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DIÁLOGOS
O BANQUETE - FÉDON - SOFISTA- POLÍTICO
Traduções de:
Jose' C a v a l c a n t e d e S o u z a ( O B anquete)
Jo r g e P a l e i k a t e Jo ã o C r u z C o s t a (F éd on , Sofista, Político)
197 2
O Banquete
F edon .. .
So f ist a
P olítico . .
O BANQUETE
Texto, tradução e notas
Para a presente tradução servi-me dos textos deJ. Bumet, da Bibliotheca Oxo-
niensis (Oxford) e de L. Robin, da coleção “L es Belles Lettres”. Como comecei
a trabalhar com o primeiro, serviu-me ele naturalmente de primeiro fundamento,
ao qual apliquei algumas lições do segundo, que é mais recente 1 e que oferece um
aparato crítico bem mais rico. O confronto dessas duas excelentes edições possi
bilitou-me mesmo a apresentação de um terceiro texto, que representa uma tenta
tiva de aproveitamento do que elas têm de melhor, e que espero poderá ser um
dia aproveitado numa edição bilingüe. Na impossibilidade de o fazer agora, julgo
todavia que não será de todo fora de interesse, sobretudo para a apreciação da
tradução, prestar algum esclarecimento sobre a maneira como se preparam as
edições modernas dos textos gregos.
O estabelecimento de um texto grego antigo é um trabalho à primeira vista
altamente maçante, sem dúvida alguma árduo, mas afinal capaz de suscitar pro
fundo interesse e mesmo empolgar o espírito de quem se disponha a abordá-lo.
Um editor moderno encontra-se em fa ce de várias edições anteriores, de uma
profusão de manuscritos medievais, de alguns papiros e uma quantidade de cita
ções de autores antigos. Tudo isso perfaz a tradição do texto que ele se dispõe a
reapresentar. Numa extensão de dois mil e tantos anos, as vicissitudes da história
fizeram-na seccionar-se em etapas com desenvolvimento próprio, sob o qual se
dissimulam os sinais de sua continuidade. Assim , ele tem que levar em conta
uma tradição antiga, uma tradição medieval e mesmo, podemos acrescentar,
uma tradição moderna. Cada uma delas reclama um tratamento especial, a se
efetuar todavia sempre em correlação com as demais.
Os documentos que lhe vão servir de base são os da tradição medieval, os
manuscritos. A quantidade destes é considerável para uma boa parte dos autores
gregos, mas seu valor é naturalmente desigual. Impõe-se um trabalho de seleção
e classificação em que se procure o liame perdido da tradição antiga, e em que
portanto o testemunho dos papiros e das citações dos autores antigos podem
muitas vezes ser de grande préstimo. A lém desse cotejo precioso com os restos
1 D e 1929, enquanto que a de Burnet 6 de 1901. (N . d o T .)
PLATÃO
tradução nada tenha de excepcional, e que o seu autor, em muitos torneios de fra
ses e em muita escolha de palavra, tenha sido vitima da falta de disciplina e de
tradição que está porventura alegando nesse setor da nossa atividade intelectual.
N o entanto, em alguma passagem ele terá talvez acertado, e esse parco resultado
poderá dar uma idéia do que seria uma reação especial nossa a um texto heléni
co, que conhecemos geralmente através da sensibilidade e da elucubração do
francês, do inglês, do alemão, etc. Nossa língua tem necessariamente uma malea
bilidade especial, uma peculiar distribuição do vocabulário, uma maneira pró
pria de utilizar as imagens e de proceder às abstrações, e todos esses aspectos da
sua capacidade expressiva podem ser poderosamente estimulados pelo verda
deiro desafio que as qualidades de um texto grego muitas vezes representam para
uma tradução. A linguagem filosófica sobretudo, e em particular a linguagem de
Platão, oferece sob esse aspecto um vastíssimo campo para experiências dessa
natureza. Alguns exemplos do Banquete ilustram muito bem esse tipo especial de
dificuldades que o tradutor pode encontrar e para as quais ele acaba muitas vezes
recorrendo às notas explicativas. N o entanto, se estas são inevitáveis numa tra
dução moderna, não é absolutamente inevitável que sejam as mesmas em todas
as línguas modernas. Fazer com que se manifestasse nesta tradução justamente a
diferença que acusa a reação própria e o caráter de nossa língua, eis o objetivo
sempre presente do tradutor.
Quanto às pequenas notas explicativas, dão elas naturalmente ’um rápido
esclarecimento sobre nomes e fatos da civilização helénica aparecidos no con
texto do Banquete, mas o que elas almejam sobretudo é ajudar à compreensão
desta obra platônica, ao mesmo tempo em seus trechos característicos e em seu
conjunto. Alguns anos de ensino de literatura grega levaram-me à curiosa cons
tatação da impaciência e desatenção com que uma inteligência moderna lê um
diálogo platônico. Quem quiser por si mesmo tirar a prova disso, procure a uma
primeira leitura resumir qualquer um desses diálogos, mesmo dos menores, e de
pois confira o seu resumo com uma segunda leitura. F o i a vontade de ajudar o
leitor moderno nesse ponto que inspirou a maioria das notas.
Finalmente devo assinalar que, não obstante a modéstia de conteúdo e de
proporções deste trabalho, eu não teria sido capaz de efetuá-lo sem a constante
orientação do P r o f Aubreton, cujas observações levaram-me a sucessivos reto
ques, particularmente na tradução e na confecção das notas. A ele, por conse
guinte, quero deixar expressos, com a minha admiração, os mais sinceros
agradecimentos.
J. Ç. de Souza
Apolodoro 1 e um Companheiro
Deixai-o! É um hábito seu esse1 5: às dos copos que pelo fio de lã escorre 1 7
vezes retira-se onde quer que se encon do mais cheio ao mais vazio. Se é e
tre, e fica parado. Virá logo porém, assim também a sabedoria, muito
segundo creio. Não o incomodeis por aprecio reclinar-me ao teu lado, pois
tanto, mas deixai-o. creio que de ti serei cumulado com
— Pois bem, que assim se faça, se é uma vasta e bela sabedoria. A minha
teu parecer — tornou Agatão. — E seria um tanto ordinária, ou mesmo
vocês, meninos, atendam aos convivas. duvidosa como um sonho, enquanto
Vocês bem servem o que lhes apraz, que a tua é brilhante e muito desenvol
quando ninguém os vigia, o que jamais vida, ela que de tua mocidade tão
fiz; agora portanto, como se também intensamente brilhou, tornando-se an
eu fosse por vocês convidado ao jan teontem manifesta a mais de trinta mil
tar, como estes outros, sirvam-nos a gregos que a testemunharam.
fim de que os louvemos. — Es um insolente, ó Sócrates —
— Depois disso — continuou Aris- disse Agatão. — Quanto a isso, logo
todemo — puseram-se a jantar, sem mais decidiremos eu e tu da nossa
que Sócrates entrasse. Agatão muitas sabedoria, tomando Dioniso por
vezes manda chamá-lo, mas o . amigo juiz18; agora porém, primeiro apron
não o deixa. Enfim ele chega, sem ter ta-te para o jantar.
demorado muito como era seu costu
— Depois disso — continuou Aris- ma
me, mas exatamente quando estavam
todemo — reclinou-se Sócrates e jan
no meio da refeição. Agatão, que se
tou como os outros; fizeram então
encontrava reclinado sozinho no últi
libações e, depois dos hinos ao deus e
mo leito 1 6, exclama: — Aqui, Sócra
dos ritos de costume, voltam-se à bebi
tes ! Reclina-te ao meu lado, a fim de
da. Pausânias então começa a falar
que ao teu contato desfrute eu da sábia
mais ou menos assim: — Bem, senho
idéià que te ocorreu em frente de casa.
res, qual o modo mais cômodo de
Pois é evidente que a encontraste, e
bebermos? Eu por mim digo-vos que
que a tens, pois não terias desistido
estou muito indisposto com a bebe
antes.
deira de ontem, e preciso tomar fôlego
Sócrates então senta-se e diz: ■ —■
— e creio que também a maioria dos
Seria bom, Agatão, se de tal natureza
senhores, pois estáveis lá; vêde então b
fosse a sabedoria que do mais cheio
de que modo poderíamos beber o mais
escorresse ao mais vazio, quando um
comodamente possível.
ao outro nos tocássemos, como a água
Aristófanes disse então: — É bom o
15 É curiosa essa explicação de um hábito so que dizes, Pausânias, que de qualquer
crático a amigos de Sócrates, tanto mais que,
um pouco abaixo (d l- 2 ), Agatão revela estar
modo arranjemos um meio de facilitar
familiarizado com ele. Isso denuncia a ficção
platônica, e em particular a intenção de sugerir 17 Sem dúvida um processo de purificação da
desde já a. capacidade socrática para as longas água. Aristófanes ( Vespas, 701-702) refere-se
concentrações de espírito, como a que Alcibía- ao mesmo processo, mas com relação ao óleo.
des contará em seu discurso (220c-d). (N. do T.) (N. do T .)
16 Os divãs do banquete se dispunham em for 18 Patrono dos concursos teatrais e deus do vi
ma de uma ferradura. N o extremo esquerdo fi nho, Dioniso é apropriadamente mencionado
cava o anfitrião, que punha à sua direita o hós por Agatãó como o árbitro natural da próxima
pede de honra. É o lugar que Agatão oferece a competição entre os convivas, no simpósio pro
Sócrates. (N. d o T .) priamente dito. (N. do T.)
O BANQUETE 17
a bebida, pois também eu sou dos que mas bebendo cada um a seu bel-pra
ontem nela se afogaram. zer2 1.
Ouviu-os Erixímaco, o filho de Acú- — Como então — continuou Erixí
meno, e lhes disse: — Tendes razão! maco — é isso que se decide, beber
Mas de um de vós ainda preciso ouvir cada um quanto quiser, sem que nada
como se sente para resistir à bebida; seja forçado, o que sugiro então é que
não é, Agatão? mandemos embora a flautista que aca
— Absolutamente — disse este — bou de chegar, que ela vá flautear para
também eu não me sinto capaz. si mesma, se quiser, ou para as mulhe
c — Uma bela ocasião seria para res lá dentro; quanto a nós, com dis
nós, ao que paréce — continuou Erixí cursos devemos fazer nossa reunião
maco — para mim, para Aristodemo, hoje; e que discursos — eis o que, se
Fedro e os outros, se vós os mais capa vos apraz, desejo propor-vos.
zes de beber desistis agora; nós, com Todos então declaram que lhes m a
efeito, somos sempre incapazes; quan apraz e o convidam a fazer a proposi
to a Sócrates, eu o excetuo do que ção. Disse então Erixímaco: — O
digo, que é ele capaz de ambas as coi exórdio de meu discurso é como a
sas e se contentará com o que quer que Melanipa 22 de Eurípides; pois não é
fizermos19. Ora, como nenhum dos minha, mas aqui de Fedro a história
presentes parece disposto a beber que vou dizer. Fedro, com efeito,
muito vinho, talvez, se a respeito do freqüentemente me diz irritado: —
que é a embriaguez eu dissesse o que Não é estranho, Erixímaco, que para
d ela é, seria menos desagradável. Pois outros deuses haja hinos e peãs, feitos
para mim eis uma evidência que me pelos poetas, enquanto que ao Amor
veio da prática da medicina: é esse um. todavia, um deus tão venerável e tão
mal terrível para os homens, a embria grande, jamais um só dos poetas que *
guez; e nem eu próprio desejaria beber tanto se engrandeceram fez sequer um
muito nem a outro eu o aconselharia, encómio23? Se queres, observa tam
sobretudo a quem está com ressaca da bém os bons sofistas: a Hércules e a
véspera. outros eles compõem louvores em
— Na verdade — exclamou a se prosa, como o excelente Pródico 2 4 —
guir Fedro de Mirrinote20 — eu costu
mo dar-te atenção, principalmente em 21 Geralmente o uupnooiápxns , i-e., o chefe
tudo que dizes de medicina; e agora, se do simpósio, eleito pelos convivas, determinava
o programa da bebida, fixando inclusive o grau
bem decidirem, também estes o farão. de mistura do vinho a ser obrigatoriamente
c Ouvindo isso, concordam todos em ingerido. V . infra 213e, 9-10. (N. do T.)
22 Melanipa, a-Sábia, tragédia perdida de Eurí-
não passar a reunião embriagados, pedes, que também escreveu Melanipa, a Prisio
neira. Erixímaco refere-se ao verso ovk ê/uòç ò
A ouxppoowTj socrática, i.e., o domínio dos pvdoq, éixfiq njirpòq iràpa. (frag. 487 W ag
apetites e sentidos do corpo, resiste tanto à fa ner) : nao é minha a história, mas de minha
diga e à dor como ao prazer (v. infra 2 2 0 a ), mãe. (N . do/T.)
tal como Platab queria que fossem os guardiães 23 Isto é, uma composição poética, consagrada
da sua cidade ideal. V . República III, 413d-e. exclusivamente ao louvor de um deus ou de um
(N . do T .) herói. U m elogio poético belíssimo, embora no
20 U m dos numerosos dem os (no tempo de espírito da tragédia, encontra-se no famoso 3<?
Heródoto 100), i.e., distritos em que se subdi estásimo da Antígona de Sófocles, 783-800.
vidia a população de Ática. (N . d o T .) (N . d o T .)
18 PLATÃO
Amor. E Parmênides diz da sua ori resse de se fazer uma cidade ou uma
gem expedição de amantes e de amados,
não haveria melhor maneira de a cons
tituírem senão afastando-se eles de
bem antes de todos os deuses pensou22 tudo que é feio e porfiando entre si no
em Am or. apreço à honra; e quando lutassem um ma
ao lado do outro, tais soldados vence
E com Hesíodo também concorda riam, por poucos que fossem, por
Acusilau30. Assim, de muitos lados se assim dizer todos os homens31. Pois
reconhece que Amor é entre os deuses um homem que está amando, se deixou
o mais antigo. E sendo o mais antigo é seu posto ou largou suas armas,^aceita
para nós a causa dos maiores bens. ria menos sem dúvida a idéia de ter
Não sei eu, com efeito, dizer que haja sido visto pelo amado do que por todos
maior bem para quem entra na moci os outros, e a isso preferiria muitas
dade do que um bom amante, e para vezes morrer. E quanto a abandonar o
um amante, do que o seu bem-amado. amado ou não socorrê-lo em perigo,
ninguém há tão ruim que o próprio
Aquilo que, com efeito, deve dirigir
Amor não o tom e inspirado para a vir
toda a vida dos homens, dos que estão
tude, a ponto de ficar ele semelhante
prontos a vivê-la nobremente, eis o que
ao mais generoso de natureza; e sem
nem a estirpe pode incutir tão bem,
mais rodeios, o que disse Homero “do b
nem as honras, nem a riqueza, nem
ardor que a alguns heróis inspira o
nada mais, como o amor. A que é deus” 32, eis o que o Amor dá aos
então que me refiro? À vergonha do
amantes, como um dom emanado de si
que é feio e ao apreço do que é belo. mesmo.
Não é com efeito possível, sem isso, E quanto a morrer por outro, só o
nem cidade nem indivíduo produzir, consentem os que amam, não apenas
grandes e belas obras. Afirmo eu então os homens, mas também as mulheres.
que todo homem que ama, se fosse des E a esse respeito a filha de Pélias,
coberto a fazer um ato vergonhoso, ou Alceste33, dá aos gregos uma prova
a sofrê-lo de outrem sem se defender 31 Se não é isso um a alusão ao batalhão sagra
por covardia, visto pelo pai não se do dos tebanos, que se notabilizou em Leutras
(3 7 1 ), uns dez anos depois da provável publi
envergonharia tanto, nem pelos amigos cação d o .Banquete, é pelo menos um indício de
nem por ninguém mais, como sé fosse que essa idéia já corria o m undo grego, origi
nária de cidades dóricas. (N . do T.)
visto pelo bem-amado. E isso mesmo é 32 H om ero, Ilíada, X , 182 tü ô’ e'lnrueuoe
o que também no amado nós notamos, nevoç jXaujKcÕTTi^ 'A&rtvrt — inspirou-lhe ardor
(a D iom ed es) A tena de olhos brilhantes; e X V ,
que é sobretudo diante dos amantes 262: ójç eincjju e/jmvevoe pêvoq /Jtêya minkvL
que ele se envergonha, quando sur \acov assim tendo dito, inspirou um
grande ardor no pastor de povos. (N . d o T .)
preendido em algum ato vergonhoso. 33 Casada com A dm eto, rei de Feres, na T essá
Se por conseguinte algum meio ocor- lia, A lceste aceita morrer em lugar do esposo,
quando os próprios pais deste se tinham recusa
29 Isto é, a deusa Justiça (Sim pl. Fís. 39, 18 do ao sacrifício. M as pouco depois de sua m or
D ie ls ) . (N . do T.) te, H ércules, hospedado por A dm eto e inform a
30N atu ral de A rgos (séculp V ia .C .) , A cusilau do do ocorrido, desce ao H ades e traz A lceste
escreveu várias genealogias de deuses e hom ens. de volta. É- o tem a da bela tragédia de Eurípe-
(N . d o T .) des, que traz o nom e da heroína. (N . d o T .)
