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TEORIA DA LITERATURA III

autora
ALESSANDRA FÁVERO

1ª edição
SESES
rio de janeiro  2016
Conselho editorial  luis claudio dallier, roberto paes e paola gil de almeida

Autora do original  alessandra fávero

Projeto editorial  roberto paes

Coordenação de produção  paola gil de almeida, paula r. de a. machado e aline


karina rabello

Projeto gráfico  paulo vitor bastos

Diagramação  bfs media

Revisão linguística  bfs media

Revisão de conteúdo  luiz carlos sá

Imagem de capa  wavebreakmedia | shutterstock.com

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)

F273t Fávero, Alessandra


Teoria da literatura III / Alessandra Fávero.
Rio de Janeiro: SESES, 2016.
96 p. : il.

isbn: 978-85-5548-285-4

1. Teoria da literatura. 2. Estruturalismo. 3. Desconstrucionismo.


4. Estudos culturais. I. SESES. II. Estácio.
cdd 861

Diretoria de Ensino — Fábrica de Conhecimento


Rua do Bispo, 83, bloco F, Campus João Uchôa
Rio Comprido — Rio de Janeiro — rj — cep 20261-063
Sumário

Prefácio 5

1. Estruturalismo 7
1.1  O Método Estrutural e a Herança Formalista 8
1.2  Estruturalismo Literário no Brasil 21

2. Desconstrucionismo Literário 25

2.1  Sobre a Desconstrução 26


2.2  A Semiologia de Roland Barthes 33
2.2.1  Poder, Prazer e Leitura 38
2.2.2  A Morte do Autor 40

3. Teoria da Leitura 45

3.1  Estética da Recepção 46


3.2  Teoria do Efeito Literário 54
3.3  Recepção e Crítica Literária no Brasil 62

4. Estudos Culturais 67

4.1  Histórico da Disciplina 68


4.2  Estudos Culturais X Estudos Literários: A Questão do Cânone 85
4.3  Estudos Culturais no Brasil 88
Prefácio
Prezados(as) alunos(as),

Em continuidade às discussões desenvolvidas na disciplina Teoria da Li-


teratura II, a disciplina Teoria da Literatura III apresenta e discute um vasto
repertório de conceitos que configuram o estado atual dos Estudos Literários,
pois nosso objetivo maior é desenvolver uma visão crítica das perspectivas teó-
ricas adotadas nas investigações linguísticas e literárias que fundamentam sua
formação e que nortearão nossa atividade profissional.
Nesse sentido, dando prosseguimento à discussão de pressupostos do Estru-
turalismo Literário, entraremos na esfera do Pós-Estruturalismo, para entender-
mos o processo de desconstrução e a fundamentação da semiologia barthesiana.
Alterando o foco de atenção da obra para o leitor, adentraremos o mundo da
Estética da Recepção e da Teoria do Efeito Literário, a partir das quais a obra só
se concretiza mediante a presença do leitor.
Além disso, instigaremos a leitura de textos acerca da crítica literária e histo-
riografia literária com a finalidade de conhecermos os pressupostos teóricos que
fundamentam às análises desenvolvidas de acordo com cada corrente crítica, bem
como fornecer subsídios para a reflexão acerca dos conceitos nelas impressos.
Por fim, abordaremos os estudos culturais, que vai além da investigação dos
saberes pertinentes ao senso comum.

Bons estudos!

5
1
Estruturalismo
1.  Estruturalismo
Neste capítulo, você estudará o estruturalismo que tem origem nos estudos lin-
guísticos de Ferdinand de Saussure, linguista e filósofo suíço, bem como ou-
tros vários nomes que se destacam dentro da corrente estruturalista.

OBJETIVOS
Nossos objetivos giram em torno do entendimento quanto ao método estrutural, a relação com
uma herança formalista e o estruturalismo literário no Brasil.

1.1  O Método Estrutural e a Herança Formalista

Iniciemos nossos estudos com uma afirmação de Tzvetan Todorov, em As es-


truturas narrativas, de que, certamente:

Seria exagerado afirmar que o estruturalismo linguístico tomou suas ideias empresta-
das ao formalismo, pois os campos de estudo e os objetivos das duas escolas não são
os mesmos; encontram-se, entretanto, nos estruturalistas, marcas de uma influência
'formalista', tanto nos princípios gerais quanto em certas técnicas de análise. Eis por
que é natural e necessário lembrar hoje, quando o interesse pelo estudo estrutural da
literatura renasce, as principais aquisições metodológicas devidas aos formalistas, e
compará-las com as da linguística contemporânea. (TODOROV, 2003, p. 28).

Como se pode verificar, o estruturalismo tem como ponto de partida o for-


malismo, mas não constitui um braço deste, uma vez que tem objetivo diferen-
te daquele. Além disso, o estruturalismo é uma espécie de metodologia científi-
ca que vê seu corpus - o texto literário - a partir de princípios comuns que regem
o uso da linguagem.
Já que o objeto de estudo estruturalista é a linguagem precisamos conhecer
um pouco da história do estruturalismo linguístico de Ferdinand de Saussure,
linguista e filósofo suíço.

8• capítulo 1
AUTOR
Linguista suíço nascido em Genebra, estudioso das línguas indo-europeias e importante pes-
quisador da construção lógica da linguagem, considerado o fundador da moderna linguística
científica. (...) Estudou Física, Química na universidade alemã de Leipzig, enquanto continuava
estudando linguística fazendo cursos de gramática grega e latina. Convencido de que seu futuro
estava nos estudos da linguagem, ingressou na Sociedade Linguística de Paris. Ainda estudante,
publicou seu único livro, um brilhante estudo em linguística comparativa que firmou sua repu-
tação: Mémoire sur le système primitif des voyelles dans les langues indo-européennes (1879).
(...) Na capital francesa, ensinou linguística histórica na École des Hautes Études (1881-1891)
(...) Foi encarregado (1906) de ensinar Linguística Geral, e com isso realizou conferências que
apresentaram conceitos que mudaram completamente o modo de encarar a linguística criando os
célebres cursos de lingüística geral (1907-1913) na Universidade de Genebra. Sua notoriedade
veio, infelizmente para ele, com a publicação da obra póstuma, Cours de linguistique générale
(1916), textos dos cursos ministrados durante seus últimos anos de vida na Universidade de Ge-
nebra, recolhidos e organizados por seus discípulos suíços Charles Bally (1865-1947) e Albert
Séchehaye (1870-1946). Nesta publicação foi estabelecida as bases do estruturalismo linguísti-
co, onde ele diferenciou o sistema da linguagem ou língua, articulado em uma série de leis gerais,
da utilização individual e concreta ou fala. Foi estabelecida ainda a distinção entre métodos de
investigação sincrônicos, que estudam a língua em um determinado ponto de sua evolução, e
diacrônicos, que a analisam no decurso da história. Definiu também o signo linguístico como a
união da forma física ou significante com a imagem psíquica ou significado. Morreu em Vufflens
-le-Château, próximo de Genebra, cantão de Waadt, aos 55 anos.
Disponível em: <http://www.dec.ufcg.edu.br/biografias/FerdnSau.htm>.
Acesso em : 9 mar. 2016.

Saussure é importante aos nossos estudos literários, pois foram suas labo-
rações teóricas são a origem do alargamento da linguística enquanto ciência,
sendo esta, por sua vez, o gérmen do estruturalismo.
De acordo com a proposta de Saussure, surge a semiologia que entende a
linguística como um ramo da ciência mais geral dos signos – formado de signi-
ficante e significado – além de se debruçar sobre a questão de langue et parole,
elementos de embasamento do estruturalismo do século XX.
Ivan Teixeira (1998, p. 35) explica a relação entre os estudos saussurianos e
o discurso da literatura:

capítulo 1 •9
Todavia, o princípio essencial da noção de estrutura do discurso literário, objeto
da poética estruturalista, decorre de outra formulação de Saussure, talvez a mais
importante para as ciências humanas depois dele: a distinção entre langue e parole.
Langue é o sistema abstrato de normas segundo o qual se manifesta a parole, que é
uma espécie de projeção concreta daquela estrutura ideal, formada pelo conjunto hi-
potético de todas as paroles do homem. Assim, qualquer obra literária deve ser enten-
dida como uma parole, isto é, como o uso individual da langue, que é aquele sistema
impessoal constituído pelo conjunto de todos os usos que antecederam a apropriação
específica desse sistema por um dado autor num determinado momento.
Assim como o usuário da língua se apropria de estruturas que antecedem sua fala, o
romancista lança mão de unidades narrativas preexistentes a seu romance. A crítica
imanente preocupava-se com a descrição do romance (parole); a crítica estrutural in-
vestiga o sistema de unidades narrativas anteriores ao romance (langue). Nesse sen-
tido, a postura estrutural aproxima-se do método extrínseco de investigação literária.

CURIOSIDADE
Curso de Linguística Geral é formado pelo material extraído dos cursos ministrados por Fer-
dinand Saussure, em Genebra, entre os anos de 1906 e 1911. A obra foi publicada por seus
alunos após três anos da morte de Saussure.

PERGUNTA
Mas o que isso tem a ver com teoria da literatura?

Tudo!
Como explica Ivan Teixeira (1998, p. 34-35):

O estruturalismo representou a maior revolução metodológica nas ciências humanas


nos últimos cinquenta anos, sendo certo que hoje se encontra em relativo descrédito,
embora algumas de suas postulações se tenham incorporado definitivamente ao

10 • capítulo 1
próprio modo de ser do pensamento contemporâneo. Nenhum intérprete das huma-
nidades pensará de forma adequada, caso não incorpore os pressupostos estrutura-
listas, ainda que apenas para os negar. Todavia, a teoria estrutural apresenta uma es-
pécie de paradoxo relativamente à evolução dos métodos de crítica literária no século
XX. Esse paradoxo, apenas aparente, decorre da seguinte situação: desde alguns
formalistas russos passando pelos esforços da nova retórica, da estilística e do new
criticism, a orientação tida como mais moderna tem se caracterizado pela abordagem
imanente do texto, detendo-se no exame da estrutura particular e concreta das obras.
Sem deixar de estabelecer as necessárias conexões entre os gêneros e as diversas
obras da mesma série, a postura imanentista encara o texto como objeto autônomo, e
não como documento ou manifestação de qualquer instância exterior. O estruturalismo
propõe o abandono do exame particular das obras, tomando-as como manifestação de
outra coisa para além delas próprias: a estrutura do discurso literário, formado pelo con-
junto abstrato de procedimentos que caracterizam esse discurso, enquanto propriedade
típica da organização mental do homem. As obras individuais seriam manifestações
empíricas de uma realidade virtual, constituída pelas normas que regem as práticas sin-
gulares. A análise desse discurso, que paira acima das obras e antes de sua existência
singular, é que consiste no objeto de investigação do método estrutural.
Os estruturalistas recusam a descrição imanente, por acreditar que um método
científico não pode se esgotar em operações práticas e singulares. Ao contrário, deve
voltar-se para o exame da estrutura do discurso literário, abstratamente concebido,
do qual as obras concretas não passam de particularizações. Em última análise, a
crítica estrutural preocupa-se com a criação de uma poética, não no sentido clássico
de conjunto de normas ou preceitos para a conquista da adequação das obras aos
respectivos gêneros, mas no sentido de uma teoria da estrutura e do funcionamento
do discurso literário.

Entendido isso, fica fácil entender que:

A diferença essencial entre os métodos extrínsecos tradicionais e a crítica estrutural


consiste em que aqueles associavam a literatura a um discurso heterogêneo (história,
sociologia, psicanálise, psicologia etc.), conduzindo-a para uma área diversa do saber,
ao passo que esta associa a literatura com uma instância homogênea: a linguística, de
cuja natureza decorre a própria configuração da literatura e cujo estudo deve neces-
sariamente ser regulado por uma poética. (TEIXEIRA, 1998, p. 35)

capítulo 1 • 11
Ainda assim, é certo que a estrutura é o conjunto de elementos que com-
põem o texto literário e que estão conexos entre si por um princípio único de
significação. No entanto, o estruturalismo relacionado à teoria literária é fruto
de Jonathan Culler, com sua obra Estruturalismo poético, publicado em 1975.

O representante mais consagrado da crítica estrutural nos Estados Unidos talvez seja
Jonathan Culler, cujo Structuralist poetics (1975) retoma esse postulado do estru-
turalismo francês para desenvolver, não mais uma poética do discurso literário, mas
uma poética da leitura. Preocupado com a recepção da obra de arte, procura esta-
belecer uma langue da interpretação. Depois de acusar o excesso de interpretações
concretas dos textos literários, Culler propõe o exame do ato de interpretação em si,
acreditando que o leitor, de alguma forma, possui uma competência para a leitura,
cuja estrutura precisa ser caracterizada tanto quanto a estrutura do discurso narrativo.
Deslocando a atenção do texto para o leitor, o estudioso norte-americano procura
estabelecer o conjunto de regras ou o sistema que rege a leitura e a interpretação da
obra literária. (...) (TEIXEIRA, 1998, p. 37)

Ampliando nosso entendimento, de acordo com a proposta de Roland


Barthes, a análise estruturalista consiste numa atividade específica, com uma
finalidade ainda mais específica:

O fim de toda a atividade estruturalista, seja ela reflexiva ou poética, é de reconstituir


um ‘objeto’, de maneira a manifestar nesta reconstituição as regras do funcionamento
(as ‘funções’) deste objeto. (1967, p.58).

Se o estruturalismo busca a reconstituição das regras do funcionamento de


um determinado objeto, podemos verificar que este método pode ser aplicado
a várias áreas do conhecimento. Vejamos algumas delas.
Jean Piaget, na área da Psicologia, publica O estruturalismo em 1968 a obra
embasada na noção de estrutura chamada de Gestalt. As teorias piagetianas
são muito usadas na área da Pedagogia e da Educação.

12 • capítulo 1
CONCEITO
Gestalt é uma teoria da Psicologia que analisa os fenômenos psicológicos como conjuntos
organizados, indissociáveis e articulados, ou seja, como formas de organização mental.

No campo da Antropologia Social, temos a Antropologia Estrutural, publi-


cada em 1958 por Lévi-Strauss, cuja obra apresenta fundamentos importantes
para a criação de uma da teoria estruturalista no campo literário.

A obra científica considerável de Lévi-Strauss não deve fazer esquecer a importân-


cia de sua reflexão moral: denunciando sem trégua o empobrecimento conjunto da
diversidade das culturas e das espécies naturais, ele sempre viu na antropologia um
instrumento crítico dos preconceitos, sobretudo raciais, ao mesmo tempo que um
meio de aplicar um humanismo "generalizado", ou seja, não mais, como no Renasci-
mento, limitado apenas às sociedades ocidentais, mas que leve em conta a experiên-
cia e os saberes do conjunto das sociedades humanas passadas e presentes. Longe
de conduzir a uma improvável civilização mundial que abole as singularidades, esse
humanismo afirma, ao contrário, que, em matéria estética e espiritual, toda criação
verdadeira impõe, tanto a um indivíduo como a uma cultura, buscar nos seus particula-
rismos um meio de melhor contrastá-los com outros valores. Aliás, a questão estética
forma um fio condutor no pensamento de Lévi-Strauss, não apenas porque ele consi-
derou as formas de expressão artísticas - ou percebidas como tais - das sociedades
não ocidentais ao mesmo tempo como um desafio à racionalidade do Ocidente e um
objeto legítimo de saber antropológico, mas também porque sua obra se alimenta de
uma reflexão profunda sobre o papel da música e da pintura como mediações entre
o sensível e o inteligível, o que faz dela uma contribuição de primeiro plano à teoria
estética. (DESCOLA, 2009)

Diante do exposto, é evidente que cada vez mais nos distanciamos das propos-
tas de análise tão difundidas e praticadas pela teoria crítica tradicional francesa.
A partir de 1960, surge a nouvelle critique, movimento crítico-literário de
base estruturalista, cuja abordagem do texto literário é imanentista e empirista.
Na lista dos principais componentes desta nouvelle critique, cuja sistemati-
zação de conceitos literários até então espalhados propõe o estudo sincrônico de

capítulo 1 • 13
estruturas ou sistemas que produzem o sentido, encontramos: Tzvetan Todorov,
Roland Barthes, Gérard Genette, Roman Jakobson e Algirdas Julien Greimas.
Vejamos um pouco sobre eles:

©© WIKIMEDIAS.ORG
Figura 1.1  –  Tzvetan Todorov.

Tzvetan Todorov propõe ater-se às leis de uma espécie de gramática geral


dos elementos narrativos, como por exemplo, relação personagem/narração de
acordo com certos tipos de visão como:
•  Visão com: Neste tipo de visão, o narrador conhece exatamente o mesmo
que uma personagem,
•  Visão por detrás: Neste tipo de visão, o narrador sabe mais do que a per-
sonagem sabe.
•  Visão de fora: Já neste tipo de visão, o narrador “sabe menos” do que qual-
quer das personagens. Na verdade, não é que o narrador “saiba menos”, mas
sim que ele disfarça saber menos.

Construindo a narrativa a partir destes tipos de visão, é manipular a lingua-


gem de modo que a história se construa de formas diferentes a partir da pos-
tura que o narrador assume em relação à personagem, que também é item dos
estudos sistemáticos estruturalistas.
Roland Barthes, em sua obra Introdução à Análise Estrutural da Narrativa
(1972), propôs a distinção entre três tipos de análise textual: a leitura simples, a
crítica literária e a ciência da literatura.

14 • capítulo 1
©© SOPHIE BASSOULS | SYGMA | CORBIS

Figura 1.2  –  Roland Barthes in 1978. Sophie Bassouls.

Segundo Barthes, a ciência da literatura tem grande incumbência de criar


os padrões de análise do texto literário, em sua própria inteligibilidade, que
pode ser compreendido por si só, ou seja, o texto literário não deveria ser ana-
lisado como demonstração ou em função de estruturas e conflitos de qualquer
ordem seja eles sociais, históricos ou psicológicos, dentre outros.
Daí a relação direta se seus estudos com os propostos pela Linguística, de
modo que Barthes resume os subsídios e semelhanças da linguística com a
análise estrutural da narrativa da seguinte forma;

A língua geral da narrativa não é evidentemente mais que um dos idiomas oferecidos
à linguística do discurso, e ela se submete em consequência à hipótese homológica:
estruturalmente, a narrativa participa da frase, sem jamais ser reduzida a uma soma
de frases: a narrativa é uma grande frase, como toda frase constatativa, é de uma
certa maneira, o esboço de uma pequena narrativa. Se bem que elas disponham aí de
significantes originais (frequentemente muito complexos), encontram-se com efeito
na narrativa, aumentados e transformados à sua medida, as principais categorias do
verbo: os tempos, os aspectos, os modos, as pessoas; além disso, os próprios ‘sujeitos’
opostos aos predicados verbais não deixam de se submeter ao modelo frásico: a tipo-
logia actancial proposta por A. J. Greimas reencontra na multiplicidade dos persona-
gens da narrativa as funções elementares da análise gramatical.

capítulo 1 • 15
A homologia que se sugere aqui não tem apenas um valor heurístico: implica numa
identidade entre a linguagem e a literatura (enquanto esta for uma espécie de veículo
privilegiado da narrativa): não é mais possível conceber a literatura como uma arte que
se desinteressa de toda relação com a linguagem, já que a usa como um instrumento
para exprimir a ideia, a paixão ou a beleza: a linguagem não cessa de acompanhar o
discurso estendendo-lhe o espelho de sua própria estrutura. (BARTHES, 1972, p. 24)

De acordo com a teoria barthesiana, o texto literário é simplesmente um


sistema coerente de signos linguísticos que se traduz em literariedade, ou seja,
a expressão linguística em uso especial da linguagem. A própria definição de
literariedade nos remete à linguagem literária que, diferentemente da lingua-
gem comum, remete-nos a uma leitura aberta, plena de uma pluralidade de
sentidos, que depende do leitor para que se imprima um sentido, que não tem a
necessidade de nos levar a um contexto predeterminado e já conhecido. Desse
modo, o texto literário não funcionaria como um elemento da verdade concreta
nem mesmo uma espécie de reprodução mecânica da realidade.
Como afirma Roland Barthes (1970, p. 160):

Todo romancista, todo poeta, quaisquer que sejam os rodeios que possa fazer à teoria
literária, deve falar de objetos e fenômenos mesmo que imaginários, anteriores à
linguagem: o mundo existe e o escritor fala, eis a literatura. O objeto da crítica é muito
diferente; não é o ‘mundo’, é um discurso, o discurso de um outro: a crítica é discurso
sobre um discurso; é uma linguagem ‘segunda’ ou ‘metalinguagem’ [...] que se exerce
sobre uma linguagem primeira (ou linguagem-objeto). Daí decorre que a atividade crí-
tica deve contar com duas espécies de relações: a relação da linguagem crítica com a
linguagem do autor observado e a relação dessa linguagem objeto com o mundo. É o
‘atrito’ dessas duas linguagens que define a crítica [...].

