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Capa de Benicio
Digitalizado por Carlos Natali
Revisado por Savajo 530331
1
“Está falando sério, moça
— Não acho provável — retrucou o rapaz, sorrindo
levemente. — Mademoiselle caiu, com toda a certeza, de
cima daquele rochedo. Mas, por que teria subido até lá
acima? E como veio parar em Caux? Deve ter utilizado
alguma condução... Seus sapatinhos estão perfeitamente
limpos... Talvez tenha vindo em algum automóvel...
— Sim, talvez — admitiu ela, preocupada. — Não quero
lhes dar mais trabalhos, messiers. Eu própria investigarei os
meus passos, até aqui.
— Por favor — protestou Lucien, envolvendo-a no seu
olhar afável. — Não nos negue o prazer de lhe sermos úteis!
Investigaremos, todos juntos, o seu passado. Só me sentirei
tranquilo depois de vê-la completamente refeita, reentregue
aos seus parentes. E com a memória funcionando outra vez...
A moça encarou-o com seus grandes olhos azuis, e sentiu
o calor que emanava de seu olhar verde. Era uma perfeita
coincidência: os dois olhares se penetravam, se misturavam,
na mesma esperança de entendimento e afeição. E havia
muita pureza nos desejos de suas almas.
— Lucien — murmurou a moça, entregando a mãozinha
magoada ao seu galante salvador. — Lamento não poder lhe
dizer meu nome, pois não me lembro dele. Mas confio em
você e sinto que acabei de encontrar um amigo leal! Serei
muito feliz, aceitando-o como aliado, na tarefa de descobrir
o meu passado! Você e seus amigos me salvaram a vida!
Ser-lhes-ei eternamente grata!
O rapaz, emocionado, beijou-lhe impulsivamente a mão.
— Você será Happy — decidiu ele. — Eu a batizarei
assim, até que conheçamos seu verdadeiro nome. Existe, na
mitologia suíça, uma fada que se chamava Happy.
— Happy, em inglês? — duvidou a moça.
— Escolhi o inglês porque você tem tipo de norte-
americana. E eu sempre gostei desse nome.
O caçador chamado Nills comentou:
— Mademoiselle me parece, antes, francesa. Mas não é
assim, por suposições, que chegaremos à verdade. É preciso
encontrar uma pista, para desvendar o mistério. Sugiro que
comecemos subindo ao alto das rochas de Naye!
Antes da excursão a moça ainda rebuscou os bolsos de
seu tailleur sujo e rasgado, mas não encontrou nada.
Nenhum papel, nenhum objeto, nada! Todavia, Lucien
chamou-lhe a atenção para a etiqueta do casaquinho. A roupa
fora confeccionada por um célebre atelier de modas de Paris.
Infelizmente, no caso, essa loja se democratizara e passara a
fabricar costumes em série.
—- Não adiantaria nada seguir a pista do tailleur —
comentou a moça. — Não foi feito sob medida. Isso quer
dizer que não sou uma dama da alta sociedade...
Subiram às rochas, mas não encontraram nada de
anormal. Todo o platô estava deserto. Também não havia
sinais de nenhum veículo. Mas, ao descerem, acharam
marcas de pneus, na estradinha que corria por trás do
rochedo, ao fundo do bosque de pinheiros.
— Você veio de automóvel — decidiu Lucien.
— Mas os amigos que a trouxeram foram-se embora,
depois de sua queda, acidental ou não. Suponho que o
desastre tenha ocorrido ontem à noite, ou hoje de
madrugada. Agora, vamos para Lausanne!
Deram volta às rochas e tomaram a se internar no bosque.
— Lausanne? — fez a moça, interdita. — Não é muito
longe? Vocês não disseram que Montreux fica mais perto?
— Estamos morando em Lausanne — explicou Lucien,
olhando-a profundamente. — Sempre que caçamos, em
Caux, ocupamos os mesmos aposentos, num hotel de Ouchy,
à beira do lago. Meus amigos são negociantes de Zurique e
eu sou banqueiro. Herdei, de meu pai, a maioria das ações do
Royal Bank mit Zurich, que tem sede na Bahnhofstrass.
