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45º Encontro Anual da Anpocs

GT 30 - Pensamento Social no Brasil

A perspectiva decolonial no pensamento social brasileiro: pode a subalterna falar?

Caio Barbosa Portela - Programa de Pós-Graduação Associado em Antropologia


Universidade Federal do Ceará - Universidade da Integração Internacional da
Lusofonia Afro-brasileira (UFC-UNILAB)

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1. Resumo

Desde sua emergência nos anos 1990, a perspectiva que se convencionou


chamar decolonial, formulada pelo grupo de intelectuais da Modernidade/Colonialidade
(M/C), vem se apresentando como ferramenta de resistência epistêmica, teórica e
prática que visa incluir como sujeitos(as) políticos(as) integrantes de grupos sociais
historicamente marginalizados: negros(as), latinos(as), indígenas, asiáticos(as),
ciganos(as), árabes, judeus, pessoas com deficiência, LGBTQIAP+, refugiados(as), ou
quaisquer identidades situadas fora do padrão dominante de orientação
cis-hetero-patriarcal euro-norte-americana. Nos anos 2000 a realidade brasileira passou
a ser investigada sob essa perspectiva e, de forma sistemática, estudos e interpretações
teóricas revelaram a importância das narrativas desses(as) sujeitos(as) políticos(as).
Neste trabalho proponho uma reflexão sobre as experiências decoloniais do Brasil no
século XX, a influência do grupo M/C no pensamento social brasileiro contemporâneo e
apresento uma breve explanação do fundamento da encruzilhada como base para uma
perspectiva afrodescendente.

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2. Nota Autorizativa e Explicativa

Primeiro peço autorização a Èṣù (Exú), guardião das encruzilhadas e mensageiro


entre os mundos, para que o alcance da minha compreensão consiga abarcar os
conceitos profundos aqui oferecidos. Que a minha análise seja também alimento, o qual
deposito nessa encruzilhada do pensamento.
Segundo, peço licença aos leitores e leitoras para explicar o motivo de ter
incluído a expressão “pode a subalterna falar?” no título deste texto. O subtítulo foi
inspirado na obra Can the Subaltern Speak?1, originalmente publicada em 1985, no
periódico Wedge, com o subtítulo Speculations on Widow Sacrifice. Nesse texto, a
intelectual indiana Gayatri Spivak analisa o lugar do(a) sujeito(a) subalterno(a) a partir
da história de mulheres indianas e da prática da autoimolação das viúvas.
No título da obra, escrito originalmente em inglês, o termo “subaltern” assume,
no mínimo, a dupla função de gênero, masculino e feminino, em acordo com o idioma
original. Na tradução consultada, em português, o termo aparece flexionado no
masculino, “subalterno” (SPIVAK, 2010, p. 1).
Uma vez que o texto original foi escrito em inglês, a alteração linguística
provocada pela tradução favoreceu ao modelo idiomático cis-hetero-patriarcal atuante
na língua portuguesa desde a colonização.
Ademais, por entender que a flexão de gênero para o masculino limita a
compreensão de que mulheres, sobretudo as situadas fora do padrão
cis-hetero-patriarcal, são sujeitas do nosso código linguístico, optei por flexionar o
subtítulo no feminino, “subalterna”.
Assim, questionar se “pode a subalterna falar” tem o intuito de criar um
território epistêmico e linguístico que consiga abarcar, de forma geral, as sujeitas
femininas a que me refiro e, de forma específica, as personagens citadas neste texto.

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Na obra, Spivak apresenta uma crítica ao pensamento pós-colonial, fundada na análise do pensamento
de Foucault, Guattari, Deleuze e Derrida, esse último, inclusive, teve a sua obra traduzida para o inglês
por Spivak. A autora apresenta uma interpretação do lugar ocupado pelo(a) sujeito(a) subalterno(a), que
sempre se apresenta vinculado ao contexto patriarcal e pós-colonial. Spivak argumenta que a mulher
indiana perde a capacidade de falar em termos epistêmicos e, quando tenta fazê-lo, não encontra meios
para se fazer ouvir.

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3. Perspectivas e Experiências decoloniais brasileiras antes e durante a
formação do grupo M/C

Paira um silêncio quando se fala em nomes brasileiros que representam a


perspectiva decolonial nas Ciências Sociais contemporâneas, ligados ao grupo
Modernidade/Colonialidade (M/C). O grupo promoveu seminários, encontros e
publicações no sentido de difundir o movimento de resistência teórica e prática, política
e epistemológica à lógica da modernidade/colonialidade, denominado giro decolonial2
(BALLESTRIN, 2013, p.105).
Para Arturo Escobar (1952), integrante do grupo, a perspectiva decolonial
apresenta-se como crítica ao paradigma europeu de racionalidade/modernidade que,
pela instrumentalização da razão moderna, permitiu ao empreendimento colonial impor
sua vontade sobre os povos ditos “primitivos” (ESCOBAR, 2012, p. 69).
Neste trabalho optei por refletir sobre a influência do grupo M/C para o
pensamento social tomando-o como referência teórica e marco temporal para uma parte
da produção brasileira ora analisada. Trata-se de uma opção metodológica.
Aqui refiro-me a perspectiva decolonial como aquela apresentada por
intelectuais como Aníbal Quijano (1928-2018), Enrique Dussel (1934), dentre
outros(as) (BALLESTRIN, 2013, p. 89). Ao fazer esse recorte, tenho ciência que estou
deixando de fora outras perspectivas e experiências brasileiras, críticas ao modelo
hegemônico de construção do saber, ocorridas antes e durante a formação do grupo,
com base teórica própria da nossa realidade, e não vinculadas diretamente ao M/C.
Não quero demonstrar que só passou a existir teoria crítica a partir da influência
decolonial e nem o contrário, fazer um discurso peremptório de que já existia
pensamento decolonial no Brasil antes do grupo M/C. Pretendo aqui, mostrar a
complementaridade entre as perspectivas e experiências nacionais e suas influências no
refinamento do pensamento social brasileiro contemporâneo.
Assim, aproveito esse tópico para fazer referência a algumas experiências
anteriores, cujas bases críticas ao modelo dominante de racionalidade são mais
próximas da perspectiva decolonial do que dos cânones do pensamento social clássico.