Fazendo uma aproximação entre os estudos de Roland Barthes e Tzvetan


Todorov, é possível verificar que ambos buscaram conferir à teoria da literatura
uma viva projeção do que é a linguística, no entanto, isso se traduz numa forma
de poética, no sentido de se fazer uma construção estética do texto literário,
ou como podemos dize tornar o próprio texto um campo metaliterário, que de

16 • capítulo 1
certo modo justifica a visão do estruturalismo literário acerca das obras que se
fazem objeto de crítica e análise.
Além dos estudos de Todorov e de Barthes, a ampliação do campo de atua-
ção da ciência narratológica se deu por meio do trabalho dos teóricos estrutura-
listas, em particular Algirdas Julien Greimas e Gérard Genette.
Tanto Greimas quanto Genette consideravam ser todas as narrativas forma-
das por estruturas comuns, como uma espécie de qualidade necessária para a
embasamento de qualquer doutrina acerca da narrativa.

CURIOSIDADE
Il y a de cela huit ans, en 2006, Gérard Genette faisait paraître un nouveau livre au titre enig-
matique, Bardadrac, dans une collection quelque peu sulfureuse pour un théoricien bon teint
: « Fiction & Cie ». Ses lecteurs en furent déboussolés, tout étonnés que le pape de la criti-
que formaliste fût également un écrivain. Jusqu'alors, Genette était connu pour avoir posé,
dans Figures III (1972), rapidement devenu un classique, les fondements d'une théorie du
récit, puis pour s'être intéressé, dans Palimpsestes (1982), aux oeuvres « au second degré
», c'est-à-dire dérivées d'autres oeuvres, tels la parodie ou le pastiche, ou encore pour avoir
analysé, dans les années 1990, notre « relation esthétique » aux oeuvres d'art.
En savoir plus sur http://www.lemonde.fr/livres/article/2014/03/26/gerard-genette-
saute-et-gambade_4390247_3260.html#0eKtwlWQEPg8dtjh.99

Há oito anos, em 2006, Gérard Genette, publicou um livro novo com título enigmático,
Bardadrac, em uma coleção um pouco sulfurosa para quem possui boa compleição teórica:
"Fiction & Cie." Seus leitores ficaram desorientados, espantados ao saber que o Papa da
crítica formalista foi também um escritor. Até então, Genette era conhecido por posar nas
Figuras III (1972), rapidamente se tornou um clássico com as bases de uma teoria da nar-
rativa, em seguida, por ter se interessado, em Palimpsest (1982), pelas obras “de segundo
grau”, isto é, obras derivadas de outras obras, como paródia e do pastiche, ou ainda para ter
analisado, na década de 1990, a nossa "relação estética" com obras de arte.

Gérard Genette via no estruturalismo algo maior que uma mera metodo-
logia, por isso em sua obra Discurso da narrativa, expõe a distinção entre três
elementos próprios da narrativa. Ele assim denomina e explica cada um deles:
•  Récit: é a ordem dos acontecimentos dentro do texto,

capítulo 1 • 17
•  Histoire: aparece como a sequência na qual esses acontecimentos “real-
mente” aconteceram. E essa sequência, vai-se nos revelando dentro do próprio
texto, a partir do qual podemos deduzir a ordem correta dos acontecimentos.
•  Narration: consiste no próprio ato de narrar os fatos e acontecimentos.

Sintetizando, segundo Barthes (1972, p. 255), Gérard Genette considera


a narrativa como “a representação de um acontecimento ou de uma série de
acontecimentos, reais ou fictícios, por meio da linguagem”.

Figura 1.3  –  Gérard Genette. Fonte: <http://www.lemonde.fr/livres/article/2014/03/26/


gerard-genette-saute-et-gambade_4390247_3260.html>.

Genette não se limitou à estrutura acima mencionada, mas ele também se


atentou para a questão do ponto de vista narrativo nos moldes dos estudos acer-
ca do realizados por Todorov.
Um elemento diferente quanto à teoria proposta por Todorov é que a pró-
pria narração, ou seja, o ato de narrar os fatos, pode ser ainda enfocada de mo-
dos diferentes, como:
•  não focalizada: é a narração feita por um narrador omnisciente, exterior
à ação,
•  focalizada internamente: é a narração feita por:
•  uma personagem com uma posição fixa,
•  uma personagem a partir de várias posições,
•  ou, até mesmo, pela perspectiva de várias personagens.

18 • capítulo 1
Roman Jakobson, caminhando para uma construção hipotética de uma
ciência da literatura, buscou evidenciar o carácter estrutural da relação código-
mensagem em sua ambiguidade. Isso quer dizer que, para Jakobson, a relação
código-mensagem é o elemento fundamental da mensagem poético-literária.

Figura 1.4  –  Roman Jakobson. Fonte: <http://comunicacionromeroy.blogspot.com.br/>

Os estudos de Jakobson quanto à relação código-mensagem resultam na as-


similação de seis funções da linguagem, cada uma delas relacionada ao nosso
processo de comunicação, resultando em: expressiva, referencial, fática, meta-
linguística, conotativa e poética.

Canal

Código

Emissor Receptor

Referente

Mensagem

Figura 1.5  – 

capítulo 1 • 19
Deixemos claro que quando se utiliza o termo ‘’ambiguidade” da obra lite-
rária temos um impacto significativo quanto à teoria estruturalista da literatura
resultando em pares conceptuais que contribuem para a constituição de uma
poética estruturalista, principalmente quando se trata da relação entre conota-
ção e denotação, significação e sentido, forma e conteúdo, estrutura e forma,
Além de muitos outros.
Ao realizar esse estudo, a finalidade é obter uma formulação de carácter
científico que sirva como estrutura do texto literário, a partir de avaliações
indiscutíveis.
Nesse sentido, Julia Kristeva publica em 1969 Semiótica e também cria um
conceito novo, indissociável do conceito de intertexto: ideologema.

©© WIKIMEDIA.ORG

Figura 1.6  –  Julia Kristeva.

No ideologema, a história e a sociedade se interpretam na própria produção


de um texto, gerando um novo texto. Isso acontece porque Kristeva imagina o
texto como a desarticulação da língua fundamentada na representação, fazendo
com que o texto ganhe uma pluralidade de significados tanto pela leitura que o lei-
tor realiza ou, até mesmo, a partir do que o autor pode suscitar. Ou seja, Kristeva

20 • capítulo 1
coloca a noção de texto como uma espécie de troca entre textos, e isso nos leva
ao conceito de intertextualidade, a partir do qual vários textos se interpenetram.
Como se pode verificar pelas propostas dos estudiosos acima citados, o es-
truturalismo é uma teoria

(...) segundo a qual se articulam as narrativas do homem, que não são aleatórias nem
imprevisíveis, mas que obedecem a uma estrutura entendida como o conjunto de pro-
priedades essenciais do discurso literário”. [Isto é, consiste numa] “teoria da estrutura
e do funcionamento do discurso literário. (TEIXEIRA, 1998, p. 35)

1.2  Estruturalismo Literário no Brasil

O estruturalismo no Brasil teve forte influência de Roman Jakobson devido ao


contato com Mattoso Câmara Jr., Celso Cunha e Haroldo de Campos.
Mattoso Câmara Jr. foi seu aluno e se tornou discípulo, pois:

Jakobson transferiu-se para Nova Iorque a convite da Escola Livre de Altos Estudos,
fundada por um grupo de cientistas franceses e belgas ali refugiados. Em suas aulas
surgiram figuras com futuro promissor como o antropólogo Claude Lévi-Strauss (1908-
2009) e o linguista brasileiro J. Mattoso Câmara Jr. (1904-1970). (MACHADO, 1999)

Haroldo de Campos, com quem teve contato por muito tempo, partiu dos
estudos de Jakobson para teorizar sobre a textualidade e a poesia sincrônica.

Embora Jakobson nem tenha teorizado diretamente sobre os problemas da textuali-


dade, para esse tema contribui sua concepção de poética sincrônica que, no Brasil, foi
estudada por Haroldo de Campos.
Operando a noção de texto na fronteira entre oralidade e escritura, vocalidade e gra-
fismo, similitudes e contiguidades numa intervenção radical sobre o código em suas
produções poéticas, Haroldo de Campos reivindica a dimensão sincrônica para rever a
história da literatura brasileira, em que os critérios de focalização fosse o diálogo dos
procedimentos estéticos.

capítulo 1 • 21
O que mais interessa destacar nesse momento é que a concepção de uma poética
sincrônica define os rumos de uma "história textual": que toma o texto em seus ele-
mentos inventivos em que o procedimento é o grande herói da literatura. Na verdade,
a história textual concebida no horizonte de uma poética sincrônica cumpre à risca
aquilo que anunciara Jakobson em seus estudos de juventude, quando anunciava que
o objeto privilegiado da literatura era a literariedade.
Se o grande empenho de Jakobson era a prioridade dos estudos interdisciplinares e a
vinculação entre poética e linguística, também nesse campo os estudiosos brasileiros
jamais ignoraram tais preceitos. E foi no Brasil que Jakobson recebeu um epíteto que
confere continência ao trabalho do homem que se aventurou pelo universo das rela-
ções entre o som e o sentido. No ensaio que escreveu quando da vinda de Jakobson
para o Brasil, Haroldo de Campos sabiamente o chamou 'o poeta da linguística'."

No entanto, Ivan Teixeira (1998, p. 35):

Uma das grandes limitações do método estrutural é que ele não consegue solucionar
o problema do valor artístico, pois a caracterização do discurso literário ou a descrição
estrutural de uma obra não explicam as razões de sua beleza.

Celso Cunha também tomou como ponto de partida para seus estudos o
princípio das invariantes nas variações de Jakobson, já que:

Quando o professor e filólogo Celso Cunha se volta para refletir sobre a "unidade
de nossa língua dentro de sua natural diversidade" é em tal princípio que ele busca
sustentação teórica. A realidade linguística do português brasileiro espelha, para o
professor Celso Cunha, uma série de diversidades dentro unidade: a expansão da lin-
guagem falada, desde o Brasil colônia, não foi acompanhada pelo desenvolvimento da
escrita; a estratificação linguística dos vários dialetos (regionais, sociais) em contrapo-
sição com a "língua dos doutores"; a dinâmica da linguagem das cidades costeiras em
contraste com a dinâmica da língua interiorana. Nenhuma política eficiente do idioma
pode ser proposta sem levar em conta tal diversidade.

22 • capítulo 1
Caminhando paralelamente aos estudos linguísticos e o ideal é que, conforme
alerta Ivan Teixeira (1998, p. 35), “a verdadeira preocupação de uma história literá-
ria de feição estrutural deveria se caracterizar pelo exame da evolução das proprie-
dades do discurso literário, e não exatamente pelo exame das obras em si. ”

ATIVIDADES
01. Qual é a noção de texto segundo Julia Kristeva?

02. Qual é o princípio essencial da noção de estrutura do discurso literário?

03. Como deve ser o exame da estrutura do discurso literário?

04. Como Jonathan Culler, em sua obra Estruturalismo poético, publicado em 1975, inter-
preta o texto literário?

REFLEXÃO
Dos elementos discutidos neste capítulo, um que nos parece aplicável a qualquer texto literá-
rio de ordem narrativa é o estruturalismo proposto por Gérard Genette, em sua obra Discurso
da narrativa, na qual expõe a distinção os três elementos próprios da narrativa e ainda expla-
na os tipos de perspectiva que o narrador pode apresentar.

PERGUNTA
Que tal você adentrar o mundo da narrativa genettiano e realizar a análise de uma obra?

LEITURA
BARTHES, Roland et al. Análise estrutural da narrativa. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1972.

capítulo 1 • 23
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARTHES, Roland.. A Atividade Estruturalista In: O Método Estruturalista, de Luc de Heush et al., Rio
de Janeiro: 1967.
BARTHES, Roland. O que é a crítica. In: _______. Crítica e verdade. Tradução de Geraldo Gerson de
Souza. São Paulo: Perspectiva, 1970.
BARTHES, Roland et al. Análise estrutural da narrativa. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1972.
DESCOLA, Philippe. Claude Lévi-Strauss, uma apresentação In: Estudos avançados. vol.23 no.67
São Paulo, 2009. On-line version ISSN 1806-9592. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.
php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142009000300019&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em:
10 mar. 2016.
GENETTE, Gérard. Discurso da narrativa. 3. ed. Lisboa: Vega, 1995.
MACHADO, Irene. Roman Jakobson. Biografia. Semiótica da Cultura/Semiótica russa. 09/1999.
PUC-SP. Disponível em: <http://www.portalentretextos.com.br/colunas/recontando-estorias-do-
dominio-publico-f-b/roman-jakobson,236,8146.html>. Acesso em: 10 mar. 2016.
TEIXEIRA, Ivan. Estruturalismo In: Cult: Revista Brasileira de Literatura. São Paulo: Lemos Editorial,
1998. (p. 34-37)
TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 2003.

24 • capítulo 1
2
Desconstrucionismo
Literário
2.  Desconstrucionismo Literário
Neste capítulo, você estudará a “desconstrução”, teoria crítica surgida na déca-
da de 1960, derivada dos cursos de Jacques Derrida.
No segundo tópico, destacaremos a semiologia de Roland Barthes a respeito da
produção, do funcionamento e da recepção dos textos, no âmbito linguístico
e literário.
Ainda levando em conta os estudos de Roland Barthes, discutiremos a rela-
ção entre leitura e prazer. Por fim, trataremos da morte do autor para dar vida à
escrita por meio da linguagem.

OBJETIVOS
Nosso objetivo é que você seja capaz de entender:
•  a “desconstrução”, como uma teoria crítica e uma estratégia de análise da obra literária;
•  o processo produção, do funcionamento e da recepção dos textos literários de acordo com
a semiologia barthesiana;
•  o texto como uma construção de poder, numa relação de prazer por meio da leitura.
•  como se processa a morte do autor como entidade linguístico-literária.

2.1  Sobre a Desconstrução


©© WIKIMEDIA.ORG

O termo “desconstrução” surge na dé-


cada de 1960, proveniente dos estudos
de Jacques Derrida, filósofo francês,
como tradução do conceito francês
déconstruction.

Figura 2.1  –  Jacques Derrida.

26 • capítulo 2
O que ele chama de desconstrução é o método de análise crítico-filosófica
de conceitos considerados imutáveis pela crítica literária tradicional, como, por
a relação entre significado e significante proposta por Ferdinand de Saussure.
Além disso,

Um dos pontos chaves da estratégia desconstrutivista tem sido a de interrogar sem


piedade as oposições binárias com que nos acostumamos a raciocinar. Estamos nos
referindo aos pares de termos como natureza/cultura, realidade/aparência, causa/
efeito, língua/fala, fala/escrita, significante/significado, homem/mulher e por aí vai
(RAJAGOPALAN, 2000, p.121).

Pensemos na definição de Jonathan Culler:

Desconstruir uma oposição é mostrar que ela não é natural e nem inevitável, mas uma
construção, produzida por discursos que se apoiam nela, e mostrar que ela é uma constru-
ção num trabalho de desconstrução que busca desmantelá-la e reinscrevê-la - isto é, não
destruí-la mas dar-lhe uma estrutura e funcionamento diferentes (CULLER, 1999, p.122).

A desconstrução, sob a perspectiva de uma crítica textual, funciona como


uma espécie de leitura densa de um texto, seja ele literário ou não, com a fina-
lidade de demonstrar que o próprio texto se constrói de forma ambígua e com
certos antagonismos que ele mesmo acaba por incorporar e disfarçar por meio
de elementos retóricos.
Na verdade, a desconstrução principia por funcionar como crítica ao estru-
turalismo, e não como método de análise. Tal crítica acontece na Universidade
de Johns Hopkins, nos Estados Unidos, em 1967, onde Jacques Derrida faz a
conferência La structure, le signe et le jeu dans le discours des sciences humai-
nes, traduzida por nós como “A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciên-
cias humanas”.
Como dissemos, a desconstrução almejava ser uma crítica do estruturalis-
mo, sob a justificativa de necessidade de revisão já que este desejava edificar um
princípio lógico de relações que conduziria todos os componentes de um texto,
independentemente da área do conhecimento a que se destinava. Derrida, por
exemplo, debruçava-se sobre o estudo de textos filosóficos e acentuou que:

capítulo 2 • 27
Uma tarefa então é prescrita: estudar o texto filosófico na sua estrutura formal, na sua
organização retórica, na sua especificidade e diversidades de seus tipos textuais, nos
seus modelos de exposição e produção - para além daquilo que outrora se chamava os
gêneros - no espaço também das suas encenações e numa sintaxe que não seja ape-
nas a articulação dos seus significados, das suas referências ao ser ou à verdade, mas
a ordenação de seus processos e de tudo o que aí se investiu. Em suma, considerar
também a filosofia como ‘um gênero literário particular’ (DERRIDA, 1991, p.334).

No entanto, Derrida não gosta do termo “crítica” ou “teoria”. Ele propõe


uma “estratégia” para a desconstrução de hierarquia:

Fazer justiça a essa necessidade significa reconhecer que, em uma oposição filosó-
fica clássica, nós não estamos lidando com uma coexistência pacífica de uma face
a face, mas com uma hierarquia violenta. Um dos dois termos comanda (axiologica-
mente, logicamente etc.), ocupa o lugar mais alto. Desconstruir a oposição significa,
primeiramente, em um momento dado, inverter a hierarquia (DERRIDA, 2001, p.48)

ATENÇÃO
De acordo coma as informações de Carlos Ceia (2010):
A própria compreensão da desconstrução como método crítico ou modelo de análise
textual nunca foi reconhecida por Derrida. A divulgação das ideias de Derrida nas Universida-
des de Johns Hopkins e de Yale, nos Estados Unidos, onde o filósofo francês conferenciou,
contribuiu para o alargamento da discussão aos estudos literários, impondo-se internacional-
mente como um método de análise textual, apesar das reservas de Derrida.

Como podemos depreender dos estudos de Derrida, a desconstrução de um


texto é possível a partir do estudo e entendimento das regras de construção do
texto pelo próprio texto, como uma espécie de jeu, como ele mesmo designa em
La structure, le signe et le jeu dans le discours des sciences humaines, por meio
do qual as palavras se montam e desmontam de acordo um uma infinidade de
possibilidades.

