMA

cível ou penal, em caráter incidental ou autônomo, que ordene ao responsável


pela guarda o fornecimento de registros de conexão ou de registros de acesso
a aplicações de internet. Para tanto, sob pena de admissibilidade, exige a norma
que haja: I - fundados indícios da ocorrência do ilícito; II - justificativa motivada
da utilidade dos registros solicitados para fins de investigação ou instrução
probatória; e III - período ao qual se referem os registros (parágrafo único).
6. É vedado ao provedor de aplicações de internet - em pedido genérico e coletivo,
sem a especificação mínima de uma conduta ilícita realizada - fornecer dados,
de forma indiscriminada, dos usuários que tenham compartilhado determinada
postagem.
7. Na espécie, a recorrida não trouxe nenhum elemento, nem sequer descreveu
indícios de ilicitude da conduta dos usuários que, por qualquer motivo, acabaram
por apenas compartilhar o vídeo com conteúdo difamador, limitando-se a
identificar a página do autor da postagem e de um ex-funcionário que também
teria publicado o vídeo em seu perfil.
8. Assim, sopesados os direitos envolvidos e o risco potencial de violação de cada
um deles, deve prevalecer a privacidade dos usuários. Não se pode subjugar o
direito à privacidade a ponto de permitir a quebra indiscriminada do sigilo dos
registros, com informações de foro íntimo dos usuários, tão somente pelo fato de
terem compartilhado determinado vídeo que, depois se soube, era falso.
9. Recurso especial provido.
(REsp 1.859.665/SC, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado
em 09/03/2021, DJe 20/04/2021)

No caso ora em debate, portanto, estando presentes indícios de ilicitude na


conduta dos usuários que inseriram os vídeos na rede mundial de computadores
e, ainda, por ser o pedido específico, voltado tão só a obtenção dos dados dos
referidos usuários – com base nos IPs já apresentados –, penso que a privacidade
do usuário, no caso concreto, não prevalece.
É bem de ver que esta Corte já se deparou com o tema envolvendo os
“apedrejamentos virtuais”, hoje mais conhecidos como “fake news” ou discursos
de ódio, destacando, na oportunidade, a importância da atuação enérgica do
Poder Judiciário para coibir referidas condutas.
A propósito:

Direito Civil. Obrigação de fazer e não fazer. Vídeos divulgados em site


de compartilhamento (Youtube). Contrafação a envolver a marca e material
publicitário dos autores. Ofensa à imagem e ao nome das partes. Dever de
retirada. Indicação de URL’s. Desnecessidade. Individualização precisa do

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 681


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

conteúdo do vídeo e do nome a ele atribuído. Multa. Reforma. Prazo para a


retirada dos vídeos (24 h). Manutenção.
1. Atualmente, saber qual o limite da responsabilidade dos provedores de
internet ganha extrema relevância, na medida em que, de forma rotineira, noticiam-
se violações à intimidade e à vida privada de pessoas e empresas, julgamentos
sumários e linchamentos públicos de inocentes, tudo praticado na rede mundial de
computadores e com danos substancialmente potencializados em razão da natureza
disseminadora do veículo. Os verdadeiros “apedrejamentos virtuais” são tanto mais
eficazes quanto o são confortáveis para quem os pratica: o agressor pode recolher-
se nos recônditos ambientes de sua vida privada, ao mesmo tempo em que sua
culpa é diluída no anonimato da massa de agressores que replicam, frenética e
instantaneamente, o mesmo comportamento hostil, primitivo e covarde de seu
idealizador, circunstância a revelar que o progresso técnico-científico não traz
consigo, necessariamente, uma evolução ética e transformadora das consciências
individuais. Certamente, os rituais de justiça sumária e de linchamentos morais
praticados por intermédio da internet são as barbáries típicas do nosso tempo.
Nessa linha, não parece adequado que o Judiciário adote essa involução humana,
ética e social como um módico e inevitável preço a ser pago pela evolução puramente
tecnológica, figurando nesse cenário como mero expectador.
2. Da leitura conjunta da inicial e do que ficou decidido nas instâncias de
origem, o presente recurso especial cinge-se à obrigação remanescente relativa
aos vídeos com o título difamante, tenham sido eles indicados precisamente
pelas autoras (com a menção das URL’s), ou não, mas desde que existentes no site,
com aquele preciso título, depois de o provedor ter sido formalmente notificado
de sua existência.
3. Por outro lado, há referência nos autos acerca de perícia já realizada na
qual se constatou a viabilidade técnica de controle dos vídeos no site youtube,
concluindo o perito judicial que apenas por questões de conveniência e
oportunidade o provedor não o realiza.
[...]
5. A jurisprudência da Casa é firme em apregoar que a responsabilidade dos
provedores de internet, quanto a conteúdo ilícito veiculado em seus sites, envolve
também a indicação dos autores da informação (número de IP).
6. Multa cominatória reajustada para que incida somente a partir deste
julgamento, no valor de R$ 500,00 (quinhentos reais) por dia de descumprimento,
mantido o prazo de 24 (vinte e quatro) horas para a retirada dos vídeos difamantes.
7. Recurso especial parcialmente provido, apenas no tocante ao valor das
astreintes.
(REsp 1.306.157/SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado
em 17/12/2013, DJe 24/03/2014)