2
O termo “giro decolonial” foi cunhado primeiramente por Nelson Maldonado-Torres em 2005
(BALLESTRIN, 2013, p. 105; MALDONADO-TORRES, 2008, p. 63). A Profa. Dra. Luciana Ballestrin
deu os contornos nacionais no artigo de 2013 “América Latina e o giro decolonial''. No texto Ballestrin
refere-se ao termo como “movimento de resistência teórico e prático, político e epistemológico, à lógica
da modernidade/colonialidade" (BALLESTRIN, 2013, p. 105).

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O Teatro Experimental do Negro (TEN), idealizado por Abdias do Nascimento
(1914-2011), surge num contexto de resistência, onde o cenário das artes cênicas nos
anos de 1940 era majoritariamente ocupado por pessoas brancas. O TEN nasce da
inquietação de Abdias ao assistir em 1941, no Teatro Municipal de Lima, a peça O
Imperador Jones, de Eugene O’Neil, onde o papel do herói negro é interpretado pelo
ator branco Hugo D’Evieri, tingido de preto (NASCIMENTO, 2004, p. 209).
Naquela noite em Lima, segundo Abdias, essa “constatação melancólica lhe
exigiu uma resolução no sentido de fazer alguma coisa para ajudar a erradicar o absurdo
que isso significava para o negro e os prejuízos para a ordem cultural do país”
(NASCIMENTO, 2004, p. 210). Ao fim da apresentação tomou a decisão que, ao
regressar ao Brasil, criaria um organismo teatral aberto ao protagonismo negro, onde ele
“ascendende da condição adjetiva e folclórica para a de sujeito e herói das histórias
que representasse” (NASCIMENTO, 2004, p. 210, grifo meu).
Centrado numa proposta de valorização social do negro através da educação,
cultura e da arte (NASCIMENTO, 2004, p. 224), o TEN exerceu, nos seus anos de
atividade, práticas voltadas aos valores da pessoa humana e da cultura negro-africana. A
ideia lastreou-se no resgate dos valores ancestrais africanos que foram progressivamente
degradados e negados por uma sociedade que, desde os tempos da colônia, portava a
bagagem mental de sua formação metropolitana europeia, imbuída de conceitos
pseudo-científicos sobre a inferioridade da raça negra (NASCIMENTO, 2004, p. 210).
O pressuposto de existência do TEN é, por si, decolonial.
Outro exemplo brasileiro, as 40 horas de Angicos, proposta de educação iniciada
por Paulo Freire (1921-1997) no início da década de 1960 na cidade de Angicos, Rio
Grande do Norte, foi uma das experiências decoloniais mais importantes do Brasil
republicano. Refiro-me ao modelo de educação emancipatória pensado por Freire e que
foi executado durante 40 horas, com 300 jovens e adultos em 1963. A experiência foi
uma demonstração da concepção político-pedagógica crítica e serviu de piloto para o
programa de alfabetização nacional mais amplo, que seria patrocinado pelo governo
federal nas reformas de base, sob o comando de João Goulart. Não fosse o golpe militar
de 1964, a previsão nacional era de alfabetizar 100 mil pessoas (SILVA & SAMPAIO,
2017, p. 56).
Em 1968 é publicada a primeira versão do livro Pedagogia do Oprimido, obra
que consolidou a experiência das 40 horas de Angicos num projeto político-pedagógico

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emancipatório. Em 1970 o livro foi traduzido para o inglês e até hoje é um dos mais
requisitados nas Universidades de língua inglesa mundo afora.
A perspectiva emancipatória de Freire considera que a partir de uma formação
crítica é possível alcançar uma educação realmente libertadora, que rompa com o
modelo de educação “bancária” (FREIRE, 1987). O modelo funciona como instrumento
de opressão onde educador(a) e educando(a) são depositando(a) e depositário(a) dos
conteúdos, forjados num violento processo de memorização e repetição.
A educação libertadora surge como perspectiva decolonial na medida em que ela
repensa o local de violência de opressão no qual a escola está inserida, a partir da crítica
social dos conteúdos estudados. A emancipação almejada por Freire está ligada a ideia
de que ninguém melhor que os oprimidos para entenderem o significado terrível de uma
sociedade opressora. Logo, tendo sido conhecida e praticada a sua força de libertação, a
partir de uma pedagogia forjada com o educando, poderá libertar ambos, oprimido e
opressor, de um sistema que aprisiona os dois mundos.
Somaram-se à proposta inovadora do TEN e à experiência de educação
libertadora idealizada por Freire, os trabalhos desenvolvidos posteriormente por Abdias,
que incorporaram a perspectiva crítica de uma prática dramatúrgica negra engajada ao
modelo prescrito dos trabalhos acadêmicos. O genocídio do brasileiro (1978), O
Quilombismo (1980), Sitiado em Lagos (1981) e O negro revoltado (1982) são textos
que marcaram a trajetória de resistência ao que ele chamou de “ginástica teórica,
imparcial e descomprometida”, a qual a maioria dos cientistas sociais declarou e ainda
declara habitualmente fazer nas suas investigações. Abdias, pelo contrário,
considerou-se parte da matéria investigada (NASCIMENTO, 1978, p. 41).
Em 1980, em virtude do 2º Congresso de Cultura Negra, Abdias do Nascimento
apresentou sua tese do quilombismo que, segundo ele, trata-se não só de um insrumento
de luta antirracista,
“(...) mas sobretudo de uma proposta afro-brasileira de organização
político-social de nosso país, construída com base na própria experiência
histórica, cuja riqueza elimina a necessidade de procurarmos orientações
ideológicas alheias de qualquer gênero (...)