28 • capítulo 2
É no campo da linguagem que se estabelece o jogo, uma vez que:

Este campo permite estas substituições infinitas porque, em vez de ser um campo
inesgotável, como na hipótese clássica, em vez de ser demasiado grande, lhe falta
alguma coisa, a saber, um centro que detenha e funde o jogo das substituições.
(DERRIDA, 2002, p. 232)

Pensando assim, verificamos que a escrita perde aquele sentido primeiro


de representação de algo no mundo e adquire um novo significado já que pode
jogar com a escrita, fazendo novas combinações, transgredindo paradigmas,
produzindo desvios, uma vez que o sentido do texto surge em função da relação
entre signos linguísticos que resulta numa pluralidade de significados de acor-
do com as composições que se estabelecem. No entanto, é necessário ressaltar
aqui que não se pode:

(...) tratar a desconstrução como um convite aberto a formas novas e mais aventuro-
sas de crítica interpretativa é claramente equivocar-se com relação àquilo que é mais
distintivo e exigente nos textos de Derrida (NORRIS, 1987, p. 20).

Desse modo, concluímos que a desconstrução é uma forma de refletir sobre


como um texto é formado, ou seja, a desconstrução como método de análise
tem a finalidade de observar e entender como se opera o processo de escrita.
Quando falamos em escrita, é preciso considerar também aquilo que não
está escrito, o que vem escondido nas entrelinhas, ou ainda entender além do
que o texto diz por meio de construções dissimuladas que podem esconder o
verdadeiro sentido do texto.
Diante do exposto, podemos entender o conceito de diferença imposto por
Derrida quando se fala em análise do texto, pois essa diferença - différance
- se origina das infinitas possibilidades de relação entre os significados que
emergem de um texto já que estes são frutos da aproximação e distanciamento
dos signos. Nesse ponto, o autor e sua suposta intenção se dissolve ao longo do
texto por causa do jogo estabelecido pela diferença entre os vários significados
dele depreendidos.

capítulo 2 • 29
Jacques Derrida, em entrevista dada a Rogério da Costa, comenta sobre as
obras Gramatologia e A escritura e a diferença:

O que me conduziu a esses ensaios é uma história na qual se cruzam dois caminhos.
Um primeiro que recupera de algum modo o que foi desde a origem e que permanece
meu desejo dominante: a escritura literária: a literatura. Esse desejo pela literatura
sempre foi, por um lado, impedido, reprimido em mim por razões que tento analisar;
por outro lado, ele se satisfez por caminhos indiretos, mas em todo caso foi suspenso,
diferido todo o tempo de uma formação filosófica que me envolveu com filósofos que
não estavam ligados à literatura (...). (COSTA, 1993, p.20)

A desconstrução como crítica do estruturalismo ganha âmbito internacio-


nal quando Jacques Derrida, Harold Bloom, Geoffrey Hartman e Joseph Hillis
Miller publicam, no final da década de 1970, coletivamente seus ensaios com o
título Desconstrução e crítica, do original Deconstruction and Criticism.
Durante os anos de 1970 e 1980, a desconstrução se mostrou um movimen-
to que rompe com o estruturalismo, já que este propunha a construção de um
texto, e se enquadra no que se costuma chamar de pós-estruturalismo.
Provenientes da Escola de Yale, onde Derrida ministrou seus cursos e disse-
minou a ideia da desconstrução, estão os principais teóricos da literatura atual:
Paul de Man publicou duas obras que tratam da desconstrução do texto:
Blindness and Insight, em 1971, e Allegories of Reading, em 1979. Segundo
Man, o texto se constrói por meio de construções opostas ou antagônicas que
resultam, por sua vez, em leituras opostas. Diante desse fato, a leitura do texto,
- ou o próprio texto! – exigiria de nós uma posição crítica, no entanto, seguindo
a teoria da desconstrução, nós não podemos, de forma alguma, fazer essa esco-
lha. Como agir diante desse impasse?

Figura 2.2  –  Paul de Man. University of California, Irvine/Special Collections and Archives.

30 • capítulo 2
Se recorrermos ao nosso conhecimento proveniente dos estudos clássicos,
perceberemos que o texto aceita diferentes interpretações por se basear numa
leitura onde a linguagem assume um sentido figurado, alegórico e, assim, sem
possibilidade de construção fixa nos moldes do estruturalismo.
Harold Bloom escreve a obra The Anxiety of Influence em 1973, na qual
apresenta a proposta de que um escritor segue sempre um modelo anterior e
que luta para fugir de tal influencia, numa espécie de desconstrução daquilo
que a ele anteveio, baseada em explanações cheias de subterfúgios, ou seja,
com interpretações evasivas.
Joseph Hillis Miller publicou a obra Fiction and Repetition: Seven English
Novels em 1982, na qual apresenta a expressão abyss structure – ou, se prefe-
rir, a expressão de Andre Gide: mise en abyme –, reforçando a ideia de Derrida
quanto ao jogo que se estabelece entre a linguagem dentro de um texto, resul-
tando na presença de várias narrativas dentro de uma outra.

CONCEITO
La mise en abyme (ou en abîme) consiste à incruster une image en elle-même, un motif dans le
motif lui-même, etc. L'idée d'abîme renvoie à un gouffre insondable. Et c'est bien ce qui se passe
quand, par exemple, on se regarde, face à un miroir en ayant également un miroir derrière nous.
Notre image se multiplie alors à l'infini. À l'origine, il s'agit d'un terme d'héraldique qui désigne
le point central d'un écu lorsque ce point figure lui-même un écu. Ce procédé d'inclusion d'un
élément dans lui-même est fréquent dans de nombreuses formes artistiques : le tableau dans le
tableau, le récit dans le récit, le théâtre dans le théâtre, le cinéma dans le cinéma, …
MOËNS, Bernard. Sémiologie de l’Image. Toute image projetée est construite. Aucune
n'est gratuite. Disponível em: <http://mat00n.free.fr/2.pdf>. Acesso em: 16 mar. 2016.

A aplicação (ou abismo em abismo) consiste em incorporar uma imagem em si mesma,


um motivo no próprio motivo, etc. A ideia de abismo se refere a um abismo insondável. E é
bem o que acontece quando, por exemplo, você olha, face a um espelho possuindo também
um espelho atrás de si. A nossa imagem é, então, multiplicada ao infinito. Em sua origem, é
um termo hierárquico que designa o ponto central de uma moldura onde este mesmo ponto
central funciona como moldura. Este processo de inclusão de um elemento em si é comum
em muitas formas artísticas: um quadro num quadro, a história dentro da história, o teatro no
teatro, cinema no cinema, ...

capítulo 2 • 31
Isso também ocorre nas artes plásticas, como a pintura de Salvador Dali:

Figura 2.3  –  A Face da Guerra - The Face of War. Dali, Salvador. Óleo sobre tela. 1940 -
1941

Ou como na propaganda publicitária de Lanvin:

Figura 2.4  –  Lanvin. Fonte: <http://jpdubs.hautetfort.com/archive/2006/06/05/images-


abyssales.html>

32 • capítulo 2
A desconstrução propõe que um crítico deva desvendar os mistérios que o
texto esconde pela sua própria forma de construção. De certo modo, podería-
mos inferir que o texto em si é descontruído, cuja construção se daria somente
a partir da leitura dele por um sistema de intepretação dialógica e semiótica
para designar não o que é um texto, mas sim como é que esse texto é capaz de
criar seu significado.
Isso se explica pelo fato de:

[...] unidades de simulacro, ‘falsas’ propriedades verbais, nominais ou semântica, que


não se deixam mais compreender na oposição filosófica (binária) e que, entretanto,
habitam-na, mas, sem nunca constituir um terceiro termo, sem nunca dar lugar a uma
solução na forma dialética especulativa (DERRIDA, 2001, p.49).

A desconstrução é um a prática crítica e não uma forma de mera interpreta-


ção, já que:

A contribuição da desconstrução para a crítica literária foi uma fundamentação


filosófica mais rigorosa, que resultou no aguçamento do senso crítico com relação
aos textos, no afinamento dos instrumentos de leitura, e no estímulo à criatividade
escritural (PERRONE-MOISÉS, 2000, p.306).

2.2  A Semiologia de Roland Barthes

Figura 2.5  – 

Roberto José Ramos, em sua obra Roland Barthes: a semiologia da dialética,


explica que:

A Semiologia começou a ganhar notoriedade na França a partir da década de 50,


Séc. XX. Trazia, na época, uma influência notória: estava impregnada pelos signos do
pensamento de Saussure, na perspectiva de uma abordagem estruturalista, de teor
funcionalista. Barthes não fugiu de tal tendência. Tornou-se um dos discípulos de
Saussure. Deu os seus primeiros passos semiológicos dentro da régua e do

capítulo 2 • 33
compasso do estruturalismo, de abordagem funcionalista. Todavia, gradativamente, foi
reciclando a sua concepção sobre o papel dos signos. (2008, p. 160)

CONCEITO
Semiologia
Ciência dos modos de produção, de funcionamento e de recepção dos diferentes sis-
temas de sinais de comunicação entre indivíduos ou coletividades. = SEMIÓTICA "semio-
logia", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, <https://www.
priberam.pt/DLPO/semiologia>. Acesso em 16 mar. 2016.

De acordo com o conceito de semiologia, vamos observar o que Roland


Barthes nos revela a respeito da produção, do funcionamento e da recepção dos
textos, no âmbito linguístico e literário. Para Barthes, “Semiologia” é a “Ciência
geral de todos os sistemas de signos por meio dos quais estabelece-se a comu-
nicação entre os homens” (BARTHES, 1968). Desse modo:

O objetivo da pesquisa semiológica é reconstituir o funcionamento dos sistemas de


significação diversos da língua, segundo o próprio projeto de qualquer atividade estrutu-
ralista, que é construir um simulacro dos objetos observados. (BARTHES, 1968, p. 103).

Mas de signos trata Barthes? Certamente ele se refere à linguagem, instru-


mento de comunicação humana que é capaz de adquirir o sinônimo de poder
na esfera social:

O Poder é a libido dominandi, aí, está emboscado em todo e qualquer discurso,


mesmo quando este parte de fora do poder. (...) O Poder é parasita de um organismo
transsocial, ligado à história inteira do homem, e não somente à sua história política,
histórica. Esse objeto, em que se inscreve o Poder, desde toda a Antiguidade é: a
linguagem, e, para ser mais preciso, sua expressão obrigatória: a Língua. (Barthes,
1997, p. 10-12)

34 • capítulo 2
Antes de continuarmos nossa explanação, seria bom entendermos que quem
realiza os estudos de semiologia é o semiólogo. Quem ele e qual seu papel?

O Semiólogo seria, em suma, um artista (essa palavra não é, aqui, nem gloriosa, nem
desdenhosa, refere-se somente a uma tipologia): ele joga com os signos, como um
logro consciente, cuja fascinação saboreia, quer fazer saborear e compreender. (Bar-
thes, 1996, p. 40)

Se o semiólogo trabalha com signos, o que isso vem a ser? Isso significa que
ele deverá escolher o corpus e:

Para empreender essa pesquisa, é necessário aceitar francamente desde o início (e


principalmente no início), um princípio limitativo. Este princípio limitativo, mais uma vez
oriundo da Linguística, é o princípio da pertinência: decide-se o pesquisador a descre-
ver os fatos reunidos a partir de um só ponto de vista e, por conseguinte, a reter, na
massa heterogênea desses fatos, só os traços que interessam a esse ponto de vista,
com a exclusão de todos os outros (esses traços são chamados de traços pertinen-
tes); o fonólogo, por exemplo, só interroga os sons do ponto de vista do sentido que
produzem, sem ocupar-se da natureza física, articulatória; a pertinência escolhida pela
pesquisa semiológica concerne, por definição, à significação dos objetos analisados:
interrogamos os objetos unicamente sob a relação de sentido que detêm, sem fazer
intervir, pelo menos prematuramente, isto é, antes que o sistema seja reconstituído
tão longe quanto possível, os outros determinantes (psicológicos, sociológicos, físicos)
desses objetos; não devemos, é certo, negar esses outros determinantes, cada um dos
quais depende de outra pertinência; mas eles próprios devem ser tratados em termos
semiológicos, isto é, seu lugar e sua função devem ser situados no sistema do sentido:
a moda, por exemplo, tem claramente implicações econômicas e sociológicas; mas o
semiólogo não tratará nem da economia nem da sociologia da moda; dirá somente
em que nível do sistema semântico da moda, a Economia e a Sociologia encontram a
pertinência semiológica: no nível da formação do signo indumentário, por exemplo, ou
no das pressões associativas (tabus), ou no do discurso de conotação. O princípio de
pertinência acarreta evidentemente para o analista uma situação de imanência, pois
observa-se um dado sistema do interior (a partir do). (BARTHES, 1968, p. 103-104).

capítulo 2 • 35
CONCEITO
O corpus é uma coleção finita de materiais, determinada de antemão pelo analista, conforme
certa arbitrariedade (inevitável) em torno do qual ele vai trabalhar. Se desejarmos, por exem-
plo, reconstituir o sistema alimentar dos franceses de hoje, será preciso decidir antes o corpo
de documentos a ser analisado (cardápios de jornais? cardápios de restaurantes? cardápios
reais observados? cardápios “relatados”?) e, tendo definido esse corpus, devemos a ele ater-
nos rigorosamente: isto é, de um lado, nada acrescentar-lhe no decurso da pesquisa, mas
também esgotar-lhe completamente a análise, sendo que qualquer fato incluído no corpus de
reencontrar-se no sistema. (BARTHES, 1968, p. 104).

Ante o exposto, o corpus a ser analisado é formado por um conjunto de sig-


nos que, por sua vez, fazem parte de um sistema.

Todavia, como o sistema pesquisado não é conhecido de antemão em seus limites


(já que se trata precisamente de reconstruí-lo), a imanência só pode ter por objeto,
de início, um conjunto heteróclito de fatos que cumprirá “tratar” para conhecer-lhes a
estrutura; esse conjunto deve ser definido pelo pesquisador anteriormente à pesquisa:
é o corpus. (BARTHES, 1968, p. 104).

A pergunta quem fazemos é a mesma feita pelo semiólogo: “Como escolher


o corpus sobre o qual vamos trabalhar? ” (BARTHES, 1968, p. 104).

Podemos aqui aventurar-nos tão-somente a duas recomendações gerais. Por um lado,


o corpus deve ser bastante amplo para que se possa razoavelmente esperar que seus
elementos saturem um sistema completo de semelhanças e diferenças: é certo que
quando dissecamos uma sequência de materiais, ao cabo de certo tempo acabamos
por encontrar fatos e relações já referenciados (vimos que a identidade dos signos
constitui um fato da Língua); esses “retornos” são cada vez mais frequentes, até que
não se descubra nenhum material novo: o corpus está então saturado. Por outro lado,
o corpus deve ser o mais homogêneo possível; homogeneidade de substância, em
primeiro lugar; é claro que se tem interesse em trabalhar com materiais constituídos
por uma única e mesma substância, a exemplo da linguística que só trata da;

36 • capítulo 2
substância fônica assim também, idealmente, um bom corpus alimentar não deveria
comportar senão um único e mesmo tipo de documentos (os cardápios de restauran-
tes, por exemplo); a realidade, entretanto, apresenta mais comumente substâncias
misturadas; por exemplo, vestuário e linguagem escrita na moda; imagem música
e fala no cinema, etc.; aceitaremos, portanto, corpus heterogêneos, mas tendo o
cuidado, então de estudar meticulosamente a articulação sistemática das substâncias
envolvidas (sobretudo, de separar bem o real da linguagem que dele se incumbe),
isto é, dar à sua própria heterogeneidade uma interpretação estrutural; em seguida,
homogeneidade da temporalidade; em princípio, o corpus deve eliminar ao máximo
os elementos diacrônicos; deve coincidir com um estado sistemático, um “corte” da
história. (BARTHES, 1968, p. 104-105).

Da citação acima, depreendemos muitos elementos que precisam ser en-


tendidos porque deles é que se originam os resultados de uma pesquisa semio-
lógica, tais como o tal corte da história, levando em conta dados diacrônicos ou
sincrônicos. No entanto:

Sem entrar aqui no debate teórico acerca de sincronia e diacronia, diremos que,
de um ponto de vista operatório, o corpus deve abranger tão estritamente quan-
to possível, os conjuntos sincrônicos; preferir-se-á, pois, um corpus variado, mas
cingido no tempo, a um corpus estreito, mas de longa duração. E, por exemplo, se
se estudam os fatos de imprensa, uma amostragem dos jornais publicados num
mesmo momento à coleção de um mesmo jornal editado durante vários anos.
Certos sistemas estabelecem, por si mesmos, sua própria sincronia: a moda por
exemplo, que muda de ano em ano: para os outros, é preciso estabelecer temporali-
dade curta, com o inconveniente de se fazerem depois sondagens na diacronia. Essas
escolhas iniciais são puramente operatórias e, em parte forçosamente arbitrárias: não
podemos prever o ritmo de mudança dos sistemas, visto que o objetivo talvez essen-
cial da pesquisa semiológica (isto é, aquilo que será encontrado em último lugar) é
precisamente descobrir o tempo próprio dos sistemas, a história das formas. (BAR-
THES, 1968, p. 105-106).

Quando um semiólogo opta por tem como corpus o sistema da língua, sobre
o qual se debruçará para tecer sua análise, temos a concepção de semiologia

capítulo 2 • 37
como a ciência que estuda “a vida dos signos no seio da vida social” (SAUSSURE,
1989, p. 24)
Por isso, a semiologia também se ocupa em realizar estudos das diferen-
tes linguagens impressas nos diferentes gêneros linguísticos. De acordo com
Barthes, isso ocorre porque a língua

(...) apresenta-se ao indivíduo como um sistema preexistente, uma instituição social


que acumulou historicamente uma série de valores e sobre a qual, o indivíduo não tem
nenhuma ascendência enquanto indivíduo. (BARTHES, 1996, p.91)

Entretanto, Barthes realiza um tipo de semiologia que percebe a linguagem em


consonância com a subjetividade do eu – produtor do discurso e do sentido – em
face do meio social no qual o sujeito está inserido. Desse modo, os signos apare-
cem recobertos por uma lógica interna e dialogam entre si por meio da conotação.

