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muito mais âmplo do que esquerda e direita, e profunda-
mente radical: o da solidariedade humana.
PzuNastRAS PALAvRÂs
l-adkl"au Dowbor é doutor etn Ciências Econômicas pela
Universid.ade d.e Vorsóia, professor titulnr da PUC de São Paulo e
do Instituto Metodista de Ensino Superíor, autor àc O que é poder
local?, Editora Brasiliense, 1994, e de numerosos trabalhos sobre
plnnejamento econômico e social.

As Ánvonrs As suas frondes arredon-


sEMpRE rvrs ÂTRAÍRÂI.,Í.
dadas, a variedade do seu verde, sua sombra aconchegan-
te, o cheiro de suas flores, de seus frutos, a ondulação de
seus galhos mais intensa, menos intensa em função de
suâ resistência ao vento. As boas-vindas que suas sombras
sempre dão a quem a elas chega, inclusive a passarinhos
multicores e cantadores. A bichos, pacatos ou não que
nelas repousam.
Menino nascido no Recife, de uma geração que cresceu
em quintais, em íntima relação com árvores, minha me-
mória não poderia deixar de estar repleta de experiências
de sombras. Tocada ou marcada por um gosto especial das
sombras, que as gentes nascidas nos trópicos cedo incorpo-
râm e dele falam quâse como se com ele tivessem nascido.
Não era por ourâ razã,o que, em minhas prirneiras ex-
periências de inverno chileno, em manhãs de céu azul, de
sol manso e de ftio intenso, enquanto, na rua, os outros
procurâvam o lado banhado pelo sol, eu buscava o lado
da sombra. No fundo, era e memória tropical da sombra
que me levava ao lado errado da rua. Por isso, lá chegan-
r.1o, voltava, quase num pulo, para o sol.

Minha primeira viagem à África reconciliou minha


n:emória da sombra com o calor dos trópicos. De novo,

24 I PnuL.o Fnrrre
andar de um lado para o outro da rua à procura da som_
bra tinha a significação que eu incorporara à memória de
menino tropical.
O drulo deste livro é, assim, uma licença que me per- SoltoÃo-coMUNHÃo
mito e com a qual sublinho a importância que dveram na
minha inÍância as sombras de diferentes árvores _ marl-
gueiras, jaqueiras, cajueiros, pitombeiras. Sombras em
que, à luz clara do dia, fui me acostumando a descobrir a
razão de ser de ruídos que, no fundo das noites, indecifra-
PossiverÀasNTE NÂo rNT-EREss a rulNcuÉu a indagação
dos me assustavam.
em torno do que me traz aqui, à sombra gostosa desta
Na verdade, não foram poucas as tardes em que, aluno
rnangueira e nela ficar, por horas, ..sozinho,,, escondido
do então chamado curso ginasial, estudei liçõàs de His-
do rnundo e dos outros, fazendo-me perguntas ou dis-
tória do Brasil ou a quesrão da colocação pronominal à
cursando nem sempre provocado por minhas próprias
sombra da grande jaqueira que nos enfeitava o quintal da
pergunras.
casa deJaboarão.
De tanto esmr vindo à sombra desta árvore, alguma
Eu usava a amenidade das sombras para esrudar, para
razão primeira se perdeu no prazer que vir aqui me cau-
brincar, para conversar com meu irmão Temístocles so_
sa. Devo mesmo é entregar-me âo gosto de vir, vivê_lo,
bre nós mesmos, sobre nosso amanhã, sobre a saudade
fazê-lo mais intenso na medidâ em que o provo.
de nosso pai falecido; para curtir, rnergulhado em mim
Vh com a insistêncie com que venho aqui, experimen_
mesmo, a falta da namorada que partira.
tar a solidão enfatiza em mim a necessidade da comunhão.
Sombra e luminosidade, cáu azul,hoitzonte fundo e
É enquanto adverbialmente só que percebo a substandvi-
amplo rlizem de mim. Sem eles, sobrevivo mais do que
dade de estar corn. E é interessante pensar agora como
existo. a
mim sempre me foi importante, indispensável mesmo, es_
Minha bíblioreca rem algo disto. É, às vezes, como se tar clm. Na verdade, pâra mim, rsr4r sd tem sido, ao longo
fosse a sombra de uma mangueira.
de minha üda, uma forma de estar com. Nunca me recolho
como quem tem medo de companhia ou como quem se
Paulo Freire baste a si mesmo, ou como quem se acha uma eskanheza
no mundo. Pelo contário, recolhendo-me conheço me_
lhor e reconneço minha finirude, minha indigência, que
me inscrevem em permânente busca, inviável no isola_
mento. Preciso do mundo como o mundo precisa de mim.