(...) o quilombismo oferece aos afrodescendentes de todas as Américas um


instrumento de conscientização e organização em seus respectivos países,
adaptando os preceitos comuns à nossa experiência coletiva para
adequá-los a cada local específico. (NASCIMENTO, 2002, p. 46, grifo
meu)

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Numa linguagem atual, as experiências de Freire e Abdias são fontes de
reconhecimento do “Ser afetado” (FAVRET-SAADA, 2005, p. 155). Essa é uma
característica dos seus trabalhos que os distinguem do cânone do pensamento social,
filiando-os a uma tendência teórica contra hegemônica, crítica ao modelo de exploração
produzido pelo colonialismo, tal qual a perspectiva decolonial.
Importante destacar o trabalho da Profa. Dra. Lélia Gonzalez (1935-1994) na
construção da categoria político-cultural de Amefricanidade, mais uma experiência
decolonial brasileira. O reconhecimento dos efeitos do colonialismo e racismo europeu
para a situação dos povos em diáspora, conduz a autora a refletir sobre uma categoria
própria para analisar as relações político-culturais do Brasil e dos países da Améfrica
Ladina, compartes do modelo colonial transatlântico (GONZÁLEZ, 1988, p. 69, grifo
meu).
Considerando a nossa formação, sendo o país de maior população negra do
continente, e tomando a Améfrica enquanto sistema etnogeográfico de referência,
criado a partir de uma experiência histórica comum aos diversos países que integram o
território identificado como diáspora, Lélia desenvolve uma categoria analítica êmica, a
partir das ferramentas teórico metodológicas ancestrais, que acompanharam os porões
dos navios da escravidão, que sobreviveram nos corpos e espíritos daqueles(as) que
aqui chegaram. Hoje esse conhecimento pode se materializar na experiência dos(as)
seus(uas) filhos(as), nascidos(as) no ventre do Atlântico negro (GILROY, 2012, p. 161).
O perspectivismo ameríndio, síntese conceitual operada pelo Prof. Dr. Eduardo
Viveiro de Castro (1951) e pela Profa. Dra. Tânia Stolze Lima, consiste numa
experiência crítica do modelo secular de produção de conhecimento, lastreado no
etnocentrismo. Trata-se de uma matriz filosófica e epistemológica amazônica, tomada a
partir de experiências etnográficas dos povos ameríndios, no que se refere à sua
concepção de natureza dos seres e da composição do mundo (Ver LIMA e VIVEIROS
DE CASTRO, 1996). A ideia central é sobre a relação que alguns povos do noroeste
amazônico guardam com os animais, sobretudo espécies que desempenham papel
simbólico e prático de destaque, grandes predadores, rivais humanos etc (VIVEIROS
DE CASTRO, 1996, p. 118). Na cosmovisão ameríndia, os animais não humanos
percebem-se, entre si, como humanos. Em suma, os animais são gente, ou se vêem
como pessoas (VIVEIROS DE CASTRO, 1996, p. 118).

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A interpretação do perspectivismo ameríndio e o seu respaldo para as relações
do mundo contemporâneo são potenciais para as mudanças necessárias do modo como
vemos a natureza. O perspectivismo ameríndio oferece uma narrativa contra
hegemônica ao padrão de degradação ambiental centrado no ser humano e na sua
capacidade de modificar o ambiente em prol do desenvolvimento capitalista.
O entendimento de que outros animais e seres vivos também se vêem como
humanos, mobiliza capital teórico para novas formas de entendimento da relação
humana com o seu entorno vivo. Uma relação que baseia-se numa ética perspectivista e
vai ao encontro da perspectiva decolonial.
Haja vista o cenário retratado nos parágrafos anteriores, de uma relativa
presença de experiências/perspectivas decoloniais no Brasil, com um histórico que
remonta aos anos 1940, percebe-se que minha inquietude para escrever sobre o tema
não vem da ausência de trabalhos desse tipo por aqui. Pelo contrário, em poucos
parágrafos pude demonstrar que já faz um tempo que algumas intelectualidades
brasileiras optaram por modelos analíticos de resistência ao padrão
imperialista/colonialista. Como há um descompasso entre as nossas experiências e o
respectivo reconhecimento destas no cenário científico, algumas questões emergem e
serão levantadas a seguir.
Por que as experiências decoloniais brasileiras não nos qualifica para integrar o
quadro de representantes dessa linhagem em escala científica global? Porque as análises
feitas pelo grupo M/C parecem não contemplar o cenário brasileiro? Será que a
colonização portuguesa, empreendimento mais duradouro das Américas, trouxe tantas
especificidades ao nosso caso que permanecemos isolados diante das realidades dos
demais países da rota colonizatória latino-americana? O silenciamento epistêmico e a
manutenção do status quo opera de modo tão significativo na nossa produção, que até
hoje perdura uma memória escravista?