2.2.1  Poder, Prazer e Leitura

De acordo com o estudo dos textos de Roland Barthes, percebemos que a se-
miologia vê a linguagem como uma expressão da subjetividade do eu ao mes-
mo tempo em que revela traços do meio social no qual o discurso é produzido,
revelando uma relação de poder com os elementos com os quais se relaciona.
Desse modo, Barthes revela o que considera discurso de poder:

(...) chamo discurso de poder todo discurso que engendra o erro e, por conseguinte, a cul-
pabilidade daquele que o recebe. Alguns esperam de nós, intelectuais, que nos agitemos a
todo momento contra o Poder; mas nossa verdadeira guerra está alhures: ela é contra os
poderes, e não é um combate fácil: pois, plural no espaço social, o poder é, simetricamen-
te, perpétuo no tempo histórico: expulso, extenuado aqui, ele reaparece ali; nunca perece;
façam uma revolução para destruí-lo, ele vai imediatamente reviver, re-germinar no novo
estado de coisas. A razão dessa resistência e dessa ubiquidade é que o poder é o parasita
de um organismo trans-social, ligado à história inteira do homem, e não somente à sua
história política, histórica. Esse objeto em que se inscreve o poder, desde toda eternidade
humana, é: a linguagem – ou, para ser mais preciso, sua expressão obrigatória: a língua. A
linguagem é uma legislação, a língua é seu código. (1992, p. 11-2)

38 • capítulo 2
Como se pode notar, mesmo que a língua e a linguagem não se coloquem
à disposição ou a favor do poder, é evidente que elas o refletem de certa forma,
querendo ou não, de modo implícito ou explícito. Então, o que podemos fazer
em relação ao poder?
Ao estudarmos os textos barthesianos teremos condições de, senão extin-
gui, pelo menos saber lutar contra as imposições do e pelo poder. Em qualquer
época ou a qualquer tempo, o texto serviu ou pode servir como propagador do
poder por meio do discurso que se constrói via linguagem.
No entanto, não se trata aqui de procurar estratégia para se acabar com o
poder, mas sim de angariar formas de se lidar com ele. Desse modo, cabe a nós
o papel crítico-reflexivo de ler o texto além do prazer e da fruição.
E por falar nisso, cabe relembrar as perguntas de Barthes: “O prazer não é
uma pequena fruição? A fruição é apenas um prazer extremo? ” (1987b, p. 28)
Tais perguntas não elucidam de forma alguma o que vem a ser prazer ou frui-
ção e não ajudam a delimitar seus campos de atuação. Para Barthes, “entre o pra-
zer e a fruição não há senão uma diferença de grau, digo também” (1987b, p. 29)
É possível estabelecer a diferença entre texto de prazer e texto de fruição? De
acordo com Barthes:

(...) o prazer e a fruição são forças paralelas, que elas não podem encontrar-se e que
entre elas há mais do que um combate: uma incomunicação, então me cumpre na
verdade pensar que a história, nossa história, não é pacífica, nem mesmo pode ser in-
teligente, que o texto de fruição surge sempre aí à maneira de um escândalo (de uma
claudicação), que ele é sempre o traço de um corte, de uma afirmação (e não de um
florescimento) e que o sujeito dessa história (esse sujeito histórico que eu sou entre
outros), longe de poder acalmar-se levando em conjunto o gosto pelas obras passa-
das e a defesa das obras modernas num belo movimento dialético de síntese, nunca
é mais do que uma “contradição viva”: um sujeito clivado, que frui ao mesmo tempo,
através do texto, da consistência de seu ego e de sua queda. (1987b, p. 29-30)

Arriscando uma diferenciação entre texto de prazer e texto de fruição, recor-


remos aos seus escritos. Vejamos:
•  Texto de prazer: “é aquele que contenta, enche, dá euforia; aquele que
vem da cultura, não rompe com ela, está ligado a uma prática confortável da
leitura” (1987b, p. 21)

capítulo 2 • 39
•  Texto de fruição: (...) é aquele que põe em estado de perda, aquele que
desconforta, faz as bases históricas, culturais, psicológicas, do leitor, a consis-
tência de seus gastos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise
sua relação com a linguagem. (1987b, p. 22)
Ou seja, segundo Barthes, “o texto da fruição é apenas o desenvolvimento lógico,
orgânico, histórico” (1987b, p. 29-30), é uma espécie de prazer da fala. (1987b, p. 82)
E quanto á leitura? Como ela se instala? Ora se pensarmos que a “individua-
lidade se instala na fala” (1987b, p. 82), podemos entender que a leitura tam-
bém se instala na individualidade daquele que a realiza, por isso:

(...) o fetichista concordaria com o texto cortado, com a fragmentação das citações,
das fórmulas, das cunhagens, com o prazer da palavra. O obsessional teria a voluptuo-
sidade da letra, das linguagens segundas, desligadas, das metalinguagens (linguis-
tas, semióticas, filólogos). O paranoico consumiria ou produziria textos retorcidos. O
histérico seria aquele que se joga através do texto. (1987b, p. 82),

E para você que tipo de leitura se faz mais adequada? O tipo de leitura não
importa. Basta saber que se deve cultivar o prazer da leitura, desconsiderando:

a ideia bizarra de que o prazer é coisa simples, e é por isso que o reivindicam ou o
desprezam. O prazer, entretanto, não é um elemento do texto, não é um resíduo ingê-
nuo; não depende de uma lógica do entendimento e da sensação; é uma deriva, qual-
quer coisa que é ao mesmo tempo revolucionário e associal e que não pode ser fixada
por nenhuma coletividade, nenhuma mentalidade, nenhum idioleto. (1987b, p. 32)

2.2.2  A Morte do Autor

Como instituição, o autor está morto: sua pessoa civil, passional, biográfica, desapa-
receu; desapossada, já não exerce sobre sua obra a formidável paternidade que a
história literária, o ensino, a opinião tinha o encargo de estabelecer e de renovar a
narrativa (...) (Barthes, 1987b, p. 37)

40 • capítulo 2
Neste ponto do capítulo vamos tratar da questão do autor. Mas uma pergun-
ta sempre se dá quando se pensa em autor, narrador, narrador-personagem....
Então, que é o autor?

O autor é uma personagem moderna, produzida sem dúvida pela nossa sociedade, na
medida em que, ao terminar a idade Média, com o empirismo inglês, o racionalismo
francês e a fé pessoal da Reforma, ela descobriu o prestigio pessoal do indivíduo, ou
como se diz mais nobremente, da «pessoa humana». É, pois, lógico que, em matéria
de literatura, tenha sido o positivismo, resumo e desfecho da ideologia capitalista, a
conceder a maior importância à «pessoa» do autor. (BARTHES, 2004)

O autor é o pai da obra, aquele que põe no mundo o seu pensamento, suas
reflexões, ou as dos outros, por meio de discursos retóricos, filosóficos existen-
ciais ou simplesmente, mas não tão simples assim, literário. Mas nem sempre
foi assim. O autor não existia, já que:

(...) o sentimento deste fenômeno tem sido variável; nas sociedades etnográficas não
há nunca uma pessoa encarregada da narrativa, mas um mediador, châmane ou reci-
tador, de que podemos em rigor admirar a prestação (quer dizer, o domínio do código
narrativo), mas nunca o gênio. (BARTHES, 2004)

CONCEITO
Châmane é sinônimo de guardião da cultura, fazendo o papel de mediador entre o mundo
existencial e a humanidade por guardar informações privilegiadas.

A morte do autor é o título de um texto de Roland Barthes, publicado na


obra O Rumor da Língua. Nele, Barthes discute a questão da existência do autor
e acaba por considerar que a morte do autor é inerente à própria escrita, ou
seja, à medida em que o texto é escrito, o autor morre aos poucos para dar vida
ao discurso pelo qual o próprio texto se constitui. Desse modo, o texto seria
uma espécie de buraco negro onde o autor cai e se perde, perde sua voz, sua
identidade... morre...

capítulo 2 • 41
Sem dúvida que foi sempre assim: desde o momento em que um fato é contado,
para fins intransitivos, e não para agir diretamente sobre o real, quer dizer, finalmente
fora de qualquer função que não seja o próprio exercício do símbolo, produz-se este
desfasamento, a voz perde a sua origem, o autor entra na sua própria morte, a escrita
começa. (BARTHES, 2004)

A escrita é o que resta da figura do autor, como se essa não precisasse de


nada nem de ninguém para sobreviver já que ela própria é uma construção lin-
guística que joga com os sentidos que constrói apesar de e contra a vontade do
autor. O que resta senão a escrita? Talvez o leitor?
Podemos dizer que coube ao movimento surrealista dar cabo da figura do
autor ao confiar à mão a preocupação de escrever tão depressa quanto possível
o que a própria cabeça ignora (era a escrita automática) (...). (BARTHES, 2004).
Mas é só na literatura que o autor morre, sem chance de um último adeus?
Não. Até mesmo

(...) a linguística acaba de fornecer à destruição do Autor um instrumento analítico pre-


cioso, ao mostrar que a enunciação é inteiramente um processo vazio que funciona na
perfeição sem precisar de ser preenchido pela pessoa dos 'interlocutores'; linguistica-
mente," o autor nunca é nada mais para além daquele que escreve,' tal' como eu não
é senão aquele que diz eu: a linguagem conhece um «sujeito», não uma «pessoa», e
esse sujeito, vazio fora da própria enunciação que o define, basta para fazer «suportar»
a linguagem, quer dizer, para a esgotar. (BARTHES, 2004)

No entanto, apesar da morte:

O autor reina ainda nos manuais de história literária, nas biografias de escritores,
nas entrevistas das revistas, e na própria consciência dos literatos, preocupados em
juntar, graças ao seu diário íntimo, a sua pessoa e a sua obra; a imagem da literatura
que podemos encontrar na cultura corrente é tiranicamente centrada no autor, na sua
pessoa, na sua história, nos seus gostos, nas suas paixões; (...) a explicação da obra é
sempre procurada do lado de quem a produziu, como se, através da alegoria mais ou
menos transparente da ficção, fosse sempre afinal a voz de uma só e mesma pessoa,
o autor, que nos entregasse a sua «confidencia». (BARTHES, 2004)

42 • capítulo 2
ATIVIDADES
01. De maneira bem simplificada, como funciona a desconstrução?

02. O que é semiologia?

03. Qual é o objetivo da pesquisa semiológica?

04. Comente a citação abaixo, levando em conta nossos estudos.


“O prazer do texto seria irredutível a seu funcionamento gramatical (feno-textual), como
o prazer do corpo é irredutível à necessidade fisiológica.”
BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1987.

REFLEXÃO
Neste capítulo, a estudamos a “desconstrução” do texto proposta Jacques Derrida, como
estratégia de análise.
Também vimos o texto em sua produção, funcionamento e recepção dos textos sob a
perspectiva da semiologia baseada nos estudos de Roland Barthes.
Por fim, verificamos como se opera a morte do autor para dar vida à escrita por meio da
linguagem, que se manifesta na relação entre leitura e prazer.

LEITURA
CULLER, Jonathan. Sobre a Desconstrução: teoria e crítica do pós-estruturalismo. Trad. Pa-
trícia Burrowes. Rio de Janeiro: Record; Rosa dos Tempos, 1997.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARTHES, Roland. Elementos de semiologia. 4. ed. São Paulo: Cultrix, 1996.
BARTHES, Roland. Aula. 7. ed. São Paulo: Cultrix, 1997.
BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Tradução de Júlio Castañon Guimarães.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

capítulo 2 • 43
BARTHES, Roland. Crítica e verdade. Lisboa: Edições 70, 1987.
BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1987b.
BARTHES, Roland. O Rumor da Língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
BARTHES, Roland. Aula. 6. ed. Trad. Leila Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 1992.
CEIA, Carlos. E-Dicionário de Termos literários, 2010. Disponível em: <http://www.edtl.com.pt/>.
Acesso em: 16 mar. 2016.
COSTA, Rogério da (Org.). Limiares do Contemporâneo: entrevista. São Paulo: Editora Escuta, 2003.
CULLER, Jonathan. Teoria Literária: uma introdução. Sandra Vasconcelos. São Paulo: Becca, 1999.
DERRIDA, Jacques. A Farmácia de Platão. Trad. Rogério Costa. São Paulo: Iluminuras, 2005.
DERRIDA, Jacques. Gramatologia. Trad. Miriam Chnaiderman e Renato Janine Ribeiro. São Paulo:
Perspectiva, 2004.
DERRIDA, Jacques. A Escritura e a Diferença. Trad. Maria Beatriz Marques Nizza da Silva. São
Paulo: Perspectiva, 2002.
DERRIDA, Jacques. Mal de Arquivo: uma impressão freudiana. Trad. Claudia de Moraes Rego. Rio de
Janeiro: Relume Dumará, 2001.
DERRIDA, Jacques. Posições. Trad. Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte, MG: Autêntica, 2001.
DERRIDA, Jacques. A Voz e o Fenômeno: introdução ao problema do signo na fenomenologia de
Husserl. Trad. Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.
DERRIDA, Jacques. Margens da Filosofia. Trad. Joaquim Costa, António M. Magalhães. Campinas,
SP: Papirus, 1991.
NORRIS, Christopher. Derrida. Cambridge : Harvard University Press, 1987.
PERRONE-MOISÉS. O efeito Derrida. In. Inútil Poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
RAJAGOPALAN, Kanavillil. Ética da Desconstrução. In: NASCIMENTO, Evandro GLENADEL, Paula
(Orgs.). Em Torno de Jacques Derrida. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2000.
RAMOS, Roberto José. Roland Barthes: a semiologia da dialética. In: Comunicação e Cultura, UCS,
Caxias do Sul, 2008.

44 • capítulo 2
3
Teoria da Leitura
3.  Teoria da Leitura
Neste capítulo, você estudará a estética da recepção sob a perspectiva de Wolf-
gang Iser e Hans Robert Jaus. Primeiramente, vamos buscar conhecer como se
processa a teoria acerca da estética da recepção.
O foco se dá sobre a posição do leitor quanto ao ato interpretativo do texto
literário e os fundamentos da estética da recepção, de acordo com a perspectiva
de Wolfgang Iser e Hans Robert Jauss, serão importantes para entender todo
o processo.
Por fim, veremos a teoria do efeito estético e a estética da recepção no Brasil, se-
gundo a qual o texto literário se concretiza em contato com o leitor que produz
nele um modo individual a partir da leitura que realiza.

OBJETIVOS
Nosso objetivo você seja capaz de
•  Conhecer como se processa a teoria acerca da estética da recepção;
•  Entender a posição do leitor quanto ao ato interpretativo do texto literário;
•  Conhecer os fundamentos da estética da recepção de acordo com a perspectiva de Wolf-
gang Iser e Hans Robert Jauss;
•  Entender a teoria do efeito estético segundo a qual o texto literário se concretiza em conta-
to com o leitor que imprime nele um caráter individual a partir da leitura que realiza;
•  Conhecer um pouco da estética da recepção no Brasil.

3.1  Estética da Recepção

A estética da recepção é proveniente da Alemanha, no final da década de 1960,


como uma forma de escola de teoria literária pós-estruturalista. Já em 1964, crí-
ticos da Universidade de Konstanz, na Alemanha, onde teve sua origem, princi-
piaram por apregoar as suas dissertações na revista alemã intitulada Poética e
hermenêutica – do original Poetik und hermeneutik.
A estética da recepção tem, hoje, dois grandes nomes a serem estudados por
destacarem a posição do leitor quanto ao ato interpretativo do texto literário:
Wolfgang Iser e Hans Robert Jauss.

46 • capítulo 3
Figura 3.1  –  Wolfgang Iser. Fonte: Ivo Hadzhimishev.

AUTOR
Professor Wolfgang Iser of the Department of English, University of California, Irvine, died on
January 24, 2007, in Constance, Germany. At the time of his death, Professor Iser was one
of the most prominent literary theorists in the world.
(…)
In the United States Iser had a major impact on the field of literary studies with the publi-
cation of The Implied reader (1972) and The act of reading (1978), a translation of Der akt
des lesens (1976). It was in 1976 that Iser first came to UC Irvine, as a visiting Professor of
German. In 1978 he became a permanent member of the UCI faculty in the Department of
English and Comparative Literature, dividing his time between Constance and Irvine. Along
with Murray Krieger, J. Hillis Miller, Jean-Francois Lyotard, and Jacques Derrida, he helped
make UCI one of the most important centers of literary theory in the world. Expanding on his
groundbreaking work on the effect of literature on the reader, he explored new territory by
developing the field of "literary anthropology," which speculates on how literature functions
in the human experience. This phase of his career resulted in Prospecting (1989) and The
Fictive and the imaginary. (1993).
(…)
Brook Thomas
Chancellor’s Professor of English
Disponível em: <http://senate.universityofcalifornia.edu/
inmemoriam/wolfgangiser.htm>. Acesso em: 18 mar. 2016.

capítulo 3 • 47
Professor Wolfgang Iser do Departamento de Inglês da Universidade da Califórnia, Irvine,
morreu em 24 de janeiro de 2007, em Constance, Alemanha. No momento da sua morte,
Professor Iser era um dos teóricos literários mais importantes do mundo.
(...)
Nos Estados Unidos, Iser teve um grande impacto no campo dos estudos literários com a
publicação de O leitor implícito (1972) e The act of reading (1978), uma tradução de Der akt
des lesens (1976). Foi em 1976 que Iser veio primeiro a UC Irvine como professor visitante
de alemão. Em 1978, tornou-se membro permanente do corpo docente UCI do Departamen-
to de Inglês e Literatura Comparada, dividindo seu tempo entre Constance e Irvine. Junto
com Murray Krieger, J. Hillis Miller, Jean-François Lyotard e Jacques Derrida, ele ajudou a
tornar UCI um dos centros mais importantes da teoria literária no mundo. Expandindo seu
trabalho inovador sobre o efeito da literatura sobre o leitor, ele explorou um novo território,
desenvolvendo o campo da "antropologia literária", que especula sobre como funciona a
literatura na experiência humana. Esta fase de sua carreira resultou em Prospecção (1989)
e O fictícia e o imaginário. (1993).
(...)

Segundo os estudos realizados pela estética da recepção, toda e qualquer obra


de arte, literária ou não, só se torna viva ou materializada, pela ação do leitor em
validar a obra como arte pela leitura que é capaz de realizar. Há uma espécie de
comunicações dialógica entre o texto e o leitor, por isso “o texto ficcional deve
ser visto principalmente como comunicação, enquanto a leitura se apresenta em
primeiro lugar como uma relação dialógica.” (ISER, 1996, p. 123).
Nesta perspectiva, o leitor é privilegiado enquanto autor e texto são deixados
de lado, como elementos secundários, já que o objetivo da estética da recepção
é defender a importância do leitor no que diz respeito à recepção crítica de uma
obra de arte literária. Para realizar tal intento, os críticos da estética da recepção
precisaram encontrar quais seriam as perspectivas, as probabilidades de inter-
pretação da obra de arte, já que os leitores, muitas vezes, são determinados ou
até mesmo dependentes das leituras que já efetivaram e com as quais uma nova
teria que dialogar, principalmente quando as obras coabitam um mesmo gênero
ou contexto literário. Desse modo, Hans Robert Jauss destaca que:

48 • capítulo 3
Se se olhar a história da literatura no horizonte do diálogo entre obra e público, diálo-
go responsável pela construção de uma continuidade, deixará de existir uma oposição
entre aspectos históricos e aspectos estéticos, e poderá restabelecer-se a ligação
entre as obras do passado e a experiência literária de hoje que o historicismo rompeu
(JAUSS, 1994, p. 57-58).

Figura 3.2  –  Hans Robert Jauss. Fonte: <http://www.uv.mx/semiosis/>.

A estética da recepção aparece como uma forma de defesa do leitor, como


peça importante na recepção da obra, fugindo do estigma da condição social
de mero receptor, para assumir um papel ativo na formação da obra literária,
já que ela só se consolida por meio de sua leitura, que é subjetiva e individual.
Por falar em subjetividade, não podemos deixar de lado a relação íntima que
se estabelece entre leitor e obra por aversão ou por prazer, ou seja: “A leitura só
se torna um prazer no momento em que nossa produtividade entra em jogo, ou
seja, quando os textos nos oferecem a possibilidade de exercer as nossas capa-
cidades ” (ISER, 1999, p.10).
Agora o foco não é apenas e tão somente o estudo do autor e ou das condi-
ções em que a obra foi produzida. Agora, é o leitor é que recebe destaque, pois é
ele quem decide qual é a acepção ou o sentido de um texto. Assim:

capítulo 3 • 49
Deslocando a atenção do texto para o leitor, o estudioso norte-americano procura
estabelecer o conjunto de regras ou o sistema que rege a leitura e a interpretação
da obra literária. Como se vê, trata-se de uma confluência entre o estruturalismo e
a teoria da recepção, cujo expoente mais famoso é Hans Robert Jauss (TEIXEIRA,
1998, p. 37).