20 PLATÃO
d não sendo um só, é mais acertado pri res3 7 que os jovens, e depois o que
meiro dizer qual o que se deve elogiar. neles amam é mais o corpo que a alma,
Tentarei eu portanto corrigir este e ainda dos mais desprovidos de inteli
senão, e primeiro dizer qual o Amor gência, tendo em mira apenas o efetuar
que se deve elogiar, depois fazer um o ato, sem se preocupar se é decente
elogio digno do deus. Todos, com efei mente ou não; daí resulta então que
to, sabemos que sem Amor não- há elès fazem o que lhes ocorre, tanto o
Afrodite. Se portanto uma só fosse que é bom como o seu contrário. Tra
esta, um só seria o Amor; como porém ta-se com efeito do amor proveniente
são duas, é forçoso que dois sejam da deusa que é mais jovem que a outra
também os Amores. E como não são e que em sua geração participa da
duas deusas? Uma, a mais velha sem fêmea e do macho. O outro porém é o
dúvida, não tem mãe e é filha de da Urânia, que primeiramente não par
ticipa da fêmea mas só do macho — e
U rano3 6, e a ela é que chamamos de
é este o amor aos jovens3 8 — e depois
Urânia, a Celestial; a mais nova, filha
e de Zeus e de Dione, chamamo-la de é a mais velha39, isenta de violência;
daí então é que se voltam ao que é
Pandêmia, a Popular. É forçoso então
que também o Amor, coadjuvante de másculo os inspirados, deste amor,
afeiçoando-se ao que é de natureza
uma, se chame corretamente Pandê-
mio, o Popular, e o outro Urânio, o mais forte e que tem mais inteligência.
Celestial. Por conseguinte, é sem dúvi E ainda, no próprio amor aos jovens
da preciso louvar todos os deuses, mas poder-se-iam reconhecer os que estão
movidos exclusivamente por esse tipo
o dom que a um e a outro coube deve
de amor 40; não amam eles, com efeito,
se procurar dizer. Toda ação, com efei os meninos, mas os que já começam a
to, é assim que se apresenta: em si ter juízo, o que se dá quando lhes vêm
mesma, enquanto simplesmente prati- chegando as barbas. Estão dispostos,
!si a cada, nem é bela nem feia. Por exem
penso eu, os que começam desse
plo, o que agora nós fazemos, beber,
ponto, a amar para acompanhar toda a
cantar, conversar, nada disso em si é vida e viver em- comum, e não a enga
belo, mas é na ação, na maneira como nar e, depois de tomar o jovem em sua
é feito, que resulta tal; o que é bela e inocência e ludibriá-lo, partir à procu
corretamente feito fica belo, o que. não ra de outro. Seria preciso haver uma lei
o é fica feio. Assim é que o amar e o proibindo que se amassem os meninos,
Am or não é todo ele belo e digno de a fim de que não se perdesse n a incer
ser louvado, mas apenas o que leva a teza tanto esforço; pois é na verdade
amar belamente. incerto o destino dos meninos, a que
Ora pois, o Amor de Afrodite Pan- ponto do vício ou dá virtude eles che-
b dêmia é realmente popular e faz o que 37 Confrontar com 208 e, onde Sócrates encon
lhe ocorre; é a ele que os homens vul tra o grande sentido do amor norm al à mulher,
gares amam. E amam tais pessoas, aqui especiosam ente confundido com o o tipo
inferior do amor. (N . d o T .)
primeiramente não menos as mulhe- 38 M uitos editores consideram esta fràse uma
glosa. (N . d o T .)
36 H esíodo, T eogonia, 188-206. U rano fo i m u 39 N a velh ice .dom ina a razão. D aí é que os
tilado por seu filh o Zeus, e o esperma do seu amantes desse amor procuram os que já com e
m em bro viril, atirado ao mar, espum ou sobre çam a ter juízo . . . (N . do T.)
as águas, donde se form ou A frodite. Em H o 40 Confrontar com 210a-b. A progressão do
m ero, no entanto, essa deusa é filha de Zeus, amor, segundo D iotim a, exige que o am ante
e de D io n e (Ilíada, V, 3 7 0 ). (N . d o T .) largue o amor violento de um só. (N . do T .)
22 PLATÃO
gam em seu-corpo e sua alma. Ora, se veita aos seus governantes que nasçam
os bons amantes a si mesmos se grandes idéias entre os governados,
impõem voluntariamente esta lei, de nem amizades e associações inabalá
via-se também a estes amantes popula veis, o que justamente, mais do que
res obrigá-los a lei semelhante, assim qualquer outra coisa, costuma o amor
como, com as mulheres de condição inspirar. Por experiência aprenderam
livre41, obrigamo-las na medida do isto os tiranos4 4 desta cidade-; pois foi
possível a não manter relações amoro 0 amor de Aristogitão e a amizade de
sas. São estes, com efeito, os que justa Harmôdio que, afirmando-se, destruí
mente criaram o descrédito, a ponto de ram-lhes o poder. Assim, onde se esta
alguns ousarem dizer que é vergonhosp beleceu que é feio o aquiescer aos
o aquiescer aos amantes; e assim o amantes, é por defeito dos que o esta
dizem porque são estes os que eles beleceram que assim fica, graças à
consideram, vendo o seu despropósito ambição dos governantes e à covardia
e desregramento, pois não é sem dúvi dos governados; e onde simplesmente
da quando feito com moderação e se determinou que é belo, foi em conse
norma que um ato, seja qual for, incor qüência. da inércia dos que assim
reria em justa censura. estabeleceram. Aqui porém, muito
Aliás, a lei do amor nas demais mais bela que estas é a norma que se
cidades é fácil de entender, pois é sim instituiu e, como eu disse, não é fácil
ples a sua determinação; aqui4 2 porém de entender. A quem, com efeito, tenha
ela é complexa. Em Élida, com efeito, considerado 4 5 que se diz ser mais belo
na Lacedemônia, na Beócia, e onde amar claramente que às ocultas, e
não se saiba falar, simplesmente se sobretudo os mais nobres e os melho
estabeleceu que é belo aquiescer aos res, embora mais feios que outros; que
amantes, e ninguém, jovem ou velho, por outro lado o encorajamento dado
diria que é feio, a fim de não terem difi por todos aos amantes é extraordinário
culdades, creio eu, em tentativas de e não como se estivesse a fazer algum-
persuadir os jovens com a palavra, ato feio, e se fez ele uma conquista pa
incapazes que são de falar; na Jônia, rece belo o seu ato, se não, parece feio;
porém, e em muitas outras partes é e ainda, que em sua tentativa de con
tido como feio, por quantos habitam quista deu a lei ao amante a possibili
sob a influência dos bárbaros. Entre os dade de ser louvado na prática de atos
bárbaros, com efeito, por causa das 1 > ■
44 H ípias e H iparco, filh os de Pisístrato. N u m a
tiranias, é uma coisa feia esse amor, primeira conspiração em 514, ao que parece
p or-m otivos pessoais, H iparco fo i assassinado,
justamente como o da sabedoria e da enquanto A rm ódio m orria na luta e seu' com
ginástica43; é que, imagino, não apro- panheiro A ristogitão era condenado à morte.
Quatro anos depois H ípias perdia o poder, víti
41 Isto é, não escravas. (N . do T .) m a de um a nova conspiração (V. Tucídides, V I,
42 Os m anuscritos trazem a expressão “e na 5 4 ). ( N .d o T .)
Lacedem ônia” depois de .“aqui”, o que não con 45 Essa subordinada, iniciaxjdo um longo perío
corda com a notória tendência dos lacedem ô- do, não tem seqüência lógica com a sua princi
nios ao hom ossexualism o. (N . d o T .) pal, form ulada em 183c (Poder-se-ia pensar
43 Observar a expressão grega correspondente q u e . . .). M esm o à custa da clareza, preferim os
( ipCKoaotpía xai 77 ipiKoyu^vaaía ) e lembrar conservar a m esm a articulação ampla e irregu
que os ginásios eram dos locais prediletos de lar, a fim de permitir um a m elhor apreciação
Sócrates (cf. a introd. do Cármides, Lísis, La do estilo do discurso, geralm ente apontado
q u e s /e tc .). (N . d o T .) com o um a paródia de Isócrates. (N . do T .)
O BANQUETE 23
extravagantes, os quais se alguém amados que conversem com os aman
ousasse cometer em vista de qualquer tes, e ao pedagogo é prescrita essa
outro objetivo e procurando fazer ordem, e ainda os camaradas e amigos
183 a qualquer outra coisa fora isso, colheria injuriam se vêem que tal coisa está
as maiores censuras da filosofia4 6 — ocorrendo, sem que a esses injuria- <*
pois se, querendo de uma pessoa ou dores detenham os mais velhos ou os
obter dinheiro ou assumir um coman censurem por estarem falando sem
do ou conseguir qualquer outro poder, acerto, depois de por sua vez atentar a
consentisse alguém em fazer justa tudo isso, poderia alguém julgar ao
mente o que fazem os amantes para contrário que se considera muito feio
com os amados, fazendo em seus pedi aqui esse modo de agir. O que há
dos súplicas e prostemações, e em suas porém é, a meu ver, o seguinte: não é
juras protestando deitar-se às portas, e isso uma coisa simples, o que justa
dispondo-se a subserviências a que se mente se disse desde o começo, que
não sujeitaria nenhum servo, seria não é em si e por si nem belo nem feio,
impedido de agir desse modo, tanto mas se decentemente praticado é belo,
b pelos amigos como pelos inimigos, uns se indecentemente, feio. Ora, é inde
incriminando-o de adulação e indigni centemente quando é a um mau e de
dade, outros admoestando-o e envergo modo mau que se aquiesce, e decente
nhando-se de tais atos — ao amante mente quando é a um bom e de um
porém que faça tudo isso acresce-lhe a modo bom. E é mau aquele amante
graça, e lhe é dado pela lei que ele o popular, que ama o corpo mais que a «
faça sem descrédito, como se estivesse alma; pois não é ele constante, por
praticando uma ação belíssima; e o amar um objeto que também não é
mais estranho é que, como diz o povo, constante48. Com efeito, ao mesmo
quando ele jura, só ele tem o perdão tempo que cessa o viço do corpo, que
dos deuses se perjurar', pois juramento era o que ele amava, “ alça ele o seu
de amor dizem que não é juramento, e vôo” 4 9, sem respeito a muitas palavras
c assim tanto os deuses como os homens e promessas feitas. Ao contrário, o
deram toda liberdade ao amante, como amante do caráter, que ê bom, é cons
diz a lei daqui — por esse lado então tante por toda a vida, porque se fundiu
poder-se-ia pensar que se considera com o que é constante. Ora, são esses
inteiramente belo nesta cidade não só o dois tipos de amantes que pretende a m <•
fato de ser amante como também o nossa lei provar bem e devidamente, e
serem os amados amigos dos amantes. que a uns se aquiesça e dos outros se
Quando porém, impondo-lhes um pe fuja. Por isso ê que uns ela exorta a
dagogo47, os pais não permitem aos perseguir e outros a evitar, arbitrando
46 Por que. da filosofia? V ários críticos tenta e aferindo qual é porventura o tipo do
ram corrigir essa lição dos mss. Burnet apôs-lhe
o óbelo da suspeita. N o entanto, não se deve
amante e qual o do amado. Assim é
entender a palavra no seu conceito platônico, que, por esse motivo, primeiramente o
m as antes na acepção m enos específica de cul- se deixar conquistar é tido como feio, a
‘ tura superior, tal com b, por exem plo, a enten
dia Isócrates, u m saber prático que incluía 48 U m a longínqua antecipação da idéia desen
entre-^outras coisas o conhecim ento das boas volvida plenam ente em 207d-208b. (N . d o T .)
norm as do cidadão. (N . do T .) 49 Expressão hom érica (Ilíada, II, 7 1 ), aplicada
47 É o escravo encarregado de acompanhar os a Oneiros, o sonho personificado, que v eio ■a .
jovens à palestra e à escola. (N . d o T .) A gam enão. (N . do T.)
PLATÃO
24
fim de que possa haver tempo, que bem segundo em precisão de adquirir para
parece o mais das vezes ser uma exce a sua educação e demais competência,
lente prova; e depois o deixar-se con só então, quando ao mesmo objetivo
quistar pelo dinheiro e pelo prestígio convergem essas duas normas, só
político é tido como feio, quer a um então é que coincide ser belo o aquies
mau trato nos assustemos sem reagir, cer o amado ao amante e em mais
quer beneficiados em dinheiro ou em nenhuma outra ocasião. Nesse caso,
sucesso político não os desprezemos; mesmo o ser enganado não é nada feio;
nenhuma dessas vantagens, com efeito, em todos o.s outros casos porém é
parece firme ou constante, afora o fato vergonhoso, quer se seja enganado,
de que delas nem mesmo se pode deri quer não. Se alguém com efeito, depois iss a
var uma amizade nobre. Um só cami de aquiescer a um amante, na suposi
nho então resta à nossa norma, se deve ção de ser este rico e em vista de sua
o bem-amado decentemente aquiescer riqueza, fosse a seguir enganado e não
ao amante. É com efeito norma entre obtivesse vantagens pecuniárias, por se
nós que, assim como para os amantes, ter revelado pobre o amante, nem por
quando um deles se presta a qualquer isso seria menos vergonhoso; pois pa
servidão ao amado, não é isso adula rece tal tipo revelar justamente o que
ção nem um ato censurável, do mesmo tem de seu, que pelo dinheiro ele servi
modo também só outra única servidão ria em qualquer negócio a qualquer
voluntária resta, não sujeita a tensura: um, e isso não é belo. Pela mesma
a que se aceita pela virtude. Na verda razão, também se alguém, tendo
de, estabeleceu-se entre nós que, se aquiescido a um amante considerado
alguém quer servir a um outro por jul bom, e para se tornar ele próprio me
gar que por ele se tom ará melhor, ou lhor através da amizade do amante,
em sabedoria ou em qualquer outra fosse a seguir enganado, revelada a &
espécie de virtude, também esta volun maldade daquele e sua carência de vir
tária servidão não é feia nem é uma tude, mesmo assim b elo51 seria o
adulação 50. É preciso então congraçar engano; pois também nesse caso parer
num mesmo objetivo essas duas nor ce este ter deixado presente sua própria
mas, a do amor aos jovens e a do amor tendência: pela virtude e por se tom ar
ao saber e às demais virtudes, se deve melhor, a tudo ele se disporia em favor
dar-se o caso de ser belo o aquiescer o de qualquer um, e isso é ao contrário o
amado ao amante. Quando com efeito mais belo de tudo; assim, em tudo por
ao mesmo ponto chegam amante e tudo é belo aquiescer em vista da virtu
amado, cada um com a sua norma, um de. Este é o amor da deusa celeste, ele
servindo ao amado que lhe aquiesce, mesmo celeste e de muito valor para a
em tudo que for justo servir, e o outro cidade e os cidadãos, porque muito
ajudando ao que o está tornando sábio esforço ele obriga a fazer pela virtude c
e bom, em tudo que for justo ajudar, o tanto ao próprio amante como ao
primeiro em condições de contribuir amado; os outros porém são todos da ,
para a sabedoria e demais virtudes, o s i Paradoxo tipicam ente retórico, bem encaixa
do na argum entação, e aparentemente resultan
5° T odo esse detalhe dos casos feios do amor é do em louvor da virtude — a virtude enganada.
ao m esm o tem po caraterístico do realism o prá Para Sócrates porém o engano, um a falta de
tico de Pausânias e revela o que para ele é tam sabedoria, é, portanto, um a falta de virtude e
bém conteúdo da filosofia. (N . d o T .) com o tal não é belo. (N . d o T .)