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4. A influência do grupo M/C no pensamento social brasileiro contemporâneo
e o Brasil visto sob a ótica decolonial

BALLESTRIN (2013, p.111) já tinha observado que no grupo M/C o “Brasil


aparece quase como uma realidade apartada da realidade latino-americana”. Ela aponta
como significativo o fato de não haver nenhum pesquisador(a) brasileiro(a) associado(a)
ao grupo. Para a autora isso se dá pois se “privilegia a análise da América hispânica em
detrimento da portuguesa” (BALLESTRIN, 2013, p. 111), o “complexo de Colombo”
(MELMAN, 2000).
Por outro lado, desde o início deste século XXI até agora, a intelectualidade
brasileira vem dando sinais de que está atenta ao movimento de resistência epistêmica
denominado giro decolonial. Alguns trabalhos mais recentes demonstram essa
afirmação.
A tese de doutoramento do professor da Universidade de Brasília (UnB), Dr.
Joaze Bernardino-Costa, iniciada em 2003 e concluída em 2007, abordou a
problemática vivida nos sindicatos das trabalhadoras domésticas do Brasil sob o olhar
das teorias da descolonização (BERNARDINO-COSTA, 2007, p. VIII). No resumo do
trabalho, o professor reconhece as contribuições advindas dessas teorias, principalmente
dos trabalhos de Dussel, Quijano e Mignolo.
A pesquisa teve como objetivo entender como as trabalhadoras domésticas
percebiam as relações sociais e raciais. A análise buscou ouvir a voz-narrativa das
trabalhadoras, sujeitas ao silenciamento imposto pela narrativa hegemônica de
sociedade que desvaloriza suas vivências. O trabalho partiu do pressuposto de que o
conhecimento não é produzido de uma posição neutra e universal, mas sim estruturado
por uma hierarquia de poder, denominada colonialidade do poder3
(BERNARDINO-COSTA, 2007, p. VIII). Nesse sentido, a pesquisa buscou a
perspectiva decolonial ao “jogar uma luz” sobre a voz-narrativa das sujeitas
subalternizadas pelo padrão hegemônico. Durante o desenvolvimento da tese,
Bernardino-Costa passou um período estudando em Berkeley, na Universidade da
Califórnia, onde teve aulas no Departamento de Estudos Étnicos, com os

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Entendo a colonialidade do poder a partir do conceito desenvolvido por QUIJANO (2005). Ela
manifesta-se na classificação social da população mundial de acordo com a ideia de raça, entendida como
uma construção mental que “expressa a experiência básica da dominação colonial e que desde então
permeia as dimensões mais importantes do poder mundial, incluindo uma racionalidade específica, o
eurocentrismo.” (QUIJANO, 2005, p. 117).

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porto-riquenhos Ramón Grosfoguel (1956) e Nelson Maldonado-Torres
(BERNARDINO-COSTA, 2007, p. V). O período foi importante para o estreitamento
das relações entre a pesquisa, os pesquisadores e a perspectiva decolonial do grupo
M/C.
Em 2011, foi publicado em Brasília, pelo Centro Feminista de Estudos e
Assessoria, o livro intitulado Tensões e Experiências: um retrato das trabalhadoras
domésticas de Brasília e Salvador. A obra abordou o trabalho doméstico afastando-se
das perspectivas tradicionais que construíram o lugar da trabalhadora como de
não-prestígio, não-cidadania, não-direito, não-pessoa. Mori et al (2011, p.16) trouxeram
a importância das análises feminista e antirracista na articulação entre patriarcado e
escravismo na construção social do trabalho. A abordagem adotada na publicação
sustenta-se no argumento trazido por Aníbal Quijano (2005, p. 118), de que a divisão
racial é elemento estruturante na desigualdade da América Latina, acrescentando a
dimensão de gênero ao reconhecer que o trabalho é construído numa sociedade de base
patriarcal.
Em 2013 foi iniciado na UnB o projeto de longo alcance Diálogos entre
intelectuais negros brasileiros, pós-colonialismo e teorias da decolonialidade, sob
coordenação do professor Joaze Bernardino-Costa (PLATAFORMA LATTES, 2021a).
No mesmo ano foram concluídos outros 2 (dois) projetos de pesquisa, com duração de 3
(três) anos, executados a partir de metodologias decoloniais Os projetos tratavam da
invisibilização do trabalho doméstico no Brasil e a sua relação com a colonialidade do
poder.
Um dos projetos foi desenvolvido com recursos do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico e coordenado pela professora Tânia Mara
Campos de Almeida (PLATAFORMA LATTES, 2021b). O outro foi coordenado pelo
professor Joaze Bernardino-Costa intitulado Trabalho Doméstico e a Colonialidade do
Poder (PLATAFORMA LATTES, 2021a).
Em 2014, Carla Adriana da Silva Santos (Carla Akotirene), assistente social e
Profissional de Atendimento Integrado da Prefeitura Municipal de Salvador (PMS),
apresentou ao Programa de Pós-graduação em Estudos Interdisciplinares sobre
Mulheres, Gênero e Feminismo da Universidade Federal da Bahia (UFBA) a
dissertação intitulada Ó Pa Í, Prezada! Racismo e Sexismo Institucionais tomando
bonde no Conjunto Penal Feminino de Salvador. O trabalho teve como objetivo

