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RASGA-MORTALHA

O frígido pipilo, que antes busquei em lógica suicida, agora me causa tremores
e perturbações. Sou lançado em uma espiral de inominável terror a cada vez que ouço
o rugido do outro lado, um cântico disforme de seres passados.
A igreja foi o centro de tudo isso. Uma igreja caindo aos pedaços, que eu, tolo
e inocente, usava de refúgio a cada vez que um espírito de escárnio tomava minha
mente. Buscava em seus afrescos e imagens santas um alvo para meu sarcasmo
existencialista. Pobres e ignorantes, aqueles que se apoiam em ídolos falsos, pensava eu,
em meio aos escombros. Isso já havia se tornado hábito. Do mesmo modo que Ismael
procurava o mar, eu buscava a degradação. Mas, por chance ou talvez punição divina,
meu destino se cruzou com o da coruja.
Fumava sentado em um palco de madeira, largado em um canto, quando ouvi
o bater das asas. Agourenta, a coruja pousou em cima de mim. Já sabia dos ditos
populares sobre aquele animal, e, descrente, sorri ao ver a coruja empoleirada ali.
Achava que a morte me servia, atraído por seus símbolos que apresentavam aquele
sentimento de degradação que eu tanto buscava. Me divertia ao encarnar a figura
daquilo que causava repulsa ao populacho. Por esses motivos, achei irônica a presença
daquela figura e dei mais um trago, satisfeito. Foi quando a coisa piou.
Aquele ruído não poderia ser produzido por nada desta terra, e parecia
atravessar umbrais de muitos mundos. Me fisgou e me lançou por tais dimensões,
como o barqueiro que conduz seu barco pelo Aqueronte, e assim me desfiz de
qualquer sonho ou desejo que me restasse. Me despi de carne e couro, e meus olhos
secaram ao ver as figuras dançantes que habitavam aquele mundo infernal.
Amaldiçoado, não podia me juntar a elas, e nem mesmo retornar ao mundo dos vivos
como um semelhante. Assim, me tornei algo inumano, habitando a fronteira dos
dois mundos. Nunca imaginei que a Rasga-mortalha seria de alguma forma tão
parecida comigo. Em seu cínico sarcasmo, me transformou naquilo que eu mais
desejava, e assim me provou um idiota.
Agora vago, meu corpo seco espreitando em estradas e encruzilhadas, pois, um
dia, desafiei a morte. Refletindo sobre tudo o que me ocorreu, entendo o que foi
aquele som tão desumano. Grito de agonia ou espanto são definições pobres.
Aquilo que ouvi, de certo, era uma gargalhada zombeteira.

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