O BANQUETE
25
outra deusa, da popular. É essa, ó está ele apenas nas almas dos homens,
Fedro, concluiu ele, a contribuição e para com os belos jovens, mas tam
que, como de improviso 52, eu te apre bém nas outras partes, e para com
sento sobre o Amor” . muitos outros objetos, nos corpos de
Na pau sa53 de Pausânias — pois todos os outros animais, nas plantas
assim me ensinam os sábios a falar, em da terra e por assim dizer em todos os
termos iguais — disse Aristodemo que seres é o que creio ter constatado pela
devia falar Aristófanes, mas tendo-lhe prática da medicina, a nossa arte;
ocorrido, por empanturramento ou por grande e admirável é o deus, e a tudo
algum outro motivo, um acesso de se estende ele, tanto na ordem das coi
soluço, não podia ele falar; mas disse sas humanas como entre as divinas.
ele ao médico Erixímaco, que se recli Ora, eu começarei pela medicina a
nava logo abaixo dele: — ó Erixí minha fala, a fim de que também
maco, és indicado para ou fazer parar homenageemos a arte54. A natureza
o meu soluço ou falar em meu lugar, dos corpos, com efeito, comporta esse
até que eu possa parar com ele. E Eri duplo Amor; o sadio e o mórbido são
xímaco respondeu-lhe: cada um reconhecidamente um estado
— Farei as duas coisas: falarei em diverso e dessemelhante, e o desseme
teu lugar e tu, quando acabares com lhante deseja e ama ô dessemelhan
isso, no meu. E enquanto eu estiver t e 5 5. Um portanto é o amor no que é
falando, vejamos se, retendo tu o fôle sadio, e outro no que é mórbido. E
go por muito tempo, quer parar o teu então, assim como há pouco Pàusânias
soluço; senão, gargareja com água. Se dizia que aos homens bons é belo
então ele é muito forte, toma algo com aquiescer, e aos intemperantes é feio,
que possas coçar o nariz e espirra; se também nos próprios corpos, aos ele
fizeres isso duas ou três vezes, por mentos bons de cada corpo e sadios é
mais forte que seja, ele cessará. — belo o aquiescer e se deve, e a isso é
Nãò começarás primeiro o teu discur que se dá o nome de medicina,
so, disse Aristófanes; que eu por mim é enquanto que aos maus e mórbidos é
o que farei. feio e se deve contrariar, se se vai ser
Disse então Erixímaco: “Parece-me um técnico. É com efeito' a medicina,
em verdade ser necessário, uma vez para falar em resumo, a ciência dos
que Pausânias, apesar de se ter lança- fenômenos de amor, próprios ao corpo,
dq bem ao seu discurso, não o rematou no que se refere à repleção e à evacua-
convenientemente, que eu deva tentar
pôr-lhe um remate. Com efeito, quanto 54 A arte por excelência para esse m édico, isto
é, a m edicina. A palavra réx^V indica geral
a ser duplo o Amor, parece-me que foi m ente um a determinada atividade disciplinada
uma bela distinção; que porém não pios. e orientada por um corpo de preceitos e princí
A ssim , a m edicina era tam bém um a arte.
52 N u m concurso im provisado essa indicação (N . do T .)
inútil seria estranha se não- fosse entendida 55 O contexto manda interpretar a frase de Eri
com o um a alusão irônica ao repertório de luga- xím aco assim: o m órbido (dessem elhante do
res-com uns fornecido pelo ensino form al da sadio) ama o m órbido (dessem elhante do sadio)
retórica. (N . do T .) e vice-versa. N o entanto, em d 4 infra, há um a
53 A expressão grega é llavoavíuv imvoctiiêvov , transição, que não fica muito clara, .para a idéia
que na boca de A polodoro é com o um eco dos de atração (identificada ao am or por E rixím a
desenvolvim entos sim étricos e dos paralelism os co) dos contrários no organism o. T al idéia é
( iba Xeyóiieva ) do discurso de Pausânias. atribuída ao m édico A lcm eão de Crotona (fr. 4
(N . do T .) D ie ls ), do com eço do século V. (N . do T .)
26 PLATAO
sional. Pois de novo revém a mesma cujo conhecimento nas translações dos
idéia, que aos homens moderados, e astros e nas estações do ano chama-se
para que mais moderados se tornem os astronomia. E ainda mais, não só
que ainda não sejam, deve-se aquiescer todos os sacrifícios, como também os
e conservar o seu amor, que é o belo, o casos a que preside a arte divinatória
celestial, o Amor da musa Urânia; o — e estes são os que constituem o
outro, o de Polím nia61, é o popular, comércio recíproco dos deuses e dos
que com precaução se deve trazer homens — sobre nada mais versam
àqueles a quem se traz, a fim de que se senão sobre a conservação e a c u ra 62
colha o seu prazer sem que nenhuma do Amor. Toda impiedade, com efeito,
intemperança ele suscite, tal como em costuma advir, se ao Amor moderado
nossa arte é uma importante tarefa o não se aquiesce nem se lhe tributa
servir-se convenientemente dos apetites honra e respeito em toda ação, e sim
da arte culinária, de modo a que sem ao outro, tanto no tocante aos pais,
doença se colha o seu prazer. Tanto na vivos e mortos, quanto aos deuses; e
música então, como na medicina e em foi nisso que se assinou à arte divina
todas as outras artes, humanas e divi tória o exame dos amores e sua cura, e
nas, na medida do possível, deve-se assim é que por sua vez é a arte divina
conservar um e outro amor; ambos tória produtora63 de amizade entre
com efeito nelas se encontram. De deuses e homens, graças ao conheci
fato, até a constituição das estações do mento de todas as manifestações de
ano está repleta desses dois amores, e amor que, entre os homens, se orien
quando se tomam de um moderado tam para a justiça divina e a piedade.
amor um pelo outro os contrários de Assim, múltiplo e grande, ou me
que há pouco eu falava, o quente e o lhor, universal é o poder que em geral
frio, o seco e o úmido, e adquirem uma tem todo o Amor, mas aquele que em
harmonia e uma mistura razoável, che tom o do que é bom se consuma com
gam trazendo bonança e saúde aos sabedoria e justiça, èntre nós como
homens, aos outros animais e às plan entre os deuses, é o que tem o máximo
tas, e nenhuma ofensa fazem; quando
poder e toda felicidade nos prepara,
porém é o Amor casado com a violên
pondo-nos em condições de não só
cia que se tom a mais forte nas estações
entre nós mantermos convívio e amiza
do ano, muitos estragos ele faz, e ofen
de, como também com os que são mais
sas. Tanto as pestes, com efeito, costu
poderosos que nós, os deuses. Em
mam resultar de tais causas, como
conclusão, talvez também eu, loa-'
também muitas e várias doenças nos
animais como nas plantas; geadas, vando o Amor, muita coisa estou dei
granizos e alforras resultam, com efei xando de lado, não todavia por minha
vontade. Mas se algo omiti, é tua tare
to, do excesso e da intemperança
fa, ó Aristófanes, completar; ou se um
mútua de tais manifestações do amor,
outro modo tens em mente de elogiar o
61 Padroeira da poesia lírica. A o contrário de
Pausânias, Erixím aco associou o amor às M u deus, elogia-o, uma vez que o teu solu
sas e não a A frodite, o que está de acordo com ço já o fizeste cessar.”
o caráter que seu discur.so lh e empresta: o de
um a fo rça de aglutinação universal, suscetível 62 A assim ilação das outras artes à m edicina
de ser tratada pela arte. Em lugar de A frodite tornou-se tão com pleta que o A m or é conside
Pandêm ia, ele imaginou a M usa da poesia líri rado com o um a afecção com o as outras doen
ca, a poesia dos sentimentos pessoais e das pai ças. (N . d o T .)
xões. (N . do T.) 63 V . supra p. 26', nota 59.
28 PLATÃO
189 a Tendo então tomado a palavra, con sacrifícios lhe fariam, não como agora
tinuou Aristodemo, disse Aristófanes: que nada disso há em sua honra, quan
— Bem que cessou! Não todavia, é do mais que tudo deve haver. É ele d
verdade, antes de lhe ter eu aplicado o com efeito o deus mais amigo do
espirro, a ponto de me admirar que a homem, protetor e médico desses
boa ordem do corpo requeira tais ruí males, de cuja cura dependeria sem dú
dos e comichões como é o espirro; pois vida a maior felicidade para o gênero
logo o soluço parou, quando lhe apli humano. Tentarei eu portanto iniciar-
quei o espirro. vos 6 5 em seu poder, e vós o ensinareis
E Erixímaco lhe disse: — Meu bom aos outros. Mas é preciso primeiro
b Aristófanes, vê o que fazes. Estás a aprenderdes a natureza humana e as
fazer graça, quando vais falar, e me suas vicissitudes. Com efeito, nossa
forças à vigiar o teu discurso, se por natureza outrora não era a mesma que
ventura vais dizer algo risível, quando a de agora, mas diferente. Em primeiro
té ê permitido falar em paz. lugar, três eram os gêneros da humani
Aristófanes riu e retomou: -—■Tens dade, não dois como agora, o mascu
razão, Erixím aco! Fique-me o dito lino e o feminino, mas também havia a e
pelo não dito. Mas não me vigies, que mais um terceiro, comum a estes dois,
eu receio, a respeito do que vai ser do qual resta agora um nome, desapa
dito, que seja não engraçado o que vou
recida a coisa; andrógino era então um
dizer — pois isso seria proveitoso e
gênero distinto, tanto na forma como
próprio da nossa musa — mas ridícu-.
no nome comum aos dois, ao mascu
l o 64.
— Pois sim ! ■—■disse o outro lino e ao feminino, enquanto agora
—
lançada a tua seta, Aristófanes, pensas nada mais é que um nome posto em
em fugir; mas tom a cuidado e fala desonra. Depois, inteiriça6 6 era a
c como se fosses prestar contas. Talvez forma de cada homem, com o dorso
todavia, se bem me parecer, eu te redondo, os flancos em círculo; quatro
largarei. mãos ele tinha, e as pernas o mesmo
“Na verdade, Erixímaco, disse Aris tanto das mãos, dois rostos sobre um m
tófanes, é de outro modo que tenho a pescoço torneado, semelhantes em
intenção de falar, diferente do teu e do tudo; mas a cabeça sobre os dois ros
de Pausânias. Com efeito, parece-me tos opostos um ao outro era uma só, e
os homens absolutamente não terem quatro orelhas, dois sexos, e tudo o
percebido o poder do amor, que se o mais como desses exemplos se poderia
percebessem, os maiores templos e supor. E quanto ao seu andar,-era tam
aliai es preparariam, e os maiores bém ereto como agora, em qualquer
das duas direções que quisesse; mas .
64 D e fato seu discurso é engraçadíssimo. A pre
caução de A ristófanes faz lembrar o tom e a quando se lançavam a uma rápida cor-
função de um a parábase, na com édia antiga,
onde o poeta, pela v o z do coro, explica-se a 65 A palavra é própria da linguagem dos M isté
respeito de sua peça. V . Os Cavaleiros, 515 rios. A ristófanes não vai explicar as virtudes do
516, e 541-545, onde se sente a m esm a nota de A m or, com o os dois oradores precedentes, mas
prudência que aqui. A lém desse traço de veros tentará o acesso direto à sua natureza, com o
sim ilhança dramática, Platão estaria insinuan num a iniciação. (N . d o T .)
do um a alusão à insuficiência da arte de A ris 66 Cf. Em pédocles, fr. 62* vs. 4 (Diels).oüÀo^uerc:
tófanes, que não tem dom ínio de seus próprios idèv tipã)Ta TimoL xOovòç èÇavêreWov : primeiro,
recursos, dependente que é de um a inspiração. tipos inteiriços surgiram da terra. (N . do
(N . do T .) T .)
O BANQUETE 29
compaixão, Zeus consegue outro expe uma mulher não dirigem muito sua
diente, e lhes muda o sexo para a frente atenção aos homens, mas antes estão
— pois até então eles o tinham paravoltadas para as mulheres e as amigui-
c fora, e geravam e reproduziam não um nhas provêm deste tipo. E todos os que
no outro, mas na terra69, como as são corte de um macho perseguem o
cigarras; pondo assim o sexo na frente macho, e enquanto são crianças, conio
deles fez com que através dele se cortículos do macho, gostam dos ho
processasse a geração um no outro, o mens e se comprazem em deitar-se ma
macho na fêmea, pelo seguinte, para com os homens e a eles se enlaçar, e
que no enlace, se fosse um homem a são estes os melhores meninos e
encontrar uma mulher, que ao mesmo adolescentes, os de natural mais cora
tempo gerassem e se fosse constituindo joso. Dizem alguns, é verdade, que eles
a raça, mas se fosse um homem com são despudorados, mas estão mentin
um homem, que pelo menos houvesse do; pois não é por despudor que fazem
saciedade em seu convívio e pudessem isso, mas por audácia, coragem e
repousar, voltar ao trabalho e ocupar- masculinidade, porque acolhem o que
d se do resto da vida. É então de há tanto lhes é semelhante. Uma prova disso é
tempo que o amor de um pelo outro que, uma vez amadurecidos, são os
está implantado nos homens, restau únicos que chegam a ser homens para
rador da nossa antiga natureza, em sua a política71, os que são desse tipo. E
tentativa de fazer um só de dois e de
quando se tomam homens, são os jo- b
curar a natureza humana. Cada um de vens que eles amam, e a casamentos e
nós portanto é uma téssera comple procriação naturalmente eles não lhes
mentar 7 0 de um homem, porque corta
dão atenção, embora por lei a isso
do como os linguados, de um só em
sejam forçados, mas se contentam em
dois; e procura então cada um o seu
próprio complemento. Por conse passar a vida um com o outro, soltei
ros. Assim é que, em geral, tal tipo tor
guinte, todos os homens que são um
na-se amante e amigo do amante, por
corte do tipo comum, o que então se
que está sempre acolhendo o que lhe é
chamava andrógino, gostam de mulhe
res, e a maioria dos adultérios provém aparentado. Quando então se encontra
com aquele mesmo que é a sua própria
e deste tipo, assim como também todas
metade, tanto o amante do jovem
as- mulheres que gostam de homens e
são adúlteras, é deste tipo que provêm. como qualquer outro, então extraordi- c
Todas as mulheres que são o corte de nárias são as emoções que sentem, de
amizade, intimidade e amor, a p o nto
69 N o mito do Político (271a), Platão refere-se de não quererem por assim dizer sepa-
a essa geração da terra, e Aristófanes nas N u
vens (vs. 853) alude sem dúvida a essa idéja. rar-se um do outro nem por um peque
(N . d o T .) no momento. E os que continuam um
70 No grego oúiifidkov (de ouuPáXkeiv , juntar,
fazer conjunto). Era um cubo ou-um osso que com o outro pela vida afora são estes,
se repartia entre dois hóspedes, como sinal de
um compromisso. Transmitindo-se aos descen 71A sátira mordaz aos homossexuais compie
dentes de ambos, podiam estes conferir os seus ta-se habilmente com a sua identificação com
“símbolos” e ter assim a prova de antigos lia os políticos. Comparar essa passagem com 184
mes de hospitalidade. (N. d o T .) a-7. (N . d o T .)
O BANQUETE 31
os quais nem saberiam dizer o que que tanto ao desejo e procura do todo que
rem que lhes venha da parte de um ao se dá o nome de amor. Anteriormente,
outro. A ninguém com efeito pareceria como estou dizendo, nós éramos um
que se trata de união sexual72, e que é só, e agora é que, por causa da nossa m o
porventura em vista disso que um injustiça, fomos separados pelo deus, e
gosta da companhia do outro assim como o foram os árcades pelos lacede-
com tanto interesse; ao contrário, que mônios 7 4; é de temer então, se não for
d uma coisa quer a alma de cada um, ê mos moderados para com os deuses,
evidente, a qual coisa ela não pode que de novo sejamos fendidos em dois,
dizer, mas adivinha o que quer e o in e perambulemos tais quais os que nas
dica por enigmas. Se diante deles, dei esteias estão talhados de perfil, serra
tados no mesmo leito, surgisse Hefes- dos, na linha do nariz, como os ossos
t o 73 e com seus instrumentos lhes que se fendem 7 5. Pois bem, em vista
perguntasse: Que é que quereis, ó dessas eventualidades todo homem
homens, ter um do outro?, e se, diante deve a todos exortar à piedade para
do seu embaraço, de novo lhes pergun com os deuses, a fim de que evitemos
tasse: Porventura é isso que desejais, uma e alcancemos a outra, na medida b
ficardes no mesmo lugar o mais possí em que o Amor nos dirige e comanda.
vel um para o outro, de modo que nem Que ninguém em sua ação se lhe opo
de noite nem de dia vos separeis um do nha — e se opõe todo aquele que aos
e outro? Pois se é isso que desejais, deuses se toma odioso — pois amigos
quero fundir-vos e forjar-vos numa do deus e com ele reconciliados desco
• mesma pessoa, de modo que de dois briremos e conseguiremos o nosso pró
vos torneis um só e, enquanto viverdes, prio amado, o que agora poucos
como uma só pessoa, possais viver fazem. E que não me suspeite Erixí-
ambos em comum, e depois que mor maco, fazendo comédia de meu discur
rerdes, lá no Hades, em vez de dois ser so, que é a Pausânias e Agatão que me
um só, mortos os dois mima morte estou referindo — talvez também estes c
comum; mas vede se é isso o vosso se encontrem no número desses e são
amor, e se vos contentais se conse ambos de natureza rimscula — mas eu
guirdes isso. Depois de ouvir essas no entanto estou dizendo a respeito de
palavras, sabemos que nem um só diria todos, homens e mulheres, que é assim
que não, ou demonstraria querer outra que nossa raça se tornaria feliz, se ple
coisa, mas simplesmente pensaria ter namente realizássemos o amor, e o seu
ouvido o que há muito estava desejan próprio amado cada um encontrasse,
do, sim, unir-se e confundir-se com o tomado à sua primitiva natureza. E se
amado e de dois ficarem um só. O mo isso é o melhor, é forçoso que dos
tivo disso é que nossa antiga natureza
era assim e nós éramos um todo; e por- 74 Em 385 os lacedemônios destruíram a cida
de de Mantinéia, na Arcádia, e dispersaram
72 Observar a facilidade com que o discurso seus habitantes por várias povoações (Xenofon-
muda de tom, atingindo aqui um lirismo saudá te, V , 2, 1). É o que os gregos chamavam de
vel que permite a eclosão de uma idéia impor ôioLKionóq , o contrário de uma colonização,
tante nessa sucessão dialética dos discursos: a isto é, um ovvoikiouóç .Notar que o diálogo se
de que o sentimento amoroso não é exclusiva passa em 416 (v. supra p. 14 nota 7). O ana
mente sexual. (N. d o T .) cronismo é gritante. (N. d o T .)
