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SOBRE A OBRA

Atendendo a edital da Associação Brasileira de Psicologia do Desen-


volvimento, que decidiu apoiar financeiramente produção qualificada da
área, um grupo interinstitucional de pesquisadores traz ao público refle-
xões sobre desenvolvimento humano, justiça social e contextos sustentá-
veis, por meio deste livro. Assim, o grupo revela o esforço de escrita a
muitas mãos para refletir sobre assunto complexo e multifacetado a partir
de suas pesquisas, fundamentações teóricas e indagações sobre as rela-
ções entre o indivíduo e o mundo. A obra pretendeu articular a ideia con-
temporânea de sustentabilidade como promotora do desenvolvimento de
qualidade e do bem-estar, com a discussão sobre justiça social, igualdade
e equidade. Apresenta resultados de pesquisa empírica, reflexões teóricas
e contribuições para novos estudos e práticas profissionais. É destinada a
alunos de graduação, pós-graduação e pesquisadores de várias áreas do
conhecimento, interessados no desenvolvimento humano, em suas dife-
rentes dimensões, momentos de vida e contextos em que ele ocorre.

E-book foi financiado pela Associação Brasileira de


Psicologia do Desenvolvimento conforme o Edital
ABPD 01/2021 - Apoio à publicação de e-Books.
Maria Isabel Pedrosa
Maria Thereza Costa Coelho de Souza
Maria Isabel da Silva Leme
Organizadoras

DESENVOLVIMENTO HUMANO,
JUSTIÇA SOCIAL E CONTEXTOS SUSTENTÁVEIS
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

D486

Desenvolvimento humano, justiça social e contextos sustentáveis [recurso eletrônico] /


organização Maria Isabel Pedrosa, Maria Thereza Costa Coelho de Souza, Maria Isabel
da Silva Leme. - 1. ed. - São Paulo : Edicon, 2021.
recurso digital ; 1480 MB

Formato: epdf
Requisitos do sistema: adobe acrobat reader
Modo de acesso: world wide web
ISBN 9786559340330 (recurso eletrônico)

1. Psicologia do desenvolvimento. 2. Desenvolvimento social. 3. Justiça social. 4.
Identidade social - Brasil. 5. Bem-estar social - Brasil. 6. Livros eletrônicos. I. Pedrosa,
Maria Isabel. II. Souza, Maria Thereza Costa Coelho de. III. Leme, Maria Isabel da
Silva.

21-74730 CDD: 155


CDU: 159.922

Camila Donis Hartmann - Bibliotecária - CRB-7/6472


29/11/2021 30/11/2021

Capa: Teresa Poças

Contato com as organizadoras:


maria.cpedrosa@ufpe.br
mtdesouza@usp.br
belleme@usp.br

EDICON www.edicon.com.br
Editora e Consultoria Ltda-EPP
11-3255-1002 3255-9822 zap 98871-1678
Rua Herculano de Freitas, 181 SP- SP 01308-020
COMITÊ CIENTÍFICO

Profª Drª Betânia Alves Veiga Dell’Agli


Centro Universitário das Faculdades Associadas de Ensino Fae (UNIFAE), São João da Boa Vista, SP

Profª Drª Briseida Dôgo de Resende


Universidade de São Paulo/SP

Profª Titular Claudia Broetto Rossetti


Universidade Federal do Espírito Santo - UFES

Julio Cesar Macário de Medeiros, PhD


Université du Québec à Trois-Rivières

KARINE MARIA Porpino Viana, PhD


University of Oslo (NO-UiO)

MARIA DE FÁTIMA DE SOUZA SANTOS, DOCTEUR


Universidade Federal de Pernambuco

Profª Drª Patricia Unger Raphael Bataglia


Universidade Estadual Paulista- UNESPP, Campus de Marília, SP

Sidclay Bezerra de Souza, PhD


Universidad Católica del Maule (UCM)

5
Sumário
Agradecimentos................................................................................................... 7
Apresentação....................................................................................................... 8
Refletindo sobre justiça social e contextos sustentáveis
de desenvolvimento a partir da epistemologia genética de Piaget
Maria Thereza Costa Coelho de Souza............................................................... 16
O conflito interpessoal, justiça social e sustentabilidade
Maria Isabel da Silva Leme................................................................................ 32
O brincar e a construção de um meio culturalmente sustentável
Juliana Maria Ferreira de Lucena e Maria Isabel Pedrosa.................................. 48
O direito das crianças às brincadeiras espontâneas na escola
Shiniata Menezes e Ilka Bichara......................................................................... 68
Contexto de desenvolvimento humano em comunidades ribeirinhas: práticas
lúdicas de crianças amazônicas
Manuela de Queiróz Cruz................................................................................... 88
Resistência e enfrentamento entre parceiros em brincadeiras coletivas
Adriane da Silva Gomes e Maria Isabel Pedrosa.............................................. 103
Desenvolvimento humano e modalidades de acolhimento no Brasil: contribui-
ções da Psicologia
Alysson Massote Carvalho e Maria Camila Lima.............................................. 123
Desenvolvimento comunicativo de bebês na perspectiva de cuidadoras
e psicólogas de instituições acolhedoras
Gabriella Garcia Moura, Bruna Amorim Matos Ferreira e Renata Coelho de Pinho.140
Bem-estar subjetivo e vivência escolar de idosos participantes
de um programa de alfabetização
Simone Cagnin................................................................................................. 163

Minicurrículos dos Autores.............................................................................. 181


AGRADECIMENTOS

À Associação Brasileira de Psicologia do Desenvolvimento (ABPD), que


lançou edital para financiamento de e-books na área de Psicologia do De-
senvolvimento e propiciou a publicação deste livro, produto do esforço de
reflexão dos pesquisadores do GT Contextos Sociais de Desenvolvimento:
aspectos evolutivos e culturais.
À Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia
(ANPEPP), que promoveu espaço de intercâmbio interinstitucional entre
pesquisadores, estimulando o debate sobre o tema “Justiça social e con-
textos sustentáveis: a transversalidade e a pesquisa em Psicologia”, no XVIII
Simpósio de Intercâmbio Científico da ANPEPP, encontro no qual começa-
mos a dialogar sobre o tema central deste livro.
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq), pelo apoio com bolsa de produtividade para Maria Isabel Pedrosa
e bolsas do PIBIC durante o período de realização da pesquisa que apoiou
as reflexões de seus capítulos. Agradecimento também pelo apoio com
bolsa de doutorado para Juliana Maria Ferreira de Lucena e bolsa de mes-
trado para Shiniata Menezes, cujas pesquisas respaldaram seus capítulos.
À Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP),
por auxílio de pesquisa concedido a Maria Thereza Costa Coelho de Souza,
importante para seu trabalho nesses dois últimos anos.

7
APRESENTAÇÃO

Maria Isabel Pedrosa


Maria Thereza Costa Coelho de Souza
Maria Isabel da Silva Leme

A ideia de escrever um livro sobre desenvolvimento humano, justiça


social e contextos sustentáveis surgiu em decorrência da participação dos
pesquisadores que integram o Grupo de Trabalho (GT) “Contextos Sociais
de Desenvolvimento: aspectos evolutivos e culturais”. Trata-se de um tra-
balho coletivo de parcerias interinstitucionais. No XVIII Simpósio da ANPE-
PP (Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia), o
GT foi estimulado ao debate do tema central do Simpósio: Justiça social
e contextos sustentáveis: a transversalidade e a pesquisa em Psicologia.
O incitamento ao tema demandou esforços dos pesquisadores no sentido
de elaborarem uma articulação profícua entre essa proposta e as investi-
gações que vêm realizando sobre diferentes aspectos do desenvolvimento
humano. Emergiu, assim, a questão central do debate: qual a relação dos
estudos de desenvolvimento humano com justiça social e contextos sus-
tentáveis?
Leonardo Boff (2006), em uma palestra sobre ética e sustentabilida-
de , apresenta uma reflexão inspiradora que pode ser tomada como ponto
1

de partida para esse debate. Citando o Manifesto pela Vida, o autor ar-
gumenta que “a ética da sustentabilidade é uma ética para a renovação
permanente da vida, da qual tudo nasce, cresce, adoece, morre e renasce.”
(p. 9). Essa ética se constrói a partir de quatro princípios fundamentais:
princípio da afetividade; do cuidado/compaixão; da cooperação; e da res-
ponsabilidade.
1 Boff, L. (2006). Ética e sustentabilidade. Caderno de Debate e Sustentabilidade. Agenda 21, Minis-
tério do Meio Ambiente, Secretaria de Políticas para o Desenvolvimento Sustentável. Brasil.
8
No que diz respeito à afetividade, ela é construída pela sensibilidade.
“Somos impregnados de afetividade, de sentimento, de afeto, de emoção e
de amorosidade.” (p. 9). Os estudos da psicologia do desenvolvimento hu-
mano registram a emergência da afetividade desde o primeiro ano de vida.
Somos seres biologicamente sociais (Wallon, 1942/1979)2; e seres biolo-
gicamente culturais (Bussab & Ribeiro, 1998)3; afetamos o outro e somos
afetados por ele; criamos vínculos e lugares de pertencimento (Carvalho,
2005)4. Aos oito meses, existem sinais evidentes do apego entre o bebê e
seu cuidador, geralmente a mãe (Ribas & Seidl-de-Moura, 2004)5. Portan-
to, o princípio da afetividade tem a ver com características do ser humano
desde a mais tenra idade.
Segundo Boff (2006) cuidado/compaixão é o segundo princípio, “Toda
a vida deve ser cuidada, senão morre. Tudo que cuidamos dura mais.” [...]
A versão oriental do cuidado vem sob o signo da compaixão. [...] É a capaci-
dade de respeitar o outro como outro [...]” (p. 10). Esse princípio apresen-
ta interconexão com a psicologia e, especificamente, com a psicologia do
desenvolvimento. O ser humano nasce imaturo do ponto de vista motor;
ele deve ser cuidado, apoiado, ensinado e protegido (Seidl-de-Moura &
Ribas, 2009)6. O seu nicho desenvolvimental – o seu lugar de estar, crescer
e viver – precisa ser preservado, como também precisam ser preservadas
as condições básicas para sua ontogênese plena, ou seja, para seu pro-
tagonismo, sua versão dos acontecimentos, sua participação social e seu
pertencimento físico e afetivo.

2 Wallon, H. (1979). Do acto ao pensamento: ensaio de Psicologia Comparada. Moraes. (Original


publicado em 1942).
3 Bussab, V. S. R. & Ribeiro, F. L. (1998). Biologicamente cultural. In L. S. Souza, M. F. Q. Freitas, &
M. M. P. Rodrigues (Orgs.), Psicologia: Reflexões (im)pertinentes (pp. 175-193). Casa do Psicólogo.
4 Carvalho, A. M. A. (2005). Em busca da natureza do vínculo: uma reflexão psicoetológica sobre
grupos familiares e redes sociais. In J. C. Petrini & V. R. Cavalcanti (Orgs.), Família, Sociedade e
Subjetividades: uma perspectiva multidisciplinar (pp. 183-194). Vozes.
5 Ribas, A. F. P. & Seidl-de-Moura, M. L. (2004). Responsividade materna e teoria do apego: uma
discussão crítica do papel de estudos transculturais. Psicologia: Reflexão e Crítica, (17)3, 315-322.
6 Seidl-de-Moura, M. L.; Ribas, A. F. P. (2009). Evolução e desenvolvimento humano. In E. Otta & M.
E. Yamamoto (Coord.), Psicologia Evolucionista (pp. 77-85). Guanabara Koogan.
9
O princípio da cooperação na ética da sustentabilidade tem implica-
ções para todo o ecossistema: se todos os seres cooperam uns com os
outros para a manutenção de um equilíbrio dinâmico, então, garante-se
a diversidade, e todos podem coevoluir (Boff, 2006). Para a psicologia,
parceiros sociais que cooperam criam vínculos e os vínculos criam coisas
compartilhadas (Carvalho, 2005). A cooperação permitiu a própria evolu-
ção do Homo sapiens sapiens: os que sobreviveram e deixaram descenden-
tes foram provavelmente os mais cooperativos, ou seja, os que ajudavam,
protegiam, faziam juntos, enfrentavam conjuntamente as adversidades e
cuidavam uns dos outros; portanto, o processo evolucionista resultou no
que somos hoje – somos seres de cooperação e, assim, a cooperação é um
de nossos atributos (Ribeiro et al., 2009)7.
A responsabilidade decorre dos princípios mencionados anteriormen-
te, uma vez que para garantir afetividade, cuidado/compaixão e coopera-
ção é preciso responsabilidade. “Ser responsável é dar-se conta das conse-
quências de nossos atos. [...] devemos assumir nossa responsabilidade por
nós mesmos, pela Casa Comum e pelo futuro compartilhado.” (Boff, 2006,
p.11-12). O dar-se conta é ter uma apreensão do seu entorno; a partir des-
sa apreensão, vários animais agem conforme as exigências da situação,
ajustando seus comportamentos aos propósitos requeridos (Ades, 1997)8.
Referindo-se a aquisições que ocorrem no desenvolvimento infantil, Piaget
(1975)9 elaborou o conceito de ação reflexiva e explica que a criança age
sobre os objetos, reflete sobre os resultados de suas ações e aprende com
eles. Estendendo esse conceito aos outros períodos de vida, podemos di-
zer que agindo sobre as situações e refletindo sobre os resultados que de-
correm dessas ações, nós conhecemos o mundo físico, implicamo-nos nas
relações sociais, fazemos escolhas morais e adesões espirituais. O dar-se
conta propicia mudanças e, portanto, desdobramentos da ontogênese. Do

7 Ribeiro, F. L.; Bussab, V. S. R.; Otta, E. (2009). Nem alfa, nem ômega: anarquia na savana. In E. Otta
& M. E. Yamamoto (Coord.), Psicologia Evolucionista (pp. 176-188). Guanabara Koogan.
8 Ades, C. (1997). O morcego, outros bichos e a questão da consciência animal. Psicologia USP, 8,
129-157. doi: 10.1590/S0103-65641997000200007
9 Piaget, J. (1975). A teoria de Piaget. In P. H. Mussen (Org.), Carmichael, Psicologia da criança (De-
senvolvimento Cognitivo II, vol. 5). Editora da Universidade de São Paulo.
10
ponto de vista da Psicologia, o desenvolvimento é um processo de contí-
nuas transformações ao longo do ciclo vital.
Esses quatro princípios que balizam a ética da sustentabilidade estão
em transversalidade com os estudos sobre os seres humanos. Constituem,
assim, aspectos norteadores de um debate no qual a Psicologia do Desen-
volvimento tem muito a contribuir: (1) com reflexões teóricas sobre a cons-
trução da afetividade, cuidado/compaixão, cooperação e responsabilidade,
entre outros; (2) com resultados de investigações que buscam explicitar a
aquisição e desdobramentos desses processos ao longo da vida; (3) com pos-
síveis implicações de seus estudos para subsidiar ações, proposições, nor-
mas e planejamentos que venham a contribuir com o bem-estar das pessoas
em todas os períodos de vida e em todas as condições de sua existência.
O livro, organizado em nove capítulos, foi escrito por 14 pesqui-
sadores que buscaram articular seus estudos sobre desenvolvimento
humano com justiça social e/ou contextos sustentáveis. No primeiro ca-
pítulo, Maria Thereza Costa Coelho de Souza reflete sobre os contextos
sustentáveis de desenvolvimento à luz da ideia de justiça social, toman-
do como ponto de partida o desenvolvimento da moralidade na criança
de acordo com a perspectiva de Piaget, estendendo a discussão para a
idade adulta. No âmbito da discussão sobre justiça social e sustenta-
bilidade, a autora apresenta as relações entre o juízo e a ação moral,
entre o dever e o querer, entre a moral e a ética. A ideia é demonstrar
que o desenvolvimento moral em termos cognitivos, afetivos e sociais
está implicado na criação e manutenção de contextos justos e susten-
táveis numa época em que a ideia de sustentabilidade é definida como
expansão harmônica da melhor qualidade de vida dos que habitam este
planeta e em que o bem-estar é a meta para viver com qualidade. A
autora propõe pensar a relação entre desenvolvimento moral, justiça
social e contextos sustentáveis como aspectos relevantes tanto para a
pesquisa em Psicologia do Desenvolvimento e Educação, como para o
planejamento de ações afirmativas e políticas públicas de saúde e edu-
cação, defendendo a ideia de que ações justas e contextos igualitários
são também sustentáveis.
11
O capítulo 2, de Maria Isabel da Silva Leme, tem por objetivo apresen-
tar as relações da sustentabilidade, enquanto bem-estar social e aprimora-
mento das relações humanas, com pesquisas sobre a resolução de conflitos
interpessoais por crianças e pré-adolescentes, objeto escolhido pelo seu
poder em comprometer o convívio entre as pessoas e a justiça social. A
autora destaca entre as iniciativas mais recentes e importantes da Organi-
zação das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) a
aprovação da Agenda 2030 que estabelece metas que visam ao bem-estar
social, educação de qualidade, redução das desigualdades e preservação do
meio ambiente. Destaca ainda, entre esses objetivos, o que visa promover
sociedades justas, pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentá-
vel, proporcionar acesso à justiça a todas as pessoas, e desenvolver institui-
ções eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis. A autora discu-
te pesquisas sobre iniciativas públicas de prevenção e intervenção sobre a
violência em um sentido mais amplo, assim como aquelas voltadas para a
promoção da convivência escolar. Conclui que as pesquisas analisadas evi-
denciam a importância da educação para a sustentabilidade social.
No capítulo 3, Juliana Maria Ferreira de Lucena e Maria Isabel Pedro-
sa defendem que o brincar é um modo de a criança construir contextos
sustentáveis, pois, ao se apropriar da cultura, ela também a transforma,
elaborando formas de ser e de estar coletivamente, com os recursos de
que dispõe em cada momento, e isso implica a possibilidade de continui-
dade e desdobramentos de sua microcultura – o meio cultural constituído
com a participação das crianças e, ao mesmo tempo, constituidor das re-
lações das próprias crianças. As autoras revisam um conjunto de estudos
realizados sobre o brincar e a brincadeira, visando especificar a natureza
dessa atividade e sua relação com a sociabilidade humana. Concluem que
a valorização do brincar nos espaços escolares e não escolares é imprescin-
dível para o desenvolvimento de cidadãos conscientes da sua participação
social.
No capítulo 4, Shiniata Menezes e Ilka Bichara discutem o direito da
criança ao brincar sob duas perspectivas: a perspectiva microssocial, to-
mando como referência o grupo de brincadeira, considerando-o um lugar
12
político, onde se efetivam negociações e estratégias de defesa de seus inte-
resses; e a perspectiva macrossocial, representada pela política educacio-
nal e pelos dispositivos que regulamentam e normatizam o cotidiano esco-
lar. Indiretamente, essas normas interferem nas brincadeiras das crianças,
porque contribuem para uma cultura escolar de valorização ao pedagógico,
diminuindo o tempo de brincar e as iniciativas lúdicas das crianças. Desse
modo, emergem tensões cotidianas na relação crianças-adultos profissio-
nais, resultante do confronto entre interesses diversos. As autoras sintetizam
um ciclo de pesquisas que dão apoio empírico às reflexões trazidas no tex-
to e abordam, ainda, o contexto escolar como palco de múltiplos e diver-
gentes interesses; portanto, como um lugar de contradições e de tensões.
Reivindicam, finalmente, o direito da criança ao brincar e às brincadeiras.
O capítulo 5, escrito por Manuela de Queiróz Cruz, apresenta um es-
tudo que busca explorar e compreender as práticas lúdicas das crianças
na Ilha do Careiro da Várzea, localizada no Estado do Amazonas, por meio
de oficina de desenhos e aplicação de perguntas abertas. A pesquisa foi
realizada em dois momentos, de acordo com o ciclo hidrológico do Rio
Amazonas. Os resultados referentes a dezoito desenhos de crianças com
idade entre seis e doze anos indicaram que os movimentos e lugares de
brincadeira revelam o meio em que elas vivem. As terras, florestas e águas,
mitos e símbolos são aspectos do imaginário amazônico que fazem parte
das brincadeiras das crianças. A autora conclui que as práticas de trabalho
desenvolvidas pela família e grupo social ao qual estas crianças pertencem,
possibilita a troca e (re)construção de conhecimentos necessários à vida
em sociedade, sendo a base de vida dos grupos ribeirinhos.
No capítulo 6, Adriane da Silva Gomes e Maria Isabel Pedrosa anali-
sam processos de resistência e enfrentamento sociais que ocorrem entre
crianças de 2 a 4 anos, em atividades lúdicas, recortando-os e caracteri-
zando-os. As autoras alçam uma reflexão sobre a microcultura do grupo
de brinquedo e seu papel na construção de um contexto sustentável. O
argumento é construído a partir de evidências de que parceiros em intera-
ção resistem a desavenças e as enfrentam; isso propicia a continuidade de
compartilhamentos e de vivências; fortalece vínculos e cuidado entre seus
13
membros; incita desdobramentos de aprendizagens, normas e valores so-
ciais que se especificam nas trocas que realizam; e instiga a emergência de
novas significações. Por meio de interações lúdicas, o grupo constrói sua
microcultura, um processo de apropriação e construção do seu entorno
cultural. A microcultura são significações coletivas, portanto compartilha-
das, que persistem, constituindo o esteio de convivência do grupo.
Os três últimos capítulos enfatizam o cuidado e atenção às pessoas,
em qualquer fase de seu desenvolvimento, de modo a assegurar as condi-
ções necessárias ao seu pleno desenvolvimento. O capítulo de autoria de
Alysson Massote Carvalho e Maria Camila Lima aborda a importância do
contexto de criação para o desenvolvimento do ser humano, segundo a
abordagem bioecológica de Bronfenbrenner. Dentre os fatores contextuais
que afetam o desenvolvimento humano, os autores destacam a vulnera-
bilidade social, causada frequentemente pela pobreza, que pode levar a
criança a contextos institucionais de acolhimento, impactando negativa-
mente seu desenvolvimento pela falta de estabilidade. Nesse sentido, os
autores apontam a importância de políticas públicas que minimizem essas
dificuldades. Segundo a retrospectiva histórica sobre o acolhimento infan-
til, no Brasil, somente em 1990 foi promulgado o Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA), que modificou as políticas de acolhimento, diversifican-
do as instituições de atendimento e preconizando cuidados como localiza-
ção do acolhimento próximo ao da origem da criança.
O 8º capítulo, de Gabriella Garcia Moura, Bruna Amorim Matos Fer-
reira e Renata Coelho de Pinho, discute o desenvolvimento comunicativo
de bebês na perspectiva de cuidadoras e psicólogas de instituições acolhe-
doras, apoiado em literatura atual sobre a importância da socialização, da
aprendizagem e do desenvolvimento nos primeiros anos de vida, período
crucial para a formação das bases do psiquismo e o desenvolvimento de
estruturas cerebrais fundamentais para o aprimoramento de habilidades
futuras mais complexas. Fundamentado nesse panorama geral, o capítu-
lo pretende focalizar particularmente o desenvolvimento comunicativo na
primeira infância, a partir da análise das percepções de cuidadoras e psicó-
logas de instituições acolhedoras acerca do desenvolvimento comunicativo
14
de bebês acolhidos. As autoras baseiam a discussão na ideia de que as
práticas de cuidado e educação exercidas nesses contextos podem se con-
figurar como promotoras de desenvolvimento pleno e saudável e configu-
rar um ambiente de participação, inclusão, responsividade, aprendizagem
e atenção compartilhada, entendidos como elementos essenciais para a
justiça e sustentabilidade social.
Com uma temática semelhante, o último capítulo do livro, de autoria
de Simone Cagnin, aborda os resultados de um programa de extensão uni-
versitária intitulado PROALFA, realizado na Universidade do Estado do Rio
de Janeiro. O programa realiza desde o início do século XXI um trabalho
de educação não formal de adultos, em especial, idosos, com diferentes
graus de escolaridade. O objetivo dessa intervenção é alfabetizar os ido-
sos e proporcionar formação profissional para alunos de Pedagogia, Letras
e Matemática, contribuindo para a justiça social pela diminuição da desi-
gualdade social através da inclusão dos indivíduos idosos. Contribui, assim,
para a sustentabilidade por meio do incentivo à reflexão sobre preservação
do meio ambiente e questões relacionadas. O programa oferece, em um
espaço de educação não formal, Oficinas de Escrita, Leitura e Matemática,
sendo as aulas ministradas por alunos dos referidos cursos da UERJ. Propi-
cia ainda uma formação cultural mais ampla, incentivando a participação
dos alunos em eventos artísticos e culturais itinerantes ou permanentes
que ocorrem na cidade do Rio de Janeiro. Os resultados encontrados foram
positivos como aumento do bem-estar subjetivo entre os alunos, aumento
da autoestima, da autonomia e da reflexão crítica.
Os organizadores e autores do livro esperam que seus leitores dia-
loguem também sobre a temática do desenvolvimento humano, justiça
social e contextos sustentáveis incitados pelas reflexões propiciadas pelo
conjunto dos capítulos aqui apresentados. Esperam também que eles se
sintam convidados a atuarem a partir dos princípios norteadores da ética
da sustentabilidade e, assim, contribuam para o bem-estar das pessoas
que estão ao seu redor e promovam contextos de desenvolvimento com-
prometidos com a dignidade humana.

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REFLETINDO SOBRE JUSTIÇA SOCIAL E CONTEXTOS
SUSTENTÁVEIS DE DESENVOLVIMENTO A PARTIR
DA EPISTEMOLOGIA GENÉTICA DE PIAGET

Maria Thereza Costa Coelho de Souza


Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo - IPUSP

Apresentação
O tema deste texto foi apresentado no 18º Simpósio da Associação
Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (ANPEPP), no con-
junto das discussões do Grupo de Trabalho Contextos sociais de desenvol-
vimento: aspectos evolutivos e culturais. A partir de perspectivas teóricas
diferentes, os membros se propuseram a apresentar reflexões e pesquisas
relacionadas a justiça social e contextos sustentáveis, temática do encon-
tro.
Considerando a epistemologia genética de Jean Piaget (1896-1980),
que fundamenta os trabalhos de pesquisa teórica e empírica da autora,
pretende-se refletir neste texto sobre os contextos sustentáveis de desen-
volvimento à luz da ideia de justiça social, tomando como ponto de partida
o desenvolvimento da moralidade na criança de acordo com a perspectiva
de Piaget, assim como textos sobre Educação Moral (Piaget, 1930/1996) e
Educação da liberdade (Piaget, 1944/1945). Estas duas últimas obras, jun-
tamente com o livro sobre o juízo moral, datado de 1932, originam ainda
hoje muitas investigações sobre as relações entre o juízo e a ação moral,
entre o dever e o querer, entre a moral e a ética. Serão mencionadas tam-
bém investigações do campo da Psicologia Moral, as quais a partir da epis-
temologia genética estudam os julgamentos de crianças e adultos sobre
temas sociais. A ideia é demonstrar que o desenvolvimento moral em ter-
16
mos cognitivos, afetivos e sociais, está implicado na criação e manutenção
de contextos justos e sustentáveis.
Na obra O juízo moral na criança (Piaget, 1932/1994), dentre muitas
afirmações instigantes, Piaget afirma que os pais não são bons psicólogos
ou educadores, pois optam, na maioria das vezes por ações coercitivas em
relação a seus filhos, como meio de conseguir obediência e não necessa-
riamente para ensinar o que é o mais justo a fazer. A partir destes escritos,
podemos dizer que as relações de coação, o dever e a obediência, ocupam
boa parte da infância, e a justiça como regulador universal das relações de
respeito mútuo entre pais e filhos e entre pessoas, demora a se estabe-
lecer e, muitas vezes, não ocorre. Por conseguinte, as relações de coope-
ração baseadas na reciprocidade, desejáveis para propiciar a autonomia
moral, são tardias ou mesmo, raras.
Este universo infantil em que mais se obedece a pessoas (figuras de
autoridade, amadas e, ao mesmo tempo temidas), do que se pensa sobre
o que é justo considerando princípios de igualdade e equidade, não é mui-
to diferente do universo adulto. Neste último, a justiça como reguladora
das relações sociais não se apresenta tão frequentemente quanto seria
desejável e inúmeras desigualdades estão estabelecidas nos modos de jul-
gar e agir, e, em muitos casos, são naturalizadas por práticas educativas
culturais. Ainda que Piaget não tenha se perguntado sobre estas práticas
culturais ou sobre a moralidade dos adultos, é possível encontrar em seus
escritos menções às relações familiares e aos riscos que práticas coerciti-
vas trazem para as experiências de igualdade entre pares. A ação moral
de acordo com a perspectiva baseada na teoria de Piaget é fruto do juízo
e da afetividade; não basta saber o que é certo, mas também querer fazer
o certo. Assim, se a justiça não é praticada desde cedo, e se o que rege as
relações é o dever obedecer a pessoas e não a princípios, estando aí a gê-
nese da moralidade individual, podemos perguntar se estaria aí também a
gênese das desigualdades? É o que este texto tenta responder.
Incluiremos também na reflexão a ideia de ambientes democráticos,
associada como veremos à de autonomia, tal como apresentada nos textos
Os Procedimentos de Educação Moral, publicado em 1930 e republicado
17
no livro Cinco Estudos de Educação Moral, organizado por Macedo (1996);
bem como no texto referente a uma conferência intitulada A Educação da
Liberdade, os quais permitem compor o argumento aqui defendido.
Por último, em uma época em que a ideia de sustentabilidade defi-
nida como expansão harmônica da melhor qualidade de vida dos que ha-
bitam este planeta é focalizada nas várias áreas de conhecimento, e em
que o bem-estar é a meta para viver com qualidade, pensar na relação
entre desenvolvimento moral, justiça social e contextos sustentáveis é re-
levante tanto para a pesquisa em Psicologia do Desenvolvimento e Educa-
ção, como para o planejamento de ações afirmativas e políticas públicas
de saúde e educação. Podemos dizer então, que ações justas são também
sustentáveis.

Justiça ou obediência
Em O Juízo Moral na Criança (1932/1994), Piaget apresenta as duas
morais que ocorrem no desenvolvimento da criança; a moral da obediên-
cia ou heteronomia, na qual a regra é exterior ao individuo, encarnada em
pessoas/figuras de autoridade e fruto de relações de coação e de respeito
unilateral, ligados a sentimentos de dever, amor e temor diante das figuras
de autoridade e a moral da justiça ou autonomia, na qual a regra é interior,
incorporada em princípios gerais e resultado de relações de cooperação,
de respeito mútuo, reciprocidade e sentimentos de justiça. Ao contrário do
que poderia parecer, autonomia moral não é fazer o que se quer indepen-
dentemente dos outros, mas ao contrário, considerar os outros para pensar
e agir conforme a regra. Assim, autonomia é diferente de independência.
A autonomia tem como foco central as normas ou regras, para além das
pessoas que as apresentam, incluindo-as como coparticipantes e não como
fonte das regras como ocorre na heteronomia. O aspecto coletivo está en-
tremeado ao conceito de autonomia tal como apresentado por Piaget e é
condição necessária para a moral da justiça. De acordo com este princípio,
não será justo algo que beneficie a um só e não a outros. Por consequên-
cia, a igualdade entre vários ou muitos será pautada também na ideia de

18
equidade, ou seja, considerará as diferentes necessidades e características
dos envolvidos. O que é justo não é, então, receber a mesma quantidade do
que o outro, mas a quantidade compatível à necessidade. Não é apenas um
cálculo matemático, mas um raciocínio num sistema de condições e valores.
A criança seria capaz de entender a igualdade por equidade? Para Pia-
get, as duas morais são resultado da interseção entre desenvolvimento cog-
nitivo e afetivo e se harmonizam com as capacidades intelectuais e afetivas
das crianças, ainda que tenha se dedicado a explicar mais o seu aspecto
racional. A dimensão racional seria mais ligada à forma da moral e a di-
mensão afetiva à sua energética/conteúdo. Esta interpretação se baseia nas
relações entre inteligência e afetividade propostas por este autor. (Piaget,
1954), diferenciando-as em termos de natureza e papel no desenvolvimen-
to psicológico (respectivamente estrutural ou energético). Compreender a
moral também quanto aos seus conteúdos é o objetivo de pesquisadores
do desenvolvimento humano, os quais investigam as relações entre mo-
ral e ética (La Taille, 2007), incluindo em suas reflexões a ideia de valor,
como dimensão afetiva da moral. Nesse sentido, a moral heterônoma se
harmonizaria com um pensamento mais rígido, irreversível e egocêntrico
(pré-operatório), o qual se apresenta centrado num único ponto de vista
e, correspondentemente, com sentimentos intuitivos menos flexíveis. Já a
moral autônoma, se harmonizaria com um pensamento reversível, opera-
tório e sentimentos normativos. Considerando a sequência de desenvol-
vimento proposta por Piaget, a partir da construção operatória, a criança
poderia construir também a moral autônoma, especialmente por poder re-
fletir num sistema de ações reversível e coordenado. Entretanto, como sa-
bemos, o modelo teórico piagetiano apresenta as formas de organização da
ação (estruturas) que se constroem ao longo da vida e considera também
as condições específicas de desenvolvimento dos indivíduos em suas traje-
tórias de desenvolvimento, apontando quatro fatores para isso: maturação;
experiência; interação social e equilibração (Piaget e Inhelder, 1966), sendo
que cada fator considerado isoladamente é condição necessária, mas não
suficiente para explicar o desenvolvimento. Isto indica que há, ao mesmo
tempo aspectos gerais e aspectos específicos.
19
O mesmo raciocínio se aplica ao desenvolvimento moral, fruto das ca-
pacidades para julgar, sentir e agir, não sendo possível responsabilizar ape-
nas uma delas pela moral heterônoma ou autônoma quanto à sua forma
e seus conteúdos. Isto é importante para evitarmos a consideração deter-
minista e linear de pensarmos que uma ou outra moral é garantida apenas
pela capacidade racional ou afetiva, ou mesmo pela condição exterior para
agir de acordo com regras coletivas. O próprio Piaget advertiu no livro O
juízo moral na criança (1932), que trataria do aspecto racional da moral,
ou seja, do juízo e não do comportamento moral. Assim, ser moral é um
processo complexo, que possui, como afirma La Taille (2007), dimensões
intelectuais e afetivas, e acrescentaríamos dimensões sociais e contextuais.
Em alguns textos, Piaget comenta que o desenvolvimento intelectual se-
gue junto com o desenvolvimento da socialização dos indivíduos, mas não
explora o papel dos contextos sociais. É inegável na perspectiva de Piaget
o quanto as relações de coação e de cooperação interferem na construção
das morais heterônoma e autônoma.
Quando o tema é justiça social, é necessário abordar também o pa-
pel dos contextos sociais, sem, no entanto, atribuir-lhes uma influência ex-
clusiva sobre a ação moral. Como vimos, a justiça como valor universal é
ligada a princípios e não a pessoas e demanda capacidades (intelectuais
e afetivas) dinâmicas e flexíveis, podendo-se dizer que a Moral da justiça
seria equivalente à Moral do Bem. O que é justo deve ser justo para todos.
La Taille (2010) explica que é possível diferenciar a moral (ligada à nor-
matividade e aos deveres) da ética (relativa à vida boa). Expõe a importân-
cia e a complexidade do sentimento de obrigatoriedade envolvido no Dever,
assim como a relevância de se incluir também os conteúdos morais e éticos,
ligados à dimensão afetiva, para compreender as ações morais.
Afirma La Taille:
[...] os indivíduos sempre se comportam de maneira coeren-
te com o que julgam ser o moralmente correto? O que está
em jogo é a relação juízo/ação, logo a relação saber/querer
(a ação moral, como toda ação, pressupõe um querer agir).
(La Taille, 2010, pag. 108)
20
E cita Comte-Sponvile: “a moral responde à questão ‘que devo fazer?’,
e a ética, à questão ‘como viver?’” (Comte-Sponville, em Comte-Sponville
& Ferry, 1998, p. 214, apud La Taille, 2010, pág 109).
Assim, para entender a moral, devemos também entender suas re-
lações com a ética, e, por conseguinte para refletir sobre justiça social e
autonomia moral, devemos considerar a moralidade quanto aos sistemas
de valores.
Considerando o exposto até agora, podemos dizer que a delicada
relação entre julgar, sentir e agir, entre direitos e deveres, entre o que
é justo e o que não é justo, é muito mais complexa do que uma relação
de oposição simples. Ao contrário, é uma relação dialética de interde-
pendência entre normatividade e equidade, estrutura e conteúdo, razão
e emoção, demandando a consideração simultânea do eu e do outro,
do bem próprio e do bem comum. Por consequência, opor igualdade à
desigualdade e justiça à injustiça de modo estanque empobrece a mul-
tiplicidade de aspectos e dimensões do eu, do outro e do contexto aí
envolvidos.
Quando se fala hoje em igualdade de oportunidades no contexto de
políticas públicas para enfrentar as desigualdades e injustiças sociais,
acreditamos que há uma possível relação com a reflexão teórica aqui
empreendida. Igualdade de quais oportunidades? Retomando o papel
da experiência, das interações e do fator que permite passar de um pa-
tamar de equilíbrio a outro melhor (equilibração) para Piaget, igualdade
de oportunidades poderia se referir a oportunidades que considerem as
condições e necessidades especificas daquele grupo ou pessoa, de sua
etnia, raça, gênero, nível socioeconômico, etc. e compensem desigual-
dades. Para promover igualdade de oportunidades é necessário conhe-
cer os envolvidos em suas dimensões individuais e coletivas para decidir
o que é adequado, necessário e possível. Políticas públicas voltadas para
a justiça social deveriam privilegiar a busca de igualdade concretizada
por ações afirmativas e participativas.
Podemos concluir esta seção afirmando que a justiça social não é fruto
de apenas um elemento, mas, numa visão interacionista piagetiana, das
21
relações entre os fatores individuais do desenvolvimento mental e as di-
mensões contextuais de igualdade com equidade. (igualdade de oportuni-
dades). A gênese da moral da justiça segundo Piaget se encontra no univer-
so infantil em suas dimensões afetivas, cognitivas e sociais. A partir daí, o
jogo interativo entre individuo e mundo promoverá o estabelecimento da
justiça reguladora e, ao mesmo tempo, como consequência da convivência
baseada na reciprocidade e na cooperação.

Autonomia e self-government
Piaget não se debruçou diretamente nem sobre o tema dos contextos
de desenvolvimento nem, especificamente, sobre o tema da democracia, ten-
do optado por desenvolver a ideia de um sujeito que realiza uma trajetória
psicológica rumo a formas mais elaboradas de pensamento, o que, para ele,
contribui para relações de reciprocidade com os outros, e também, para co-
nhecimentos mais amplos e flexíveis sobre o mundo. Entretanto, sua abor-
dagem a respeito do desenvolvimento mental se relaciona a seu ver, à ideia
democrática de liberdade. Como? Não foram muitos textos sobre os conceitos
de cooperação e autonomia, centrais para se pensar sobre a convivência de-
mocrática, mas é muito clara a ênfase sobre a necessidade de relações sociais
não coercitivas para o desenvolvimento moral em que a justiça e a equidade
estão no centro. Isto permite, a nosso ver, tecer considerações e refletir sobre
o que este autor teria a dizer sobre os chamados contextos democráticos e
sustentáveis, ou seja, contextos que ofereçam condições de qualidade para
o bem-estar e o desenvolvimento integral dos indivíduos. Se, para ele, o indi-
viduo é quem dirige seu desenvolvimento, à medida em que constrói a partir
das interações com os objetos físicos e sociais, formas de pensamento cada
vez mais complexas e abrangentes, e se são as interações com o mundo que
permitem esta construção, bem como a dos conhecimentos físicos, lógico-ma-
temáticos e sociais, podemos pensar que se estas interações forem menos
coercitivas e mais cooperativas, um viver democrático terá mais chance de
acontecer na vida da criança e também do adulto. E mais especificamente,
se o ambiente educacional, para além de apresentar conteúdos, incentivar a

22
compreensão das regras descoladas das pessoas e objetivando o bem comum,
a reflexão e a participação cooperativa, mais e mais a criança caminhará para
construir noções e experiências de troca democrática.
Ao associar liberdade com autonomia Piaget apresenta alguns concei-
tos já mencionados neste texto. Define autonomia como a submissão do
indivíduo a uma disciplina que ele próprio escolhe e à constituição da qual
ele colabora com sua personalidade e cooperação como o conjunto das in-
terações entre indivíduos iguais (por oposição às interações entre superio-
res e inferiores) e diferenciados (por oposição ao conformismo obrigatório)
(Piaget,1930/1996).
Assim, se antes buscamos responder se era possível à criança com-
preender a justiça por igualdade e equidade e chegamos à conclusão que
apenas se tiver construído a moral autônoma, agora podemos nos pergun-
tar: poderá o individuo ser democrático sem ser autônomo moralmente?
Ser capaz de reflexão intelectual sem passar por relações democráticas? Se
autonomia no sentido piagetiano é rara, há respostas para estas pergun-
tas? Encontramos boas pistas para lidar com estes dilemas em dois tex-
tos de Piaget. O primeiro é Os Procedimentos de Educação Moral (Piaget,
1930/1996). O segundo é o texto de uma conferência intitulada A Educação
da Liberdade, apresentada no 28o Congresso dos Professores, ministrada
em Berna, Suíça, em julho de 1944. Em ambos, a ênfase de Piaget é de-
monstrar que a ação democrática depende tanto da reflexão racional como
da autonomia moral promovida pela cooperação e por relações igualitárias
e não coercitivas. Nos dois textos, o autor discorre sobre liberdade de pen-
samento e liberdade moral, sendo que no segundo, apoia-se também em
conceitos do livro O juízo moral na criança (1932).

