Cap. 5 Ansiedade e Criatividade

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;, Criatividade e ansiedade “Quanto mais possibiidades criadoras o homem tver, como individuo, maior seré a sua ansiedade potencial,” (May, 1977, p. 75) CoMo VIMOS, AS pessoas Criativas so mais sujeitas avivéncias de ansiedade, embora para o leigo isso possa soar estranho. £ co- mum imaginar 0 contrario, mas o fato é que entre os custos da criatividade esta o incremento da ansiedade fundamentado na maior capacidade de consciéncia pessoal e social, Ajustamentos criativos - a “transigao sempre renovada entre a novidade e a rotina que resulta em assimilacdo e crescimento” (Perls, Hefferli- ne e Goodman, 1997, p. 45) - sao encontros com 0 novo e exigem novos cuidados, os quais, por sua vez, so despertados pela an- siedade saudavel. Para a Gestalt-terapia, a criatividade é condigSo basica de vida saudavel, como frisa Ciornai (1994, p. 11): em Gestalt-terapia, funcionamento saudavel ¢ literalmente equa- cionado como funcionamento criativo, como a habilidade de es- tabelecer contatos frescos e criativos com o que for que a pessoa esteja se relacionando, como a habilidade de gerar e manter flu- x0s de consciéncia que possam conduzir a solugées satisfatbrias e Tiativas em nossas vidas. Uma caractertstica que identifica os se- Tes humanos. Criatividade 6, portanto, um processo da vida. Para Zinker (2007), a criatividade é a realizagao do que é ur- Bente, do que exige ser anunciado. E a forma intrinseca de o Scanned with CamScanner ENIO BRITO PINTO homem ampliar seus limites e promover mudangas em Sua Vida, Para Perls, Hefferline e Goodman (1997; p. 91), a criatividade fa, parte da natureza humana: “A autocria¢ao, o ajustamento criati. vo em circunstancias diversas, tem ocorrido desde 0 comego, nao completamente como um ‘condicionamento’' extrinseco que pode ser ‘descondicionado’, mas principalmente como crescj- mento verdadeiro”. Quando Perls, Hefferline e Goodman (1997, p. 45) refletem sobre a interface entre a ansiedade e a criatividade, eu me encon- tro em um movimento de discordancia e de concordancia. Isso porque os autores afirmam que a ansiedade é “fator preponde- rante na neurose, como consequéncia da interrupgao do excita- mento do crescimento criativo (com a falta de félego que a acom- panha)”. Discordo porque penso que falta a Gestalt-terapia, e especialmente a Perls, a visio da ansiedade como saudavel ou patoldgica, a depender da situagdo, 0 que acaba por provocar 0 entendimento da ansiedade como sempre patoldgica - 0 que nio éverdade, como j4 mostrei intimeras vezes ao longo deste texto. Concordo porque de fato a ansiedade patoldgica, praticamente 4 tinica existente para o seu olhar, de fato pode emergir como cot sequéncia da fuga A criatividade, fuga que se dé porque a criativr dade é desestabilizadora, porque ela busca e gera insegurangs- Na realidade, cada um de nés tem movimentos de busca de fuga da criatividade. Penso que no seria suportavel lidar co™ a criatividade todo o tempo. Ento, desenvolvemos padr6es que mos deixam mais confortaveis para lidar com determinadss Seat men en at pean ut aon oo na Nos anestesiarmos. ne seria Se eertor ee oe © tempo. Em meio a esse pa aa ‘© Como caminho para criar, pat 100 Scanned with CamScanner DIALOGAR COM A ANSIEDADE preservando o antigo, compondo um processo de autorregula- cdo indispensdvel para uma existéncia suficientemente saudavel, Segundo Goldstein (2000, p. 239), a pessoa criativa que se aventura em muitas situacdes que a expéem a embates se verd ainda mais frequentemente em si- tuagdes de ansiedade que a pessoa mediana. As pessoas dife- rem em quanta ansiedade podem tolerar. Para o paciente com danos cerebrais, a porgio é baixa, para a crianga, grande, e para os individuos criativos, imensa. E curioso perguntar: por que a capacidade de tolerar ansie- dade é imensa para o individuo criativo? Que relagdo é essa? Nao conheco nenhum texto em que Goldstein tenha desenvolvido essa ideia. Minha hipotese mais confidvel deriva de observacdes que faco de pessoas criativas e de momentos criativos que ja vivi. Penso que a criatividade gera sobretudo quatro reagGes. Primeiro, ela gera algo que € vivido como um desafio, um desejo de realizar determinada transformagdo mesmo que seja necessario enfren- tar o ambiente, como a crianga enfrenta a mae excessivamente ansiosa que nfo a deixa explorar o