Também sou aquilo que se chama, pejorativamente, um
playboy... Você aparenta vinte e cinco anos e eu já fiz vinte e
oito; estamos, pois, em boa idade para trocar confidências...
— Solteiro? — inquiriu ela, apoiando-se em seu braço.
Uma sombra desceu sobre o semblante do rapaz.
— Não. Casado.
— Ah!
— Mas separado da mulher. Ela mora em Zurique, em
minha mansão da cidade velha, à beira do Limmat. Há dois
anos que nos separamos, por incompatibilidade de gênios, e
eu me tornei um playboy...
— Compreendo — murmurou a moça. — Lamento
muito, Lucien. Quanto a mim, não sei se sou casada ou
solteira.
— Você é solteira, Happy, e não tem nenhum
compromisso. Todas as fadas são livres, para poderem levar
a felicidade aos pobres mortais...
A moça sorriu e não disse mais nada. Chegaram à aldeia
de Glion, onde dois automóveis particulares esperavam por
eles. Um dos carros era um sedã Saurer-6, preto, e o outro,
um Alfa Romeu Giulia SS, branco, de dois lugares, que logo
encantou a bela desmemoriada.
— Que beleza! — exclamou ela, afagando o capô do
carro. — Carroçaria de Bertone!
Lucien assentiu, contente com a alegria dela.
— Este é o meu carrinho, Happy. Eu tinha uma
Mercedes, mas preferi o novo lançamento da Alfa. Você
gosta dele?
Ela examinava o carro por todos os lados, maravilhada.
— Adorei! Estou pedindo a Deus para que eu seja
bastante rica e tenha uma bólide como esta! Mas não creio
muito nisso... Eu devo ser pobre.
— Se você gosta do carro — disse Lucien, sorrindo —
ele é seu!
— Como? — fez ela, alarmada.
— Empresto-lhe o meu carrinho, até que você encontre o
seu. Não há nada mais fascinante do que a alegria nos olhos
de uma mulher bonita... O carro é seu, Happy! Você o
conquistou com o seu charme!
— Oh, não! É um absurdo, Lucien! Você está falando
sério?
— Sempre falo sério.
Entraram no Alfa e o rapaz sentou-se ao lado do assento
do motorista. A moça apanhou as chaves, na mão dele, e
tomou o volante. Agia com extrema segurança, como se sua
profissão sempre tivesse sido a de chauffeuse.
— Será que você sabe dirigir? — perguntou Lucien,
olhando-a de soslaio. — Quero dizer, será que você não se
esqueceu?
Como resposta, ela ligou o motor e deu partida ao
carrinho. O Alfa tinha cinco marchas e um potente motor
que lhe dava uma velocidade de cento e vinte cinco milhas
por hora. O outro veículo, pesadão, foi atrás deles. Lucien,
mal contendo a alegria, indicou a estrada para Montreux, que
dominava o Castelo de Chillon. Passaram pela cidadezinha, à
beira do Lago Léman, e seguiram, pela corniche, para
Clarens. As aldeias eram rústicas, mas as rodovias
excelentes. Pelo caminho, o rapaz falava, falava sem parar,
contando sua vida e queixando-se de sua solidão. Muito rico,
mas infeliz, ele nunca se detinha em nenhum dos lugares por
onde passava, em busca de um bálsamo para a sua alma
solitária. Aqueles dois anos tinham sido bastante
desagradáveis.
— Infelizmente — disse a garota, dando maior
velocidade ao Alfa — não passo lhe dizer se sou feliz ou
infeliz. Não conheço a mim mesma. Mas, neste momento,
Lucien, sinto-me a mais ditosa das criaturas!
— Por causa do automóvel? — perguntou ele, desviando
a vista para a paisagem.
— Não. Você sabe que não. Por causa de você!
Ele virou o rosto, para encará-la. Estava emocionado.