De acordo com Iser, mediante o contato com o texto o leitor é capaz de es-
tabelecer suas representações mentais. Pode-se dizer que a especificidade ou
a qualidade estética de um texto literário advém da estrutura por meio da qual
se realiza, de como se organiza, uma vez que as experiências reais de leitura são
possíveis por causa dessas estruturas textuais. Por isso, “O papel do leitor re-
presenta, sobretudo, uma intenção que apenas se realiza através dos atos esti-
mulados no receptor. Assim entendidos, a estrutura do texto e o papel do leitor
estão intimamente ligados” (ISER, 1996, p.75).
Indo um pouco mais além, a escola americana que trata da estética da re-
cepção revela o esgotamento do entendimento do texto como uma entidade
objetiva e vê no leitor alguém capaz de atuar sobre o próprio texto alterando seu
sentido, perpassando os campos da mera interpretação. Isso ocorre porque:

A maneira pela qual uma obra literária, no momento histórico de sua aparição, atende,
supera, decepciona ou contraria as expectativas de seu público inicial oferece-nos cla-
ramente um critério para a determinação de seu valor estético (JAUSS, 1994, p. 31).

Do ponto de vista da estética da recepção, o texto literário assumiria a forma


de um pacto entre autor e eleitor. Nesse contexto, Wolfgang Iser prescreve duas
espécies de leitor – um implícito e um real – com o qual o autor vai se relacionar
ao produzir uma obra.
Stanley Fish é o principal representante da estética da recepção americana
e, para ele:

A literatura é o fruto de uma maneira de ler, de um pacto comunitário acerca daquilo


que deverá contar como literatura, que leva os membros da comunidade a prestar
certo tipo de atenção a criarem literatura. (Tradução nossa)

50 • capítulo 3
Ora, se a literatura é o fruto de uma maneira de ler, entendemos que a leitu-
ra não é uma atividade precisa, inerte, que se repete ad infinitum. Desse modo,
a estética da recepção deve se ater ao processo de leitura tal como ele se dá,
quanto aos vários tipos de texto, sejam eles literários ou não literários, pois até:

A nova historiografia literária não demanda hipóteses gerais permanentes, mas


formulações transitórias de validade limitada, que, mesmo assim, correspondem a con-
sensos intersubjetivos negociáveis por comunidades científicas quanto a estratégias
eficientes na solução de questões sentidas como problemáticas em função de certos
interesses e paixões (OLINTO, 1996, p. 17).

É interessante pensar a relação autor/leitor diante do processo de leitura,


pois podemos dizer que a escrita só se consolida por meio da leitura e o autor só
ganharia espaço dentro de um ambiente em que o leitor o faz reviver por meio
da leitura de seu texto.
Costumamos dizer que um texto é sempre morto e pobre em si mesmo,
uma vez que este só vive pela leitura que se faz dele e só se torna rico quando o
leitor pode dialogar com ele, extraindo dele elementos nos para sua formação
humanística enquanto colabora com o texto ao imprimir nele suas próprias im-
pressões e percepções.
Como se vê, o leitor, na verdade, só existe a partir do momento que uma obra
literária vem ao mundo pelas mãos e pela mente criadora de um autor. Isso justi-
fica o fato de sempre termos considerado o autor em posição de destaque. Diante
disso, podemos perceber que, de acordo com Stanley Fish (1993, p. 156):

Os significados não são propriedades nem de textos fixos e estáveis, nem de leitores
livres e independentes, mas de comunidades interpretativas que são responsáveis tanto
pela forma das atividades do leitor quanto pelos textos que estas atividades produzem.

Por falar em comunidades interpretativas, até agora fizemos comentários


sobre o leitor, mas uma pergunta se faz pertinente: qual é o papel do crítico sob
a perspectiva da estética da recepção? Será o crítico um escritor em sua origem
e atividade?

capítulo 3 • 51
Não podemos ver o crítico como alguém que só escreve sobre os textos.
Antes disso, ele precisa ser leitor dos textos que pretende criticar, bem como
de outros, de ordem teórico-crítica, já que seus estudos não podem se basear
em simples impressões ou mero achismo. Então, antes de tudo, o crítico deve
se constituir como leitor fazendo com que os textos que formam seu corpus
ganhem forma e sentido por meio da leitura que é capaz de realizar.
Vimos, em capítulos anteriores, que o crítico poderia assumir uma estratégia
de desconstrução do texto para analisar de que modo se processa sua estrutu-
ra. Vimos também que ele pode analisar a obra mediante certa perspectiva, mas
aqui, na estética da recepção, o crítico vai procurar entender a natureza do texto
por meio da leitura – ou das leituras – realizada por um leitor ou vários leitores.
A leitura não é mais concebida como mera decodificação daquilo que está
escrito, também não vai considerar o texto como objeto de gosto, com o qual o
leitor se identificaria por causa de um tema, por exemplo. Pensando assim, não
podemos separar o crítico da leitura, uma atividade necessária e valiosa quanto
aos aspectos relevantes da estética da recepção, pois podemos fazer leitura por
simples prazer ou podemos realizar uma leitura crítica, não apenas como de-
ver, mas sim como um poder que a nós, críticos, é conferido.
Qual seria, então, a diferença entre o leitor comum e o leitor-crítico ou crí-
tico-leitor? O que difere um do outro é a forma de atuação, já que o crítico é
especializado no assunto sobre o qual se debruça e também realiza uma leitura
mais atenta, com o olhar voltado para a natureza do próprio processo, já que
tem por objetivo explanar o texto no que tem de especifico bem como revelar
seu olhar, expondo seu ponto de vista.
É certo que a proposta inicial da estética da recepção é dar ao leitor um
papel de destaque bem mais importante do que o papel do autor ou do texto
literário. Pensando assim, autor e texto teriam sua existência subordinada à
existência de um leitor. Isso quer dizer que sem leitor não existe autor nem obra
literária? Talvez sim, de acordo com o ponto de vista da estética da recepção, no
entanto devemos considerar o leitor como um elemento importante dentro de
um processo de escrita e leitura que o tripé autor-obra-leitor pressupõe. Desse
modo, talvez seja adequado não tratar o leitor como um soberano detentor de
todo o poder perante autor e obra ou, como entende Carlos Ceia:

52 • capítulo 3
O papel do leitor crítico não deve ser intervir na produção da obra de arte, interferir no
trabalho do autor, emitir juízos de valor sobre a obra criada a fim de situá-la em qual-
quer lista de referência. Se um leitor trabalha criticamente um texto, não modifica em
nada a razão em que o autor desse texto quis assumi-lo como obra de arte, por isso
nenhum texto literário nem nenhum autor dependem da existência eventual de um
leitor. Só podemos falar com rigor de dependência existencial na razão inversa: não há
leitores sem previamente existirem autores e textos para serem lidos.

Ante o exposto, cabe aqui um parêntese quanto à história da literatura.


Temos visto constantemente uma história da literatura que esquece de con-
siderar em suas ponderações a estética da criação literária. Isso ocorre porque,
comumente, tem-se o costume de tratar as obras consideradas cânones de for-
ma isolada ou, ainda, de analisar as obras de acordo com a vida do autor que
a compôs. Muitas vezes, o que vemos na historiografia literária é a desconsi-
deração quanto à estética e à historicidade das obras, considerando, apenas a
cronologia de escrita ou de publicação.
No entanto, devemos entender que:

a qualidade e a categoria de uma obra literária não resultam nem das condições histó-
ricas ou biográficas de seu nascimento, nem tão somente de seu posicionamento no
contexto sucessório no desenvolvimento de um gênero, mas sim dos critérios da recep-
ção, do efeito produzido pela obra e de sua fama na posteridade (JAUSS, 1994, p.8).

Perante essa problemática, o ideal é que a estética da recepção trabalhe com


elementos diacrônicos e sincrônicos para que haja amplo entendimento acer-
ca da obra, pois:

A experiência literária não deve ser pensada apenas por meio do aspecto diacrônico,
não devendo confrontar somente os horizontes de expectativas de um mesmo texto
através do tempo, mas verificar as relações que se estabelecem entre os horizontes
de expectativas de diferentes obras simultâneas (AGUIAR, 1996, p. 29).

capítulo 3 • 53
Criar diferentes expectativas acerca de diferentes obras é o mesmo que pro-
porcionar novas aberturas na esfera do conhecimento estético do leitor, reve-
lando a obra literária como um elemento emancipatório no que diz respeito à
relação entre literatura e vida. Isso quer dizer que, dentro do processo de leitu-
ra, há a interação de expectativas prévias modificadas pela leitura, ao mesmo
tempo que alguns fatos podem sofrer transformações quando rememorados.
Lembramos, aqui, que a literatura não tem como pressuposto a função de en-
sinar algo, mas ela pode suscitar em nós, leitores, experiências capazes de nos
transformar enquanto indivíduos dotados de humanidade. Isso quer dizer que a
literatura pode, embora essa não seja a intenção, assumir uma função psicológi-
ca e até social à medida que nos permite dialogar com as diversas verdades exis-
tentes na literatura e na vida, ou seja, “a função social somente se manifesta na
plenitude de suas possibilidades quando a experiência literária do leitor adentra
o horizonte de expectativas de sua vida prática” (JAUSS, 1994, p. 50).
O texto, então, proporciona distintas visões acerca de um mesmo objeto,
diante das várias possibilidades de leitura uma vez que:

(...) cada perspectiva não apenas permite uma determinada visão do objeto intenciona-
do, como também possibilita a visão das outras. Essa visão resulta do fato de que as
perspectivas referidas no texto não são separadas entre si, muito menos se atualizam
paralelamente (ISER, 1996, p. 179).

3.2  Teoria do Efeito Literário

A literatura tem uma existência dupla e heterogênea que se concretiza somente pela
leitura. O objeto literário autêntico é a própria interação do texto com o leitor, um
esquema virtual em que o texto instrui e o leitor constrói.
COMPAGNON, 2001, p. 150

A teoria do efeito estético deriva dos estudos de Wolfgang
Iser quanto à esté-


tica da recepção, segundo a qual o texto literário se concretiza em contato com

54 • capítulo 3
o leitor que imprime nele um caráter individual a partir da leitura que realiza,
pois, para Iser, “a obra literária tem dois polos, (...) o artístico e o estético: o polo
artístico é o texto do autor e o polo estético é a realização efetuada pelo leitor”
(ISER, 1996, p. 51).
Segundo Iser:

(...)a recepção e o efeito estético formam os princípios centrais da estética da


recepção, que, em face de suas diversas metas orientadoras, operam com métodos
histórico-sociológicos (recepção) ou teorético-textuais (efeito). A estética da recep-
ção alcança, portanto, a sua mais plena dimensão quando essas duas metas diversas
se interligam (ISER, 1996, p.7).

Conforme revela Compagnon, "os estudos recentes da recepção interes-


sam-se pela maneira como uma obra afeta o leitor, um leitor ao mesmo tempo
passivo e ativo, pois a paixão do livro é também a ação de lê-lo" (2001, p.147).
Embora Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser compartilhem da opinião de
que o texto literário só se concretiza e passa a existir a partir da ação do leitor,
há uma diferença quanto à perspectiva de abordagem do texto.
Para Jauss, o texto literário estaria amarrado ao momento histórico no qual
foi produzido. A esta perspectiva, chamamos de historicidade literária. No en-
tanto, Jauss reconhece que:

(...) a relação entre literatura e leitor possui implicações tanto estéticas quanto
históricas. A implicação estética reside no fato de a recepção primária de uma obra
pelo leitor encerrar uma avaliação de seu valor estético, pela comparação com outras
obras já lidas. A implicação histórica manifesta-se na possibilidade de, numa cadeia
de recepções, a compreensão dos primeiros leitores ter continuidade e enriquecer-se
de geração em geração, decidindo, assim, o próprio significado histórico de uma obra
e tornando visível sua qualidade estética (JAUSS, 1994, p. 23).

Para Iser, o texto literário exibe uma composição de convite ao leitor para
que se insira no processo de leitura e isso contribui para que o efeito estético
aconteça, proporcionando uma reação do leitor de acordo com a leitura que
realiza. Ele, porém, ressalta que:

capítulo 3 • 55
É claro que a própria obra não pode ser idêntica ao texto nem à sua concretização,
mas deve situar-se em algum lugar entre os dois. Ela deve inevitavelmente ser de
caráter virtual, pois não pode reduzir-se nem à realidade do texto nem à subjetividade
do leitor, e é dessa virtualidade que ela deriva seu dinamismo. Como o leitor passa por
diversos pontos de vista oferecidos pelo texto, ele relaciona suas diferentes visões a
esquemas (ISER, 1996, p. 48).

Iser, em seu livro O
ato da
leitura, defende a ideia de que a leitura não é um
simples ato do leitor para com o texto, mas sim um processo por meio da qual o
texto se releva ao receptor mediante sua estrutura.

A leitura, de fato, parece ser a síntese da percepção e da criação; ela coloca ao mes-
mo tempo a essencialidade do sujeito e do objeto. O objeto é essencial porque rigoro-
samente transcendente, porque impõe as suas estruturas próprias e porque se deve
esperá-lo e observá-lo; mas o sujeito também é essencial porque é necessário, não
só para desvendar o objeto (isto é, para fazer com que haja um objeto), mas também
para que esse objeto seja em termos absolutos (isto é, para produzi-
-lo). Em suma, o leitor tem consciência de desvendar e ao mesmo tempo de criar; de
desvendar criando, de criar pelo desvendamento. Não se deve achar, com efeito, que
a leitura seja uma operação mecânica, que o leitor seja impressionado pelos signos
como a placa fotográfica pela luz (SARTRE, 2006, p.37).

Quando se fala em leitor, precisamos ter claro de qual figura estamos tra-
tando, pois temos algumas diferenciações que vale a pena conhecer. Temos
o leitor em ascendência ou descendência, no entanto ambos vão desembocar
numa espécie de leitor ideal, pois:

O leitor idealizado pelo modelo ascendente é aquele que analisa cuidadosamente o


input visual e que sintetiza o significado das partes menores para obter o significado
do todo. O leitor idealizado pelo modelo descendente é aquele que se apoia principal-
mente em seus conhecimentos prévios e em sua capacidade inferencial para fazer
predições sobre o que o texto dirá, utilizando os dados visuais apenas para reduzir

56 • capítulo 3
incertezas. Tanto no primeiro como no segundo modelo pretendem descrever os
comportamentos do leitor ideal e são calcados em observações empíricas de sujeitos
leitores tanto proficientes como também ineficientes (KATO, 1999, p.66).

De acordo com a teoria do efeito de Iser, leitor fictício é aquele que “sim-
plesmente revela as normas prevalecentes da época, formando uma base ques-
tionável pela qual a comunicação deve ser construída” (ISER, 1996, p.153), pois
“é uma espécie de personificação de visões e expectativas históricas, quando há
o propósito de submetê-las a influências modificadoras de outras perspectivas,
todas agindo interativamente” (ISER, 1996, p.153).
De tal ponto de vista, podemos depreender que a postura do leitor, no que
diz respeito à teoria do efeito, apresentar uma brandura de espírito capaz de
permitir um ponto de vista amplo, já que:

O tipo de leitor que a literatura afetará mais profundamente é o que já está equi-
pado com a capacidade e as reações “adequadas”; aquele que é eficiente em ope-
rar certas técnicas de crítica e reconhecer certas convenções literárias. Mas este é
precisamente o tipo de leitor que menos precisa ser atingido. Tal leitor é “transfor-
mado” desde o início e está pronto a arriscar-se a novas transformações exa-
tamente por esta razão. Para ler “eficientemente” a literatura, devemos exercer
certas capacidades críticas, que sempre são definidas de maneira problemática.

Mas são precisamente essas capacidades que a “literatura” não poderá colocar em
questão, porque a sua existência depende delas. Aquilo que definimos como obra “literá-
ria” estará sempre relacionada de perto com aquilo que consideramos técnicas críticas
“adequadas”: uma obra “literária” significará, aproximadamente, a obra que pode ser
utilmente esclarecida por esses métodos de indagação (EAGLEATON, 2006, p.121).

Em sua obra O ato da leitura, Iser destaca a existência de seis tipos de leitor:
1. Leitor ideal: é uma invenção, uma ficção. O leitor ideal é aquele deveria
compartilhar do mesmo código do autor.

capítulo 3 • 57
O leitor ideal representa uma impossibilidade estrutural da comunicação, pois um
leitor ideal deveria ter o mesmo código que o autor. Mas como o autor transcodifica
normalmente os códigos dominantes nos seus textos, o leitor ideal deveria ter as mes-
mas intenções que se manifestam nesse processo. Se supormos que isso é possível,
então a comunicação se revela como supérflua, pois ela comunica algo que resulta da
falta de correspondência entre os códigos de emissor e receptor (ISER, 1996, p. 65).

2. Leitor contemporâneo: pode ser encarado como aquele que

(...) se encontra na leitura em uma situação que lhe é estranha, pois a validade do
familiar parece suspensa. Na relação dialógica entre texto e leitor, esse vazio, contudo,
atua como energia que provoca a produção de condições de comunicação, desse
modo, constitui-se um padrão de situações através do qual o texto e o leitor alcançam
uma convergência (ISER, 1996, p. 123).

3. Arquileitor: é o leitor capaz de captar o fato estilístico apresentado pelo


autor, de acordo com a densidade de codificação que o texto apresenta.
4. Leitor informado: é aquele que pratica a auto-observação do conjunto
de reações que o texto estimula, justamente com o propósito de ampliar o cam-
po da informação e da sua competência como leitor, pois:

Assim como em toda experiência real, também na experiência literária que dá a


conhecer pela primeira vez uma obra até então desconhecida há um saber prévio, ele
próprio um momento dessa experiência, com base no qual o novo de que tomamos
conhecimento faz-se experienciável, ou seja, legível, por assim dizer, num contexto ex-
periencial. Ademais, a obra que surge não se apresenta como novidade absoluta num
espaço vazio, mas, por intermédio de avisos, sinais visíveis e invisíveis, traços familia-
res ou indicações implícitas, predispõe seu público para recebê-la de uma maneira
bastante definida. (JAUSS,1996, p. 28).

5. Leitor intencionado: é aquela ideia de leitor construída na mente do


autor durante o processo de escritura.

58 • capítulo 3
6. Leitor implícito: é aquele que congrega direções internas impostas e
expostas pelo texto ficcional, configurando uma estrutura textual que precipita
a existência de um receptor para justificar, por assim dizer, a subjetividade im-
pressa na recepção. Isto quer dizer que:

A concepção do leitor implícito designa então uma estrutura do texto que antecipa a
presença do receptor. O preenchimento desta forma vazia e estruturada não se deixa pre-
judicar quando os textos afirmam por meio de sua ficção do leitor que não se interessam
por um receptor ou mesmo quando, através das estratégias empregadas, buscam excluir
seu público possível. Desse modo, a concepção de leitor implícito enfatiza as estruturas de
efeitos do texto, cujos atos de apreensão relacionam o receptor a ele (ISER, 1996, p. 73).

Como se pode verificar, para Iser (1996, p.79) “A compreensão de leitor im-
plícito descreve, portanto, um processo de transferência pelo qual as estruturas
do texto se traduzem nas experiências do leitor através dos atos de imagina-
ção”. Por falar em imaginação, Iser explica que o leitor implícito:

Não tem existência real; pois ele materializa o conjunto das preorientações que um
texto ficcional oferece como condições de recepção a seus leitores possíveis. Em
consequência, o leitor implícito não se funda em um substrato empírico, mas sim na
estrutura do texto (...). A concepção de leitor implícito designa então uma estrutura do
texto que antecipa a presença do receptor (ISER, 1996, p.73).