73 O deus do fogo e da metalurgia, o Vulcano 75 Justamente um dos tipos ( Xíoum ) dos “sím
dos latinos. (N. d o T .) bolos”, referidos acima, p. 30, n .70. (N . do T .)
32 PLATÃO
casos atuais o que mais se lhe avizinha que eu me alvoroce com a idéia de que
é o melhor, e é este o conseguir um o público está em grande expectativa
bem-amado de natureza conforme ao de que eu vá falar bem.
seu gosto; e se disso fôssemos glorifi ---- Desmemoriado eu seria, Agatão
car o deus responsável, merecidamente tomou-lhe Sócrates — se depois de
glorificaríamos o Amor, que agora nos ver tua -coragem e sobranceria, quando
é de máxima utilidade, levando-nos ao subias ao estrado com os atores e
que nos é familiar, e que para o futuro encaraste de frente uma tão numerosa
nòs dá ás maiores esperanças, se for platéia, no momento em que ias apre
mos piedosos para còm ôs deuses, de sentar uma peça tua, sem de modo
restabelecer-nos em nossa primitiva algum te teres abalado, fosse eu agora
natureza e, depois de nos curar, fazer- imaginar que tu te alvoroçarias por
nos bem-aventurados e felizes. causa defiós, tão poucos.
Eis, Erixímaco, disse ele, o meu dis — O quê, Sócrates! — exclamou
curso sobre o' Amor, diferente do teu. Agatão; — não me julgas sem dúvida
Conforme eu te pedi, não faças comé tão cheio de teatro que ignore que, a
dia dele, a fim de que possamos ouvir quem tem juízo, poucos sensatos são
também os restantes, que dirá cada um mais temíveis que uma multidão insen
deles, ou antes cada um dos dois; pois sata!
restam Agatão e Sócrates.” — Realmente eu não faria bem,
— Bem, eu te obedecerei — tor- Agatão — tomou-lhe Sócrates — se a
nou-lhe Erixímaco; ■ —■ e. com efeito teu teu respeito pensasse eu em alguma
discurso foi para mim de um agradável deselegância; ao contrário, bem sei
teor. E se por mim mesmo eu não sou- que, se te encontrasses com pessoas
bèsWque Sócrates e Agatão são terrí que considerasses sábias, mais te preo
veis nas questões do amor, muito teme cuparias com elas do que com a multi
ria que sentissem falta de argumentos, dão. No entanto, é de temer que estas
pelo muito e Variado'que se disse; de não sejamos nós — pois nós estáva
fato porém eu confidneles. mos lá e éramos da multidão — mas
Sócrates então disse: — É que foi se fosse com outros que te encontras
bela, ó Erixímaco 7 6, tua competição'! ses, com sábios, sem dúvida tu te
Se porém fitasses na situação em-quê envergonharias deles, se pensasses
agora estoú,‘ óu melhor, em qüe estarei, estar talvez cometendo algum ato que
depois que Agatão tiver falado, bem fosse vergonhoso; senão, que dizes?
grande seria o teu temor, e em tudo por
— É verdade o que dizes — res
tudo estarias como eu agora.
pondeu-lhe. í
— Enfeitiçar é o' que me queres, ó
— E da multidão não te envergo
Sócrates, disse-lhe Agatão, a fim de
nharias, se pensasses estar fazendo
76 A observação de Sócrates é fina. Comentan algo vergonhoso 7 7 ?
do o discurso de Aristófanes, Erixímaco expres
sava seu receio de que os dois últimos concor 77 Esse breve diálogo, aqui interrompido, tem
rentes tivessem dificuldades “pelo muito e va um duplo efeito dramático: serve de intervalo
riado que se disse’’ (Isto é, não apenas Aristó entre os discursos de dois poetas, tão diferentes
fanes). Sócrates o ajuda então nesse pequeno de método e de espírito, e constitui como um
detalhe e insiste nà sua contribuição. A o mes prelúdio ao discurso especial de Sócrates, que
mo tempo ele tem uma ótima deixa para diri vai começar, ao contrário dos outros, por um
gir-se à competência de Agatão. (N. d o T .) diálogo. (N. d o T .)
o Ba n q u e t e 33
d E eis que Fedro, disse Aristodenio, Amor, se é lícito dizê-lo sem incorrer
interrompeu e exclamou: — Meu caro em vingança80, o mais feliz, porque é
Agatão, se responderes a Sócrates, o mais belo deles e o melhor. Ora, ele é
nada mais lhe importará do programa, o mais bel:d pòr ser tal como se segue.
como quer que ande e o que quer que Primeiramente; é o mais jovem dos
resulte, contanto que ele tenha com deuses, ó Feidro. E uma grande prova *
quem dialogue, sobretudo se é com um do que digo ele próprio fornece, quan
belo. Eu por mim é sem dúvida com do em fuga foge da velhice, que é rápi
prazer que ouço Sócrates a conversar, da evidentemente, e que em tddb caso;
mas é-me forçoso cuidar do elogio ao mais rápida do que devia, pãrâ nós se
Amor e recolher de cada um de vós o encaminha. De sua natureza Amor a
seu discurso; pague 7 8 então cada um o odeia e nem de longe se lhe aprdxirtia.
que deve ao deus e assim já pode Com os jovens ele está sempre eih seú
conversar. coiivívío e ao seu lado; está certo, coiri
e — Muito bem, Fedro! — excla efeito, o antigo ditado, que o seme
mou Agatão — nada me impede de lhante sempre do semelhante se aproxi
falar, pois com Sócrates depois eu ma. Ora, eu, embora com Fedro con
poderei ainda conversar muitas vezes. corde em muitos outros pontos, nisso
“ Eu então quero primeiro dizer não concordo, em que Amor seja mais
como devo falar, e depois falar. Pare antigo que Crono e Jápeto,. mas ao c
ce-me com efeito que todos os que contrário afirriiò ser ble o mais novo
antes falaram, não era o deus que elo dos deuses e sempre jovem, e que as
giavam, mas os homens que felici questões entre os deuses, de que falam
tavam pelos bens de que o deus lhes é Hesíodo81 e Parmênides, foi por Ne
i9s a causador; qual porém é a sua natureza, cessidade82 e não por Amor que ocor:
em virtude da qual ele fez tais dons, reram, se é verdade o que aqueles
ninguém o disse. Ora, a única maneira diziam; não haveria, com efeito, muti
correta de qualquer elogio a qualquer lações nem prisões de uns pelos outros,
um é, no discurso, explicar em virtude e muitas outras violências, se Amor
de que natureza vem a ser causa de tais estivesse entre eles, mas amizade e paz,
efeitos aquele de quem se estiver falan como agora, desde que Amor entre os
d o 79. Assim então com o Amor, é deuses reina. Por conseguinte, jovem
justo que também nós primeiro o lou ele é, mas além de jovem ele é delica
vemos em sua natureza, tal qual ele é, e do; falta-lhe porém um poeta como era
depois os seus dons. Digo eu então que Homero para mostrar sua delicadeza
de todos os deuses, que são felizes, é o de deus. Homero afirma, com efeito, d
78 Como um bom “simposiarca” , Fedro zela 80 Cf. 180e-3. As palavras e os atos humanos
pelo bom andamento do programa estabelecido. podem suscitar a justiça vingativa (nemesis ) dos
V . supra p. 17 , n. 21. (N . do T .) deuses. (N. do T.)
79 Sócrates louvará mais adiante a excelência 81 Cf. Teogonia, passim. (N . d o T .)
desse princípio, que representa uma etapa deci 82 É talvez idéia de Parmênides. O que este
siva na progressão dos discursos. Com efeito, escreveu sobre os deuses devia estar na parte
embora não vá acertar na definição da natu do seu poema referente às “opiniões” dos mor
reza do Amor, Agatão traz à baila o problema, tais. Segundo Aécio II, 7, 1. (Dieis 28, Á , 3 7 ),
possibilitando assim a refutação socrática (189 ele punha Justiça e Necessidade no rheíp de yã-
d-204c) e a definição platônica (201c-204a). iãs esferas concêntricas, comò fcausa de mòvi-
(N . do T .) iento e geração. (N . d o T .)
34 PLATÃO
que Ate é uma deusa, e delicada — parte a parte há guerra. Quanto à bele
que os seus pés em todo caso são deli za da sua tez, o seu viver entre flores
cados — quando diz: bem o atesta; pois no que não floresce,
seus pés são delicados ; pois não como no que ja floresceu, corpo, alma b
■ [sobre o sõlo ou o que quer que seja, não se assenta
se move, mas sobre as cabeças dos o Amor, mas onde houver lugar bem
[homens ela anda*3. florido e bem perfumado, aí ele se
Assim, bela me parece a prova com assenta e fica.
que Homero revela a delicadeza da Sobre a beleza do deus já é isso bas
deusa: não anda ela sobre o que é tante, e no entanto ainda muita coisa
e duro, mas sobre o que é mole. Pois a resta; sobre a virtude de Amor devo
mesma prova também nós utilizaremos depois disso falar, principalmente que
a respeito do Amor, de que ele é delica Amor não comete nem sofre injustiça,
do. Não é com efeito sobre a terra que nem de um deus ou contra um deus,
ele anda, nem sobre cabeças, que não nem de um homem ou contra um
são lá tão moles, mas no que há de homem8 5. À força, com efeito, nem ele
mais brando entre os seres é onde ele cede, se algo cede — pois violência c
anda e reside. Nos costumes, nas não toca em Amor — nem, quando
almas de" deuses e de homens ele fez age, age, pois todo homem de bom
sua morada, e ainda, não indistinta grado serve em tudo ao Amor, e o que
mente em todas as almas, mas da que de bom grado reconhece uma parte a
encontre com um costume rude ele se outra, dizem “ as leis, rainhas da cida
afasta, e na que o tenha delicado ele de5’8 6, é justo. Além da justiça, da má
habita. Estando assim sempre em con xima temperança ele compartilha. É
tato, nos pés como em tudo, com os com efeito a temperança, reconhecida
que, entre os seres mais brandos, são mente, o domínio sobre prazeres e
os mais brandos, necessariamente é ele desejos; ora, o Amor, nenhum prazer
196 a. o que há de mais delicado. É então o lhe é predominante; e se inferiores, se
mais jovem, o mais delicado, e além riam dominados por Amor, e ele os
dessas qualidades, sua constituição é dominaria, e dominando prazeres e
úmida. Pois não seria ele capaz de se desejos seria o Amor. excepcional
amoldar de todo jeito, nem de por toda mente temperante. E também quanto à
alma primeiramente entrar, desperce coragem, ao Amor “nem Ares se lhe
bido, e depois sair, se fosse ele seco8 4. opõe” 8 7. Com efeito, a Amor não pega </
De sua constituição acomodada e Ares, mas Amor a Ares — o de Afro
úmida é uma grande prova sua bela dite, segundo a lenda — e é mais forte
compleição, o que excepcionalmente o que pega do que é pegado: domi
todos reconhecem ter o Amor; é que nando assim o mais corajoso de todos,
entre deformidade e amor sempre de
85 Com o a seguinte, essa frase, com seus' para-
83 Ilíada, X IX , 92. A te é a personificação da lelism os exagerados, é típica do m aneirism o do
fatalidade. (N . do T .) estilo retórico de Agatão. (N . d o T .) .
84 Sendo úm ido, m ole, A m or cede à pressão, 86 Expressão do retórico Alcidam as, aluno de
adapta-se, m odela-se; ao contrário, sendo seco, Górgias, citado por A ristóteles, Ret., 1406a. •
não se adapta e não adquire form a convenien (N . d o T .) ^ (
te. O argumento é de uma fantasia extrava 87 Frag. de um Tiestes de Sófocles: ílpòç rr/y
gante, de acordo com o caráter requintado de 'kváyKT\v obô' "Apm àvioTctrai (fr. 235 N au -
A gatão. (N . d o T .) ck 2). ( N .d o T .)
O BANQUETE 35
seria então ele o mais corajoso. D a jus evidentemente da beleza — pois no
tiça portanto, da temperança e da feio não se firma Amor92 — , en
coragem do deus, está dito; da sua quanto que antes, como a princípio
sabedoria porém resta dizer; o quanto disse, muitos casos terríveis se davam
possível então deve-se procurar não ser entre os deuses, ao que se diz, porque
omisso. E em primeiro lugar, para que entre eles a Necessidade reinava; desde
também eu por minha vez honre a porém que este deus existiu, de se ama
c minha arte como Erixímaco a dele, é rem as belas coisas toda espécie de
um poeta o deus, e sábio, tanto que bem surgiu para deuses e homens.
também a outro ele o faz; qualquer um ' Assim é que me parece, ó Fedro, que
em todo caso torna-se poeta, “mesmo o Amor, primeiramente por ser em si
que antes seja estranho às Musas” 88, mesmo o mais belo e o melhor, depois
desde que lhe toque o Amor. É o que é que é para os outros a causa de ou
nos cabe utilizar como testemunho de tros tantos bens. Mas ocorre-me agora
que é um bom poeta o Amor, em geral' também em verso dizer alguma coisa,
em toda criação artística89; pois o que que é ele o que produz
não se tem ou o que não se sabe, tam
bém a outro não se poderia dar ou paz entre os homens , e no mar
197 a ensinar. E em verdade, a criação90 dos bonança,
animais todos, quem contestará que repouso tranqüilo de ventos e
não é sabedoria, do Amor, pela qual sono na dor.
nascem e crescem todos os animais?
Mas, no exercício das artes, não sabe É ele que nos tira o sentimento de
mos que aquele de quem este deus se estranheza e nos enche de familiari
torna mestre acaba célebre e ilustre, dade, promovendo todas as reuniões
enquanto aquele em quem Amor não deste tipo, para mutuamente nos en
toque, acaba obscuro? E quanto à arte contrarmos, tornando-se nosso guia
do arqueiro, à medicina, à adivinha- nas festas, nos coros, nos sacrifícios;
b çâo, inventou-as Apoio guiado pelo de incutindo brandura e excluindo rude
sejo e pelo amor, de modo que também za; pródigo de bem-querer e incapaz de
Apoio seria discípulo do Amor. Assim mal-querer; propício e bom; contem
como também as Musas nas belas-ar- plado pelos sábios e admirado pelos
tes, Hefesto na metalurgia, Atena na deuses; invejado pelos desafortunados
tecelagem, e Zeus na arte “de governar e conquistado pelos afortunados; do
os deuses e os homens” 91. E daí é que luxo, do requinte, do brilho, da's gra
até as questões dos deuses foram regra ças, do ardor e da paixão, pai; dili
das, quando entre eles surgiu Amor, gente com o que é bom e negligente
88 M ouaixòt' 5’ apa "Epcoç oiSáoKei, xav •com o que é mau; no labor, no temor,
ctfiouooç íj r'o n-ptV Eur., Stenobeia (fr. 663 no ardor da paixão, no teor da expres
N au ck 2). (N . do T.)
89 O grego tem -noírjoLq , correspondente a são, piloto e combatente, protetor e
TTOLrirriç , ação e agente respectivam ente de salvador supremo, adorno de todos os
iToieu' '■ fazer, produzir. O sentido lato de
7roÍ77oiç presta-se assim m uito bem às analo deuses e homens, guia belíssimo e
gias que a seguir faz A gatão. Cf. infra 205b-7 excelente, que todo homem deve se-
e ss. (N ..d o T .) •
90 Tam bém ttoliiolç . V. nota anterior. (N . do T.) 92 É dessa pequena afirm ação que Sócrates par
91 Fragm ento de alguma tragédia, não identifi tirá não só para a refutação do poeta com o
cada. (N . d o T .) para a sua própria definição do A m o r .(N . do TO
36 PLATÃO
guir, celebrando-o èm belos hinos, e quem não se teria perturbado ao ouvi-
compartilhando do canto com ele lo? Eu por mim, considerando que eu
encanta o pensamento de todos os deu mesmo não seria capaz de nem de
ses e homens. perto proferir algo tão belo, de vergo
Este, ó Fedro, rematou ele, o dis nha 'quase me retirava e partia, se
curso que de minha parte quero que tivesse algum meio. Com efeito, vi
seja ao deus oferecido, em parte joco- nha-me à mente o discurso de Górgias,
sò93, em parte, tanto quanto posso, a ponto de realmente eu sentir o que
discretáiiiente sério.” disse Homero9 6: temia que, con
ma Depois qüe falou Agatão, continuou
cluindo, Agatão em seu discurso en
Aristodemo, todos os presentes aplau
diram, por ter o jovem falado à altura viasse ao meu a cabeça de Górgias.,
do seu talento e da dignidade do deus. terrível orador, e de mim mesmo me
Sócrates então olhou para Erixímacotè fizesse uma pedra, sem voz. Refleti
lhe disse: — Porventura, ó, fiíhd de então que estava evidentemente sendo
Âcúmeno, parece-te que não t:éní nada ridículo, quando convosco concordava
de temível o tem or9 4 que de há muito em fazer na minha vez, depois de vós.,
sinto, e que não foi profético o que há o elogio ao Amor, dizendo ser terrível
pouco ;eu dizia, que Agatão falaria nas questões de amor, quando na ver
maravilhosamente, enquanto que eu
dade nada sabia do que se tratava, de
mè havia de ‘e mbaraçar?
como se devia fazer qualquer elogio.