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identificar e analisar a intersecção do racismo e sexismo numa penintenciária feminina
em Salvador, a partir de uma metodologia de pesquisa afrodescendente com
contribuição epistemológica do feminismo negro (SANTOS, 2014, p. 9).
Em 2015, o trabalho de pesquisa realizado pelo professor Joaze junto ao
sindicato nacional das trabalhadoras domésticas, durante sua tese de doutoramento, é
sintetizado na publicação Saberes Subalternos e Decolonialidade: os sindicatos das
trabalhadoras domésticas no Brasil. O livro registra vozes e documentos da luta de
resistência e reexistência desse segmento de trabalhadoras brasileiras, desde a década de
30 do século passado até a contemporaneidade. O livro destaca uma forma de
interpretação que visa escutar a discursividade de uma categoria de trabalhadoras que
até hoje é relegada ao silêncio e à invisibilidade histórica. O trabalho traz o discurso das
mulheres como “contranarrativa à idílica representação do Brasil estruturada no mito da
democracia racial e no mito do bom senhor” (BERNARDINO-COSTA, 2015, p. 56). A
partir de uma interpretação sócio-histórica das desigualdades de gênero, raça e classe, e
da situação específica da trabalhadora doméstica, o autor apresenta uma narrativa que
emerge de vozes historicamente subalternizadas.
A perspectiva decolonial começa a se consolidar na literatura científica
brasileira com a publicação da obra Decolonialidade e Pensamento Afrodiaspórico,
pela Editora Autêntica. O livro foi organizado pelo professor Bernadino-Costa em
parceria com os professores Ramón Grosfoguel e Nelson Maldonado-Torres, e é um dos
frutos do Seminário Decolonialidade e Perspectiva Negra, realizado no Instituto de
Ciências Sociais da UnB entre os dias 5 e 7 de outubro de 2016. A obra reúne 16 artigos
de autoras e autores que são professores(as), pesquisadores(as), intelectuais e também
ativistas feministas negras, antirracistas, africanos e afrodescendentes (brasileiros,
porto-riquenhos, estadunidenses), num esforço de diálogo horizontal com as múltiplas
identidades envolvidas. A convergência entre o pensamento dos(as) autores(as) é que
partem do pressuposto que conhecimento está ligado a poder. Por isso as categorias
raça/racismo aparecem como princípios estruturantes para problematizar o
sistema-mundo moderno/colonial.
Cabe destacar ainda o papel da Coleção Feminismos Plurais, coordenada pela
filósofa e intelectual feminista negra Djamila Ribeiro, na popularização e divulgação de
produções científicas desde 2019. Os conteúdos dos livros são epistemologicamente
posicionados a partir de olhares críticos ao padrão de racionalidade/mentalidade

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hegemônica. A coleção tem como princípio disseminar conhecimento crítico produzido
por pessoas negras, sobretudo mulheres, com linguagem didática e a preços acessíveis,
com o intuito de construir um aporte instrumental para compreensão da realidade e dos
debates profundos da sociedade brasileira. A série de livros publicados coloca em
evidência produções intelectuais dos grupos historicamente marginalizados,
restituindo-os como sujeitos políticos. A perspectiva decolonial do trabalho está no seu
caráter de trazer à luz a produção desses(as) sujeitos(as) que ficaram à parte da
construção do saber científico.
Mais recentemente, em 17 de março de 2020, Carla Akotirene lançou a versão
em livro da sua dissertação de mestrado apresentada em 2014 na UFBA. O livro reflete
sobre o processo de invisibilização das sujeitas pesquisadas, mulheres alvo do sistema
prisional, que não se deu apenas no âmbito econômico, a partir da privação da renda,
mas também nos âmbitos político, jurídico, social, cultural, religioso, atingindo
praticamente todas as dimensões da vida. Akotirene traz uma abordagem que parte da
teoria crítica do feminismo negro, utilizando-a como ferramenta teórico-metodológica,
oferecendo como parte integrante da sua epistemologia os fundamentos ancestrais de
uma cosmovisão afrodescendente (AKOTIRENE, 2021, p. 32).

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5. Fundamento para uma perspectiva afrodescendente: a encruzilhada

DOMINGOS (2014, p. 1142) nos ensina que a “dinâmica de ordem e desordem


faz parte inerente de várias culturas Africanas que se manifesta pela existência de forças
que (...) se organizam e/ou desorganizam as relações sociais”. Esse processo é
permanente e necessário. A ordem e desordem do mundo é presença constante no seu
movimento.
De um modo geral, as potencialidades de ordem e desordem se manifestam nas
imperfeições cotidianas do Aiyé4 (aiê), como morte, dores, catástrofes naturais, guerras,
etc (DOMINGOS, 2014, p. 1144). O entendimento humano de como esses eventos
interagem com o mundo invisível (espiritual) e as incompreensões geradas por esses
acontecimentos ante o que ocorre no desconhecido, no Òrún5 (orum), leva um fluxo
constante de energia para o encontro entre esses dois mundos, físico e espiritual.
Concebemos o local desse encontro como encruzilhada.
Em resposta as incompreensões do mundo, diante da percepção da impotência
humana ante uma realidade metafísica desconhecida, surge, “a margem de panteões
Africanos” (DOMINGOS, 2014, p. 1144), a figura de personalidade transgressiva
associada às encruzilhadas. Èṣù (Exú) é o guarda dos cruzamentos (DOMINGOS, 2014,
p. 1145).
Segundo o itan6, Olorum, ao distribuir aos Òrìṣà (Orixá) a responsabilidade
sobre diversas partes da criação, não confiou a Èṣù nenhuma parte específica, mas sim a
tarefa de ser a ligação entre as partes. Por isso não se pode afirmar com toda certeza que
o status de Èṣù seja considerado Òrìṣà. (DOMINGOS, 2014, p. 1149).
Para SÀLÁMÌ e RIBEIRO (2015, p. 55), “a palavra Òrìṣà possui etimologia
obscura” . Muitas foram as tentativas de elucidação do significado do termo. Um dos
itans sobre a origem de Òrìṣà é transcrito por ÌDÒWÚ (1977):