— Eu também lhe agradei, Happy?
— Muito! Você é culto, simpático, elegante, e... e
também tem charme! Não entendo como um bonitão desses
pode ser solitário!
Ele tomou-lhe uma das mãos e levou-a aos lábios.
— Happy, você pode não acreditar, mas eu já estou
fascinado por você!
— Nesse caso — retorquiu ela, sorrindo — vou parar o
carrinho. Corremos muito, nestes últimos minutos, e
deixamos os seus amigos para trás. Sou como você, Lucien,
e também gosto de correr... Há certas coisas que se devem
fazer sem refletir muito, para que não percam o sabor...
Freou o Alfa, na entrada de Clarens, e voltou-se no
assento. Sua saia subiu até acima, pondo à mostra as pernas
maravilhosas. Lucien abraçou-a e puxou-a para si. Seus
lábios se uniram, num beijo longo. Ele também sabia beijar
muito bem.
— Você é uma deusa, Happy — murmurou o rapaz,
recuperando a respiração e lhe afagando o corpo trêmulo de
desejo. — Seremos muito felizes, juntos, enquanto durar este
nosso sonho!
Ela segurou-lhe a mão, que se tornara audaciosa demais.
— Meu Deus! — suspirou. — Que revelação! Não sei
quem sou, mas, pelo visto, devo ser uma garota muito sem-
vergonha! Você não acha?
— Não — respondeu ele, abrindo-lhe o decote, para
beijá-la na cova dos seios. — Acho que você é honesta e
decente. Foi o amor que nos tomou apressados...
Nesse momento, ela sentiu que alguma coisa estralejava,
no forro de seu casaquinho bege. Rasgou uma beirada do
pano e tirou um envelope em branco. Lucien separou-se dela
e desviou discretamente os olhos para trás, a fim de ver se
aparecia o sedã Saurer de seus companheiros de caçada. A
moça tirou do envelope um bilhete, escrito em francês, que
dizia:
“Mademoiselle
Estou pronto para lhe falar sobre a Casa de
Saúde e as doenças mentais. Encontre-se comigo
no hotel, na Rua des Beaux Arts, esta noite sem
falta.
Paul Provence.”
CAPITULO SEGUNDO
L’Hotel — Ciumadas
Happy conhece o famoso Simone des Boulevard
O marroquino do Café Dupont — Uma cilada no alto de Montmartre
2
“Depressa! Tenho fome, ainda não almocei!”
Não havia mais ninguém, na casa de campo, a não ser a
velha cegueta e outra empregadinha, que se trancou,
chorando, num quarto dos fundos. Enquanto Simone
mantinha o italiano sob a mira da pistola, Brigitte deu uma
busca no porão, onde encontrou um monte de caixotes,
cheios de frascos de ácido lisérgico. À vista das provas, Mr.
Santuzzi resolveu confessar.
— Certo. Mr. Gillet usava esta casa como depósito para o
ácido. Mas não sei de onde vem a droga, nem estou disposto
a trair o meu patrão! Sou um camponês, ingênuo e simples,
que alugou o porão a um homem esperto da cidade!
— Desconfio que não, Monsieur Santuzzi — replicou
Brigitte, recuperando a arma das mãos de Simone. —
Desconfio que o senhor é um sócio de Monsieur Gillet! O
senhor sabe de muito... e vai nos contar tudo!
Estavam na sala, sob a vigilância silenciosa (de olho
arregalado) da velha empregada. O italiano abriu os braços.
— Alla fine, é passato! Quero um advogado!
— Creio que não me expressei bem — retorquiu Brigitte.
— Não somos, exatamente, da polícia. Somos duas cidadãs
parisienses, interessadas em acabar com os infames
traficantes de tóxicos que estão corrompendo a juventude!
— Duas cidadãs? — gemeu o gordo, contemplando
Simone com um olhar fixo. — Mas, então, talvez possamos
entrar num acordo... Se é dinheiro que vocês querem, minhas
belas ragazzas...