— Ém parte — respondeu-lhe Eri-
Pois eu achava, por ingenuidade, que
xímacõ — parece-me profético o que
disseste, que Agatão falaria bem; mas se devia dizer a verdade sobre tudo que
quanto, a te embaraçares, não creio. está sendo elogiado, e que isso era
b — E corno, ditoso amigo — disse fundamental, da própria verdade se
Sócrates — não vou embaraçar-me, eu escolhendo as mais belas manifesta
e qualquer outro, quando devo falar ções para dispô-las o mais decente
depois de proferido um tão belo e colo mente possível; e muito me orgulhava
rido discurso? Não é que as suas de então, como se eu fosse falar beta,
mais partes não sejam igualmente como se soubesse a verdade em qual
admiráveis; mas o que está no fim, quer elogio. No entanto, está aí, não
pela beleza dos termos e das frases9 5, era esse o belo elogio ao que quer que
93 Essa advertência de A gatão atenua, em favor
seja, mas o acrescentar o máximo à
do m érito do seu discurso, o significado que coisa, e o mais belamente possível,
com um ente se atribui à extravagância dos seus quer ela seja assim quer não; quanto a
argum entos, tais com o o que vim os à página 3 4,
n. 84., É le tem consciência do caráter leve e ser falso, não tinha nenhuma impor
fantasioso dos argumentos com que preencheu tância. Foi com efeito combinado
p'. esqúem a sério do seu discurso. (N . do T.)
^■piò gregõ aSeèç õéoç um m edo que não é como cada um de nós entenderia elo
m edo. Com o que contagiado pela retórica de giai o Amor, não como cada um o elo
A gatão, Sócrates ’i m ita suas aliterações e para
doxos. (N . d o T .) giaria. Eis por que, pondo em ação
95 N a segunda parte (197c-e) do discurso de
A gatão, a preciosidade do seu estilo atinge o 96 Odisséia, X I, 633-635: . . . 'epè ôè xA.wpòy ôéoç
m áxim o com aquela longa litania de epítetos. fipei, / jU7? moi Topyeír^v ôeii’oio
A lguns críticos querem ver na palavra pruiara neXcopov / ’AiÔoç népiinijeiev àyaurj
(que está traduzida por “frases”, mas que em nepae<pôveia .urri m edo esverdeante m e tom ava,
Platão significa às vezes “verbos”, em oposição não m e enviasse do H ades a augusta Persêfone
a “nom es”), um a am bigüidade de sentido que a cabeça de Gorgona, “o monstro terríjveF.
esconde assim um a irônica alusão à ausência O adjetivo Vopyeírju ( = G órgona) é h om ófon o
de verbos nesse trecho. (N . do T.) de Topyíau ( = G órgias). (N . d o T .) I
O BANQUETE 37
seguinte: Será que o Amor, aquilo de za, saúde e fortaleza, o que queres é
que é amor, ele o deseja ou não? também no futuro possuir esses bens,
— Perfeitamente — respondeu o pois no momento, quer queiras quer
outro. não, tu os tens; observa então se, quan
— E é quando tem isso mesmo que do dizes “ desejo o que tenho comigo” ,
deseja e ama que ele então deseja e queres dizer outra coisa senão isso:
ama, ou quando não tem? “ quero que o que tenho agora comigo,
— Quando não tem, como é bem também no futuro eu o tenha.” Deixa
provável — disse Agatão. ria ele de admitir?
— Observa bem, continuou Sócra Agatão, dizia Aristodemo, estava de
tes, se em vez de uma probabilidade acordo.
não é uma necessidade que seja assim, Disse então Sócrates: — Não é isso
o que deseja deseja aquilo de que é então amar o que ainda não está à mão
carente, sem o que não deseja, se não nem se tem, o querer que, para o futu
for carente. É espantoso como me ro, seja isso que se tem conservado
parece, Agatão, ser uma necessidade; e consigo e presente?
a ti? — Perfeitamente — disse Agatão.
—- Também a mim — disse ele. — Esse então, como qualquer
— Tens razão. Pois porventura de outro que deseja, deseja o que não está
sejaria quem já é grande ser grande, ou à mão nem consigo, o que não tem, o
quem já é forte ser forte? que não é ele próprio e o de que é
— Impossível, pelo que foi admiti carente; tais são mais ou menos as coi
do. sas de que há desejo e amor, não é?
— Com efeito, não seria carente — Perfeitamente — disse Agatão.
disso o que justamente é isso. — Vamos então, continuou Sócra
— É verdade o que dizes. tes, recapitulemos o que foi dito. Não é
— Se, com efeito, mesmo o forte certo que é o Amor, primeiro de certas
quisesse ser forte, continuou Sócrates, coisas, e depois, daquelas de que ele
e o rápido ser rápido, e o sadio ser tem precisão?
sadio — pois talvez alguém pensasse — Sim — disse o outro.
que nesses e em todos os casos seme — Depois disso então; lembr-a-te de
lhantes os que são tais e têm essas qua que é que em teu discurso disseste ser o
lidades desejam o que justamente têm, Amor; se preferes, eu te lembrarei.
e é para não nos enganarmos que estou Creio, com efeito, que foi mais ou
dizendo isso — ora, para estes, Aga- menos assim que disseste, que aos deu
tão, se atinas bem, é forçoso que te ses foram arranjadas suas questões
nham no momento tudo aquilo que através do amor do que é belo, pois do
têm, quer queiram, quer não, e isso que é feio não havia amor1 02. Não era
mesmo, sim, quem é que poderia dese mais ou menos assim que dizias?
já-lo? Mas quando alguém diz: “ Eu, — Sim, com efeito — disse Aga
mesmo sadio, desejo ser sadio, e tão.
mesmo rico, ser rico, e desejo isso — E acertadamente o dizes, amigo,
mesmo que tenho” , poderíamos dizer- declarou Sócrates; e se é assim, não é
lhe: “ ó homem, tu que possuis rique 102 v . supra p. 3 5 , n. 92. (N. d o T .)
O BANQUETE 39
certo que o Amor seria da beleza, mas discurso que sobre o Amor eu ouvi um
não da feiúra? Concordou. dia, de uma mulher de Mantinéia, Dio-
— Não está então admitido que tima, que nesse assunto era entendida e
aquilo de que é carente e que não tem é em muitos outros — foi ela que uma
o que ele ama? vez, porque os atenienses ofereceram
— Sim — disse ele. sacrifícios para conjurar a peste, fez
— Carece então de beleza o Amor, por dez anos1 0 6 recuar a doença, e era
e não a tem? ela que me instruía nas questões de
— É forçoso. amor — o discurso então que me fez
— E então? O que carece de beleza aquela mulher eu tentarei repetir-vos, a
páríir do que foi admitido por mim e
e de modo algum a possui, porventura
por Agatão, com meus próprios recur
dizes tu que é belo?
sos e como eu puder. É de fato preciso,
— Não, sem dúvida. Agatão, como tu indicaste, primeiro
— Ainda admites por conseguinte discorrer sobre o próprio Amor, quem
que o Amor é belo, se isso é assim? é ele e qual a sua natureza e depois
E Agatão: — É bem provável, ó Só sobre as suas obras. Parece-me então
crates, que nada sei do que então que o mais fácil é proceder como
disse103? outrora a estrangeira, que discorria
— E no entanto, prosseguiu Sócra
interrogando-me107, pois também eu
tes, bem que foi belo o que disseste, quase que lhe dizia outras tantas coi
Agatão. Mas dize-me ainda uma pe sas tais quais agora me diz Agatão,
quena coisa: o que é bom não te parece que era o Amor um grande deus, e era
que também é belo? do que é belo; e ela me refutava, exata
•— Parece-me, sim. mente com estas palavras, com que eu
— Se portanto o Amor é carente do estou refutando a este, que nem era
que é belo, e o que é. bom é belo, tam belo segundo minha palavra, nem bom.
bém do que é bom seria ele carente1 0 4 E eu então: — Que dizes, ó Dioti-
— Eu não poderia, ó Sócrates, ma? Ê feio então o Amor, e mau?
disse Agatão, contradizer-te; mas seja E ela: — Não vais te calar? Acaso
assim como tu dizes. pensas que o que não for belo, é forço
— É à verdade1 0 5, querido Aga so ser feio ?
tão, que não podes contradizer, pois a — Exatamente.
Sócrates não é nada difícil. — E também se não for sábio é
— E a ti eu te deixarei agora; mas o ignorante? Ou não percebeste que exis
103 Agatão reage como um discípulo ou um te algo entre sabedoria e ignorância?
amigo de Sócrates, isto é, confessando franca — Que é?
mente a ignorância que acaba de descobrir em
si. (N. d o T .) 106 Se se trata da peste que assolou Atenas no
104 Essa associação do bom e do belo, bem fa começo da guerra do Peloponeso, Diotima te
miliar ao grego (ob. o epíteto corrente: KaXòç ria feito o sacrifício em 440, quando Sócrates
nàyadcx; ) , e insistentemente defendida na argu entrava na casa dos trinta. (N. d o T .)
mentação socrática (v. por exemplo, Górgias, 107 É estranho que uma sacerdotisa use o mé
4 7 4 d -e ), será de muita utilidade em 204e. todo de explicação dos sofistas do século V ,
(N . d o T .) através de perguntas forjadas por ela mesma.
105 N ã o se trata aqui de refutar a A ou a B. é Esse parece um dos mais fortes indícios de que
o que quer dizer Sócrates; um a vez estabeleci o fato contado por Sócrates é fictício, sobretu
da a veracidade de um argumento, não é mais do se se considera a exata correspondência dos
possível, ou melhor, não é mais questão de diálogos Sócrates-A gatão, Diotima-Sócrates.
contestá-lo. (N . d o T .) (N . do T .)
40 PLATÃO
só toda arte divinatória, como também sem lar, sempre por terra e sem forro,
a dos sacerdotes que se ocupam dos deitando-se ao desabrigo, às portas e
sacrifícios, das iniciações e dos encan- nos caminhos, porque tem a natureza
203 a tamentos, e enfim de toda adivinhação da mãe, sempre convivendo com a pre
e magia. Um deus com um homem não cisão. Segundo o pai, porém, ele é insi
se mistura, mas é através desse ser que dioso com o que é belo e bom, e cora
se faz todo o convívio e diálogo dos joso, decidido e enérgico, caçador
deuses com os homens, tanto quando terrível, sempre a tecer maquinações,
despertos como quando dormindo; e ávido de sabedoria e cheio de recursos,
aquele que em tais questões é sábio é a filosofar por toda a vida, terrível
um homem de gênio111, enquanto o mago, feiticeiro, sofista112: e nem e
sábio em qualquer outra coisa, arte ou imortal é a sua natureza nem mortal, e
ofício, é um artesão. E esses gênios, é no mesmo dia ora ele germina e vive,
certo, são muitos e diversos, e um deles quando enriquece113; ora morre e de
é justamente o Amor. novo ressuscita, graças à natureza do
— pai;
E quem é seu pai ■—■perguntei- e o que consegue sempre lhe esca
lhe — e sua mãe? pa, de modo que nem empobrece11 4 o
b — É um tanto longo de explicar, Amor nem enriquece, assim como tam
disse ela; todavia, eu te direi. Quando bém está no meio da sabedoria e da
nasceu Afrodite, banqueteavam-se os ignorância. Eis com efeito o que se dá . 204 a
— Quando então — continuou ela vista do belo, que de uma grande dor
— é sempre isso o amor, de que modo, liberta o que está prenhe. É com efeito,
nos que o perseguem, e em que ação, o Sócrates, dizia-me ela, não do belo o
seu zelo e esforço se chamaria amor, como pensas.
am or12 5? Que vem a ser essa ativida — Mas de que é enfim?
de? Podes dizer-me? — D a geração e da parturição no
— Eu não te admiraria então, ó belo.
Diotima, por tua sabedoria, nem te — Seja-—■disse-lhe eu.
freqüentaria para aprender isso — Perfeitamente — continuou. — 207 *
mesmo. E por que .assim da geração? Porque é
— Mas eu te direi — tornou-me. algo de perpétuo e imortal para um
— É isso, com efeito, um parto em mortal, a geração. E é a imortalidade
beleza, tanto no corpo como na alma. que, com o bem, necessariamente se
— É um adivinho — disse-lhe eu deseja, pelo que foi admitido, se é que
— que requer o que estás dizendo: não o amor é amor de sempre ter consigo o
entendo. bem127. É. d e fato forçoso por esse
— Pois eu te falarei mais clara argumento que também da imortali
mente, Sócrates, disse-me ela. Com dade seja o amor.
efeito, todos os homens concebem, não Tudo isso ela me ensinava, quando
só no corpo como também na alma, e sobre as questões de amor discorria, e
quando chegam a certa idade, é dar à uma vez ela me perguntou: — Que
luz que deseja a nossa natureza. Mas pensas, ó Sócrates, ser o motivo128
ocorrer isso no que é inadequado é desse amor e desse desejo? Porventura
impossível. E o feio é inadequado a não percebes como é estranho o com
tudo o que é divino, enquanto o belo é portamento de todos os animais quan
adequado. M oira então e Ilitia12 6 do do desejam gerar, tanto dos que andam
nascimento é a Beleza. Por isso, quan quanto dos que voam, adoecendo *
do do belo se aproxima o que está em todos em sua disposição amorosa, pri
concepção, acalma-se, e de júbilo meiro no que concerne à união de um
transborda, e dá à luz e gera; quando com o outro, depois no que diz respeito
porém é do feio que se aproxima, som à criação do que nasceu? E como em
brio e aflito contrai-se, afasta-se, reco vista disso estão prontos para lutar os
lhe-se e não gera, mas, retendo o que mais fracos contra os mais fortes, e
concebeu, penosamente o carrega. Daí mesmo morrer, não só se torturando
é que ao que está prenhe e já intumes pela fome a fim de alimentá-los como
cido é grande o alvoroço que lhe vem à tudo o mais fazendo? Ora, os homens,
125 N o v a m udança no m étodo de exposição, continuou ela, poder-se-ia pensar que é
que agora passa a ser dircursivo. Assim ilando pelo raciocínio que eles agem assim;
abruptamente, à m aneira dos profetas, a ativi
dade am orosa ao processo da geração, D iotim a
discorre então sobre o sentido desta, revelan 127 206a. V. nota respectiva. (N . d o T .)
do-a com o um a maneira de participarem os 128 D iotim a e Sócrates já se entenderam sobre
seres deste mundo da perene estabilidade do o m otivo do amor (206-207a, 207c-8-d ). Por
mundo ideal. CN. d o T .) conseguinte, sua pergunta agora é apenas para
126 D ivindade que preside aos nascimentos, iniciar um a verificação desse m otivo, conside
assim com o um a das três M oiras ou Parcas. rando-o a partir do amor físico, a form a mais
(N . d o T .) sensível do amor. V. supra 205b-d. (N . d o T .)
O BANQUETE 45
mas os animais, qual a causa desse seu nascem e outras morrem para nós, e ja
comportamento amoroso? Podes di mais somos os mesmos nas ciências,
zer-me? mas ainda cada uma delas sofre a
De novo eu lhe disse que não sabia; mesma contingência. O que, com efei
e ela me tomõu: — Imaginas então to, se chama exercitar é como se de nós
algum dia te tomares temível nas ques estivesse saindo a ciência; esqueci
tões do amor, se não refletires messes mento é escape de ciência, e o exercí
fatos? i
cio, introduzindo uma nova lembrança
— Mas é por isso mesmo, Diotima
— como há pouco eu te dizia -— que em lugar da que está saindo, salva a
vim a ti, porque reconheci que preci ciência, de modo a parecer ela ser a
sava de mestres. Dize-me então jnão só mesma. É desse modo que tudo o que é
a causa disso, como de tudo o mais mortal se conserva, e não pelo fato de
que concerne ao amor. , absolutamente ser sempre o mesmo,
— Se de fato — continuou -— crês como o que é divino, mas pelo fato de
que o amor é por natureza amor daqui deixar o que parte e envelhece um
lo que muitas vezes admitimos, inão fi outro ser novo, tal qual ele mesmo era.
ques admirado..Pois aqui, segundo o É por esse meio, ó Sócrates, que o
mesmo argumento que lá, a natureza mortal participa da imortalidade, no
mortal procura, na medida do ppssível, corpo como em tudo mais13 0; o imor
ser sempre e ficar imortal. E ela só tal porém é de outro modo. Não te
pode assim, através da geração, porque admires portanto de que o seu próprio
sempre deixa um outro ser novo em rebento, todo ser por natureza o apre
lugar do velho129; pois é nisso que se cie: é em virtude da imortalidade que a
diz que cada espécie animal vive e é a todo ser esse zelo e esse amor acompa
mesma — assim como de criança o nham.
homem se diz o mesmo até se;tornar Depois de ouvir o seu discurso,
velho; este na verdade, apesar de ja admirado disse-lhe: — Bem, ó doutís
mais ter em si as mesmas coisas,; diz-se sima Diotima, essas coisas é verdadei
todavia que é o mesmo, embora sem ramente assim que se passam?
pre se renovando e perdendo álguma E ela, como os sofistas consumados,
coisa, nos cabelos, nas carnes, nos tornou-me: -—- Podes estar certo, ó Só
ossos, no sangue e em todo o corpo. E crates; o caso é que, mesmo entre os
não é que é só no corpo, mas também homens, se queres atentar à sua ambi
na alma os modos, os costumes, as ção, admirar-te-ias do seu desarrazoa-
opiniões, desejos, prazeres, aflições,
temores, cada um desses afetos jamais 130 A lguns críticos querem ver nessa passagem
um a contradição com a doutrina da im ortali
permanece o mesmo em cada um de dade da alma, e conseqüentem ente um indício
nós, mas uns nascem, outros morrem. da anterioridade do B anquete ao F édon, onde
aquela doutrina é longam ente exposta. N a ver
Mas ainda mais estranho do que isso é dade, ela não autoriza a inferência de que a
que até as ciências não é só que umas alm a é m ortal. D iotim a diz que seus afetos e
conhecim entos são passageiros, com o os ele
129 Segue até 208b um quadro m uito vivo da m entos do corpo, mas não afirma que a alma
visão heraclitiana da realidade. M as, sob o são esses affetos e conhecim entos. A idéia de vá
flu xo desesperador das coisas, D iotim a vê em rias encarnações da alm a e a do conhecim ento-
sua geração, a sua maneira de continuar, o seu rem iniscência, exposta também no F édon, ilus
m odo de participar do ser perene das idéias. tra m uito a com patibilidade de um a alm a im or
(N . d o T .) tal com ácidentes transitórios. (N . d o T .)