Olódùmarè (Eledumare ou Olorum) designou Òrìṣà (Orixá) para vir ao


mundo com `Ọrúnmìlà (Orunmilá, também chamado Ifá). Passado algum
tempo, Orixá quis possuir um escravo e se dirigiu ao mercado de escravos de

4
Segundo Castro (2001), Sàlámì e Ribeiro (2015) e Domingos (2014), na tradição Yorùbá, a palavra Aiyé
pode ser traduzida como terra ou mundo.
5
Òrùn, na língua kwa, é o mesmo que céu. No tronco etnolinguístico banto nomeia-se dyulu (luílo). Em
fon, língua oficial do antigo Reino do Daomé, se diz hunhonsɛ` (rundocé) (CASTRO, 2001).
6
Itan é uma palavra de origem Yorùbá que significa história, qualquer história; um conto. De um modo
mais específico, itan são histórias do sistema nagô de consulta às divindades. Na África, os itan
compunham, e ainda compõem, o oráculo denominado Ifá, que pode ser lido e interpretado através de um
conjunto de dezesseis sinais, os odu (PÓVOAS, 2004, p. 25).

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Èmùrè, onde comprou Àtọwọ´dá. Mostrando-se prestativo e eficiente,
Àtọwọ´dá logo conquistou o seu senhor e, no terceiro dia de convivência,
pediu a ele que lhe cedesse uma porção de terra para cultivo próprio, no que
foi atendido. Tornou-se, assim, proprietário de terras na encosta da montanha
que ficava próxima à casa de Orixá. Em apenas dois dias de trabalho limpou
o mato, construiu uma cabana e cultivou sua fazenda, deixando o amo muito
bem impressionado.
Mas não havia bondade no coração de Àtọwọ´dá e nele germinou o desejo de
destruir o amo. Procurando a melhor maneira para realizar seu intento,
maquinou um plano: havia na fazenda grandes pedras e uma delas poderia,
em momento oportuno, ser deslocada do alto da montanha, de modo a rolar
morro abaixo e cair sobre Orixá. Escolhida a pedra adequada, preparou-a
para que pudesse ser facilmente deslocada. Uma ou duas manhãs depois,
Orixá encaminhou-se para a fazenda. Àtọwọ´dá o espreitava sem esforço,
pois seu senhor vestia roupas brancas, destacando-se, nítido, na paisagem
verde. No momento oportuno, Àtọwọ´dá movimentou a pedra e Orixá, entre
surpreso e aterrorizado, não teve como escapar e sucumbiu sob aquele peso,
partido em muitos pedaços, que se espalharam por toda parte.
Orunmilá tomou conhecimento do ocorrido e, servindo-se de certas práticas
ritualísticas, recolheu os pedaços de Orixá numa cabaça. Daí a expressão
Ohun-tí-a-rí-ṣà, e esse teria sido o início do culto em todo o mundo. Este
mito sugere que originalmente òrìṣà era uma unidade da qual decorreram
todas as demais divindades. Sugere também que o Uno manifesta-se no
múltiplo e que aquilo que é dividido será um dia reagrupado (ÌDÒWÚ, 1977
apud SÀLÁMÌ e RIBEIRO, 2015, pp. 55-56).
O Prof. Dr. Luís Tomás reflete sobre a natureza de Exú e a sua importância
como mensageiro dos Orixás e seres humanos:

A ele foi confiada a tarefa de ser o mensageiro dos Orixás entre si, dos Orixás
com os seres humanos, dos seres humanos com Orixás, O mediador entre o
Orum e o Aie e mesmo o mediador entre os próprios seres humanos. Enfim,
Èṣù é a força de comunicação. Em todas as circunstâncias que estabelece uma
comunicação o Èṣù deve estar presente. A comunicação no sistema religioso
Africano proporciona a troca de Axé7, que possibilita a harmonia, o equilíbrio
e o vir a ser da existência. Somente através de Èṣù pode se realizar a troca de
Axé. Ele é o elo, a figura-chave na sequência da oferenda e restituição
(DOMINGOS, 2014, p. 1149).
A encruzilhada é o local onde se deposita a oferenda e ocorre a restituição. É
onde circula a troca de Aṣẹ (Axé). Na encruzilhada se coloca o Ẹbọ (Ebó) para tornar
possível que o Exú medie a troca de Axé entre o Orun e o Aiê. Ebó pode ser definido,
segundo SÀLÁMÌ e RIBEIRO (2015, p. 196), como:

(...) um dos recursos fundamentais de transformação das condições


existenciais, sejam elas de ordem natural ou social, é um ato propiciatório
realizado a partir da orientação oracular, com vistas a prevenir o mal ou atrair
o bem, ou seja, com vistas a favorecer a superação de problemas e a

7
Toda manifestação viva pressupõe a presença de uma força vital, que constitui um valor supremo e
determina o ideal do viver forte nos planos material, social e espiritual. Enquanto energia, pode ser obtida
ou perdida, acumulada ou esgotada, e também transmitida. Seu acúmulo manifesta-se física e socialmente
como poder, e seu esgotamento, como doença física ou adversidades de toda ordem. Entre os iorubás tal
força recebe o nome de Axé (SÀLÁMÌ e RIBEIRO, 2015, p. 43).

14
conquista do necessário para o desenvolvimento, seja ele de ordem pessoal
ou grupal. Há basicamente três tipos de ebó: o preventivo, que evita um mal
que está para ocorrer; o curativo que afasta um mal já instalado; e o atrativo,
que atrai o bem. O ebó, ato litúrgico de comunhão entre habitantes do aiye e
habitantes do orun, inclui a oferta de comida, o que, por si só, já é um recurso
valioso para evocar, criar ou atrair energias benéficas (SÀLÁMÌ e RIBEIRO,
2015, p. 196).

