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MORAL E HISTORIA sariamente o livre desenvolvimento da comunidade. O progresso moral se nos apresenta, mais uma vez, em estreita relagdo com 0 progresso hist6rico-social. O progresso moral, como movimento ascensional no terreno moral, manifesta-se também como um processo dialético de nega- go e de conservagao de elementos morais anteriores. Assim, por ‘exemplo, a vinganga de sangue, que constitui uma forma de justica dos povos primitivos, cessa de ter valor moral nas sociedades pos- teriores; o egoismo caracteristico das relagdes morais burguesas é abandonado por uma moral coletivista socialista. Pelo contrario, valores morais admitidos ao longo de séculos — como a solida- riedade, a amizade, a lealdade, a honradez, etc. —adquirem certa universalidade e deixam, portanto, de pertencer exclusivamente a uma moral particular, ainda que o seu contetido mude e se enri- queca 4 medida que ultrapassam um limite histérico particular. De maneira aniloga, ha vicios morais — como a soberba, a vaidade, a hipocrisia, a perfidia, etc. — que so rejeitados pelas varias morais. De outro lado, antigas virtudes morais que correspondem a interesses da classe dominante em outros tempos perdem a sua forga moral, quando muda radicalmente a sociedade. Pelo contré- rio, ha valores morais que s4o reconhecidos somente depois de 0 homem ter percorrido um longo caminho no seu progresso social € moral. Assim acontece, por exemplo, com o trabalho humano e com a atitude do homem diante dele, que somente assumem um. real contetido moral na nossa época, superada a sua negacdo ou desprezo por parte das morais de outros tempos, ‘Mas este aspecto do progresso moral, que consiste na negacao radical de velhos valores, na conservagao dialética de alguns ou na incorporagio de novos valores ¢ virtudes morais, verifica-se tio somente sobre a base de um progresso hist6rico-social que con- diciona esta negagao, superacio ou incorporagao, fato que, mais ‘uma vez, evidencia como a mudanga ea sucessao de determinadas morais por outras, numa linha ascensional, tem suas ra{zes na mudanga e sucessio de determinadas formagies sociais por outras. 60 CAPITULO I A esséncia da moral Partindo do fato da moral, isto é, da existéncia de uma série de morais concretas, que se sucederam historicamente, podemos ten- tar dar uma definigéo da moral valida para todas. Esta definigao nio pode abranger absolutamente todos os elementos especificos de cada uma dessas morais hist6ricas, nem refletir toda a riqueza da vida moral, mas deve procurar expressar os elementos essenciais que permitam distingur-las de outras formas do comportamento humano. Daremos provisoriamente uma definigdo que nos permita an- tecipar, numa formula resumida, a exposigao da propria natureza da moral que constitui o assunto do presente capitulo, A definigao que propomos como ponto de partida é a seguinte: a moral é um conjunto de normas, aceitas livre e conscientemente, que regulam © comportamento individual e social dos homens. 1. ONORMATIVO E 0 FATUAL Jé nesta definigdo vemos que, ée um lado, se fala de normas, e, de outro, de comportamento. Ou, mais explicitamente, encontramos na moral dois planos: a) o normativo, constituido pelas normas cou regras de ago e pelos imperativos que enunciam algo que deve set; b) 0 fatual, ou plano dos fatos morais, constituido por certos atos humanos que se realizam efetivamente, isto é, que sao inde- pendentemente de como pensemos que deveriam ser. No plano do normativo, estdo as regras que postulam de- terminado tipo de comportamento: “ama teu proximo como a 6 A ESSENCIA DA MORAL ti mesmo”, “respeita teus pais”, “no mintas”, “ndo te tornes cctimplice de uma injustiga” etc. Ao plano do fatual, pertencem sempre agdes concretas: 0 ato pelo qual X se mostra solidério com Y, atos de respeito para com os pais, a dentincia de uma injustiga etc. Todos estes atos se conformam com determinadas normas moraise precisamente enquanto podem ser postos em re- lagio positiva com uma norma, enquanto se conformam com ela ‘ou a poem em pritica, adquirem um significado moral. So atos ‘morais positivos ou moralmente valiosos. Mas 0 mundo efetivo da moral ndo se esgota neles. Consideremos outro tipo de atos: 0 no cumprimento de uma promessa feita, a falta de solidariedade com um companheiro, os atos de desrespeito para com os pais, a ‘cumplicidade na injustiga etc. Nao podem ser considerados moral- mente positivos porque implicam na violagio de normas morais ou uma forma de comportamento errada, mas nem por isto deixam de pertencer 4 esfera da moral. Sao atos moralmente negativos, mas, precisamente por referir-se a uma norma (porque implicam ‘numa violago ou no cumprimento da mesma), tém um significado moral. Assim, portanto,a sua relago com 0 normativo (no duplo sentido de cumprimento ou de ndo cumprimento de uma norma moral) determina a inclusdo de certos atos na esfera da moral. © normativo est, por sua vez, numa especial relagao com 0 fatual, pois toda norma, postulando algo que deve ser, um tipo de comportamento que se considera devido, aponta para a esfera dos fatos, porque inclui uma exigéncia de realizagio. A norma “nao te tornes ciimplice de uma injustiga” postula um