46 PLATÃO
mento, a menos que, a respeito do que estes estão todos os poetas criadores e;
te falei, não reflitas, depois de conside todos aqueles artesãos que se diz serem
rares quão estranhamente eles se com inventivos; mas a mais importante,
portam com o amor de se tomarem disse ela, e a mais bela forma de pensa
renomados e de “para sempre uma gló mento é a que trata da organização dos
ria imortal se preservarem”, e como negócios da cidade e da família, e cujo
por isso estão prontos a arrostar todos nome é prudência e justiça134 — des
d. os perigos, ainda mais do que pelos tes por sua vez quando alguém, desde
filhos, a gastar fortuna, a sofrer priva cedo fecundado em sua alma, ser divi
ções, quaisquer que elas sejam, e até a no que é, e chegada a idade oportuna,
sacrificar-se. Pois pensas tu, continuou já está desejando dar à luz e gerar, pro
ela, que Alceste131 morreria por Ad- cura então-também este, penso eu, à
meto, que Aquiles morreria depois de sua volta o belo em que possa gerar;
Pátroclo, ou o vosso Codro132 morre pois no que é feio ele jamais o fará.
ria antes, em favor da realeza dos Assim é que os corpos belos mais que
filhos, se não imaginassem que eterna os feios ele os acolhe, por estar em
seria a memória da sua própria virtu concepção; e se encontra uma alma
de, que agora nós conservamos? Longe bela, nobre e bem dotada, é total o seu
disso, disse ela; ao contrário, é, segun acolhimento a ambos, e para um
do penso, por uma virtude imortal e homem desses logo ele se enriquece13 5
por tal renome e glória que todos tudo de discursos sobre a virtude, sobre o
fazem, e quanto melhores tanto mais; que deve ser o homem bom e o que
í pois é o imortal que eles amam. Por deve tratar, e tenta educá-lo. Pois ao
conseguinte, continuou ela, aqueles contato sem dúvida do que é belo e em
que estão fecundados em seu corpo sua companhia, o que de há muito ele
voltam-se de preferência para as mu concebia ei-lo que dá à luz e gera, sem
lheres, e é desse modo que são amoro o esquecer tanto em sua presença
sos, pela procriação conseguindo para quanto ausente, e o que foi gerado, ele
o alimenta justamente com esse belo,
si imortalidade, memória e bem-aven-
de modo que uma comunidade muito
turança por todos os séculos seguintes,
maior que a dos filhos ficam tais indi
209 a ao que pensam; aqueles porém que é víduos mantendo entre si, e uma ami
em sua alma — pois há os que conce zade mais firme, por serem mais belos
bem na alma mais do que no corpo, o e mais imortais os filhos que têm em
que convém à alma conceber e gerar; e comum. E qualquer um aceitaria obter -
o que é que lhes convém senão o pen tais filhos mais que os humanos, de
samento e o mais da virtude133 ? Entre pois de considerar Homero e Hesíodo,
131 É um a referência ao discurso de Fedro, 179 e admirando com inveja os demais
ss. (N . d o T .) ■ bons poetas, pelo tipo de descendentes
!32 R ei legendário de Atenas. Inform ado de
que um oráculo prom etera vitória aos dórios, que deixam de si, e que uma imortal
se estes não o m atassem , disfarça-se em solda glória e memória lhes garantem, sendo
do e com o tal encontra a m orte com que sal
vou sua pátria. (N . d o T .) 134 Prudência ( ocxxppoovvri ) e justiça são aqui
133 Entender .virtude no sentido am plo de exce form as do pensam ento ( <ppóvTjoic; ); com o no
lência, tal com o o grego aperr? . N otar a dis P rotágoras (361b ss.) elas são, com o as de
tinção feita no B anquete entre ippóvriou; (de mais virtudes, form as ou aspectos de uma
ifipouéofiai ) = disposição para a sabedoria, ciência ( èmoTmv )■• (N . do T .)
pensam ento e acupía. , isto é, sabedoria (v. 202 ) 135 N o grego evnopeT . V . supra p. 41 , n. 113.
que só os deuses possuem . (N . do T .) (N . d o T .) :
O BANQUETE 47
eles mesmos o que são; ou se prefe seu dirigente, deve ele amar um só
res 13 6, continuou ela, pelos filhos que corpo e então gerar belos discur
Licurgo deixou na Laced,emônia, sal sos139; depois deve ele compreender-
vadores da Lacedemônia e por assim que a beleza em qualquer corpo é irmã
dizer da Grécia. E honrado entre vós é da que está em qualquer outro, e que,
também Sólon1 3 7 pelas leis que criou, se se deve procurar o belo na forma,
e outros muitos em muitas outras par muita tolice seria não considerar uma
tes, tanto entre os gregos como entre os só e a mesma a beleza em todos os cor
bárbaros, por terem dado à luz muitas pos; e depois de entender isso, deve ele
obras belas e gerado toda espécie de fazer-se amante de todos os belos cor
virtudes; deles é que já se fizeram mui pos e largar esse amor violento de um
tos cultos por causa de tais filhos, só, após desprezá-lo e considerá-lo
enquanto que por causa dos humanos mesquinho; depois disso a beleza que
ainda não se fez nenhum. está nas almas deve ele considerar
mais preciosa que a do corpo, de modo
São esses então os casos de amor em
que, mesmo se alguém de uma alma
210 a - que talvez, ó Sócrates, também tu
gentil tenha todavia um escasso encan
pudesses ser iniciado138; mas, quanto
to, contente-se ele, ame e se interesse, e
à sua perfeita contemplação, em vista
produza e procure discursos tais que
da qual é que esses graus existem,
tornem melhores os jovens; para que
quando se procede corretamente, não
então seja obrigado a contemplar o
sei se serias capaz; em todo caso, eu te belo nos ofícios e nas leis, e a ver assim
direi, continuou, e nenhum esforço que todo ele tem um parentesco
pouparei; tenta então seguir-me se comum 1 40, e julgue enfim de pouca
fores capaz: deve com efeito, começou monta o belo no corpo; depois dos ofí
ela, o que corretamente se encaminha a cios é para as ciências que é preciso
esse fim, começar quando jovem por transportá-lo, a fim de que veja tam
dirigir-se aos belos corpos, e em pri bém a beleza das ciências, e olhando
meiro lugar, se corretamente o dirige o para ô belo já muito, sem mais amar
como um doméstico a beleza indivi
136 A ordem em que aparecem os exemplos da
poesia e da legislação parece sugerir a preemi dual de um criançola, de um homem
nência da primeira sobre a segunda! Cf. toda ou de um só costume, não seja ele,
via República, X , 597 e ss., em que Platão, ao
contrário, explica a superioridade da segunda. nessa escravidão, miserável e um mes
(N. d o T . ) quinho discursador, mas voltado ao
137 Em conferência na Associação dos Estudos
Clássicos do Brasil (Seção de São Paulo), so
vasto oceano do belo e, contemplan
bre o autocriticismo em Atenas, o Prof. Aubre- do-o, muitos discursos belos e magní-
ton observou com muito acerto os sentimentos
de laconismo qüe revela essa maneira de um 139 Evidentemente não se trata aqui do amor
ateniense citar depois das leis de Licurgo — físico entre o homem e a mulher, que tem a
salvadores da Grécia . . . — as leis do seu con justificação na procriação (208e), e sim de
terrâneo — e também Sólon . . . (N . do T .) uma primeira etapa do amor entre o amante e.
138 Feito o exame das diversas formas da ativi o bem-amado, que deve estar condicionado à
dade amorosa (proscrição, poesia, legislação), produção dos belos discursos. Essa etapa ini
Diotima as considera como estágios prelimina cial- corresponde ao que Pausânias, numa pers
res do supremo ato do amor, que é a conquista pectiva menos clara, afirma ser o nobre amor
da ciência do belo em si. Para dar no entanto de Afrodite Urânia. (N . do T .)
a entender o caráter dessa ciência e de sua 140 Assim como, pouco antes, um belo corpo é
aquisição, ela recorre à alegoria da iniciação irmão de um belo corpo, todos estes por sua
aos mistérios. Compará-la a esse respeito com vez têm a mesma relação com os belos ofícios
o mito da Caverna na República. (N . do T .) e as belas leis. (N . d o T .)
48 PLATÃO
ficos ele produza, e reflexões, em ines tudo mais que é belo dele participa, de
gotável amor à sabedoria, até que aí um modo tal que, enquanto nasce e pe
robustecido e crescido 1 41 contemple rece tudo mais que é belo, em nada ele
ele uma certa ciência, única, tal que o fica maior ou menor, nem nada sofre.
« seu objeto é o belo seguinte. Tenta Quando então alguém, subindo a partir
agora, disse-me ela, prestar-me a máxi do que aqui é belo 1 4 4, através do cor
ma atenção possível. Aquele, pois, que reto amor aos jovens, começa a con
até esse ponto tiver sido orientado para templar aquele belo, quase que estaria
as coisas do amor, contemplando
seguida e corretamente o que é belo, já a atingir o ponto final. Eis, com efeito,
chegando ao ápice dos graus do amor, em que consiste o proceder correta
súbito perceberá algo de maravilhosa mente nos caminhos do amor ou por
mente belo em sua natureza, aquilo outro se deixar conduzir: em começar
mesmo1 42, ó Sócrates, a que tendiam do que aqui é belo e, em vista daquele
todas as penas anteriores, primeira- belo, subir sempre, como que servin-
2u a mente sempre sendo, sem nascer nem do-se de degraus, de um só para dois e
perecer, sem crescer nem decrescer, e de dois para todos os belos corpos, e
depois, não de um jeito belo e de outro dos belos corpos para os belos ofícios,
feio, nem ora sim ora não, nem quanto e dos ofícios para as belas ciências até
a isso belo e quanto àquilo feio, nem que das ciências acabe naquela ciên
aqui belo ali feio, como se a uns fosse cia, que de nada mais é senão daquele
belo e a outros feio; nem por outro próprio belo, e conheça enfim o que em
lado aparecer-lhe-á o belo como um si é belo. Nesse ponto da vida, meu
rosto ou mãos, nem como nada que o caro Sócrates, continuou a estrangeira
corpo tem consigo, nem como algum de Mantinéia, se é que em outro mais,
discurso ou alguma ciência, nem certa poderia o homem viver, a contemplar o
mente como a existir em algo mais, próprio belo. Se algum dia o vires, não
b como, por exemplo, em animal da terra
é como ouro 1 4 5 ou como roupa que
ou do céu, ou em qualquer outra coisa;
ao contrário, aparecer-lhe-á ele ele te parecerá ser, ou como os belos
mesmo, por si mesmo, consigo mesmo, jovens adolescentes, a cuja vista ficas
sendo sempre uniforme1 43, enquanto agora aturdido e disposto, tu como ou
tros muitos, contanto que vejam seus
141A abundância é a grandeza dos discursos
decorrentes da extensão do belo já contempla amados e sempre estejam com eles, a
do ( 7rpòç -noXv -rçSr? rò ko-âó^ ) é condição para nem comer nem beber, se de algum
atingir a contemplação do próprio belo.
(N. d o T .) modo fosse possível, mas a só contem
142 Observar ro que precede até essa expressão
plar e estar ao seu lado 1 4 6. Que pensa
uma extraordinária técnica de suspense para
preparar o deslumbramento do que segue, isto mos então que aconteceria, disse ela,
é, a descrição do belo em si. Desencantados da se a alguém ocorresse contemplar o
magia desse trecho, podemos perceber que ele
é uma refcposta àquela litania final do discurso próprio belo, nítido, puro, simples, e
de Agatão (197d~e), mas quão superior em
emoção e grandeza! (N. d o T .) 144 O pronome rõovde parece-me aqui refe
143 Essas expressões, que aparecem freqüente rir-se claramente à idéia do belo. Assim, tradu-
mente no F éd on para caracterizar as idéias em zimo-lo especificando: “as coisas belas daqui”.
sua pureza essencial, contrapõem-se a fórmulas A menção explícita t Cò v k o c K C j v , um pouco
usadas pouco acima (de um jeito . . . de ou abaixo, explica-se pelo fato de que Diotima
tro . . ., o r a . . . o ra . . . quanto a isso . . . quanto está resumindo sua lição. (N . d o T .)
àquilo . . . etc.) para qualificar as coisas deste 145 Como o sofista Hípias o define para Sócra
mundo, e que representam por assirn dizer os tes. V . Hípias M aior, 289e. (N. d o T .)
marcos da argumentação socrática. (N. d o T .) 116 Cf. supra 192d-e. (N . d o T .)
O BANQUETE 49
não repleto de carnes, humanas, de coisa1 50, que era a ele que aludira Só
cores e outras muitas ninharias mor crates, quando falava de um certo dito;
tais, mas o próprio divino belo pudesse e súbito a porta do pátio, percutida,
ele em sua forma única contemplar? produz um grande barulho, como de
212 a Porventura pensas, disse, que é vida vã foliões, e ouve-se a voz de uma flautis
a de um homem a olhar naquela dire ta. Agatão exclama: “Servos! Não *
ção e aquele objeto, com aquilo1 4 7 ireis ver? Se for^algum conhecido, cha
com que deve, quando o contempla e mai-o; se não, dizei que não estamos
com ele convive? Ou não consideras, bebendo, mas já repousamos53.
disse ela, que somente então, -quando Não muito depois ouve-se a voz de
vir o belo com aquilo com que este Alcibíades no pátio, bastante embria
pode ser visto, o.correr-lhe-á produzir gado, e a gritar alto, perguntando onde
não sombras148 de virtude, porque estava Agatão, pedindo que o levassem
não é em sombra que estará tocando, para junto de Agatão. Levam-no então
mas reais virtudes, porque é no real até os convivas a flautista, que o
que estará tocando? ; tomou sobre si, e alguns outros acom
b Eis o que me dizia Diotima, 6 Fedro panhantes, e ele se detém à porta, cin
e demais presentes, e do qué estou gido de uma espécie de coroa tufada de *
convencido; e porque estou conven hera e violetas, coberta a cabeça de
fitas em profusão, e exclama:
cido, tento convencer também os ou “Senhores! Salve! Um homem em
tros de que para essa aquisição, um completa embriaguez vós o recebereis
colaborador da natureza humana me como companheiro de bebida, ou deve
lhor que o Amor não se encontraria mos partir, tendo apenas coroado Aga
facilmente. Eis por que eu afirmo que tão, pelo qual viemos? Pois eu, na ver
deve todo homem honrar o Amor, e dade, continuou, ontem mesmo não fui
que eu próprio prezo o que lhe con capaz de vir; agora porém eis-me aqui,
cerne e particularmente o cultivo, e aos com estas fitas sobre a cábeça, a fim de
outros exorto, e agora e sempre elogio passá-las da minha para a cabeça do
o poder e a virilidade do Amor na me- mais sábio e do mais belo, se assim
devo dizer. Porventura ireis zombar de
e dida em que sou capaz. Este discurso,
mim, de minha embriaguez? Ora, eu, 2u a
ó Fedro, se queres, considera-o profe
por mais que zombeis, bem sei por
rido como um encómio1 49 ao Amor; tanto que estou dizendo a verdade.
se não, o que quer que e como quer que Mas dizei-me daí mesmo: com o que
te apraza chamá-lo, assim deves fazê- disse, devo entrar ou não? Bebereis co
lo. migo ou não?”
Depois que Sócrates assim falou, Todos então o aclamam e convidam
enquanto que uns se põem a louvá-lo, a entrar e a recostar-se, e Agatão o
Aristófanes tenta dizer alguma chama. Vai ele conduzido pelos ho
147 Isto é, com a inteligência, ou antes, com a mens, e como ao mesmo tempo colhia
própria alma, livre das suas relações com o as fitas para coroar, tendo-as diante b
corpo. V. Fédon, 65b-e. (N . d o T .)