Iser nos chama a atenção para que não haja confusão entre leitores, desta-
cando que:

O papel do leitor, inscrito no texto, não pode coincidir com a ficção do leitor, pois é
através da ficção do leitor que o autor expõe o mundo do texto ao leitor imaginado;
assim o autor produz uma perspectiva complementar que enfatiza a construção pers-
pectivística do texto (ISER, 1996, vol. 1, p.75).

capítulo 3 • 59
Iser destaca que o texto produz, além de seus efeitos estéticos, uma abertura
quanto às perspectivas que se depreendem do texto, pois:

As perspectivas do texto visam certamente a um ponto de referência e assumem


assim o caráter de instruções; o ponto comum de referências, no entanto, não é
dado enquanto tal e deve ser por isso imaginado. É nesse ponto que o papel do leitor
delineado na estrutura do texto ganha seu caráter efetivo. Esse papel ativa atos da
imaginação que, de certa maneira, despertam a diversidade referencial das perspecti-
vas da representação e reúnem no horizonte de sentido (ISER, 1996, p. 65).

Você pode estar se perguntando, como é que “o papel do leitor delineado na


estrutura do texto ganha seu caráter efetivo”. Iser esclarece que:

Nesse sentido, o esquema descrito do papel do leitor é uma estrutura do texto. Mas,
como estrutura textual, o papel do leitor representa, sobretudo, uma intenção que ape-
nas se realiza através dos atos imaginativos estimulados no receptor. Assim entendidos,
a estrutura do texto e o papel do leitor estão intimamente unidos (ISER, 1996, p. 75).

Isso quer dizer que:

O papel do leitor se realiza histórica e individualmente, de acordo com as vivências e


a compreensão previamente construída que os leitores introduzam na leitura. Isso não
é aleatório, mas resulta de que os papéis oferecidos pelo texto se realizam sempre
seletivamente. O papel do leitor representa um leque de realizações que, quando se
concretiza, ganha uma atualização determinada (ISER, 1996, p. 78).

Como pudemos verificar neste capítulo, tanto a teoria do efeito como a es-
tética da recepção se consolidaram como alicerces da teoria literária moderna,
por conseguirem fazer insurgir a entidade do leitor como artifício participativo
do processo de escrita/leitura, mediante a relação autor/obra/leitor. Ante isso:

60 • capítulo 3
O horizonte de expectativa da literatura distingue-se daquela da práxis histórica da
literatura pelo fato de não apenas conservar as experiências vividas, mas também
antecipar possibilidades não concretizadas, expandir o espaço limitado do compor-
tamento social rumo a novos desejos, pretensões e objetivos, abrindo, assim, novos
caminhos para a experiências futuras (JAUSS, 1996, p.52).

Na teoria do efeito literário ou estético, Iser vê na leitura um método de co-


municação, por meio do qual ocorre diálogo, durante o ato da leitura, entre au-
tor, texto e leitor. Este último aparece como um agente do processo, que dialoga,
interage com o texto literário, ao mesmo tempo que se expõe aos seus efeitos.
Já a teoria de Jauss quanto à estética da recepção, concede ao leitor a in-
cumbência de fundar os parâmetros de recepção de cada período, adquirindo,
assim, um caráter estético e historiográfico, já que:

A maneira pela qual uma obra literária, no momento histórico de sua apreciação, atende,
supera, decepciona ou contraria as expectativas de seu público inicial oferece-nos cla-
ramente um critério para a determinação de seu valor estético (JAUSS, 1994, p.31).

Por fim, entendemos que ambas as vertentes idealizam a literatura como susci-
tação de algo novo, mediante um caminho capaz de levar o leitor à procura de novos
significados, de novas acepções de si mesmo e da obra de arte, a partir da ampliação
de seu campo de visão, tornando-se mais crítico e não apenas receptivo, já que:

A literatura não apenas faz da identidade um tema; ela desempenha um papel signi-
ficativo na construção da identidade dos leitores. O valor da literatura há muito tempo
foi vinculado às experiências vicárias dos leitores possibilitando-lhes como é estar em
situações específicas e desse modo conseguir a disposição para agir e sentir de certas
maneiras. As obras literárias encorajam a identificação com os personagens, mostrando
as coisas do seu ponto de vista (CULLER, 1999, p. 110).

capítulo 3 • 61
3.3  Recepção e Crítica Literária no Brasil

Os principais estudiosos da teoria da recepção no Brasil são Regina Zilberman


e Luiz Costa Lima. Ambos se dedicam a verificar a relação obra/leitor e Zilber-
man de certo modo justifica esse interesse ao colocar que: “Nenhum leitor fica
imune às obras que consome; essas, da sua parte, não são indiferentes às leitu-
ras que desencadeiam” (2008).
Em Recepção e leitura no horizonte da literatura, Regina Zilberman faz um
breve panorama acerca da recepção de textos literários:

De um lado, situa-se o efeito, condicionado pela obra, que transmite orientações


prévias e, de certo modo, imutáveis, porque o texto conserva-se o mesmo, ao leitor; de
outro, a recepção, condicionada pelo leitor, que contribui com suas vivências pessoais
e códigos coletivos para dar vida à obra e dialogar com ela. Sobre esta base, de mão
dupla, acontece a fusão de horizontes, equivalente à concretização do sentido (2008).

Diante da via de mão dupla obra-leitor, alguns teóricos literários da estéti-


ca da recepção procuraram entender a autoridade da função do leitor/receptor
das obras de arte literária. Por isso, Luiz Costa Lima revela que “A preocupação
com a criação literária abandonava, como andaimes ociosos, as especificações
historicizantes que haviam marcado a análise acadêmica (e, em geral, euro-
peia), desde o século XIX” (LIMA, 2002, p. 13-14).
Agora, Costa Lima destaca a relação leitor-obra por meio de uma experiên-
cia estética, segundo a qual:

[...] o prazer originado entre a oscilação e entre o eu e o objeto, oscilação pela qual o
sujeito se distância interessadamente de si, aproximando-se do objeto, e se afasta in-
teressadamente do objeto, aproximando-se de si. Distancia-se de si, de sua continui-
dade, para estar no outro, como na experiência mística, pois o vê a partir de si (COSTA
LIMA, 1979, p. 19).

Isso demonstra que a bagagem do leitor (formada por conhecimentos de


todas as ordens) norteia a recepção do texto segundo a época:

62 • capítulo 3
O leitor, portanto, coincide com o horizonte de recepção ou acolhimento de uma obra.
Essa, por sua vez, destaca-se quando não se equipara a esse horizonte, pois, se o
fizesse, nem seria notada. Com efeito, cada obra procura se particularizar diante do
universo para o qual se apresenta, particularização que se evidencia quando ela rom-
pe com os códigos e as normas predominantes. Assim, ela estabelece um intervalo
entre o que se espera e o que se realiza, a que Jauss denomina "distância estética"
(ZILBERMAN, 2008).

Como se pode notar, a estética da recepção foca a atuação do leitor sobre a


obra, entendendo que a consolidação do projeto literário só é possível a partir
da relação que se estabelece, fazendo do leitor um cúmplice do texto, efetivan-
do o processo dialógico que motiva na leitura.

ATIVIDADES
01. Defina “estética da recepção” e “teoria do efeito”.

02. Qual é a importância do leitor em relação à obra literária?

REFLEXÃO
Os principais estudiosos da teoria da recepção no Brasil são Regina Zilberman e Luiz Costa
Lima que buscam verificar a relação obra/leitor, principalmente observando o comportamen-
to do leitor perante a obra.
A estética da recepção surge em defesa do leitor, como peça importante na recepção da
obra, com um papel ativo na formação da obra literária, já que ela só se materializa por meio
de sua leitura, que é subjetiva e individual.
Desse modo, a teoria do efeito estético deriva dos estudos realizados no campo da esté-
tica da recepção, de modo que o texto literário se solidifica quando o leitor estampa nele um
estilo individual de acordo com a leitura que alcança.

capítulo 3 • 63
LEITURA
ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Trad. Johannes Kretschermer.
São Paulo: Ed.34, 1996.
JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. Trad. de
Sergio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGUIAR, Vera Teixeira de. O leitor competente à luz da teoria literária. In: Revista Tempo Brasileiro.
Rio de Janeiro: 124:23/34, Jan -mar. 1996.
CEIA, Carlos. E-dicionário de termos literários. Disponível em: <http://www.edtl.com.pt/business-
directory/6902/-estetica-da-recepcao-rezeptionsaesthetik--reader-response-criticism-/>. Acesso em:
18 mar. 2016.
COMPAGNOM, Antoine. "O leitor”. In: O demônio da teoria, literatura e senso comum. Belo Horizonte:
ED. UFMAG, 2001.
COSTA LIMA, Luiz. A literatura e o leitor. Textos de estética da recepção. Rio de janeiro: Paz e terra,
1979.
CULLER, Jonathan. Teoria literária: uma introdução. Trad. Sandra Vasconcelos. São Paulo: Beca
Produções Culturais, 1999.
EAGLEATON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. 6 ed. São Paulo: Martins Fonte, 2006.
FISH, Stanley. “Como reconhecer um poema ao vê-lo”. In: Palavra. Revista do Departº de Letras da
PUC-Rio. Rio de Janeiro: Departº de Letras, 1993.
ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Trad. Johannes Kretschermer. São
Paulo: Ed.34, 1996.
JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. Trad. de Sergio
Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994.
KATO, M. O aprendizado da leitura. 05 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
OLINTO. Heidrun Krieger. Histórias de literatura: as novas teorias alemãs. (Org.). São Paulo: Ed.
Ática, 1996.
SARTRE, Jean Paul. Que é literatura. Trad. Carlos F. Moisés. São Paulo: Ática, 1993.
TEIXEIRA, Ivan. Estruturalismo In: Cult: Revista Brasileira de Literatura. São Paulo: Lemos Editorial,
1998, .p. 34-37.
ZILBERMAN, Regina. Estética da recepção e história da literatura. São Paulo: Ática, 1989.

64 • capítulo 3
ZILBERMAN, Regina. Recepção e leitura no horizonte da literatura. In: Alea vol.10 no.1
Rio de Janeiro Jan./June 2008. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S1517-106X2008000100006&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt> . Acesso em: 21 mar. 2016.

capítulo 3 • 65
66 • capítulo 3
4
Estudos Culturais
4.  Estudos Culturais
Neste capítulo, você conhecerá os “estudos culturais” que, em linhas gerais, é
uma área do conhecimento dedicada a entender e explicar diferentes aspectos
da cultura em comunhão com a História, a Filosofia, a Sociologia e A teoria da
literatura, dentre as várias possibilidades. Neste tópico, faremos alusão aos es-
tudos de Richard Hoggart, Raymond Williams e E.P. Thompson.
Num segundo momento, pensaremos a posição dos estudos culturais dian-
te dos estudos literários bem como a questão do cânone.
Por fim, veremos como ocorrem os estudos culturais no Brasil.

OBJETIVOS
Nosso objetivo é que você seja capaz de:
•  Reconhecer a importância dos estudos culturais para o entendimento da socieda-
de moderna;
•  Entender que os estudos culturais não são uma ameaça aos estudos literários, mas sim
outra possibilidade de análise de obras muitas vezes desvalorizadas.

4.1  Histórico da Disciplina

Neste primeiro momento, cabe verificar o que designa o termo “estudos


culturais”.
Comumente, os “estudos culturais” são encarados como uma especialida-
de acadêmica cuja origem remonta ao desenvolvimento do que chamamos de
pós-modernismo. Segundo Carlos Ceia:

O pós-modernismo está marcado pela presença totalitária de ismos ¾ expressionis-


mo abstracto, desconstrucionismo, funcionalismo, transvanguardismo, transvestismo,
neo-conservadorismo, neocolonialismo, neofascismo, neo-liberalismo, neomarxismo,
feminismo, lesbianismo radical, etc., etc. ¾ e pela ausência de um ismo universal
e amplamente significativo ¾ para o qual também existe um ismo: eclectismo (ou
pluralismo, termo que passou à condição de paradigma pós-moderno).

68 • capítulo 4
Precisamos lembrar que, quando se toca no assunto relacionado ao pós-mo-
dernismo, temos que pensar nos movimentos de contracultura, os quais vão na
contramão das elites sociais e envolvem elementos de multiculturalismo etc.
De forma geral, podemos entender o estudo do pós-modernismo como cultura.
Para entender isso, precisamos retomar a modernidade que:

(...) deve ser entendida num nível institucional; mas as transformações introduzidas
pelas instituições modernas se entrelaçam de maneira direta com a vida individual e,
portanto, com o eu. Uma das características distintivas da modernidade, de fato, é a
crescente interconexão entre os dois “extremos” da extensão e da intencionalidade:
influências globalizantes de um lado e disposições pessoais do outro (GIDDENS,
2002, p. 9).

Nos Estados Unidos, os estudos culturais remetem às manifestações sobre


cultura popular urbana. Por isso, é muito corriqueiro encontrar os termos “es-
tudos culturais” e “teoria da cultura” como sinônimos.

ATENÇÃO
Teoria da cultura é o império de estudos interdisciplinares que remetem aos campos de
trabalho dos estudos culturais: pós-colonialismo, opressões culturais, estudos sobre gê-
nero, marxismos sociais, críticas às práticas políticas, elementos de antropologia, estudos
envolvendo a literatura e a estética, concepções de utilitarismo, estruturalismo, culturalismo
e muito mais.
Simplificando: a teoria da cultura pretende uma leitura crítica de textos pertinentes aos
estudos culturais.

Esse fato advém das pesquisas realizadas pelo Departamento de Estudos


Culturais da Universidade de Birmingham. Foi na Universidade de Birmingham
que brotou um dos mais estimados estabelecimentos culturais da Centre for
Contemporary Cultural Studies.
Recorrendo às raízes históricas que marcam os estudos culturais, verifica-
mos que tal designação – estudos culturais – é antecedente ao estabelecimento
do Centro de Birmingham, no início da década de 1960.

capítulo 4 • 69
Na verdade, o termo aparece a partir dos trabalhos do docente inglês
Raymond Williams, com a publicação do livro Culture and society, em 1958.
Nesta obra, Williams pesquisa os diferentes usos históricos do termo cultura e,
para realizar a pesquisa e o estudo, Williams recorre ao livro Uses of literacy, de
Richard Hoggart, publicado em 1958.

CURIOSIDADE
Richard Hoggart foi o primeiro diretor do Centro de Birmingham.

Para entender e propiciar o desenvolvimento dos estudos culturais, é neces-


sário estabelecer uma relação de interdisciplinaridade com as ciências sociais,
as chamadas ciências humanas – ou, melhor dizendo, ciências humanísticas.
O que se vê é que os estudos culturais brotam da busca por entender a cul-
tura, por meio do método de redescoberta das culturas nacionais e da ânsia de
obter configurações novas de tensão dessas culturas.

O que importa são as rupturas significativas – em que velhas correntes de pensamento


são rompidas, velhas constelações deslocadas e elementos novos e velhos são reagru-
pados ao redor de uma nova gama de premissas e temas. Mudanças em uma proble-
mática transformam significativamente a natureza das questões propostas, as formas
como são propostas e a maneira como podem ser adequadamente respondidas. Tais
mudanças de perspectiva refletem não só os resultados do próprio trabalho intelectual,
mas também a maneira como os desenvolvimentos e as verdadeiras transformações
históricas são apropriados no pensamento e fornecem ao pensamento, não sua garantia
de “correção”, mas suas orientações fundamentais, suas condições de existência. É por
causa dessa articulação complexa entre pensamento e realidade histórica, refletida nas
categorias sociais do pensamento e na contínua dialética entre “poder’ e “conhecimen-
to”, que tais rupturas são dignas de registro (HALL, 2003, p. 123).

Em suas origens, os estudos culturais tinham como foco central o enten-


dimento das crises nacionais, que surgiriam após uma nova visão intelectual

70 • capítulo 4
proposta pelo fim da Segunda Guerra Mundial, e buscavam o entendimento dos
artifícios de organização e reorganizações das sociedades, no entanto, como des-
taca Hall, os estudos culturais, logo no início da década de 1950, já apresentavam
uma preocupação quanto às discussões sobre cultura, alterando o foco, ou seja:

Podemos qualificar, portanto, a emergência dos cultural studies como a de um


paradigma, de um questionamento teórico coerente. Trata-se de considerar a cultura
em sentido mais amplo, antropológico, de passar de uma reflexão centrada sobre o
vínculo cultura-nação para uma abordagem da cultura dos grupos sociais. Mesmo que
ela permaneça fixada sobre uma dimensão política, a questão central é compreender
em que a cultura de um grupo, e inicialmente a das classes populares, funciona como
contestação da ordem social ou, contrariamente, como modo de adesão às relações
de poder (MATTELART, 2004, p. 13-14).

Quanto à temática da cultura, há dois livros que ajudaram a entender


esse novo foco e preocupação. São eles: As utilizações da cultura, de Richard
Hoggart, e Cultura e sociedade: 1780-1950, de Raymond Williams. Vejamos:

O livro de Hoggat teve como referência o “debate cultural” há muito sustentado nas
discussões acerca da “sociedade de massa”, (...) Cultura e sociedade reconstruiu uma
longa tradição definida por Williams como aquela que, em resumo, consiste do “regis-
tro de um número de importantes e contínuas reações a (... ) mudanças em nossa vida,
econômica e política” e que oferece “um tipo especial de mapa pelo qual a natureza
das mudanças pode ser explorada” (HALL, 2003, p. 124).

Além de Richard Hoggart e Raymond Williams, E.P. Thompson também se


destaca entre os nomes importantes dos estudos culturais, pois eles entendem
a cultura como um espaço híbrido onde as noções culturais surgem com o in-
tuito de trazer respostas para as perguntas suscitadas pela coletividade. Desse
modo, os estudiosos:

capítulo 4 • 71
Quer fossem históricos ou contemporâneos em seu foco, eles próprios construíram res-
postas às pressões imediatas do tempo e da sociedade em que foram escritos ou eram
focalizados ou organizados por tais respostas. Eles não apenas levaram a “cultura” a
sério, como uma dimensão sem a qual as transformações históricas, passadas e presen-
tes, simplesmente não poderiam ser pensadas de maneira adequada (...) eles forçaram
seus leitores a atentar para a tese de que, “concentradas na palavra ‘cultura’, existem
questões diretamente propostas pelas grandes mudanças históricas que as modifica-
ções na indústria, na democracia e nas classes sociais representam de maneira própria
e às quais a arte responde também, de forma semelhante” (HALL, 2003, p. 125).

Diante do que vimos até agora, podemos entender que o novo foco dos es-
tudos culturais é a própria cultura. O que isso significa? Qual é a concepção do
termo cultura empregada pelos estudos culturais?
Isso justifica a preocupação de T. S Eliot (2005, p. 33):

O termo cultura tem associações diferentes segundo tenhamos em mente o desenvolvi-


mento de um indivíduo, de um grupo ou classe, de toda uma sociedade. Parte da minha
tese é que a cultura do indivíduo depende da cultura de um grupo ou classe, e que a
cultura do grupo ou classe depende da cultura da sociedade a que pertence este grupo
ou classe. Portanto, a cultura da sociedade é que é fundamental, e o significado do
termo “cultura” em relação com toda a sociedade é que deveríamos examinar primeiro.