Educação da liberdade
O título desta seção pode surpreender. Não seria Educação para a li-
berdade? Demonstraremos que não há engano e que Piaget mostra como
educar o pensamento sem imobilizá-lo por ações coercitivas e obediên-
cia. O autor se refere à liberdade de pensamento, como o “procurar por

23
si próprio, criticar livremente e demonstrar de forma autônoma” (Piaget,
1944/1945).
Referindo-se à Sociologia, Piaget diz que do ponto de vista político,
historicamente por muito tempo houve uma gama enorme de pressões in-
telectuais, morais e até jurídicas sobre a consciência e a conduta dos indi-
víduos, isto é, a vida social exigiu como única alternativa de sobrevivência,
o conformismo e a submissão cega e heterônoma. Quando a cooperação
entendida como um conjunto de relações entre iguais se tornou um valor
necessário, a liberdade individual ganhou espaço. Assim, a cooperação su-
põe uma liberdade de pensamento, liberdade moral e liberdade política.
Mas o autor adverte que é preciso compreender que a liberdade, que sur-
ge da cooperação, não é a anomia ou a anarquia; ela é a autonomia, isto é,
a submissão do indivíduo a uma disciplina que ele próprio escolhe e à cons-
tituição da qual ele colabora com sua personalidade. Partindo deste ponto
de vista, pode-se dizer que é impossível aprender a pensar com liberdade
num regime/contexto autoritário, pois este restringe a liberdade e a auto-
nomia. Outra decorrência do dito acima é que seria possível então educar
o pensamento para ser livre. Como? Permitindo que resulte das funções in-
telectuais e não da repetição verbal e do trabalho sob pressão, usualmente
presentes na escola. O princípio subjacente a estas considerações de Pia-
get é o de que para se fazer homens livres é preciso formar inteligências
ativas. E para que isto seja possível, é importantíssimo o desenvolvimento
das atividades dos alunos na escola, o que significa fazer pesquisas por
eles próprios, fazer experimentos, ler e discutir com iniciativa e não para
obedecer a ordens. Na referida conferência, o autor lembra que no Egito
e no Oriente, os alunos faziam experimentos em problemas reais de físi-
ca elementar e de geometria, antes que os Gregos tivessem descoberto a
dedução abstrata. A descoberta por si mesmos seria mais relevante que o
recebimento “pronto” por intermédio do ensino.
A educação da liberdade supõe, assim, a pesquisa e a cooperação não
somente com o adulto (professor) que é equivalente à autoridade, mas
também e principalmente, com os pares e iguais. Vamos esclarecer este
ponto apresentando a distinção entre liberdade moral e social.
24
Referindo-se particularmente à criança, Piaget comenta que na edu-
cação tradicional, esta é submetida a maior parte do tempo, ou à autori-
dade dos pais que impõem normas e tarefas, ou à autoridade do professor
que o disciplina por outras normas e novas tarefas. Resulta daí uma moral
de obediência ou de heteronomia. Mas na vida, existem os amigos e as
relações sociais entre crianças. E estas relações oferecem à criança a opor-
tunidade de viver diferentemente. Um exemplo expressivo é o de alguns
jogos coletivos, nos quais há uma disciplina livremente consentida, que
não é imposta de forma alguma pelo adulto, mas construída pelas próprias
crianças.
O autor insiste que a escola pode e deve ser o contexto para que a
educação da liberdade se dê. E o professor tem um papel fundamental.
Dele dependerá transformar a classe em monarquia absoluta ou às ve-
zes mesmo numa espécie de teocracia moral... Ele tem poder para tanto.
(Piaget, 1944/1945). Mas perguntamos juntamente com Piaget: será que
o professor quer preparar cidadãos ao mesmo tempo livres e capazes de
disciplina interior? A conclusão do autor é que seria necessário apoiar-se
num ideal democrático já na escola, inspirar-se na prática e vida real da
classe e não em palavras ou lições.

Métodos para educação racional e moral: teoria e prática


Chegamos então a outro ponto da discussão: apresentar dois métodos
indicados por Piaget, que poderiam promover a educação intelectual e
a moral da liberdade, já usados há muito tempo: o trabalho em grupo e
o self-government. O primeiro se refere a organização de trabalhos em
comum. Um certo número de alunos se junta para resolver um problema,
recolher a documentação de um tema, para fazer uma experiência, etc.
Piaget comenta que nesta dinâmica, os que sabem menos ou são mais
acomodados são estimulados e mesmo obrigados pela equipe a agirem
e se movimentarem e os que sabem mais aprendem a explicar e dirigir
o trabalho ao invés de permanecerem agindo de modo solitário. Além
do benefício intelectual e da crítica mútua, da discussão e da verificação,

25
adquire-se desta forma um sentido de liberdade e de responsabilidade
conjuntas, assim como de autonomia livremente estabelecida. O método
do self-government, por sua vez, consiste em atribuir aos alunos uma parte
de responsabilidade na disciplina escolar. A aplicação é flexível e pode variar
de uma simples atribuição pelo professor de funções limitadas a alguns
alunos a uma autonomia real na classe (organização da disciplina pelos
alunos, julgamentos por eles mesmos de casos de fraude e trapaça, etc..),
ou nas atividades extracurriculares (organizações de grupos para esportes,
por exemplo). Aplicações deste método são descritas na literatura, no
campo da Educação.
Ainda neste mesmo campo, estudos sobre os métodos de trabalho
em equipe e self-government se relacionam a conteúdos específicos tais
como matemática ou geografia, ou seja, os dois métodos citados parecem
contribuir também para melhorar a aprendizagem escolar. No campo da
Psicologia, as pesquisas analisam mais especificamente os procedimentos
usados por crianças pequenas, mais velhas e adolescentes para julgarem
situações de conflito ou dilemáticas. Os julgamentos variam em função de
sua maior ou menor capacidade para considerar simultaneamente o bene-
fício individual e o bem coletivo.
Uma questão de fundo ainda permanece a partir dos resultados das
diferentes investigações: se Piaget tiver razão, será necessário um desen-
volvimento do pensamento para que seja reflexivo e “livre”, assim como
será necessária a convivência social com pares e não só com adultos, para
que a cooperação e autonomia ocorram. Estes dois cenários permitirão
que a justiça se estabeleça como valor central da moralidade ainda na in-
fância, estendendo-se para a vida adulta.
Há que se esperar na escola então, o desenvolvimento individual para
que os ideais democráticos sejam apresentados? Ainda com base em Pia-
get, a resposta seria não! Pois como ele mesmo bem demonstrou a coo-
peração e a reciprocidade surgem da obediência inicial ao adulto e as re-
lações entre pares são tão necessárias como as relações com figuras de
autoridade. Os próprios adultos podem explicitar e valorizar os princípios
das regras, incluindo as crianças em acordos e debates.
26
Assim, promover trabalhos em grupo mesmo para grupos de crianças
pequenas e permitir que decidam sobre uma parte da rotina (self gover-
nment) não as tornará autônomas da noite para o dia, mas as fará experi-
mentar novos modos de convivência, mais igualitários, preparando-as para
quando forem capazes de internamente optarem por esta maneira de de-
cidir e pensar.
Voltamos ao ponto inicial desta exposição: a autonomia moral como
resultado de uma relação complexa e dialética entre o individuo e seu meio
social.

Autonomia e vida adulta


No contexto dos adultos, a obediência a pessoas parece predominar
sobre a justiça de princípios em termos dos julgamentos e ações, especial-
mente diante de situações de injustiças e desigualdades. Princípios indivi-
dualistas isolados se superpõem ao bem comum e ao coletivo; narrativas
usando justificativas de direitos individuais opondo-se a direitos coletivos
se sobressaem. Injustiças e desigualdades são encaradas como naturais e
se pode observar com frequência uma isenção de responsabilidade pelo
outro. A Moral da Obediência se sobrepõe à Moral do Bem (em que igual-
dade e justiça estão no centro). Desde os estudos de Kohlberg (1981) que
já haviam indicado que raramente os adultos demonstravam julgamentos
avançados quanto à consideração prioritária do bem comum, investiga-
ções no campo da Psicologia Moral baseadas na teoria do domínio social
(Nucci (2000); Wainryb et al (2007), tem trazido dados a respeito das ten-
dências de julgamento dos adultos sobre diversos temas sociais, incluindo
desigualdades. Focalizadas muito mais no denominado domínio pessoal do
que no domínio moral, são observadas decisões para situações hipotéticas
em que, mesmo reconhecendo que o outro poderá ser prejudicado por
uma ação individual, é mantida a decisão de se colocar em primeiro lugar
e não ajudar por exemplo, pois considera-se esta situação isoladamente
e a decisão como algo unicamente pessoal e individual (outra pessoa que
ajude o que sairá prejudicado). O problema não é encarado como coletivo

27
e sim pessoal. Não há nem sequer em muitos casos, uma decisão de domí-
nio convencional, que seria, fazer o que a sociedade espera que se faça por
convenção; parece não haver reflexão sobre o assunto; o eixo regulador
da tomada de decisão é prioritariamente individual mesmo que o tema
seja social ou coletivo. No âmbito da pandemia de COVID-19 encontramos
vários exemplos que podem ilustrar as afirmações anteriores: comporta-
mentos como não usar máscaras; não fazer distanciamento social; não hi-
gienizar as mãos, não tomar vacina, justificados por direitos individuais:
tomo se eu quiser; ninguém pode me obrigar, pois sou livre, etc. Este e
outros contextos sanitários ou de crise mostram bem como adultos não
coordenam o bem individual e o bem coletivo, parecem ter escalas de va-
lores dirigidas egocentricamente ao próprio eu e, muitas vezes aparentam
ter recursos intelectuais rígidos e inflexíveis.
Como explicar estas contradições? Autores contemporâneos da Psi-
cologia Moral afirmam que Piaget abriu um vasto caminho para o estudo
das relações entre os aspectos afetivos, sociais e cognitivos da moral. As
pesquisas sobre ações morais buscam esclarecer os pontos mencionados
acima. Em Killen e Smetana (2013), são apresentados estudos a partir da
teoria do domínio social, inclusive sobre o tema das desigualdades, de-
monstrando que muitos não se sensibilizam com as desigualdades e in-
justiças por considerarem que estas não são do âmbito moral ou coletivo,
são naturalizadas e aceitas, não havendo conflito ou dúvida quanto à sua
manutenção. Esta teoria explica os comportamentos analisando os julga-
mentos articulados aos conteúdos em jogo nas situações apresentadas,
o que faz com que um mesmo individuo possa considerar um assunto de
domínio moral, mas outro não e assim por diante. A principal diferença
em relação à perspectiva de Piaget é a ideia de que diferentes domínios de
decisões convivem no universo de um mesmo individuo sem contradição,
permitindo a diversidade de julgamentos, o que é diferente da ideia piage-
tiana de filiação, em que formas mais amplas integram formas anteriores,
incluindo o da não-contradição.
Entretanto, para nos atermos particularmente à abordagem de Piaget
para analisar como se apresenta a moralidade adulta, podemos retomar
28
o que foi exposto sobre os fatores cognitivos e afetivos da moralidade, de
acordo com La Taille (2010). Assim, é possível interpretar as observações
aparentemente contraditórias da moralidade adulta como resultantes de
um descompasso entre as capacidades intelectuais (juízos) e os sentimen-
tos e sistemas de valores, entre a moral e a ética de um ponto de vista
psicológico.
E trazendo para o debate a questão da liberdade de pensamento e a
liberdade moral, tal como apresentadas por Piaget, é possível interpre-
tar os comportamentos adultos como sem liberdade, isto é, desprovidos
de uma disciplina e autonomia internas. E ainda é necessário incluir para
reflexão o papel dos contextos sociais, os quais também influenciam as
relações dialéticas e o equilíbrio entre o julgar, o sentir e o agir. Reto-
mando o exemplo da pandemia, é importante destacar que os compor-
tamentos que se opõem às recomendações sanitárias ocorrem tanto em
indivíduos com plenas condições materiais para cumpri-las, como em
indivíduos com restrições a este cumprimento, como por exemplo, pes-
soas que habitam moradias pequenas nas quais não é possível fazer dis-
tanciamento ou ter álcool em gel a disposição. Aí reside uma diferença
relevante: não seguir uma regra por impossibilidade é equivalente a não
segui-la por discordância ou desconsideração? A resposta é negativa,
pois as motivações são bem diferentes, o que confere características dis-
tintas ao comportamento. Julgar o que é certo, balancear o bem indivi-
dual e o bem coletivo, incluindo também hierarquias de valores é tarefa
de todos, nos mais variados contextos sociais, conferindo às resoluções
“coloridos” distintos. Num futuro breve teremos estudos com resultados
de mapeamentos sobre os comportamentos dos adultos na pandemia
em relação às relações com as regras sanitárias e poderemos observar e
inferir as diferentes causas e articulações entre os aspectos individuais e
contextuais., entre os aspectos racionais e morais.
Por fim, e à guisa de conclusão desta seção, é relevante destacar a
aproximação de diferentes áreas de conhecimento para compreender a
moralidade adulta: a Psicologia do Desenvolvimento, a Psicologia Moral e
a Educação Moral. Juntas poderão esclarecer o que aqui apenas introdu-
29
zimos: as relações de interdependência entre a moralidade e os contextos
sociais.

Sustentabilidade e justiça
Finalizando as reflexões que pretendemos apresentar é o momento
de trazer à tona a definição de sustentabilidade para a articularmos à ideia
de justiça tal como apresentada neste texto. A ideia de sustentabilidade
como expansão harmônica da melhor qualidade de vida dos que habitam
este planeta ganhou força nas várias áreas de conhecimento recentemente
relacionada ao conceito de qualidade de vida e bem-estar subjetivo.
No campo da Psicologia do Desenvolvimento estudos sobre a satisfa-
ção com a vida utilizando escalas e outros instrumentos buscam oferecer
dados sobre os modos e a capacidade de enfrentamento das adversidades
(resiliência), bem como sobre as estratégias desenvolvidas ao longo do ci-
clo vital, para promover transformações e fortalecer a identidade em prol
do desenvolvimento psicológico.
Cremos que associar sustentabilidade à justiça social é muito pertinen-
te, pois contextos justos são um dos pilares da qualidade do desenvolvimen-
to psicológico. Como vimos ao longo do texto, o contexto sozinho não é res-
ponsável pelo desenvolvimento, mas é um fator importante e necessário.
Contextos de relações cooperativas, respeito mútuo, liberdade de
pensar, certamente tendem a promover uma boa qualidade de vida e de
bem-estar. Interações entre indivíduos em desenvolvimento e contextos
sustentáveis e harmônicos permitem a construção de inteligências ativas
no sentido piagetiano.
Assim, pensar na relação entre desenvolvimento moral, justiça social
e contextos sustentáveis é relevante para a pesquisa em Psicologia e Edu-
cação.
Esperamos ter demonstrado que contextos justos são sustentáveis e
que liberdade e contextos democráticos permitem que a justiça se estabe-
leça enquanto valor individual e coletivo.

30
Referências
Killen, M., Smetana, J. G. (2013). Handbook of Moral Development. Psychology Press.
Kohlberg, L. (1981)- The Philosophy of Moral Development: Moral Stages and the Idea of
Justice. Harper and Row.
La Taille, Y. de (2007). Moral e ética. Dimensões intelectuais e afetivas. ArtMed.
La Taille, Y. de (2010). Moral e Ética: uma leitura psicológica. Psicologia: Teoria e
Pesquisa, 26 (n. especial), 105-114.
Nucci (2000); Moral psychology and education: moving beyond “nice” children. Educ. Pesqui.
26(2). https://doi.org/10.1590/S1517-97022000000200006
Piaget, J. (1930/1996). Os Procedimentos de Educação Moral, In L. Macedo (Org.), Cinco
Estudos de Educação Moral. Ed. Casa do Psicólogo.
Piaget, J. (1932/1994). O Juízo moral na criança. Summus.
Piaget, J. (1944). L’éducation de la liberté/ Jean Piaget. In Berner Schulblatt. - 1945,
Année 77, n 16, p. 297-299. Conférence prononcée au 28’ Congrès suisse des
instituteurs, le 8 juillet 1944, à Berne.
Piaget, J. (1954). Les relations entre l’intelligence et l’affectivité dans le développement
de l’enfant / (Jean) Piaget. Bulletin de psychologie, 7(3-4), 143-150; 7(6-7), 346-361;
7(9-10), 522-535; e 7(12), 699-701.
Piaget, J. & Inhelder, B. (1966/1968). A psicologia da criança. DIFEL.
Wainryb, C., Smetana, J. G, & Turiel, E. (2007). Social development, social inequalities,
and social Justice. Psychology Press. https://doi.org/10.4324/9780203810132

31
O CONFLITO INTERPESSOAL,
JUSTIÇA SOCIAL E SUSTENTABILIDADE

Maria Isabel da Silva Leme


Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo - IPUSP

Situando a sustentabilidade
Partilhamos neste capítulo o compromisso do Grupo de Trabalho
“Contextos Sociais de Desenvolvimento: aspectos evolutivos e culturais”
de refletir, a partir das pesquisas que realizamos, sobre questões relativas
ao desenvolvimento humano, justiça social e contextos sustentáveis, temá-
ticas propostas na XVIII Reunião da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-
-graduação em Psicologia (ANPEPP), que visava com isso, fortalecer uma
Psicologia voltada ao bem-estar social, ao aprimoramento das relações
humanas e a continuidade de recursos materiais e imateriais presentes e
futuros. Neste sentido, apresentaremos as relações destas questões com
nossas pesquisas sobre a resolução de conflitos interpessoais por crian-
ças e pré-adolescentes em diferentes culturas e níveis socioeconômicos. A
escolha deste objeto se justifica em virtude do aumento da violência que
se presencia atualmente no mundo, que compromete o convívio entre as
pessoas e a justiça social. Assim, visamos desde o início destas pesquisas
contribuir não só para maior compreensão do fenômeno e sua diminuição,
como também assegurar a convivência, e a sustentabilidade social. Inicia-
remos pela análise da sustentabilidade, com especial ênfase na social, ten-
do em vista nosso objeto de estudo especificado acima. Daremos continui-
dade analisando ações voltadas para a melhoria da convivência, com foco
nas ações de enfrentamento da violência na escola, de modo a promover
a sustentabilidade social.

32
O conceito de sustentabilidade, segundo Boff (2011) não é novo, pois
vem sendo usado há bastante tempo, com dois sentidos, um ativo, de ação
realizada de fora como conservar, manter, proteger; e outro passivo, que se-
ria sustentar-se, manter-se sempre bem. Significa então os procedimentos
que tomamos para manter algo protegido, preservado. Segundo o autor,
o conceito tem uma história de mais de 400 anos, que poucos conhecem.
Relata que o termo teve sua origem na silvicultura, isto é, na ciência do ma-
nejo de árvores e florestas. Isto porque o uso intenso da madeira das árvo-
res no século XVI, para fundição de metais, combustível para aquecimento
e cozinha, construção das casas, de barcos para as viagens de descoberta,
principalmente por Portugal e Espanha, levou à diminuição acentuada das
florestas. Esta situação despertou a preocupação e reflexão na Alemanha
sobre o uso racional das florestas, de modo que elas pudessem se regene-
rar e se manter, levando ao surgimento do termo em 1560. Entretanto, foi
só em 1713, ainda na Alemanha, no auge da exploração da fusão de metais
com carvão vegetal, que o uso mais racional da madeira foi muito enfatiza-
do, o que levou ao replantio de árvores nas regiões desflorestadas. A partir
daí a preocupação com a preservação das árvores levou à criação de uma
nova ciência, a silvicultura. Boff observa que esta preocupação com a pre-
servação das árvores se manteve e culminou na criação do Clube de Roma,
cujo primeiro relatório versou sobre os limites do crescimento industrial
nos países desenvolvidos e populacional nos subdesenvolvidos. Nascimen-
to (2012) relata que, na década de 1950, quando a poluição nuclear se tor-
nou uma realidade com os experimentos realizados pelas nações detento-
ras deste armamento, e também, com a poluição ocasionada pelo uso dos
pesticidas e herbicidas químicos, a questão da sustentabilidade se tornou
mais premente. Assim, novas iniciativas e ações se acentuaram. Vale ser
destacada, entre as iniciativas mais recentes e importantes da Organização
das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO, 2015)
a aprovação da Agenda 2030.
Esta agenda é norteada pela preocupação com a atividade do ser hu-
mano que tem trazido ameaça ao meio ambiente. Conforme explicitado
acima, para corrigir este caminho, a UNESCO aprovou em 2015 a agenda
33
para o desenvolvimento sustentável 2030, que tem 17 objetivos, denomi-
nados objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS) que devem ser atin-
gidos até 2030. Os 17 objetivos compreendem metas que visam bem-estar
social, educação de qualidade, redução das desigualdades, preservação do
meio ambiente, água, clima, ecossistemas, trabalho, indústria. Assim, os
ODS são voltados para garantir direitos humanos e justiça social, dignida-
de, erradicação da pobreza, igualdade de direitos, respeito a diversidade
cultural, solidariedade e responsabilidade compartilhada.
Dentre eles, vale destacar o 4º objetivo, em função do escopo deste
capítulo, de analisar a sustentabilidade social. Este objetivo visa garantir
educação inclusiva, equitativa e de qualidade, e promover oportunidade
de aprendizagem durante toda vida para todos os seres humanos (UNES-
CO, 2015). Também se deve destacar o 16o objetivo intitulado Paz, Justiça e
Instituições Sólidas, que visa promover sociedades justas, pacíficas e inclu-
sivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar acesso a justiça a
todas as pessoas, e desenvolver instituições eficazes, responsáveis e inclu-
sivas em todos os níveis. Estes objetivos de desenvolvimento sustentável
explicitam os meios para serem atingidos, no caso a educação, configuran-
do-se como metas da sustentabilidade social. Esta tem sido definida como
um conjunto de ações que tem como propósito melhorar a qualidade de
vida da população como um todo, visando reduzir as desigualdades  so-
ciais,  e ampliar o acesso aos direitos e serviços básicos, como educação
e saúde, por exemplo, dando às pessoas acesso pleno a cidadania. Nas-
cimento (2012) salienta que a sustentabilidade social pressupõe o direito
de todos os cidadãos a uma vida digna, erradicando a pobreza, em última
análise implantando justiça social.
Nesta perspectiva, valem serem mencionados alguns exemplos de
ações de sustentabilidade social: implantação de projetos educativos e so-
ciais gratuitos para pessoas de baixa renda; investimentos em educação
pública para melhoria da qualidade do ensino; implantação de programas
visando a inclusão social, principalmente de pessoas com déficit sensorial,
intelectual, motor etc.; ampliação do acesso à Internet para pessoas de
baixa renda; implantação de sistemas de ensino que informem sobre a im-
34
portância da preservação ambiental para a melhoria da qualidade de vida;
incentivo à qualificação profissional, especialmente para jovens e desem-
pregados; orientação aos jovens, através de programas sobre o problema
de consumo de drogas.
No que diz respeito à inclusão escolar de pessoas com algum déficit
motor, sensorial ou intelectual, considerada fundamental para a sustenta-
bilidade social, verifica-se que é concebida como resultado de ações para
reduzir desigualdades sociais, ampliar os direitos e garantir acesso a servi-
ços como educação e saúde. Nesta perspectiva, Schio Silva e Azevedo Filho
(2015) realizaram pesquisa bibliográfica para verificar a produção de pes-
quisas sobre essa problemática. Salientam que a real inclusão se dá pela
adoção de uma sistemática educacional que reconheça e atenda as ne-
cessidades de todos os estudantes que a frequentam. O levantamento foi
feito para verificar o que as escolas deverão fazer para fornecer educação
de qualidade a todos. Verificaram que são necessárias adequações tanto
nos recursos físicos como humanos, de modo a atender as necessidades
de acessibilidade, de atendimento especializado, e adaptação dos alunos.
No tocante a este último aspecto, de interesse pela relação com a temática
deste capítulo, os autores o denominam socialização. Salientam com isso
a necessidade de conscientizar os alunos da escola para receber os novos
colegas com necessidades especiais, de modo a integrá-los na comunidade
e favorecer sua adaptação e permanência na escola.
Considerando a proposta da UNESCO de potencializar a educação
como ferramenta para a sustentabilidade, Amigorena e Chalmeta (2020)
realizaram um estudo em um centro de ensino público espanhol a fim de
verificar como eram trabalhados os objetivos de Desenvolvimento Susten-
tável (ODS) a nível da instituição e dos sujeitos. Para atingir este objetivo
aplicaram questionários nos gestores, professores e alunos do Ensino Fun-
damental e Médio. Verificaram, entre outros resultados, que as disciplinas
que mais focalizaram os ODS foram Ciências Sociais, Ciências Naturais, Eco-
nomia e Filosofia, e as que menos o fizeram foram Matemática e Educação
Física. Considerando estes resultados, os autores apresentaram a proposta
de aperfeiçoamento, visando alinhar a estratégia de gestão do centro com
35
a educação para a sustentabilidade, transformando-a em um conjunto de
planos de ação, concretizados em diferentes projetos, envolvendo docen-
tes e alunos na realização de todos os ODS. Visavam com este trabalho
fornecer base a futuras análises e melhorias semelhantes em outros cen-
tros, considerando a metodologia seguida. Assim, os autores propuseram
outras ações a serem acrescentadas às já existentes na escola. Verificaram
que entre os temas trabalhados nas ações, os que mais despertaram inte-
resse dos alunos do Ensino Fundamental foram Meio Ambiente e Saúde
e Bem-estar, enquanto entre os alunos do Ensino Médio foram Saúde e
Bem-Estar, e Autonomia Pessoal. Nos dois anos finais do Ensino Médio,
denominado Bacharelado, preparatório para o ingresso no Ensino Superior
na Espanha, os mais indicados foram também Saúde e Bem-Estar e Auto-
nomia. Um resultado importante, e que confirma a importância da edu-
cação como meta e ferramenta para a sustentabilidade foi a constatação
de que o interesse dos alunos era maior se a questão da sustentabilidade
estava sendo tratada naquele período de ensino. Verifica-se assim, que a
educação é um meio fundamental para atingir a sustentabilidade social,
devendo portanto, ser resguardada de problemas como a violência em seu
interior para que possa cumprir sua função.

Pesquisas sobre prevenção e intervenção na violência escolar


Nesta seção abordaremos pesquisas sobre iniciativas públicas de pre-
venção e intervenção sobre a violência em um sentido mais amplo, para
em seguida analisarmos especificamente às voltadas para a promoção da
convivência escolar. Segundo Minayo e Souza (1999) foi a partir da década
de 1980 que aumentou o interesse da sociedade brasileira em debater a
questão da violência no campo da saúde, o que se consolidou na década de
1990. Segundo as autoras, tal aumento se deu em virtude do crescimento
de movimentos sociais pela democratização, organizações não governa-
mentais em defesa da infância, e as mudanças no perfil da mortalidade
no país. A violência que até os anos 1960 ocupava o 4o lugar nas causas de
morte, passou para o 2o lugar nos anos 1980 e 1990, incluídas aí as mor-

36
tes por homicídio e acidentes de trânsito de jovens do sexo masculino. As
autoras destacam como pioneiras as iniciativas de prevenção da Faculdade
de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, que iniciou as pesquisas
sobre o problema na década de 1970, e ainda, as da Escola Nacional de
Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), onde foi criado o Cen-
tro Latino-Americano de Estudos sobre Violência e Saúde. Essas iniciativas
levaram o Ministério da Saúde a propor políticas dirigidas para infância e
adolescência para o Sistema Único de Saúde (SUS) e outras entidades.
Uma iniciativa governamental que vale ser referida é o programa Par-
ceiros do Futuro. Segundo fontes do legislativo paulista, responsáveis pela
sua criação, o programa foi aprovado pela Lei no 1032/99 (Assembleia Le-
gislativa do Estado de São Paulo [ALESP], 1999), mas só foi implantado três
anos após sua aprovação. Segundo informado, a gestão anterior privilegiou
outras medidas como instalação de câmeras para prevenção e enfrenta-
mento da violência na escola. Quando efetivamente implantado, o progra-
ma teve a participação de 60 escolas na capital e 56 na Grande São Paulo.
Foram selecionadas 200 escolas para participar no interior. O programa
Parceiros do Futuro consistiu na abertura das escolas nos finais de sema-
na para a comunidade realizar atividades educativas, e também, de lazer
como culturais e esportivas. Pretendia-se com isso dar exemplo de novas
condutas a outras escolas da mesma região, escolhida em função dos al-
tos índices de violência registrados na época, como por exemplo a morte
de um aluno na sala de aula em uma delas (ALESP, 2002). O programa foi
criticado (Pacheco, 2004) por apresentar, entre outras falhas, ausência de
preparo dos professores, falta de articulação com a realidade social das
escolas e seu projeto pedagógico.
Um projeto com objetivos semelhantes é relatado por Martins, Ma-
chado e Furlanetto (2016), que analisaram o projeto paulista Sistema de
Proteção Escolar, na perspectiva de que a educação precisa ser repensada
em termos de sua concepção, pouco adequada ao contexto atual da juven-
tude, em virtude das novas tecnologias. Referem outro aspecto importante
que sofreu mudanças, que foi a concepção de violência em termos de sua
relação com indisciplina e conflitos no âmbito escolar, repercutindo sobre
37
os que ali ocorrem. Segundo as autoras, o uso da violência nesses casos
tem causas internas e externas à escola. As externas seriam causadas pelas
condições socioeconômicas, como exposição à violência nas comunidades,
e as internas seriam o distanciamento entre alunos e escola, que não se
identificam com ela, nem reconhecem ali regras claras e acolhimento das
diferenças, o que indica a necessidade da instituição rever seus valores e
função social. Advertem ainda que a escola precisa se preparar para en-
frentar um cenário cada vez mais adverso em termos da presença da vio-
lência na forma de indisciplina e conflitos em seu interior. Neste sentido,
observam que uma via de enfrentamento do problema dos conflitos nas
escolas pela gestão pública tem sido a criação de políticas e programas es-
pecíficos para enfrentar o problema, como o Sistema de Proteção Escolar,
lançado em 2010 na rede pública paulista. As autoras analisam o programa
em relação a outros realizados pela Secretária da Educação de São Paulo,
dividindo-os em dois grupos, segundo seu escopo. Em um grupo de ações
que enfatizam a participação da comunidade e atenção à saúde, incluíram
programas como o Projeto Comunidade Presente, Projeto Prevenção tam-
bém se Ensina, Programa Escola da Família. No outro grupo, alocaram os
centrados em ações de incentivo ao sentimento de pertencimento a co-
munidade escolar, por meio de ações de prevenção ao consumo de drogas
e de álcool, como o Projeto Prevenção ao Consumo de Álcool em todas
as escolas paulistas, e outros como Justiça Restaurativa e Parceria para a
Cidadania em algumas regiões do estado. O projeto em análise, o Sistema
de Proteção Escolar foi um programa para prevenir, mediar e solucionar
conflitos por meio da intervenção de dois professores mediadores em cada
escola. Para participar, as escolas tinham que atender a duas condições:
localização em áreas de vulnerabilidade social e alto índice de conflitos.
Os autores relatam que o projeto teve grande adesão das escolas, tota-
lizando o envolvimento de mais de 3 mil professores em cinco anos de
existência. Para avaliar o projeto realizaram, entre outras ações, pesquisa
junto a 49 professores mediadores por meio de questionários. Entre outras
informações, como descrição da convivência na escola, verificaram que os
professores mediadores relataram presença de animosidade nas escolas,
38
e de modo genérico, informaram a diminuição de conflitos devido à sua
inserção no ambiente escolar. Também relataram ser procurados pelos alu-
nos para mediarem os conflitos, especificando os mecanismos usados para
esta mediação, como conversas e orientações, concluindo que o programa
promoveu mudanças na gestão das escolas em relação à convivência pela
diminuição das ocorrências de conflito.
O mesmo programa foi alvo de outra publicação de duas das pesquisa-
doras (Martins & Machado, 2016) que nela relatam o que verificaram junto
a 43 diretores escolares em questionários sobre a percepção que tinham
acerca do programa Sistema de Proteção Escolar e suas práticas nas ins-
tituições. Verificaram que mais da metade (60%) estava no cargo há mais
de 4 anos. Constataram que na ocorrência relativamente frequente de de-
predações, a providência dos diretores era chamar os pais ou os próprios
alunos quando adolescentes, a polícia ou guarda civil, e mais raramente
redes de apoio como Conselho Tutelar. Os diretores informaram adotar
os mesmos procedimentos em caso de furtos de equipamentos escolares.
Entretanto, nesses casos informaram chamar a polícia antes de outras pes-
soas. Com relação a problemas ocasionados pelo envolvimento dos alunos
com drogas e álcool, verificou-se que os diretores informaram novamente
chamar a polícia, pais e alunos, e também as redes de apoio. Em relação
aos episódios de violência na forma de troca de agressões verbais ou físicas
entre alunos, os diretores informaram acionar em primeiro lugar os pais e
os professores mediadores comunitários, e por último, a polícia no caso de
agressões verbais. Já no caso de agressões físicas, metade não informou
suas providências. Quanto à percepção dos diretores sobre os professo-
res mediadores escolares e comunitários, verificou-se que esta era positiva
para a maioria, que lhes atribuía a função de mediar e prevenir os conflitos
e dialogar com os pais e com as redes e apoio.
Silva e Assis (2018) realizaram pesquisa bibliográfica, revisando a li-
teratura relativa a prevenção de violência na escola, verificando múltiplas
concepções sobre o fenômeno nas fontes revistas, que vão da restrição
à violência física até a que é gerada pela escola ao negar boas condições
educacionais em seu interior. A revisão foi feita em bases nacionais como
39
Scielo, BVS e também internacionais como Web of Science, Eric e outras.
As palavras-chave ou termos de busca foram de dois grupos. Um grupo
sobre o fenômeno em si como bullying, violência juvenil, indisciplina, con-
flitos, mediação de conflito escolar, cultura da paz, e outro sobre avaliação
da efetividade de programas, estudos de avaliação, validação de estudos
e intervenção, e programas de prevenção da violência. Foram localizados
cerca de 984 estudos, dentre os quais foram selecionados 33 após leitu-
ra dos resumos. O objetivo dos estudos selecionados eram: 1) apresentar
programas de enfrentamento e prevenção de violência escolar realizados,
2) avaliar programas de enfrentamento e prevenção realizados, e 3) reali-
zar revisões da literatura sobre a prevenção e enfrentamento da violência
escolar. A grande maioria dos estudos foi publicada depois do ano 2000.
Também foram maioria nas Américas (26, principalmente América do Nor-
te com 15), pois somente dois foram realizados na Ásia, quatro na Europa
e um na Austrália.
Os programas de enfrentamento salientaram a importância de proce-
dimentos como rodas de conversa, treinamentos com gestores e interven-
ção com pais. Os estudos de avaliação de programas de prevenção identi-
ficaram dois grandes grupos segundo o tipo de ação: ações sobre o clima
escolar como implantação de cultura da paz, e intervenções de caráter
individual como treino de competências socioemocionais, em geral avalia-
das através de questionários. A maioria foi considerada bem-sucedida. Os
estudos de revisão da literatura norte-americanos focalizaram avaliação
das condições metodológicas da implantação na avaliação da efetividade
de programas mais eficazes, que focaram o comportamento disfuncional.
Estes estudos enfatizaram a importância de cuidados antes da implantação
do programa, como, por exemplo, cuidadosa caracterização do contexto
escolar porque este tem um papel importante no seu sucesso. Nos pro-
gramas de prevenção ao bullying foram identificados como importantes a
caracterização do contexto escolar, como clima nas salas de aula, relação
dos alunos com a escola, que quando negativa propicia mais violência. Os
resultados verificados pelos estudos focados na avaliação dos programas
de intervenção identificaram que os mais eficazes focaram no treino de
40
estratégias para lidar com conflitos. E finalmente, estes estudos de revisão
verificaram ainda que programas mais bem-sucedidos focalizaram, além
das estratégias de enfrentamento, o desenvolvimento de habilidades so-
ciais. São então aspectos que tem maior impacto sobre a prevenção e en-
frentamento do bullying e outras formas de violência escolar, a capacitação
docente para trabalhar estas situações, a conscientização do fenômeno,
o apoio aos alunos, treino de competências para resolução de conflitos.
Além disso, verificou-se que a prevenção é mais eficaz quanto maior a in-
tegração com atividades cotidianas da escola, maior o tempo dedicado ao
planejamento e padronização de materiais e métodos, e ações condiciona-
das a características da escola e da comunidade.
Objetivo semelhante levou à pesquisa realizada por Belga, Silva e Sena
(2017) que analisaram as concepções e objetivos que orientaram sete pro-
gramas de prevenção a violência propostos em Belo Horizonte (MG) locali-
zados online. Verificaram que foram em sua maioria dirigidos a jovens, ou
a docentes e escolas, propondo medidas de ação e implantação de cultura
da paz. A maioria dos programas (quatro em sete) colocaram como objeti-
vo prover informações, ou mesmo formação aos jovens, aos docentes e às
escolas. Dois programas colocaram como objetivo a redução da mortalida-
de, e outro, a atuação na formação de uma cultura de respeito aos direitos
humanos. Além disso, as autoras identificaram diferentes concepções de
cultura da paz nos programas examinados, tais como promoção à prática
da não violência (identificada nos sete programas), promoção do fim da
exclusão, da injustiça e opressão (cinco programas), promoção dos direitos
humanos e das liberdades fundamentais, promoção do desenvolvimento
respeitoso a todas as formas de vida (três), promoção da educação para
a paz (três), promoção da liberdade de expressão e diversidade cultural
(um). As autoras observam que embora os programas representem avanço
para uma cultura da paz, ainda podem ser identificadas lacunas importan-
tes na implementação desta para enfrentamento da violência. Isto porque
observam que embora o jovem seja o foco, falta protagonismo, pois os ob-
jetivos se limitam a preconizar ações voltadas para o abandono de compor-
tamentos de risco, como consumo de drogas e envolvimento em conflitos,
41
e não como agente ativo capaz de promover mudanças significativas no
modo de pensar desconstruindo paradigmas.
As iniciativas relatadas acima evidenciam que o que é importante não
é reprimir a ocorrência de conflitos como se faz com frequência pela pu-
nição e pela criação de regras e regulamentos com este fim (Tognetta &
Rosario, 2013). Pelo contrário, os conflitos fazem parte da vida e como tal
devem ser enfrentados. Vale lembrar que os conflitos são situações de de-
sentendimento e consequente oposição, que surgem entre as pessoas, que
podem ser resolvidos pelo enfrentamento violento ou pacífico, ou ainda
pelo não enfrentamento. O enfrentamento violento se dá por meio de uso
de violência física ou verbal, cujo objetivo é submeter a outra parte pela
intimidação. Já o enfrentamento não violento, isto é pacífico, ocorre pela
negociação ou conciliação de interesses das partes. E o não enfrentamento
ocorre pela esquiva ou fuga da situação (Leme, 2004; Leme & Carvalho,
2014; Leme, Bechara & Kfoury, 2018; Chiaparini, Mendes & Leme, 2018).
É importante observar que as formas de enfrentamento não violento,
negociado, com conciliação dos interesses de todos os envolvidos no
conflito, demandam, em virtude de sua maior complexidade, tanto
aprendizagem como desenvolvimento psicológico. Isso porque a situação
de conflito demanda que os nela envolvidos reflitam sobre o que está
em jogo na situação, os direitos de cada um, as alternativas de ação
possíveis, os riscos envolvidos em cada alternativa, resultados prováveis,
além dos sentimentos despertados. É neste sentido que é necessário
maior desenvolvimento psicológico porque lidar com maior quantidade
de informações exige maior capacidade de memória e experiência com a
situação, que favorecem a construção de esquemas de resolução.
Neste sentido, o impacto causado pelos conflitos mal resolvidos ou
até não resolvidos pode ser evitado pela aprendizagem de estratégias de
resolução que garantam melhor convivência no grupo. Esta, por sua vez,
vai garantir que o ambiente na escola seja mais favorável à aprendizagem
dos conteúdos escolares, pela maior tranquilidade reinante, que promove
melhor condição de ensino ao professor e aprendizado aos alunos. Por ou-
tro lado, garante também a permanência de alunos na escola, em virtude
42
de seu menor envolvimento em conflitos resultantes dos mal resolvidos
anteriormente. Isto porque ao se envolver em novos conflitos em função
da má resolução dos anteriores, o aluno fica mais vulnerável a suspensões
e outras sanções que podem comprometer seu desempenho acadêmico,
levando ao abandono da escola e consequente exclusão social no futuro.
Verifica-se assim como a diminuição da violência na escola contribui para
a justiça social. Examinaremos a seguir iniciativas de pesquisa que investi-
garam especificamente resultados advindos de programas de promoção da
convivência na escola.