— Não, não é dinheiro. Queremos descobrir o paradeiro
que Monsieur Gillet, que é o maior responsável pela venda
das drogas em Paris e nos Estados Unidos! O senhor vai nos
ajudar, Monsieur Santuzzi! Sabemos que o senhor é boa
gente...
— Não contem comigo! Não direi nada! Niente!
— Nem mesmo depois que minha amiga lhe arrancar os
pelos do corpo? Veremos!
— Vocês não ousarão! — O homem eslava lívido.
— Veremos! De qualquer maneira, o senhor está
“queimado”, pois a polícia já sabe que Paul Provence foi
morto em 1’Hotel e seu cadáver trazido para esta casa. Um
vizinho viu o corpo, sendo transportado num automóvel, e
está pronto para testemunhar. Onde enterrou Paul Provence,
Monsieur Santuzzi?
— Se alguém morreu, não fui eu quem o matou! Eu não
mato ninguém!
— Sei disso. Monsieur Gillet o matou e o senhor o
enterrou! Onde está o corpo?
— Na floresta — respondeu o italiano, contrariado. —
Recebi ordens para enterrá-lo discretamente. Se eu não
fizesse isso, seria castigado pelo meu patrão. Ele não tolera
desobediências. Mas, não sei onde vocês poderão encontrar
Mr. Gillet! Ele saiu de Paris!
— Se o senhor sabe disso — tomou Brigitte — é porque
seu patrão esteve aqui nestes dois dias mais chegados! Há
três dias apenas, que Mr. Gillet desapareceu de 1’Hotel.
— Sine — confessou o gordo. — Mr. Gillet estive aqui
ontem. Queria saber se Paul Provence fora enterrado. Mas,
depois, voltou para Paris e...
— E foi para a Suíça?
— Não posso dizer mais nada! Paul Provence era um
traidor! Queria entregar o chefe! Não tenho pena dele! Todos
os traidores merecem a morte! Por isso, eu nunca me tornarei
um traidor! Desidero il mio avvocato! Io non parlo niente!
— É o que veremos, Mr. Santuzzi!
Atendendo a um sinal de Brigitte, Simone começou a
despir o robe e a camisa do homem. À vista de seu peito
cabeludo, o rapaz sorriu.
— Que maravilha! Quantos pelinhos para arrancar!
— Espeta! — implorou o italiano, lívido de pavor.
— Per favore, deixem-me respirar! Eu... eu não suporto
torturas! Per favore, signorinas! Posso... posso tomar uma
dose de esquecimento?
— Depende do tipo de esquecimento. Não queremos que
o senhor adormeça.
— LSD. Apenas duzentas microgramas, num copo
d’água. É o bastante para me acalmar os nervos e me fazer
falar.
Brigitte acenou afirmativamente. O homem correu para a
cristaleira e preparou uma poção, num copo de pé alto.
Simone vigiava-o, alerta. Mas ele limitou-se a ingerir o
líquido, respirando aliviado. Na mesma hora, porém, fez uma
careta e largou o copo, que se espatifou no chão.
— Non é possibile! — gemeu, levando as mãos ao
estômago. — Mr. Gillet trocou os frascos!
Agora havia na sala um pronunciado cheiro a amêndoas
amargas.
— Ácido cianídrico! — gritou Brigitte, alarmada.
A velha cegueta correu a amparar o patrão, mas este
arregalou os olhos e caiu, de borco, no assoalho. Brigitte
ajoelhou-se ao lado dele.
— Depressa! Fale!
— Non parlo niente! — teimou ele, abanando a mão
mole.
— Fala, sim! Não compreende que o velho quis matá-lo?
O senhor sabia que ele matara Paul Provence e ele não
queria testemunhas! Esperou que o senhor enterrasse o corpo
e trocou a sua dose de esquecimento! Uma ampola de ácido
cianídrico, Mr. Santuzzi, é um esquecimento definitivo!