682
Jurisprudência da QUARTA TURMA

4.4. Por fim, não há falar aqui em condenação de terceiro.


A situação dos autos, segundo penso, refere-se à hipótese de deveres
impostos a terceiros a fim de auxiliar o cumprimento de ordens judiciais, na
forma dos arts. 77 e 139 do CPC.
A propósito, confira-se:

Art. 77. Além de outros previstos neste Código, são deveres das partes, de seus
procuradores e de todos aqueles que de qualquer forma participem do processo:
[...]
IV - cumprir com exatidão as decisões jurisdicionais, de natureza provisória ou
final, e não criar embaraços à sua efetivação;
[...]
Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código,
incumbindo-lhe:
[...]
IV - determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-
rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas
ações que tenham por objeto prestação pecuniária;

Sobre o tema, em situação específica envolvendo a imposição de astreintes


a terceiros que não tenham participado da relação processual, preconiza a
doutrina especializada:

Questão importante para a compreensão dogmática dos comandos normativos é


a seguinte: as medidas executivas apenas podem ser impostas ao executado?
Pensamos que não. O terceiro e o próprio demandante também podem ser
destinatários dessas medidas.
O inciso IV do art. 77 do CPC determina que é dever de todos quantos participam
do processo - o que inclui os terceiros destinatários de ordens judiciais - ‘cumprir
com exatidão as decisões jurisdicionais, de natureza provisória ou final, e não
criar embaraços à sua efetivação’. A opção normativa é clara: quem quer que de
algum modo intervenha no processo - o que inclui o processo de execução - deve
submeter-se aos comandos judiciais, cumprindo-os, quando lhe forem dirigidos,
ou não atrapalhando o seu cumprimento.
Se todos aqueles que, mesmo não sendo partes ou seus procuradores,
participam de qualquer forma do processo (art. 77, caput, CPC) tem o dever
de cumprir com exatidão as decisões jurisdicionais (art. 77, IV, CPC), então é
possível que o juiz lhes imponha medida executiva com o objetivo ver cumprida
uma ordem sua. Tais disposições consistem, na verdade, em concretizações dos

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princípios da boa-fé processual (art. 5º, CPC) e da cooperação (art. 6º, CPC). Não
haveria coerência normativa em pensar que essas pessoas podem ser punidas por
eventual descumprimento de ordem judicial (com a multa por contempt of court,
por exemplo), mas não podem ser compelidas ao cumprimento dessa mesma
ordem.
Daí que é possível, por exemplo, a fixação de multa para cumprimento de decisão
que imponha a terceiro, administrador de cadastro de proteção de crédito, a exclusão
do nome da parte. O administrador do cadastro não precisa ser réu no processo para
ser destinatário da ordem - e, portanto, para ser compelido a cumpri-la.
Além disso, o magistrado, no exercício do seu poder geral de efetivação, pode
impor prestação de fazer, não fazer ou dar coisa distinta de dinheiro ao ente
público e determinar medidas executivas diretamente ao agente público (pessoa
natural) responsável por tomar a providência necessária ao cumprimento da
prestação imposta.”
(DIDIER JR. Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; BRAGA, Paula Sarno;
OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Direito processual civil: Execução. 7ª ed. Salvador:
JusPodivm, 2017, p. 109).