tipo de comportamento e, com isso, exige-se que passem a fazer parte do mundo dos fatos morais, isto é, do comportamento efetivo real dos homens, aqueles atos nos quais se cumpre a norma citada, 20 ‘mesmo tempo que reclama a exclusio desse mundo de atos que implicam num nao cumprimento ou violagio da mesma norma. Tudo isto significa que 0 normativo nao existe independentemente do fatual, mas apanta para um comportamento efetivo. O nor- ‘mativo existe para ser realizado, o que nao significa que se realize necessariamente; postula um comportamento que se julga dever 6 erica ser; isto é, que deve realizar-se, embora na realidade efetiva no se cumpra a norma, Mas 0 fato de que a norma nao se cumpra nio invalida, como sua nota essencial, a exigéncia de realizacao. Assim, por exemplo, o fato de que numa comunidade nao se cum- pra ou por todos ou por uma parte mais ou menos numerosa de seus membros a norma “no te tornes ciimplice de uma injustiga” no invalida, de modo algum, a exigéncia de que ela seja posta em pratica. Esta exigéncia e, por conseguinte, a sua validade, no sio afetadas pelo que acontece no mundo dos fatos. Concluindo, as normas existem e valem independentemente da medida em que se cumpram ou se violem. (© normativo eo fatual nao coincidem; todavia, como jé assina- lamos, encontram-se numa relagao mitua: o normativo exige ser realizado e, por isso, orienta-se no sentido do fatual; o realizado (o fatual) s6 ganha significado moral na medida em que pode ser referido (positiva ou negativamente) a uma norma. Nao hé normas que sejam indifcrentes a sua realizagao; nem ha, tampouco, fatos na esfera moral (ou da realizagao moral) que nao se vinculem com normas. Assim, portanto, o normativoe o fatual no terreno moral (a norma e 0 fato) so dois planos que podem ser distinguidos, mas no completamente separados. 2. MORAL E MORALIDADE ‘A moral efetiva compreende, portanto, nfo somente normas ou regras de agio, mas também — como comportamento que deve ser — os fatos com ela conformes. Ou seja, tanto 0 conjunto dos prinefpios, valores e prescrig6es que os homens, numa dada co- munidade, consideram validos como os atos reais em que aqueles se concretizam ou encarnam. A necessidade de ter sempre presente esta distingdo entre 0 plano puramente normativo, ou ideal, ¢ 0 fatual, real ou pritico, levou alguns autores a propor dois termos para designar respec tivamente cada plano: moral e moralidade. A “moral” designarin 6 A ESSENCIA DA MORAL © conjunto dos principios, normas, imperativos ou ideias morais de uma época ou de uma sociedade determinadas, ao passo que a “moralidade” se referiria ao conjunto de relagGes efetivas ou atos concretos que adquirem um significado moral com respeito a “moral” vigente. A moral estaria em plano ideal; a moralidade, no plano real. A “moralidade” seria um componente efetivo das relagdes humanas coneretas (entre os individuos e a comunidade). Constituiria um tipo especifico de comportamento dos homens e, como tal, faria parte da sua existéncia individual e coletiva. A distingao entre “moral” e “moralidade” corresponde assim Aquela que indicamos antes entre o normativo e o fatual e, como esta, ndo pode ser negligenciada. A moral tende a transformar-se em moralidade devido a exigéncia de realizagio que est na es- séncia do proprio normativo; a moralidade é a moral em aco, a ‘moral pratica e praticada. Por isto, lembrando que nao é possivel levantar um muro intransponivel entre as duas esferas, cremos que € melhor empregar um termo s6 — 0 de moral, como se costuma fazer tradicionalmente — e nao dois. Mas, deve ficar claro que com ele se indicam os dois planos dos quais se fala na nossa de- finigo: 0 normativo ou prescritivo e o pratico ou efetivo, ambos integrados na conduta humana concreta. O primeiro — como veremos mais adiante —nasce também na vida real ea ela retorna para regular ages e relagdes humanas concretas; o segundo surge exatamente na prépria vida real em relagdo com os principios ou normas aceitas como validas pelo individuo e pela comunidade e estabelecidos e sancionados por esta, pelo costume ou pela tradi- sao. Por conseguinte, desta maneira, na moral — que € 0 termo ue empregaremos a seguir —conjugam-se 0 normativo e o fatual ‘ou a moral como fato da consciéncia individual e social e como tipo de comportamento efetivo dos homens, 3. CARATER SOCIAL DA MORAL A moral possui, em sua esséncia, uma qualidade social. Isso significa que se manifesta somente ma sociedade, respondendo as 66 enica suas necessidades e cumprindo uma fungdo determinada. A nos- sa andlise anterior do carter hist6rico da moral e do progresso moral j4 destacou a relagdo entre a moral e a sociedade. Vimos, de fato, que uma mudanga radical da estrutura social provoca uma mudanga fundamental de moral. Mas, falando em sociedade, ve “ppossodui no pusapxa “oupsaw purau -pus Duin ap opt a ‘puuntus ovSoiau0? pun 40d “aquauaquersu02 2 auayy seprivae wolas ‘yo120s @ o210;81q 4a}e409 sun ap svpeiop ‘spuuiou svasa anb vuroupue jo} ap ‘apepiunuos v a sa4s0 a13ua Ho sompiniput so aujua snip saoSeja4 sp sopvjuotupynia4 os pnb © opunas ‘sasoypn 9 sordiouud ‘souciou ap vucaysts wan 9 jo1ow y awuow va wiongssa ¥

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