Pesquisas sobre promoção da convivência na escola


Um programa proposto pelo Ministério da Educação “Ética e Cida-
dania” é descrito por Silva e Salles (2010) como uma das únicas iniciati-
vas governamentais na época para trabalhar a questão da convivência na
escola, focalizando a questão da violência escolar em um módulo. Neste
programa, as escolas eram incentivadas a propor ações para promover a
convivência harmoniosa em seu interior, sem a pretensão de eliminar os
conflitos, mas sim trabalhar para que sua resolução fosse por meio de es-
tratégias favoráveis à sua resolução.
Outra proposta voltada para a melhoria da convivência comunitária
pela intervenção na resolução de conflitos em escolas é apresentada por
Rodriguez e Vaca (2010). As autoras em pesquisa prévia verificaram a ocor-
rência frequente de intimidação e exclusão entre pares. Assim, elaboraram
em conjunto com pais, gestores, professores e alunos um projeto de in-
tervenção, baseado nas propostas da UNESCO de promoção da cultura da
paz, que consistem na promoção das relações cooperativas, inclusivas, e
tolerantes, assim como a erradicação da agressão como estratégia de re-
solução de conflitos, incentivando as pacíficas. Para tanto revisaram o ma-
nual de convivência da instituição participante, elaboraram um programa
para desenvolvimento de competências comunicativas, emocionais e cog-
nitivas, favorecedoras de interações inclusivas, ofereceram assistência psi-
cológica individual ou familiar aos participantes, e estimularam o trabalho

43
em redes internas e externas. Por ocasião da publicação da intervenção, as
três primeiras etapas haviam sido implementadas. As autoras relatam que
os resultados obtidos com os professores foram positivos e que o trabalho
com os pais deve ser constante.
A pesquisa realizada por Tognetta et al. (2020) abordou no Brasil e
na Espanha a qualidade da convivência escolar, já salientada como base
importante da sustentabilidade social. Nesta pesquisa investigaram a per-
cepção dos alunos sobre o impacto da presença de bases de apoio na es-
cola para a convivência. Investigaram mais especificamente, como o clima
escolar era percebido pelos estudantes de escolas brasileiras e espanholas
com e sem equipes de apoio. Estas equipes foram formadas por alunos
indicados por seus colegas em um programa voltado para promover a con-
vivência. A percepção foi avaliada através das respostas a um questionário
com perguntas fechadas em alternativas sobre a convivência na institui-
ção. Os resultados mostraram que o relacionamento com os colegas foi
mais bem avaliado nas escolas com essas equipes no Brasil e na Espanha.
A proporção de avaliações positivas foi menor nas escolas sem equipes.
Também se verificou que nas instituições brasileiras que contavam com
equipes de apoio, mais alunos apontaram ter mais amigos (seis ou mais)
na escola do que nas sem equipe de apoio. Vale relatar que na Espanha
não foi observada a mesma diferença. Ainda nestas instituições do Brasil,
a porcentagem de alunos que informou não ter amigos na escola foi maior
do que naquelas que contavam com equipes de apoio. Com relação ao sen-
timento de solidão no recreio, verificou-se que tanto na Espanha como no
Brasil, menores proporções de alunos de escolas com equipe de apoio re-
velaram experimentar este sentimento no período. Também foram encon-
tradas diferenças significativas em relação ao sentimento de bem-estar na
escola, sendo que naquelas com presença das equipes de apoio, 70% dos
brasileiros e 80% dos espanhóis na mesma condição revelaram sentimento
de bem-estar, e contingentes menores revelaram sentir-se mal na escola.
Com relação ao tratamento recebido dos professores, verificou-se que
os espanhóis relataram sentir-se mais bem tratados por eles do que os
brasileiros, independente do tipo de grupo. Também se verificou diferença
44
maior entre brasileiros e espanhóis no sentimento de medo de ir à escola,
independente do grupo, muito mais frequente entre os brasileiros do que
entre espanhóis. O motivo para o medo seriam colegas, professores, ou
insegurança quanto a algum conteúdo. Assim, verificou-se que, de modo
geral, os alunos espanhóis relataram sentir-se melhor na escola do que os
brasileiros. Porém, no Brasil, mais alunos apontaram sentirem-se melhor
nas escolas com equipes de apoio do que nas sem este recurso, principal-
mente na prevenção de bullying.
A pesquisa apresentada traz indicações importantes sobre a convivên-
cia nas escolas brasileiras, evidenciando a necessidade de ações por parte
da escola que fomentem a convivência pacífica em seu interior, como a
presença de pares para conferir bem-estar e segurança aos alunos. Essas
intervenções nas instituições de ensino, ao fazer o aluno se sentir seguro
permitem que ele desenvolva a sociabilidade através da boa convivência
com seus pares, permaneça na escola, dando continuidade à sua educa-
ção. Contribuem assim para a sustentabilidade social.
Vale relatar ainda que investimentos em programas voltados para a
formação de jovens tem alcançado bons resultados segundo o Atlas da
Violência 2021 (Instituto de Pesquisa Aplicada [IPEA], 2021). Entre eles
valem ser destacados programas de segurança pública inovadores que
trouxeram resultados positivos para o Brasil a partir dos anos 2000. O
programa Estado Presente realizado em 2011 no estado do Espírito San-
to teve dois eixos de atuação, um deles de proteção social por meio de
iniciativas na educação, cultura e qualificação profissional. O programa
focalizou a criação de oportunidades para pessoas que vivem em bairros
mais vulneráveis. Assim, se logrou diminuir a taxa de mortalidade por
homicídios, que em 2008 era de 56,4 pessoas para 100 mil habitantes e
em 2019 passou a ser de 29,3. O Atlas da Violência também destacou o
programa do estado da Paraíba chamado Unidos pela Paz, lançado em
2011. Foi observada uma diminuição na taxa de homicídios de 42,8 para
cada cem mil habitantes para 31,8 em 2018. Estes menores índices são
atribuídos a ações de prevenção social focadas nos jovens de regiões
com alta vulnerabilidade social.
45
Concluindo, as pesquisas analisadas comprovam a importância da
educação para a sustentabilidade social. Neste sentido, a educação é um
dos meios mais importantes para a prevenção e intervenção sobre a vio-
lência, no caso, os conflitos interpessoais, que se bem resolvidos, viabili-
zam o convívio nas escolas, favorecendo a escolarização dos alunos, condi-
ção necessária para desenvolvimento sadio.

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47
O BRINCAR E A CONSTRUÇÃO DE UM MEIO
CULTURALMENTE SUSTENTÁVEL

Juliana Maria Ferreira de Lucena


Universidade de Pernambuco - UPE

Maria Isabel Pedrosa


Universidade Federal de Pernambuco - UFPE

A criança é concebida como um ser em desenvolvimento. Esta é uma


afirmação genérica com a qual não há discordância. Entretanto, nem sem-
pre ela é compreendida com todas as suas implicações: ao se desenvolver,
a criança aprende sobre vários aspectos do seu entorno físico e social, mas
também constrói ativamente o seu nicho ontogenético. Ela é protagonista
nesta tarefa e com seus parceiros sociais ela também constrói a cultura da
qual participa (Corsaro, 2011; Lucena et al., 2021). Neste capítulo, defen-
de-se que o brincar é mais do que um direito da criança ao lúdico pelas
repercussões em seu desenvolvimento; é um modo de construir contextos
sustentáveis, pois, ao se apropriar da cultura, ela também a transforma,
elaborando formas de ser e de estar coletivamente, com os recursos de
que dispõe em cada momento, e isto implica a possibilidade de continui-
dade e desdobramentos de sua microcultura – o meio cultural constituído
com a participação das crianças e, ao mesmo tempo, constituidor das rela-
ções das próprias crianças.
A discussão sobre o brincar infantil volta a merecer atenção dos pais
e educadores que lidam com a criança em face das medidas de distan-
ciamento físico no período da pandemia provocada pelo vírus Sars-CoV-2.
Mas, as repercussões do brincar na ontogênese humana nunca deixaram
de ser investigadas entre os estudiosos da psicologia infantil visando espe-

48
cificar a natureza dessa atividade e sua relação com a sociabilidade huma-
na (Carvalho, 1989a). São muitas as formas de brincar e elas têm a ver com
o período de desenvolvimento da criança, com os recursos disponíveis no
ambiente e com os contextos socioculturais que circunscrevem a ativida-
de (Carvalho & Morais, 1987). Além disso, o brincar não é uma atividade
exclusivamente humana; vários outros animais também brincam (Bekoff,
1976; Bekoff & Byers 1998).
Apesar de ser compartilhada com outros animais, existem especifi-
cidades no brincar humano, com contornos e desdobramentos próprios,
uma vez que o brincar interage com várias outras funções mentais de na-
tureza semiótica, próprias do ser humano. Essa discussão integra o pre-
sente capítulo com um conjunto de estudos realizados sobre o brincar e a
brincadeira. Inicia-se chamando a atenção para o enfoque evolucionista do
brincar; segue-se, caracterizando-se o brincar e a brincadeira da criança;
especificam-se brincadeiras infantis e seus desdobramentos; finalmente,
discute-se que a brincadeira coletiva constrói a microcultura do grupo de
crianças quando este grupo efetiva processos de apropriação do entorno
sociocultural.

O brincar e a evolução
A teoria da evolução nos ajuda a olhar o comportamento relevante
como aquele que garante a aptidão (fitness) da espécie. Darwin observou
que se as características de indivíduos que promoveram mais sobrevivên-
cia e reprodução forem herdadas por seus descendentes, estes teriam mais
chances de se adaptar ao ambiente do que aqueles que não tinham essas
características (Richerson et al., 2021). Nesta direção, podemos dizer que o
comportamento de brincar foi selecionado como relevante para adaptação
de espécies de vertebrados sociais (causas últimas), como é o caso da es-
pécie humana (Eibl-Eibesfeldt, 1989; Grave & Thomsen, 2016; Grave et al.,
2014; Otta, 2017; Yamamoto & Carvalho, 2002). Portanto, a história evolu-
tiva desse comportamento em outras espécies animais pode ajudar-nos a
compreender melhor a brincadeira na espécie humana.

49
Como já anunciado, brincar é um comportamento que está presente
em muitos animais. A Biologia, especialmente revisando a literatura so-
bre o comportamento animal, acumula um conjunto de evidências sobre
o brincar em mamíferos (Bekoff, 1976; Bateson & Martin, 2013) e em vá-
rias espécies de aves (Burghardt, 2005; Graham & Burghardt, 2010). Há
também registros de comportamento lúdico em peixes (Burghardt, 2005,
2015). Esses estudos de orientação evolucionista, sobre o papel da brin-
cadeira na filogênese e na ontogênese, trazem contribuições importantes
tanto pela ênfase dada à descrição detalhada do brincar e do comporta-
mento social envolvido nas situações lúdicas (Blurton Jones, 1981; Bekoff,
1976), quanto pelo entendimento das especificidades do brincar no de-
senvolvimento humano (Bjorklund & Pellegrini, 2002; Smith, 2010; Brown,
2010).
É importante comentar que essas pesquisas em Biologia são
desenvolvidas independentemente da literatura da Psicologia do
Desenvolvimento Infantil. Iniciativas pontuais de ambas as áreas do
conhecimento (Pellegrini, 2009, 2011, Pellegrini & Smith, 1998; Smith,
2010; Bateson & Martin, 2013; Bichara et al., 2009; Gosso et al., 2005;
Gosso & Carvalho, 2013; Bussab, 2003, Otta, 2017, Power, 2000) têm em-
preendido esforços para colocar em diálogo as descobertas de pesquisas
em comportamento animal sobre o brincar com os estudos em desenvol-
vimento infantil.
A perspectiva psicoetológica, por exemplo, pode ser alçada como uma
integradora dos estudos biológicos do comportamento com os fenômenos
psicológicos neles implicados (Otta, 2017). A observação naturalística de
comportamentos ecologicamente relevantes é bem-vinda quando estamos
falando do brincar: atividade intrinsecamente motivada com um alto valor
adaptativo, especialmente na evolução dos primatas superiores.
Chimpanzés usando galhos como se fossem bonecas (Kahlenberg &
Wrangham, 2010), grupos de macacos japoneses e macacos rhesus brin-
cando com pedregulhos (Nahallage & Huffman, 2012), brincadeiras entre
macacos-prego (Resende & Ottoni, 2002), golfinhos (Spinelli et al., 2002),
ratos e hamsters (Vieira & Sartorio, 2002) são algumas das evidências acu-
50
muladas na literatura do comportamento animal que sinalizam a importân-
cia de estudar o brincar a partir de um viés comparativo10. Esses exemplos
ajudam a descobrir padrões que parecem fazer parte do comportamento
lúdico e, também, a identificar características próprias deste comporta-
mento para cada espécie. Além disso, auxiliam na busca por uma definição
que contemple essas características, possibilite que o comportamento de
brincar seja reconhecido quando ele ocorre e evite interpretações antro-
pomórficas do comportamento dos outros animais quando comparados
aos humanos (Burghardt, 2005).
Os clássicos critérios sistematizados por Burghardt (2005) ajudam a
definir as características do complexo comportamento de brincar e relatar
a sua ocorrência em diversas espécies. São eles: (1) o comportamento é
espontâneo, voluntário e reforçado em benefício próprio (motivação in-
trínseca); (2) não há uma função imediata para a sua ocorrência; (3) são
comportamentos incompletos, exagerados, com sequências modificáveis;
(4) seu desempenho ocorre repetidas vezes de forma similar, porém, sem
estereotipias; e (5) ocorre em ambientes relaxados onde os sujeitos não es-
tão em situação de perigo real ou doença. Bateson e Martin (2013) acres-
cem ainda um sexto critério a esses cinco listados: é o estado de humor
positivo que acompanha a brincadeira e que possibilita que os sujeitos se
comportem espontaneamente de uma maneira flexível. Esse estado de hu-
mor positivo subjacente à brincadeira nem sempre é detectado por quem
a observa, mas pode ser inferido no contexto em que ocorre.
Além desses critérios, há um consenso na literatura (Bateson, 2011;
Smith, 2010; Spinka et al., 2001) de que a brincadeira minimiza a seve-
ridade das consequências da ação e oferece oportunidade para tentar
combinações variadas de ações que podem estabelecer padrões moto-
res cada vez mais complexos para os brincantes, por exemplo. Brincar
também permite a preparação para o inesperado e a aprendizagem de
10 Para mais exemplos sobre brincadeira em humanos e outros animais usando uma perspectiva
comparativa da etologia, ver: Fagen, R. (1981). Animal play behavior. New York: Oxford University
Press; Bekoff, M. & Byers, J. A. (1998). Animal play: evolutionary, comparative, and ecological
perspectives. Cambridge University Press; e, Burghardt, G. (2005). The genesis of animal play:
testing the limits. MIT Press.
51
vários comportamentos, inclusive comportamentos sociais, numa situa-
ção de baixo risco, muito antes de serem usados para fins específicos
(Spinka et al., 2001). A brincadeira ainda garante interações intensas
com o coespecífico desde o início da vida e é um importante veículo de
experimentação do ambiente.

O brincar e a brincadeira de crianças


As brincadeiras nas suas diferentes formas de se manifestar entre os
humanos, no período inicial de sua vida – desde a brincadeira manipulativa
solitária ao faz de conta coletivo – possibilitam a experimentação de capa-
cidades sociocognitivas (teoria da mente, compreensão de emoções, per-
cepção, linguagem) (Smith, 2010), de relações socioafetivas (Bussab, 2003;
Carvalho, 1989a) e de posicionamento no grupo social (Pellegrini, 2011).
Em crianças, a brincadeira pode se manifestar de formas diferentes
e complexas, com especificidades em relação a sua estrutura, motivação,
causa e função biológica – formas pelas quais os comportamentos geral-
mente são categorizados pelos estudiosos da brincadeira (Pellegrini, 2009).
Brincadeira solitária, manipulativa, de construção, motora, social, de faz de
conta e o brincar de luta são diferentes formas de o comportamento se
manifestar e possuem características próprias a depender da idade e do
repertório cognitivo da criança.
Brincar de faz de conta, por exemplo, é um comportamento que pare-
ce não ser exclusivo do humano, se lembrarmos das evidências já comen-
tadas de macacos japoneses carregando gravetos de madeira como se fos-
sem filhotes (Kahlenberg & Wrangham, 2010). Observações realizadas com
chimpanzés (Matsuzawa, 2020) e bonobos (Wrangham & Peterson, 1996)
também evidenciam a presença desse comportamento no repertório desses
animais. Esse tipo de brincadeira, nos primatas com o córtex complexo, pos-
sibilita explorar o uso da linguagem, de consciência de si e da compreensão
de como o outro pensa e se comporta (Smith, 2010). Os desdobramentos
da sofisticação da brincadeira de faz de conta entre os primatas podem
ter relação com as características psicológicas necessárias para a evolução

52
cultural cumulativa (por meio de processos de imitação e inovação) típicas
da espécie humana e que pressupõem uma compreensão social.
Em relação às brincadeiras de luta (rough-and-tumble play), apesar
de a ausência de estresse ser um dos critérios para a identificação do brin-
car, envolvem comportamentos de competição e brigas (Smith, 2010; Pe-
llegrini, 2011; Gray, 2013). Verdadeiramente, são brincadeiras de faz de
conta, mas possuem características bem específicas e são apresentadas
em destaque. Os etólogos também têm usado o termo brincadeiras ago-
nísticas para incluir brincadeiras de luta, de perseguição e de fuga (Parker,
1984). O termo agonístico vem da palavra grega para luta agõn. Ataque e
medo são mutuamente experimentados em comportamentos agonísticos
(Hinde, 1970). Essa forma de brincadeira é caracterizada pelo esquema de
revezamento – presente nas interações de muitos animais e nas interações
humanas de brincadeira face a face e de contingência social a partir das
primeiras semanas de vida – e pelo exercício vigoroso do corpo todo. O
ataque é reforçado por surpreender e perseguir o parceiro. O medo é esti-
mulado por cair ou submeter-se ao ataque. Ambas as emoções são praze-
rosas em intensidade moderada, mas podem se tornar desagradáveis com
o aumento da intensidade e transformarem-se em ataque real ou medo
real. Características como “a cara de brincadeira” (play face) e sinais sociais
específicos são usados pelos participantes como dicas para circunscrever a
situação cooperativa de brincadeira e os limites da competição e da forca
física empregada, o que possibilita distingui-la de uma situação de briga
real. Em termos de estrutura, a brincadeira de brigar é caracterizada por
troca de papéis recíproca, entre dominante e dominado, e autodesvanta-
gem, quando o mais forte ou o maior é o que se coloca no lugar desvanta-
joso.
A observação do comportamento de animais humanos (Smith, 2010;
Gray, 2013) e não humanos (Pellis & Pellis, 2011) possibilita-nos enumerar
alguns critérios para a distinção da brincadeira de brigar em relação a uma
briga real o que facilita a identificação de comportamentos lúdicos, que
são bem distintos de comportamentos agressivos. No rough-and-tumble
play, de acordo com esses pesquisadores: não há conflitos por recursos;
53
uma criança convida a outra para brincar e esta é livre para aceitar ou não
o convite; é acompanhado pela cara de brincadeira (sorriso largo com boca
aberta e expressão facial e vocal de brincadeira); não desperta interesse
de quem não está participando; o participante mais forte não usa toda a
sua força física e favorece o participante mais fraco; o contato entre os par-
ceiros geralmente é gentil e os golpes não são dados com muita força; os
participantes revezam o papel de perseguidor e perseguido, de quem ataca
e quem é atacado; e, frequentemente, ficam juntos enquanto mudam para
outra atividade. Por outro lado, na briga real ou agressão: há conflito por
recursos tal como espaço, brinquedo e equipamento; uma criança desafia
a outra e esta responde com raiva; é acompanhada por uma vermelhidão
no rosto, testa franzida e choro; raramente mais de duas crianças estão
envolvidas inicialmente no episódio, mas desperta interesse de quem não
está participando – frequentemente atrai espectadores para assistir a bri-
ga; não há favorecimento ao mais fraco; a contenção do contato ocorre em
menor grau ou não existe; não são observadas trocas de turno; quando
acaba o episódio, os participantes se separam (Smith et al., 2004; Pellegrini
& Smith, 2005).

Brincadeiras em crianças humanas e seus desdobramentos


Observações a partir de um referencial psicoetológico propiciaram a
exploração do comportamento lúdico nos humanos. O estudo da interação
criança-criança tem um importante papel no refinamento do olhar para o
comportamento infantil e os processos psicológicos a ele subjacente (cf.,
por ex., Blurton Jones, 1981; Hinde, 1979; Carvalho, 1989a; Carvalho &
Morais, 1987; Carvalho et al., 1998; Bussab, 2003; Gosso et al., 2005; Lor-
delo & Carvalho, 1999).
O brincar é entendido como um comportamento funcional (no sentido
biológico de aumento de fitness) no desenvolvimento humano (Carvalho,
1989a, Carvalho, 1989b). É comum que o adulto conceba o brincar das
crianças apenas como um treino para a vida adulta distorcendo o sentido
funcional deste comportamento (em termos evolutivos) (Copeland et al.,

54
2012; Gray, 2011a, 2011b, 2013; Martins & Cruz, 2020). Parte-se da con-
cepção errônea de que a criança brinca para se desenvolver.
Não é incomum também que as escolas de educação infantil, por
exemplo, neguem às crianças a brincadeira livre em função de jogos pe-
dagógicos para ensinar conteúdos escolares. Priva-se a criança do brincar
com seus pares e os professores deixam de observá-la em uma situação na
qual ela revela grande parte do seu potencial (Elkind, 2008; Lordelo et al.,
2012; Pedrosa et al., 2018).
Um olhar psicoetológico para a brincadeira ajuda a deixar claro que a
criança brinca não porque isso a torna mais competente (seja do ponto de
vista próximo ou último, em termos evolutivos); ela brinca em decorrência
de sua motivação intrínseca e ausência de consequências imediatas – o
prazer no próprio brincar.
Os estudos que se dedicam a investigar as brincadeiras infantis em
contexto coletivo de desenvolvimento têm ajudado a ampliar a compreen-
são de como as crianças estabelecem significados compartilhados para a
elaboração de temáticas de brincadeiras sociais com sequências comple-
xas de interações, durante as quais há um engajamento em atividades de
grande elaboração motora (Amorim, 2012; Amorim et al., 2012; Bussab,
2003; Carvalho & Pedrosa, 2002; Carvalho et al., 2012; Lucena & Pedrosa,
2014; Pedrosa & Carvalho, 2009; Pedrosa et al., 2018; Viana & Pedrosa,
2014). A partir da análise destas construções coletivas, expressas por meio
de emoções, gestos e movimentos do corpo, é possível aprofundar o estu-
do sobre como as crianças compreendem significações que circunscrevem
o seu ambiente social, mesmo sem ter um sistema de representação inte-
gralmente elaborado.
Em um estudo longitudinal, Eckerman e colaboradores (Eckerman et
al., 1989; Eckerman & Didow, 1989, 1996; Eckerman & Stein, 1990) en-
contraram um grande aumento de atividades compartilhadas espontanea-
mente para atividades cooperativas em crianças entre um e dois anos de
idade (20 e 24 meses). Esse resultado é explicado pela imitação mútua de
ações não verbais, como pular ou correr. As crianças, por meio de suas ati-
vidades imitativas não verbais, parecem criar um entendimento conjunto
55
sobre o que estão fazendo juntas. O uso dessas ações imitativas ajuda o
desenvolvimento de meios verbais de “ações coordenadas cooperativas”.
Em um capítulo de revisão, Eckerman e Peterman (2004) discutem sobre o
desenvolvimento sociocomunicativo de pares de crianças pequenas e con-
ceituam esse tipo de brincadeira específica. Pela definição, as ações coor-
denadas cooperativas possuem as seguintes características: existência de
influência social mútua entre os participantes; e ações das crianças contri-
buem para um mesmo tema de brincadeira. As pesquisadoras esclarecem
que essas duas características precisam estar necessariamente presentes
para dizer que há a ocorrência de ações coordenadas cooperativas. Esse
esclarecimento é necessário porque existem momentos interativos em que
se pode observar a interação social com uma sequência alternada de tur-
nos, apesar de as ações não estarem coordenadas para a elaboração de
uma temática. Ou seja, não basta que haja influência social mútua para se
reconhecer uma ação coordenada cooperativa; é necessário também que,
na situação interativa, as crianças ajam conjuntamente em relação a um
tema comum de brincadeira negociando significados com o parceiro.
Interações desse tipo equivaleriam ao que Tomasello (2019) chama
de interações colaborativas ou engajamento coordenado conjunto, nos
quais a criança se envolve com o parceiro em sessões relativamente
longas de interação social. Segundo o autor, nesse tipo de interação
também ocorre compartilhamento de intencionalidades, o que impli-
ca intensa negociação de significados. É bom esclarecer que a noção
de intencionalidade para esse pesquisador inclui a compreensão que a
criança tem dos estados de atenção dos seus coespecíficos e daqueles
comportamentos que são voltados para um objetivo (comportamentos
que se utilizam de estratégias).
Eckerman e Perterman (2004), por sua vez, comentam que para se
ajustar à intencionalidade do outro e agir de forma coordenada para rea-
lizar uma atividade junto com o parceiro, deve existir uma negociação de
significados como uma forma de se estabelecer um entendimento conjun-
to do objeto sobre o qual o par pode interagir. Quando engajadas em ações
coordenadas cooperativas, as crianças se apropriam e manipulam o objeto
56
de uma forma similar àquela do parceiro, estabelecendo com ele um tipo
de ação comum que coopera para um tema de brincadeira.
Eckerman e Peterman (2004) argumentam ainda que o engajamento
das crianças em ações imitativas não verbais implica o crescimento de ações
coordenadas cooperativas, principalmente quando rituais específicos bem
cadenciados não podem ser realizados e/ou quando as crianças ainda não
têm habilidades verbais suficientes para negociarem o que querem fazer
juntas. Diante desse achado, as autoras fazem o seguinte questionamen-
to: quais as evidências que sustentam a afirmação de que a imitação da
ação do parceiro ajuda no estabelecimento de um tema de brincadeira
para a construção de ações coordenadas cooperativas? De acordo com as
pesquisadoras, o primeiro ponto que pode ser considerado é que as ações
imitativas tendem a gerar novas ações imitativas e, consequentemente,
estabelece-se um tópico comum: a própria ação. É como se as imitações
produzissem uma espécie de tração central das ações dos parceiros. Ao
executarem ações similares, estas tendem a se reproduzir e se diferenciar,
tornando a brincadeira mais complexa.
Ainda tendo como base o trabalho de Eckerman e colaboradores
(Eckerman & Didow, 1989, 1996; Eckerman & Peterman, 2004), além da
imitação, outras formas não verbais de comportamentos também pare-
ciam facilitar o engajamento de ações coordenadas cooperativas. Olhares
concentrados, gestos, vocalizações, sorrisos para o par eram expressões
que frequentemente ocorriam segundos antes do desenrolar da ação te-
mática e permaneciam durante e depois da brincadeira. As autoras discu-
tem que essas formas de expressões afetivas contribuem para as crianças
criarem interações com significações compartilhadas. Apesar de a comu-
nicação se estabelecer principalmente por meios não verbais, quando os
meios verbais começam a se estruturar, eles também são integrados às
ações coordenadas cooperativas. Cabe realçar que as autoras elaboraram a
hipótese de que o engajamento em ações coordenadas não verbais facilita
o desenvolvimento de meios verbais de realização de ações coordenadas.
Talvez, com o desenvolvimento das habilidades verbais, as ações imitativas
tendam a desempenhar uma força um pouco menor nas criações das crian-
57
ças, principalmente depois do quarto ano de vida. Mais pesquisas precisam
ser realizadas nessa direção investigativa para explorar esses mecanismos.
No estudo relatado e em outros estudos na área (Amorim, 2012; Amo-
rim et al., 2012; Lucena & Pedrosa, 2014; Viana & Pedrosa, 2014), processos
de construção e compartilhamento de informações se estabelecem por in-
termédio das ações corporais das crianças e podem ser inferidos na constru-
ção de suas brincadeiras. Løkken (2000) evidencia a necessidade de enxer-
gar a importância da utilização do corpo para o estabelecimento de trocas
comunicativas – “modos de compartilhamentos corporais” – que possibili-
tam a construção da brincadeira. A pesquisadora argumenta que as crianças
pequenas realizam trocas intersubjetivas umas com as outras por meio dos
movimentos realizados nas brincadeiras sociais que constroem.

Brincadeira e cultura
Examinando o que ocorre nas brincadeiras coletivas infantis, Corsa-
ro (2009a, 2011) elaborou o conceito de reprodução interpretativa para
explicar o modo como as crianças assimilam aspectos da macrocultura:
elas reproduzem o que observam em seu entorno, mas interpretam a seu
modo, a partir de seu ponto de vista e para atender a seus propósitos do
brincar. Desse modo, elas assimilam, mas também transformam e recons-
troem a cultura. Em outras palavras, elas criam a microcultura do grupo
de brinquedo, um grupo com o qual convivem e, portanto, reconhecem os
pares e a si própria como pertencentes ao grupo. Vygotsky (1966/2016), ao
discutir o papel do brinquedo no desenvolvimento, afirma que no brincar a
ação está subordinada ao significado e, assim, ela amplia as possibilidades
e se comporta além do habitual.
Brincadeira também é cultura (Carvalho et al., 2003; Corsaro, 2009b;
Gosso et al., 2015). A universalidade e a especificidade da brincadeira como
prática cultural ajuda-nos a refletir sobre os padrões lúdicos universais e
a evolução das características psicológicas humanas presentes no brincar
(Gosso et al., 2005), bem como sobre as idiossincrasias de contextos so-
cioculturais nos quais as crianças se desenvolvem (Gosso & Otta, 2003;

58
Santos & Dias, 2010; Seixas et al., 2012; Teixeira & Alves, 2008). Estudar
as crianças, seu brincar e suas brincadeiras é aprender sobre os modos
de transmissão, apropriação e transformação das regras do seu contexto
social maior, na microcultura do grupo de brinquedo (Carvalho & Pedrosa,
2002; Lucena & Pedrosa, 2014). É compreender esse fenômeno superan-
do a dicotomia individual versus social; é reconhecer que a sociabilidade
humana faz parte de um sistema integrado de relações da natureza e que
a criança, mesmo em tenra idade, também é protagonista desse empreen-
dimento – a construção de contextos sustentáveis.
O estar juntas propicia o compartilhamento; e o que é compartilhado
tem a possibilidade de persistir no grupo. A persistência é a característica
que faz emergir a cultura (Carvalho, 2021). Desse modo, a brincadeira in-
fantil não somente possibilita a apropriação cultural do entorno social ao
qual pertencem as crianças, mas ainda, propicia sua atualização – novos
membros que se integram, transformam, desdobram e dão continuidade
ao empreendimento coletivo que é a cultura.

Últimas palavras
Um diálogo produtivo entre a Biologia e a Psicologia para o enten-
dimento do comportamento lúdico propicia um maior conhecimento da
criança e de suas interações, uma vez que ela é concebida como parte
integrante de um sistema complexo de múltiplas relações no qual, natu-
reza e cultura não se opõem, mas se integram e se especificam. Podemos
aprender mais e melhor sobre o nicho de desenvolvimento humano e, as-
sim, fomentar os processos psicológicos subjacentes envolvidos no brincar
e suas implicações. Mais do que o direito de brincar. É o direito de construir
contextos sustentáveis, do qual o brincar faz parte em sua plenitude, com-
partilhando com outras espécies, mas se diferenciando delas em um jogo
de complementação e inovação.
Nessa direção, a valorização do brincar nos espaços escolares e não esco-
lares é imprescindível para o desenvolvimento de cidadãos conscientes da sua
participação social. Garantir a vivência das brincadeiras, mesmo em circuns-

59
tâncias adversas, como no enfrentamento à situação pandêmica provocada
pelo vírus Sars-CoV-2, é uma forma de assegurar à criança sua participação na
cultura, conforme prevê a Constituição Federal. Os adultos que lidam com ela,
também aprendem sobre formas de expressão da ludicidade e, quem sabe,
sobre expressar sua própria ludicidade ao modo adulto.
Observamos que cada vez mais os espaços e tempos para brincar es-
tão reduzidos: as crianças tolhidas do seu direito de experimentar o mundo
pela brincadeira e os adultos engessados em tarefas pouco expressivas e
criativas. O confinamento das crianças em casa durante a pandemia do
corona vírus, sem o apoio das instituições de educação para organizar o
seu tempo livre adequadamente inflamou um problema que já existia: o
que fazer com o tempo livre das crianças? Ou, mais ainda, como enten-
der o brincar da criança com um olhar para além dos benefícios para seu
desenvolvimento? Como entender o brincar como um direito a uma vida
humana saudável? Resende (2018) propicia-nos uma reflexão sobre o cor-
po, o lúdico e o bem-viver, argumentando que somos agentes históricos e
culturais, imbricados com o entorno físico e social. Nosso corpo é o instru-
mento de troca por meio do qual sentimos, temos sensações, percepções
e exploramos o mundo. A exploração implica tempo livre; tempo para brin-
car. Em decorrência, tempo para aprender, ampliar repertórios, enfrentar
obstáculos e solucionar desafios. Tempo para o bem-viver!
Reflexões como estas ampliam as chances de a brincadeira ser viven-
ciada; valorizam a dimensão do lúdico no cotidiano; e promovem a cida-
dania. Ampliam as chances também de um desenvolvimento social mais
justo e consciente que pode servir como instrumento de modos de vida
sustentáveis e compatíveis com a satisfação humana.

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O DIREITO DAS CRIANÇAS ÀS BRINCADEIRAS
ESPONTÂNEAS NA ESCOLA11

Shiniata Menezes
Universidade Estadual de Feira de Santana - UEFS

Ilka Dias Bichara


Universidade Federal da Bahia – UFBA

As crianças, na atualidade, principalmente as que residem em contex-


tos urbanos, passam, de modo geral, grande parte do seu tempo na escola
e lá brincam, apesar das muitas restrições: prioridade em atividades didá-
ticas, áreas lúdicas inadequadas, monitoramento do brincar, etc. Reuni-
das em grupos de brincadeiras, compreendidos como lugar político12, em-
preendem negociações e estratégias de defesa de seus interesses que se
refletem nas interações com educadores(as). Esse cenário, no entanto, foi
alterado pela eclosão da pandemia de Covid-19, que trouxe, entre outras
medidas sanitárias de enfrentamento, o distanciamento físico e restrições
ao convívio social, ocasionando, em tempos e locais diversos, o fechamen-
to das escolas e, para algumas crianças, a vivência do ensino remoto. Para
outras crianças, notadamente alunos(as) de escolas públicas brasileiras,
as medidas adotadas trouxeram a vivência de um cotidiano sem a escola,
por vezes marcado por ações pontuais remotas que buscavam a manuten-
ção de vínculos. No momento em que escrevemos este capítulo ocorre, no
Brasil, a retomada das aulas presenciais, mediante observância de rígidos
protocolos que impactam diretamente o brincar, desde a creche.
11 O capítulo toma como base pesquisas de mestrado e de doutorado realizadas pela primeira au-
tora, orientadas pela segunda autora.
12 O adjetivo “político” que neste capítulo qualifica e distingue o GB, encontra guarida nas propo-
sições dos Estudos Sociais da Criança (Sarmento, 2002; Sarmento, et al., 2006, 2007; Soares, et
al., 2005).
68
Buscamos, neste capítulo, discutir o direito ao brincar sob duas pers-
pectivas: a perspectiva microssocial, tomando como referência o grupo de
brincadeira que, de forma criativa e sagaz, empreende estratégias de re-
sistência e enfrentamento à cultura escolar – por exemplo, ações coletivas
como desobedecer e burlar ordens, negociar mais tempo para o brincar,
camuflar brincadeiras proibidas; e a perspectiva macrossocial, represen-
tada aqui pela política educacional e pelos dispositivos que regulamen-
tam o direito de brincar na legislação brasileira e normatizam o cotidiano
escolar. Tais normas, por via indireta e através das ações reguladoras das
práticas pedagógicas, terminam por interferir nas brincadeiras das crianças
nas áreas lúdicas da escola, contribuindo para elevar a tensão cotidiana
que existe na relação crianças/adulto profissional, resultante do confronto
entre interesses diversos.
Para realizar as reflexões aqui propostas faz-se necessário esclarecer
que adotamos a concepção de criança ativa, criativa, agente social, produ-
tora de cultura, capaz de participação social nos assuntos que lhe dizem
respeito, considerando as possibilidades e os limites de sua faixa etária;
criança protagonista, capaz de expressar sua voz e suas ações (Qvortrup,
2010; Thoman, como citado em Carvalho, 2015). No entanto, a ideia des-
sa criança se faz plural, por isso nos referimos aqui às crianças e às suas
múltiplas e desiguais infâncias, condicionadas por determinantes históri-
co-culturais diversos. Assim, entendemos a infância em duas perspectivas:
como categoria social geracional, portanto uma categoria permanente na
estrutura social; e como período de desenvolvimento da criança, sujeito
aos parâmetros sociais que o conformam. Tem-se, assim, o entendimento
de mudança e continuidade, pois a infância se transforma ao longo do tem-
po histórico, ao passo que permanece enquanto categoria social.
A edição atual da globalização vem operando a transformação dos se-
res humanos em consumidores, a partir de uma lógica que ultrapassa a
ideia de consumir bens ou os estilos de vida que a eles se associam, tor-
nando mercadoria “a própria subjetividade que é deste modo produzida”
(Rocha, 2008, p. 116). Em relação às crianças, essa lógica se concretiza,
por exemplo, na ideia da colonização do imaginário infantil que ganha vida
69
nas formas culturais produzidas para a criança (literatura infantil, brin-
quedos e jogos, cinemas, sites, serviços diversos como programações de
férias, entre outros). Denomina-se esse processo de administração sim-
bólica (Marchi & Sarmento, 2017; Sarmento, 2003). Em contraposição, as
crianças respondem com formas criativas de recepção por elas produzidas
na interação com seus pares. Ressaltamos que esse imaginário pode ser
entendido como a forma específica da relação com o mundo estabelecida
pelas crianças.

O brincar
O brincar, característico de crianças das mais diversas culturas, é
objeto de estudo de diferentes campos do conhecimento. Aqui iremos
considerá-lo à luz da Psicologia do Desenvolvimento Evolucionista (PDE),
abordagem que destaca a importância da brincadeira na adaptação do ser
humano a um ambiente complexo e mutante. Ambiente “é um conceito
multidimensional, compreendendo o meio físico concreto em que se vive,
natural ou construído, o qual é indissociável das condições sociais, eco-
nômicas, políticas, culturais e psicológicas daquele contexto específico”
(Campos-de-Carvalho et al., 2011, p. 28).
Assim, tanto em suas configurações físicas (meio físico), quanto nas
intrincadas relações sociais (meio social) que definem lugares de pertenci-
mento, concretos e simbólicos, o ambiente desafia o ser humano e lhe im-
põe a necessidade de flexibilidade e competência para lidar com a imprevi-
sibilidade, exigindo-lhe que crie respostas (soluções) inovadoras mediante
uso de um cérebro igualmente complexo, cuja arquitetura neuronal não
somente permite responder à cultura em suas múltiplas manifestações,
como permite também avançar no sentido de transformar tais expressões,
através da aprendizagem mediada por outras pessoas.
A PDE considera que o ser humano é biologicamente cultural (Bussab
& Ribeiro, 1998), ou seja, em condições normais está apto, desde bebê, a
reconhecer eventos sociais importantes e a estabelecer os vínculos neces-
sários que irão garantir a sua sobrevivência. Criar, transmitir e transformar

70
cultura tornou-se, no processo evolutivo da espécie humana, o principal
e o mais potente instrumento mediador das relações recíprocas entre ser
humano e ambiente. Ao se desenvolver, o bebê humano irá se apropriar
criativamente de hábitos, valores, regras, signos, artefatos, brincadeiras;
irá, assim, constituir e modificar o ambiente no qual está inserido, ao tem-
po em que será por ele igualmente constituído e transformado.
O brincar é uma atividade de fácil reconhecimento, porém de difícil
definição. Há características que o identificam, por exemplo: é uma ati-
vidade espontânea, prazerosa, motivada intrinsecamente, que ocorre de
forma repetida, embora não padronizada; que revela sinais expressivos,
tal como a “face de brincadeira”, uma expressão sorridente em situações
de brincadeiras turbulentas (também conhecidas como lutinha; ou brincar
de brigar), diferenciando-as de situações de conflitos reais. Sendo uma ex-
pressão cultural, o brincar apresenta-se versátil, não podendo ser expresso
através de um único conceito. É, ainda, universal – pois está presente em
diversas culturas, e também particular – já que a forma de se brincar va-
ria conforme as diferentes culturas. Por exemplo, há muitas brincadeiras
tradicionais que têm a mesma estrutura, mas são nomeadas de formas
diferentes a depender do local em que são brincadas (Bichara et al., 2009;
Pontes & Magalhães, 2002).
Ao vivenciar esse processo de apropriação e transformação cultural,
o ser humano tanto se objetiva no mundo, como o faz de forma autoral,
criando sua própria subjetividade e transformando-se continuamente. São
estas as bases que caracterizam a relação entre ser humano e ambiente,
no qual as diferentes crianças se inserem conforme a época, ou seja, os de-
terminantes histórico-culturais, que vivenciam. Dessa maneira, compreen-
demos o processo de desenvolvimento humano permeado por mudanças
progressivas e multideterminadas, orientadas pelas condições colocadas
pelo meio, este também continuamente transformado pelas ações huma-
nas (Vigotski, 2001/2018).