Por sua vez, a jurisprudência da Corte, nesse ponto, admite inclusive


aplicação de multa a terceiros por descumprimento de ordem judicial.
Veja-se:

Recurso em mandado de segurança. Quebra de sigilo telemático. Legalidade e


valor da multa. Decadência. Aplicação da multa por descumprimento de decisão
judicial para terceiros fornecer informações. Possibilidade. Recurso desprovido.
[...]
2. A jurisprudência deste Sodalício admite a aplicação de multa em decorrência
do descumprimento de ordem judicial para terceiro fornecer informações referentes
à movimentação da conta de usuários de rede social, ou qualquer outro aplicativo
de internet, mesmo que os dados fiquem armazenados em computadores
localizados no exterior.
Recurso em mandado de segurança desprovido. (RMS 53.757/RS, Rel. Ministro
Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 18/10/2018, DJe 05/11/2018)

Tais delineamentos, embora decorrentes de situação concreta diversa,


evidenciam hipótese de exteriorização dos poderes implícitos decorrentes do
poder geral de cautela assegurado a todo magistrado, com a finalidade única de
entregar provimento judicial adequado e efetivo ao que se requer.
Quanto à atuação dos sujeitos do processo em tais circunstâncias, vale
destacar relevante entendimento exarado pela Terceira Turma:

684
Jurisprudência da QUARTA TURMA

Recurso especial. Ação de obrigação de fazer com pedido de reparação por


danos morais. Conteúdo ofensivo na internet. Responsabilidade subjetiva do
provedor. Omissão do acórdão recorrido. Inexistência. Suficiente identificação da
URL do conteúdo ofensivo. Indenização por danos morais. Cabimento. Redução
do valor da multa pelo descumprimento de ordem judicial. Possibilidade no caso
concreto. Recurso especial parcialmente provido.
[...]
2. A exigência de indicação precisa da URL tem por finalidade a identificação
do conteúdo que se pretende excluir, de modo a assegurar a liberdade de
expressão e impedir censura prévia por parte do provedor de aplicações de
internet. Todavia, nas hipóteses em que for flagrante a ilegalidade da publicação,
com potencial de causar sérios gravames de ordem pessoal, social e profissional
à imagem do autor, a atuação dos sujeitos envolvidos no processo (juiz, autor e réu)
deve ocorrer de maneira célere, efetiva e colaborativa, mediante a conjunção de
esforços que busque atenuar, ao máximo e no menor decurso de tempo, os efeitos
danosos do material apontado como infringente.
3. Na espécie, sob essa perspectiva, verifica-se que a indicação das URLs, na
petição inicial, assim como a ordem judicial deferida em antecipação dos efeitos
da tutela continham elementos suficientes à exclusão do conteúdo difamatório da
rede virtual, não havendo se falar, portanto, em retirada indiscriminada, a pretexto
de que o seu conteúdo pudesse ser do interesse de terceiros. Diversamente,
ficou configurado o descumprimento de determinação expressa, a ensejar a
responsabilização da empresa ré por sua conduta omissiva.
[...]
5. O total fixado a título de astreintes somente poderá ser objeto de redução se
fixada a multa diária em valor desproporcional e não razoável à própria prestação
que ela objetiva compelir o devedor a cumprir; nunca em razão do simples valor
integral da dívida, mera decorrência da demora e inércia do próprio devedor.
Precedentes.
6. Recurso especial desprovido.
(REsp 1.738.628/SE, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado
em 19/02/2019, REPDJe 26/02/2019, DJe 25/02/2019)

Por outro lado, no caso específico em debate, a jurisprudência da Casa é


firme em apregoar que a responsabilidade dos provedores de internet quanto a
conteúdo ilícito veiculado em seus sites envolve também a indicação dos autores
da informação.
No que diz respeito ao dever jurídico em si de prestar informações sobre
a identidade de usuário de serviço de internet, ofensor de direito alheio, o

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 685


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

entendimento mais recente da Corte reconhece a obrigação do provedor de


acesso à internet de, uma vez instado pelo Poder Judiciário, fornecer, com base
no endereço de IP (“Internet Protocol”), os dados cadastrais de usuário autor
de ato ilícito, ainda que em data anterior à Lei n. 12.965/2014 (Marco Civil da
Internet):

Recurso especial. Civil e Processual Civil (CPC/1973). Internet. Demanda


anterior ao Marco Civil (Lei n. 12.965/2014). Ação cominatória. Obrigação de fazer.
Fornecimento de dados cadastrais de usuário de provedor de acesso. Dever de
armazenamento. Possibilidade fática e jurídica do pedido. Julgados desta Corte
Superior. Cominação de multa diária. Cabimento.
1. Controvérsia acerca da obrigação de empresa de acesso à internet fornecer,
a partir do endereço de IP (“Internet Protocol”), os dados cadastrais de usuário
autor de ato ilícito, em data anterior à Lei n. 12.965/2014 (Marco Civil da Internet).
2. Reconhecimento pela jurisprudência de um dever jurídico dos provedores de
acesso de armazenar dados cadastrais de seus usuários durante o prazo de prescrição
de eventual ação de reparação civil. Julgados desta Corte Superior.
3. Descabimento da alegação de impossibilidade fática ou jurídica do
fornecimento de dados cadastrais a partir da identificação do IP. Julgados desta
Corte Superior.
4. Considerações específicas acerca da aplicabilidade dessa orientação ao
IP dinâmico consistente naquele não atribuído privativamente a um único
dispositivo (IP fixo), mas compartilhado por diversos usuários do provedor de
acesso.
5. Cabimento da aplicação de astreintes para o caso de descumprimento da
ordem. Julgado específico desta Corte.
6. Incidência do óbice da Sumula 284/STF no que tange à alegação de ausência
de culpa ou dolo.
7. Recurso especial desprovido.
(REsp 1.622.483/SP, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma,
julgado em 15.05.2018, DJe 18.05.2018)