148 São as virtudes praticadas pelo com um dos 15U A ristófanes não parece, com o os demais
hom ens, tais com o Platão as explica no Fédon, convivas, em polgado com o que fo i dito por
68b-69b. (N . d o T .) Sócrates, o que bem revela sua pouca predis
149 Porque fo i proferido à maneira socrática. posição para captar o conteúdo do discurso de
V . supra 199b. (N . d o T .) Alcibíades. (N . d o T .)
50 PLATÃO
dos olhos não viu Sócrates, e todavia mitido dirigir nem o olhar nem a •
senta-se ao pé de Agatão, entre este e v palavra a nenhum belo jovem, senão
Sócrates, que se afastara de modo a este homem, enciumado e invejoso, faz
que ele se acomodasse. Sentando-se ao coisas extraordinárias, insulta-me e
lado de Agatão ele o abraça e o coroa. mal retém suas mãos da violência. Vê
Disse então Agatão: — Descalçai então se também agora não vai ele
Alcibíades, servos, a fim de que seja o fazer alguma coisa, e reconcilia-nos;
terceiro em nosso leito1 51. ou se ele tentar a violência, defende-
— Perfeitamente — tornou Alcime, pois eu da sua fúria e da sua pai
bíades; — mas quem é este nosso ter xão amorosa muito me arreceio.
ceiro companheiro de bebida? E en — N ã o ! — disse Alcibíades —
quanto se volta avista Sócrates, e mal entre mim e ti não há reconciliação.
o viu recua em sobressalto e exclama: Mas pelo que disseste depois eu te
Por Hércules! Isso aqui que é? Tu, ó castigarei; agora porém, Agatão, ex
Sócrates? Espreitando-me de novo aí clamou ele, passa-me das tuas fitas, a e
te deitaste, de súbito aparecendo assim fim de que eu cinja também esta aqui,
como era teu costume, onde eu menos a admirável cabeça deste homem, e
esperava que haverias de estar? E não me censure ele de que a ti eu te
agora, a que vieste? E ainda por que coroei, mas a ele, que vence em argu
foi que aqui te recostaste? Pois não foi mentos todos os homens, não só ontem
junto de Aristófanes1 52, ou de qual como tu, mas sempre, nem por isso eu
quer outro que seja ou pretenda ser o coroei. — E ao mesmo tempo ele
engraçado, mas junto do mais belo dos toma das fitas, coroa Sócrates e recos
que estão aqui dentro que maquinaste ta-se.
te deitar. Depois que se recostou, disse ele: —
E Sócrates: — Agatão, vê se me Bem, senhores! Vós me pareceis em
defendes ! Que o amor deste homem se plena sobriedade. É o que não se deve
me tom ou um não pequeno proble permitir entre vós, mas beber; pois foi
m a1 53. Desde aquele tempo, com efei o que foi combinado entre nós. Como
to, em que o amei, não mais me é per- chefe então da bebedeira, até que tiver
des suficientemente bebido, eu me elejo
151V . supra p. 15 , n. 13, e p. 16 , n. 16. a mim mesmo1 5 4. Eia, Agatão, que a
(N . d o T .)
!52 Por que essa referência a Aristófanes? N ão tragam logo, se houver aí alguma gran
tem os nenhum a outra notícia da predileção de de taça. Melhor ainda, não há nenhu
Sócrates pelos côm icos, em particular por A ris
tófanes. Por outro lado é de supor que A lcib ía ma precisão: vamos, servo, traze-me
des de pronto percebesse a possibilidade de aquele porta-gelo ! exclamou ele, quan- 214
Sócrates ter sido convidado pelo próprio A ga
tão, com o de fato aconteceu. A ssim , suas pala do viu um com capacidade de mais de
vras devem ser entendidas mais com o um arti oito “cótilas” 1 5 5. Depois de enchê-lo,
fício dramático para chamar a atenção sobre a
incapacidade cm A ristófanes de entender o ver
primeiro ele bebeu, depois mandou Só
dadeiro aspecto côm ico da atitude de A lcib ía crates entornar, ao mesmo tempo que
des para com Sócrates. (N . d o T .)
153 Essa observação de Sócrates, com o a de 154 A lcibíades sente em sua em briaguez que o
A lcibíades logo a seguir, anuncia à maneira de “sim posiarca” (v. supra p. 17 , n. 21) não se
um prelúdio as conclusões que vam os tirar do houve bem em sua função e pretende reparar a
discurso de A lcibíades sobre a irresponsabilida fa lta . . . (N . d o T .)
de de Sócrates no com portam ento de A lcib ía 155 U m a “cótila” equivalia a pouco mais de ,
des. ( N .d o T .) um quarto de litro. (N . d o T .)
O BANQUETE 51
faz dizer outra, não te admires; não é flautista quer uma flautista ordinária,
fácil, a quem está neste estado, da tua são as únicas que nos fazem possessos
singularidade dar uma conta bem feita e revelam os que sentem falta dos deu
e seguida. ses e das iniciações, porque são divi
“ Louvar Sócrates, senhores, é assim nas. Tu porém dele diferes apenas ;
que eu tentarei, através de imagens. Ele nesse pequeno ponto, que sem instru
certamente pensará talvez que é para mentos, com simples palavras, fazes o
carregar no ridículo, mas será a ima mesmo. Nós pelo menos, quando
gem em vista da verdade, não do ridí algum outro ouvimos mesmo que seja
culo. Afirmo eu então que é ele muito um perfeito orador, a falar de outros
semelhante a esses silenos1 6 0 coloca assuntos, absolutamente por assim
dos nas oficinas dos estatuários, que os dizer ninguém se interessa; quando
artistas representam com um pifre ou porém é a ti que alguém ouve, ou pala
uma flauta, os quais, abertos ao meio, vras tuas referidas por outro, ainda que
vê-se que têm em seu interior estatue seja inteiramente vulgar o que está
tas de deuses. Por outro lado, digo falando, mulher, homem ou adoles
também que ele se assemelha ao sátiro cente, ficamos aturdidos e somos em
Mársias 1 6 1. Que na verdade, em teu polgados. Eu pelo menos, senhores, se
aspecto pelo menos és semelhante a não fosse de todo parecer que estou
esses dois seres, ó Sócrates, nem embriagado, eu vos contaria, sob jura
mesmo, tu sem dúvida poderias contes mento, o que é que eu sofri sob o efeito
tar; que porém também no mais tu te dos discursos deste homem, e sofro
assemelhas, é o que depois disso tens ainda agora. Quando com efeito os *
de ouvir. Ês insolente1 6 2! Não? Pois escuto, muito mais do que aos cori-
se não admitires, apresentarei testemu bantes1 6 4 em seus transportes bate-me
nhas. Mas não és flautista? Sim! E o coração, e lágrimas me escorrem sob
muito mais maravilhoso que o sátiro. o efeito dos seus discursos, enquanto
Este, pelo menos, era através de instru que outros muitíssimos eu vejo que
mentos que, com o poder de sua boca, experimentam o mesmo sentimento; ao
encantava os homens como ainda ouvir Péricles porém, e outros bons
agora o que toca as suas melodias — oradores, eu achava que falavam bem
pois as que Olimpo 1 6 3 tocava são de sem dúvida, mas nada de semelhante
Mársias, digo eu, por este ensinadas — eu sentia1 6 5, nem minha alma ficava
as dele então, quer as toque um bom perturbada nem se irritava, como se se
encontrasse em condição servil; mas
160 Também chamados sátiros, os silenos eram
divindades campestres que faziam parte do sé-
com este Mársias aqui, muitas foram 216 a
qmto úe Diomso. Eram figurados com cauda e as vezes em que de tal modo me sentia
cascos de boi ou de bode e rosto humano, sin
gularmente feio. (N. d o T .)
que me parecia não ser possível viver
161 Exímio flautista, Mársias desafiou Apoio em condições como as minhas. E isso,
com sua lira e, vencido, foi esfolado pelo deus. ó Sócrates, não irás dizer que não é
162 A liberdade espiritual de Sócrates dá-lhe
realmente, em muitas circunstâncias, essa apa 164 Sacerdotes de Cibele, da Frigia, que dança
rência. V . A p ol. 20e-23c, 30c e ss. e 36b-37. vam freneticamente ao som de flautas, címba-
(N . do T .) les e tamborins. (N. d o T .)
163 Em M in o s Sócrates cita-o como bem-amado 165 é qUe não eram estes oradores “homens de
de Mársias. Muitas canções antigas lhe eram gênio”, suscetíveis de uma inspiração divina (v.
atribuídas. (N . do T .) supra 203a). (N. d o T .)
O BANQUETE 53
verdade. Ainda agora tenho certeza de Que esta sua atitude não é conforme à
que, se eu quisesse prestar^ ouvidos, dos silenos? E muito mesmo. Pois é
não resistiria, mas experimentaria os aquela com que por fora ele se reveste,
mesmos sentimentos. Pois me força ele como. o sileno esculpido; mas lá den
a admitir que, embora sendo eu mesmo tro, uma vez aberto, de quanta sabedo
deficiente em muitos pontos [ainda, de ria imaginais, companheiros de bebida,
mim mesmo me descuido, mas trato estar ele cheio? Sabei que nem a quem
dos negócios de A tenas1 6 6. A custo é belo tem ele a mínima consideração,
então, como se me afastasse das antes despreza tanto quanto ninguém
sereias, eu cerro os ouvidos eime retiro poderia imaginar, nem tampouco a e
em fuga, a fim de não ficar sentado lá e quem é rico, nem a quem tenha qual
b aos seus pés envelhecer. E senti diante quer outro título de honra, dos que são
deste homem, somente diante dele, o enaltecidos pelo grande número; todos
que ninguém imaginaria haver em esses bens ele julga que nada valem, e
mim, o envergonhar-me de quem quer que nós nada somos — é o que vos
que seja; ora, eu, é diante deste homem digo — e é ironizando e brincando
somente que me envergonho. Com efei com os homens que ele passa toda a
to, tenho certeza de que não posso vida. Uma vez porém que fica sério e
contestar-lhe que não se deve fazer o se abre, não sei se alguém já viu as
que ele manda, mas quando me retiro estátuas lá dentro; eu por mim já uma
sou vencido pelo apreço em que me vez as vi, e tão divinas me pareceram
tem o público. Safo-me então de sua elas, com tanto ouro, com uma beleza
presença e fujo, e quando o vejo enver- tão completa e tão extraordinária que in „
c gonho-me pelo que admiti. E muitas eu só tinha que fazer imediatamente o
vezes sem dúvida com prazer o veria que me mandasse Sócrates. Julgando
não existir entre os homens; mas se por porém que ele estava interessado em
outro lado tal coisa ocorresse, bem sei minha beleza, considerei um achado e
que muito maior seria a minha dor, de um maravilhoso lance da fortuna,
modo que não sei o que fazer icom es.se como se me estivesse ao alcance, de
homem. ;; pois de aquiescer a Sócrates, ouvir
. De seus flauteios então, tais foram tudo o que ele sabia; o que, com efeito,
as reações que eu e muitos outros tive eu presumia da beleza de minha juven
mos deste sátiro; mas ouvi-me como tude era extraordinário! Com tais
ele é semelhante àqueles a quem o idéias em meu espírito1 6 8, eu que até
comparei, que poder maravilhoso ele então não costumava sem um acompa
tem. Pois ficai sabendo que ninguém o nhante ficar só com ele, dessa vez,
d conhece; mas eu o revelarei, já que despachando o acompanhante, encon
comecei. Estais vendo, com efeito, trei-me a sós — é preciso, com efeito, *
como Sócrates amorosamente se com i 08 A lcibíades passa a contar os seus esforços
para conquistar o amor de Sócrates. Tais esfor
porta com os belos jovens, está sempre ços constituem , com o observa Robin em sua
ao redor deles, fica aturdido e como Introdução, um a verdadeira tentação, isto é,
também ignora tudo e nada sabe1 6 7. um a caricatura da iniciação am orosa tal com o
é caracterizada por D iotim a. A través dessa
166 Cf. A lcibíades, 109d e 113b. (N . d o T .) caricatura, Platão pretende ilustrar a qualidade
167 Com o numa cilada para atrair os incautos. superior do côm ico obtido com uma verdadeira
Cf. supra 203d. (N . d o T .) arte. (N . d o T .)
54 PLATÃO
que apliquem aos seus ouvidos portas ser verdade o que dizes a meu respeito,
bem espessas1 7 1. e se há em mim algum poder pelo qual
Como com efeito, senhores, a lâm tu te poderias tornar melhor; sim, uma
pada se apagara e os servos estavam irresistível beleza verias em mim, e
fora, decidi que não devia fazer ne totalmente diferente da formosura que
nhum floreado com ele, mas franca há em ti. Se então, ao contemplá-la,
mente dizer-lhe o que eu pensava; e tentas compartilhá-la comigo e trocar
assim o interpelei, depois de sacudi-lo: beleza por beleza, não é em pouco que
— Sócrates, estás dormindo? pensas me levar vantagens, mas ao 219 a
— Absolutamente — respondeu- contrário, em lugar da aparência é a
me. . /
realidade do que é belo que tentas
— Sabes então qual é a minha adquirir, e, realmente é “ ouro por
decisão? cobre” 1 7 3 que pensas trocar. No en
— Qual é exatamente? — tomou- tanto, ditoso amigo, examina melhor;
me. não te passe despercebido que nada
— Tu me pareces — disse-lhe eu sou. Em verdade, a vis.ão do pensa.-
— ser um amante digno de mim, o mento começa a enxergar com agude
único, e te mostras hesitante em decla za quando a dos olhos tende a perder
rar-me. Eu porém é assim que me sua força; tu porém e’stás ainda longe
sinto: inteiramente estúpido eu acho disso.
não te aquiescer não só nisso como E eu, depois de ouvi-lo: — Quanto
também em algum caso em que preci ao que é de minha parte, eis aí; nada
sasses ou de minha fortuna ou dos do que está dito é diferente do que
meus amigos. A mim, com efeito, nada penso; tu porém decide de acordo com *>
me é mais digno de respeito dó que o
o que julgares ser o melhor para ti e
tomar-me eu o melhor possível, e para
para mim.
isso creio que nenhum auxiliar me é
— Bem, tomou ele, nisso sim, tens
mais importante do que tu. Assim ê
razão; daqui por diante, com efeito,
que eu, a um tal homem recusando
decidiremos fazer, a respeito disso
meus favores1 7 2, muito mais me -en como do mais, o que a nós dois nos
vergonharia diante da gente ajuizada parecer melhor.
do que se os concedesse, diante da
Eu, então, depois do que vi e disse, e
multidão irrefletida.
E este homem, depois de ouvir-me, que como flechas deixei escapar, ima
com a perfeita ironia que é. bem sua e ginei-o ferido; e assim que eu me ergui
do seu hábito, retrucou-me: — ; Caro sem ter-lhe permitido dizer-me nada
Alcibíades, é bem provável que real mais, vesti esta minha túnica — pois
mente não sejas um vulgar, se chega a era inverno — estendi-me por sob o
manto deste homem, e abraçado com c
171 Alusão a uma fórmula de iniciação órfica: estas duas mãos a este ser verdadeira
ipôéyÇojiai olç 1 eanV i9úpaç 5’ èirídeoõe, fSéfir/Xoi,
“Falarei àqueles a quem é permitido; aplicai mente divino e admirável fiquei deita-
portas (aos ouvidos), ó profanos.” (N do'
T .) 173 Ilíada, VI, 236. Enganado por Zeus, Glauco
172 Alcibíades aplicou literalmente a doutrina troca suas armas de ouro pelas de bronze de
de Pausânias. Cf. supra 184d-185b. (N. d o T .) Diomedes (N . d ò T .)
56 PLATÃO
do a noite toda. Nem também isso, ó mos ali companheiros de mesa. Antes
Sócrates, irás dizer que estou falsean de tudo, nas fadigas, não só a mim me
do. Ora, não obstante tais esforços superava mas a todos os outros —
meus, tanto mais este homem cresceu e quando isolados em algum ponto,
desprezou minha juventude, ludibriou- como é comum numa expedição, éra- 220a
a, insultou-a e justamente naquilo é mos forçados a jejuar, nada eram os
que eu pensava ser alguma coisa, outros para resistir — e por outro lado
senhores juizes; sois com efeito juizes nas fartas refeições, era o único a ser
da sobranceria de Sócrates1 7 4 — pois capaz de aproveitá-las em tudo mais,
ficai sabendo, pelos deuses e pelas deu sobretudo quando, embora se recusas
sas, quando me levantei com Sócrates, se, era forçado a beber, que a todos
foi após um sono em nada mais vencia 1 7 6; e o que é mais espantoso de
d extraordinário do que se eu tivesse dor tudo é que Sócrates embriagado ne
mido com meu pai ou um irmão mais nhum homem há que o tenha visto. E
velho.