71
O grupo de brincadeira como lugar político
As brincadeiras criam oportunidades de rica e intensa interação social
entre crianças e entre estas com os adultos. Focando as interações entre
pares, destacamos o grupo de brincadeira, compreendido como uma mi-
crossociedade na qual se constrói a cultura de pares, uma expressão das
culturas infantis, engendrada pela e na dinâmica interacional dos(as) brin-
cantes. Em estudo desenvolvido no contexto escolar (Menezes, 2020), pro-
pomos considerar o grupo de brincadeira como lugar político, o constru-
to GB-P13, entendido como uma diferenciação do grupo de brincadeira que
emerge do nível de organização interacional alcançado pelas crianças em de-
terminado empreendimento lúdico. Trata-se de um novo status, temporário
e efêmero, mas que demonstra a força coletiva das crianças e o engenho das
estratégias que criam em defesa de seus espaços lúdicos e de seus próprios
interesses no enfrentamento à cultura escolar. O GB-P é um constructo que
articula o diálogo entre dois conceitos interdependentes: território ressigni-
ficado (Carvalho & Pedrosa, 2004) e lugares de criança (Rasmussen, 2004).
A ideia de território ressignificado concebe o brincar circunscrito a ter-
ritórios que apresentam características específicas – tais como posse tran-
sitória, fronteiras porosas e móveis – oriundas do deslocamento da rele-
vância funcional para as dinâmicas interacionais que nele se desenvolvem.
O território torna-se, assim, um fenômeno psicossocial; o foco se direciona
à gestão das relações sociais.
Por sua vez, o construto proposto por Rasmussen (2004) integra dois
conceitos interdependentes: os lugares para crianças e os lugares de crian-
ças. Os lugares para são lugares concretos organizados pelos adultos para
as crianças, visando sua segurança e bem-estar. São oficiais, investidos de
normatizações e expectativas dos adultos; por exemplo: as áreas lúdicas
da escola. Já os lugares de crianças são lugares informais, inéditos, mu-
13 A ideia do grupo de brincadeira como lugar político, cuja sigla é GB-P, configurou-se na tese de
doutoramento da primeira autora, que o apresenta como um novo patamar de complexidade
interacional. O construto GB-P ressalta a importância do grupo de brincadeira no processo de
desenvolvimento da criança, visto que oportuniza diversas aprendizagens, também das questões
relacionadas à sociabilidade humana, contribuindo ainda na aquisição de habilidades cognitivas,
incentivando a atividade criadora.
72
tantes. Podem ser concretos ou imaginários. São criados nas dinâmicas
das brincadeiras infantis, recebendo significados próprios e investimento
afetivo que os tornam especiais aos olhos das crianças. Neles há vínculos,
histórias, relações.

As pesquisas
Contamos, agora, um pouco das histórias das pesquisas que realiza-
mos no percurso que chamamos Ciclo Mestrado-Doutorado (2012-2020),
período em que amadurecemos conceitos teóricos no diálogo com as
crianças que observamos e com as quais conversamos no contexto es-
colar. A primeira pesquisa ocorreu no Mestrado, em uma escola pública
municipal de Salvador/BA. Objetivou compreender como crianças de 05
anos, ao brincar, poderiam construir lugares de crianças através da ocupa-
ção, apropriação e ressignificação do parquinho e da brinquedoteca, com-
preendidos como lugares para crianças. Conduziu-se a pesquisa em duas
fases: na primeira fez-se um levantamento das formas e frequências das
apropriações e, na segunda, uma descrição dos processos de apropriação
e ressignificação. Os sujeitos foram 10 meninos e 10 meninas dos grupos
5A e 5B (Fase 1); e 02 meninos e 02 meninas de cada grupo (Fase 2), sele-
cionados aleatoriamente entre os participantes. Os dados foram obtidos a
partir de observação de situações cotidianas, utilizando-se registro cursivo
focal14, em sessões de 5 minutos cada, no mínimo (Fase 1) e de 30 minu-
tos, na Fase 2, durante recreio na brinquedoteca. A análise ocorreu em
duas dimensões: descritiva – criação de tabelas e gráficos; e analítica – os
registros cursivos foram submetidos à Análise de Episódios para Ilustrar
um Argumento (Pedrosa & Carvalho, 2005). Constatou-se que as crianças
construíram os lugares de em alguns momentos de suas brincadeiras, pre-
valecendo os grupos homogêneos – ou seja, grupos constituídos exclusi-
vamente por meninos ou por meninas; as brincadeiras motoras e imagina-
14 O registro cursivo focal é a descrição fidedigna, escrita à mão pelo(a) pesquisador(a) durante
as observações realizadas como procedimento de coleta de dados de determinado estudo. A
descrição é feita em formulário específico, chamado Protocolo Observacional, cujo modelo varia
conforme as características do estudo e objetivos propostos.
73
tivas, as interações cooperativas ou solitárias15. A construção dos lugares
de crianças possibilitou formas criativas e flexíveis de ocupação, apropria-
ção e ressignificação do parquinho e da brinquedoteca que asseguraram
o brincar das crianças mesmo em condições adversas, revelando-se como
estratégia eficaz na adaptação da brincadeira às áreas lúdicas e como im-
portante ferramenta de autonomia infantil. Compreendeu-se a construção
dos lugares de crianças como respostas das crianças aos desafios e limites
do contexto escolar.
A segunda pesquisa foi realizada durante o Doutorado, em uma escola
pública municipal de Feira de Santana/BA. Objetivou compreender como
crianças entre 05 e 07 anos, brincando espontaneamente com seus pares,
constituem o grupo de brincadeira como lugar político mediante criação e
implementação coletivas de estratégias de enfrentamento da cultura es-
colar. Conduziu-se a pesquisa em três fases: (1) Observações diretas das
brincadeiras no recreio; (2) Rodas de conversa com grupos de brincadeiras
mediadas com desenhos; e (3) Conversas informais durante o recreio. Os
sujeitos foram 25 crianças, 12 meninos e 13 meninas, que frequentavam
o Grupo 5 (G5) da Educação Infantil e o 1º ano do Ensino Fundamental,
nos turnos matutino e vespertino. A análise ocorreu em duas dimensões:
descritiva – organização das informações contidas nos registros observa-
cionais e anotações no diário de campo; e analítica – o conteúdo de todos
os registros cursivos das observações diretas, das rodas de conversa com
desenho e das conversas informais, foram submetidos à análise qualita-
tiva de episódios, mais precisamente a Análise de Episódios para Ilustrar
um Argumento (Pedrosa & Carvalho, 2005). Constatou-se a importância do
grupo de brincadeira para o processo de desenvolvimento, já que se cons-
titui em matriz privilegiada de vínculos e traz possibilidades inéditas de vi-
vências, descobertas, de vir a ser; também de defesa e sustentação de seus

15 Quando uma criança, sozinha, empreende uma brincadeira considera-se uma modalidade de
interação, mesmo que solitária, pois, ainda que sem parceiros(as), entende-se que a criança con-
tinua interagindo com o que está acontecendo no seu entorno. Por exemplo, ela pode observar
as brincadeiras de colegas, pode responder a alguém, de forma verbal ou gestual; pode, também,
interagir com a configuração física do ambiente em que se encontra, alterando-a. Ou seja, ao
brincar sem parceiros(as), a criança não está totalmente solitária.
74
interesses – quando alcança o status GB-P, ou seja, pode ser qualificado
como político. O GB-P é, então, em sua própria constituição, uma inovação
que resulta do processo de desenvolvimento humano e o influencia. Ca-
racterizou-se o construto GB-P como tendo uma autoria coletiva, interge-
racional e implicada com o meio físico; o status GB-P emerge e desaparece
espontaneamente.

O GB-P e o direito de brincar


Os resultados das pesquisas também nos mostram que as crianças,
coletivamente, ao exercitarem as diversas estratégias de embate com a
cultura escolar, seja desafiando-a, burlando-a, ou, ao seu modo, questio-
nando-a e mesmo ousadamente enfrentando-a, atualizam constantemen-
te o direito de brincar, mas brincar conforme desejam. Tais estratégias se
caracterizam por negociações diversas, empreendidas tanto com parceiros
de seu grupo de brincadeira, como com outros colegas e também com os
adultos-profissionais com quem se relacionam. Assim, quando um grupo
de brincadeira alcança o que aqui chamamos status GB-P, ou o qualitativo
político, significa que o coletivo conseguiu tal nível de organização intera-
cional que cria e desenvolve, com êxito, ações que garantem a consecução
de objetivos alinhados aos interesses da cultura de pares. Ou seja, a brinca-
deira, no seu próprio exercício diário, realiza o direito que a lei preconiza.
Mas o faz nas brechas, nas entrelinhas, no sorrateiro do momento que
logo, logo termina. E depois volta. Mesmo depois de um “cale-a-boca-e-fi-
que-quieto(a)!!!” O brincar vai voltar, como resistência; desde o grito dos
bebês e das crianças pequenas (Silva et al., 2018) às engrenagens mais
audaciosas das crianças maiores.
Em síntese, as pesquisas relatadas apontam a potência da brincadeira
espontânea, potência esta que confronta a compreensão, míope, do brin-
car espontâneo à margem do processo educativo, portanto aquém, em im-
portância, espaço e tempo, das atividades letivas propriamente ditas. É um
equívoco desqualificar ou mesmo desconhecer o alcance e a complexidade
do brincar espontâneo nas áreas lúdicas da escola em razão da prioridade

75
concedida ao brincar instrumental, controlado pelo adulto, submetido e li-
mitado à aprendizagem e aquisição de competências. É um equívoco, tam-
bém, tratar ambas as modalidades do brincar como antagônicas. Elas se
complementam, desde que reconhecidas e respeitadas; desde que igual-
mente oportunizadas às crianças na vivência do cotidiano escolar, enquan-
to direito atualmente assegurado por lei.

A escola como contexto de desenvolvimento


O contexto escolar não é neutro; pelo contrário, é palco de múlti-
plos e divergentes interesses, portanto é um lugar de contradições, de
tensões. É possível refletir sobre a escola a partir de diferentes ângu-
los. Como já mencionado, fazemos aqui o recorte de pensá-la como um
campo no qual se enfrentam duas culturas distintas: a cultura escolar,
representante da cultura estabelecida, protagonizada pelo ambiente fí-
sico, currículos (oficial e oculto), práticas pedagógicas, pelo conjunto de
normas e expectativas que conformam o chamado “ofício de aluno”; e
a cultura de pares, revelada nas brincadeiras inventadas nas interações
entre pares (Sarmento, 2011). O aluno, identificado por um número de ma-
trícula, reconhecido pelo uso do uniforme, deve (ou tem que) aprender os pa-
drões de comportamento prescritos, impostos e exigidos que irão enquadrá-lo
neste papel, através da domesticação de seu corpo, da drenagem de suas ca-
pacidades e do adestramento para o exercício vindouro de outros ofícios: o de
trabalhador, que obedece; ou o de dirigente, que dita as regras – ambos partes
da engrenagem capitalista, embora em posições muito distintas. Há, assim,
escolas diversas para posições sociais diversas, previamente definidas.
Ao adentrar a escola, o aluno tem que abandonar, mas à espreita, a
criança que é, com toda a sua história, interesses, inventividades. Precisa
deixar para trás a criança que, escapando ao controle adulto, irrompe nas
brincadeiras e a partir delas, mesmo que de forma rápida, mas reiterada,
resiste. A criança que assim se reafirma, reivindica seu lugar autoral, sua
ação protagonista – a mesma que emerge quando o grupo de brincadeira
se faz político.

76
Como lugar de contradições, a escola, no nível do tripé interacional que
a caracteriza – crianças/meio físico; crianças/meio social (entre pares – nos
grupos de brincadeiras e entre grupos de brincadeiras; e com adultos-profis-
sionais) (Menezes, 2014; 2020), é ainda permeada por afetos, por vínculos
significativos estabelecidos entre seus diversos atores. Portanto, não esta-
mos diante de um enfrentamento qualquer. Além de múltiplos, tais enfren-
tamentos se dão na tessitura mesma do cotidiano, nos vários momentos que
compõem a rotina escolar. Envolvem, como vimos, a criação e o uso de estra-
tégias sofisticadas, pois são recursos forjados na dinâmica das relações entre
pessoas (Gomes, 2018; Gomes & Pedrosa, 2017). E mais: são enfrentamen-
tos que se dão circunscritos por um nível mais amplo, o da macrocultura, na
qual são criadas leis, diretrizes, políticas públicas que visam normatizar as
relações vivenciadas neste contexto, dia a dia. Tais normas impactam as brin-
cadeiras, tanto nas suas expressões e rebuliços nas áreas lúdicas da escola,
quanto no direito de brincar.
Permaneçamos um pouco mais no dentro vivo da escola, nas suas
quadras, pátios, parquinhos, brinquedotecas – quando existem. Quando
há aí crianças brincando, muitas coisas acontecem: descobertas, conver-
sas, conflitos, mediações, intervenções, punições, diálogos... Há muito o
que falar sobre tudo isso. É preciso fazer um recorte. Vamos, então, refle-
tir sobre algumas limitações das brincadeiras espontâneas no contexto
escolar, reeditando as contribuições da pesquisa realizada no Mestrado
(Menezes & Bichara, 2015), que apontou para a necessidade de revisão
da interpretação dada pela prática pedagógica, tal como comumente
exercida: (1) os lugares de crianças, criados no contexto escolar, vistos
como locais de bagunça, desobediência ou comportamentos socialmen-
te inadequados (Rasmussen, 2004) – quando tais lugares demonstram
criatividade e construção coletiva, lembrando que guardam afetos e sig-
nificados que são caros às crianças; (2) a defesa de espaços interativos,
compreendida como expressão egoísta das crianças envolvidas – quan-
do, em geral, expressam justamente o contrário, ou seja, a vontade de
experimentar a brincadeira coletiva já inventada, cuja construção muitas
vezes é difícil para o grupo de brincadeira, que sabe que qualquer altera-
77
ção, como a inclusão de um novo membro, certamente modificará toda
a estrutura e dinâmicas criadas (Corsaro, 2011); (3) a incompreensão da
importância e da função das brincadeiras turbulentas – compreende-
-se a dificuldade de permitir a brincadeira de lutinha, mas é importante
não associá-la a expressões agressivas ou violentas das quais ela se di-
ferencia; (4) a obrigatoriedade do compartilhamento de brinquedos de
posse institucional – sim, é importante aprender a compartilhar, mas é
preciso reconhecer e respeitar o tempo da criança em sua brincadeira,
bem como compreender que a posse, mesmo que temporária, de um
brinquedo ou objeto, no qual ela investiu afeto, reveste-se de vínculos
e que, assim, a criança precisa de tempo para se despedir e repassar o
que tem em mãos para o coleguinha; (5) o próprio brincar espontâneo
na escola, limitado devido às exigências curriculares e normativas – é
preciso reconhecer o valor e a importância para o desenvolvimento do
brincar espontâneo, livre de qualquer expectativa ou compromisso, livre
das intervenções e regulações do adulto, valorizando-o por si mesmo,
sem nele incutir finalidades instrumentais, ou o brincar para aprender;
a criança aprende, e muito, quando brinca livremente; (6) importância
das áreas lúdicas da escola – são áreas importantes e queridas pelas
crianças que lhes atribuem significados especiais, portanto torna-se ne-
cessário maior investimento nelas, cuidados cotidianos e mesmo apreço
por parte dos adultos-profissionais que estão na escola.
Faz-se aqui coro com outros autores que enfatizam a importância da
formação inicial e continuada de educadores(as); que sinalizam a necessi-
dade de compartilhamento de conhecimentos entre a Psicologia do Desen-
volvimento e a Psicologia da Educação/Escolar com a Pedagogia, abordan-
do o brincar em suas várias facetas. Temos muito o que aprender juntos,
colocando os interesses das crianças como centrais. Enfim, valoriza-se aqui
o compromisso social das universidades na promoção de espaços de inter-
câmbio entre esses dois cursos, através de ações diversas contempladas no
ensino, na pesquisa e na extensão.

78
Direito ao brincar e política educacional: marcos legais
Se, em uma perspectiva microssocial, as crianças buscam, coletiva-
mente, sustentar seus interesses lúdicos, na perspectiva macrossocial –
aqui considerada em termos dos marcos legais referentes ao brincar – vê-
se que o direito ao brincar é uma conquista muito recente na legislação
brasileira. A Constituição da República Federativa do Brasil (1988), que
tornou a educação direito de todos e responsabilidade do Estado, destaca,
no Art. 227, os direitos humanos básicos, responsabilizando a família, a
sociedade e o Estado pelo cuidado das crianças e dos adolescentes.
Dessa forma, foram dadas as condições para a promulgação da Lei nº
8.069, de 13 de julho de 1990, que instituiu o Estatuto da Criança e do Ado-
lescente, apelidado de ECA (Lei 8069, 1990), inspirado na Declaração Univer-
sal dos Direitos Humanos (1948) e na Convenção dos Direitos da Criança e
do Adolescente (1989) – que reconheceu a importância do brincar enquanto
direito autônomo da criança, independentemente de propósitos educativos.
O ECA revogou o Código de Menores, superando, pelo menos legalmente, a
política repressiva e de cunho assistencialista. No Estatuto, crianças e ado-
lescentes são considerados sujeitos de direitos, direitos estes que devem ser
assegurados e implementados pelo Poder Público, pela família e por toda a
sociedade. Pela primeira vez, assegura-se proteção integral a todas as crianças
e adolescentes, não apenas àqueles considerados em situação irregular.
O ECA colocou o brincar em um novo patamar, com status de lei. Le-
gitimou direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes, no Brasil,
a partir de três eixos, os três direitos com a letra “p”: direitos de provisão;
direitos de proteção e direitos de participação. Entende-se a importância
do brincar como um elo que conecta cada um desses três eixos, visto que
a vivência de brincadeiras contribui para o desenvolvimento saudável e
pleno, bem como para a participação efetiva da criança nos seus mundos
de vida; ademais, quando os direitos de provisão e de proteção são viola-
dos, há impactos sobre o brincar e, por outro lado, como já dito, o brincar
interfere positivamente nas condições de saúde da criança, beneficiando
seu desenvolvimento (Corsino, 2008; Tomás & Fernandes, 2014).

79
ECA: 30 anos
O segundo semestre de 2016 desencadeou mudanças políticas dramá-
ticas no Brasil que, gerando impactos e repercussões em todos os níveis,
atingiu diretamente as políticas públicas educacionais, desde a educação
infantil ao nível superior. Na educação infantil, por exemplo, evidenciou-se
a tendência ao não investimento de mais recursos, buscando-se “alterna-
tivas, historicamente combatidas e arquivadas, para baratear o custo desse
atendimento” (Arelaro & Maudonnet, 2017, p. 14). São ações que desrespon-
sabilizam o Estado pelo cuidado e educação da infância, implicando na retira-
da de garantias de instituições com condições adequadas quanto a espaços fí-
sicos e materiais e qualificação profissional, o que, concretamente, resulta em
dificuldades na organização de creches e pré-escolas de rotinas promotoras de
situações de aprendizagem culturalmente significativas. Tais políticas afetam e
afrontam o direito de brincar, inclusive de bebês e de crianças pequenas, cuja
educação “é de um tempo disciplinador e de um ritmo de acordo com os inte-
resses postos pelo capital” (Silva et al., 2018, p. 81).
Foi nesse contexto, atualmente ainda mais preocupante, que o ECA
completou trinta anos em 2020. Embora seja um grande avanço, entende-
-se que ainda não se efetivou, considerando-se a dificuldade de assegurar
os direitos nele prescritos para crianças e adolescentes de classes menos
favorecidas (Fonseca, 2020), além de outras críticas. A autora destaca, nes-
se sentido, o conservadorismo da sociedade brasileira que não se perce-
be responsável pelo cumprimento do disposto na lei, bem como a persis-
tência, na ação de dirigentes e executores de serviços públicos, da lógica
assistencialista direcionada aos “menores em situação irregular”, herança
do Código vigente em anos anteriores. Dessa forma, nota-se que a efetiva-
ção dos direitos, de forma desigual, é atravessada por outros três direitos
com a letra “p”: poder, posse e privilégios, forjados e sustentados pelas
engrenagens do capital e nelas próprias, que produz e mantém desigual-
dades sociais, étnico-raciais e econômicas. Desconstrói-se, assim, as ideias
de igualdade universal das políticas públicas, bem como escancara-se a
infância idealizada da lei que, embora referência (teórica), não consegue

80
alcançar todos e todas em sua implementação, excluindo os que desde
sempre foram e estão excluídos.
Torna-se imprescindível a referência à influência do Banco Mundial e do
Fundo Monetário Internacional – FMI nas diretrizes e políticas educacionais
brasileiras. Exemplo disso é a municipalização da educação infantil que difi-
cultou a realização de metas previstas em documentos legais como a Cons-
tituição da República Federativa do Brasil (1988), e o Plano Nacional de Edu-
cação (Lei n. 13.005, 2014).Nota-se, assim, que as políticas para a educação
infantil, não apenas no Brasil, como também na América Latina, são elabora-
das a partir de contextos abrangentes, seguindo influências da reorganização
do capitalismo mundial globalizado e implementadas em reformas de cunho
neoliberal, tendo o Estado suas funções reduzidas ao mínimo (Ferreira et al.,
2015). A análise dos efeitos da globalização é importante para compreender
a categoria “não criança” proposta por Sarmento e Marchi (2008), na qual
se inserem crianças excluídas até mesmo do estatuto de criança, ausentes,
silenciadas; aquelas tidas como diferentes da norma estabelecida. Fica claro,
então, que esse processo não as atinge de forma igualitária, expondo, assim,
ferozmente, as desigualdades sociais, denunciando a normatividade múlti-
pla, diversa, complexa e contraditória da infância.
É impactante o que dizem Marchi e Sarmento (2017) quando abordam
as mudanças em curso na relação das crianças com os adultos nas dimen-
sões política, educativa, cultural e internacional: a sociedade atual exibe
atitudes e políticas hostis às crianças; isso fica claro, por exemplo, quando
não se priorizam e mesmo se restringem políticas públicas que visam o
bem-estar de populações mais vulneráveis, pois as crianças serão as mais
prejudicadas, com maiores dificuldades de acesso à alimentação, abrigo,
saúde, educação. Esse é um processo cruel, uma engrenagem perversa que
se agudiza ainda mais quando se direciona o olhar às crianças. O texto de
Chiavenato (2004, pp. 16-19) que aborda a mão de obra infantil, inclusi-
ve no Brasil, traz um exemplo cru, emblemático: há crianças que podem
brincar com bolas da Nike; há aquelas (“não crianças”) que, desde os cinco
anos, em locais perigosos e insalubres, costuram, com suas mãozinhas pe-
quenas, as bolas (perfeitas!!) da Nike.
81
Em relação ao ECA, há ainda outro aspecto preocupante, que aponta
para o papel das universidades como instâncias formadoras, também de
educadores(as), convocando-as a implementar ações inovadoras nas áreas
do ensino, da pesquisa e da extensão: muitos estudantes e profissionais
desconhecem o ECA ou sabem dele superficialmente. Em uma socieda-
de atravessada pelo preconceito de classe social, racismo, reprodução da
desigualdade de gênero e do machismo, atravessamentos que atingem as
práticas educativas em todos os níveis, e que se tornam agudos no atual
cenário político brasileiro, incerto e inóspito, é preciso empenho coleti-
vo para revigorar e continuar sustentando o compromisso social com o
brincar espontâneo nas escolas. Somos, assim, convocados(as), como pro-
fissionais, pesquisadores(as), cidadãos(ãs) a defender esse direito, apenas
recentemente conquistado, mas ainda longe de ser, de fato, uma prática
cotidiana concreta nas vivências das tantas e desiguais infâncias.
Há muito o que fazer. Não podemos aceitar, por exemplo, a normaliza-
ção das manchetes veiculadas pela mídia, informando que crianças foram
baleadas enquanto brincavam com amigos, com irmãos na varanda de sua
casa, na porta de sua casa, na rua onde moram, na escola em que estudam.
Quem são essas crianças que “protagonizam” tais notícias? Será que leis
ou resoluções como as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
Infantil (Resolução n. 5, 2009) a elas se referem quando concebe a criança
como um “sujeito histórico e de direitos que, nas interações, relações e
práticas cotidianas que vivencia, constrói sua identidade pessoal e coletiva,
brinca, imagina, fantasia, deseja, aprende, observa, experimenta, narra,
questiona e constrói sentidos sobre a natureza e a sociedade, produzindo
cultura”(Artigo 4º)?

Cadê o direito de brincar que está na lei?


Com base nos marcos legais expostos no item anterior, é consenso
considerar como avanço significativo que o direito ao brincar esteja asse-
gurado em lei. Porém, é preciso garantir sua implementação de fato, tam-
bém no contexto escolar. E aqui tomamos a liberdade de enfatizar o brincar

82
espontâneo, o brincar por brincar porque é prazeroso! É esse brincar que
dá vida às áreas lúdicas da escola. É igualmente necessário trabalhar para
que esse direito, assim como os outros que dizem respeito às crianças,
alcancem, de fato, cada vez mais a diversidade de infâncias e de crianças,
principalmente as mais pobres, as que trabalham na zona rural, nas áreas
urbanas. Também as crianças pretas; as crianças indígenas; as crianças qui-
lombolas; aquelas refugiadas. E as que têm fome de comida, de afeto; as
que não frequentam escolas, as que são, por alguma razão, diferentes. As
tantas outras crianças...
Dando um passo à frente dessa utopia, entendemos que o momento
atual brasileiro convoca o(a) psicólogo(a) a assumir uma posição e, por ra-
zões históricas, as contradições e agudezas desse momento não somente
atravessam a Psicologia como a desafiam a sustentar o compromisso social
assumido na defesa e promoção dos direitos humanos.
Também entendemos que refletir e defender o direito das crianças ao
brincar espontâneo na escola é ação comprometida com a justiça social,
na medida em que tal fazer exige tomar como referência uma concepção
de criança criativa; exige ainda compreender que grupos de brincadeiras,
através do vínculo entre pares, conseguem sustentar seus interesses em
diferentes situações, influenciando a cultura vigente e criando estratégias
para escapar do controle adulto, ainda que por breves (e reincidentes) mo-
mentos. Acreditamos que difundir tais resultados, principalmente entre
psicólogos(as), pesquisadores(as) e educadores(as), possa contribuir para
a implementação de práticas educativas (quiçá de políticas públicas educa-
cionais) mais sustentáveis e socialmente justas, aproximando-nos das brin-
cadeiras infantis, (re)vistas sob novos e necessários prismas.
Por fim, consideramos que a aproximação com o contexto escolar atra-
vés da atividade de pesquisa nas redes pública e privada é uma via promis-
sora e mesmo esperançosa, pois convida à parceria com o(a) educador(a),
à troca de experiências, de saberes, de conhecimentos. E, em especial,
possibilita estar com as mais diferentes crianças e suas brincadeiras! Como
dissemos anteriormente, as crianças estão retornando presencialmente às
escolas. Abre-se, assim, um vasto e necessário campo de pesquisas, como,
83
por exemplo, investigações sobre os grupos de brincadeiras e a criação/
implementação, pelas crianças, de novas estratégias de convívio entre
pares e com adultos/profissionais nos novos cenários que se desenham
no retorno à escola. Dessa forma, às reflexões que compartilhamos aqui,
abordando o tema do direito ao brincar espontâneo no contexto escolar,
deverão se somar conclusões das pesquisas que ora se iniciam e que obje-
tivam compreender o tripé de relações estabelecidas na escola no retorno
às atividades letivas, após a reclusão e ensino remoto que marcaram, no
Brasil, o período entre março/2020 a setembro/2021.
Assim, seja como pesquisadores(as), seja como psicólogos(as) atuan-
do em escolas e em outros espaços educacionais, temos a oportunidade
de não esquecer as muitas e diferentes crianças em suas múltiplas e di-
ferentes infâncias. Elas, e nós, precisamos resistir e continuar existindo e
brincando, a despeito de toda violência que não negaremos, apesar de
todas as desigualdades que não poderemos ignorar. Mesmo com toda a in-
visibilidade imposta a tantas delas continuaremos a vê-las, respeitando-as,
escutando e ecoando suas vozes, mostrando suas ações, seu brincar. É com
este propósito que compartilhamos o presente capítulo.

Referências
Arelaro, L. R. & Maudonnet, J. V. M. (2017). Os fóruns de educação infantil e as políticas
públicas para a infância no Brasil. Laplage em Revista (Sorocaba), vol. 3, n.1, jan-abr,
pp.6-18. https://doi.org/10.24115/S2446-6220201731238p.6-18
Bichara, I. D., Lordelo, E. R., Carvalho, A. M. A & Otta, E. (2009). Brincar ou brincar: eis
a questão – perspectiva da psicologia evolucionista sobre a brincadeira. In M. E.
Yanamoto & E. Otta (Orgs). Psicologia Evolucionista. Guanabara Koogan, pp. 104-113.
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87
CONTEXTO DE DESENVOLVIMENTO HUMANO
EM COMUNIDADES RIBEIRINHAS:
PRÁTICAS LÚDICAS DE CRIANÇAS AMAZÔNICAS

Manuela de Queiróz Cruz


Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas - IFAM

Revisando a produção de estudos sobre aspectos psicológicos em rela-


ção à natureza, Schultz (2002) avalia que, para alcançar o desenvolvimento
sustentável, uma conexão psicológica com natureza seria necessária. Não
obstante, há sempre uma dimensão do benefício individual a se considerar
quando se pensa em comportamentos pró-ambientais, porém, o autor é
direto: a qualidade da vida humana diminuiria sem a natureza (Schultz,
2002). Reconhecer que a integração entre pessoas e natureza é uma con-
dição para o desenvolvimento sustentável, demonstra ser, também, um
caminho de pesquisa para a psicologia.
Os estudos da infância vêm se constituindo no Brasil como área de
intercâmbio entre disciplinas como educação, psicologia, sociologia, an-
tropologia, dentre outros. Esse campo concebe a infância como grupo ge-
racional (Alanen, 2001) e as crianças como sujeitos sociais ativos que estão
em interdependência com sujeitos de outros grupos geracionais (Wyness,
2012).
A relação criança-natureza cada vez mais se torna discutida, uma vez
que a presença de estímulos naturais em espaços abertos de lazer propor-
ciona maior repertório lúdico que elementos construídos artificialmente.
Assim, o uso que as crianças fazem dos espaços abertos no ambiente tam-
bém estão relacionados aos tipos de brincadeiras que elas desenvolvem.
As oportunidades de interação com a natureza que a criança estabelece
através do brincar trazem importantes benefícios para o seu desenvolvi-
mento (Sargisson & McLean, 2012).

88
No plano afetivo encontramos de uma forma geral, uma relação posi-
tiva de interação pessoa-ambiente. Das quatro formas de apego ao lugar,
definidas por Chawla (1992), a afeição foi a mais facilmente identificada
nos desenhos. A afeição, de caráter autocêntrico, indica o lugar da pessoa
e os sentimentos de familiaridade e segurança. Assim, podemos entender
que os desenhos de uma forma geral, demonstram que o apego das crian-
ças ao lugar que vivem é positivo.
Historicamente, os estudos da infância têm se debruçado mais sobre
as infâncias urbanas (Silva et al., 2013). Apenas recentemente, as crianças
moradoras da zona rural vêm ganhando notoriedade em pesquisas empíri-
cas dentro do referido campo. Nos últimos anos, os estudiosos têm focado
sua atenção em como o ambiente natural oferece possibilidades e desafios
para as crianças explorarem suas próprias habilidades para exercícios, jo-
gos e domínio motor (Fjørtoft, 2000; Grahn et at., 1997).
Nas zonas rurais, estão localizadas muitas comunidades tradicionais,
onde infâncias são socialmente produzidas, geralmente guardando algu-
mas diferenças das infâncias urbanas. As comunidades tradicionais são vis-
tas no Brasil como possuidoras de uma cultura própria (Decreto n. 6.040,
2007). Sua reprodução e reconhecimento, por meio dos órgãos responsá-
veis, têm como foco o território vivido, pois é a partir dele que se organi-
za a sociedade, religião, cultura, tradição e ancestralidade desses grupos
populacionais. Assim, a criança amazônica é um sujeito singular uma vez
que está inserida em um ambiente repleto de estímulos diferenciados da
criança urbana. Estímulos não só naturais, mas também simbólicos decor-
rentes do grupo cultural ao qual se vinculam (Cruz, 2018).
A brincadeira é um fenômeno considerado universal, presente no coti-
diano de crianças de diversas culturas, que tem servido como característica
definidora da infância (Fiaes & Bichara, 2009). Kishimoto (1997) destaca
que a cultura lúdica é produzida pelos indivíduos que dela participam e
existe na medida em que é ativada por operações concretas, que são as
próprias atividades lúdicas. Pode-se dizer essa cultura é produzida por um
duplo movimento, interno e externo, pois a criança adquire e constrói sua
cultura lúdica brincando. É o conjunto de sua experiência acumulada, co-
89
meçando pelas primeiras brincadeiras de bebê que irá constitui-la. Essa
experiência é adquirida pela participação em jogos com os companheiros,
pela observação de outras crianças, pela manipulação cada vez maior de
objetos de jogo.
Dentre os vários povos contemplados pelo conceito de comunidade
tradicional, encontram-se as comunidades ribeirinhas, ou seja, aquelas lo-
calizadas às margens dos rios. Sendo assim, comunidades ribeirinhas loca-
lizadas no meio rural, por exemplo, engendram a infância conforme as prá-
ticas culturais, as tradições e a organização social que se concretizam em
seus territórios, produzindo socialmente uma infância ribeirinha e, nesse
caso, simultaneamente uma infância do campo.
A preocupação deste estudo pautou-se em que as novas gerações
possam ser educadas dentro dos princípios sustentáveis de forma intra e
intergeracional pelos adultos, muitas vezes repassados através de ensina-
mentos e brincadeiras durante a infância. As comunidades tradicionais,
possuem este viés, pois sua produção é voltada para a família, para au-
toconsumo (Libardi & Silva, 2021). Dessa forma, o propósito deste estudo
foi explorar e compreender as representações socioambientais infantis a
partir das práticas lúdicas desenvolvidas na Ilha do Careiro da Várzea - AM.
A criança ribeirinha amazônica vivencia dois momentos diferentes em
seu ambiente natural: um período de vazante/seca, onde se forma uma
“praia”, que se estende por parte da área pesquisada; e outro período
completamente diferente, marcado pela enchente/cheia das águas. A ilha
do Careiro é uma planície de inundação – conhecida como várzea que pro-
porciona duas paisagens: período de terras emersas e terras submersas,
respectivamente, cheia e seca (Sternberg, 1998). Isto refletirá em todo o
processo comportamental da população não só adulta, mas também in-
fantil, inclusive no lúdico, pois com paisagens completamente diferentes, é
necessário que as crianças tenham que recriá-las e readaptá-las para suas
práticas.

90
Método
Trata-se de uma pesquisa exploratória, pois existem poucas referên-
cias que discutem as práticas do brincar por crianças ribeirinhas. Primei-
ramente, realizou-se os estudos exploratórios nos meses de dezembro de
2016 e fevereiro de 2017. O percurso metodológico foi desenvolvido den-
tro de uma abordagem socioantropológica, onde a pesquisadora emergiu
na convivência com os participantes na própria comunidade, permitindo
assim a troca e interação com os participantes da pesquisa. De acordo com
Oliveira (1998), talvez a primeira experiência do pesquisador de campo –
ou no campo – esteja na domesticação teórica de seu olhar. Isto porque a
partir do momento em que nos sentimos preparados para a investigação
empírica, o objeto, sobre o qual dirigimos o nosso olhar, já foi previamente
alterado pelo próprio modelo de visualizá-lo. Seja qual for esse objeto, ele
não escapa de ser apreendido pelo esquema conceitual da disciplina for-
madora de nossa maneira de ver a realidade.
Os sujeitos desta pesquisa foram 18 (dezoito) crianças com idade en-
tre 6 e 12 anos, escolhidas por estarem em idade escolar. O local de apoio
para a pesquisa foi a Escola Prof.ª Francisca Góes localizada na Ilha do Ca-
reiro, no município de Careiro da Várzea-AM, assim eleita por ser a maior
da comunidade e com maior número de alunos.
A pesquisa foi realizada em dois momentos, de acordo com o ciclo hi-
drológico do Rio Amazonas. A primeira fase ocorreu durante o período de
enchente/cheia que correspondeu aos meses de outubro a junho dos anos
supracitados. Já a segunda fase realizou-se no período de vazante/seca
que compõe os meses de julho a setembro. Logo, as crianças ribeirinhas
amazônicas vivenciam dois momentos de mudanças ambientais diferen-
tes durante o ano e consequentemente representações lúdicas diferentes
acerca de uma mesma paisagem.
Assim, no momento da coleta, as crianças foram solicitadas a dese-
nhar do que gostavam de brincar e o lugar onde essas brincadeiras ocor-
riam. A coleta foi realizada tanto no período da vazante quanto da cheia,
como citado no parágrafo anterior. As oficinas de desenhos aconteceram

91
na escola da comunidade supracitada, pois neste local, conseguiu-se reunir
o maior número de crianças. Após a oficina de desenhos, a pesquisadora
reuniu o grupo, de forma que cada criança pudesse apresentar seu dese-
nho e falar sobre ele. Neste momento, a pesquisadora fazia anotações e
perguntas abertas sobre o conteúdo das produções. Algumas perguntas
foram norteadoras, tais como: “Do que você gosta de brincar?”; “Onde
você desenhou que estava brincando?”; “Qual seu lugar de brincadeira
preferido e por quê”?
A análise da organização dos elementos em cena foi realizada a partir
de apreciação qualitativa, na qual teve-se como norteador a percepção da
Gestalt do desenho, ou seja, da configuração visual na disposição de seus
elementos e das funções nele envolvidas. A partir dos desenhos e as res-
pectivas transcrições das “falas” de cada participante, podemos perceber
diversos aspectos, como que coincidem com o facilmente visualizado no
ambiente, de acordo com a história de vida de cada criança, relatada por
ela e observação participante realizada.

Resultados
Durante a oficina de desenho realizada, as crianças verbalizaram os
lugares na comunidade que mais possuem afeição com suas brincadeiras.
Os lugares mais citados como de maior interesse das crianças foram a qua-
dra e o terreiro, onde compreende-se que estes são considerados topofíli-
cos, pois de acordo com Tuan (2012), a topofilia constitui-se no elo afetivo
entre a pessoa e o ambiente físico. Além que, em suas falas esses lugares
foram citados por serem seguros e secos, o que impossibilitaria o ataque
de jacarés, tão comum nesta localidade.
A partir dos desenhos realizados, seguem algumas categorias de re-
presentações lúdicas observadas a partir dos detalhes narrados por cada
criança e desenho produzido. Os resultados encontrados por meio da ar-
ticulação dos desenhos, das entrevistas, das histórias de vida permitiram
descrever e analisar as categorias a seguir.

92
Elementos naturais e artificias
Os elementos artificiais estão presentes apenas em alguns dese-
nhos, por exemplo onde foram desenhados a rede de vôlei e bicicleta,
conforme Figura 1. Os elementos naturais foram representados em 90%
dos desenhos realizados, assim constatando a relação intrínseca entre
as crianças e o meio ambiente no que tange a escolha por desenhos de
paisagens naturais. A proporção dos elementos vegetais, condiz com a
paisagem local, indicando forte proximidade das crianças com a fauna
local.

Figura 1. Produção e descrição da imagem realizada pela criança M.A.Q, 12 anos. “Vôlei na
quadra.” “Eu amo volim... Adoro brincar dele na quadra. Vai todo mundo lá, as crianças,
os avó e os pai”. “Aí a gente brinca até cansar. Vai meninos e meninas e é muito legal. Eu
sempre quero tá lá...”

Os animais também foram expressamente desenhados, caracterizan-


do importância na vida cotidiana destes sujeitos. Os animais domésticos
predominam no grafismo, como cães e gatos, mas peixes e borboletas
também foram retratados de forma significativa, assim nos permitindo
pressupor acerca da relação criança-fauna ser de extrema relevância nas
representações socioambientais das crianças ribeirinhas, de acordo com
a Figura 2. Durante as narrativas apresentadas, as crianças demonstraram
bastante afinidade com as brincadeiras junto as aves e mamíferos.
93
É importante destacarmos os desenhos com títulos a que se referem
aos ataques de jacarés, já citados anteriormente, uma vez que a população
desta comunidade vivencia medo em relação à incidência com que ocor-
rem estes, assim consequentemente reproduzidos pelas crianças em seus
desenhos e falas.

Figura 2. Produção e descrição da imagem realizada pela criança V.S.S, 8 anos. “Cachorro
no terreiro.” “Eu amo desenhar porque eu desenho meus amigo e meu cachorro. Esse aqui
sou eu (aponta para a esquerda do desenho) com meu cachorro lá no tenrreiro. Eu brinco
lá com ele, sabia? Ele late porque eu corro atrás dele, só que ele num mordi não.”