Recurso especial. Ação cautelar inominada ajuizada em face de provedor de


acesso a internet. Ordem judicial para fornecimento de dados visando à identificação
de usuário (terceiro), de modo a viabilizar futura ação indenizatória. Fixação de multa
diária. Súmula 372/STJ. Inaplicabilidade.
[...]
3. Na hipótese dos autos, verifica-se que a pretensão cautelar reside no
fornecimento de dados para identificação de suposto ofensor da imagem da

686
Jurisprudência da QUARTA TURMA

sociedade de economia federal e de seus dirigentes. Assim, evidencia-se a


preponderância da obrigação de fazer, consistente no ato de identificação do
usuário do serviço de internet.
4. Tal obrigação, certificada mediante decisão judicial, não se confunde com a
pretensão cautelar de exibição de documento, a qual era regulada pelo artigo 844
do CPC de 1973. Isso porque os autores da cautelar inominada não buscaram a
exibição de um documento específico, mas, sim, o fornecimento de informações
aptas a identificação do tomador do serviço prestado pela requerida, sendo certo
que, desde 2009, já havia recomendação do Comitê Gestor de Internet no Brasil no
sentido de que os provedores de acesso mantivessem, por um prazo mínimo de três
anos, os dados de conexão e comunicação realizadas por meio de seus equipamentos.
5. Além do mais, as sanções processuais aplicáveis à recusa de exibição de
documento - presunção de veracidade dos fatos alegados pelo autor e busca
e apreensão (artigos 359 e 362 do CPC de 1973) -, revelam-se evidentemente
inócuas na espécie. É que os fatos narrados na inicial - a serem oportunamente
examinados em ação própria - dizem respeito a terceiro (o usuário a ser
identificado pela requerida), inexistindo, outrossim, documento a ser objeto
de busca e apreensão, pois o fornecimento das informações pleiteadas pelas
supostas vítimas reclama, tão somente, pesquisa no sistema informatizado da ré.
6. As citadas peculiaridades, extraídas do caso concreto, constituem
distinguishing apto a afastar a incidência do entendimento plasmado na
Súmula 372/STJ (“na ação de exibição de documentos, não cabe a aplicação de
multa cominatória”) e reafirmado no Recurso Especial repetitivo 1.333.988/SP
(“descabimento de multa cominatória na exibição, incidental ou autônoma, de
documento relativo a direito disponível”).
7. Recurso especial não provido.
(REsp 1.560.976/RJ, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado
em 30/05/2019, DJe 01/07/2019)

Recurso em mandado de segurança. Direito à privacidade e à intimidade.


Identificação de usuários em determinada localização geográfica. Imposição que
não indica pessoa individualizada. Ausência de ilegalidade ou de violação dos
princípios e garantias constitucionais. Fundamentação da medida. Ocorrência.
Proporcionalidade. Recurso em mandado de segurança não provido.
[...]
2. Mesmo com tal característica, o direito ao sigilo não possui, na compreensão
da jurisprudência pátria, dimensão absoluta. De fato, embora deva ser preservado
na sua essência, este Superior Tribunal de Justiça, assim como a Suprema Corte,
entende que é possível afastar sua proteção quando presentes circunstâncias
que denotem a existência de interesse público relevante, invariavelmente por
meio de decisão proferida por autoridade judicial competente, suficientemente

