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Alberto da Veiga Guignard nasceu na cidade de Nova Friburgo, no dia 25 de fevereiro

de 1896. O artista nasceu com uma condição clínica chamada lábio leporino, sendo seu caso
bastante grave, com total abertura entre o palato, a boca e as narinas. A condição do lábio
leporino, mesmo submetido às inúmeras cirurgias ao longo dos anos, acompanhou o artista
por toda sua vida e influenciou diretamente na sua forma de se comunicar com o mundo, uma
vez que através da fala ele enfrentava dificuldades de compreensão.

Logo na infância, após o trágico falecimento do pai devido a um disparo acidental de


uma arma de caça, sua mãe se casa novamente com um barão alemão, Frederico Von
Schilgen. Assim, aos 11 anos de idade, em 1907, Guignard se muda para Europa com sua
família, residindo em princípio na cidade suíça de Vevey e posteriormente na França, na
Alemanha e na Itália. Durante os anos de sua infância e adolescência, Guignard, já
demonstrava seu talento e interesse pelas artes visuais, entretanto, matriculado pelo padrasto,
foi estudar agronomia e zootecnia na Alemanha, onde ficou gravemente doente.
Posteriormente em cartas relata o fato com humor: “eram 14 graus abaixo de zero e eu
espalhando adubo na planície. Coisas de alemão. É claro que adoeci.” (GUIGNARD apud
MORAIS, 1974, p.17).

Aos 20 anos de idade inicia seus estudos na Konigliche Bayetische Academie der
Bildenden, em Munique, Alemanha, onde o artista descreve sua formação como rígida,
dividida entre disciplinas de desenho e pintura. Durante sua educação artística, Guignard teve
a oportunidade de viajar por inúmeras cidades europeias, agregando um vasto conhecimento
e absorvendo diversas influências do modernismo europeu e de grandes nomes das artes
visuais.
Fiz meus estudos na Alemanha sob uma disciplina de muito rigor.
Três anos de pintura e seis de desenho. Custou muito, mas foi. E hoje
estou contentíssimo de ter estudado tanto. Naturalmente, aprendi
pelos métodos acadêmicos, mas depois, meu instinto pessoal me
guiou para a minha personalidade e liberdade completa
(GUIGNARD apud MORAIS, 1974, p.18).

Em 1929, após passar 22 anos na Europa, Guignard retorna ao Brasil, estabelecendo


moradia e seu ateliê na cidade do Rio de Janeiro. O ambiente artístico encontrado pelo artista
no Brasil provoca uma antítese de sentimentos, por um lado o estranhamento por estar em um
ambiente artístico “acanhado” em relação ao panorama encontrado na Europa e por outro
lado, o artista redescobre uma paisagem com novas cores e possibilidades de representação,
uma nova perspectiva a ser explorada (MORAIS, 1974, p.33).
A própria presença do artista trouxe inúmeras contribuições e transformações à vida
cultural carioca. “Mas é efetivamente com o início da nova década, dois anos depois da
chegada de Guignard, que os sintomas mais profundos de modificação aparecem. E sem
dúvida, a presença de Guignard no Rio, era parte desse novo impulso a favor das artes
modernas.” (MORAIS, 1974, p.32).
A influência no modernismo brasileiro, pós semana de arte de 1922, é perceptível
especialmente na grande geração de artistas ensinados por Alberto da Veiga Guignard. Se
examinada dentro do processo de assimilação da modernidade pela cultura brasileira e
localizada na fase do modernismo posterior a 1930, a pintura de Guignard é, dentre as
surgidas nesse período, a que mais profundamente penetrou na arte moderna, pois realiza
uma incorporação meticulosa das origens da pintura moderna (ZÍLIO, 1983, p. 20).

A presença de Guignard na educação tem seu início ainda na cidade do Rio de Janeiro
em âmbitos diversos, porém, é em 1931 na Fundação Osório que o artista alcança
efetivamente seu caráter de educador, foi “contratado para ensinar desenho e pintura na
Fundação Osório, localizada no Rio Comprido, Rio de Janeiro (...) Local em que permanece
lecionando até 1943.” (ZÍLIO, 1983, p.85). Pouco se conhece do referido período do artista
frente a instituição pela pouca documentação encontrada. O principal documento que se
refere à sua atuação enquanto professor de arte é a dedicatória da então reitora da instituição.
Com a mão de uma verdadeira calígrafa, a educadora e reitora Cassilda Martins deixou no
Álbum-arquivo de Guignard, no Rio, em Julho de 43, um memorável depoimento sobre seu
método de ensino, por assim dizer, intuitivo, como que instintivo (FROTA, 2005. p.43).
É importante ressaltar que a dificuldade de compreensão externa levou Guignard a
desenvolver formas paralelas de linguagem, sendo a pintura uma das suas principais fontes de
comunicação com o mundo e com suas sensações. Ver Guignard é também compreender
parte das suas sensações e interpretações do mundo e acima de tudo, é perceber o lirismo,
conforme descrito pelo crítico de arte Ronaldo Brito, como uma tradução da arte.