— Sine — gemeu o italiano, quase sem voz. — Ele me
matou! Mr. Grogan... Lausanne... A clínica da casa... uma
casa de doidos! Ecco! Uma casa de doidos!
E não conseguiu dizer mais nada. Estava morto.
CAPITULO SEXTO
Lucien volta de Zurique — O Chateau de Claren
A refinaria da morte — Mr. Grogan revela o roteiro das drogas
Tratamento especializado com eletrochoques
CAPITULO SÉTIMO
Representação teatral na Sala de Cirurgia — A revolução dos doidos
Tragédia na Torre Sul — Adeus, Mr. Grogan
4
“Eu te desejo boa sorte!”
— Depressa! — soou a voz do velho risonho, num alto-
falante da parede. — Vocês estão demorando muito!
Schnell! Gehen Sie schnell!5
François adaptou os eléctrodos nas partes mais sensíveis
do corpo de Brigitte e acenou para. Franz. Este ligou a
máquina. Ouviu-se um zumbido e o manômetro acusou um
nível de eletricidade igual a cem volts.
— Cem volts! — anunciou o louro.
E Brigitte pôs-se a representar o mais impressionante
papel de sua carreira. Gritou, esperneou, retorceu-se como
uma lagosta, e acabou virando a mesa e tombando no chão,
presa de convulsões horripilantes. Até o moreno François
estava sensibilizado com a cena.
A agulha, no manômetro, continuou a subir lentamente.
— Quinhentos volts! — gritou Franz.
Na parede, uma telescópica de TV voltou-se para o
manômetro e captou, em close, a imagem da agulha,
marcando o número quinhentos. Deitada de bruços no solo,
com a cama em cima das costas, Brigitte recomeçou a
espernear, espasmodicamente, como uma presa em agonia.
Seus dentes cerrados deixavam passar o ar represado, que
sibilava sinistramente. Afinal, soltou um gemido cavo e
ficou imóvel.
— Chega! — ordenou a voz, no alto-falante. — Levem-
na para a enfermaria e deem-lhe uma injeção estimulante!
Consultem o Dr. Martius! Dentro de quinze minutos, soltem-
na no cais, nua como está, e com um barrete vermelho!
François desligou os fios elétricos e tirou as correias do
corpo encolhido da vítima. Brigitte não dava acordo de si
Depois que eles retiraram a cama, permaneceu imóvel, de
bruços, com as pernas dobradas.
5
“Rápido! Vá depressa!”
— Desconfio que ela não aguentou — disse o mafioso
moreno.
Em silêncio, Franz inclinou-se para a garota, a fim de
levantá-la nos braços.
— Não — murmurou ela, sem abrir os olhos. — Você,
não! Deixe que François me carregue!
Perturbado à vista daquelas lindas nádegas, expostas à luz
crua, Franz balbuciou uma desculpa e esperou pelo
cúmplice. François também estava impressionado com a
posição de Brigitte.
— É uma bela menina — disse ele, respirando fundo. —
Deixe que eu a levo para a enfermaria. Também quero lhe
aplicar a injeção.
Inclinou-se, agarrou no belo corpo inerte e ergueu-o
facilmente, estreitando-o contra o peito. Os braços macios da
moça recaíram, molemente, em torno de seu pescoço. O
mafioso sorriu e caminhou para a porta. Franz foi atrás dele.
Não havia ninguém no corredor, que ligava a Casa de Vaud à
escada do Great Hall, no andar térreo. Súbito, François
arregalou os olhos e abriu a boca, pondo a língua de fora.
Asfixiado pela “gravata” daqueles braços (magros, mas
fortes) o homem cambaleou e largou o seu fardo. Brigitte
caiu de pé e manteve o estrangulamento, fazendo o mafioso
tombar de joelhos, agarrado aos seus punhos.
— Que está fazendo? — bradou Franz, acudindo.
— Não vou servir de alvo para as flechas de seu chefe —
respondeu a garota, acabando de esganar o primeiro
carrasco. — Você está comigo ou contra mim?
O corpo de François rolou e ficou estirado no corredor.