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 687


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

fundamentada, na qual se justifique a necessidade da medida para fins de


investigação criminal ou de instrução processual criminal, sempre lastreada em
indícios que devem ser, em tese, suficientes à configuração de suposta ocorrência
de crime sujeito à ação penal pública.
3. Na espécie, a ordem judicial direcionou-se a dados estáticos (registros),
relacionados à identificação de usuários em determinada localização geográfica
que, de alguma forma, possam ter algum ponto em comum com os fatos objeto
de investigação por crimes de homicídio.
4. A determinação do Magistrado de primeiro grau, de quebra de dados
informáticos estáticos, relativos a arquivos digitais de registros de conexão ou
acesso a aplicações de internet e eventuais dados pessoais a eles vinculados, é
absolutamente distinta daquela que ocorre com as interceptações das comunicações,
as quais dão acesso ao fluxo de comunicações de dados, isto é, ao conhecimento
do conteúdo da comunicação travada com o seu destinatário. Há uma distinção
conceitual entre a quebra de sigilo de dados armazenados e a interceptação do fluxo
de comunicações. Decerto que o art. 5º, X, da CF/88 garante a inviolabilidade da
intimidade e da privacidade, inclusive quando os dados informáticos constarem
de banco de dados ou de arquivos virtuais mais sensíveis. Entretanto, o acesso a
esses dados registrados ou arquivos virtuais não se confunde com a interceptação
das comunicações e, por isso mesmo, a amplitude de proteção não pode ser a mesma.
5. Os dispositivos que se referem às interceptações das comunicações
indicados pelos recorrentes não se ajustam ao caso sub examine. O procedimento
de que trata o art. 2º da Lei n. 9.296/1996, cujas rotinas estão previstas na
Resolução n. 59/2008 (com alterações ocorridas em 2016) do CNJ, os quais
regulamentam o art. 5º, XII, da CF, não se aplicam a procedimento que visa a
obter dados pessoais estáticos armazenados em seus servidores e sistemas
informatizados de um provedor de serviços de internet. A quebra do sigilo de
dados, na hipótese, corresponde à obtenção de registros informáticos existentes
ou dados já coletados.
6. Não há como pretender dar uma interpretação extensiva aos referidos
dispositivos, de modo a abranger a requisição feita em primeiro grau, porque a
ordem é dirigida a um provedor de serviço de conexão ou aplicações de internet,
cuja relação é devidamente prevista no Marco Civil da Internet, o qual não impõe,
entre os requisitos para a quebra do sigilo, que a ordem judicial especifique
previamente as pessoas objeto da investigação ou que a prova da infração (ou da
autoria) possa ser realizada por outros meios.
7. Os arts. 22 e 23 do Marco Civil da Internet, que tratam especificamente do
procedimento de que cuidam os autos, não exigem a indicação ou qualquer
elemento de individualização pessoal na decisão judicial. Assim, para que
o magistrado possa requisitar dados pessoais armazenados por provedor de
serviços de internet, mostra-se satisfatória a indicação dos seguintes elementos
previstos na lei: a) indícios da ocorrência do ilícito; b) justificativa da utilidade da
requisição; e c) período ao qual se referem os registros. Não é necessário, portanto,

688
Jurisprudência da QUARTA TURMA

que o magistrado fundamente a requisição com indicação da pessoa alvo da


investigação, tampouco que justifique a indispensabilidade da medida, ou seja,
que a prova da infração não pode ser realizada por outros meios, o que, aliás, seria
até, na espécie - se houvesse tal obrigatoriedade legal - plenamente dedutível da
complexidade e da dificuldade de identificação da autoria mediata dos crimes
investigados.
8. Logo, a quebra do sigilo de dados armazenados, de forma autônoma ou
associada a outros dados pessoais e informações, não obriga a autoridade judiciária
a indicar previamente as pessoas que estão sendo investigadas, até porque o
objetivo precípuo dessa medida, na expressiva maioria dos casos, é justamente de
proporcionar a identificação do usuário do serviço ou do terminal utilizado.
9. Conforme dispõe o art. 93, IX, da CF, “todos os julgamentos dos órgãos do
Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena
de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias
partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação
do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse
público à informação”. Na espécie, tanto os indícios da prática do crime, como
a justificativa quanto à utilização da medida e o período ao qual se referem os
registros foram minimamente explicitados pelo Magistrado de primeiro grau.
10. Quanto à proporcionalidade da quebra de dados informáticos, ela é
adequada, na medida em que serve como mais um instrumento que pode auxiliar
na elucidação dos delitos, cuja investigação se arrasta por dois anos, sem que
haja uma conclusão definitiva; é necessária, diante da complexidade do caso e da
não evidência de outros meios não gravosos para se alcançarem os legítimos fins
investigativos; e, por fim, é proporcional em sentido estrito, porque a restrição a
direitos fundamentais que dela redundam - tendo como finalidade a apuração de
crimes dolosos contra a vida, de repercussão internacional - não enseja gravame às
pessoas eventualmente afetadas, as quais não terão seu sigilo de dados registrais
publicizados, os quais, se não constatada sua conexão com o fato investigado, serão
descartados
11. Logo, a ordem judicial para quebra do sigilo dos registros, delimitada por
parâmetros de pesquisa em determinada região e por período de tempo, não
se mostra medida desproporcional, porquanto, tendo como norte a apuração
de gravíssimos crimes cometidos por agentes públicos contra as vidas de três
pessoas - mormente a de quem era alvo da emboscada, pessoa dedicada, em sua
atividade parlamentar, à defesa dos direitos de minorias que sofrem com a ação
desse segmento podre da estrutura policial fluminense - não impõe risco desmedido
à privacidade e à intimidade dos usuários possivelmente atingidos pela diligência
questionada.
12. Recurso em mandado de segurança não provido.
(RMS 61.302/RJ, Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz, Terceira Seção, julgado em
26/08/2020, DJe 04/09/2020)