A casa nos remete a um item universal do desenho infantil, sendo bas-


tante representada pelos sujeitos da pesquisa, principalmente pelas crian-
ças do gênero feminino (Profice, 2010). Ainda foi mencionada como lugar
seguro e prazeroso para as crianças desenvolverem suas atividades lúdicas.
As crianças reproduziram em seus desenhos a realidade das moradias de
palafita, casas ribeirinhas que possuem esteios (pés), o que justifica a pers-

94
pectiva do desenho sobre o contexto vivido, como apresentamos na Figu-
ra 3. As casas em sua maioria são retratadas como ambientes de apego,
trocas simbólicas, mas também como lugar de brincadeiras, uma vez que
as crianças durante as entrevistas, relataram que as brincadeiras ocorrem
dentro delas, principalmente no período de cheia, pois são impossibilita-
das de brincar nos terreiros, quadras, dentro outros. Podemos destacar
que o lar ribeirinho foi representado não apenas como lugar de abrigo,
apego familiar, mas também de brincadeiras, de ludicidade.

Figura 3. Produção e descrição da imagem realizada pela criança V.S, 8 anos. (Não atribuiu
título ao desenho). “Eu adoro brincar de bola e bicicleta lá na minha casa, sabia? Quando
tá vazio é legal, porque a bola vai pra longe. Quando tá rio cheio, nem dá. Aqui é a casa
quando tá cheio e embaixo a que eu gosto.”

Podemos ainda inferir nos relatos que os ambientes em que as crian-


ças têm maior preferência pelas brincadeiras, como os terreiros e quadras
95
são ambientes descritos como limpos, seguros e longe de animais, o que
justificaria tais escolhas. Segundo elas, como no relato de K.S.T, 9 anos,
podemos observar o descrito: “Lá na minha casa é onde eu brinco. Tem um
tenrreiro bem grande na frente pra brincá de boneca e bicicleta. Eu brinco
com minhas amiga. É seguru˜.
No imaginário local infantil das crianças da Comunidade São Francisco,
estão presentes diversas histórias de ataques de animais, na maioria por
jacarés e cobras, o que resulta em aspectos topofóbicos16 apresentados
na Figura 4, retratando assim, o medo das crianças em brincarem em luga-
res alagadiços ou próximos ao rio.

Figura 4. Produção e descrição da imagem realizada pela criança M. P. A, 6 anos. “O jacaré


ruim.” “O jacaré grandão mordeu a vovó; ela ficou só sangue... Eu não brinco mais aí não.
Tenho medo dele... (respira profundamente).”

16 A familiaridade das pessoas com o meio onde se vive pode gerar, ao contrário de afeição, o
desprezo, a repulsão e a aversão por lugares que são considerados feios ou desagradáveis por
provocarem “sentimentos de repulsa, desconforto ou medo” (Amorim F., 1996: 145). Para definir
tais sentimentos pelo lugar, Tuan (1980) propõe o conceito de topofobia.
96
As águas estão presentes na maioria dos relatos apresentados nos de-
senhos. Desta forma, percebemos que a dinâmica das águas (vazante e
cheia) agem diretamente nas representações lúdicas infantis. As águas não
só representam um meio para a brincadeira, mas também instrumento de
trabalho onde as crianças desde pequenas aprendem sua importância e a
protagonizam em sua cultura lúdica.

Discussão
As relações sociais constituem importante contexto no processo de
evolução humana, de forma que a sua investigação é fundamental à área da
psicologia do desenvolvimento (Bussab, 2003). Os contextos de interação
entre pares, de modo especial o grupo de brincadeiras, formam espaços
naturais de relação e de desenvolvimento contribuindo com a construção
da identidade individual, grupal e na significação simbólica dos contextos
socioculturais. Desse modo, Silva (2006) propõe que a compreensão do
desenvolvimento envolve o conhecimento da sua dinamicidade e comple-
xidade, marcado pelas características do contexto em que a pessoa vive,
além da descrição das interações de elementos de ordem pessoal e rela-
cional.
De acordo com as informações obtidas da coleta de dados e categori-
zadas acima, podemos discutir que o terreiro, citado pelas crianças como
um dos lugares preferidos para brincadeiras, é composto pelo terreno ao
lado, frente e fundo das casas ribeirinhas, onde se encontram as planta-
ções e árvores frutíferas variadas, além da criação de animais. As crianças
utilizam o espaço para brincar preferencialmente no turno vespertino, pois
a grande maioria pela manhã está na escola ou realizando tarefas domésti-
cas e subsistências. As brincadeiras neste espaço de transição foram obser-
vadas no período da vazante/seca, no qual era possível ter um solo seco e
sólido por completo, o que seria contrário no período de enchente/cheia.
As principais brincadeiras registradas nesse espaço registradas foram: bola,
bicicleta, “cemitério”, e a construção de “barquinhos” com galhos, folhas,
assim caracterizando a produção de “etnobrinquedos”.

97
Desta forma, podemos entender que as práticas lúdicas na Comuni-
dade São Francisco são diversas, e ao mesmo tempo dinâmicas em razão
do ambiente físico e das construções simbólicas da localidade. O ciclo das
águas do Rio Amazonas é fator percussor da vida destes moradores. Ape-
sar da alta frequência de brincadeiras entre crianças e adolescentes, e con-
trariando as expectativas para uma comunidade ribeirinha, o rio não se
revelou um local de intensa atividade lúdica. Embora se tenha registro de
brincadeiras, estas aconteciam especialmente na hora do banho. As lendas
amazônicas povoam o imaginário dos moradores, o que impede muitas
vezes que o rio seja explorado intensamente, bem como os constantes ata-
ques de jacarés nesta localidade, causam temor nos adultos e crianças.
O período sazonal, de enchente/cheia e vazante/seca interfere nos
locais de brincadeiras na comunidade supracitada. Durante o período de
enchente/cheia as crianças se sentem mais “presas” e não conseguem
executar suas brincadeiras ao ar livre. Outras brincadeiras também fo-
ram citadas pelas crianças, mas que não aparecem no gráfico das pre-
feridas, mas que nesta seção merecem ser destacadas: cantar, bandeiri-
nha, barra-bandeira, corrida de sacos, dentre outros, assim permitindo
inferirmos que as diversas formas “de brincar” estão presentes no con-
texto ribeirinho amazônico.

Conclusão
A dinâmica de morar na Amazônia, especificamente às margens do Rio
Amazonas, configura um diferencial neste estudo, pois os ciclos das águas
norteiam a vida dos moradores que lá vivem. Podemos inferir que o rio
atua como determinante e fonte de contato, uma barreira, mas também
uma ponte ambiental, criando e restringindo as possibilidades de intera-
ção das crianças e consequentemente a relação pessoa-ambiente. Mesmo
com todas as novas tecnologias que possibilitam o acesso à internet (pela
proximidade com a capital Manaus), bem como uso de produtos tecnológi-
cos como tablets e smartphones, as crianças da Comunidade São Francisco
ainda preservam as essências das brincadeiras antigas (naturais).

98
Todas as brincadeiras observadas têm algum tipo de relação com o
contexto ambiental e sustentável em que ocorrem, contudo, quando tra-
ta-se do ribeirinho amazônico, variados aspectos físicos, sociais e relacio-
nais implicam nos diferentes modos de brincar. Os conteúdos presentes na
maioria das brincadeiras observadas ou nos desenhos, refletem o cotidiano
da população local, como temas domésticos (cozinha, boneca, comidinha)
ou ligados ao modo de subsistência (pescar, conduzir canoa, ajudar com a
horta). Tais brincadeiras refletem parte da vida das crianças, constituindo-
-se em atividades de valor de trabalho.
À medida que as crianças crescem e ampliam seu campo de
movimentação, se apropriam progressivamente do espaço e desenvolvem
sua crescente capacidade de percepção e compreensão. Em um ambiente
natural, este processo envolve todos os canais sensitivos e estimula a
inteligência naturalística, ou seja, denota uma facilidade de perceber e
classificar a organização dos elementos e processos naturais, no sentido
de orientar a interação criança-ambiente. Como linguagem de apropriação
simples e imediata, o desenho que a criança faz de seu ambiente cria todo
significativo, mas também um ponto de partida para a discussão de seus
elementos (Profice, 2010).
No plano afetivo, encontramos tonalidade positiva da interação pessoa-
-ambiente, demonstrando o apego das crianças aos lugares de brincadeiras.
As crianças estão tão conectadas e integradas à natureza que seus brinque-
dos “nascem” das árvores, da terra, dos rios, dos mitos e costumes, por meio
da sua imaginação, seus corpos e os ensinamentos dos pais e avós. Barqui-
nhos, casinhas, piões, espingardas, petecas e faz de conta que reproduzem
suas vidas e o universo adulto e contam quem elas são. Rodas e cantigas
em que crianças e adultos, juntos e muito à vontade, criam ritos e ritmos na
vida desses brincantes. Galhos de árvores, troncos, bichos, milho, semen-
tes, linhas, elásticos, tampinhas de garrafa, caixas de fósforos, ferros velhos,
pedras, barbantes, latinhas, chinelos de borracha e faquinhas, isopor, ma-
deiras, cortiças e muita habilidade e imaginação: é assim que crianças das
inúmeras comunidades ribeirinhas constroem seus brinquedos e inventam
suas brincadeiras, e na comunidade pesquisada não se difere.
99
Nesses territórios, elas se transformam em “donas de um saber” que
nos escapa: dominam tanto a terra que pisam, as árvores que escalam com
seus hábeis pezinhos descalços, o curso do rio onde a brincadeira vira fes-
ta, os bichos que aparecem e desaparecem tornando-se parceiros. Os có-
digos que dominam, tanto em relação ao vínculo com a natureza quanto à
transformação dela na criação de complexos brinquedos, têm suas origens
em regras e valores absolutamente particulares.
Assim podemos concluir que nesses labirintos paisagísticos da Comu-
nidade São Francisco, embrenhados em florestas, matas, morros e tantos
outros esconderijos, as crianças varzeanas, com seus valores e suas cultu-
ras, ocultam tesouros por nós desconhecidos. Suas brincadeiras permiti-
ram conhecermos e aprendermos com o desconhecido, possibilitando o
espaço para as crianças serem nossos mestres e lermos, nas entrelinhas, o
significado dos seus brincares, de suas territorialidades.
De modo geral, pode-se presumir que os habitantes da Comunidade
São Francisco retiram da natureza o seu sustento e interagem com elas
em todas as atividades cotidianas. Entre eles, existe uma divisão de tare-
fas quanto ao gênero e as crianças estão constantemente envolvidas nas
atividades de trabalho, em especial as de subsistência, o que se reflete
nas suas formas de brincar. As relações sociais nesse contexto propor-
cionam às crianças contatos sociais e a possibilidade de desempenhar
diversos papéis e atividades, tendo como pano de fundo a ludicidade. Os
sistemas familiares, de trabalho, religioso e escolar estão interligados e
influenciam diretamente na formação social, cognitiva, afetiva e simbó-
lica destes sujeitos.
Este estudo ainda nos possibilita pensar acerca de pesquisas futuras
na área, no que tange aos diferentes contextos de desenvolvimento a res-
peito dos aspectos universais do brincar e suas implicações culturais com
foco no âmbito rural, uma vez que grande parte das pesquisas em Psico-
logia do Desenvolvimento são realizadas com crianças urbanas que vivem
em países industrializados. Assim, a necessidade de ampliar trabalhos nos
diferentes ambientes e perímetros.

100
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102
RESISTÊNCIA E ENFRENTAMENTO
ENTRE PARCEIROS EM BRINCADEIRAS COLETIVAS17

Adriane da Silva Gomes e Maria Isabel Pedrosa


Universidade Federal de Pernambuco - UFPE

Focar processos de resistência e enfrentamento entre parceiros


com idades de 2 a 4 anos em situações de brincadeiras coletivas é dis-
cutir modos de funcionamento de um agrupamento social infantil com
repercussão na construção e persistência do próprio grupo. Defende-se
neste capítulo o argumento de que um grupo de brinquedo constitui
um contexto sustentável: garante a continuidade de compartilhamen-
tos e de vivências; fortalece vínculos e cuidado entre seus membros;
propicia desdobramentos de aprendizagens, normas e valores sociais
que se especificam nas trocas que realizam; e instiga a emergência de
novas significações; portanto, a construção de uma microcultura de pa-
res que, potencialmente, acolhem novos parceiros (Boff, 2006; Carvalho
& Pedrosa, 2002). Para esta reflexão, partiremos de nossa perspectiva
teórica, a psicoetologia, que compreende a ontogênese humana como
um contínuo processo de desdobramentos em que sujeito e ambiente
constituem-se reciprocamente (Carvalho et al., 2020; Flynn et al., 2013;
Sameroff, 2010).
Todo o organismo vivo constrói seu nicho por meio de atividades
metabólicas, fisiológicas e comportamentais (Flynn et al., 2013). Estes
autores mencionam inúmeros exemplos dessa construção: algumas es-
pécies de animais fabricam ninhos, outras fabricam tocas, buracos ou
teias; as algas e as plantas interferem na atmosfera, nos fluxos de ener-
gia e matéria ao modificarem os ciclos de nutrientes; fungos e bactérias
decompõem matéria orgânica etc. Tratando-se do ser humano, podemos
17
O capítulo toma como base o trabalho monográfico da primeira autora,orientado pela segunda.
103
dizer que seu nicho ontogenético, o ambiente no qual ele se constitui, é
prioritariamente a cultura, porque ela é parte essencial da natureza hu-
mana. E essa relação entre ser humano e cultura não é dada e sim cons-
truída, numa lógica de constituição simultânea, pois o homem constrói a
cultura que lhe constrói. A cultura circunscreve as trocas interacionais que,
por sua vez, tecem a matriz sócio-histórica, que fomenta novos processos
de significação com desdobramentos contínuos (Amorim et al., 2004; Car-
valho et al., 2020; Morin, 1979).
Um olhar sobre o desenvolvimento infantil pressupõe o reconhe-
cimento de sistemas diádicos e poliádicos como unidades de análise,
superando a concepção de um ser independente, individual, reagindo
sozinho ao que lhe atinge. E pressupõe, antes de tudo, uma compreen-
são de que esse processo ocorre em um meio sociocultural no qual as
crianças também são protagonistas, participando ativamente do sistema
social (Carvalho, 2021; Lucena, 2018; Lucena et al. 2021; Viana & Pedro-
sa, 2014).
As resistências em que um ou mais parceiros se insurgem contra
outrem, ou contra certos empreendimentos que querem levar a cabo,
são formas de lidar em grupo, propiciando sua existência e coesão, uma
vez que um coletivo não agrupa apenas desejos uníssonos de seus inte-
grantes, mas também dissensos, motivos contraditórios e conflituosos.
Interesses de cada um impõem limites aos interesses do outro, e isto
propicia embates, restrições, alterações de objetivos e negociações en-
tre seus membros. Na prática, há uma avaliação dos custos e benefícios
de acordo com a situação, com as possibilidades de cada um e adesões
de outros, com as resistências instauradas etc. Assim, emergem contex-
tos sustentáveis que agregam diferentes parceiros, dão sustentação e
promovem o crescimento de cada um e de todos; um meio sociocultural
que começa a ser construído em tenra idade com a participação em um
grupo e, em decorrência, com a construção do próprio grupo, porque
ocorre a imersão de seus integrantes na teia de relações que são tecidas
por eles próprios. Mas essa construção pode ser incentivada, apoiada e
aprimorada, desde que os pais e os adultos profissionais que lidam com
104
a criança conheçam seu percurso ontogenético e o modo como este se
desdobra e é monitorado. As resistências e enfrentamentos serão aqui
analisados, chamando-se a atenção para suas repercussões no grupo
etário examinado.
Assim, o capítulo é iniciado com a análise de processos de resistên-
cia e enfrentamento sociais que ocorrem entre crianças de 2 a 4 anos,
em atividades lúdicas, recortando-os e caracterizando-os para, em se-
guida, alçar à reflexão sobre a microcultura do grupo de brinquedo e seu
papel na construção de um contexto sustentável. Como já mencionado,
o grupo que persiste complexifica-se e, potencialmente, acolhe novos
parceiros (Boff, 2006; Carvalho & Pedrosa, 2002).

Grupos de brinquedo: construção coletiva em tenra idade


Para examinar resistências e enfrentamentos que ocorrem em si-
tuação coletiva de crianças com 2 a 4 anos, foi realizada uma investi-
gação em que se observaram dois grupos de crianças em 13 sessões de
observação, videogravadas e analisadas microgeneticamente: seis ses-
sões foram realizadas no grupo de crianças de 2 anos (12 meninos e 8
meninas, de 26 a 37 meses no início da coleta – idade média do grupo
foi de 31 meses, ou seja, 2 anos 7 meses); e sete sessões, no grupo de
crianças de 3 anos (10 meninos e 8 meninas, de 36 a 48 meses também
no início da coleta – idade média do grupo foi de 42 meses, ou seja, 3
anos e 6 meses). As crianças brincavam na sala de atividades da creche,
com materiais disponibilizados pelas educadoras, ou brincavam no pátio
onde existia um parquinho com balanços, gangorra, trepa-trepa, pneus,
baldes, pás, folhas, sementes etc.
A pesquisadora se manteve presente nos espaços, realizando as vi-
deogravações e redirecionando a câmera de modo a focar as crianças
em melhores ângulos de filmagem, isto é, alcançando o maior núme-
ro de integrantes da brincadeira, se possível de frente, mas mantendo
certo distanciamento para diminuir sua interferência nas interações das
crianças. Entretanto, avaliava-se que esse distanciamento deveria per-

105
mitir o registro audível do diálogo entre elas. As observações ocorreram
durante momentos de atividades livres das crianças por um período mé-
dio de vinte minutos. A investigação foi aprovada pelo Comitê de Ética
em Pesquisa (CAAE 35013814.6.0000.5208) e cumpriu todos os requisi-
tos exigidos pelo Comitê, inclusive autorização dos pais ou responsáveis
para observação, registro videogravado e apresentação de imagens vi-
sando publicação científica ou formação de educadores.
Cada uma das sessões videogravadas foi vista várias vezes para a
identificação de episódios de interesse do trabalho, ou seja, segmentos
do vídeo em que fosse possível observar resistência ou enfrentamento
sociais de duas ou mais crianças. Esses segmentos foram recortes empí-
ricos que constituíram unidades de análise da pesquisa; portanto, uni-
dades que propiciaram capturar o processo interacional. Os episódios
foram transcritos, minuciosamente, de modo a evidenciar os comporta-
mentos das crianças e seus entrelaçamentos. Para início da transcrição
dos episódios de resistência, foram seguidas pistas do tipo: um obje-
to era tomado de outra criança, ou havia tentativa de se tomar; uma
criança negava compartilhar o objeto com outra, não cedia o espaço ao
parceiro ou ocupava o espaço do parceiro; alguma criança não aceitava
as regras estabelecidas para a brincadeira; e ainda, quando uma criança
não permitia a entrada de um parceiro na brincadeira. O término da
transcrição ocorria com seu desfecho ou a impossibilidade de continuar
o registro da situação. Ao todo foram recortados e transcritos 33 epi-
sódios (20 do grupo de 2 anos e 13 do grupo de 3 anos). A transcrição
foi minuciosa com foco direcionado aos comportamentos interacionais
que ocorriam, levando em consideração o local e posicionamento das
crianças, os gestos que realizavam, suas expressões fisionômicas, risos,
vocalizações – reclamações, gritos e xingamentos –, além do que elas
falavam umas às outras, ou seja, registravam-se todos os indícios que
auxiliassem a caracterização de enfrentamentos ocorridos e possíveis
resistências ao/s parceiro/s.

106
Resistências e enfrentamentos observados nos episódios recortados
A construção de brincadeiras coletivas implica conflitos e rupturas,
mas também negociações e conciliações de modo a que as crianças levem
a cabo o empreendimento lúdico. Disputas e embates são frequentes entre
parceiros e esses comportamentos fazem parte do manejo das situações
para se construir e manter as relações sociais. Assim, as crianças agenciam
suas atividades pessoais e coletivas e, para isso, reagem às intervenções
dos parceiros e buscam implementar e manter seus desejos e interesses
no brincar. Não se trata de estratégias conscientes, implementadas a partir
de um planejamento em que previamente a criança avalia as consequên-
cias de suas reações; trata-se de reações, em diferentes contextos, que ao
serem efetivadas repercutem nas relações do grupo e, assim, vão sendo
aprendidas e aprimoradas e novamente utilizadas.
Foram identificados seis tipos de reações de resistência ou enfrenta-
mento às investidas dos parceiros que caracterizam conflitos de interesses
no fazer lúdico coletivo: (1) enfrentamento físico com ou sem pedidos de
intervenção de adultos presentes; (2) reorientação da atenção para outra
atividade e/ou afastamento da criança que provocou a discórdia; (3) cria-
ção de novo roteiro de brincadeira dirimindo o conflito instaurado ou em
vias de acontecer; (4) argumentação para convencimento do parceiro; (5)
formação de alianças; e (6) afiliação entre parceiros. São comportamentos
distintos, mas podem estar presentes em um mesmo episódio. Assim, para
a comparação dos grupos, será feita a contagem de ocorrências de cada
um desses tipos, mesmo que integrem um único episódio. Antes, porém,
eles serão caracterizados e exemplificados em episódios transcritos a par-
tir dos dois grupos observados na investigação.

Enfrentamento físico com ou sem pedidos de intervenção de adultos presentes


Este tipo de reação ocorre quando uma criança reage fisicamente ou
ameaça reagir à intervenção do parceiro que tomou seu brinquedo, impe-
diu seu deslocamento, ocupou o espaço em que realizava sua atividade, ou
outro impedimento. Engloba ou não um pedido de auxílio ao adulto para
107
obter de volta o que perdeu ou foi impedida de realizar. Um exemplo deste
primeiro tipo refere-se a um faz de conta no balanço – “uma moto” com-
partilhada por dois meninos – em que houve uma disputa para sentar-se
na parte da frente da moto.

Episódio #32: “Ooooh tia! Ele num quer saino da minha moto nãooo!”
Crianças envolvidas: Ítalo (M/40m) Samuel (M/41m)
Ítalo e Samuel, no balanço, brincam de cair da moto (a moto
é o balanço). Ítalo se senta na frente da moto, e Samuel
atrás. Os dois caem. Ítalo volta a ocupar seu lugar, mas sai
para ver algo que não é possível identificar. Nesse momento,
Samuel volta ao balanço e ocupa a posição de sentar-se na
frente, no lugar de Ítalo. Ao voltar para o balanço, Ítalo
encontra Samuel em seu lugar; ele segura o balanço e diz:
“Eu vou; eu que vou!” [... vou me sentar aí!] Ítalo tenta tirar
as mãos de Samuel do balanço e, em seguida, puxa-o, mas
Samuel permanece sentado. Ítalo se dirige à pesquisadora
e diz: “Ooooh tia! Ele num quer saino [sair] da minha moto
nãooo!” E prossegue falando algo ininteligível. Em seguida,
Samuel sai do balanço e se mantém próximo ao parceiro.
Ítalo se senta no balanço e diz: “Ôxe; tu vai aqui, ó!” apon-
tando para a parte traseira do balanço. Samuel se senta e
eles voltam a brincar juntos.
Nesta situação observa-se a resistência de Ítalo em permitir que
Samuel assuma o seu lugar na brincadeira. Ítalo se utiliza de compor-
tamentos diferenciados para lidar com a situação: inicialmente tenta
um enfrentamento ao puxar o garoto, utilizando-se da força física. Não
conseguindo, Ítalo busca o auxílio do adulto. Ele atribui à pesquisadora
a responsabilidade de garantir as regras do brincar, neste caso, “tem
direito quem já estava sentado antes”. Mesmo a pesquisadora não in-
tervindo na situação, Samuel cede o balanço. Em seguida, Ítalo tenta
reestabelecer a harmonia com o parceiro e sinaliza que quer continuar
108
a brincar com ele, apontando para o lugar em que ele pode se sentar, na
posição de trás, como anteriormente.
Situações como esta propiciam aprendizagens, quer sejam sobre si
mesmo, comparando sua força à do parceiro; sobre o desejo do outro, que
pode coincidir com os seus próprios; sobre relações do grupo, como lidar
com divergências e propor conciliações; sobre as regras do brincar, que são
acordadas implícita ou explicitamente e reafirmadas quando necessário
(Carvalho et al., 2012). São experiências variadas a depender do parceiro e
da situação de conflito ou empasse específico.

Reorientação da atenção para outra atividade e/ou afastamento da crian-


ça que provocou a discórdia
Este segundo tipo caracteriza-se por um não enfrentamento da crian-
ça e, possivelmente, isso tem a ver com a avaliação de suas próprias possi-
bilidades de reagir ao parceiro ou mesmo seu desejo de evitar conflitos ou
embates em situações coletivas. Nesse tipo de reação, a criança que teve
seu objeto tomado, afastada de seu lugar, ou foi preterida em alguma brin-
cadeira, reorienta sua atenção para outro objeto, para outro agrupamento
de crianças ou se afasta daquele local, buscando outras oportunidades de
brincar.

Episódio #22: “É meuuuuu!”


Crianças envolvidas: Dolores (F/43m), Messias (M/47m)
As crianças brincam na sala com os brinquedos disponíveis.
Num dado momento, Dolores vai ao encontro de Messias
e tenta pegar a boneca que está com ele. O menino afasta
a boneca do alcance de Dolores e se dirige para local mais
distante da menina. Dolores corre para próximo de Messias,
sorrindo; ao se aproximar do garoto tenta pegar novamente
o objeto. Messias diz: “É meuuuuu!” e empurra a garota, que
se afasta, e o observa. Messias senta-se no chão e brinca

109
com a boneca. Dolores fala algo (não identificado) para
Messias e dá risada. Em seguida ela se aproxima do garo-
to e empurra a cabeça dele. Messias a empurra. A câme-
ra desvia o foco para outra situação por alguns segundos
e, ao voltar, vê-se que Messias ainda permanece sentado
brincando com a boneca e Dolores não mais se encontra
próxima do garoto.
Dolores faz uma investida para tomar o brinquedo que está com
Messias. Este reage, inicialmente de maneira mais pacífica, evitando o
confronto, mas não cede o objeto. A menina insiste, aproximando-se
do garoto, e sorrir para ele. A segunda tentativa de Dolores também
não surte efeito; desta vez o garoto reage de modo agressivo quando
ela tenta novamente pegar o brinquedo. A garota persiste, insinuando
novamente uma proximidade, e sorri, mas logo depois reage de maneira
agressiva, empurrando a cabeça de Messias, provocando uma reação
mais enérgica por parte dele (empurrando-a). Parece que a insistência
de Dolores escalonou a reação de Messias: ele começou afastando-a,
mas depois a empurrou. Neste exemplo, não houve desdobramentos
com negociação ou conciliação. Não se ouviu o que Dolores falou antes
de rir, mas se observou que o riso não sinalizou para Messias um ges-
to de simpatia. É frequente neste grupo, as meninas disputarem obje-
tos com os meninos apelando para uma marcação social de gênero do
objeto, no caso, dizer que boneco é coisa de menina, e, portanto, se
o menino brinca com boneco “ele é mulherzinha” – expressão muito
usada pelas crianças. Entretanto, nem sempre as meninas têm sucesso
com essa provocação. Neste episódio, não se ouviu Dolores apelar para
a marcação do gênero, mas, tendo sido essa apelação ou outra coisa
falada, o riso de Dolores, que normalmente mudaria o tom afetivo da
relação, parece ter irritado ainda mais o garoto.

110
Criação de novo roteiro de brincadeira dirimindo o conflito instaurado
ou em vias de acontecer
O terceiro tipo de resistência ou enfrentamento diz respeito à elabo-
ração de um enredo para o brincar, transformando um impasse, uma dis-
córdia, ou um conflito já instaurado. Quando a brincadeira emerge, então
transforma o clima afetivo da relação. Pode-se dizer que a tensão escoa
pela via do lúdico! A interação se torna divertida e até surpreendente. É
uma reação muito eficaz, que ocorre em crianças desde um ano e pouco de
idade (Pedrosa, 2013), mas é mais frequentemente utilizada por crianças
mais velhas. Um exemplo de uma brincadeira que emergiu de um confron-
to foi observado após uma menina não querer deixar um parceiro sentar-
-se ao seu lado, em um colchonete.

Episódio #1: Colchonetes


Crianças envolvidas: Lis (F/35m), Cadu (M/35m)
As crianças brincam com colchonetes espalhados pela sala.
Cadu se senta no colchonete que está próximo a Lis. A garota
o empurra, tentando tirá-lo do colchonete. Em seguida, ela
se afasta, senta-se em outro colchonete próximo. Lis bate
com as mãos no colchonete em que está como se indicasse
para Cadu sentar-se ao seu lado. O comportamento de Lis
fica incompreensível, porque ela se afasta de Cadu, mas de-
pois o chama para sentar-se ao seu lado. Mas, rapidamente,
a garota se debruça perto de Cadu e o puxa pelo braço, ten-
tando, novamente tirá-lo de cima do colchonete. Lis arrasta
Cadu até o outro colchonete e ambos caem. Em seguida a
menina solta o braço do parceiro e tenta se levantar. Cadu
se levanta primeiro. Os dois rastejam em direção ao colcho-
nete. Cadu chega primeiro e se senta, seguido por Lis, que se
senta ao seu lado. Cadu empurra Lis para que ela se deite.
Ambos começam a se empurrar emitindo gritinhos e risadas.

111
A câmera desvia o foco por alguns segundos [...]. Ao focá-los
novamente, Cadu está sentado no colchonete e Lis se encon-
tra pulando nos demais colchonetes espalhados pela sala.
Inicialmente o episódio caracteriza uma situação de disputa entre Lis e
Cadu em relação ao colchonete. A garota empurra-o para que ele saia do col-
chonete. Entretanto, ele permanece sentado. Lis, então, muda de lugar, apa-
rentemente afastando-se dele, mas, em seguida, bate sobre o colchonete,
no espaço ao seu lado, como se apontasse aquele lugar para ele se sentar!
Será que ela mudou de ideia, ou está querendo enganá-lo? Cadu se mantém
sentado onde estava e não seguiu a indicação da parceira. Lis, então, puxa-o
como se quisesse tirá-lo de lá; os dois caem, mas Cadu se levanta primeiro.
Rastejam em direção ao colchonete e se sentam. Começam a empurrar um
ao outro, como se forçassem o parceiro a deitar-se, e acompanham essa
ação com risos e gritinhos, transformando, assim, o tom afetivo do encontro,
ou seja, uma disputa que se torna uma brincadeira. O conflito é encerrado!
O episódio caracteriza a resistência de ambos os parceiros: Cadu, im-
pedido de sentar-se em um colchonete, pela garota, também resiste ao
comando e investida dela. Lis propõe uma espécie de “pacto” – depois de
ter mudado de lugar, aponta um espaço ao seu lado para ele se sentar. De-
pois de poucos minutos, a transformação de uma disputa em brincadeira
promove um desfecho positivo ao embate antes instaurado, possibilitando
que as crianças mantenham um acordo no desenrolar de suas ações. Cla-
ramente foi criado um enredo para o brincar compartilhado.
Há um registro desse tipo de reação no grupo 3 em que um menino
antecipa um possível impedimento de acesso à brincadeira em grupinho
de meninas e faz aproximações sucessivas a elas, propondo um novo enre-
do para o que já brincavam. Trata-se de uma situação sofisticada do ponto
de vista das competências sociais de crianças nessa idade, com sinaliza-
ções claras de que o menino antecipou a interdição do seu acesso à brinca-
deira. Corsaro (2005/2011) chama a atenção sobre a “proteção do espaço
interativo”, fenômeno frequente dos 3 aos 6 anos, que gera dificuldades de
uma criança obter o acesso a grupos de brinquedo já instaurados, manter
a interação e fazer amigos.
112
Argumentação para convencimento do parceiro
Neste tipo de resistência e enfrentamento, há o uso de um argumento
verbal para convencer o parceiro sobre algo a ser feito ou algo a não ser
feito, como por exemplo, conseguir um objeto, ou evitar que o parceiro
consiga; participar de uma situação ou impedir que o colega participe; jus-
tificar a necessidade de ter a posse de um lugar ou ocupar um papel na
brincadeira etc. Considera-se a argumentação uma estratégia sofisticada,
mais frequente em crianças mais velhas, com maior domínio linguístico.
Mesmo assim, ocorreu nos grupos 2 e 3, sendo mais frequente neste últi-
mo.

Episódio #33: “Tu é menino, pá tá aqui andando de moto?!”


Crianças envolvidas: Ítalo (M/40m), Samuel (M/41m), Laila (F/41m)
Ítalo e Samuel brincam de cair do balanço e Laila ajuda a
balançá-los. Samuel dirige-se para a pesquisadora dizendo:
“Tia, tia, a zente vai cair!” Nesse momento Ítalo e Samuel se
jogam no chão. Antes de os meninos se levantarem, Laila se
senta no balanço onde eles estavam. Ítalo chama a pesqui-
sadora e diz: “Manda ela sair, que eu tava aqui plimeiro!”
Samuel se afasta e vai em direção ao outro lado do parque.
A pesquisadora não atende ao que Ítalo lhe pede e o menino
pergunta a Laila: “Tu é menino? Tu é menino, pá tá aqui an-
dado de moto!” A menina fala algo que não é possível iden-
tificar e Ítalo prossegue falando, mas também não é possível
compreender o que ele diz. Em seguida, Laila sai do balanço
e empurra Ítalo. Depois ela segue em direção ao outro brin-
quedo do parque, enquanto Ítalo dirige-se ao balanço onde
estava antes. Laila fala algo incompreensível para o garoto,
e ele responde: “É mais não!” Laila volta sorrindo, simulando
uma briga física com Ítalo, e ele responde positivamente ao
convite, simulando uma briga com ela. Faz uma pausa para
levantar seu short. Laila vai para escada do escorrego. Ítalo
113
vai atrás dela, simula um soco, e volta saltitante para o ba-
lanço. Ela fala algo que não foi possível compreender e Ítalo
vai em sua direção. Laila, rindo, sobe apressadamente a es-
cada. Ítalo finge tentar pegá-la; em seguida volta a brincar
nos balanços.
Laila ocupa o lugar dos meninos no balanço quando eles se jogam
no chão. Ítalo tenta auxílio da pesquisadora para resolver a disputa, e
Samuel desiste da brincadeira, dirigindo-se para o outro lado do parque.
Em decorrência da não resposta da pesquisadora, Ítalo fala para a me-
nina, intimidando-a com “argumento machista”, tal como usado em sua
cultura, de que existem objetos para exclusivo uso masculino – como a
moto: (“Tu é menino? Tu é menino, pá tá aqui andado de moto!”) Laila
retruca, mas se dirige para outro equipamento do parquinho, ou seja, a
argumentação do parceiro surtiu efeito! A garota parece aborrecida por
“precisar” deixar o balanço, o que faz com que ela reaja com um empur-
rão ao menino. Mas não demora; propõe, com gestos explícitos, uma
brincadeira de luta, e ambos fazem provocações, de maneira revezada,
enquanto se divertem.
Na brincadeira, as crianças aprendem, constroem ou transformam os
objetos em cooperação com os parceiros, partilhando significados (Carva-
lho et al. 2012). O balanço, neste episódio, assumiu um novo significado
que foi partilhado, tornou-se uma moto, e com a transformação, também
se tornou um objeto de uso masculino – brinquedo de menino.
Observa-se, mais uma vez, o uso concomitante de comportamentos
de resistência e enfrentamento a situações de conflito. A argumentação de
Ítalo, lembrando a Laila normas compartilhadas em sua cultura, foi efetiva,
porque a menina se afastou do brinquedo de uso masculino! Contrariada,
comportou-se com enfrentamento físico, empurrando o garoto. Mas, em
seguida, propõe uma reconciliação, convidando-o para brincar juntos de
luta, e foi prontamente atendida pelo parceiro.

114
Formação de alianças
Este quinto tipo de reação caracteriza-se quando uma ou mais crian-
ças estabelecem aliança, explícita ou implícita, com um ou mais parceiros
e, assim, enfraquece a força da criança que domina uma situação específi-
ca no grupo. As alianças promovem alteração na dinâmica interacional do
grupo e fortalece a resistência dos “mais fracos”.

Episódio #21: “Avoa ele!”


Crianças envolvidas: Eli (M/48m), Samuel (M/42m), Ruan (M/47m),
Biel (M/47m), Joel (M/49m), Tom (M/45m)
Eli brinca com um boneco sobre a mesa (que levou para a
creche). Ao seu redor estão Samuel, Biel, Ruan, Joel e Tom,
que o observam. Num dado momento, Joel se dirige para
Eli dizendo: “Bola mostlar a tia; bola mostlar a tia, teu blin-
quedo?” Eli prossegue mexendo no boneco e responde: “É
não, é Roberts!” Joel insiste: “Bola mostlar pra tia teu Ro-
berts?!” E o garoto diz: “Meu Roberts”. Joel insiste dizen-
do: “É, bola!” Eli continua mexendo nos braços do boneco
e responde: “O Roberts não vai não!” Joel diz: “Vai Eli, pá
ele voar pá tia!” Eli não responde e continua movimentan-
do os braços do boneco. Em seguida, Ruan se dirige a Eli e
diz: “Avoa ele, Eli!” Eli responde: “Oia a mão dele!” Ruan
insite: “Avoa ele, Eli!” Este, sem olhar para o parceiro, res-
ponde: “Ôxe, vou nada!” Joel interrompe dizendo: “Vai Eli!
Por favor! Por favor!” Eli responde: “Não, e não, e não, e
não, e não!” Joel fala para Eli: “Então a gente não vai ficar
peto de você.” Em seguida, Joel se afasta, dirigindo-se para
o outro lado da sala, e é acompanhado por Samuel e Biel.
Eli se vira para Ruan e diz: “Fica peto de mim!” Samuel e
Biel voltam rapidamente para perto de Eli, mas Joel, diri-
gindo-se para Eli, diz: “Vou ficar perto de Tom.” Samuel,
Biel e Luan, próximos a Eli, mexem no boneco e conversam
115
com o menino. Enquanto isso, Joel e Tom brincam juntos.
Depois de alguns segundos, Eli olha pra Joel e diz: “Toma,
oh, Joel!” E entrega o boneco para o menino. Logo depois
Eli diz: “Fica perto de mim!” Joel pega o boneco e o coloca
na posição horizontal, simulando um voo; aproxima-se de
Eli e se senta ao seu lado; depois coloca o boneco sobre a
mesa e o explora. Ruan também se aproxima e mexe no
boneco. Eli segura um dos braços do boneco. Passados al-
guns segundos, Eli fala: “Tá bom!” E então pega o boneco
das mãos de Joel. Este se levanta e segue para próximo de
Tom; os dois voltam a brincar juntos. Eli permanece junto
aos demais meninos, brincando com o boneco.
As crianças propõem a Eli uma forma de brincar com o boneco, mas o
garoto se recusa. Em represália, Joel propõe um afastamento dele e “con-
voca” os parceiros ao dizer: “Então a gente não vai ficar peto de você.” Em
seguida, Joel se afasta, dirigindo-se para o outro lado da sala, e é acompa-
nhado por Samuel e Biel. Estes dois garotos acederam ao incitamento de
Joel. Instaura-se, assim, uma aliança entre eles, ou seja, entre Joel, Samuel
e Biel. Mas Ruan continuou perto de Eli e este solicitou que Ruan permane-
cesse perto dele. A aliança que Joel propôs às crianças não se manteve, pois,
Samuel e Biel voltam rapidamente para perto de Eli e este permite que os
colegas do seu entorno, inclusive eles, mexam no seu boneco – uma espécie
de “contra aliança” fortalecendo a proximidade dos colegas com ele! Mesmo
assim, Joel anuncia nova aliança, e diz: “Vou fica peto de Tom!” Eli percebe
que Joel brinca com essa outra criança e oferece o brinquedo para ele, di-
zendo: “Toma, oh, Joel!” E entrega o boneco para o menino. Logo depois Eli
diz: “Fica perto de mim!” Joel pega o boneco e o coloca na posição horizontal,
simulando um voo; aproxima-se de Eli e se senta ao seu lado. Mas, poucos
minutos depois de conseguir reestabelecer a proximidade com Joel, Eli pede
seu brinquedo de volta. Então, Joel busca novamente contato com Tom.
É possível pensar que Eli e Joel são parceiros preferenciais, ou seja,
crianças que brincam juntas com mais frequência, pois mesmo diante do
sucesso em conseguir a proximidade da maioria dos colegas, cedendo seu
116
boneco para eles manipularem, Eli ainda investe na proximidade com Joel
ao vê-lo brincando com Tom. Assim, Eli demonstra que Joel é um parceiro
importante para ele.
A formação de alianças provoca alteração na dinâmica interacional do
grupo, fazendo variar a força, a posição ou o poder de seus integrantes. A
criança, com o poder de decisão, pode se perceber, de uma hora para ou-
tra, destituída de sua força, à medida que outros integrantes do grupo pas-
sem a apoiar a criança “mais fraca” e, assim, novas investidas sociais preci-
sam ser efetivadas para o restabelecimento de sua influência no grupo. Eli
tinha o controle da situação por ser dono do boneco, que trouxe de casa.
Ele falou firme e não cedeu ao modo de manipular o objeto. Mas, bastou
ele observar o afastamento dos colegas, para mudar seu comportamento:
deixou que as crianças próximas a ele pudessem manipular o boneco e
fazê-lo de seu próprio jeito. Eli cedeu à pressão do grupo, mas garantiu a
proximidade dos colegas. O “perdedor”, Joel, faz nova investida e estabe-
lece nova aliança até que consegue o mesmo direito dos colegas: brincar
com o boneco e fazê-lo voar, como desejava antes. Isso ocorre não apenas
nas brincadeiras infantis, mas em diversos outros espaços de convivência
social e em outras etapas do desenvolvimento humano. É o grupo quem
atribui o poder a um dos seus membros e, assim como o institui como “o
mais forte”, também o destitui de seu poder.