Brigitte enfrentava o outro homem, nua, de pernas abertas, as
mãos na cintura, como uma estátua de marfim dourado.
Franz hesitou, pensando mil coisas ao mesmo tempo.
Depois, vencido pela voz da “omertà”, meteu a mão na
cintura para apanhar a pistola.
— Contra você — respondeu. — Eu não devia ter feito o
que fiz! As mulheres sempre foram a minha perdição!
Brigitte saltou em cima dele, como uma gata selvagem, e
agarrou-lhe o pulso, antes que ele lhe apontasse a arma. Uma
torção no braço fez a pistola cair das mãos do gigante.
— Maldita!
Foi só o que pode dizer. A mão esquerda de Brigitte
atingiu-o, sucessivamente, em três pontos vitais do corpo —
na carótida (murasamé), sobre o coração (kyo-ei) e no baixo-
ventre (kintéki) — provocando-lhe uma sincope mortal.
Pouco a pouco, o corpo robusto do mafioso foi-se
encolhendo e acabou por desmoronar no meio do corredor.
“Que pena — pensou Brigitte. — Era um belo rapaz!”
Não tinha tempo a perder. Agarrou na pistola e desceu,
correndo, a escada. Havia dois guardas armados embaixo, no
grande hall, mas a moça passou por eles com tanta rapidez
(como uma visão de sonho) que ficaram na dúvida sobre a
sua existência. Era difícil conceber uma mulher, bela e nua,
esvoaçando pelo Chateau de Clarens... Quando os mafiosos
voltaram a si do espanto, a garota já tinha entrado pela porta
da Sala dos Cavalheiros (transformada em almoxarifado) e
corrido para a porta dos Aposentos do Sul. Junto desta,
encontrou duas enfermeiras alarmadas.
— De onde vem você? — perguntou uma delas. —
Worum handelt es sich?6
Era Gretchen. E tinha nas mãos as chaves do Pavilhão
dos Desesperados. Brigitte ergueu a pistola, ao mesmo
tempo em que a mulher lhe jogava o molho de chaves. O tiro
partiu, desviado pela pancada, e foi a segunda enfermeira
6
“De que se trata?”
que tombou, com uma bala no ombro. Gretchen soltou um
grito e correu para o pátio. Brigitte agarrou nas chaves e foi
atrás dela. Já da porta, tomou a atirar. Dessa vez, a bala
alcançou a mulher, derrubando-a. Mas o alarma já fora dado!
Médicos e enfermeiros surgiram na entrada dos Aposentos
do Norte, berrando como alucinados.
— É a polícia! Atirem para matar!
Brigitte atravessou o pátio, numa carreira, e foi
experimentar as chaves nas portas dos pavilhões. Já soavam
tiros e imprecações nos Aposentos do Sul, cada vez mais
próximos. A moça conseguiu abrir as três portas, uma atrás
da outra, soltando os loucos alegres e lamurientos.
— Salve-se quem puder! — gritou ela, indicando os
médicos e as enfermeiras que acorriam. — Desembaracem-
se deles e fujam deste inferno!
Ao abrir o terceiro pavilhão, sua surpresa foi imensa. Ali
estava Simone des Boulevards, com o terninho rasgado e um
olho negro, maior do que o outro!
— Simone!
— Brigitte!
— Que fizeram com você, meu bem?
— Foi aquela enfermeira! Vingou-se, em mim, do golpe
que você lhe aplicou! Me pegaram!
— Agora, a enfermeira foi para o beleléu! Junte-se aos
internados e comande a revolução! Não temos outro jeito
senão lançar mão dos doidos, para destruir este ninho de
traficantes de tóxicos! Oriente-os... e acabe com esses
bandidos! Há muitos frascos de remédios no depósito da
clínica! Certos ácidos, bem agitados, podem servir como
Bombas Molotov!
Simone compreendeu a situação e tomou a si a tarefa de
sublevar os loucos. Alguns deles estavam acorrentados à
parede, como na Idade Média, mas o rapaz rompeu as
correntes com um pedaço de ferro. Encantados, os dementes
seguiram-no, como um batalhão ululante.