Lugar das interseções, onde reina o senhor das encruzilhadas Legba/Èṣù (Exú
Elegbara), princípio dinâmico, detentor do poder, observador e cumpridor de ritos, os
atos de criação e interpretação do conhecimento dependem de sua força (DOMINGOS,
2020, p. 53; MARTIN, 1997, p. 26). Como mediador e controlador do poder do Axé,
Exú é o canal de comunicação que interpreta a vontade dos deuses e que a eles leva os
desejos humanos (MARTINS, 1997, p. 26).
Vivemos num mundo de incompreensões e é fundamental atentarmos para a
força da comunicação, quando se busca equilíbrio num sistema de ordem-desordem. É
importante compreender Exú como mediador de energia que converge para a
encruzilhada. É ele que faz a troca de Axé. É ele quem faz a mediação. A depender de
como a troca é feita, a depender de que energias estejamos oferecendo a Exú, poderá
resultar em injúrias, iniquidades e desordem ou, por outro lado, poderá trazer justiça,
paz social, solidariedade e ordem.
Pensar o papel da encruzilhada nas Ciências Sociais nos remete, por analogia, ao
pensamento feminista negro. Essa corrente teórico-política emerge do reconhecimento
de que opressões de raça, gênero, classe e origem são causas fundamentais da pobreza
de mulheres negras. São opressões que confluem energias diferenciais às encruzilhadas,
implicam, portanto, interseccionalidades e associam imagens e símbolos ao devir da
mulher negra.
Assim, abordar a encruzilhada como “oferenda analítica” (AKOTIRENE,
2019b, p. 15) significa compreender a importância do encontro dos marcadores sociais
da diferença na construção do pensamento social e da compreensão dos fluxos de Axé
que convergem para encruzilhada e que colocam Exú para trabalhar. A perspectiva
política das mulheres negras, a partir do feminismo, se desenvolve por um olhar que
emerge do encontro das opressões de gênero, raça, classe e origem, que se apresentam
na encruzilhada, nas dimensões estruturais e materiais (físicas); simbólicas e filosóficas
(metafísicas).

15
6. Considerações parciais

As conclusões aqui desenvolvidas ainda estão abertas a acréscimos e supressões


posteriores que poderão surgir de outras reflexões sobre o tema e da sua relação com o
pensamento social brasileiro. Não descarto a possibilidade de revisitar esse escrito
futuramente para complementação dos desfechos ora trazidos.
Penso ser problemático o fato de que a realidade brasileira não foi vista como
parte integrante da perspectiva decolonial ou pelo menos não era debatida pelos
integrantes do grupo M/C. Esse ponto continua sendo uma questão.
BALLESTRIN (2013) tinha observado que nos debates do M/C o “Brasil
aparece quase como uma realidade apartada da realidade latino-americana”
(BALLESTRIN, 2013, p. 111). Em que pese o cenário mais favorável a partir de 2018,
com o crescimento de publicações conjuntas entre brasileiros(as) e integrantes do grupo,
permanece significativo o fato de não haver nenhum pesquisador(a) brasileiro(a)
associado(a). Para Ballestrin isso se dá pois se “privilegia a análise da América
hispânica em detrimento da portuguesa” (BALLESTRIN, 2013, p. 111), o “complexo de
Colombo” (MELMAN, 2000).
Penso um pouco diferente sobre esse ponto. Sustento minha perspectiva com
base no fundamento afrodescendente da encruzilhada. Interpreto a partir do
conhecimento de que vivemos num mundo de incompreensões e que as múltiplas
opressões cruzam-se na intersecção das identidades.
Assim, intelectuais brasileiros(as) que desenvolvem pesquisas numa perspectiva
decolonial, fazem em universidades seculares, instituições públicas e privadas no país e
no exterior, que são estruturadas com base no conhecimento ocidentalizado, produto e
produtor de racismo/sexismo epistêmico. Ou seja, esses trabalhos são organizados em
ambientes que operam dentro da lógica de racionalidade/modernidade hegemônica, de
base euro-norte-americana. Instituições são parte de uma sociedade moderna, produzida
sob os fundamentos liberais do Iluminismo e sustentada por um modo de vida burguesa.
O resultado é que essas pesquisas são consideradas de menor valor e não
recebem os mesmos destaques das produções canônicas nas universidades seculares.
Nesse sentido, é revelador que ao esforço de teorização no Brasil e na América Latina
caibam os rótulos de “pensamento” e não “teoria” social e política (BALLESTRIN,
2013, p. 109). Ademais, também sintomático é o fato de que os currículos das

16
disciplinas e as bibliografias dos grupos de pesquisa e dos departamentos das
universidades brasileiras são organizados nas mesmas bases, contribuindo para
manutenção do status quo.
Penso que a perspectiva decolonial expõem a situação colonial (BALANDIER,
1993) mas não retira o pesquisador(a) subalterno(a) e seus(suas) interlocutores(as) da
sua condição interseccional, não lhe escapa a sua encruzilhada, pois ela lhe situa no
sistema-mundo. Em que pese a atuação expressiva da intelectualidade brasileira neste
campo, nossa perspectiva ainda não se vê representada no movimento de resistência
epistêmica do “giro decolonial”. Após essa breve análise parece-me que ainda estamos
situados, sob uma ótica classificatória, às margens das denominadas Teorias e
Epistemologias do Sul (SANTOS & MENESES, 2010).
A influência da perspectiva decolonial no pensamento social brasileiro tem
auxiliado a trazer à tona visões de mundo invisibilizadas pela historiografia oficial, a
partir de epistemologias e instrumentos de resistência criados por esses grupos. Ver a
produção brasileira emergir nesse campo e nos depararmos com o quadro do
pensamento decolonial no mundo, traz à tona algumas questões para reflexão, as quais
pontuarei a seguir.