mundo. Segundo, a criativida- de exige expressdo, no se contenta em ser potencial, embora Possa suportar, por algum tempo e nado sem dor, adiamentos e até Mesmo postergaces. Mas uma hora ela se impée. Terceiro, ase impor, a criatividade traz risco, ea pessoa criativa vai desde muito cedo aprendendo a correr determinados riscos, com os acertos € etros inerentes a essa aprendizagem. Isso se da porque a goat dade € potencial humano que desde cedo precisa realizat-ses e tem sua primeira realizacdo na propria percepcio € aceitagao de Si ~ isto €, a criatividade precisa ser aceita pela pessoa desde 101 Scanned with CamScanner ENIO BRITO PINTO muito cedo. Assim, acredito que 0 individuo criativo é aquele que, com 0 apoio de seu ambiente, logo descobriu como é bom ser criativo, ainda que o ato criativo nao seja 6 prazeroso, Quar- to, o gesto criativo, assim como 0 ajustamento criativo, é fruto de excitaco ao mesmo tempo que a alimenta. Nao se trata de uma excitacdo imediatista como aquela gerada por certas drogas, mas daquela que saboreia mais 0 processo que o resultado, ainda que este também seja bem saboreado. A criatividade tem excitacio e um alimento agridoce. Uma das funcées da criatividade é paradoxal, pois com elaas paciéncia (ainda que limitada): pessoas dialogam com a ansiedade e entram em contato como novo para criar segurancas nas quais se apoiar e aliviar a ansieda- de, num movimento de constante renovagao baseada na preser- vagao de parte do antigo. A cultura é criada assim, novos valores se apoiando e, ao mesmo tempo, transformando antigos valores em busca de formas mais confidveis de coexisténcia. Nesse processo, ha uma intima relacio entre a personalida- de criadora e a exposicio frequente a situagdes de ansiedade. Para Goldstein (2000, p. 240), “as pessoas que aceitam o desafio © 0 tisco langando-se as experiéncias colhem os resultados, e” quanto as que se sentem temerosas, que evitam expor-se, mal ‘€m uma atitude defensiva de autoprotegio, fugindo das situa §9€S que geram ansiedade”. Segundo Zinker, (2007, P: 12) 4° define a criatividade como um ato de valentia, a pessoa criativa acaba por estabelecer para si uma disponibilidade para se artis car de forma especial, como se dissesse: “Estou disposto # arriscat-me ao ridiculo e ao fracasso pata experimentar este dia a Rovidade € frescor. Aquele que se atreve a criat, a transpo" ae ie preartina de um milagre, mas chega a descobrit so de ser, ele é um milagre’. 102 ae A Scanned with CamScanner DIALOGAR COM A ANSIEDADE Para a maioria dos seres humanos, a busca da terapia é um movimento de enfrentamento de ansiedades €, 86 por isso, im- plica o incremento da criatividade e da ampliagio da Percepcio desse milagre de que fala Zinker. Aquelas pessoas - tantas! - que nao conseguem procurar terapia quando dela necessitam sio as que mais temem a prépria criatividade, talvez Por seu poder de desalojar supostas certezas. Mais rigidas e mais proximas da an- siedade patolégica, tais pessoas se desperdicam, desperdicam potenciais, de forma um pouco mais grave, embora semelhante, aquelas que ndo se desgrudam do celular e, com isso, evitam Contatos e encontros nutritivos de pessoa a pessoa. Uma das fronteiras em que mais encontramos 0 didlogo entre a criatividade e a ansiedade é a fronteira de valores, dado que a transformagao de valores depende de criatividade e de coragem para assumir riscos. Quando a pessoa consegue fazer frente a esses tiscos, quando ousa mudar padrées, pode viver certo isolamento social inicial, até mesmo certa tejeigao de algum grupo, pois os grupos séo ambivalentes, como vere- Mos a seguir. No entanto, como bem aponta May (197, p- 76), “s6 se obtém a individuago desde que se avance, apesar do Conflito, da culpa, do isolamento e da ansiedade. Se a pessoa nao avangar, o resultado sera, em ultima instAncia, a ansieda- de neurdtica”, No avancar que a criatividade impée, de certa forma, sane Tentemente hd escolha. No processo de auttoatualizagao ¢ impos- Sivel escolher nao nos atualizar, exceto a um custo muito alto: a ‘stagnagéo e o adoecimento. A autoatualizagao se impée, ¢ se impée mais fortemente para os mais criativos, como se ie uma espécie de proceso de selecdo natural no qual os mais aP- ‘08 sto chamados a abrir caminhos. 