26 | Paur-o Fnune
O isolamento só tem sentido quando, em lugar de negar que nos seja impossível estar cerros de alguma coisa. O
a comunhão, â confirma como um momento seu. Neste impossível é estar absolutamente certos como se â cer-
sentido é que o isolamento negativo não é o de quem tími- teza de hoje tivesse necessariâmente sido a de ontem e
da ou inibidamente se recolhe ou o faz por método, mas continuasse a ser a de amanhã.
o do individualista que, egoistamente, faz girar rudo em Sendo metódica, a ceÍtezada incerteza não nega a cer-
torno de si e de seus interesses. É a solidão de quem, não teza em torno da possibilidade cognitiva. A certeza fun-
importa que se ache na presença de ou em relação com damental. A de que posso saber.
uma multidão só se vê a si, a sua classe ou grupo, afogan- Sei que sei como sei que não sei o que me faz saber,
do os direitos dos ourros na sua gulodice incontida. Gente primeiro, que posso saber melhor o que já sei, segundo,
que quanto mais tem mais quer, não importam os meios que posso saber o que ainda não sei, terceiro, que posso
usados ou de que se serve para ter mais. Gente insensível, produzir o conhecimento ainda não existente.
que junta à insensibilidade arrogância e malvadez. Gente Sabendo que posso saber social e historicamente sei
que chama as classes populares e os pobres, se está de bom também que o que sei não poderia escapar à continuida-
humor, "essa gente" e, se, de mau humor, "çntalha". de histórica. O saber de hoje não é necessariamente o de
Gostaria já agora de insistir na minha recusa a certo ontem nem tampouco o de amanhã. O saber tem histori
tipo de crítica de natureza cienrificista que, no mínimo, cidade. Nunca é, está sempre sendo. Mas isto não diminui
sugere ausência de rigor na maneira como discuto os pro- em nada, de um lado, como já disse, a ceÍtezafundamen-
blemas e na linguagem ou na sinraxe "demasiado" afeti tal de que posso saber, de ourro, a possibilidade de saber
va que uso. A paixão com que conheço e com que falo com maior rigorosidade metódica o que aumenta o nível
ou escrevo não diminuem em nada o compromisso com de exatidão do achado.
que denuncio ou anuncio. Eu sou uma inteireza e não uma Saber melhor o que já sei às vezes implica saber o que
dicotomia. Não tenho umâ pârre de mim esquemárica, antes não era possível saber. Daí a importância da edu-
meticulosâ, racionalista, conhecendo os objetos e outrâ, cação da curiosidade em cujo exercício ela se constitui,
desarticulada, imprecisa, querendo simplesmente bem cresce e se aperfeiçoa.
ao mundo. Conheço com meu corpo todo, sentimentos, A educação da resposta, não ajuda em nada a curiosi-
paixão. Razão também. dade indispensável ao processo cognoscitivo. Ao con-
Muitos têm sido os pensares ou as meditações em ror- trário, a educação da resposta enfatiza a memorização
no deste ou daquele desafio que me instiga, desta ou da- mecânica dos conteúdos sobre os quais se fala. Só uma
quela dúvida que não só me inquieta mas me devoive,
por isso mesmo, à incerteza somente de onde é possível
' Ver Pauio Freire e Antônio Faundez, Por umn pedagosa da pergunta, No
trabalhar de novo necessárias certezas provisórias. Não cleJaneiro: Paz e Terra, 1985.

28 | Pnur-o Fnr:rnr
A souuna DEsrÁ N,lnNcuernn I ze
educaçã.0 da pergwnta aguça, a curiosidade a estimula e
a reforça.
É preciso, porém, deixar claro que o erro da educação
da resposta não está n
respostl. mas na ruprura enre ela
Suponrr E MUNDo
e a pergunta. O emo está em que a resposta ê discursada
independenremente da pergunra que a provocaria. Da
mesma forma a educação da pergunta estaria errada se
a respostâ não se soubesse parte da pergunta. perguntar
e responder são caminhos constirutivos da curiosidade. SsRln rvpsNsÁvrl uur MUNDo em que a experiência humana
O necessário é estar permanentemente à espera de se desse ausente da continuidade necessária, quer dizer,
que novo conhecimento surja superando ouro que, ten- fora da história. Neste senrido é que a "morre da história"
do sido antes novo, envelheceu. implica a morte das mulheres e dos homens. Homens e
A história é tão vir a ser quanto nós, seres históricos, mulheres não podem sobreviver à morre da história que,
limitados, condicionados e o conhecimento que produ- por feita por eles e por elas as faz e rcfaz. O que ocor.e é
eimos. a superação de uma fase hisrórica por ourra que não
eli_
Nada engendrado por nós, mulheres e homens, por rnina a contínuidade da história na mudança.
nós vivido, pensado e explicitado por nós se dá fora do O impossível é ffansformar o mundo que, para ser,
[empo, fora da história. Estar cerro ou em dúvida são for- tem de estar sendo, num mundo inapelavelmente imó-
mas históricas de estar sendo. vel, em que nada pudesse ocorrer fora do já estabelecido.
Um mundo plano, horizontal, sem tempo. Algo assim até
que é compatível com a vid"a animal, mas incompatível
com a existência humana. É neste sentido que o animal se
adapta a seu suporte enquanto o ser huma no, integrando_se
A serr contexto, por nele intervir, o trawforma em
mundo.
Por isso também mulheres e homens contamos a história
do que ocorre no suporte; falamos da vida ou das várias
formas de vida que nele se realizam enquanro a história
de que falamos e que se processa no mundo é a história
feita pelos seres humanos e que os faz e refaz.
Se a comunicação e a intercomunicação são processos
que se verificam navida sobre o suporte, na experiência

30 | Paur-o Fnsuu

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