O nacionalismo lírico seria assim uma determinação estrutural do


trabalho – na medida em que ele seguia preso ao âmbito de uma
expressividade subjetiva – mas foi construído, conquistado até,
plasticamente, no embate com a própria linguagem. Não havia
arbitrárias e inconsistentes “colagens” de estilos, sobretudo não havia
finalidades externas aos quadros. Tudo o que acontecia, acontecia ali
mesmo, na trama da linguagem. Guignard chegou “moderno” na
Europa e nesse nível preliminar de modernidade permaneceu. O
Brasil, vasto, vago e ignaro, lhe impôs de saída uma enorme tarefa: a
de conquistá-lo e interpretá-lo com os meios de que dispunha
(BRITO, 1983, p.12-13).

Em 1932, Guignard conhece a pianista Amalita Fontenelle, por quem se vê


apaixonado. Um amor platônico que resultou em numerosos cartões com mensagens de amor
e amizade. Feitos ao longo de cinco anos, os cartões escritos em português, alemão,
latim e francês, foram cuidadosamente ilustrados com desenhos, anotações e fotografias, que
aludem ao universo da música e da pintura, em uma união pela arte.
Além de declarações de amor, os cartões trazem mensagens de Carnaval, Natal,
Ano-Novo e aniversário. Tudo isso foi colado em um álbum pelo próprio Guignard, no dia de
seu aniversário, em 25 de fevereiro de 1937. Os cartões são dedicados principalmente a
Amalita, mas também as suas duas irmã, Lola e Anita. Na primeira página aparece uma foto
com as três irmãs, jovens, bonitas e elegantes.
Alberto da Veiga Guignard foi o responsável pela criação de um conjunto visual,
composto por pouco mais de 100 pequenos objetos dedicados ao amor que sentiu por uma
jovem. Em uma tarde de 28 de junho do ano de 1932, ao comparecer em um concerto no
Teatro Municipal, deparou-se com a mulher que paralisou o corpo, fixou os olhos e encantou
o coração. O fato ficou registrado em um conjunto com três cartões””, que, em frente e verso,
narram entre escritos em francês e desenhos que invadem o corpo textual, um momento que
Guignard não queria que se acabasse. “Qui seras? comment s'appelle-t-elle? ou
demeure-telle? ah! mon Dieu! qui est-elle?”. Perguntava-se o artista, que sofria ao
encontrá-la, sem saber como se aproximar da amada.1

1
O artista deixaria a seguinte anotação: "A folhinha marcava 28 de junho de 1932, foi uma tarde num
“concerto do teatro municipal que uma dama desconhecida fixou de repente seus olhos em mim.
Forcei-me da melhor maneira a pensar se conhecia ou não. A partir desse dia, um ânimo novo,
desconhecido, atravessa o espírito de minha vida. A força de seus olhos me deixou num estado de
grande perturbação. Seria o amor que já me enviava suas flechas venenosas?” FIUZA, M. Livro
reproduz cartões de amor de Guignard para Amalita. O Tempo, Belo Horizonte, s.p., 19 set. 2007.
Disponível no site
<http:liwww.otempo.combridiversão/magazinellivro-reproduz-cartões-de-amor-de-guignard-para-amali
ta-1.309858
Nas imagens de dois desses três cartões, em frente e verso, vemos os corações sempre
presentes, próximos de olhos atentos, flores, objetos que marcam interesses entre as artes
visuais e a música. Em uma das imagens, lemos “ART DESSINS MODERNE”. Ali, há uma
demarcação clara da forma como ele encontrou
para, em sua timidez, viver e reviver os lances do amor que lhe causava o frisson entre
pequenos e grandes abalos. Até esse momento, o nome da amada ainda não
era conhecido.
No verso do segundo cartão, apresenta-se um desenho de máscaras cravadas de
flechas. Foi no baile de Camaval de 1933, como ele mesmo escreve em francês, que
“começou a felicidade”, pois encontrou coragem para abordar a jovem, solicitando uma
dança e descobriu seu nome: Amalita. “Elle se dit nommer “Amalia, Amalita que! doux nom
viens de Amar?” A afeição alimentada pelo artista era, ao mesmo tempo, o motivo de uma
grande inquietação. Ele buscou saber sobre a moça, descobriu sobrenome, onde morava,
como poderia se encontrar com
ela e com as irmãs.
Acabou conseguindo certa proximidade com Amalita Fontenelle. Ficaram “amigos,
saíam juntos para irem a concertos e ao cinema, sempre em companhia de uma das irmãs da
pianista. Essas cartas e os cartões desenhados-escritos jamais foram enviados a Amalita Não
se sabe se ele se declarou ou não, se ela correspondeu ou não ao amor do artista, Temos
apenas os marcos em papel de uma paixão que precisava ser vivida ainda que em um mundo
paralelo e fantasioso.