CONCEITO
Cultura: A palavra "cultura" aparece no fim do séc. XI. Designa, nomeadamente, um pedaço
de terra trabalhada para produzir vegetais e torna-se sinónimo de agricultura (cultura ali-
mentar, cultura forrageira, policultura). Em meados do séc. XVI, o sentido figurado de cultura
do espírito começa a ser empregado pelos humanistas do Renascimento. É no séc. XVIII
que a cultura em ciências, letras e artes se torna um símbolo da filosofia das Luzes e que
Hobbes designa por "cultura" o trabalho de educação do espírito em particular durante a
infância. O homem cultivado tem gosto e opinião, requinte e boas maneiras. No século XIX,
a palavra "cultura" (Kultur em alemão) tem por sinónimo "civilização" (termo preferido pelos
franceses), ao passo que E. F. Tylor (1871) define cultura pelo desenvolvimento mental e

72 • capítulo 4
organizacional das sociedades, como "esse todo complexo que inclui os conhecimentos, as
crenças religiosas, a arte, a moral, os costumes e todas as outras capacidades e hábitos que
o homem adquire enquanto membro da sociedade", e a antropologia cultural americana, uns
sessenta anos mais tarde, insiste no desenvolvimento material e técnico e na transmissão do
património social. Segundo os culturalistas, a cultura, enquanto modo de vida de um povo, é
uma aquisição humana, relativamente estável, mas sujeita a mudanças contínuas que deter-
minam o curso das nossas vidas sem se impor ao nosso pensamento consciente. O sentido
moderno do termo reporta aos modos de comunicação do saber nas sociedades em rápida
transformação e aos objetos simbólicos produzidos por uma sociedade para veicular valores.
A atenção incide nos mitos, noções, imagens e modelos espalhados em certos grupos so-
ciais (cultura popular, cultura de elite) e por certos canais de difusão do saber: a cultura de
massa é simultaneamente a que é transmitida pelos media e a que se dirige a um largo públi-
co. Ligada à sociedade do conhecimento, a sociologia da cultura considera os criadores das
obras simbólicas pelas quais se exprimem representações do mundo, a relação das obras e
do autor com a sociedade na qual eles operam, o sistema de produção das obras do espírito
e o campo ideológico onde se situam os emissores e receptores de obras culturais.
Disponível em: <http://www.filoczar.com.br/Dicionarios/DICIONARIO-
DE-SOCIOLOGIA.pdf>. Acesso em: 12 mar. 2016.
De acordo com o senso comum, temos:
Cultura: forma comum e aprendida da vida, compartilhada pelos membros de uma so-
ciedade e que consta da totalidade dos instrumentos, técnicas, instituições, atitudes, crenças,
motivações e sistemas de valores que o grupo conhece (Foster).
Disponível em: <http://www.prof2000.pt/users/dicsoc/soc_c.html>.
Acesso em: 12 mar. 2016.

Cultura, de acordo com Hall (2003, p. 43) é:

A cultura é uma produção. Tem sua matéria-prima, seus recursos, seu “trabalho produ-
tivo”. Depende de um conhecimento da tradição enquanto “o mesmo em mutação” e
de um conjunto efetivo de genealogias. Mas o que esse “desvio através de seus pas-
sados” faz é nos capacitar, através da cultura, a nos produzir a nós mesmos de novo,
como novos tipos de sujeitos. Portanto, não é uma questão do que as tradições fazem
de nós, mas daquilo que nós fazemos das nossas tradições. Paradoxalmente, nossas

capítulo 4 • 73
identidades culturais, em qualquer forma acabada, estão à nossa frente. Estamos
sempre em processo de formação cultural. A cultura não é uma questão de ontologia,
de ser, mas de se tornar.

Interessante se faz a percepção de Hall quanto à cultura, porque não coloca


o indivíduo na posição do “ser” um sujeito, mas sim naquele de que precisa
“se tornar” um novo tipo de sujeito no processo de busca de uma identidade
cultural, já que:

As identidades, concebidas como estabelecidas e estáveis, estão naufragando nos


rochedos de uma diferenciação que prolifera. Por todo o globo, os processos das
chamadas migrações livres e forçadas estão mudando de composição, diversifican-
do as culturas e pluralizando as identidades culturais dos antigos Estados-nação
dominantes das antigas potências imperiais e, de fato, do próprio globo. Os fluxos
não regulados de povos e culturas são tão amplos e tão irrefreáveis quanto os fluxos
patrocinados do capital e da tecnologia (HALL, 2003, p. 44).

Não há como negar, ante o exposto, que o entendimento de cultura tem se


modificado ao mesmo tempo em que a sociedade se modifica por meio das no-
vas tecnologias e por tudo que o ganho de capital pode proporcionar. Cabem
aqui uns parênteses: não podemos esquecer que a nossa língua também pode
se constituir um elemento dentro da construção da identidade, pois a língua se
converte em material literário ao mesmo tempo em que, por meio da própria
literatura, pode denunciar aspectos da sociedade no que tange à identidade.
Para Roland Barthes (1972, p. 24):

A língua geral da narrativa não é evidentemente mais que um dos idiomas oferecidos
à linguística do discurso e ela se submete em consequência à hipótese homológica:
estruturalmente, a narrativa participa da frase, sem jamais ser reduzida a uma soma
de frases: a narrativa é uma grande frase, como toda frase constatativa, é de, certa
maneira, o esboço de uma pequena narrativa. Se bem que elas disponham aí de sig-
nificantes originais (frequentemente muito complexos), encontram-se com efeito na
narrativa, aumentadas e transformadas à sua medida, as principais categorias do

74 • capítulo 4
verbo: os tempos, os aspectos, os modos, as pessoas; além disso, os próprios ‘sujeitos’
opostos aos predicados verbais não deixam de se submeter ao modelo frásico:
a tipologia actancial proposta por A. J. Greimas reencontra na multiplicidade dos
personagens da narrativa as funções elementares da análise gramatical. A homologia
que se sugere aqui não tem apenas um valor heurístico: implica uma identidade entre
a linguagem e a literatura (enquanto esta for uma espécie de veículo privilegiado da
narrativa): não é mais possível conceber a literatura como uma arte que se desinteres-
sa de toda relação com a linguagem, já que a usa como um instrumento para exprimir
a ideia, a paixão ou a beleza: a linguagem não cessa de acompanhar o discurso esten-
dendo-lhe o espelho de sua própria estrutura.

Afinal, como afirma Roland Barthes (1970, p. 160):

Todo romancista, todo poeta, quaisquer que sejam os rodeios que possa fazer à teoria
literária, deve falar de objetos e fenômenos mesmo que imaginários, anteriores à
linguagem: o mundo existe e o escritor fala, eis a literatura. O objeto da crítica é muito
diferente; não é o ‘mundo’, é um discurso, o discurso de um outro: a crítica é discurso
sobre um discurso; é uma linguagem ‘segunda’ ou ‘metalinguagem’ [...] que se exerce
sobre uma linguagem primeira (ou linguagem-objeto). Daí decorre que a atividade crí-
tica deve contar com duas espécies de relações: a relação da linguagem crítica com a
linguagem do autor observado e a relação dessa linguagem-objeto com o mundo. ©© WIKIMEDIA.ORG

Fechando nossos parênteses de


explanação, voltemos aos estudos
culturais. Vejamos as contribuições
de Raymond Williams para os estu-
dos culturais.

Figura 4.1  –  Raymond Williams.

capítulo 4 • 75
AUTOR
Raymond Henry Williams (August 31, 1921 – January 26, 1988) was a Welsh academic,
novelist and critic. He was an influential figure within the New Left and in wider culture. His
writings on politics, culture, the mass media and literature are a significant contribution to
the marxist critique of culture and the arts. Some 750,000 copies of his books have sold in
UK editions alone (Politics and letters, 1979) and there are many translations available. His
work laid the foundations for the field of cultural studies and the cultural materialist approach.
Cultural materialism in literary theory and cultural studies emerged as a theoretical move-
ment in the early 1980s along with new historicism, an American approach to early modern
literature, with which it shares much common ground. The term was coined by Williams, who
used it to describe a theoretical blending of leftist culturalism and marxist analysis. Cultural
materialists analyze specific historical documents and attempt to recreate the zeitgeist of a
particular moment in history.
Williams viewed culture as a "productive process," that is, part of the means of production,
and cultural materialism often identifies what he called "residual," "emergent" and "opposi-
tional" cultural elements. Following in the tradition of Herbert Marcuse, Antonio Gramsci and
others, cultural materialists extend the class-based analysis of traditional marxism by means
of an additional focus on the marginalized.
Cultural materialists analyze the processes by which hegemonic forces in society appro-
priate canonical and historically important texts, such as Shakespeare and Austen, and utilize
them in an attempt to validate or inscribe certain values on the cultural imaginary. (The term
comes from Jacques Lacan and refers to a gestalt of customs and laws that are inscribed
with the culture's dominant ethos and symbolism.)
(…)
Disponível em: <http://www.newworldencyclopedia.org/entry/Raymond_Williams>.
Acesso em: 2 mar. 2016.

Para Williams (1980, p.23), a literatura é uma formulação reflexiva a respei-


to da experiência mediante a vida social, ou seja, em literatura, o fato social é
significante, no entanto:

76 • capítulo 4
A correspondência de conteúdo entre um escritor e seu mundo é menos significativa
do que essa correspondência de organização e estrutura. A relação de conteúdo pode
ser mera reflexão, mas a relação de estrutura, muitas vezes ocorrendo onde não há
uma aparente relação de conteúdo, pode mostrar para nós o princípio organizador
pelo qual uma visão particular de mundo, e daí a coerência do grupo social que a
mantém, opera realmente na consciência.

A partir da tomada de consciência, Williams assinala que os estudos cultu-


rais e até a teoria da cultura pode entender a literatura como um material social
que traduz o sentimento das relações que se estabelecem na sociedade,

(...) como assunto de teoria cultural, este é o caminho para definir formas e conven-
ções na arte e literatura como elementos inalienáveis de um processo material social:
(...) mas, como uma formação social de um tipo específico que pode se transformar
em articulação... de estruturas de sentimento..., são muito mais amplamente experi-
mentadas (WILLIAMS, 1977, p.133).

De que tipo de sentimento Williams trata? É preciso entender que Williams


ampliou a sua ideia sentimento como uma estrutura:

(...) em algumas das maiores literaturas, uma simultânea produção e resposta... às


estruturas subjacentes e formadoras ... constituem o fenômeno literário específico:
...o ato imaginativo, o método imaginativo, a organização especifica e genuinamente
nova... que estes atos compõem, em um período histórico, uma comunidade espe-
cífica: uma comunidade visível na estrutura de sentimento e demonstrável, acima
de tudo, nas escolhas fundamentais de forma ... .... Especialmente mais importante
nestas estruturas de sentimento modificadas é que elas precedem as mudanças mais
facilmente reconhecíveis de relações formais institucionais, que são as mais acessí-
veis, e, na verdade, a história mais normal (WILLIAMS, 1980, p.24-25).

Quando trata da estrutura de sentimento, Williams revela, implicitamente,


o processo de formação da sociedade em seus aspectos culturais e de identida-
de. Entendido isso, verificamos que as relações reflexivas da literatura com as

capítulo 4 • 77
estruturas organizadoras da consciência revelam textualmente as realidades de
experiência vivida no âmbito da sociedade como um todo.

Isto ocorre porque as estruturas de sentimento podem ser definidas como expe-
riências sociais em solução, distintas das outras formações sociais semânticas que
foram precipitadas e são mais evidentes e mais imediatamente disponíveis. De forma
alguma, a arte não se relaciona toda a uma estrutura de sentimento contemporânea.
As formações efetivas da arte real se relacionam às formações sociais já manifestas,
dominantes ou residuais, e a estrutura do sentimento, enquanto solução, refere-se,
primariamente, às formulações emergentes (embora muitas vezes na forma de modifi-
cação ou perturbação de formas mais velhas) (WILLIAMS, 1977, p.133-134).

Se vamos entender um sujeito que tem que “se tornar”, Williams reflete so-
bre a questão da ideologia perante a literatura, já que esta é:

(...) é uma forma de escrever, uma forma de prática, na qual a ideologia tanto existe
como é ou pode ser internamente discutida e encarada à distância. O valor da literatu-
ra está precisamente no fato de ser uma das áreas onde o domínio da ideologia é ou
pode ser afrouxado ... o ponto em que sua literalidade é um contínuo questionamento
interno de si mesmo (WILLIAMS, 1984, p.207-208).

Ora, se “o valor da literatura está precisamente no fato de ser uma das áreas
onde o domínio da ideologia é ou pode ser afrouxado”, precisamos lançar nos-
so olhar para o povo, visto que a arte literária:

(...) é supremamente importante como uma agente de descoberta e análise. A tradição


literária é a depositária de um número muito grande de escolhas. Dessa forma, ela
nos dá a mais profunda experiência sobre a qual podemos nos debruçar e fazer
nossas escolhas em nosso tempo na história. A importância em nossas vidas de uma
língua rica, vital e em constante renovação é de um valor inestimável (p.107).

Pensando sobre as questões de escolhas e experiências, podemos entender


o motivo pelo qual Williams procura estudar o desenvolvimento do conceito de

78 • capítulo 4
cultura, em sua obra Cultura e sociedade, já que, para ele, “o conceito de cultu-
ra e a própria palavra, em seus usos gerais modernos, surgiram no pensamento
inglês, no período comumente chamado da Revolução Industrial” (WILLIAMS,
1969, p. 11).
Williams vai estudar o conceito de cultura perante a relação que esta esta-
belece com transformações históricas ocorridas na sociedade como um todo,
provocadas pelas mudanças que a Revolução Industrial proporcionou quanto
ao surgimento da democracia, à formação das classes sociais, à alteração das
produções culturais etc.
Relacionadas à arte e à literatura, teremos que entender como se desenham
e se manifestam duas formas de cultura diferentes: a cultura de massa e a cul-
tura popular.
Para Williams:

A história da ideia de cultura é a história do modo por que reagimos em pensamento


e em sentimento à mudança de condições por que passou a nossa vida. Chamamos
cultura a nossa resposta aos acontecimentos que constituem o que viemos a definir
como indústria e democracia e que determinaram a mudança das condições huma-
nas. (...) A ideia de cultura é a resposta global que demos à grande mudança geral que
ocorreu nas condições de nossa vida comum (1969, p. 305).

Desse modo, a cultura deve ser percebida enquanto processo e também pro-
duto da sociedade. Por isso, a cultura popular se coloca como uma:

(...) dinâmica real do processo sociocultural é mais notória nas transformações do


‘popular’, que caminharam não só ao longo de uma trajetória que vai das formas
anteriores de cultura ‘folclórica’ até as novas formas parcialmente auto-organizadas
de cultura popular urbana, mas ainda ao longo de uma trajetória de extensa – e
maciçamente – produção de cultura ‘popular’ pelo mercado burguês e pelos sistemas
educacional e político estatais (WILLIAMS, 1992, p. 226).

Para Williams, a suposição da existência de uma cultura “comum” nada


tem de pejorativo, pelo contrário, demonstra que democracia é a forma que se
encontrou para a manifestação e o acesso a várias formas de cultura pertinente
a todas as pessoas, pois:

capítulo 4 • 79
Uma cultura comum não é, em nenhum nível, uma cultura igual. Mas pressupõe,
sempre, a igualdade do ser, sem a qual a experiência comum não pode ser valorizada.
Uma cultura comum não pode opor restrições absolutas ao acesso a qualquer das
suas atividades: este é o sentido real do princípio de igualdade de oportunidades
(1969, p. 326).

Por fim, a democratização da cultura proposta por Williams tem como fina-
lidade o acesso aos produtos culturais da humanidade, pois estes não podem
e não devem ser concebidos como privilégio de alguns. Além disso, a produção
da cultura não está atrelada a certas qualidades especiais como se fosse a mani-
festação de algo sobrenatural. Na verdade, a cultura é algo comum, produzido
socialmente. Por isso, a premissa válida é de que a cultura deve ser uma ativi-
dade participativa, produzida em comum, e que deve ser partilhada por todos,
sem distinção.

Qualquer civilização hoje imaginável depende de ampla variedade de capacidades


altamente especializadas, que acarretarão, em partes definidas da cultura, inevitável
fragmentação da experiência. A atribuição de privilégios a certos tipos de capacitação
profissional vem constituindo procedimento tradicional e será difícil mudar esse hábito
até o ponto que se faz necessário, para se assegurar uma substancial igualdade de
condições, indispensável ao sentimento de comunidade. Em nossos dias, uma cultura
comum não se confundirá com a da sociedade simples e homogênea dos velhos
sonhos. Será a de uma organização complexa, a exigir contínuo ajustamento e revisão.
Em tão difícil organização, o único elemento capaz de lhe assegurar estabilidade,
que se pode conceber, é o sentimento de solidariedade. Mas para fazê-lo operar será
necessário que estejamos constantemente a redefini-lo. Além da dificuldade intrínse-
ca de descobrir a motivação para esse sentimento de solidariedade, serão muitas as
tentativas de retorno aos velhos sentimentos, a serviço de qualquer novo desenvolvi-
mento seccional. O que desejo aqui acentuar é que essa primeira dificuldade – a com-
patibilidade de uma especialização crescente com uma cultura genuinamente comum
– só se resolverá num contexto de comunidade das condições materiais da sociedade
e através do processo democrático em sua plenitude (WILLIAMS, 1969, p. 341).

80 • capítulo 4
COMENTÁRIO
Legacy
Williams was one of the founders of the movement known as cultural materialism. Cultu-
ral materialism is one of a cluster of approaches to literary and cultural studies that compro-
mise contemporary literary theory.
Cultural materialism seeks to draw attention to the processes employed by power structures,
such as the church, the state or the academy, to disseminate ideology. It explores the historical
context and political implications of the text, and through close textual analysis note the dominant
hegemonic position and the possibilities for the rejection and/or subversion of that position. Bri-
tish critic Graham Holderness defines cultural materialism as a "politicized form of historiography."
Cultural materialists have found the area of Renaissance studies particularly receptive to this type
of analysis, and have distinct parallels with the New Historicism in this regard.
In the 1980s, Williams made important links with debates in feminist, peace and ecology
movements and extended his position beyond what might be recognized as marxism. He
concluded that because there were many different societies in the world there would be not
one, but many socialisms. His approach helped to shape the field of literary studies in late
twentieth century Britain in particular.
Disponível em: <http://www.newworldencyclopedia.org/entry/Raymond_Williams>. .
Acesso em: 2 mar. 2016.

Outro material importante para o entendimento dos estudos culturais é o


livro The uses of literacy, de Richard Hoggart, publicado em 1957, cujo objetivo
do autor, ao escrever esta obra, foi o de verificar como se dá o alcance dos meios
de comunicação de massa perante os trabalhadores da periferia na Inglaterra.
Para conseguir realizar seu intento, Hoggart propôs o estudo da cultura po-
pular, não como mero produto da sociedade, mas como um elemento capaz
de promover certa aprendizagem e até proporcionar a formação de um sen-
so crítico.

capítulo 4 • 81
Figura 4.2  –  Richard Hoggart. Disponível em: <http://www.theguardian.com/books/2014/
apr/10/richard-hoggart>.

AUTOR
Richard Hoggart, who has died aged 95, opened his autobiography by saying: "This is an
attempt to make, out of a personal story, a sense rather more than the personal." Virtually all
his writing had the same touch, and across a spread of 40 years it produced some of the most
penetrating, vivid and durable cultural commentary of the time.
Hoggart's classic, The uses of literacy (1956), is firm in its place among the great books
of the 20th century. It gave an immensely detailed picture, lit up with knowledge and af-
fection, of British urban working-class people in the years spanning the second world war.
Hoggart caught them at the point where their lives, values and culture were being changed
by postwar advertising, mass media influences and Americanisation. He was one of them and
always remained so in his loyalties.
The book was at once recognised not only as "an exquisitely drawn portrait" but for its rarer
trait of "complete intellectual honesty", which was to remain Hoggart's hallmark and helped him
become one of the most watchful, formidable consciences of his age. Warning of a gradual
process of cultural debasement – "as dangerous in its way as in totalitarian societies", the book
influenced the social and political insights of a generation. It proved decisive in popularising
cultural studies as an international academic discipline. It also gave him a very busy life.
(...)
In 1936 Hoggart won one of 47 Leeds University scholarships available to his generation
of 8,000 18-year-olds. (…)
Afterwards, like Raymond Williams and EP Thompson, he became part of the postwar
explosion in adult education as an extramural tutor at Hull University for 13 years. In 1951 he
published his first book, a full-length study of WH Auden's poetry. Then The uses of literacy

82 • capítulo 4
changed his life. About some trends the book proved uncannily far-seeing. Writing a year
after the launch of commercial television, well before Rupert Murdoch and multichannels, he
argued: "There are many who can take cultural debasement remarkably easily. They are not
closely acquainted with the mass-produced entertainment which daily visits most people. In
this way it is possible to live in a sort of clever man's paradise, without any real notion of the
force of the assault outside."
(…)
Richard Hoggart, author and teacher, born 24 September 1918; died 10 April 2014.
Disponível em: <http://www.theguardian.com/books/2014/apr/10/richard-hoggart>.
Acesso em: 2 mar. 2016.