Afiliação entre parceiros


Neste último tipo de resistência e enfrentamento, uma criança asso-
cia-se ao parceiro atribuindo-se um papel de filho, de pai, de mãe etc., de
modo a alcançar um objetivo, por exemplo, se incluir em uma brincadeira
já instaurada ou em vias de se instaurar, ou obter um objeto de seu inte-
resse. Como os diversos tipos de comportamento aqui mencionados não
são excludentes entre si, a afiliação, sendo exitosa, favorece a aproximação
com o(a) parceiro(a) e pode levar ao desdobramento da brincadeira já em
curso. Segue um exemplo com um dos episódios transcritos de nossa in-
vestigação.

117
Episódio: “Mamãe, venha cá!”
Crianças envolvidas: Luna (F/33m) Vily (M/31m) Marcília (F/32m)
Luna e Vily brincam num dos cantos da sala com um conjun-
to de brinquedos. Marcília se aproxima das crianças e pega
um ursinho que está junto aos brinquedos da dupla. Luna
estende o braço na direção de Marcília e, com um gesto de
mão, pede o urso de volta, e segue dizendo: “Me dá, é meu!”
Marcília se mantém em pé, com o urso de pelúcia nos braços.
(O foco da câmera é afastado desse grupinho de crianças
por alguns segundos). Quando o foco alcança novamente as
crianças, Luna está se dirigindo para Marcília dizendo: “Ei
filha, filhaaaaa! Mamãe, venha cá!” Marcília prossegue em
pé com o urso. Luna repete ainda mais alto: “Venha filha!”
Marcília não devolve o brinquedo e se afasta, seguindo para
o outro lado da sala com o objeto.
Neste episódio existe uma brincadeira em curso entre Luna e Vily,
quando Marcília se aproxima e pega um dos objetos que faz parte da brin-
cadeira da dupla, interferindo, assim, no espaço da díade. Luna pede o
objeto, argumentando que o objeto lhe pertence, mas sua tentativa não
funcionou. Então, Luna atribui a Marcília o papel de filha, depois muda
para o papel de mãe e volta a atribuir-lhe o papel de filha! Esses dois pa-
péis têm status diferentes no grupo: a filha obedece, e a mãe dá ordens.
Luna se confunde na hora de falar? Ou ela experimenta qual desses dois
papéis Marcília quer assumir? Ou, ainda, Luna não sabe caracterizar-se em
relação a outra criança dentro da hierarquia do grupo (quem pode mandar
ou quem deve obedecer)? As tentativas de afiliação feitas por Luna aca-
bam não tendo sucesso. Entretanto, esse tipo de reação é comum entre
as crianças e, na maioria das vezes, dá certo, isto é, acomoda a criança
que ao se sentir excluída, tensiona a realização da brincadeira. Normal-
mente, a criança que entra depois aceita ser o/a filho/a, sinalizando que
será obediente ou cordata quando estiver brincando, aceitando as regras
já estabelecidas; mas existem crianças que têm dificuldade de aceitar pa-
118
péis subalternos, mesmo “atrasadas”. Nesses casos, a aceitação de papéis
subalternos é imposta pela força física, persuasão ou agrados.
A insinuação de uma afiliação, embora pareça com criação de um novo
roteiro de brincadeira, é distinta desta, ou tem um ingrediente diferente
que é o estabelecimento de papéis para si e para o outro, em um roteiro
já estabelecido. A construção de enredos explicitada neste estudo se volta
para o aspecto da criação de um novo roteiro para o brincar, podendo ou
não existir papéis de afiliação. Papéis desse tipo propiciam a proximidade
entre os parceiros e podem incrementar a brincadeira já em curso. Tam-
bém demonstram a forma como as crianças compreendem os papéis so-
ciais familiares e das instituições que frequentam.

O que nos revelam as reações dos dois grupos investigados?


Inicialmente constata-se que, mesmo com pouca idade, 2 a 4 anos, as crian-
ças agenciam suas atividades e buscam estar e brincar com as outras. Seu
protagonismo é realçado ao se examinar conflitos e dissensos que ocorrem
no grupo quando estão em atividade lúdica. Os vários tipos de reação reve-
lam resistências e enfrentamentos a diversas situações.
Quantitativo de ocorrências de cada tipo de reação de resistência e/ou enfrentamen-
to para os 33 episódios descritos, dos grupos de 2 e 3 anos da creche.

Enfrentamento físico Reorientação Criação de roteiro Argumentação Alianças Afiliação

Episódios Grupo de 2 anos Episódios Grupo de 3 anos

Obs.: Pode ocorrer mais de um tipo de reação em um mesmo episódio.

119
A partir do quantitativo apresentado na figura, permitindo uma com-
paração entre o grupo 2 e 3, pode-se dizer que as diferenças de ocorrên-
cias apontam na direção de um desdobramento de competências sociais:
no grupo 2 (crianças com idade média de dois anos e meio) observa-se
quase o dobro de ocorrências de reações com enfrentamento físico do que
no grupo 3 (crianças com idade média de três anos e meio). Mesmo exis-
tindo ainda muitos episódios de enfrentamento físico aos três anos, eles
tendem a diminuir e começam a surgir, com mais frequência, outros tipos
de reação mais complexos, como é o caso de implementação de um novo
roteiro de brincadeira em substituição ao roteiro em que surgiu um confli-
to. Possivelmente esse desdobramento está alinhado a outras conquistas
interpretativas e comunicativas, como é o caso da linguagem, que vai se
aprimorando à medida que as crianças vão amadurecendo e ampliando o
acesso a novos contextos sociais. Coerente com essa interpretação, obser-
va-se um aumento sutil, no grupo 3, de reações com o uso de argumen-
tação. Talvez a falta de um melhor registro de áudio tenha diminuído o
quantitativo de registros desse tipo de reação. No trabalho de transcrição,
algumas falas das crianças ficaram incompreensíveis, haja vista o episódio
“É meuuuuu!” em que Dolores fala algo para Messias e dá risada. Não se
conseguiu compreender o que ela disse naquele momento, mas se obser-
vou que Dolores falou algo acompanhado de risada, e isso não amenizou a
discórdia instaurada entre a díade.
Nos grupos examinados, também chama a atenção o surgimento de
episódios em que as crianças constroem alianças entre elas e isso altera a
dinâmica interacional do grupo, fortalecendo, às vezes, aquelas que estão
em posição “mais fraca”, quer dizer, sem acesso a certos brinquedos, a cer-
tos espaços no arranjo social do brincar, ou por não conseguir implementar
um roteiro alternativo à brincadeira, ou, ainda, por não conseguir se incluir
no roteiro em curso. Ao estabelecer uma aliança com um parceiro, o pên-
dulo de forças do grupo penderá para as que estão alinhadas entre si, reor-
ganizando as posições hierárquicas e, eventualmente, fortalecendo quem
estava em desvantagem. No gráfico é possível observar dois episódios de
alianças no grupo 3.
120
Por meio de interações lúdicas o grupo constrói sua microcultura, um
processo de apropriação e construção do seu entorno cultural. A micro-
cultura do grupo de brinquedo são significações coletivas, portanto com-
partilhadas, que persistem e constituem o esteio de convivência do grupo,
aqui considerado um contexto de sustentabilidade, uma vez que acolhe
transformações atuais e futuras, sendo potencialmente reconstruído por
novos integrantes.
A convivência entre pares de idade é um direito da criança: uma opor-
tunidade de crescimento compartilhado no qual aprendizagens são efe-
tivadas, amizades são alimentadas pela convivência, e regras sociais são
implementadas. Se estamos refletindo sobre a ontogênese humana, o con-
texto favorável ao seu crescimento deve ser garantido com a promoção de
encontros entre parceiros infantis, que instauram espaços de convivência
necessários ao seu desenvolvimento, pois vimos, pelos resultados da in-
vestigação realizada, que, desde pequenas, as crianças já fazem sua parte:
resistem a desavenças, dissensos e embates no seu grupo; em decorrência,
persistem, como também sustentam as relações do grupo, instando novas
interações, efetivando sua sociabilidade, constituindo o meio sociocultural
e sendo por este constituídas.

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Carvalho, A. M. A., Pedrosa, M. I., & Império-Hamburger, A. (in memoriam) (2020).
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121
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122
DESENVOLVIMENTO HUMANO E MODALIDADES
DE ACOLHIMENTO NO BRASIL:
CONTRIBUIÇÕES DA PSICOLOGIA

Alysson Massote Carvalho e Maria Camila Lima


Faculdade Presbiteriana Gammon - FAGAMMON

Introdução
O tema deste livro, Desenvolvimento humano, justiça social e contex-
tos sustentáveis, suscita questões importantes que envolvem a articulação
entre a nossa organização enquanto sociedade e as contribuições da Psico-
logia e de outras áreas do conhecimento, em uma perspectiva transversal.
Nesse sentido, quando falamos sobre desenvolvimento humano, dife-
rentes abordagens teóricas, tais como a piagetiana, a vygotskiana, a teoria
do curso da vida, a bioecológica, entre outras, demonstram a importância
do contexto, compreendido em uma perspectiva mais ampla, para a onto-
gênese do ser humano. Morais et al. (2021) apontam para a importância
do contexto no qual as crianças vivem e seu importante papel sobre o de-
senvolvimento psicossocial, motor e cognitivo. Os autores, ao fazerem uma
análise integrada a partir de indicadores em saúde, educação e desenvol-
vimento social, identificaram diversos fatores contextuais que impactam a
primeira infância no Brasil, entre os quais, a pobreza. Dentre os diversos
grupos de criança nessa faixa etária de 0 a 6 anos, que se encontram em
situação de vulnerabilidade em nosso país, estão aquelas que vivem sob o
cuidado de outras pessoas, que não as famílias, ou em instituições.
Assim, esse capítulo objetiva fazer uma interlocução entre a Psicologia
do Desenvolvimento, as Políticas Públicas brasileiras de atenção à Infância,
os contextos em que as crianças que não são cuidadas pela família vivem e
sua influência sobre o desenvolvimento delas.
123
Nesse sentido, quanto à Psicologia do Desenvolvimento, optou-se
entre várias perspectivas, pela bioecológica sobre o desenvolvimento hu-
mano, formulada por Bronfenbrenner (2011), considerando a importância
nela atribuída ao contexto sobre o desenvolvimento do ser humano.
Na sequência, sob uma perspectiva histórica, a partir do século XVII,
serão apresentadas as formas de cuidado às crianças que vivem em con-
textos longe de suas famílias.
Por fim, procurou-se, ao final, correlacionar estes dois elementos,
Teoria sobre Desenvolvimento Humanos e Políticas Públicas de atenção à
Infância, e seu impacto sobre o desenvolvimento das crianças.

Psicologia do Desenvolvimento: contextos, interações e resiliência


Inicialmente, é importante considerar que o estudo sobre o desenvol-
vimento humano, em uma perspectiva integradora entre natureza e cultu-
ra, deve considerar tanto as predisposições genéticas, como a influência do
ambiente, em seus contextos de desenvolvimento. Dessa forma, na pers-
pectiva ontogenética, é impossível separar os efeitos dos genes e dos fato-
res ambientais, o que seria um equívoco conceitual. Esses dois elementos,
gene e ambiente são, ao mesmo tempo, inseparáveis e complementares
de um sistema sobre o qual se exercem pressões seletivas: o organismo
em funcionamento e suas relações com o mundo físico e social. Assim, na-
tureza e criação não se opõem. Se complementam. Segundo Hinde (1992),
características anatômicas, funcionais, socioculturais e comportamentais
formam um complexo coadaptado de maneira que mudanças em uma de-
las têm efeitos para o conjunto. Nesse conjunto bastante complexo, as tro-
cas sociais, com seus níveis crescentes de complexidade, estão presentes
nos diferentes contextos de desenvolvimento.
Nesse contexto, é importante considerar que as várias abordagens
teóricas sobre desenvolvimento humano, entre as quais, aquelas citadas
anteriormente, têm como referência as interações entre natureza e cultura
e seu impacto sobre a ontogênese do desenvolvimento.

124
Dentre elas, a abordagem bioecológica de Bronfenbrenner (2011)
apresenta um modelo para o desenvolvimento humano denominado Pro-
cesso-Pessoa-Contexto-Tempo (PPCT). O primeiro termo dessa aborda-
gem, o “processo”, refere-se aos processos proximais que envolvem as in-
terações recíprocas entre o indivíduo e o seu ambiente que, ao longo do
ciclo da vida, vão se complexificando. Para serem efetivos, esses processos
devem ser amparados por uma base estável em longos períodos de tempo.
São exemplos de processos proximais as atividades que ocorrem no grupo
familiar como aquelas entre os pais e suas crianças, entre irmãos; nos gru-
pos de crianças, brincadeiras solitárias ou em grupo e o aprendizado de
novas habilidades, entre outros (Bronfenbrenner, 1999).
A partir dessa perspectiva sobre os processos proximais verifica-se
que, quando consideramos as crianças em situação de vulnerabilidade,
que têm de ser transferidas de seus lares para outros modelos de aco-
lhimento, há um impacto imediato sobre a estabilidade do seu contexto
de desenvolvimento, incluindo as relações afetivas. Dessa forma, políticas
públicas para crianças nessas situações, devem considerar a importância
de se manter um mínimo de estabilidade para elas ainda que, contradito-
riamente, em meio à instabilidade que caracteriza a mudança de contexto
de vida.
O segundo termo, “pessoa” refere-se às características do indivíduo
tanto genéticas e biológicas, como aquelas construídas em sua interação
com o contexto ambiental. Assim, o ser humano influencia tanto a forma,
como o conteúdo, a direção e a força dos processos proximais. No caso da
criança, mesmo que não tenha atingido a maturidade, seu comportamen-
to tanto influencia o meio onde vive como também reflete sobre a forma
como as pessoas e o meio interagem com ela.
Já o terceiro elemento, os “contextos”, foram divididos pelo autor em
níveis de influência ambiental que ele denominou “sistema de ninhos” (do
mais íntimo ao mais amplo). Envolvem a interação de quatro níveis am-
bientais – microssistema, mesossistema, exossistema e macrossistema.
Aquele mais interno, o microssistema, contempla as relações entre o
indivíduo e o seu ambiente imediato, onde essas relações são vivenciadas
125
diretamente. Para uma criança nos primeiros anos de vida, o microssiste-
ma seria o ambiente familiar e, em muitos casos, a creche.
O segundo nível, mesossistema, é composto pelas conexões entre os
microssistemas. Por exemplo, o mesossistema para uma criança de dez
anos poderia envolver as conexões entre a casa, sua sala de aula na escola
e sua turma da escola de esportes.
Os contextos em que a pessoa em desenvolvimento está indiretamen-
te relacionada (embora deles não participe ativamente) são chamados de
exossistema, terceiro nível. Constituem exemplos, a vizinhança e a rede de
amizades.
O nível mais externo, que envolve todos os níveis de contextos, é de-
nominado macrossistema. Engloba o sistema de valores culturais, crenças
e estilo de vida característicos de um determinado grupo social no qual a
criança e sua família estão inseridas.
Assim como nos processos proximais, os contextos propostos por
Bronfenbrenner (1999) evidenciam a intercambialidade entre eles e seus
impactos sobre o desenvolvimento humano. Por isso, definições sobre a
forma de atendimento às crianças objeto deste capítulo, que envolvem o
exossistema e o macrosistema devem, necessariamente, considerar suas
repercussões sobre o microssistema das crianças.
O quarto termo do modelo, o “tempo”, é estruturado em três níveis
e compõem o cronosistema: microtempo, mesotempo e macrotempo. Ele
pode ser considerado a partir de duas perspectivas: as interações mais cur-
tas, episódicas, no contexto dos processos proximais; passagem do tempo
histórico, mais longo, que traz mudanças de maior alcance na esfera do
macrosistema, sobretudo. Mais especificamente, o microtempo refere-se
àquele dos “processos proximais”, e envolve as interações episódicas e ati-
vidades que ocorrem no contexto do microssistema. O mesotempo rela-
ciona-se à periodicidade dos processos proximais (base estável em longos
períodos de tempo). Já o macrotempo se relaciona às mudanças no ma-
crossistema tais como aquelas sociais, políticas, econômicas.
A partir da abordagem bioecológica verifica-se que os ambientes ime-
diatos à criança, como a convivência no meio familiar ou frequência regu-
126
lar a um ambiente coletivo educacional (microssistemas), bem como os
elementos relacionados ao exosssitema e macrossistema, como a estrutu-
ra social do Estado e a cultura na qual a criança está inserida terão influên-
cia significativa no curso do seu desenvolvimento (Bronfenbrenner, 2011).
A partir dessa abordagem, podemos compreender que a família ou
outro tipo de configuração social substituta, constitui um sistema inte-
grado em constante interação com os demais sistemas, mas que, quando
submetido a vivências consideradas como situações de risco (separações,
rompimentos, mortes, empobrecimento súbito, desemprego, violência
comunitária e familiar, etc) pode entrar em desequilíbrio. Essa situação
pode, inclusive, levar à vulnerabilidade familiar, fator que requer o estabe-
lecimento de políticas públicas de proteção às crianças que vivem nesses
contextos.
Por isso, torna-se importante compreender os processos que levam
alguns indivíduos, criados em circunstâncias adversas como essas, a viver
de forma saudável e produtiva, enquanto outros, nas mesmas condições
parecem nunca superar as adversidades.
Nesse sentido, o conceito de resiliência constitui um elemento im-
portante para compreender esses mecanismos de adaptação de crianças
em diferentes contextos, sobretudo aqueles de vulnerabilidade. Concei-
tualmente, Grotberg (2005) sintetiza os conceitos contemporâneos sobre
resiliência em um só: “capacidade humana para enfrentar e ser fortalecido
ou transformado por experiências de adversidade”. Esta definição traz a
concepção de enfrentamento e transformação, diferente da ideia de invul-
nerabilidade e resistência associada às pesquisas da primeira geração de
investigadores datadas do início dos anos 70. Com a evolução e abrangên-
cia do conceito, os pesquisadores da segunda geração (nos anos 90) con-
sideram resiliência como a capacidade de enfrentar e responder de forma
positiva às adversidades e suas consequências potencialmente negativas.
Não significa, por exemplo, que a criança não se sinta atingida pela situa-
ção adversa nem tampouco que a situação de risco não tenha nenhum
efeito sobre ela, mas sim que, apesar de deixarem marcas, as adversidades
e situações de risco enfrentadas podem ser superadas porque ela encontra
127
o suporte que a ajuda a prosseguir, delineando uma trajetória que, do pon-
to de vista social e cultural, pode ser considerada positiva.
Nesse processo de enfrentamento das condições adversas, fatores ou
mecanismos de proteção são condições do ambiente capazes de favorecer
o indivíduo ou um grupo e de reduzir efeitos ou circunstâncias desfavorá-
veis. Segundo Rutter (1987), “fatores de proteção referem-se a influências
que modificam, melhoram ou alteram respostas pessoais a determinados
riscos de desadaptação”. Enquanto os eventos estressantes levam à vul-
nerabilidade e ao risco, as capacidades de enfrentamento e de adaptação
promovem a resiliência. Flach (1988) aponta para o fato de que a proteção
não reside na fuga do risco, mas no fato de conviver bem com ele. Risco
e proteção não são momentos estanques. É na medida em que o sujeito
transforma sua trajetória de risco em resultados socialmente válidos, supe-
rando-a, que os mecanismos protetores estão atuando.
Retomando a abordagem bioecológica, De Antoni e Koller (2000),
relacionam os conceitos de risco e proteção numa inter-relação com as
relações familiares, entendendo que, segundo essa perspectiva, a família
é uma unidade funcional, um microssistema no qual as relações devem
ser estáveis e recíprocas, sugerindo que deve haver um equilíbrio de po-
der entre os diversos papéis. Garbarino e Abramowitz (1992) explicita o
funcionamento do microssistema familiar e suas relações com os demais
sistemas, esclarecendo que o microssistema familiar é o primeiro sistema
no qual o ser humano em desenvolvimento interage, onde acontece o que
chamamos de socialização primária, uma vez que se apresenta com um
padrão de papéis, de atividades e de relacionamentos que são associados
a determinados comportamentos e expectativas, de acordo com a socie-
dade no qual está inserido. Acrescente-se a contribuição de Cuello (2004),
afirmando que a família é a responsável pela integração social primária
da criança, além de atuar como agente potencializadora e promotora do
desenvolvimento de crianças e adolescentes, tornando-os assim, aptos e
qualificados para viver em sociedade.
Diante dessa importância atribuída à organização familiar para o
desenvolvimento humano, quando ela é desestruturada a ponto de se
128
constituir em fator de risco, faz-se necessário que o poder público tenha
mecanismos eficazes para a redução de riscos e para oferecer fatores de
proteção de forma a garantir parâmetros estáveis, sobretudo no micros-
sistema.
A definição desses mecanismos somente pode ser feita de maneira
adequada a partir das evidências advindas da pesquisa sobre desenvolvi-
mento humano.
É nesse momento que, de maneira clara e inequívoca, temos o
encontro da produção científica, sobretudo em Psicologia, com as políticas
públicas voltadas para a proteção na infância, tema da próxima sessão
deste capítulo.

Políticas públicas de acolhimento: garantia dos Direitos da Criança


Para compreender as Políticas Públicas voltadas para a garantia dos
direitos da criança torna-se fundamental uma análise crítica da história, in-
fluenciada pelos aspectos biológicos, culturais e sociais. Assim, iniciar uma
reflexão a partir do século XVII torna-se essencial para fundamentar todo
processo de análise.
Entre os séculos XVII e XIX, os primeiros atos de proteção a crianças
em situação de abandono são apresentados por um viés religioso, liderado
pela igreja, por meio do qual crianças abandonadas, órfãs, filhas naturais
de escravos e prostitutas, entre outras, eram recolhidas por instituições
asilares de cunho caritativo-assistencialista.
Uma das principais ações desse modelo assistencialista da época é
liderado pelas Santas Casas de Misericórdia, ação essa denominada como
“Roda dos Expostos”. A estrutura da Roda consistia em um cilindro de ma-
deira envolto em um eixo e era repartido ao meio ou em quatro partes.
Fixada na parede de um prédio, ou mesmo em um muro, favorecia a en-
trada das crianças, sem que quem estivesse colocando-as e recebendo-as
fossem vistos e reconhecidos. Ao lado da Roda, na parede, havia um sino,
que era tocado pela pessoa que colocava a criança na Roda. Ao ouvir o to-
que do sino, a porteira recolhia a criança e a encaminhava, de acordo com

129
as regras da instituição. O maior objetivo era garantir a sobrevivência da
criança e combater a mortalidade infantil (Marcílio, 1997).
Apesar de ser considerada um instrumento para diminuição da morta-
lidade infantil, decorrência dos abandonos, a Roda acabou sendo conside-
rada como causadora e legalizadora de muitos abandonos de crianças, fos-
sem elas brancas ou negras. Destacam-se as questões ligadas ao abandono
de crianças negras de forma peculiar, devido à existência da escravidão em
nosso país. Muitas eram as escravas que colocavam seu filho na Roda para
que esse fugisse da condição de escravo, uma vez que ao ser abandonada
a criança era considerada livre. Esse procedimento poderia ser considera-
do, portanto, como um dos recursos utilizados pelos negros para fugir da
escravidão compulsória.
Contudo, nas condições sociais no País, juntamente com a concepção
de infância, tal fato adquire não somente uma dimensão social, mas cul-
tural e econômica. Aspectos que anteriormente existiam somente no âm-
bito privado da família e Igreja, com a Proclamação da República, final do
século XIX, e a preocupação do estado na formação de uma identidade do
País, surgem aspectos de cunho político e social. O modelo caritativo-assis-
tencialista pertencente a Igreja e de viés religioso, passa a ser preocupação
do estado, com o apoio de instituições privadas, e adquire um modelo de
filantropia: amor a humanidade – âmbito social (Rizzini, 1997). Nesse pe-
ríodo surgem algumas questões socioeconômicas, como a pobreza, a falta
de recursos e destino dos escravos libertos, juntamente com a necessidade
de construir uma sociedade adequada e digna.
O interesse estava voltado para o desenvolvimento de um projeto de
controle higiênico dos portos, a proteção da sanidade da força de trabalho e
o encaminhamento de uma política demográfico-sanitária que contemplas-
se a questão racial. Se caracteriza como um período de inegável influência no
processo de transformação política/econômica da sociedade brasileira (Ma-
chado, 2000), marcado pelo desenvolvimento de tecnologias e pelo trabalho
de especialistas que investigavam a saúde dos imigrantes, a situação sanitá-
ria, a rotina das cidades, a higiene infantil, os hábitos e costumes popula-
res, a eugenia do povo brasileiro, o trabalho, a criminalidade, entre outros.
130
A intervenção do Estado, por meio das políticas públicas, durante esse
período, se faz presente principalmente na família através da criança, se
concentrando nas classes mais vulneráveis, apresentadas como foco da
doença e da desordem. A criança em vulnerabilidade é vista como um ser
com inclinações inatas negativas, herdadas de seus pais. As ações e aná-
lises cultivadas sobre a criança, tanto no Brasil quanto na Europa e nos
Estados Unidos da América, estavam ligadas a dois aspectos, o primeiro na
salvação da alma da criança, e o segundo como “chave para o futuro” (Riz-
zini, 1997). A partir do século XX, o estado passa a ter uma presença maior
no enfrentamento dos conflitos relacionados à infância.
Em 1924, a Liga das Nações adota a Declaração de Genebra, sobre
os Direitos da Criança e, em 1959, a Assembleia Geral das Nações Unidas
adota a Declaração dos Direitos da Criança, que reconhece, entre outros
direitos, os de proteção e sobrevivência, cuidados de saúde, educação,
brincadeira; a criança precisa de cuidados especiais e proteção (Fundo das
Nações Unidas para a Infância [UNICEF], 2021).
Em 1979, para fortalecer legalmente os direitos da criança, a Organi-
zação das Nações Unidas (ONU) instituiu um Grupo de Trabalho (Working
Group on the Question of a Convention on the Rights of the Child) para
iniciar a elaboração do pré-texto que dez anos após originou a Conven-
ção dos Direitos da Criança. Entrou em vigor em 2 de setembro de 1989,
expressando que cada Estado Parte da Convenção ficaria responsável por
estabelecer uma ordem legal interna objetivando a sua efetivação. O Brasil
ratificou a Convenção dos Direitos da Criança em 20 de setembro de 1990
(UNICEF, 2021).
A Convenção é considerada um dos documentos mais respeitáveis de
direitos humanos aprovados pela comunidade internacional. Composta
por um preâmbulo e uma apresentação dos direitos da criança, garante
princípios ético-filosóficos e jurídicos. São eles: 1) não discriminação; 2)
melhor interesse da criança; 3) direito à sobrevivência e ao desenvolvi-
mento e 4) respeito à opinião da criança (UNICEF, 1989).
Não obstante a Convenção tenha sido até o momento ratificada por
diversos países, alguns fizeram ressalvas e declarações interpretativas aos
131
seus artigos para compatibilizá-la com a cultura, a religião e a legislação do
país. Diversos temas motivaram discordâncias e debates.
Alguns dos temas discutidos, por exemplo, consistem: se a criança
deve ou não ter liberdade de escolha religiosa, a subtração internacional
de crianças, conceito apresentado na Convenção de Haia, 1980, sobre os
aspectos Civis do Sequestro Internacional de crianças, e se uma criança
adotada ou concebida por meio de inseminação artificial tem o direito às
informações sobre os seus pais biológicos, em discutir se a sua proteção
deveria incluir a proibição do aborto, entre outros.
A Convenção é criticada por autores que acreditam que os direitos da
criança deveriam continuar a ser apenas os de proteção, divergindo de to-
dos aqueles que apontam a proteção como uma maneira de opressão dos
adultos sobre as crianças.
Holt (1975), um dos precursores na luta pelos novos direitos da crian-
ça, defende que a infância moderna constitui uma forma de aprisionamen-
to da qual toda criança tem o direito de escapar. Crítico da maneira como
crianças e jovens são educados nas famílias e no sistema escolar norte-a-
mericano, propõe que qualquer pessoa jovem que assim o desejar deve ter
os direitos, privilégios, obrigações e responsabilidades do cidadão adulto,
desde que demonstre capacidade e responsabilidade. Isso inclui: 1) o direi-
to a igual tratamento pela lei, significando que, em qualquer situação, não
seja tratado pior do que o adulto seria; 2) direito de votar e tomar parte
em todos os assuntos relacionados à política; 3) direito de ser responsável
pela sua própria vida; 4) direito de trabalhar por dinheiro; 5) direito à pri-
vacidade; 6) direito à independência e responsabilidade financeira, que in-
clui adquirir, comprar, vender propriedade e fazer empréstimos bancários,
assinar contratos, etc.; 7) direito a decidir sobre sua própria educação; 8)
direito de viajar, de viver longe da casa dos pais, de escolher ou estabele-
cer-se em sua própria casa; 9) direito de receber a mesma renda mínima
garantida pelo Estado ao cidadão adulto; 10) direito de escolher, em base
de consenso mútuo, um guardião ou responsável que não seus pais bioló-
gicos; 11) direito de fazer, em geral, o que qualquer adulto faz legalmente
(Holt, 1975).
132
Para Théry (2007) o que distingue a condição adulto da infância é o
fato de conceber para a criança direitos específicos, provenientes de sua
necessidade própria de proteção: os direitos dos menores. Contudo, os
“direitos da criança” são os de seres humanos individualmente vulnerá-
veis. A incapacidade jurídica não é senão o direito à irresponsabilidade,
isto é, o direito a não ser submetido aos deveres que a capacidade implica.
É essa acepção protetora que fomenta a Convenção de Genebra, de 1924,
sobre os “direitos da criança”, como também a Declaração dos Direitos da
Criança da ONU de 1959 (Théry, 2007).
No Brasil, Pinheiro (2006) apresentou diferentes representações sobre
as crianças que estiveram presentes nos debates da Constituinte. Diante
da representação como sujeito de direitos, também presentes as repre-
sentações da criança como objeto da assistência, controle, disciplinamento
e repressão. Afirma, através do Art. 227 da Constituição Federal de 1988,
que crianças e adolescentes são titulares de direitos, não significando que
as demais representações tenham sido automaticamente eliminadas da
vida social. Pelo contrário, continuam em maior ou menor grau e são pas-
síveis de emergir com grande força, variando de acordo com os processos
que se formam em torno da infância e da adolescência em determinada
circunstância (Pinheiro, 2006).
O direito da criança de participação constitui um dos quatro grandes
princípios da Convenção da Criança, sendo os princípios da não-discrimi-
nação, o direito à vida e ao desenvolvimento e o princípio do melhor inte-
resse da criança. Desse modo, a partir da Convenção, os direitos da criança
não mais se limitam aos direitos que derivam de sua vulnerabilidade (pro-
teção) e dependência do adulto (provisão), sendo o art. 12 da Convenção
um dos mais exaltados:
1. Os Estados Partes assegurarão à criança, que for capaz de formar
seus próprios pontos de vista, o direito de exprimir suas opiniões livremen-
te sobre todas as matérias atinentes à criança, levando-se devidamente em
conta essas opiniões em função da idade e maturidade da criança.
2. Para esse fim, “à criança será, em particular, dada a oportunidade
de ser ouvida em qualquer procedimento judicial ou administrativo que
133
lhe diga respeito, diretamente ou através de um representante ou órgão
apropriado, em conformidade com as regras processuais do direito nacio-
nal” (UNICEF, 1989, p. 10).
Neste mesmo período em que a Convenção é ratificada, é promulga-
do, em julho de 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente, apelidado
de ECA (Lei n. 8069, 1990). Ele adotou as modificações delimitadas na Con-
venção sobre os Direitos da Criança das Nações Unidas e contribuiu para
consolidar o Artigo 227 da Constituição Federal de 1988, que fundamentou
os direitos e garantias fundamentais a crianças e adolescentes. O ECA re-
produziu os dispositivos constitucionais sobre a educação da criança e de-
terminou a criação de instrumentos que influenciaram de maneira notória
no atendimento dos direitos das crianças, como a criação dos Conselhos
dos Direitos da Criança e do Adolescente e o Fundo de Recursos Financei-
ros. Criou-se também, como resultado da nova política, o Conselho Tutelar
nos municípios como órgão permanente e autônomo, não jurisdicional,
destinado a zelar pelo cumprimento dos Direitos da Criança e do Adoles-
cente (Ministério da Educação e do Desporto, 1994). Também trouxe a pro-
teção integral, onde crianças e adolescentes são vistos como sujeitos de
direitos e com prioridade absoluta. Reforçou a responsabilidade da família,
sociedade e Estado de garantir as condições para o pleno desenvolvimento
dessa população, além de colocá-la a salvo de toda forma de discrimina-
ção, exploração e violência. Esta mudança foi de muita importância no que
se diz respeito às instituições de acolhimento, modificou os padrões até
então existentes e fortaleceu o trabalho com as famílias, e a atenção a in-
fância que é de responsabilidade do Estado e da sociedade como um todo
(Brasil, 1990). Neste sentido, representou importante avanço para a justiça
social e para sustentabilidade.
No contexto, quando se trata do acolhimento dessas crianças, verifica-
-se que, até a promulgação do ECA, elas eram acolhidas em orfanatos, edu-
candários ou colégios internos, amparadas pelo Código do Menor. Entre
essas instituições estavam as fundações estaduais do bem-estar do menor
(FEBEM). Caracterizavam-se por serem fechadas, sem muito vínculo com
as comunidades do seu entorno.
134
Desde então, houve muitas mudanças na forma de se acolher essa
população. O atendimento foi reconfigurado por diferentes serviços de
acolhimento visando responder, de forma mais efetiva, às necessidades
de cada criança. Assim, se configuram os chamados Serviços Socioassis-
tenciais. Eles estão estabelecidos na Tipificação Nacional dos Serviços So-
cioassistenciais (Resolução Conselho Nacional de Assistência Social nº 109,
de 11 de novembro de 2009). Essa normativa permitiu a padronização em
todo território nacional dos serviços de proteção social básica e especial,
instituindo seus conteúdos essenciais, público a ser atendido, propósito
de cada um deles e os resultados esperados para a garantia dos direitos
socioassistenciais. Além das provisões, aquisições, condições e formas de
acesso, unidades de referência para a sua realização, período de funcio-
namento, abrangência, a articulação em rede, o impacto esperado e suas
regulamentações específicas e gerais, a tipificação nacional dos serviços
socioassistenciais (Res 109, de 11/11/2009) especifica: “o acolhimento
provisório e excepcional para crianças e adolescentes de ambos os sexos,
inclusive crianças e adolescentes com deficiência, sob medida de proteção
(Art. 98 do ECA, Lei 8069, 1990) e em situação de risco pessoal e social,
cujas famílias ou responsáveis encontrem-se temporariamente impossibi-
litados de cumprir sua função de cuidado e proteção.
As unidades não devem distanciar-se excessivamente, do ponto de
vista geográfico e socioeconômico, da comunidade de origem das crianças
e adolescentes atendidos. Grupos de crianças e adolescentes com víncu-
los de parentesco – irmãos, primos, etc., devem ser atendidos na mesma
unidade. O acolhimento será feito até que seja possível o retorno à famí-
lia de origem (nuclear ou extensa) ou colocação em família substituta. O
serviço deverá ser organizado em consonância com os princípios, diretri-
zes e orientações do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8069,
1990) e das “Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para Crianças
e Adolescentes” (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome,
2013, p. 44).
Assim, Abrigos Institucionais, Casas Lares e Famílias Acolhedoras
passaram a ser as novas modalidades de acolhimento para crianças. Es-
135
ses dois primeiros arranjos, visam reproduzir o ambiente familiar e to-
dos eles almejam o desenvolvimento da autonomia e o convívio com a
comunidade.
Essas novas configurações estão embasadas em diferentes áreas do
conhecimento como saúde, educação e assistência social. Particularmente
a Psicologia, com seu arcabouço teórico sobre desenvolvimento humano,
contribuiu de forma efetiva para que arranjos contextuais como esses pu-
dessem ser elemento de proteção para essas crianças, auxiliando-as no
desenvolvimento da sua resiliência.
Apesar de se tratar de crianças em situação de vulnerabilidade, tem-
porária ou duradoura, esse tipo de suporte que envolve instâncias públicas
e privadas, mostra como as evidências produzidas pela Psicologia, prin-
cipalmente do Desenvolvimento e Social, contribuem de maneira efetiva
para a justiça social e sustentabilidade para esse segmento da nossa po-
pulação.

Considerações finais
Verifica-se que, ao longo da história recente do nosso país, são notó-
rias as transformações no arcabouço dos Direitos da Criança.
Nesse contexto, a abordagem bioecológica, com sua matriz compreen-
siva, constitui um referencial importante para analisar os impactos dessas
políticas públicas de acolhimento sobre a pessoa, os processos proximais
e os contextos. Assim, diante das evidências trazidas, sobretudo pela Psi-
cologia do Desenvolvimento, verifica-se uma sinergia entre elas e as políti-
cas públicas para acolhimento de crianças em situação de vulnerabilidade
social. Um dos destaques nesse campo foi a desinstitucionalização dessas
crianças, que saíram de ambientes coletivos para outros mais acolhedo-
res. Nessa perspectiva, para garantir o atendimento das necessidades da
criança, bem como promover condições para o desenvolvimento das suas
potencialidades, deve-se considerar cada arranjo, visando a garantia da
equalização de oportunidades para todas as crianças, promovendo justiça
social e equidade.

136
Nesse sentido, embora compreendamos que as crianças agora são su-
jeitos de direitos, os próprios direitos que as libertam são os mesmos que
as aprisionam. A contradição existe e podemos observar quando afirma-
mos que as crianças têm direito à saúde, educação, à vida, ao convívio fa-
miliar e social e observamos, em algumas situações, que o ambiente mais
perigoso para elas é a sua própria família.
Por fim, na compreensão das políticas públicas voltadas para as crian-
ças, o papel do psicólogo se torna necessário como um garantidor dos di-
reitos e conhecedor da legislação e competências bem como de aspectos
relacionados ao desenvolvimento humano. Dessa maneira, uma atuação
em rede, dotada de uma estrutura teórico-técnico-operativa que tende
para o fortalecimento de práticas e espaços de debate, visando a autono-
mia dos sujeitos, faz-se fundamental para a prática das Políticas Públicas
no contexto da Psicologia. A inserção do psicólogo nessa rede é funda-
mental, pela natureza da sua formação e prática profissional, que pode
contribuir para fortalecer um conjunto articulado de ações, de serviços e
programas, executados por órgãos públicos e privados que integram o sis-
tema de garantia de direitos da criança e do adolescente, destinados à
proteção integral delas.

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139
DESENVOLVIMENTO COMUNICATIVO DE BEBÊS
NA PERSPECTIVA DE CUIDADORAS E PSICÓLOGAS
DE INSTITUIÇÕES ACOLHEDORAS

Gabriella Garcia Moura


Bruna Amorim Matos Ferreira
Renata Coelho de Pinho
Universidade Federal do Espírito Santo - UFES

Muito se tem discutido a ideia de que o cuidado e a educação são


princípios fundamentais para o fortalecimento da justiça e sustentabilida-
de social (Boldermo & Odegaard, 2019; The Care Collective, 2020; Wals,
2017). O cuidado e a educação, especialmente nos primeiros anos de vida,
integram ações em diversas áreas de importância crítica para a humani-
dade, como cidadania, qualidade de vida, inclusão, saúde, aprendizagem,
igualdade, prosperidade e estabilidade, dentre outras áreas abordadas na
Agenda das Nações Unidas para 2030 (Nações Unidas, 2015), no que se
refere aos objetivos e metas de desenvolvimento sustentável.
Nessa discussão, ressalta-se particularmente a importância da sociali-
zação, da aprendizagem e do desenvolvimento nos primeiros anos de vida,
período crucial para a formação das bases do psiquismo (em suas dimen-
sões afetivas, cognitivas, comunicativas e socioemocionais); e para o de-
senvolvimento de estruturas cerebrais fundamentais para o aprimoramen-
to de habilidades futuras mais complexas. Mas, se por um lado permite a
construção de ótimas competências, por outro, esta etapa também con-
siste em uma janela de vulnerabilidades a experiências negativas (Comitê
Científico do Núcleo Ciência pela Infância [NCPI], 2014).
Como discute Mattos (2009), cuidar e educar compõem um processo
único nesta etapa primordial do desenvolvimento infantil: o de socializa-
140
ção do bebê. São nas interações rotineiras entre bebê e cuidador – nos
momentos de alimentação, de banho, de troca, de brincadeira e de afetuo-
sidade – que o mundo, os gestos, os objetos, a linguagem, o pensamento
e a cultura, de modo geral, são apresentados ao bebê; isto é, são nesses
momentos que se proporciona à criança oportunidades de aprendizagem.
Deste modo, inseparavelmente, os cuidados e a educação de bebês podem
ser compreendidos como uma prática que lhes possibilita a participação
na comunidade cultural e experiências integradas relativas à saúde, edu-
cação, segurança, cuidados humanizados e pertencimento cultural (Kuhl-
mann, 2000).
Diversas pesquisas e evidências científicas vêm mostrando que o in-
vestimento na promoção de desenvolvimento na primeira infância (abran-
gendo cuidados de saúde, educação, apoio social, estimulação e condições
favoráveis de aprendizagem) estão altamente relacionados com melhores
resultados futuros, por exemplo, em termos de maior tempo de escolari-
dade, melhores oportunidades de trabalho, entre outros índices de bem-
-estar social (NCPI, 2014). Assim, compreende-se que o investimento na
aprendizagem, no cuidar/educar e no desenvolvimento integral e saudável
na primeira infância figura como pilar sólido para o exercício da cidadania,
para a inclusão, justiça e sustentabilidade social.
A partir desta discussão de base, o presente capítulo tem como ob-
jetivo abordar um importante aspecto do desenvolvimento na primeirís-
sima infância: o desenvolvimento comunicativo. Mais especificamente,
busca analisar as percepções de cuidadoras e psicólogas de instituições
acolhedoras acerca do desenvolvimento comunicativo de bebês aco-
lhidos. Considera-se que as práticas de cuidado e educação exercidas
nestes contextos podem se configurar como promotoras de desenvol-
vimento pleno e saudável; e configurar um ambiente de participação,
inclusão, responsividade, aprendizagem e atenção compartilhada, que
conforme já foi mencionado, são elementos essenciais para a justiça e
sustentabilidade social.