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 689


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Ressalte-se, por oportuno, que, no citado RMS n. 61.302, o recurso também


está relacionado ao homicídio da ex-vereadora Marielle Franco.
A quebra do sigilo de dados no referido recurso, para a apuração na esfera
criminal, consistia na identificação de pessoas que estiveram em determinada região,
incluindo dados pessoais e registros de conexão ou acesso a servidores, navegadores
ou aplicativos de internet, delimitada por parâmetros de pesquisa em determinada
região e por período de tempo (geolocalização ou georerenciamento), diferentemente,
portanto, dos dados que ora se pretende obter.
5. Nessa linha de intelecção, considerando o regramento aplicável à matéria,
a natureza dos elementos pretendidos – restritos, frise-se, ao fornecimento dos
dados cadastrais dos usuários (nome, endereço, identidade) –, assim como o
entendimento recente desta Corte que reconhece a obrigação do provedor de
acesso à internet de fornecer os dados cadastrais dos usuários de atos ilícitos,
conclui-se pela possibilidade de que os provedores de conexão, ou provedores de
acesso, forneçam os dados pleiteados, ainda que não tenham integrado a relação
processual em que formulado o requerimento.
Isso porque a hipótese evidencia, segundo penso, a obrigatoriedade de que
terceiros colaborem com atos judiciais, na forma do art. 77 do CPC, não estando
configurada qualquer violação aos limites objetivos ou subjetivos da lide.
6. É oportuno ainda destacar que as medidas em debate não confrontam
com as determinações visando à proteção do sigilo previstas na recente disciplina
trazida pela Lei Geral de Proteção de Dados, Lei n. 13.790/2018.
É certo que a publicação da Lei n. 13.790/2018, conhecida como
LGPD, fez surgir vários questionamentos na doutrina, sobretudo quanto à
compatibilização do novo regramento legal com as disposições do Marco Civil
da Internet, inclusive eventual revogação tácita da Lei n. 12.965/2014 (MCI).
No entanto, já em seu artigo inaugural, a LGPD dispõe sobre “o tratamento
de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, por pessoa natural ou por pessoa jurídica
de direito público ou privado, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de
liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa
natural” (art. 1º da LGPD).
O tema, incipiente no âmbito doutrinário, encontra-se ainda distante do
debate necessário pelas Cortes Superiores.
No cotejo entre os normativos legais, verifica-se que, enquanto o MCI
prevê o regramento geral do tema, a LGPD institui diretrizes mais específicas

690
Jurisprudência da QUARTA TURMA

de aplicação e segurança, detalhando os tipos de dados existentes e assegurando


toda a movimentação.
A lei apresentou conceitos relevantes, como a categorização de níveis
de proteção, a exemplo do que chamou de “dados sensíveis”, tudo a fim de
regulamentar a matéria diante do atual cenário de evolução.
Em relação ao tema, especificamente à extensão da norma, cumpre
apresentar importantes considerações de Rony Vainzof na obra Lei Geral de
Proteção de Dados Comentada.

Ademais, a LGPD se aplica a pessoas física e jurídicas que tratem dados


pessoais, de direito público ou privado.
[...]
A evolução regulatória histórica em torno da questão revela muito do próprio
desenvolvimento humano em torno do conceito de privacidade, estimulando e
permitindo um juízo de ponderação, baseado em parâmetros como necessidade
e proporcionalidade, para modelar e contrabalançar o interesse privado e o
interesse público, estabelecendo a ingerência do Estado sobre direitos
fundamentais e liberdades civis, limitando-as.
A premissa é única: não existem direitos absolutos, mas qualquer limitação
a direitos fundamentais deve ocorrer de forma moderada, necessária e
proporcional.
[...]
Porém, quando o conteúdo outrora em trânsito, repousar estaticamente em
seu destino, o art. 5º, inciso XII, e a Lei 9.276/96 saem de cena, para a entrada do
inciso X, do mesmo art. 5º e o MCI, mais precisamente o disposto no art. 7º, III, e
no art. 10, § 2º, os quais preveem a possibilidade de fornecimento do conteúdo
de comunicações privadas mediante ordem judicial, portanto, tanto na esfera
cível quanto na criminal.
[...]
LGPD: Lei Geral de Proteção de Dados Comentada. São Paulo: Thomson
Reuters, Brasil, 2019.)