103 Scanned with CamScanner ENIO BRITO PINTO Certa vez vi uma charge que me encantou porque, no mey modo de ver, descrevia 0 processo da criatividade e sua impera- tividade. A cena mostra a sala de um psicanalista, inclusive com diva, no qual hé uma cobra deitada como paciente e, atrs do mével, um analista, caneta em punho. No cho, a pele da cobra. Olhando para essa pele, o animal exclama: “Ve? Justo quando eu estava me acostumando, isso acontece!” Assim como a cobra nao escolhe trocar regularmente de pele, assim como ela tem de conviver com isso a cada ciclo, também a pessoa criativa nio consegue escapar da necessidade de criar; assim como a cobra vive momentos de maior sensibilidade cutanea depois da troca, também a pessoa criativa vive um incremento da an- siedade até o ato criativo e um pouco depois dele; assim como a cobra absorve no devido tempo sua nova estrutura, 0 indivi- duo criativo cresce com 0 apoio dos atos criativos, dos poten- ciais que se realizam. A criatividade é transformadora, desalojadora de comodi- dades e de segurancas previamente adquiridas, busca 0 novo ~ na verdade, gera como que uma necessidade de busca do novo, da renovacao do conhecido, de originalidade. Com isso, elaesti- mula a abertura para a aventura e, por conseguinte, pata 0 isco. A ctiatividade provoca a aproximagao da ansiedade e, 20 mesmo tempo, a capacidade de vencer as ameagas ansiogénicas com es pontaneidade, crescimento, construtividade e trabalho. Iss porque o ser criativo vive situages ameacadoras mais como de- safio que como obstéculo, e se langa com cuidado a expe do novo; em geral, colhe resultados melhores que aquelas temerosas, evitam expor-se, autoprotegem-se de maneira exage” tadamente defensiva, ndo cuidadosa, evitando as situagbes Pr” vocadoras de ansiedade. rigncia ques 104 a Scanned with CamScanner DIALOGAR COM A ANSIEDADE B importante para mim deixar claro o que estava implicito até aqui. Criar nao é sé fazer uma obra de arte ou uma tevolugio na cultura. Criar € algo que acontece no cotidiano, em Peque- nos passos, por meio de mudancas sutis. Os Principais frutos da criatividade muitas vezes nem sao percebidos ou valorizados a altura, e por isso devem ser saboreados com humildade e grati- dio, como pequenos pedagos de ambrosia ofertados pelos deu- ses olimpicos. Criativa no é s6 a poesia de Adélia Prado, mas 6 também a solidariedade com a vizinha; no é s6 0 quadro de Portinari, mas o olhar encorajador para o aluno; nao é s6 0 res- tauro delicado de histérica porcelana, mas admiragio com 0 voo azul da andorinha; nao € sé a arte sacra, mas a prépria sacraliza- glo da vida. Quando se busca evitar 0 risco de mudangas provocado pela criatividade, o caminho mais facil costuma ser o amortecimento de si, a negacio da possibilidade de mudanca que a criatividade traz, de certa desvitalizagio, a qual pode se apoiar na necessidade stupal da previsibilidade. De fato, para que um grupo se consti- tua, ele precisa de uma boa margem de previsibilidade de seus membros; deve sentir-se protegido de ameacas internas (até mais do que das externas), a fim de conseguir a coesfio que o Sustenta. Essa coestio caminha no fio da navalha, dado que tam- bém se alimenta do imprevisto, com o qual se protege da mono- tonia desintegradora. Esse ritmo entre mudanga criativa e per- Mmanéncia asseguradora que percebemos em grupos e: em individuos produz ansiedade. Esta, quando bem suportada, leva 4 alegria de superar obstaculos e dificuldades por meio de um Continuo jogo de mudangas apoiadas na permanéncia. Em ou- tos termos: so mais eficazes, criativas e duradouras as mu- Cangas que, derivadas do enfrentamento da ansiedade, trazem 105 Scanned with CamScanner ENIO BRITO PINTO novidades que se ajustam ao antigo e o transformam, como a crianca se transforma no adolescente sem perder a capacidade de brincar, o adolescente saudavel se transforma em adulto sem perder a jovialidade, o adulto se transforma em idoso sem perder a Vitalidade existencial. Essas passagens exigem o enfrentamen- to da ansiedade para que sejam criativas; demandam que o exci- tamento do crescimento criativo seja vivido com coragem e tes- piragio o mais plena possivel. O excitamento a que me refiro é aquele que, segundo May (1987, p. 229), nos proporciona o espirito de busca, nos mantém em cresci- mento. Possui um evidente valor de sobrevivéncia. Permane- ce excitamento enquanto eu sinto que posso controlar, que posso conservar algum senso de autonomia. Torna-se destru- tivo quando isso nao é mais poss{vel. Portanto, enquanto