141
Desenvolvimento comunicativo de bebês: aportes teóricos
Nas interações interpessoais, gradativamente, os bebês têm a oportu-
nidade de aprender que suas expressões (como choro, sorriso, olhar, bal-
bucios, movimentos e gestos) são potentes recursos comunicativos, capa-
zes de captar a atenção do outro social. Apesar da imperícia, dependência
e fragilidade dos bebês, suas expressões corporais-emocionais contagiam
seus cuidadores, sendo os primeiros recursos de comunicação na interação
(Neder et. al., 2020).
A emoção é uma “linguagem” antes da linguagem (Galvão, 2003). O
choro do bebê, por exemplo, é profundamente social na medida em que
funciona como uma chamada. O foco e direção do olhar, os braços esti-
cados e a orientação do corpo também se destacam pela coordenação e
orientação de comportamentos direcionados a um parceiro social ou para
uma meta (ex.: quando a criança quer alcançar um objeto e aponta e/ou
usa o cuidador como meio para consegui-lo) (Riviero, 2003).
Esta capacidade dos bebês de se comunicar por meio de suas expres-
sões emocionais, corporais e gestuais tem sido considerada como eixo fun-
damental para a compreensão do desenvolvimento infantil, em integração
com as dimensões sociocognitivas e afetivas da ontogênese (Mendes &
Seidl-de-Moura, 2009). E o desenvolvimento comunicativo dos bebês tem
sido abordado não como um processo cognitivo puramente individual ou
mental da criança que independe das interações, mas como um processo
social, dialógico, relacional e observável de natureza interpessoal (Riviero,
2003).
Portanto, para compreender as transformações nas habilidades comu-
nicativas dos bebês é necessário considerar o parceiro e o efeito sobre este
(Riviero, 2003); e, também, como as variações culturais, ligadas às crenças,
expectativas e valores dos cuidados, interferem no tipo de interação que
o adulto estabelece com a criança (Mendes & Ramos, 2020). Com foco na
investigação destes processos, a revisão de literatura conduzida por Nunes
et. al. (2018) demonstra as correlações entre as concepções que os adultos
possuem das habilidades dos bebês e suas estratégias para detectar e res-
ponder de forma ajustada aos seus atos comunicativos. Para Alexandrino e
Aquino (2019), o conhecimento e a percepção do adulto acerca dos com-
portamentos comunicativos dos bebês podem contribuir para promover
práticas conscientes, críticas e com intencionalidade pedagógica, favore-
cendo a organização de um ambiente interativo, promotor do desenvolvi-
mento da cognição social infantil.
Estudos sobre esta temática têm sido mais tradicionalmente conduzi-
dos em contextos doméstico-familiares, priorizando as percepções mater-
nas (Aquino & Salomão, 2010; Mendes & Ramos, 2020; Nunes & Aquino,
2014; Nunes et. al., 2018; Riviero, 2003), e em contextos de creches e edu-
cação infantil (Amorim et. al., 2012; Alexandrino & Aquino, 2019). Entre-
tanto, o desenvolvimento comunicativo é tema igualmente relevante para
trabalhos com bebês que vivem em acolhimento institucional – em abrigos
infantis (Dias et. al., 2015; Frid, 2019; Nóbrega & Minervino, 2011), ou seja,
sob medidas protetivas excepcionais para crianças temporariamente afas-
tadas do ambiente familiar enquanto aguardam processo de reintegração
familiar ou adoção.

O acolhimento institucional como contexto de desenvolvimento comunicativo


Como analisa Frid (2019), as trocas comunicativas nos contextos de
acolhimento são formas de se garantir a presença interativa e afetiva do
adulto no desenvolvimento da criança acolhida. A valorização das falas di-
rigidas (das palavras) e dos recursos comunicativos (como o olhar) con-
tribuem para transformar os cuidados em processos de desenvolvimento,
promovendo a leitura do mundo que os cerca e a qualidade das relações e
laços afetivos em construção. Os objetos e os brinquedos, por exemplo, só
adquirem “algum aspecto estimulante com alguém que dê sentido e ritmo
à atividade” (Frid, p. 24).
Em contrapartida, diversos estudos discutem que crianças pequenas
em acolhimento vivenciaram adversidades precoces, incluindo maus-tra-
tos e condições de cuidado instáveis, que aumentam os riscos de desenvol-
vimento de problemas comunicativos e linguísticos (Raby et. al., 2019). A

143
literatura internacional tem retratado déficits e dificuldades no desenvolvi-
mento da comunicação e linguagem de crianças pequenas acolhidas asso-
ciados a um determinado estilo institucional de cuidar (Ralli et. al., 2017).
No Brasil, analisando o desenvolvimento linguístico de bebês em dois
diferentes contextos de cuidados coletivos (abrigos e creches), o estudo de
Nóbrega e Minervino (2011) indicou as poucas habilidades comunicativas
e linguísticas de bebês abrigados em comparação com aqueles que pas-
savam o dia na creche. Segundo as autoras, comparado ao ambiente da
creche, o ambiente do abrigo se apresentou como não favorecedor de estí-
mulos. Resultado semelhante foi discutido no estudo de Dias et. al. (2015),
em que cuidadoras de bebês de 4 a 9 meses – respondendo a um questio-
nário de avaliação de diferentes domínios de desenvolvimento – indicaram
dificuldades das crianças no que se refere a habilidades comunicativas.
Considerando estes dados de pesquisas e, mais ainda, considerando
o acolhimento institucional como importante contexto de cuidado, socia-
lização e desenvolvimento dos bebês em medidas de proteção (Moura &
Amorim, 2018); e que as concepções, crenças e percepções dos profissio-
nais que atuam nesses programas são partes constituintes do processo de
desenvolvimento das habilidades comunicativas da criança (Alexandrino &
Aquino, 2019; Mendes & Ramos, 2020), foi conduzido um estudo empírico
com o objetivo de investigar as percepções de cuidadoras e psicólogas de
instituições acolhedoras acerca do desenvolvimento das habilidades co-
municativas de bebês acolhidos.
Optou-se pela condução de estudo qualitativo, descritivo e explora-
tório, tendo como participantes 13 cuidadoras e 3 psicólogas atuantes em
quatro diferentes instituições de acolhimento para bebês (de 0 a 2 anos),
localizadas em municípios da região metropolitana de Vitória-ES. Todas as
participantes (psicólogas e cuidadoras) declararam-se do sexo feminino.
Entre as três psicólogas, a faixa etária variou de 28 a 46 anos de idade (Me=
38,7; DP= 9,45); o tempo de trabalho na instituição acolhedora variou de 4
a 19 anos (Me= 116 meses [9,6 anos]; DP= 97,73 meses [8,14 anos]); e duas
cursaram pós-graduação. Entre as treze cuidadoras, a faixa etária variou de
26 a 64 anos de idade (Me= 41,5; DP= 10,5); o tempo de trabalho na ins-
144
tituição acolhedora variou de 2 meses a 8 anos (Me= 40 meses [3,3 anos];
DP= 34,4 meses [3,3 anos]). E em relação à escolaridade, oito cuidadoras
tinham completado o ensino médio; três o ensino fundamental; e duas o
ensino superior.
Para a coleta de dados foram utilizados: questionário sociodemográ-
fico com informações sobre idade, estado civil, escolaridade e tempo no
cargo; e um Roteiro de Entrevistas semiestruturado. Dentre as questões
abordadas nas entrevistas, para o presente trabalho serão destacados
dois eixos temáticos: I) “Os bebês se comunicam? Quais seus recursos co-
municativos?” e II) “Os bebês se comunicam intencionalmente? Eles têm
consciência de suas próprias emoções, expressões e gestos?” Nos tópicos a
seguir estas percepções serão apresentadas e discutidas com base na lite-
ratura científica e em suas relações com o desenvolvimento comunicativo
de bebês em instituições de acolhimento.

Percepções de cuidadoras e psicólogas de instituições acolhedoras


Todas as psicólogas e cuidadoras entrevistadas afirmaram que os be-
bês se comunicam, e a grande maioria sinalizou o papel comunicativo das
expressões emocionais e recursos não verbais nessa etapa da vida. Dife-
rentes recursos comunicativos foram mencionados: as diversas variações
do choro (incluindo resmungos e choramingos); os sons (balbucios e voca-
lizações); os olhares; gestos; sorrisos; movimentos das mãos e corpo; bus-
ca pelo peito para mamar; e expressões de contentamento e desconten-
tamento. Apenas uma enfocou na aprendizagem das palavras e linguagem
verbal, indicando que sua compreensão da comunicação passa pela fala.

O protagonismo do choro e do olhar como principais recursos expressivos


Entre todos estes recursos expressivos, o choro foi o principal recurso
comunicativo mencionado nas entrevistas. Para a maioria das cuidadoras,
a partir do choro é possível perceber que o bebê precisa de algo: “é através
do choro que a gente sabe algumas coisas, né? Porque quando tá com

145
fome ele chora. A gente sabe que tem alguma coisa errada, né? Se tá sen-
tindo dor é através do choro que a gente vai entender” (Cuidadora 10); “a
comunicação deles é a reclamação, o choro diferente, quando tá doente a
gente já repara que é um choro mais doido… às vezes é um chorinho que
quer colo” (Cuidadora 12). Além do choro, outro recurso recorrentemente
mencionado foi o olhar. Como disse uma cuidadora, percebe-se no olhar
do bebê o que ele gostaria de falar e não consegue. Outra comentou: “mui-
tas vezes, quando eles estão chorando, você passa e eles dão uma olhadi-
nha, né? Porque... ‘será que vai me pegar’? ‘será que vai passar direto?’”
(Cuidadora 3).
De modo geral, não houve diferenças significativas nas percepções de
psicólogas e cuidadoras dos programas de acolhimento quanto à habilida-
de comunicativa dos bebês. Para todas elas, os bebês se comunicam por
meio de suas expressões emocionais, corporais e gestuais, com destaque
para o choro e o olhar enquanto potentes recursos expressivo-comunica-
tivos. Entretanto, na fala das entrevistadas destacou-se que os bebês se
comunicam principalmente acerca de suas necessidades básicas, reagindo
à fome, calor, desconfortos e dores. As expressões de contentamento e
satisfação (como o sorriso) foram pouco mencionadas quando as profissio-
nais descreveram recursos comunicativos de bebês, sendo mais reforçadas
expressões de desprazer indicando que algo não está bem.
Nos estudos de Alexandrino e Aquino (2019) com profissionais da edu-
cação infantil (educadoras, monitoras e psicólogas) e nos estudos de Nu-
nes et. al. (2018) com mães e pais de bebês, o choro também foi mencio-
nado como o principal comportamento infantil que expressa necessidades
e incômodos. Mas para além de uma expressão emocional sinalizando que
algo não está bem, as mães e pais também ressaltaram o choro como um
recurso comunicativo que, a partir dos 6 meses, é dotado de intenção, uti-
lizado pelo bebê para intencionalmente expressar suas vontades e desejos
(ex. com a intenção de obter algo dos pais, como o colo e a atenção; ou
expressando o desejo de mudar de posição; na interação com outras crian-
ças). Já no estudo de Nunes e Aquino (2014), a maioria das mães afirmou
que a capacidade comunicativa dos bebês está além do que eles podem ex-
146
pressar. E indicaram que os bebês mais novos utilizam mais frequentemen-
te o choro como recurso comunicativo, enquanto os bebês mais próximos
de um ano de idade aprendem novas estratégias e formas de exprimir suas
vontades (como a vocalização, olhar e o apontar).
Assim, em contraponto com a presente pesquisa, nas entrevistas com
mães e pais esteve em relevo a percepção das transformações do choro ao
longo do primeiro ano de vida, não se restringindo à expressão de neces-
sidades básicas, mas abrangendo seu caráter ativo e intencional. De modo
geral, as percepções dos pais acompanharam as mudanças que seus filhos
vivenciavam à medida que desenvolviam suas habilidades.
Isto é relevante visto que uma mudança na percepção e interpretação
do choro tem implicações e mudanças nas práticas de cuidado e (re)ações
frente ao choro. Como afirma Nunes et al. (2018) “ao perceberem que os
bebês se comportam com uma determinada intenção, os pais tendem a
buscar identificar o que realmente o bebê quer comunicar, ao invés de atri-
buírem um sentido rapidamente” (p. 78). Em contrapartida, na pesquisa
de Moura & Amorim (2018), observou-se uma homogeneidade nas formas
das cuidadoras interagirem com bebês acolhidos ao longo do tempo. Dife-
rentes cuidadoras, em diferentes meses da pesquisa longitudinal, reagiam
de forma padrão aos cuidados e comportamentos dos bebês, apesar do
seu crescimento e desenvolvimento. Assim, apesar das mudanças que os
bebês vivenciavam, as ações das cuidadoras eram sempre as mesmas, in-
dicando um estilo institucional de cuidar.
Para além do choro, no estudo de Nunes et. al. (2018), quase a tota-
lidade dos pais e mães de bebês em torno de 6 meses indicou perceber o
sorriso e o olhar como os principais comportamentos por meio dos quais
seus filhos expressavam amor. Outros recursos expressivo-comunicativos
mencionados foram: pedir colo, esticar os braços, gritar, abraçar e beijar.
A agitação corporal também foi comumente mencionada. E, com menor
frequência, referiu-se às vocalizações e o gesto de bater-palmas (Nunes et.
al., 2018). No estudo com profissionais da educação infantil, as entrevista-
das também não se restringiram ao choro e mencionaram outros recursos
não verbais que os bebês utilizam como forma de indicar uma necessida-
147
de, como a vocalização, gestos e trocas interativas (Alexandrino & Aquino,
2019).
Em contraponto, no presente estudo, ainda que as cuidadoras e psicó-
logas das instituições acolhedoras tenham mencionado os gestos, sorrisos
e expressões corporais, o foco maior esteve nas expressões que indicam
desconfortos ou necessidades fisiológicas (como fome, banho e calor).
Conclui-se, então, o estudo com mães e pais de bebês contemplou maior
amplitude de recursos comunicativos em referência a formas mais elabo-
radas de manifestação de carinho.
Como analisa Amorim et al. (2012), a depender do contexto, podem
ser atribuídos sentidos opostos às expressões emocionais e comportamen-
tos infantis. Estes não são aprendidos/atendidos/significados de maneira
similar nos diversos contextos. “Os comportamentos emergem e são te-
cidos nas dialógicas relações, carregando significações que são expressas
na/através da corporeidade da criança e que dialeticamente (re)significam
e contribuem para constituí-la” (p. 323). Ainda assim, apesar dessa diver-
sidade de contextos e práticas, os dados do presente estudo disparam um
alerta de que a depender das percepções, orientações e modos de intera-
ções dos cuidadores, importantes expressões emocionais dos bebês não
são reconhecidas, valorizadas e respondidas, não repercutindo em uma in-
teração de natureza comunicativa e nem reconhecendo-os como dotados
de intenção, orientados a uma meta, a um objeto – preocupações também
discutidas no trabalho de Nunes e Aquino (2014).
Estes sinais de alerta se reforçam diante de diversos estudos sobre
abrigos institucionais, mostrando que em função de diversos processos his-
tóricos e sociais (Nóbrega & Minervino, 2011) e de características comuns
dos cuidados em contextos coletivos – como a rotatividade de cuidadores;
baixa proporção de adultos por criança; rotina orientada por prontuários
e prescrições que demarcam um estilo institucional de cuidar (Dias, 2015;
Frid, 2019) –, usualmente observam-se práticas de cuidados enfocadas no
atendimento às necessidades básicas/fisiológicas dos bebês (Carvalho et
al., 2020; Moura & Amorim, 2018; Vik et al., 2018). E em decorrência da
transitoriedade da medida de proteção, associada à contínua expectativa
148
por rupturas e sofrimentos nos momentos de separações, também é fre-
quentemente relatado um certo distanciamento nos cuidados, evitando o
colo sempre que possível, e buscando alternativas para distrair as crianças
(como colocá-las em frente à TV), evitando a proximidade, o apego e o for-
talecimento dos laços afetivos, do vínculo emocional (Amorim et al., 2012;
Lemos & Silva, 2019; Mendes & Kepler, 2018).
Por outro lado, estudos mostram que, tradicionalmente, os bebês ocu-
pam papel de destaque no ambiente familiar (particularmente em famílias
de camadas de renda média), onde usualmente ocorrem muitas interações
diretas com as crianças, com frequentes contatos físicos, face a face e falas
direcionadas (Amorim et al., 2012). A família também é considerada o es-
paço privilegiado de construção e desenvolvimento do apego, sendo espe-
rado que se estabeleçam fortes laços afetivos (Neder et al., 2020). Estudos
interculturais têm documentado a tendência dos pais em mostrarem-se
atentos às mínimas reações dos seus filhos, sendo bastante receptivos às
expressões/emoções da criança, e valorizando as emoções ditas “positi-
vas” (como a alegria, a felicidade e o amor) (Mendes & Ramos, 2020). Com
isso, as crianças têm oportunidades de se envolverem em um contexto
que privilegia sua participação, propiciando brincadeiras, aprendizagens e
o desenvolvimento de habilidades e competências socioemocionais e co-
municativas.

“Agora você me pegou… uma pergunta difícil!” Consciência e intenciona-


lidade na habilidade comunicativa dos bebês
Quando indagadas se sentiam que os bebês tentavam comunicar-lhes
algo, dez entre treze cuidadoras afirmaram que sim, e ressaltaram que –
para além do verbal – isto se dá através do olhar, dos gestos, choro e sor-
riso. Assim, a maioria das cuidadoras repetiu a descrição de quais são os
recursos comunicativos pré-verbais que os bebês utilizam nos seus proces-
sos comunicativos (remetendo-se a suas expressões emocionais, gestuais
e corporais).

149
Quando indagadas se os bebês sabiam que precisavam de algo quan-
do choravam, onze das treze cuidadoras responderam que sim, e em suas
respostas enfatizaram os possíveis motivos para o choro, relacionando-os à
dor, às necessidades fisiológicas (como alimentação e calor) e à busca por
colo e atenção. Por exemplo, a Cuidadora 1 disse: “Às vezes estão precisan-
do de alguma coisa que nem um colinho”. E a Cuidadora 2 disse: “Eu penso
assim, que quando o bebê tá chorando é porque tá na hora do papá, tá na
hora da mamadeira”.
Nessa mesma linha, quando indagadas se os bebês sabiam que a cui-
dadora deveria fazer algo quando choravam, doze afirmaram que sim, mas
novamente reforçaram o motivo do choro (remetendo-se à alimentação,
sono ou cuidados de higiene corporal) e como acalmá-los. Nas palavras
da Cuidadora 5: “sim… pode estar chorando por xixi ou coco ou fome… ou
até falta de carinho... quando a gente pega eles no colo a gente acalma...
conversa com eles... eles ficam bem, não tem?”
E quando indagadas se consideravam que os bebês pretendiam pegar
um brinquedo quando direcionavam seus movimentos a ele (por exemplo,
olhando e estendendo a mão), nove cuidadoras afirmaram categoricamen-
te que sim e descreveram episódios interativos envolvendo bebês e brin-
quedos. As cuidadoras também indicaram a curiosidade do bebê como fator
motivador no direcionamento aos objetos. Entretanto, embora a maioria
das cuidadoras tenha reconhecido o interesse dos bebês pelos brinquedos
(relatando direcionamento de movimentos e orientação da atenção focada
sobre os objetos), ainda assim a intencionalidade do bebê na ação de tentar
alcançar/pegar os objetos não esteve em relevo em suas respostas.
Diante dessas respostas, mais uma vez se observa que as cuidadoras
focaram mais os motivos que levam os bebês a chorarem (respondendo
porque os bebês choram), do que refletiram a respeito da possível cons-
ciência ou intenção do bebê de obter algo por meio do choro. Ou seja,
embora tenham respondido afirmativamente, ainda assim as respostas
das cuidadoras focaram mais as necessidades dos bebês (que os levam a
chorar), do que na possibilidade de os bebês estarem conscientes de suas
necessidades ou expressando-as intencionalmente. Resultado similar tam-
150
bém foi relatado no estudo de Alexandrino e Aquino (2019) com profissio-
nais da educação infantil: psicólogas, professoras e monitoras responde-
ram afirmativamente à questão semelhante, e comentaram mais sobre os
motivos que levam os bebês a chorarem, e pouco sobre a habilidade de se
comunicarem intencionalmente.
Já nos estudos de Nunes e Aquino (2014) e Nunes et. al. (2018) com
mães e pais (tanto de bebês de 3 e 4 meses, quanto de 6 e 9 meses), as ha-
bilidades intencionais das crianças foram mais ressaltadas. A maioria res-
pondeu que seus filhos tinham interesses e preferências por determinados
brinquedos e pretendiam pegá-los quando estendiam a mão. E o grupo
de mães e pais de bebês de 3 e 4 meses também ressaltou que, embora
seus filhos ainda não fossem capazes de alcançar os objetos sozinhos, eles
demonstravam interesse e intenção de pegá-los por meio de comporta-
mentos expressivos, como o olhar (ex.: “...quando ele quer alguma coisa,
ele fica olhando para o brinquedinho”) (Nunes & Aquino, 2014, p. 366), e
pelo corpo (“...fica afoita, se mexendo muito, as perninhas, os bracinhos”)
(Nunes et al., 2018, p. 76).
Respondendo às mesmas questões, as três psicólogas do presente es-
tudo afirmaram que os bebês sabem que precisam ter suas necessidades
supridas quando choram e que possuem esta intencionalidade. Uma afir-
mou que isto ocorre de forma intuitiva, enquanto outra considerou que tal
intencionalidade depende da idade: “Inicialmente são reflexos, né? que eu
acho que o bebê tem, mas com o tempo... eu acho que com uns 3 meses...
mais ou menos... dependendo da criança, vai desenvolvendo habilidades
com intenção” (Psicóloga 2).
As Psicólogas também relataram os estímulos que são promovidos
no acolhimento para que os bebês desenvolvam a habilidade de pedir in-
tencionalmente um brinquedo, ou apontar, ou direcionar-se a ele): “(...) a
gente tem aqueles chocalhos em cima do berço…(...) Ou quando eles estão
no tapete, a gente propositalmente espalha para eles tentar pegar”. Deste
modo, diferindo das cuidadoras, as psicólogas dos programas de acolhi-
mento comentaram mais pontualmente sobre o desenvolvimento da in-
tencionalidade nos bebês e até como promovê-la e estimulá-la.
151
E, finalmente, quando indagadas se os bebês têm consciência de suas
próprias emoções e sensações, as cuidadoras manifestaram incertezas, com
expressões como: “agora você me pegou”; “acho que...”; “essa é uma per-
gunta difícil”. Entretanto, foi preponderante a percepção da consciência
como um processo em construção, tal como exemplifica a fala da Cuida-
dora 13: “Eu acho que assim, eles sabem, estão aprendendo, estão con-
quistando... Mas ainda não têm essa definição de tão longe, sabe?” E no
caso dos bebês mais novos, as cuidadoras entendem que o bebê apenas
sente: “Consciência não, mas sentir eles sentem, né?” (Cuidadora 3). Uma
das cuidadoras mencionou certa sincronia entre as expressões dos bebês e
os acontecimentos do ambiente: “Tem um momento que eu percebo que é
troca de plantão, eles começam ficar mais agitados. Parece que eles sabem,
entendem, sei lá, o horário que troca, alguma coisa assim (Cuidadora 12).
Sobre a consciência, as psicólogas também ressaltaram seu processo
de construção. Como destacou a Psicóloga 2: “Eu acredito que o recém-
-nascido é mais intuitivo e essa consciência vai sendo desenvolvida com o
tempo. [...]”. E a psicóloga 3 disse que: “[...] demora mais um pouquinho
para eles terem essa consciência. [...] depois ele vai fazendo esse processo
de separação onde ele vai se reconhecendo na sua identidade. [...] acho
que a partir do oitavo, nono mês isso já vai começando”.
Portanto, de forma geral, assim como a intencionalidade, a questão
sobre a consciência também foi marcada por incertezas e imprecisões; e
pela concepção de que variam conforme a idade do bebê. Considerando
todas estas percepções das entrevistadas a respeito da consciência e in-
tencionalidade comunicativa dos bebês, despontam-se três aspectos cen-
trais para discussão: i) o processo de (trans)formação destas habilidades
(dos atos reflexos ao eu intencional), variando conforme o crescimento, o
desenvolvimento e a idade dos bebês; ii) o papel da mediação do adulto
cuidador na promoção e estimulação desta habilidade (como um proces-
so social); e iii) sua relação com a curiosidade, as ações exploratórias e o
desenvolvimento sociocognitivo dos bebês. No tópico a seguir, cada um
destes aspectos será abordado e discutido.

152
A ontogênese das habilidades comunicativas intencionais dos bebês
Como ressaltado no subtópico anterior, no presente estudo, pouco es-
teve em relevo percepções acerca das transformações nas habilidades co-
municativas intencionais. Entretanto, quando considerada, tais percepções
relacionam-se com a idade e crescimento do bebê. Em consonância, Ri-
viero (2003) explica que o desenvolvimento da intencionalidade realmen-
te é um processo gradual, constituído por diferentes níveis de intenções
(desde intenções que coincidem com a ação [espontâneas]; até intenções
prévias [que envolvem representações mentais]). Na mesma linha, Nunes
et al. (2018) discutem os indícios de comportamentos intencionais desde o
nascimento, com desdobramentos importantes já nos meses iniciais, com
destaque para a “revolução dos dois meses” – a partir da qual os bebês
passariam a sinalizar um tipo de comunicação intencional através das ex-
pressões emocionais e movimentos corporais, indicando, por exemplo, o
desejo de mamar.
Em torno dos nove meses, os bebês alcançam um novo marco im-
portante do seu desenvolvimento: a capacidade de estabelecer e manter
a atenção conjunta (Colus & Amorim, 2019). Os bebês se tornam capazes
de compartilhar a atenção com os adultos, em função de um evento ex-
terno a eles: o objeto. Passam a coordenar a “atenção entre o parceiro e
o objeto que interessa a ambos” (p. 20). Por volta dos dez ou onze meses,
os bebês já compreendem o gesto indicativo e olham na direção do que
o adulto aponta; e eles mesmos já são capazes de expressar o gesto de
apontar. Estes gestos de comunicação intencional podem ser protoimpe-
rativos (gestos e vocalizações para pedir algo para o adulto) e protodecla-
rativos (o bebê mostra objetos ou situações, havendo o compartilhamento
de interesse e apreensão de atenção por parte do adulto). Nesta etapa, a
intencionalidade comunicativa está implicada com um processo triangular,
constituído nas interações bebê-adulto-objeto (Nunes et al., 2018).
Portanto, a intencionalidade nos atos comunicativos se desenvolve
progressivamente ao longo do primeiro ano de vida, contribuindo de for-
ma significativa para a constituição da cognição social infantil (Aquino &

153
Salomão, 2010). A cognição social infantil diz respeito a um elemento ex-
clusivamente humano que possibilita aos bebês compreenderem o outro
como agente intencional, a partir das habilidades perceptivas básicas, dis-
criminando pessoas e objetos (Nunes et al., 2018). Contudo, tais habilida-
des comunicativas intencionais não devem ser compreendidas como um
atributo infantil isolado, já que os significados que os adultos lhes atribuem
são igualmente constitutivos.
Nesse sentido, destaca-se o papel da mediação do cuidador na pro-
moção e estimulação da habilidade comunicativa intencional – sendo este
o segundo aspecto a ser discutido. Como argumentam Aquino e Salomão
(2010), quando os cuidadores atribuem intencionalidade ao comporta-
mento do bebê, este começa a desenvolver a compreensão do significado
da sua expressão (ex. o choro) frente ao outro, possibilitando a inserção do
bebê no campo simbólico e sociocultural. A responsividade do cuidador, a
reciprocidade e a interpretação revelam-se como mecanismos fundamen-
tais que viabilizam tais trocas e dão a oportunidade de a criança perce-
ber-se agente intencional e (re)conhecer as intenções dos seus parceiros
sociais (Nunes & Aquino, 2014; Nunes, et al., 2018).
De acordo com Riviero (2003), as primeiras trocas e interações sociais
entre bebês e seus cuidadores são peças-chave para o desenvolvimento
da intencionalidade comunicativa dos bebês. A reciprocidade no contato
adulto-bebê atua como mecanismo que posiciona a criança como agen-
te intencional na sua comunicação. Nessa linha, Nunes e Aquino (2014)
ressaltam que a percepção dos cuidadores sobre os comportamentos in-
tencionais dos bebês possibilita que a criança aumente seu efeito/eficácia
no meio social e tenha suas necessidades atendidas. E para Alexandrino e
Aquino (2019), o amplo conhecimento e percepção do adulto acerca dos
comportamentos comunicativos dos bebês pode contribuir para promover
práticas conscientes, críticas e com intencionalidade pedagógica, favore-
cendo a organização de um ambiente interativo, promotor do desenvolvi-
mento da cognição social infantil.
Com isso, discute-se o terceiro aspecto observado nas entrevistas, a
respeito da curiosidade dos bebês e de seus comportamentos explorató-
154
rios. Ao interpretar o olhar do bebê para um brinquedo como curiosida-
de e ao lhe permitir explorar este interesse pelo objeto, nomeando e/ou
promovendo seu encontro/contato, os cuidadores ampliam o campo de
exploração sensório-motora do bebê, possibilitando sua interação com di-
ferentes estímulos, formas, movimentos, texturas e ações. Ao interpreta-
rem os interesses e intenções dos bebês, os adultos oportunizam novas
zonas de movimentos, atividades espontâneas, conquistas motoras, deslo-
camentos, dentre diversos outros nichos de experiências e aprendizagens
(Moura, 2017).
De acordo com Galvão (2003), a postura do bebê é diretamente modu-
lada pelo adulto, que lhe posiciona de determinada forma e em determi-
nados locais (berços, carrinhos, andadores, chão, tatame, colo etc.). Neste
manejo do seu corpo, os movimentos dos bebês vão tomando forma, sen-
do os primeiros meios de expressão, suas primeiras atitudes. O movimento
(o ato motor), é o primeiro sinal de vida psíquica do bebê, com dois eixos
principais: um instrumental, que se refere à ação direta sobre o meio físico;
e outro expressivo, que está na base das emoções. A autora discute que o
movimento – manifestado por meio da agitação corporal, da tonicidade,
da postura, dos gestos, dos deslocamentos etc. – possibilita que as crianças
(re)(inter)ajam no/com seu meio e, consequentemente, se envolvam em
experiências essenciais para o desenvolvimento de diversas habilidades,
percepções e sensações. Assim, a fisiologia do corpo integra movimentos
e expressões de modo que os aspectos motores das emoções, a atividade
corporal e facial do organismo, assim como a atividade tônica e postural
viabilizam uma série de sensações e percepções ao bebê.
Por isso, como afirma Moura (2017), não se pode permitir que o olhar
seja o único comportamento exploratório e expressivo do bebê. Ele neces-
sita do outro que lhe interpreta, lhe apresenta e o conecta com o mundo
dos sons, dos gestos, dos afetos, dos objetos e da linguagem. E mesmo
que as expressões dos bebês não sejam prontamente percebidas como
atos intencionais, ainda assim, o reconhecimento do papel comunicativo
de suas emoções, gestos e movimentos já é fator essencial para o com-
partilhamento de estados afetivos entre cuidadoras e criança e para a res-
155
ponsividade das cuidadoras, que atribuem sentidos e interpretações aos
comportamentos e expressões infantis (Nogueira & Seidl-de-Moura, 2007).
Este compartilhamento dos estados mentais e afetivos entre os parcei-
ros interativos envolve duas habilidades dos bebês: capacidade socioemo-
cional inata de exibir algumas evidências de consciência e intencionalidade
(ainda que rudimentares), apresentando uma sintonia responsiva em en-
gajamentos regulados (isto é, apresentando elementos de subjetividade);
e a capacidade de se adaptar e se ajustar aos outros (intersubjetividade
primária) (Nogueira & Seidl-de-Moura, 2007). Assim, de acordo com estas
autoras, os bebês demonstram uma consciência ativa desde o nascimento,
sendo base para esta intersubjetividade primária. “O bebê já nasce com
uma capacidade socioemocional primária de participar afetivamente de
engajamentos sociais recíprocos e de aprender através deles” (p. 130).
Portanto, o reconhecimento do papel comunicativo das expressões,
gestos e movimentos dos bebês e a responsividade a estes comportamen-
tos sociais por parte dos cuidadores são bases sólidas para o desenvolvi-
mento comunicativo-linguístico (e, consequentemente, das habilidades de
comunicação intencional), mas também para o desenvolvimento sociocog-
nitivo e afetivo. Reconhecer as expressões dos bebês e responder a elas
desponta-se como um dos principais caminhos para promoção do desen-
volvimento na primeiríssima infância.

Considerações gerais: promoção das interações comunicativas com bebês


no caminho para a sustentabilidade social
O presente estudo analisou as percepções de cuidadoras e psicólo-
gas de instituições de acolhimento acerca de aspectos do desenvolvimento
comunicativo de bebês acolhidos. De modo geral, não houve diferenças
significativas nas percepções de psicólogas e cuidadoras dos programas de
acolhimento quanto à habilidade comunicativa dos bebês. Para todas elas,
os bebês se comunicam por meio de suas expressões emocionais, corpo-
rais e gestuais, com destaque para o choro e o olhar – potentes recursos
expressivo-comunicativos.
156
Entretanto, na fala das entrevistadas destacou-se que os bebês se comu-
nicam principalmente acerca de suas necessidades básicas, reagindo à fome,
calor, desconfortos e dores. As expressões de contentamento e satisfação
(como o sorriso) foram pouco mencionadas quando as profissionais descre-
veram recursos comunicativos de bebês, sendo mais reforçadas expressões
de desprazer indicando que algo não está bem. Considerando outros estu-
dos que abordam percepções de mães, pais e profissionais da educação in-
fantil acerca do desenvolvimento comunicativo de bebês, foram observadas
algumas divergências em relação a estes resultados, com maior valorização
das expressões de contentamento, satisfação e felicidade (como o sorriso).
E nos resultados do presente estudo também não esteve em relevo a
habilidade dos bebês de se comunicarem intencionalmente, tendo sido mais
ressaltados os motivos que levam os bebês a se expressarem (repetindo suas
necessidades e o porquê os bebês choram). Assim, as percepções da equipe
acolhedora acerca das habilidades comunicativas intencionais dos bebês fo-
ram marcadas por incertezas, imprecisões e dependendo da idade.
Conforme discutido, estes resultados são relevantes considerando
que a percepção e interpretação dos recursos comunicativos dos bebês
têm implicações nas práticas de cuidado, nas (re)ações e na responsivida-
de (Nunes et al., 2018). A depender das percepções, orientações e modos
de interações dos cuidadores, importantes expressões emocionais dos be-
bês não são reconhecidas, valorizadas e respondidas, não repercutindo em
uma interação de natureza comunicativa e nem os reconhecendo como do-
tados de intenção. Ao reagir de forma indiferenciada, desconsiderando as
especificidades dos recursos comunicativos dos bebês, pouco se fortalece
a socialização emocional, as trocas afetivas variadas e emoções positivas,
como as que envolvem o sorriso (Bieler, 2021; Mendes & Kappler, 2018).
O risco é de pouco oportunizar brincadeiras, interações e aprendiza-
gens essenciais ao desenvolvimento das competências socioemocionais
e comunicativas. Como afirma Pierrotti et al. (2010) “o silêncio em torno
do bebê, a ausência de representações que deem sentido ao que sentem,
provoca intensa ansiedade e esvaziamento afetivo” (p. 431). E como men-
cionado na introdução, estudos vêm relacionando o não reconhecimento
157
das expressões emocionais dos bebês com atrasos ou déficits no seu de-
senvolvimento comunicativo (Ralli et al., 2017).
Quando os cuidadores atribuem intencionalidade comunicativa ao
bebê, ele começa a desenvolver a compreensão do significado de suas ex-
pressões (ex. o choro) frente ao outro, possibilitando sua inserção no cam-
po simbólico e sociocultural. A responsividade, reciprocidade e interpreta-
ção dos cuidadores viabilizam essas trocas e dão oportunidade de a criança
se reconhecer como participante ativo nestas interações, além de ajudá-
-las a alcançar um importante marco do desenvolvimento: a capacidade de
compartilhar a atenção, compartilhar estados afetivos e regular comporta-
mentos socialmente orientados (por exemplo, com olhares coordenados e
gestos indicativos) (Amorim et al., 2012; Nunes & Aquino, 2014).
Além disso, ao buscar identificar o que o bebê realmente tenta comu-
nicar, atribuindo-lhe sentido, o adulto coloca o bebê no centro do campo
interativo, promovendo sua participação, engajamento e experiências in-
tegrativas (Moura, 2017). A garantia do bem-estar social e psicológico rela-
ciona-se diretamente com a participação da criança, com a valorização de
suas diferentes expressões, em pautar suas necessidades e garantir espa-
ços de escuta. Como ressaltam Boldermo e Odegaard (2019): “as experiên-
cias fundamentais de pertencimento, compreensão e agência estão enrai-
zadas na primeira infância, e quanto mais calor e preocupação as crianças
encontram, mais concretamente elas podem sentir sua pertença dentro de
uma sociedade compartilhada e global” [tradução nossa] (p. 7).
Sociedades inclusivas são caracterizadas, entre outros fatores, por
participação e solidariedade. Por outro lado, a exclusão social pode ser
um impedimento para a coesão social e sustentabilidade social (Boldermo
& Odegaard, 2019). O manejo do cuidado revela-se eixo estruturante da
sustentabilidade social, e se materializa na participação e protagonismo do
bebê, ou seja, no reconhecimento de seu papel ativo nas relações sociais.
Especialmente nos contextos de acolhimento institucional, a promo-
ção desta participação dos bebês por meio de práticas de cuidado respon-
sivas e inclusivas, além de viabilizarem o desenvolvimento integral, pleno e
saudável, ainda se configuram em ambiente de responsividade, de atenção
158
compartilhada, de aprendizagem - elementos essenciais para a justiça e
sustentabilidade social.
Portanto, o investimento na capacitação e formação contínua dos pro-
fissionais que atuam com bebês mostra-se fonte fundamental de qualifica-
ção dos conhecimentos acerca do desenvolvimento infantil, fortalecendo
o papel desempenhado pelos adultos cuidadores, seja interagindo, conver-
sando, interpretando, respondendo, brincando e/ou ensinando os bebês;
e, com isso, promovendo a participação e sustentabilidade social.
As concepções dos adultos são base para a proposição de ricas es-
tratégias interativas, promotoras do desenvolvimento integral das crian-
ças, especialmente aquelas em condições de vulnerabilidade e risco. As-
sim como as capacitações, as rodas de conversas e reflexões tendo como
foco de análise os componentes socioemocionais do desenvolvimento dos
bebês podem promover práticas conscientes, críticas e com intencionali-
dade pedagógica, favorecendo a organização de um ambiente interativo
e contribuindo ativamente para a promoção destas expressões e recursos
comunicativos nos bebês. Em especial, nos abrigos, mostra-se relevante
trabalhar a maior amplitude do reconhecimento destes recursos comuni-
cativos, valorizando as expressões emocionais positivas (como o sorriso);
e a valorização das habilidades comunicativas intencionais, ressaltando o
papel ativo do bebê na expressão de suas necessidades e estados afetivos.
Em consonância com os estudos de Alexandrino e Aquino (2019),
Bieler (2021) e Mendes e Ramos (2020), conclui-se que as percepções e
crenças das pessoas responsáveis pelos cuidados dos bebês refletem um
grupo de ideias que orientam suas práticas de criação, sendo importantes
referências nas experiências interativas com as crianças. Tais concepções
funcionam como modelos ou roteiros de ações que guiam seus julgamen-
tos e tomadas de decisão; suas interpretações acerca das manifestações
infantis; suas respostas; e a organização das atividades diárias de cuidados.
Por estes motivos, ressalta-se a importância destas percepções e crenças
dos cuidadores nas discussões e intervenções voltadas para a promoção
da justiça e sustentabilidade social, para o fortalecimento de sociedades
inclusivas, justas, coesas e participativas.
159
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162
BEM-ESTAR SUBJETIVO E VIVÊNCIA ESCOLAR
DE IDOSOS PARTICIPANTES DE UM PROGRAMA
DE ALFABETIZAÇÃO

Simone Cagnin
Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ

Introdução
O trabalho aqui apresentado tem o objetivo de investigar o bem-estar
subjetivo e a vivência escolar de idosos resultantes da inserção em um
programa de extensão universitária intitulado PROALFA-UERJ (Programa
de Alfabetização, Documentação e Informação da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro).
Esse programa vem desenvolvendo, nas últimas duas décadas, um tra-
balho de educação não formal com adultos, em especial, idosos, com dife-
rentes graus de escolaridade, alguns com grau mínimo ou nenhum, outros,
com nível de escolaridade básico ou médio. Tem como objetivo, por um
lado, uma intervenção escolar extensionista para comunidades situadas
fora da UERJ e, por outro, a formação docente de alunos de graduação de
cursos de Letras, Pedagogia e Matemática que, por sua vez, são professo-
res e estagiários do programa.
Alguns projetos de extensão universitária, como o aqui relatado, fa-
zem parceria com o programa referido buscando investigar dimensões que
complementam as atividades pedagógicas oferecidas em Oficinas de Es-
crita, Leitura e Matemática e, no caso do nosso projeto, aspectos psicoló-
gicos relacionados ao bem-estar subjetivo e à vivência escolar dos idosos
participantes do programa. Neste contexto, buscamos entender como o
engajamento no PROALFA favoreceu o incremento do bem-estar subjetivo
em geral.