Retomando o caso dos autos, no que é relevante à controvérsia, cumpre


transcrever o quanto disposto no art. 7º da LGPD:

Art. 7º O tratamento de dados pessoais somente poderá ser realizado nas


seguintes hipóteses:
I - mediante o fornecimento de consentimento pelo titular;
II - para o cumprimento de obrigação legal ou regulatória pelo controlador;

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 691


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

III - pela administração pública, para o tratamento e uso compartilhado


de dados necessários à execução de políticas públicas previstas em leis e
regulamentos ou respaldadas em contratos, convênios ou instrumentos
congêneres, observadas as disposições do Capítulo IV desta Lei;
IV - para a realização de estudos por órgão de pesquisa, garantida, sempre que
possível, a anonimização dos dados pessoais;
V - quando necessário para a execução de contrato ou de procedimentos
preliminares relacionados a contrato do qual seja parte o titular, a pedido do
titular dos dados;
VI - para o exercício regular de direitos em processo judicial, administrativo ou
arbitral, esse último nos termos da Lei n. 9.307, de 23 de setembro de 1996 (Lei de
Arbitragem);
VII - para a proteção da vida ou da incolumidade física do titular ou de terceiro;
[...]
IX - quando necessário para atender aos interesses legítimos do controlador ou
de terceiro, exceto no caso de prevalecerem direitos e liberdades fundamentais
do titular que exijam a proteção dos dados pessoais; ou
X - para a proteção do crédito, inclusive quanto ao disposto na legislação
pertinente.
§ 1º Nos casos de aplicação do disposto nos incisos II e III do caput deste artigo
e excetuadas as hipóteses previstas no art. 4º desta Lei, o titular será informado
das hipóteses em que será admitido o tratamento de seus dados. (Revogado pela
Medida Provisória n. 869, de 2018)
§ 1º (Revogado). (Redação dada pela Lei n. 13.853, de 2019)
§ 2º A forma de disponibilização das informações previstas no § 1º e no inciso
I do caput do art. 23 desta Lei poderá ser especificada pela autoridade nacional.
(Revogado pela Medida Provisória n. 869, de 2018)
§ 2º (Revogado). (Redação dada pela Lei n. 13.853, de 2019) Vigência
§ 3º O tratamento de dados pessoais cujo acesso é público deve considerar a
finalidade, a boa-fé e o interesse público que justificaram sua disponibilização.
§ 4º É dispensada a exigência do consentimento previsto no caput deste artigo
para os dados tornados manifestamente públicos pelo titular, resguardados os
direitos do titular e os princípios previstos nesta Lei.
§ 5º O controlador que obteve o consentimento referido no inciso I do caput
deste artigo que necessitar comunicar ou compartilhar dados pessoais com
outros controladores deverá obter consentimento específico do titular para esse
fim, ressalvadas as hipóteses de dispensa do consentimento previstas nesta Lei.

692
Jurisprudência da QUARTA TURMA

§ 6º A eventual dispensa da exigência do consentimento não desobriga os


agentes de tratamento das demais obrigações previstas nesta Lei, especialmente
da observância dos princípios gerais e da garantia dos direitos do titular.
§ 7º O tratamento posterior dos dados pessoais a que se referem os §§ 3º e 4º
deste artigo poderá ser realizado para novas finalidades, desde que observados
os propósitos legítimos e específicos para o novo tratamento e a preservação dos
direitos do titular, assim como os fundamentos e os princípios previstos nesta Lei.
(Incluído pela Lei n. 13.853, de 2019) Vigência

Caio César Carvalho Lima, na mesma obra, Lei geral de proteção de dados
comentada, ressalta a inafastabilidade da apreciação pelo Poder Judiciário
nas hipóteses em que os dados pessoais possam servir como elemento para
o exercício de direitos em demandas em geral (judiciais, administrativos e
arbitrais).
Assim, a LGPD não exclui a possibilidade da quebra de sigilo.
Ao contrário, apresenta regras sobre tal ocorrência, que, no caso, , revelam-
se possíveis, considerando as espécies de dados, a finalidade da quebra e o contexto em
que apresentados.
Por fim, a prestação das informações pelas respectivas concessionárias
de serviço público (provedores de conexão com a internet) deverá observar
estritamente ao regramento previsto pela lei referida, nos termos dos arts. 23 e
seguintes.