po- demos experimentar 0 “eu posso” e “eu vou”, permanecemos abertos, experimentamos a nossa liberdade, preservamos ° poder de experimentar novas possibilidades. Esse jogo em que 0 novo se apoia no antigo, no tradicional, para renova-lo.ao mesmo tempo que o faz permanecer €u™ joe? delicado na vida social, geralmente mais afeita & tradicao. NO!” dividuo, quando pensamos em psicologia da personalidade,¢® jogo entre estrutura e processo. Todos temos uma estrutura de personalidade que é to mais flexivel quanto mais saudével Ai pessoa, Essa estrutura flexivel € transformada pelos Proc. que vivemos no cotidiano a partir das provocacées ue #7 necessidades e as necessidades comunitarias fazem & NOs tividade. Nesses anos de atendimento em psicoterapi® muitos os ajustamentos criativos que testemunhei, co™ 8 ais 106 , dl Scanned with CamScanner DIALOGAR COM A ANSIEDADE diferentes resultados, todos geradores de ansiedade que a tera- pia ajudou a enfrentar. Como exemplo aqui, um bom ajustamento criativo de um homem de 48 anos que atendi em psicoterapia breve. Ele me procurou queixando-se de dificuldade de fazer escolhas, pois tentava agradar a todo mundo, o que obviamente é impossivel. Fizemos algumas sessdes e logo interrompemos o trabalho para operiodo de férias de fim de ano. Ao fim dessa etapa do trabalho, minha sensaco era de que a terapia nao ia bem; 0 paciente pare- cia nao ter suficiente motivacao para ela. Quando retornamos das férias, ele estava bem diferente, a ponto de eu anotar em meus apontamentos: “Espantei-me na volta do Gabriel (nome ficticio) com sua disposigiio para o trabalho. Ele traz novo animo, Se aprofunda nos temas, mesmo mantendo sua retroflexio. De- Vagar, vai ampliando seu grau de risco e de conforto na terapia, a Ponto de até se sentar mais 4 vontade na poltrona”. Com essa ampliagéo da qualidade do contato e da presenga, aumenta tam- bém a possibilidade da criatividade e, assim, algumas ansiedades S20 enfrentadas. Meus apontamentos: ‘trabalhamos sua infancia de menino solitério, temporao de uma familia grande e de mie *eligiosa e doente. Relata a falta de intimidade na familia e, a eu pedido, faz uma pequena autobiografia. Quando comenta- Mos sobre sua infancia, ele tira um pesado fantasma dos ombros: Watava as fantasias infantis como sinais de loucura e ficou tre- Mendamente aliviado quando eu as abordei como apenas feat Sls, maneiras criativas e sauddveis de um menino solitario _ “t. Do jeito que ele se via, parecia que 0 tnieee sp bbe Gloensa, como se imaginar jogos de futebol, conquistas def - ‘© coisas que tais ao brincar sozinho no guintal ee ue 4 casa fosse sinal de deméncia. Impressiona-me 0 alivio a 107 Scanned with CamScanner = _SES—s—s&=—ms—¥PF—eeeett— ENIO BRITO PINTO Gabriel sente quando abordo seu brincar como construgio do mundo, como lida criativa com a ansiedade e a solidao”. Ao des- cobrit 0 criativo que nao aceitava por temer que ele indicasse adoecimento mental, ao valida-lo como forga para a lida coma vida, o cliente conseguiu explorar melhor esse aspecto de sie coloca-lo a servigo do mundo, sentindo-se, assim, mais fortaleci- do para fazer escolhas € enfrentar esperadas retaliagdes de seus colegas de trabalho - os quais, como todos os humanos em situa- cao de grupo, prefeririam que ele permanecesse previsivel como antes. Como Gabriel manteve a forga de suas mudangas € de sua autonomia ampliada, logo os de seu grupo também fizeram mu- dangas, e 0 grupo se viu renovado depois de algum tempo ¢ de alguns confrontos. Como Gabriel, muitos anestesiam sua criatividade por meio do chamado medo da loucura ou de vergonha excessiva. 6 fur- cao da terapia criativa ajudé-los a compreender que cada um de nés tem um self louco, que nao é dominante mas 6 important que precisa de expressio ~ afinal, o que seria do reise nio fosse o seu bobo da corte? Infelizmente, estamos em um momento social que 32 4 e ele and grande risco a esse bobo da corte, pois me parece qui : al ques” cada vez mais inibido, no mais somente por uma mor gia excessiva previsibilidade, mas agora também PO’ uma mor psicopatoldgica, a qual, tal como a outra, nao reconhece os terapéutico de boas e loucas gargalhadas fora do teatro. BS assunto de nosso préximo capitulo, no qual criticaret com jsten! rangaa forma como estamos tratando os sofrimentos exist 108 A Scanned with CamScanner

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