163
Os resultados obtidos nos diferentes projetos que fazem parte desse
programa, incluindo o projeto aqui relatado, fornecem indicações impor-
tantes de que a intervenção educativa universitária voltada para idosos
de baixa renda pode trazer contribuição para a diminuição da desigualdade
social e, consequentemente, para a promoção de maior justiça social em um
contexto de desenvolvimento que se pretende socialmente sustentável.
Considerando a Educação de Jovens e Adultos (EJA) como um pilar da
inclusão social, com ênfase na justiça social, no trabalho, na diversidade e
na igualdade, acreditamos, conjuntamente com Silva e Vasconcelos (2013),
que um dos desafios da educação na atualidade é educar para a sustenta-
bilidade e para a cidadania. Não obstante, esse desafio se impõe, não só
no processo educativo formal na infância e adolescência, mas também em
contextos de desenvolvimento que envolvem jovens e adultos, incluindo
idosos que retornam aos bancos escolares após a vivência de exclusão es-
colar na infância e/ou juventude.
Cabe, inicialmente, uma definição de justiça social, como a proposta
por Thrift e Sugarman (2019), que descrevem a falta de clareza desses ter-
mos para os psicólogos em geral, bem como a variação de significado do
que seria justiça social ao longo da história. Inclusive, a economia neolibe-
ral dos anos 1970 e 1980 fazia referência à justiça social como uma espécie
de virtude “individual” e não decorrente de engajamentos sociais coletivos
e responsáveis. Os autores acima também observam que entender o con-
ceito de justiça social com ênfase apenas em questões de identidade de
determinados grupos, sem a interseção dessa identidade com questões
macroeconômicas que envolvem desigualdades sociais e problemas estru-
turais da sociedade, seria um exemplo de uma interpretação reducionista
e equivocada dos termos. Os autores ainda destacam que os serviços psi-
cológicos que ajudam os indivíduos a se adaptarem às suas condições desi-
guais de vida, sem fazerem nada para mudar essas condições, vêm perpe-
tuando o papel dos psicólogos como “arquitetos do ajuste” que fomentam
desigualdades e prestam um desserviço à justiça social.
Cabe também uma referência aos termos “sustentabilidade social”
que, por sua vez, como observa Jorge (2015), dizem respeito a um conjunto
164
de ações que pretendem melhorar a qualidade de vida dos indivíduos, com
a diminuição da desigualdade social, a concretização de direitos em geral
e a garantia de acesso a serviços como educação e saúde, possibilitando
assim a plena cidadania. De modo complementar, Loureiro (2013) ressalta
a ideia de que a sustentabilidade apregoa uma vida social digna no pre-
sente sem comprometer a vida futura, levando em conta sociedades cujos
modos de produção não são compatíveis com os ciclos ecológicos. Neste
contexto, há a necessidade de um equilíbrio entre as dimensões econômi-
ca, social e ambiental para um desenvolvimento sustentável, bem como a
demanda da construção de uma cultura de sustentabilidade social como
instrumento de humanização, como propõe Jorge (2015).
Para melhor organização do capítulo, o mesmo será, inicialmente, di-
vidido em duas seções que abordam, inicialmente, uma caracterização ge-
ral do PROALFA e, a seguir, o bem-estar subjetivo e a vivência escolar dos
participantes do programa, foco do projeto aqui relatado.
Por último, uma reflexão final é esboçada com o intuito de destacar a
importância de programas de alfabetização como o PROALFA-UERJ para a
construção não só de saberes compartilhados e democráticos, mas tam-
bém de uma subjetividade enriquecida por uma inserção social e escolar
que permite, por sua vez, um olhar crítico sobre si mesmo e sobre o mun-
do ao redor em um contexto educativo de desenvolvimento que pretende
contribuir para a diminuição da desigualdade social e, consequentemente,
para a justiça social e para a sustentabilidade, como será visto ao longo do
presente trabalho.

O PROALFA-UERJ (Programa de Alfabetização, Documentação e


Informação da UERJ)
O PROALFA-UERJ é um programa de extensão universitária direciona-
do à Educação de Jovens e Adultos (EJA) que se configura como um espa-
ço de educação não formal de caráter socioeducativo e cultural onde são
oferecidas Oficinas de Escrita, Leitura e Matemática, além de atividades
pedagógicas propriamente ditas, sendo as aulas ministradas por gra-
165
duandos/estagiários dos cursos de Letras, Pedagogia e Matemática da
UERJ. Possui ainda o objetivo de uma formação cultural mais ampla com
o incentivo à participação dos alunos em eventos artísticos e culturais
itinerantes ou permanentes que ocorrem na cidade do Rio de Janeiro.
Como observa Saviani (1981), a extensão universitária busca a ar-
ticulação da universidade com a sociedade socializando conhecimentos
para além dos muros da universidade. Em outras palavras, a extensão
universitária busca difundir conhecimentos na comunidade elevando o
nível cultural da sociedade num movimento vivo que fortalece, ambas, a
universidade e a sociedade.
O ensino não formal proposto pelo PROALFA caracteriza-se por uma
ênfase no processo ensino-aprendizagem como um fluxo contínuo, sem
a divisão em séries e sem a hierarquização do conhecimento, sendo a
avaliação da aprendizagem feita de modo qualitativo. Nesta direção,
Gohn (2010) sinaliza que a educação não formal pode ser caracteriza-
da como uma prática educacional desenvolvida fora da escola tradicio-
nal, ou seja, uma prática relacionada com aquilo que se aprende “no
mundo da vida”, em contraposição à educação formal tradicionalmente
desenvolvida dentro da escola. Assim, como destacam Moussatché et
al. (2013), a educação não formal pode propiciar um espaço concreto
de formação da cidadania onde a aprendizagem de saberes, formais e
informais, se interpenetram para uma construção autônoma e crítica do
conhecimento.
Alguns alunos do PROALFA fazem a inscrição no programa buscando
o aprendizado de habilidades básicas de leitura e escrita, outros dese-
jam aprimorar seus estudos em leitura, escrita e Matemática. Assim, o
programa acolhe alunos que iniciam o processo de alfabetização e le-
tramento com mais dificuldade do que outros, sendo o perfil do aluno
inscrito no programa, heterogêneo, no que se refere ao grau de escola-
ridade de cada educando no ato de inscrição.
No que se refere à organização das turmas do PROALFA, tendo em
vista que o objetivo principal é a alfabetização e o letramento, cada turma
é acompanhada por uma dupla de estagiários do curso de Pedagogia de-
166
nominados “professores regentes”, que são supervisionados pela equipe
pedagógica, cabendo a esses professores o trabalho sistemático de articu-
lação de questões relacionadas à linguagem escrita como a apropriação do
sistema alfabético de escrita e outros conhecimentos relativos à linguagem
escrita (p.e. ortografia, pontuação, concordância verbal etc.). Além das au-
las de “regência”, são oferecidas, de modo complementar, uma vez por
semana, como mencionado, Oficinas de Matemática, Leitura e de Escrita
(produção de texto), sendo a primeira oficina ministrada por estudantes de
Matemática e as duas últimas, por estudantes de Letras.
As chamadas “Classes de Alfabetização e Letramento”, no contex-
to das aulas de regência, são guiadas por projetos temáticos semestrais,
sendo a escolha do tema, que norteará os projetos, feita pelo grupo dos
professores estagiários, em reuniões com a equipe pedagógica. Essa esco-
lha tem como ponto de partida argumentações feitas pelos professores e
estagiários sobre os projetos desenvolvidos em semestres anteriores, bem
como o interesse das turmas por determinados temas contemporâneos
que suscitam questionamentos e debates.
No que se refere aos objetivos do PROALFA e sua articulação com os
conceitos de justiça social e sustentabilidade, o mesmo pode ser conside-
rado um espaço educativo que contribui significativamente para a justiça
social e a sustentabilidade pois, por um lado, tenta diminuir a desigual-
dade social através da promoção da alfabetização e do letramento e do
aprimoramento das habilidades de leitura e escrita, e da apropriação dos
conteúdos culturais como um todo, por outro, tenta incentivar uma refle-
xão crítica sobre temas como educação ambiental, processos migratórios
urbanos e a expulsão do homem do campo, entre outros temas relevantes
que ajudam a pensar sobre questões que impactam a vida humana em
suas múltiplas dimensões.
Cabe destacar ainda que há uma articulação entre as oficinas e as
aulas de regência através de uma metodologia denominada “projetos de
trabalho”, como na acepção de Hernández e Ventura (1998), sendo essa
metodologia, como observam Moussatché et al. (2017), propiciadora não
só de uma maior articulação entre as aulas de regência e as oficinas, como
167
também de um aprendizado mais rico e contextualizado. Nessa perspecti-
va, não há tanto o privilégio de conteúdos escolares específicos, e sim uma
articulação de conteúdos afins, mais contextualizados, e de interesse dos
alunos por sua maior vinculação com suas experiências e histórias de vida.
Muitos conteúdos escolares abordados nos últimos anos estão relaciona-
dos a temas como migração e urbanização, perspectiva das mulheres na li-
teratura, entre outras temáticas que dialogam com as vivências dos alunos
idosos, em especial, das alunas inscritas no programa que representam
mais de 90% dos alunos inscritos.
Objetivando nivelar parcialmente os alunos por nível de escolarida-
de foram criadas inicialmente quatro turmas denominadas Mangueira 1,
Mangueira 2, Unati 1 e Unati 2, sendo a Mangueira 1, a turma que con-
grega alunos em processo inicial de alfabetização e a Unati 2, a turma que
congrega alunos mais adiantados, e as outras duas turmas, por sua vez,
concentram alunos com níveis intermediários de escolaridade. Nos últimos
anos, as turmas Mangueira 2 e Unati 1 foram unificadas.
Os nomes dessas turmas foram dados em homenagem à origem dos
alunos que entraram no programa em seu início, no final dos anos 90. Al-
guns alunos que inauguraram o PROALFA residiam em comunidade pobres
como a Mangueira, vizinha da UERJ. Outros alunos, por sua vez, vieram
por encaminhamento da Universidade Aberta da Terceira Idade da UERJ
(UnATI-UERJ), nome que teve sua grafia adaptada e simplificada, nas tur-
mas, com os títulos Unati 1 e Unati 2. Com o decorrer do tempo, obser-
vou-se que os alunos que frequentam o PROALFA atualmente residem em
diversos bairros e comunidades, incluindo a Mangueira, sendo que alguns
também frequentam as aulas da UnATI-UERJ, especialmente, aqueles com
maior nível de escolaridade. Cabe observar que há a predominância de
alunos que moram relativamente perto da UERJ, originados, em sua maio-
ria, de cidades da região Sudeste e da região Nordeste, especialmente de
áreas rurais, com média de idade de 73 anos, sendo 94% mulheres, muitas
de raças preta e parda.

168
No Brasil, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua
de 2019 (PNAD Contínua 2019) do Instituto Brasileiro de Geografia e Es-
tatística (IBGE, 2020) mostrou um decréscimo do analfabetismo no Brasil
de 7,2% em 2016 para 6,6% em 2019 em pessoas com 15 anos ou mais,
sendo que o maior índice de analfabetos se concentra nas faixas etárias
mais velhas. Porém, para pessoas pretas e pardas, a taxa de analfabetismo
foi o dobro (8,9%) da observada entre pessoas brancas (3,6%). O índice
de analfabetismo também se mostrou maior na população que reside em
regiões rurais.
Essa confluência da origem rural, do pertencimento a uma classe so-
cioeconômica desfavorecida e da identificação com a raça preta ou parda
por parte significativa dos idosos participantes do PROALFA-UERJ parece
explicar o fracasso escolar e as dificuldades de inserção no ensino formal
na infância e juventude, o que evidencia a desigualdade escolar historica-
mente associada à raça e à classe social no Brasil.
Cabe uma reflexão, conjuntamente com Paulo Freire que, com sua
ênfase numa educação libertadora voltada para as classes oprimidas, vai
destacar, em diferentes obras (Freire, 1987, 2014, 2017, entre outras) não
só uma igualdade na relação pedagógica, mas uma igualdade mais ampla,
que perpassa os âmbitos ontológico, político, econômico e social. Postu-
lando a igualdade como “princípio”, como observa Kohan (2019), Paulo
Freire pode ser considerado um pioneiro no destaque aos contextos demo-
cráticos de desenvolvimento na educação e no realce à justiça social como
objetivo maior do homem. Nesse sentido, a igualdade pode ser conside-
rada uma “cláusula pétrea” dos direitos humanos, algo que não pode ser
alterado em benefício de interesses individuais específicos ou de grupos
economicamente favorecidos. Inclusive, o PROALFA pode ser considerado
um programa de alfabetização de linha “freiriana” ao propor uma prática
pedagógica crítica, que privilegia a bagagem sociocultural dos educandos
como ponto de partida para a construção de um saber escolar mais formal,
bem como para a construção de uma subjetividade engajada e cidadã.

169
Bem-estar subjetivo e vivência escolar no PROALFA-UERJ
Como brevemente referido, o projeto de extensão universitária aqui
relatado visa estabelecer uma parceria com os projetos desenvolvidos pelo
PROALFA, mas busca abordar dimensões que complementam as atividades
pedagógicas propriamente ditas desenvolvidas por esses projetos, no caso,
aspectos psicológicos relacionados ao bem-estar subjetivo e a relação des-
te aspecto com a vivência escolar dos idosos inscritos no programa. Neste
contexto, o projeto busca identificar também mudanças subjetivas e so-
ciais relatadas pelos alunos após sua reinclusão escolar.
No que se refere ao bem-estar subjetivo e à qualidade de vida de ido-
sos, como destaca Pinheiro (2009), a educação pode ser um dos fatores
que proporcionam melhor qualidade de vida aos idosos por causa da rein-
serção destes na sociedade e da possibilidade de maior conscientização de
direitos e deveres pelos mesmos. O PROALFA configura-se, assim, como
um espaço de inclusão social que vai além de um espaço de aprendizado
de saberes formais, pois possibilita a ressignificação de papéis sociais e
familiares e a ressignificação de si mesmo. Inclusive, essas mudanças sub-
jetivas que se expressam pelo aumento da autoestima e pela conscienti-
zação de direitos e deveres sociais podem contribuir para o engajamento
em uma luta por justiça social e para a conscientização da importância da
sustentabilidade para uma vida digna e compatível com os recursos esgo-
táveis do planeta.
Segundo Vecchia et al. (2005), o conceito de qualidade de vida relacio-
na-se à autoestima e ao bem-estar pessoal e engloba diferentes aspectos
como: capacidade funcional, nível socioeconômico, estado emocional, in-
teração social, estado de saúde, atividade intelectual, autocuidado, apoio
familiar, valores culturais e éticos, entre outros fatores. Frente à multipli-
cidade de aspectos que se somam para “definir” qualidade de vida, mos-
tra-se quase impossível abordar todos esses aspectos num mesmo estudo,
assim, serão priorizados aqui alguns aspectos mais diretamente relaciona-
dos à satisfação com a vida, passíveis de serem mensurados por escalas
construídas para esse tipo de avaliação.

170
Dawalbi et al. (2013), em um estudo de revisão sistemática de artigos
que abordam a qualidade de vida em idosos, destacaram a importância de
se investigar esse tipo de tema para o planejamento de políticas públicas e
para um cotejamento de resultados de estudos produzidos por diferentes
campos do saber. Assim, com o aumento da expectativa de vida, inclusive
em países como o Brasil, a qualidade de vida do idoso mostra-se um tema
de suma importância não só para a Psicologia, mas para as políticas públi-
cas voltadas para essa população. Não obstante, destacamos a carência
de estudos brasileiros que relacionam o bem-estar subjetivo, a satisfação
com a vida e a qualidade de vida de idosos em geral com a satisfação com
a vivência escolar.
Alguns estudos como os de Xavier et al. (2003) e Joia et al. (2007) en-
contraram resultados que sugerem uma satisfação com a vida significativa
em idosos. Fatores como saúde, renda e apoio familiar foram considerados
determinantes para a percepção da qualidade de vida. Porém, em regiões
como maior desigualdade social e maior índice de pobreza como a região
nordeste brasileira, como indica o estudo de Santos et al. (2002), havia um
decréscimo da satisfação com a vida em idosos, provavelmente decorrente
da baixa renda e da desigualdade social.
No que diz respeito aos termos “satisfação com a vivência escolar”,
outra dimensão investigada pelo projeto, podemos observar como desta-
cado por Cagnin et al. (2015) que a “satisfação com a experiência escolar”
e a “satisfação acadêmica” podem ser vistas sob vários ângulos, desde a
satisfação com a experiência na escola, incluindo as relações interpessoais
com professores e colegas, a satisfação com o currículo, o planejamento
escolar e a organização da disciplinas, a satisfação com a avaliação do per-
curso acadêmico, (Elliot & Healy, 2001; Kane, 2004; Tessema et al., 2012)
entre outros tipos de satisfação. Não obstante, como destaca Garcia-Aracil
(2009), os termos “satisfação escolar” envolvem dimensões complemen-
tares, multifacetadas, mas ainda pouco articuladas em suas múltiplas fa-
cetas.
Já no âmbito dos estudos da chamada “Psicologia Positiva” (Seligman,
2009; Pacico & Bastianello, 2014, entre outros) há evidências de que o
171
bem-estar subjetivo de idosos tem papel preponderante na prevenção de
doenças e na manutenção da saúde física e mental ao longo do envelhe-
cimento. Inclusive, no campo da educação, a chamada “educação positi-
va”, como observam Rocha e Cagnin (2015), busca conciliar uma visão de
educação formal tradicional, com ênfase no desenvolvimento intelectual e
social do aluno, com o estímulo de habilidades que favoreçam maior per-
cepção de “felicidade” por parte dos educandos e/ou maior percepção de
bem-estar subjetivo.
Se por um lado, autores como Baltes e Smith (2006) apontam para evi-
dências de que muitos idosos apresentam elevado índice de comprometi-
mento funcional nas atividades diárias, dependência e solidão, por outro,
podemos considerar o ato de envelhecer como uma experiência heterogê-
nea, podendo ser vivenciada com maior ou menor qualidade de vida, como
observam Lima et al. (2008) e Neri et al. (2004).
Cabe abrir um parêntese para argumentar, conjuntamente com Kala-
che et al. (2020) que, no Brasil, envelhece-se mal e precocemente e que há
falta de políticas públicas efetivas para essa população, situação essa que
se tornou agravada no período atual de pandemia da Covid-19. Assim, es-
tudos que abordam a percepção do bem-estar subjetivo na velhice podem
ajudar na compreensão da heterogeneidade de vivências ao longo do en-
velhecimento, muitas delas determinadas por condições socioeconômicas
que desfavorecem uma percepção positiva da qualidade de vida em geral.
Visando investigar, por um lado, a percepção da qualidade de vida e
do bem-estar subjetivo e, por outro, a percepção da vivência escolar em
idosos participantes do PROALFA-UERJ, serão abaixo apresentados, breve-
mente, os principais resultados obtidos pelo projeto de extensão, incluin-
do alguns resultados preliminares obtidos no período da pandemia da Co-
vid-19.
O projeto fez uso de instrumentos como: questionários sociodemográ-
ficos aplicados aos alunos, questionários aplicados aos professores, entre-
vistas semiestruturadas, escalas de perfis de humor e de afetos positivos e
negativos, escalas de bem-estar subjetivo e de satisfação com a vida (Aze-
vedo et al., 1991; Cardoso & Ferreira, 2009; Hutz et al., 2014; Watson &
172
Clark, 1994), escala de auto avaliação da produção escrita, e questionário
de vivências acadêmicas (Santos et al., 2005), adaptado ao contexto do
PROALFA, e análise qualitativa de histórias de vida e das produções dos
alunos nas Oficinas de Leitura, Escrita, Matemática.
Participaram das avaliações, em média, 35 alunos, sendo as avaliações
feitas em sala de aula, como o auxílio de bolsistas de extensão, em horá-
rios que não comprometessem o andamento das atividades pedagógicas
propriamente ditas.
O projeto pretendeu também analisar os registros das atividades de
sala de aula, com avaliação qualitativa dos desempenhos dos alunos nes-
sas atividades. Nas fases iniciais do projeto, foram analisados os dados
sociodemográficos dos alunos do PROALFA e aplicados questionários aos
professores/estagiários e coletadas informações relevantes a respeito das
dificuldades de aprendizagem e das principais mudanças subjetivas ocor-
ridas nos alunos e nos professores/estagiários do PROALFA. Na sequência,
foram aplicadas uma escala de satisfação com a vida e uma escala de bem-
-estar subjetivo, uma escala de perfis de humor, uma escala de afetos po-
sitivos e negativos, uma escala de autoavaliação da produção escrita, um
questionário de vivências acadêmicas adaptado, além das observações das
atividades pedagógicas e de resolução de problemas ocorridas em sala de
aula. A participação semanal em reuniões com a equipe pedagógica favo-
receu também o entendimento dos principais problemas de aprendizagem
dos alunos e o acompanhamento do desenvolvimento da leitura e escrita
dos mesmos.
Os resultados obtidos até o momento sugerem uma visão positiva do
ato de envelhecer e um bem-estar subjetivo bastante satisfatório. A au-
toavaliação da produção escrita também se mostrou satisfatória, após a
inserção no programa, o que evidenciou o reconhecimento do aprendiza-
do, conforme apontado em trabalho anterior (Cagnin et al., 2017). Os es-
tagiários professores do programa também relataram mudanças subjetivas
positivas, especialmente no que se refere à valorização das experiências
dos idosos em trocas intergeracionais que os levaram a ressignificar, posi-
tivamente, o processo de envelhecimento.
173
Comparando as turmas do PROALFA, observamos que a turma com
maior escolaridade obteve a maior média nas escalas de bem-estar sub-
jetivo e de satisfação com a vida já mencionadas, e a turma de menor es-
colaridade, a menor média nessas escalas. Já na escala de perfis de hu-
mor (Azevedo et al., 1991), houve o predomínio do humor positivo, com
uma tendência de resultados semelhante aos das outras escalas, ou seja,
a turma de maior escolaridade com maior média de humor positivo e a de
menor escolaridade com a menor média. Os resultados obtidos na escala
PANAS X de afetos positivos e negativos (Watson & Clark, 1994) também
apontaram para maior média de concordância com afetos positivos do que
com afetos negativos nas turmas em geral, sendo que a turma de maior
escolaridade obteve maior média na concordância com os afetos positivos
do que a turma de menor escolaridade. A turma de escolaridade interme-
diária obteve médias intermediárias em todas as escalas aplicadas. Esses
resultados sugerem uma satisfação com a vida positiva e o predomínio de
um perfil de humor com afetos positivos, o que corrobora os resultados ob-
tidos nas escalas de bem-estar subjetivo e de satisfação com a vida. Talvez,
as médias mais baixas obtidas pela turma de menor escolaridade em todas
as escalas aplicadas estejam relacionadas às dificuldades vivenciados pelos
alunos dessa turma, conforme suas histórias de vida deixaram transpare-
cer. Inclusive, essa turma congrega os alunos com maiores dificuldades de
aprendizagem e que possuem nível socioeconômico mais desfavorecido.
Em observações em sala de aula, no questionário de vivências acadê-
micas adaptado para o contexto do PROALFA, e nos relatos das histórias
de vida analisados, foi observada, em todas as turmas, boa satisfação com
a vivência escolar, em suas dimensões pessoal, interpessoal, institucional,
de estudo, e relacionada à inserção no programa. Em relação à essa última
dimensão, foram encontradas as maiores médias em todas as turmas, ou
seja, itens relacionados às expectativas em relação ao PROALFA, à impor-
tância do PROALFA em suas vidas cotidianas, à satisfação com os conteú-
dos estudados, à interação com colegas e professores, entre outros itens,
tiveram as médias mais altas de todo o questionário. Em outras palavras, a
satisfação com a vivência escolar como um todo mostrou-se significativa e
174
vem sendo mantida ao longo dos anos nos alunos que estão há mais tempo
no PROALFA, como relatada nas histórias de vida que associaram o aumen-
to do bem-estar subjetivo ao tempo de estudo no PROALFA.
Observamos, em muitas histórias de vida analisadas, o relato de su-
perações e mudanças subjetivas significativas trazidas pela inserção no
PROALFA, como o aumento da autoestima, da autonomia e da reflexão
crítica. Nas atividades em sala, observamos também que atividades con-
textualizadas relacionadas às vivências pessoais foram as que despertaram
maior motivação e que a construção de texto coletiva e a resolução de pro-
blemas em grupo, como ocorreram, respectivamente, na Oficina de Escrita
e na Oficina de Matemática, favoreceram processos metacognitivos, maior
engajamento pessoal e parcerias mais produtivas.
No período de pandemia foi criado um grupo de WhatsApp intitulado
“PROALFA em Casa” que se propôs a ser, por um lado, um “espaço peda-
gógico” e, por outro, um espaço de manutenção de vínculos escolares e
afetivos. Assim, os objetivos do projeto foram ajustados para a observação
da participação dos alunos nas atividades pedagógicas postadas no grupo.
Participaram desse grupo, em média, 15 alunos do PROALFA (1/4 dos alu-
nos inscritos no programa), provavelmente, devido à dificuldade de acesso
a recursos tecnológicos e à internet. Nesse contexto, alunos com maior
poder aquisitivo e/ou com mais familiaridade com o uso do WhatsApp ti-
veram mais chance de participar do grupo.
Nesse grupo, toda semana, eram postadas atividades diferentes que
começaram com uma confraternização inicial de todos (alunos, professo-
res e coordenadores do programa), e que foram evoluindo para temáticas
como “tempo rei: a vivência do tempo no momento presente”, “casa arru-
mada em tempos de pandemia”, “memórias do PROALFA”, “recordações
das vivências escolares”, “papel da mulher na sociedade atual”, “revolta da
vacina e as fake news”, “desigualdades sociais no ensino remoto”, “direitos
humanos”, entre outros temas. Essas atividades foram postadas em textos
literários, reportagens, poesias, músicas, charges, fotos, vídeos e histórias.
Houve boa participação nas atividades, com reflexões importantes sobre
o momento que estamos vivendo. Muitos alunos escreveram em folha de
175
papel e fotografaram as redações para colocar no grupo, outros enviaram
áudios. Alguns enviaram também fotos relacionadas ao tema da semana
como, por exemplo, fotos da casa arrumada e da família, incluindo os ani-
mais de estimação, fotos tiradas no PROALFA, fotos da infância etc. Um
aluno, com muita dificuldade na escrita, enviou fotos de suas produções
artísticas (esculturas e objetos), relacionadas ao tema da semana.
Vale citar aqui um exemplo de uma atividade que tratou um tema de
grande relevância no contexto atual, no caso os “direitos humanos” e que
foi abordado, pedagogicamente, a partir do poema “Estatutos do Homem”,
de Thiago de Mello. Essa temática foi alvo de ricas reflexões por parte dos
alunos que demostraram conscientização sobre valores éticos e coletivos e
sobre o respeito pela natureza. A importância da “verdade” e, consequen-
temente, do “combate à mentira” e a necessidade de se buscar uma “vida
verdadeira” para a “construção de um mundo melhor” e palavras como
“solidariedade”, “igualdade”, “justiça” e “democracia” foram os principais
destaques nas falas dos alunos.
Em resumo, as atividades desenvolvidas durante a pandemia, mesmo
com as limitações pedagógicas impostas pelo ensino remoto, especialmen-
te para esse grupo de alunos idosos, trouxeram resultados positivos asso-
ciados, por um lado, ao sentimento de pertencimento escolar e, por outro,
à possibilidade do relato de experiências pessoais e de sua articulação com
temas socialmente relevantes em um espaço onde aprendizagens e trocas
afetivas se somaram para o melhor enfrentamento desse difícil período de
isolamento social.
Por fim, o projeto de extensão aqui relatado pode ajudar no entendi-
mento das mudanças subjetivas e sociais vivenciadas por participantes de
um programa de alfabetização como o PROALFA, programa esse que busca
um desenvolvimento social, cognitivo e emocional sustentável e democrá-
tico, onde o conhecimento é construído de modo coletivo, contextualizado
e solidário.

176
Considerações finais
Como referido, o aumento da população idosa no mundo vem ocor-
rendo de modo progressivo e sem mudanças adequadas nas condições
de vida dessa população, especialmente em países como o Brasil. Assim,
identificamos a necessidade de políticas públicas direcionadas para essa
população que levem em consideração as demandas e a heterogeneidade
de vivências associadas ao processo de envelhecimento.
Acreditamos que projetos de extensão e de pesquisa, como o aqui
abordado, possam contribuir para a compreensão dos fatores envolvidos
na percepção do bem-estar subjetivo de idosos, em especial, daqueles in-
seridos em programas de ensino voltados para a Educação de Jovens e
Adultos (EJA). Neste contexto, a satisfação com a vivência escolar parece
favorecer uma percepção positiva do bem-estar subjetivo, conforme suge-
rem os resultados obtidos nos questionários, escalas, observações em sala
de aula e histórias de vida analisados pelo projeto relatado.
No ano 2021, ano do centenário de Paulo Freire, esse grande edu-
cador continua mais atual do que nunca frente aos atos antidemocráti-
cos e autoritários que temos presenciado em diferentes países, incluindo
o Brasil, e que, muitas vezes, fazem apologia da desigualdade social, da
intolerância a minorias, e da privatização da escola pública, entre outras
agressões à civilidade. Nessa direção, programas de alfabetização como o
PROALFA, que buscam construir um espaço pedagógico crítico e inclusivo,
ilustram um importante trabalho de resistência e de inclusão no contexto
da Educação de Jovens e Adultos.
Acreditamos, ainda, conjuntamente com Paulo Freire, que a educa-
ção por si só não transforma o mundo, pois são as pessoas que trans-
formam o mundo quando são mudadas pela educação. Assim, a edu-
cação muda as pessoas que, por sua vez, podem criar novos mundos
com ações transformadoras em consonância com ideais de liberdade, de
autonomia e de luta por uma vida digna e igualitária para todos, sendo
a educação também a principal ferramenta para a concretização do de-
senvolvimento sustentável.

177
Em suma, quando pensamos em contextos democráticos e susten-
táveis de desenvolvimento e em justiça social, pensamos em ações que
transformam o mundo, sejam elas econômicas, políticas, socioculturais ou
educativas. Nessa confluência de ações, o protagonismo humano só pode-
rá ser transformador e bem-sucedido se for guiado por valores democrá-
ticos, afirmativos e que garantam os direitos fundamentais do homem em
suas múltiplas dimensões.

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180
MINICURRÍCULOS DOS AUTORES

Adriane da Silva Gomes: Psicóloga pela Universidade Federal de


Pernambuco. Foi bolsista de Iniciação Científica nos anos de 2015-2016,
com o tema: “Negociações e acordos entre crianças na construção de au-
tonomia e interdependência”, e nos anos 2016-2017 com o tema: “Resis-
tência a intervenção do adulto: crianças de 2 e 3 anos em um grupo de
brinquedo, no cotidiano de uma creche”, ambos na área de Psicologia do
Desenvolvimento. Atualmente cursa o Programa Residência Multiprofissio-
nal em Reabilitação Física, no Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando
Figueira, atuando com problemáticas do desenvolvimento infantil e defi-
ciência. E-mail: adrianegsilva94@gmail.com

Alysson Massote Carvalho: Graduado em Psicologia pela Uni-


versidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Mestre e Doutor em Psicologia
pela Universidade de São Paulo - USP. Pós-doutorado na The University
of North Carolina at Greensboro. Foi professor da UFMG onde exerceu as
funções de Chefe do Departamento de Psicologia e de Coordenador dos
Programas de Ação Social e Comunitária da Pró-reitora de Extensão. Atual-
mente é Diretor Geral do Instituto Presbiteriano Gammon e professor da
Faculdade Presbiteriana Gammon-Fagammon. Integra o Conselho Nacio-
nal de Educação. Tem experiência na área de Psicologia, atuando principal-
mente nos seguintes temas: brincar, desenvolvimento humano, educação
e saúde. E-mail: alysson.carvalho@gammon.br

Bruna Amorim Matos Ferreira: Psicóloga, graduada em


Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Foi inte-
grante de grupos de iniciação científica em projetos de pesquisa com
a temática do suicídio e primeira infância em serviços de acolhimento
na mesma instituição. Também foi extensionistas do Projeto de Exten-
são com adolescentes na Unidade de Saúde em Vitória. Tem experiência
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em clínica comportamental, representações sociais, suicídio e primeira
infância. Atualmente atua como Psicóloga Clínica Comportamental de
adultos. E-mail: bru.amf@gmail.com

Gabriella Garcia Moura: Graduada em Psicologia pela Univer-


sidade Estadual Paulista (2009), Mestre e Doutora em Psicologia do De-
senvolvimento pela Universidade de São Paulo com Doutorado Sanduíche
na Universidad Autónoma de Madrid (UAM). Desde 2018, é Professora da
Universidade Federal do Espírito Santo e docente colaboradora do Progra-
ma de Pós-graduação em Psicologia da UFES. Integrante do GT Contextos
Sociais de Desenvolvimento: Aspectos Evolutivos e Culturais”. Partindo de
uma perspectiva sociointeracionista, tem interesse nas seguintes temáti-
cas: desenvolvimento socioafetivo e comunicativo na primeira infância; in-
terações adulto-criança e interação de pares; vínculos e relações afetivas;
e desenvolvimento de bebês e crianças pequenas em acolhimento familiar
e institucional. E-mail: gabigmoura87@gmail.com

Ilka Dias Bichara: Psicóloga pela Universidade Federal da Bahia


(1978), Mestre em Psicologia (Psicologia Experimental) pela Universidade
de São Paulo (1989) e Doutorado em Psicologia (Psicologia Experimental)
pela Universidade de São Paulo (1994). Atualmente é Professora titular da
Universidade Federal da Bahia, atuando como pesquisadora e docente na
graduação e no PPGPSI/UFBA. Tem experiência na área de Etologia, Psi-
cologia Evolucionista e Psicologia do Desenvolvimento, atuando principal-
mente nos seguintes temas: crianças e brincadeira, brincadeira e contex-
tos culturais, brincadeiras em espaços urbanos. É atualmente diretora do
Instituto de Psicologia da UFBA e vice-coordenadora do GT “Brinquedo,
aprendizagem e saúde” da ANPEPP. E-mail: ilkadb@ufba.br

Juliana Maria Ferreira de Lucena: Professora Adjunta da Uni-


versidade de Pernambuco. Graduada e mestre em Psicologia pela Univer-
sidade Federal de Pernambuco (UFPE). Doutora em Ciências pela Univer-
sidade de São Paulo (IPUSP). É pesquisadora do Laboratório de Etologia
Desenvolvimento e Interações Sociais (LEDIS-USP), do Laboratório de Inte-
182
ração Social Humana (LabInt - UFPE) e do Grupo de Estudos e Pesquisas em
Educação Escolar e não Escolar no Sertão Pernambucano (GEPESPE - UPE).
Integrante do GT “Contextos sociais de desenvolvimento: aspectos evolu-
tivos e culturais” da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em
Psicologia (ANPEPP). Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase no
estudo do desenvolvimento. E-mail: juliana.lucena@upe.br

Manuela de Queiróz Cruz: Doutoranda em Psicologia pela Uni-


versidade Federal de Pernambuco. Mestre em Ciências do Ambiente e Sus-
tentabilidade na Amazônia (2018), pela Universidade Federal do Amazonas.
Pós-graduada em MBA em Gestão em Serviços de Saúde pela Universidade
Federal do Amazonas (2013) e graduada em Bacharelado em Psicologia pela
Universidade Luterana do Brasil (2010). Atualmente é psicóloga do Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas (IFAM). Tem expe-
riência na área de Psicologia, com ênfase em Psicologia Socioambiental e
Desenvolvimento Humano, atuando principalmente nos seguintes temas:
subjetividade, infância e brincadeiras. E-mail: manuela.cruz@ufpe.br

Maria Camila Lima: Psicóloga, graduada em Psicologia pelo Cen-


tro Universitário de Lavras (2013). Mestre em Educação pela Universidade
Federal de Lavras (2015). Atualmente é Psicóloga do Núcleo de Atendimen-
to Psicológico e Professora da Faculdade Presbiteriana Gammon e do Cen-
tro Universitário de Lavras, atuando nos cursos de Psicologia, Pedagogia e
Direito. E-mail: maria.lima@fagammon.edu.br

Maria Isabel Pedrosa: Professora titular do Departamento de


Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco e coordenadora do La-
boratório de Interação Social Humana (LabInt). Doutora em Psicologia Ex-
perimental pela Universidade de São Paulo (1989) e realizou intercâmbio
pós-doutoral na Duke University, Department of Psychology Experimen-
tal, USA (1999) e na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2014). Foi
bolsista de produtividade do CNPq de 1991 a 2017. Suas pesquisas estão
voltadas para a ontogênese infantil com o foco no desenvolvimento de ha-
bilidades sociais com pares de idade. Utiliza-se de observações videograva-
183
das e de minucioso procedimento de análise buscando integrar o binômio
biologia-cultura. E-mail: maria.cpedrosa@ufpe.br

Maria Isabel da Silva Leme: É professora titular do Instituto de


Psicologia onde leciona disciplinas de graduação e pós-graduação sobre
temas relacionados à Psicologia da Aprendizagem. Desenvolve pesquisas
sobre estes temas, com ênfase no processo de transferência via solução
de problemas, e as interrelações entre cognição, afetividade e cultura, na
perspectiva da Psicologia Cognitiva e da Psicologia Cultural. E-mail: belle-
me@usp.br

Maria Thereza Costa Coelho de Souza: Professora Titular


do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Pesquisadora do
desenvolvimento humano, atuando principalmente nos seguintes temas:
intervenções com jogos; relações entre afetividade e inteligência; desen-
volvimento infantil e políticas públicas para a primeira infância; desenvol-
vimento socioemocional e moral; qualidade de vida. Coordenadora do La-
boratório de Estudos sobre Desenvolvimento e Aprendizagem (LEDA), do
Instituto de Psicologia da USP. E-mail: mtdesouza@usp.br

Renata Coelho de Pinho: Psicóloga, graduada em Psicologia pela


Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Participou de projetos de
extensão fornecendo atendimento psicológico a universitários e crianças
vinculadas ao hospital infantil da cidade de Vitória. Atuou como voluntária
em escola acompanhando crianças com o espectro autista. Especialista em
terapia cognitivo comportamental e atua, com crianças e adolescentes, em
consultório particular e clínica de atenção primária. E-mail: psirenatapi-
nho@gmail.com

Shiniata Alvaia de Menezes: Professora Auxiliar do curso de Psi-


cologia da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Membro do
GT ANPEPP Contextos Sociais de Desenvolvimento: Aspectos Evolutivos e
Culturais. Doutora em Psicologia (Universidade Federal da Bahia / UFBA -
2020); Mestra em Psicologia (UFBA - 2014); graduada em Bacharelado em
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Psicologia e Formação de Psicólogo (UFBA). Fez Pós-graduação lato sensu
em Psicologia Educacional (PUC-MG/1993). Membro do Grupo de Pesquisa
Brincadeiras e Contextos Culturais desde 2012. Coordenou o Serviço-Es-
cola de Psicologia da UEFS entre 2018 e 2021. Psicóloga clínica autônoma
desde 1995. Email: samenezes@uefs.br

Simone Cagnin: Professora associada do Departamento de Cogni-


ção e Desenvolvimento do Instituto de Psicologia da Universidade do Es-
tado do Rio de Janeiro. Possui graduação em Psicologia pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro, mestrado em Psicologia pela Fundação Getúlio
Vargas, RJ e doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Hu-
mano pela Universidade de São Paulo. Realizou estágio pós-doutoral em
Psicologia Experimental na Universidade de São Paulo. Suas áreas de atua-
ção são em Psicologia Cognitiva e Neuropsicologia Cognitiva, sendo a sua
principal linha de pesquisa voltada para a investigação da influência da afe-
tividade na cognição. E-mail: simcagnin@gmail.com

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