Diante de tal perspectiva, Hoggart buscou verificar a influência da imprensa


popular sobre as atitudes dos operários e também observar se eles seriam capa-
zes de resistir à sua influência.
De acordo com suas pesquisas, ele pode observar que uma pessoa pode ser
iletrada, no entanto possui um saber prático, baseado nas práticas cotidianas,
que a capacita para certas leituras críticas. Nesta condição, estabelece-se um
ponto de ausência dos sujeitos perante cultura de massa, o que não implica
passividade, já que:

Se a maioria dos membros das classes populares não é reduzida ao estado de


consumidores passivos da cultura de massa, isso se dá simplesmente porque eles
estão 'ausentes', porque eles vivem em outro universo onde eles podem permanecer
fiéis às suas certezas concretas, aos seus hábitos e aos seus rituais cotidianos assim
como à sua linguagem costumeira feita de locuções proverbiais e ditados tradicionais
(HOGGART, 1970, p. 65).

Quando as pessoas se afastam dos seus hábitos costumeiros, a cultura de


massa pode ganhar espaço devido à presença dos meios de comunicação de
massa. Na realidade, o grande impacto social dos meios de comunicação marca
a abertura de um espaço cultural onde todos têm a possibilidade de ter contato
com o que era privilégio de alguns. No entanto, Hoggart faz um alerta:

capítulo 4 • 83
O volume de publicações que é atualmente produzido pela indústria cultural é tal que
o pesquisador está sempre inconscientemente inclinado – de certa maneira por um
efeito de peso – a superestimar sua influência sobre as classes populares. É preciso,
no entanto, que não se esqueça de que essas influências culturais têm apenas uma
ação muito lenta sobre a transformação das atitudes e que elas são frequentemente
neutralizadas por forças mais antigas (HOGGART, 1970, p. 379).

Levando em conta aspectos históricos, Edward Palmer Thompson, histo-


riador inglês, é considerado fundador dos estudos culturais, junto a Raymond
Williams e Richard Hoggart.

Figura 4.3  –  E.P. Thompson. Disponível em: <http://www.history.ac.uk/makinghistory/historians/


images/#>

Peter Burke em A escrita da história: novas perspectivas, relata que Edward


Thompson demonstra preocupação com os indivíduos de classes sociais me-
nos favorecidas em sua obra Formação da classe operária inglesa, como ele
mesmo ressalta: “Estou procurando resgatar o pobre descalço, o agricultor
ultrapassado, o tecelão do tear manual ‘obsoleto’, o artesão ‘utopista’ (...)”
(BURKE, 1992, p.41).
Assim como Hoggart, Thompson (1987, p. 9 a 14) também tinha a preo-
cupação com as pessoas comuns, no entanto, sob perspectivas diferentes,
Thompson almejava recuperar as experiências do povo sob a luz do passado
e de sua própria experiência na constituição da identidade, já que as classes
sociais se formam a partir do resultado de experiências comuns, sejam estas
experiências herdadas ou partilhadas. As pessoas se agrupam em classes e

84 • capítulo 4
articulam a identidade de seus interesses entre si, ao mesmo tempo em que ar-
ticulam essa mesma identidade contra outras pessoas de interesses opostos.
Ante o exposto, surge a ideia de experiência de classe que “é determinada pe-
las relações de produção em que os homens nasceram ou entraram voluntaria-
mente” (Thompson, 1987, p. 10). Isso significa que as classes se formam por
um processo de autoatividade, um processo ativo, apesar de estar submetido
a certos condicionantes sociais. Desse modo, podemos pensar que as classes
são formadas por tais condicionantes ao mesmo tempo em que se formam me-
diante tais experiências.
Um outro ponto a ser considerado é a questão da consciência de classe, vis-
to que esta é formada pelas experiências dentro de sistemas culturais que en-
volvem valores e instituições.
Como se vê, a cultura reflete:

(...) as relações entre o ser social e a consciência social seguem agora: em qualquer
sociedade cujas relações sociais foram delineadas em termos classistas, há uma
organização cognitiva da vida correspondente ao modo de produção e às formações
de classe historicamente transcorridas. Esse é o senso comum do poder ... Contudo,
há um sem número de contextos em que homens e mulheres, ao se confrontarem
com as necessidades de sua existência, formulam seus próprios valores e criam sua
cultura própria, intrínsecos ao seu modo de vida. Nesses contextos, não se pode con-
ceber o ser social à parte da consciência social e das normas. Não há sentido algum
em atribuir o prevalecimento de um sobre outro. (THOMPSON, 2001, p. 260).

4.2  Estudos Culturais X Estudos Literários: A Questão do Cânone

Os estudos culturais têm como ponto de partida a produção cultural de grupos


de indivíduos, dotados de dificuldades específicas nos campos sociais ou ne-
cessidades psicológicas, derivadas do tipo de sociedade em que estão inseridos
bem como determinados pela época em que vivem.
O foco de análise dos estudos culturais recai sobre o indivíduo como pro-
dutor de certas obras de acordo com um conjunto de valores socioculturais.
Interessante notar que essa mesma obra vai demonstrar os valores sociocul-
turais que o indivíduo simplesmente refletiu como se fosse mero espelho da

capítulo 4 • 85
realidade – o que obviamente não é – escolheu como ideal ou até rejeitou como
algo que deveria ser modificado.
Pensando desse modo, precisamos observar também a posição do “estudio-
so cultural” – se é que assim podemos chamar aquele que realiza os estudos
culturais – uma vez que ele também vai refletir, escolher ou rejeitar certos valo-
res socioculturais a partir do tema que escolher investigar.
Por que isso acontece? Simples. Isso ocorre pelo fato de que toda e qualquer
sociedade se forma por meio das experiências dos seus indivíduos, refletindo,
desse modo, seus valores. Por isso, quando falamos de estudos culturais, fala-
mos em estudos mutantes, provisórios, em constante modificação, a partir das
novas experiências que surgem a todo o momento e de acordo com as perspec-
tivas de cada indivíduo que se debruça sobre tais estudos. Daí resulta o conceito
de multiculturalismo.

CONCEITO
De acordo com Ligia Chiappini:
O multiculturalismo pode ser visto como um sintoma de transformações sociais básicas,
ocorridas na segunda metade do século XX, no mundo todo pós-Segunda Guerra Mundial.
Pode ser visto também como uma ideologia, a do politicamente correto, ou como aspiração,
desejo coletivo de uma sociedade mais justa e igualitária no respeito às diferenças. Conse-
quência de múltiplas misturas raciais e culturais provocadas pelo incremento das migrações
em escala planetária, pelo desenvolvimento dos estudos antropológicos, do próprio direito
e da linguística, além das outras ciências sociais e humanas, o multiculturalismo é, antes
de mais nada, um questionamento de fronteiras de todo o tipo, principalmente da mono-
culturalidade e, com esta, de um conceito de nação nela baseado. Visto como militância,
o multiculturalismo implica reivindicações e conquistas por parte das chamadas minorias.
Reivindicações e conquistas muito concretas: legais, políticas, sociais e econômicas.
Disponível em: <http://www.celpcyro.org.br/joomla/index.php?option=com_content&view
=article&Itemid=0&id=754>. Acesso em: 23 mar. 2016.

De forma simplificada, podemos entender o multiculturalismo como um cam-


po em que o conceito de cultura não é único, mas um aglomerado de revelações
características autônomas e específicas, originadas no coração das diversas classes

86 • capítulo 4
que formam as sociedades. Esse conjunto de características autônomas se tornam
tão expressivas que acabam por extrapolar raias regionais e até nacionais.

A essa nova forma de articulação segue-se a noção de arte como um sistema cultural
em que a diferença se apresenta como um processo de significação no qual, na
contemporaneidade, afirmam-se campos de força distintos e distintos critérios de
avaliação. Ao valor enquanto horizonte consensual, a ser atingido pelo juízo crítico
fundado na aludida demanda de universalidade e totalização, contrapõe-se a relação
como valor, o que reforça o componente comparativista dos estudos que visam à
abordagem do objeto cultural, artístico ou literário hoje em dia (MIRANDA, 1998).

Dentro do conceito de multiculturalismo, cabe a conceito de diferença. O


que nos chama mais a atenção é o fato de que, nele, as diferenças podem coe-
xistir de forma pacífica, assim como acontece nos estudos literários que sem-
pre lidaram com a questão da diferença quanto a produções literárias, seja em
relação ao gênero, aos estilos de época, aos temas etc.
O que é comum acontecer, qualquer que seja a área, é uma tentativa de
agrupamento segundo as características das obras dentro de alguns conceitos
como: literatura culta; literatura de massa; literatura popular; literatura nacio-
nal; literatura universal; literatura de ficção; literatura de não ficção etc. Isso
ocorre também com a questão da cultura: cultura culta; cultura de massa; cul-
tura popular; cultura nacional; cultura universal.... Enfim...
Além disso, apesar dos estudos literários abrirem a possibilidade do estu-
do de novas obras, não podemos esquecer que o modelo tradicional ainda está
configurado no cânone. Neste ponto, entram os estudos culturais que vão olhar
as obras literárias sem o status do cânone, do tradicional para poder valorizar e
tirar da sombra aquelas que foram esquecidas pelos estudos literários.
Encaradas desse modo, tanto os estudos culturais quanto os estudos lite-
rários não vão mais ficar presos ao ideal de genialidade, cuja manifestação se
daria de forma sobrenatural. Assim, a literatura não seria fruto apenas de uma
autora genial nem a cultura a representação de um ideal – geralmente elitista,
diga-se. Com isso, ocorre a conexão entre os estudos literários e os estudos cul-
turais, sem que o primeiro precise se sentir ameaçado e sem a necessidade de
um excluir o outro, já que “o valor de um objeto cultural depende também do
sentido que se lhe dá a partir de uma nova leitura, sobretudo se esta desconstrói
leituras alicerçadas no solo do preconceito ” (SANTIAGO, 2004. p.133).

capítulo 4 • 87
4.3  Estudos Culturais no Brasil

Os estudos culturais existem hoje no Brasil como área disciplinar, não nos mol-
des da Escola de Birmingham, mas visando questionar as relações baseadas em
dominação, poder, autoridade e hierarquia em cada cultura e nas diferentes
culturas, principalmente no que tange aos grupos marginalizados.
Os estudos culturais têm relação direta com as ciências sociais e demostra im-
plicação política, cujas análises sempre são parciais e transitórias, acompanhan-
do as mudanças da própria sociedade, que está em constante transformação.
Isso casa perfeitamente com a ideia de Alfredo Bosi (1996, p. 16) quanto à
“cultura [como] o conjunto das práticas, das técnicas, dos símbolos e dos va-
lores que se devem transmitir às novas gerações para garantir a reprodução de
um estado de coexistência social”.
Como se vê, a coexistência social acompanha a ideia de transformação uma
vez que, principalmente:

Nas sociedades densamente urbanizadas, a cultura foi tomando também o sentido


de condição de vida mais humana, digna de almejar-se, termo final de um processo
cujo valor é estimado, mais ou menos conscientemente, por todas as classes e grupos
(BOSI, 1996, p. 16).

No Brasil, os estudos culturais se fazem pela ligação com disciplinas como


sociologia, antropologia e literatura. Desse modo, possuem um caráter multi-
disciplinar, dentro das ciências humanas e sociais.

ATIVIDADE
01. Elabore um resumo crítico com os principais tópicos acerca dos estudos culturais.
Obs: é importante você colocar suas considerações acerca de cada tópico e não apenas
resumir as ideias.

88 • capítulo 4
REFLEXÃO
Os estudos culturais se fazem como elemento inter e multidisciplinar, capaz de revelar aspectos
da sociedade que ficaram escondidos da luz por escolha, desconhecimento ou preconceito.
Raymond Williams entende que o estudo cultural pode se deter sobre a produção intelectual
como um material social que traduz o sentimento das relações que se estabelecem na sociedade.
Já Hoggart observou que a cultura se dá um patamar que vai além do que se considera letrado,
culto ou alfabetizado. Para ele, até uma pessoa iletrada tem capacidade para realizar leituras críticas
acerca da sociedade, já que possui um saber prático, fundamentado nas práticas cotidianas.
Por fim, E. P. Thompson pôs o foco sobre as pessoas comuns e refletiu sobre a formação
das classes sociais e o que elas suscitavam quanto à consciência mediante as experiências
comuns, resultando em identidade que reflete valores e ideais.
Continuando os que antecederam, os estudos culturais no Brasil visam examinar as rela-
ções baseadas em dominação, poder, autoridade e hierarquia, sobretudo quanto aos grupos
menos favorecidos.

LEITURA
CEVASCO, Maria Elisa. Dez lições sobre estudos culturais. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.
MATTELART, Armand. Introdução aos estudos culturais. São Paulo: Parábola Editorial, 2004.
SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. 2ª
ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
WILLIAMS, Raymond. Cultura e sociedade. São Paulo: Nacional, 1969.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARTHES, Roland et al. Análise estrutural da narrativa. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1972.
BARTHES, Roland. Crítica e verdade. Tradução de Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Perspectiva,
1970.
BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo, Companhia das Letras, 1996.
BURKE, P. (org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992.
CEIA, Carlos. E-dicionário de termos literários. Disponível em:
<http://www.edtl.com.pt/business-directory/6910/estudos-culturais/>. Acesso em: 18 mar. 2016.
ELIOT, T. S. Notas para uma definição de cultura. São Paulo: Perspectiva, 2005.

capítulo 4 • 89
GIDDENS, Antony. Modernidade e Identidade. Rio de Janeiro: Zaltar, 2002.
HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
HOGGART, Richard. La culture du pauvre. Paris: Les Éditions de minuit, 1970.
MATTELART, Armand. Introdução aos estudos culturais. São Paulo: Parábola Editorial, 2004.
MIRANDA, Wander M. Comparativismo literário e valor cultural. In: Congresso da Abralic, 6. Anais...
Florianópolis: NELIC, 1998. (CD-ROM.)
SANTIAGO, Silviano. O cosmopolitismo do pobre: crítica literária e crítica cultural. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2004.
THOMPSON, Edward. P. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
THOMPSON, Edward. P. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: Ed. Unicamp,
2001.
WILLIAMS, Raymond. Cultura e sociedade. São Paulo: Nacional, 1969.
WILLIAMS, Raymond. Cultura. Tradução de Lólio Lourenço de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1992.
WILLIAMS, Raymond. Writing in society. London: Verso, 1984.
WILLIAMS, Raymond. Problems in materialism and culture: selected essays. London: Verso, 1980.
WILLIAMS, Raymond. Marxism and literature. London: Oxford University Press, 1977.

GABARITO
Capítulo 1

01. Kristeva coloca a noção de texto como uma espécie de troca entre textos, o que nos leva
ao conceito de intertextualidade, a partir do qual vários textos se interpenetram.
02. O princípio essencial da noção de estrutura do discurso literário, objeto da poética estru-
turalista, decorre de outra formulação de Saussure: a distinção entre langue e parole.
Langue é o sistema abstrato de normas segundo o qual se manifesta a parole, que é uma
espécie de projeção concreta daquela estrutura ideal, formada pelo conjunto hipotético de
todas as paroles do homem.
Assim, qualquer obra literária deve ser entendida como uma parole, isto é, como o uso individual
da langue, que é aquele sistema impessoal constituído pelo conjunto de todos os usos que ante-
cederam a apropriação específica desse sistema por um dado autor, num determinado momento.
03. Os estruturalistas devem voltar-se para o exame da estrutura do discurso literário, abs-
tratamente concebido, do qual as obras concretas não passam de particularizações, pois
a crítica estrutural preocupa-se com a criação de uma poética, não no sentido clássico de

90 • capítulo 4
conjunto de normas ou preceitos para a conquista da adequação das obras aos respectivos
gêneros, mas como uma teoria da estrutura e do funcionamento do discurso literário.
04. Culler propõe o exame do ato de interpretação em si, acreditando que o leitor, de alguma
forma, possui uma competência para a leitura, cuja estrutura precisa ser caracterizada tanto
quanto a estrutura do discurso narrativo. Deslocando a atenção do texto para o leitor, o es-
tudioso norte-americano procura estabelecer o conjunto de regras ou o sistema que rege a
leitura e a interpretação da obra literária.

Capítulo 2

01. A desconstrução, sob a perspectiva de uma crítica textual, funciona como uma espécie
de leitura densa de um texto, seja ele literário ou não, com a finalidade de demonstrar que
o próprio texto se constrói de forma ambígua e com certos antagonismos que ele mesmo
acaba por incorporar e disfarçar por meio de elementos retóricos.
A desconstrução é uma forma de refletir sobre como um texto é formado, ou seja, a descons-
trução como método de análise tem a finalidade de observar e entender como se opera o
processo de escrita.
A desconstrução propõe que um crítico deva desvendar os mistérios que o texto esconde
pela sua própria forma de construção.
02. “Semiologia” é a “ciência geral de todos os sistemas de signos por meio dos quais esta-
belece-se a comunicação entre os homens” (BARTHES, 1968).
03. O objetivo da pesquisa semiológica é reconstituir o funcionamento dos sistemas de sig-
nificação diversos da língua, segundo o próprio projeto de qualquer atividade estruturalista,
que é construir um simulacro dos objetos observados (BARTHES, 1968, p. 103).
04. Resposta subjetiva.

Capítulo 3

01. A estética da recepção é proveniente da Alemanha, no final da década de 1960, como


uma forma de escola de teoria literária pós-estruturalista. Já em 1964, críticos da Universidade
de Konstanz, na Alemanha, onde teve sua origem, principiaram por apregoar as suas disserta-
ções na revista alemã intitulada Poética e hermenêutica – do original Poetik und hermeneutik.
A estética da recepção tem, hoje, dois grandes nomes a serem estudados por destacarem a po-
sição do leitor quanto ao ato interpretativo do texto literário: Wolfgang Iser e Hans Robert Jauss.
Segundo os estudos realizados pela estética da recepção, toda e qualquer obra de arte, lite-
rária ou não, só se torna viva ou materializada, pela ação do leitor em validar a obra como arte
pela leitura que é capaz de realizar.

capítulo 4 • 91
A teoria do efeito estético deriva dos estudos de Wolfgang
Iser quanto à estética da recep-
ção, segundo a qual o texto literário se concretiza em contato com o leitor que imprime nele
um caráter individual, a partir da leitura que realiza.
02. O leitor é privilegiado enquanto autor e texto são deixados de lado como elementos
secundários, já que o objetivo da estética da recepção é defender a importância do leitor no
que diz respeito à recepção crítica de uma obra de arte literária. Para realizar tal intento, os
críticos da estética da recepção precisaram encontrar quais seriam as perspectivas, probabi-
lidades de interpretação da obra de arte, já que os leitores, muitas vezes, são determinados
ou até mesmo dependentes das leituras que já efetivaram e com as quais uma nova teria que
dialogar, principalmente quando as obras coabitam um mesmo gênero ou contexto literário.

Capítulo 4

01. A resenha constituirá um texto subjetivo à medida que você colocar suas considerações
acerca de cada tópico.
Na resenha não basta resumir as ideias principais, você precisa dialogar com elas.

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