— Arrebentem tudo! — berrou um esquizofrênico, a boca
cheia de baba.
Os médicos e as enfermeiras viram-se envolvidos pela
turbamulta e recuaram, em busca de armas. Mas os loucos,
com Simone à frente, invadiram a Sala dos Cavalheiros e
apropriaram-se de facas, bisturis e vidros de éter, atirando-os
contra os inimigos. A desordem se estendeu aos Aposentos
do Norte e ao poço das escadas. Ouviram-se rajadas de
metralhadoras (quando os guardas acudiram), mas a gritaria
dos insanos acabou por triunfar. Envolvidos pelos loucos, os
mafiosos foram dominados. Dentro em pouco, os pacientes
eram senhores da situação, no andar térreo, e divertiam-se
quebrando a cabeça dos guardas, desarmados na luta.
Enquanto isso, Brigitte corria para a Residência do
Governador, onde ainda reinava a ordem. Um mafioso
montava guarda à porta do escritório de Mr. Grogan. Tinha
uma metralhadora na mão.
— Que foi que houve? — perguntou, olhando espantado
para a garota nua.
— Aconteceu o diabo — respondeu Brigitte.
E deu-lhe um tiro à queima-roupa. O guarda caiu, sem
um protesto. Brigitte apanhou a submetralhadora, jogou fora
a pistola e arrombou a porta do gabinete. Estava vazio. O
velhote risonho não se encontrava lá dentro.
Então, ela se lembrou de que Mr. Grogan pretendia caçá-
la, com arco e flecha de uma das ameias da Torre Sul.
Voltou ao corredor, atravessou o grande hall (onde alguns
loucos e enfermeiras trocavam bofetões) e alcançou a escada
em caracol que conduzia ao alto da torre. Subiu rapidamente.
No alto, desembocou numa barbacã e, daí, passou para o
estreito corredor, ladeado pelas seteiras do castelo.
Encostado a uma delas, estava o velho da cabeleira branca.
— Alô, Mr. Grogan! — saudou Brigitte, ferozmente.
O contrabandista voltou-se vivamente, pestanejando. Na
sua frente, sobre uma das ameias, estava o dardo envenenado
e, sobre outra, uma arco e flecha de grandes proporções.
Indeciso, o velhote não sabia qual das duas armas devia
apanhar primeiro. Brigitte valeu-se disso para não permitir
que ele apanhasse nenhuma. Correu para cima do adversário
e agarrou-o pelos cabelos.
— Está preso, Mr. Grogan!
Mas o homem soltou um urro e escapou por entre as suas
mãos, deixando a cabeleira nos seus dedos empados. Era
uma peruca! Por baixo dela, o crânio do traficante era
completamente calvo!
— Maldição! — rugiu Brigitte, deixando cair a
submetralhadora.
O velhote era muito ágil, para a idade. Quando a garota o
alcançou, ele já ia descendo as escadas. Brigitte puxou-o
pelos fundilhos das calças e arremessou-o contra a parede.
Então ele se acocorou e meteu a mão no bolso. Ao retirá-la,
tinha um canivete de ponta e mola espetado entre os dedos. E
agia como um autêntico apache.
— Voilà! — E deu um golpe em profundidade.
Brigitte saltou para um lado, na passagem estreita, e
aplicou um pontapé no pulso do homem. Mas este não
largou o canivete. Outro golpe, cuja plenitude a garota
evitou, e seu braço começou a sangrar. Mr. Grogan sorriu
ferozmente, à vista do sangue.
— Vou cortá-la em pedaços, mademoiselle!
A garota cambaleou até à beira de uma das ameias, onde
se apoiou, pronta para se defender a pontapés. Outra
punhalada do velho fez-lhe um novo talho, no tornozelo. Era
um massacre! Ela sentiu que as forças lhe faltavam. E o
inimigo arremetia, outra vez, decidido a dar o golpe de
misericórdia.