Art. 23. O tratamento de dados pessoais pelas pessoas jurídicas de direito


público referidas no parágrafo único do art. 1º da Lei n. 12.527, de 18 de novembro
de 2011 (Lei de Acesso à Informação), deverá ser realizado para o atendimento
de sua finalidade pública, na persecução do interesse público, com o objetivo
de executar as competências legais ou cumprir as atribuições legais do serviço
público, desde que:
I - sejam informadas as hipóteses em que, no exercício de suas competências,
realizam o tratamento de dados pessoais, fornecendo informações claras e
atualizadas sobre a previsão legal, a finalidade, os procedimentos e as práticas
utilizadas para a execução dessas atividades, em veículos de fácil acesso,
preferencialmente em seus sítios eletrônicos;
II - (Vetado); e
III - seja indicado um encarregado quando realizarem operações de tratamento
de dados pessoais, nos termos do art. 39 desta Lei.
III - seja indicado um encarregado quando realizarem operações de tratamento
de dados pessoais, nos termos do art. 39 desta Lei; e (Redação dada pela Lei n.
13.853, de 2019) Vigência

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 693


REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

IV - (Vetado). (Incluído pela Lei n. 13.853, de 2019) Vigência


§ 1º A autoridade nacional poderá dispor sobre as formas de publicidade das
operações de tratamento.
§ 2º O disposto nesta Lei não dispensa as pessoas jurídicas mencionadas no
caput deste artigo de instituir as autoridades de que trata a Lei n. 12.527, de 18 de
novembro de 2011 (Lei de Acesso à Informação).
§ 3º Os prazos e procedimentos para exercício dos direitos do titular perante
o Poder Público observarão o disposto em legislação específica, em especial
as disposições constantes da Lei n. 9.507, de 12 de novembro de 1997 (Lei do
Habeas Data), da Lei n. 9.784, de 29 de janeiro de 1999 (Lei Geral do Processo
Administrativo), e da Lei n. 12.527, de 18 de novembro de 2011 (Lei de Acesso à
Informação).
[...]
Art. 24. As empresas públicas e as sociedades de economia mista que atuam em
regime de concorrência, sujeitas ao disposto no art. 173 da Constituição Federal, terão
o mesmo tratamento dispensado às pessoas jurídicas de direito privado particulares,
nos termos desta Lei.
Parágrafo único. As empresas públicas e as sociedades de economia mista,
quando estiverem operacionalizando políticas públicas e no âmbito da execução
delas, terão o mesmo tratamento dispensado aos órgãos e às entidades do Poder
Público, nos termos deste Capítulo.
Art. 25. Os dados deverão ser mantidos em formato interoperável e estruturado
para o uso compartilhado, com vistas à execução de políticas públicas, à prestação
de serviços públicos, à descentralização da atividade pública e à disseminação e
ao acesso das informações pelo público em geral.
Art. 26. O uso compartilhado de dados pessoais pelo Poder Público deve
atender a finalidades específicas de execução de políticas públicas e atribuição
legal pelos órgãos e pelas entidades públicas, respeitados os princípios de
proteção de dados pessoais elencados no art. 6º desta Lei.
§ 1º É vedado ao Poder Público transferir a entidades privadas dados pessoais
constantes de bases de dados a que tenha acesso, exceto:
I - em casos de execução descentralizada de atividade pública que exija a
transferência, exclusivamente para esse fim específico e determinado, observado
o disposto na Lei n. 12.527, de 18 de novembro de 2011 (Lei de Acesso à
Informação);
II - (Vetado);
III - nos casos em que os dados forem acessíveis publicamente, observadas as
disposições desta Lei.

694
Jurisprudência da QUARTA TURMA

7. Diante do exposto, dou provimento ao recurso especial para


possibilitar a obtenção dos dados cadastrais dos usuários dos serviços de
internet, determinando a expedição de ofícios às operadoras de conexão para
que apresentem – na medida do possível, considerando os dados apontados
pela sentença –, em prazo razoável de 10 dias, o fornecimento dos elementos
cadastrais (restritos à declinação de dados pessoais, como nome, endereço,
RG, CPF) dos usuários responsáveis pelas postagens cuja remoção tenha sido
determinada pelas instâncias ordinárias (fls. 384-386).
É como voto.

RSTJ, a. 34, (265): 471-695, Janeiro/Março 2022 695


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Editoração
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Impressão
Capa: Gráfica do Conselho da Justiça Federal - CJF
Miolo: Seção de Reprografia e Encadernação - STJ

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