Sozinho em seu atelier, empregou bastante tempo criando os objetos. A ação de


Guignard aproxima fantasia e realidade, arte e vida de tal forma que ele cria objetos já
fadados a não cumprirem a sua função. Pelo contrário: o amor solitário somou cada parte
(fotografias, cartõezinhos, cartões, cartas, escapulários etc.) em um corpo imagético, um
álbum??, no qual ele colecionava cada elemento criado para expressar visualmente seu
sentimento e viver, ainda que em desenho-escrita-sonho, o seu amor pela musicista.
Elaborados entre 1932 e 1937 os objetos, portanto, nos fornecem elementos visuais para
serem pensados tanto individualmente quanto no conjunto-ato que eles concretizam para
Guignard.2

O mundo paralelo de alegria em devaneio se deu entre aquarelas, nanquins, fitinhas e


colagens. Corações e o nome dela estão sempre presentes, envoltos por flores secas,
passarinhos que cantam felizes e voam pelos céus. Há também as figuras enigmáticas ou
românticas de cupidos que, em colagens, aguardam displicentemente para atirar as suas
flechas. Algumas frases em francês como “Toujours 2 coeurs une ême qui vivant”, “COMME
AMI ET ARTISTE QUE SUIS- JE?" ou “des lettres des lettres et des lettres toujours des

2
Segundo Carvalho (2007), Adelaine Guerrini de Andrade, viúva de Nonê (filho de Oswald de
Andrade), guardava o álbum há anos, desde que o recebera de seu sogro. Ela procurou
representantes do acervo de Guignard em 1987 para apresentar o material, que, após ser avaliado,
foi desmontado, para facilitar sua exposição e conservação. Ele tinha quarenta e seis folhas, sendo
que somente dezesseis foram utilizadas. Atualmente, uma pequena parte se encontra no Museu
Casa Guignard em Ouro Preto e as demais ficam guardadas na Superintendência de Museus e Artes
Visuais - SUMAV, órgão do Governo do Estado de Minas Gerais.
lettres. Já dão o tom da escrita que é falada, que não tem vírgula e nem ponto final. Escrita
que, por vezes, é palavra solta, um “amor” aqui, um “guiama” lá, que se espalham pelo
espaço do suporte circundando as imagens. O jogo de cores esmaecidas, linhas e formas
compõem um amor que precisa ser grito visual no silêncio do atelier.

O gesto de construção desses cartões e cartas-desenho são em si um atravessamento


da vida pela arte, na criação de outra forma de existência. São o simulacro de um amor que
foi vivido somente no papel. Guignard construiu a carta- desenho como uma experiência
enquanto artista e como colecionador de seu próprio ato, formando assim um museu-altar de
sua adoração por Amalita.

Guignard viveu seus últimos dezoito anos de vida em Minas Gerais, contribuindo
como artista e educador, revelando paisagens, pessoas e os movimentos artísticos de sua
época. Foi neste estado, que Guignard perseguiu as paisagens montanhosas, com cenários
líricos, transparentes e luminosos, com igrejas surgindo das brumas e balões coloridos
subindo aos céus. A partir de 1954, Guignard começa a passar longas temporadas em Ouro
Preto, sendo constantemente visto com seu cavalete pelas ruas da cidade. Foi aqui em Ouro
Preto, local que chamava de “cidade amor inspiração”, que o artista completou sua obra,
“perseguindo a luminosidade de nossos céus e a paisagem barroca, representada de forma
fantástica, poética e comovente em seus quadros”.

Sexagenário, Guignard sofre de diabetes, arteriosclerose e insuficiência cardíaca, em


função da bebida. Em 19 de junho, sente-se mal e é levado à Santa Casa de Ouro Preto. Em
seguida, transfere-se para Belo Horizonte. Falece em 25 de junho de 1962. Seu corpo é
velado no Palácio da Liberdade, sede do governo mineiro, e no Museu da Inconfidência, em
Ouro Preto. É enterrado no cemitério da Igreja de São Francisco, em Ouro Preto.

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