— No pescoço, mademoiselle!
Nisso, alguém gritou, no cais, e uma labareda quente
subiu pela parede externa do castelo, lambendo a base da
torre. O Chateau de Clarens estava pegando fogo! Mr.
Grogan hesitou, com o canivete ensanguentado no ar. E
Brigitte, lançando mão de suas derradeiras forças, agarrou-
lhe o pulso armado. O velhote, porém, era muito forte.
Paulatinamente, ele foi erguendo o corpo nu da garota,
tentando atirá-lo por cima das ameias. O cais ficava a mais
de trinta metros, lá embaixo. Súbito, Brigitte amoleceu o
corpo, entalando-o na ameia, e puxou o braço de seu
antagonista, obrigando-o a ficar sobre ela.
— Olho por olho, dente por dente — disse a moça,
erguendo os joelhos. — Se você tiver sorte, ficará, como eu,
balançando na copa de um pinheiro! Adeus, Mr. Grogan!
Perdendo o equilíbrio, o velho voou por cima de ameia e
despenhou-se no vácuo, soltando um grito prolongado. Mas
lá embaixo não havia pinheiros.
CONCLUSÃO
7
“Aranha”, era uma organização secreta que ajudou os nazistas a fugiram para a
Suíça em 1945, ao término da Segunda Grande Guerra.
Depois do almoço, apanhou alguns papéis e pôs-se a
escrever a reportagem para o “Morning News”. Também
redigiu um relatório para a CIA (com cópia para a Interpol),
no qual revelava todos os detalhes do caso que acabara de
resolver. Não se esqueceu de informar a Sureté sobre a
ameaça que pairava sobre Lili d’Anvers, pedindo para que o
travesti fosse bem protegido, em sua ida ao tribunal. Mas era
duvidoso que os elementos da quadrilha de Mr. Grogan
pudessem fazer alguma coisa, pois a destruição de seu QG
levaria a polícia a agarrar todos os remanescentes, na Suíça e
na França. Aquele ramo da Máfia, pelo menos, estava
liquidado.
Só depois de entregar a reportagem (e o relatório cifrado)
na portaria do hotel, para que os mandassem pelo correio, é
que ela se lembrou de Simone. Correu ao hall e ali o
encontrou. O elegante rapaz estava sentado num sofá,
sorrindo languidamente para um hóspede alto e musculoso,
que se sentara ao lado dele. Brigitte agarrou o seu amigo por
um braço e arrastou-o para fora do hotel.
— Que está fazendo comigo? — protestou Simone. —
Que brutalidade!
— Vou raptá-lo — sorriu Brigitte. — Vamos jantar num
restaurante pitoresco de Lausanne e, depois, passear pelos
campos, à beira do lago. Mas iremos de trem!
— De trem? Como plebeus?
— Sim. É apenas meia hora, de Lausanne e Montreux.
Saltaremos perto dos Rochedos de Naye e passaremos a
noite ao ar livre. Acho que você é até certo ponto
recuperável, Simone!
— Ah, Brigitte! Não me tente, por favor!
Gastaram a noite passeando pelas aldeias vizinhas de
Lausanne — desde Pully, Cully e Lully até Montreux — e
foram se deitar na grama de Caux. Quando a madrugada
irrompia sobre a bela paisagem sonolenta, Brigitte não pôde
deixar de recitar os versos de Jean Graven, o poeta suíço:
“Dans le soir transparent, la flûte des moustiques vibre
comme la dard aigu de la clarté...”8
Mas o maior milagre não foi o da poesia, foi o do sexo.
Simone des Boulevards, há muito entusiasmado com a
beleza de sua companheira, acabou vencido pela sua
natureza, despertada num arroubo de paixão. E ele cumpriu,
fiel e carinhosamente, os seus deveres de cavalheiro. Ao
menos, por uma noite.
A SEGUIR:
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“Dentro da noite transparente, a flauta dos mosquitos vibra como dardo agudo da
claridade”