1) Existe um descompasso entre o volume de experiências decoloniais brasileiras e


o nosso status de participação na classificação mundial do grupo M/C. Essa
incompatibilidade não se explica somente por um “complexo de Colombo” (MELMAN,
2000). Outras são as forças atuantes no mundo social, acadêmico e das pesquisas
brasileiras que reforçam o nosso não pertencimento ao grupo;
2) A ausência de intelectuais brasileiros(as) no grupo M/C pode ser expressão da
nossa dificuldade histórica em desvincular a produção intelectual dos interesses de uma
pequena elite dominante, em nível nacional, que tem atuação em nossas principais
instituições: justiça, economia, política, ciência, religião etc. Certamente a vinculação
do que se pesquisa com o que a sociedade valoriza, por meio de investimentos
público-privados e financiamento de pesquisas, contribuem para a incompatibilidade
entre a quantidade de pesquisas realizadas no Brasil e o respectivo destaque no contexto
da globalização;
3) Pesquisas feitas sob uma perspectiva decolonial podem ser ferramentas de
denúncia das diversas violências simbólicas, materiais e epistêmicas a que grupos

17
subalternos foram e ainda são repetidamente submetidos. Se grupos dominantes,
representados nas diversas esferas de poder, forem “prejudicados” com a exposição
dessas violências, uma vez que serão reconhecidos como responsáveis por boa parte
delas, não terão interesse na prosperidade desse modelo teórico-metodológico;
4) Ao realizar uma pesquisa dentro da perspectiva decolonial o pesquisador(a) não
é transportado automaticamente para fora da sua encruzilhada. Haja vista a condição de
raça, gênero, classe e origem, do local de subalternidade construído para abrigar a sua
produção estará sempre pronto a servi-lo;
5) De certo modo, a classificação do pensamento decolonial também reproduz o
modo de organização estabelecido pela cosmovisão hegemônica, como uma patologia
histórica. Deixa à margem parte do pensamento que se faz em forma de “cantiga
decolonial” (AKOTIRENE, 2019b, p. 21) para dar vez à reprodução da forma de
organização do pensamento euro-norte-americano;
6) Determinados(as) sujeitos(as) sociais foram marginalizados(as) e isso se deu a
partir da invisibilização dos seus conhecimentos. Premissas historicamente centradas
numa base euro-norte-americana e abordagens elitistas trouxeram-nos até aqui e criaram
locais de privilégio epistêmico;
7) Os locais de privilégio epistêmico estão sendo paulatinamente questionados
pelos sistemas corpo-mente subalternizados que, aos poucos, ingressam em ambientes
institucionais é prestígio, num lento processo, que deverá ser acelerado via aplicação
das políticas de ações afirmativas;
8) Para que a perspectiva decolonial seja incorporada ao ambiente científico
precisa-se romper a lógica que reproduz os privilégios epistêmicos atuais.
Pesquisadores(as), intelectuais, professores(as) têm suas trajetórias construídas sobre o
modelo de ciência posto. Seus espaços de atuação estão bem delineados a partir desse
status quo. Repensar esse paradigma também desestabiliza os locais de privilégio
acadêmico. Em outras palavras, os currículos, conteúdos, discussões, grupos de
pesquisa, departamentos e demais institucionalidades são parte de uma estrutura
formada por pessoas que a compõem e dependem dela. A necessidade de manutenção
da situação atual, aquilo que identifiquei como privilégio epistêmico, aumenta a coesão
ao sistema e contribui para sua manutenção, já que os sistemas corpo-mente envolvidos
na distribuição desses locais de privilégio não estarão dispostos a abrir mão desses
espaços espontaneamente;

18
9) Uma mudança no padrão de mentalidade científica virá com a mudança no
padrão dos sistemas corpo-mente que ingressam nas instituições e nos espaços de
privilégio epistêmico;
10) O desafio atual é a busca por novas epistemologias que deem conta de atuar nas
encruzilhadas, ou seja, na busca das potencialidades historicamente apagadas, das vozes
subalternas que urge serem ouvidas, já que o modelo epistêmico atual, com raízes
históricas ligadas à violência colonizatória, não deu conta de compreender a realidade
social diante da ordem e desordem do mundo;
11) A ferramenta epistêmica da encruzilhada, como forma de auxiliar o
entendimento das transformações da (des)ordem social, é um recurso importante de
formação política para que não façamos alianças com outras metodologias, que nos
arrastam ao colonialismo, deixando de desenvolver as nossas próprias, adaptadas às
nossas resistências;
12) As populações afrodescendentes em diáspora na américa, em especial os
afro-brasileiros, foram aportados de uma travessia transatlântica, na qual além de seus
corpos cruzou-se também suas ancestralidades, divindades e modos singulares de visão
de mundo. A cultura negra foi materializando-se nos territórios americanos, ao longo
dos processos colonizadores, e os modos constitutivos das culturas diaspóricas
evidenciam o cruzamento de tradições, memórias, símbolos, saberes etc. É pela via
dessas encruzilhadas que se tece a identidade afro-brasileira num processo vital móvel
(MARTINS, 1997, p. 26);
13) O ensinamento oferecido pela perspectiva decolonial ao pensamento social
brasileiro é que deve-se manter a busca por novas epistemologias, de base ancestral, e
capazes de fazer emergir potencialidades historicamente apagadas, já que os modelos
teóricos fundados numa base epistêmica pretensamente universal não deram conta de
compreender e interagir com a realidade social pós-colonial do país.

19
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