Ora bem, depois disso, que disposi disso, parece-me, logo teremos a
ção de espírito pensais que eu tinha, a prova. Também quanto à resistência
julgar-me vilipendiado, a admirar o ao inverno — terríveis são os invernos
ali — entre outras façanhas extraordi- t
caráter deste homem, sua temperança e
coragem, eu que tinha encontrado um nárias que fazia, uma vez, durante uma
homem tal como jamais julgava pode geada das mais terríveis, quando todos
ria encontrar em sabedoria e fortaleza? ou evitavam sair ou, se alguém saía,
Assim, nem eu podia irritar-me e pri era envolto em quanta roupagem estra
var-me de sua companhia, nem sabia nha, e amarrados os pés em feltros e
e como atraí-lo. Bem sabia eu, com efei peles de carneiro, este homem, em tais
to, que ao dinheiro era ele de qualquer circunstâncias, saía com um manto do
modo muito mais invulnerável do que mesmo tipo que ^ntes costumava tra
Ajax ao ferro, e na única coisa em que zer, e descalço sobre o gelo marchava
eu imaginava ele se deixaria prender, mais à vontade que os outros calçados,
ei-lo que me havia escapado. Embara- enquanto que os soldados o olhavam
çava-me então, e escravizado pelo de soslaio, como se o suspeitassem de
homem como ninguém mais por ne estar troçando deles. Quanto a estes
nhum outro, eu rodava à toa. Tudo fatos, ei-los aí:
isso tinha-se sucedido anteriormente; mas também o seguinte, como o c
depois, ocorreu-nos fazer em comum fe z
uma expedição em Potidéia 1 7 5, e éra- e suportou um bravo 1 7 7
174 Em sua embriaguez, Alcibíades figura mo lá na expedição, certa vez, merece ser
mentaneamente um processo em que a acusa ouvido. Concentrado numa reflexão,
ção de sobranceria dissimula justamente sua
defesa no processo histórico: a recusa de Só
logo se detivera desde a madrugada a
crates, um crime de orgulho nessa patuscada, examinar uma idéia, e como esta não
significa de fato sua inocência. (N. d o T .)
175 Em 432, Potidéia, na Calcídica, recusou-se
lhe vinha, sem se aborrecer ele se con
a pagar, tributo a Atenas e foi pelos atenienses servara de pé, a procurá-la. Já era
sitiada, capitulando em 430. Essa insurreição
foi uma das causas imediatas da Guerra do 176 V. supra p. 17 , n. 19. (N . do T .)
Peloponeso. (N. d o T .) 177 Odisséia, IV, 2 4 2 .(N. d o T .)
OBANQUETE 57
meio-dia, os homens estavam obser suas armas de hoplita. Ora, ele se reti
vando, e cheios de admiração;! diziam rava, quando já tinham debandado os
uns aos outros: Sócrates desde a nossos homens, ao lado de Laques;
madrugada está de pé ocupado em acerco-me deles e logo que os vejo
siias reflexões-! Por fim, algüns dos exorto-os à coragem, dizendo-lhes que
jónicos 1 7 8, quando já era de tarde, de- os não abandonaria. Foi aí que, me
d pois de terem jantado -— pois era lhor que em Potidéia, eu observei Só
então o estio — trouxeram para fora crates — pois o meu perigo era menor,
os seus leitos e ao mesmo tempo que por estar eu a cavalo — primeiramente
iam dormir na fresca, observavam-no a quanto ele superava a Laques, em
ver se também a noite ele passaria de
domínio de si; e depois, parecia-me, ó
pé. E ele ficou de pé, até que veio a au
Aristófanes, segundo aquela tua ex
rora e o sol se ergueu; a seguir foi
pressão1 8 1, que também lá como aqui
embora, depois de fazer uma prece ao
ele se locomovia “ impando-se e olhan
sol. Se quereis saber nos combates —
pois isto é bem justo que se lhe leve em do de través” , calmamente exami
conta — quando se deu a batalha pela nando de um lado e de outro os amigos
qual chegaram mesmo a me condeco e os inimigos, deixando bem claro a
rar os generais, nenhum outro homem todos, mesmo a distância, que se
e me salvou senão este, que não quis alguém tocasse nesse homem, bem
abandonar-me ferido, e até -minhas vigorosamente ele se defenderia. Eis
armas salvou comigo. Eu então, ó Só por que com segurança se retirava, ele
crates, insisti com os generais1;7 9 para e o seu companheiro; pois quase que,
que te conferissem essa honra, e isso nos que assim se comportam na guer
não vais me censurar nem irás dizer ra, nem se toca, mas é aos que fogem
que estou falseando; todavia, quando em desordem que se persegue.
já os generais consideravam! minha Muitas outras virtudes certamente
posição e desejavam conceder-me a poderia alguém louvar em Sócrates, e
insigne honra, tu mesmo foste mais admiráveis; todavia, das demais ativi
solícito que os generais para que fosse dades, talvez também a respeito de al
eu e não tu que a recebesse. E também, guns outros se pudesse dizer outro
ó senhores, valia a pena observar Só- tanto; o fato porém de a nenhum
22i a crates, quando de Delião 1 8 0 batia em homem assemelhar-se ele, antigo ou
retirada o exército; por acaso fiquei ao moderno, eis o que é digno de toda
seu lado, a cavalo, enquanto elè ia com admiração. Com efeito, qual foi Aqui
178 Robin prefere aqui a lição de Schmidt les, tal poder-se-ia imaginar Brasi-
( tlúv iSóvTcov = dos que o viram) à lição
dos mss. ( tlúv '\Újv(júv = dos jónicos), sob a das 1 8 2 e outros, e inversamente, qual
alegação de que não havia tropas da Jônia, e foi Péricles, tal Nestor e Antenor 1 8 3
de que a lição dos mss. se compreende dificil
mente como uma especificação da expressão 181Nas N uvens, 362: ò'TL fipevõ v e i t ' ey-raíç ó õ o t ç
“homens”, usada pouco acima. Essa última ra kcu. Tcbípâákjdoj 7rapa(3á\Xetç (N . do T .)
zão absolutamente não convence. (N. d o T .) 182 Grande general espartano, vencedor dos ate
179 Essa batalha, travada em 432, precedeu nienses em Anfípolis (422 a.C .), onde morreu.
imediatamente o cerco de Potidéia. (N . d o T .) (N . do T .)
180 Cidade da Beócia, na fronteira da Ática. Os 183 Dois grandes conselheiros, o primeiro dos
atenienses foram aí batidos pelos tebanos, co gregos e o segundo dos troianos, durante a
mandados por Pagondas, em 424 a.C. (N . do T.) Guerra de Tróia. (N. do T .)
58 PLATÃO
bem, caro Agatão, que nada mais haja tar-se ao' lado de Sócrates; súbito
para ele, e faze com que comigo nin porém uns foliões, em numeroso
guém te indisponha. grupo, chegam à porta e, tendo-a
Agatão respondeu: — De fato, ó encontrado aberta com a saída de
Sócrates, é muito provável que estejas alguém, irrompem eles pela frente em
« dizendo a verdade. E a prova é a direção dos convivas, tomando assento
maneira como justamente ele se recos nos leitos; um tumulto enche todo o
tou aqui no meio, entre mim e ti, para recinto e, sem mais nenhuma ordem,
nos afastar um do outro. Nada mais é-se forçado a beber vinho em demasia.
ele terá então; eu virei para o teu lado Erixímaco, Fedro e alguns outros,
e me recostarei. disse Aristodemo, retiram-se e partem;
— Muito bem — disse Sócrates — a ele porém o sono o pegou, e dormiu *
reclina-te aqui, logo abaixo de mim. muitíssimo, que estavam longas as noi
•— ó Zeus, que tratamento recebo tes; acordou de dia, quando já canta
ainda desse homem! Acha ele que em vam os galos, e acordado viu que os
tudo deve levar-me a melhor. Mas pelo outros ou dormiam ou estavam ausen
menos, extraordinária criatura, permi tes; Agatão porém, Aristófanes e Só
te que entre nós se acomode Agatão. crates eram os únicos que ainda esta
— Impossível! — tomou-lhe Só vam despertos, e bebiam de uma
crates. — Pois se tu me elogiaste, devo grande taça que passavam da esquerda
eu por minha vez elogiar o que está à para a direita. Sócrates conversava
minha direita- Ora, se abaixo de ti 1 8 9 com eles; dos pormenores da conversa
ficar Agatão, não irá ele por acaso disse Aristodemo que não se lembrava
fazer-me um novo elogio, antes de, — pois não assistira ao começo e
pelo contrário, ser por mim elogiado? ainda estava sonolento — em resumo d
Deixa, divino amigo, e não invejes ao porém, disse ele, forçava-os Sócrates a
jovem o meu elogio, pois é grande o admitir que é de um mesmo homem o
meu desejo de elogiá-lo. saber fazer uma comédia e uma tragé
— Evoé! — exclamou Agatão; — dia, e que aquele que com arte é um
Alcibíades, não há meio de aqui eu poeta trágico é também um poeta cô
ficar; ao contrário, antes de tudo, eu mico. Forçados a isso e sem o seguir
mudarei de lugar, a fim de ser por Só com muito rigor eles cochilavam, e pri
crates elogiado. . meiro adorm eceu Aristófanes e, quan
— Eis aí — comentou Alcibíades do já se fazia dias Agatão. Sócrates
— a cena de costume: Sócrates presen então, depois de acomodá-los ao leito,
te, impossível a um outro conquistar os levantou-se e partiu; Aristodemo,
belos! Ainda agora, como ele soube como costumava, acompanhou-o; che
facilmente encontrar uma palavra per gado ao Liceu 1 9 0 ele asseou-se e,
suasiva, com o que este belo se vai pôr como em qualquer outra ocasião, pas
ao seu lado. sou o dia inteiro, depois do que, à
b Agatão levanta-se assim para ir dei- tarde, foi repousar em casa.
190 Ginásio dedicado a Apoio, às margens do
!89 Isto é, à sua direita, entre ele e Sócrates. Ilisso, mais tarde utilizado por Aristóteles para
Agatão passara para a direita de Sócrates, a sua escola, que ficou com esse nome.
ficando este no meio do divã. (N . do T .) ÍN. do T .)
FÉDON
Introdução
EQUÉCRATES FÉDON
— Estiveste, Fédon, ao lado de Só — Houve no seu caso, Equécrates,
crates, no dia em que ele bebeu o vene uma coincidência fortuita: a do dia que
no na prisão? Ou acaso sabes, por precedeu ao julgamento com a coroa
outrem, o que lá se passou? ção da popa do navio que os atenienses
FÉDON mandam a Delos.
— Lá estive em pessoa, Equécrates. EQUÉCRATES
EQUÉCRATES — E que navio é este?
— E então, de que coisas falou ele FÉDON
antes de morrer? Qual foi o seu fim? — Segiindo conta a tradição, é' o
Isso eu gostaria de saber, pois atual navio no qual Teseu transportou outro-
mente não há nenhum de meus conci ra os sete moços e as sete moças que
dadãos de Flionte 1 que esteja;em Ate deviam ser levados para Creta2. Ele os
nas, e de lá, faz muito tempo, que não
2 A peregrinação a Delos é um simples culto ao
nos vem nenhum estrangeiro capaz de deus Apoio e à deusa Ártemis. A lenda é a
nos dar informações seguras, a não ser seguinte: Androgeu, filho do afamado rei M i-
nos de Creta, visitara Atenas e tomara parte
que Sócrates morreu após ter bebido o
nos jogos ginásticos; fora superior a todos, des
veneno. Mas, quanto ao mais, ninguém pertando assim a inveja dos atenienses, que o
nada nos soube relatar. mataram. Seu pai, então, para vingar a morte
do filho, declarou guerra aos atenienses, ven
FÉDON cendo-os, e estabelecendo como condição de
— Não sabeis, tampouco, nada paz que os vencidos enviassem periodicamente
7 moços e 7 moças a Creta. Estes jovens iriam
também a respeito das circunstâncias servir de alimento ao monstro Minotauro que
do seu julgamento? vivia no Labirinto de Creta, palácio fabuloso
cuia saída ninguém conseguira encontrar. Por
EQUÉCRATES muito tempo os atenienses continuaram a
— Sim, dele tivemos alguma infor enviar novas vítimas para Creta, até que o he
rói Teseu, herdeiro do trono, voluntariamente
mação. E uma das coisas, mesmo, que entrou no número das vítimas sorteadas, a fim
muito nos surpreendeu foi ter ocorrido de pôr termo a esse sacrifício periódico. Teseu
conquistou em Creta o amor da princesa
sua morte muito tempo depois do Ariadne, que lhe deu um novelo de lã verme
julgamento. Que houve, Fédon? lha e, assim, entrando no Labirinto, atou ele
uma ponta do novelo numa pedra da entrada
1 Em Flionte 'ou Flio, r.o Peloponeso, um dis e, enquanto avançava, o desenrolava, ficando
cípulo de Filolau, Eurito de Tarento, havia desta forma com o caminho de regresso asse
estabelecido um círculo de pitagóricos, em cuja gurado. Conseguiu assim matar o Minotauro
sede Fédon foi recebido por Equécrates e asso e retornar com seus companheiros salvos pí\ra
ciados (58d, 102a). (N. do E.) a pátria. (N . do T .)
64 PLATÃO
A Narrativa
O Prazer e a Dor
sião de encontrar esse homem, e, a jul — Dize-nos pois, Sócrates, por que
gar pela minha experiência, ele sem dú motivo se pode certamente negar que
vida seguirá de boa vontade o teu seja coisa permitida o suicídio? Eu
conselho! mesmo, com efeito (é o que nos
— Ora — tornou Sócrates — , será perguntavas há pouco), já òuvi Filolau
que Eveno não é filósofo? dizer, no tempo em que se encontrava
— Segundo penso, é — respondeu entre nós, e também a outros, que tal
Símias. coisa não se pode fazer. Mas ninguém
— Então não há de desejar coisa já foi capaz de ensinar-me qualquer
melhor, ele ou quem quer que dê à filo coisa de exato a esse respeito.
sofia a atenção que ela merece. Toda — Vamos — disse Sócrates — , «
via, é de esperar que Eveno não fará vamos examinar isso. É possível, tal
violência contra si mesmo, pois, segun vez, que eu te possa ensinar alguma
do dizem, isso não é permitido. coisa. É provável também que isso te
à Assim falando, desencolheu as per pareça maravilhoso e que te espantes
nas e, desde então, foi sentado dessa ao saber que, para todos os homens, há
forma que continuou a conversar. A uma absoluta necessidade de viver,
esta altura Cebes lhe fez a seguinte necessidade invariável mesmo para
pergunta: aqueles para os quais a morte seria
— Como podes dizer, Sócrates, que preferível à vida. Acharás espantoso
não é «permitido fazer violência contra ainda que não seja permitido àqueles,
si mesmo, e, por outro lado, que o filó para os quais a morte seja um bem
sofo não deseja nada melhor do que preferível à vida, o direito de procura
poder seguir aquele que morre? rem, por si, esse bem e que, para o
— Quê? Então, Cebes, não fostes obterem, necessitem recebê-lo de ou
instruídos a respeito deste gênero de trem.
questões, tu e Símias, que vivestes Cebes sorriu docemente:
tanto tempo em companhia de Filo- — Deus o sabe! — disse no modo
lau9? de falar de seu país1°.
. — Poder-se-ia, com efeito — vol
— Não, nada de claro, Sócrates.
veu Sócrates — encontrar nisso, pelo
— Eu, também, o que digo é por
menos considerado sob essa forma,
ouvir dizer, e seguramente nada impe
qualquer coisa de irracional. Todavia
de que se transm ita o que dessa forma
não é assim, e, muito provavelmente,
me foi dado aprender. E, com efeito,
talvez convenha particularmente aos aí não falta razão. A esse respeito há,
e que devem transladar-se para o além a mesmo, uma fórmula que usam os
tarefa de empreender uma investigação adeptos dos Mistérios11: “É uma espé-
sobre essa viagem e de relatar, num 10 Cebes é de Tebas, e os tebanos têm a fam a de
mito, o que julgamos ser tal lugar. E serem pouco instruídos e falarem um grego algo
provinciano. Cebes, o aluno ardente de Sócra
por que não? Que poderíamos fazer tes, fala em geral a língua da gente letrada,
senão isso durante o tempo que nos se mas neste m om ento, apaixonado por um a inte
ressante questão filosófica, descura a lingua
para do por do sol? gem e usa o dialeto regional de seu país.
(N . d o T .) ^
9 F ilolau: filó so fo pitagórico. Platão o conhe 11 Platão refere-se aos m istérios órficos, que
cia pessoalm ente, e m uito o estimou. (N . do T.) mencionara no M e n ã o . (N . d o T .)
FÉDON 69
A Purificação
— Assim pois, companheiro — não são por acaso aqueles que, no bom
continuou Sócrates — , se é verdade o sentido do termo, se dedicam à filoso
que acabamos de dizer, que imensa fia? O exercício próprio dos filósofos
esperança não existe para aquele que não é precisamente libertar a alma e
se encontra nesta altura de minha afastá-la do corpo?
ro ta ! Lá no além, se tal deve acontecer — Evidentemente.
em algum lugar, ele irá possuir com — Não seria, pois, como eu dizia
abundância tudo aquilo que exigiu de ao começar esta nossa conversa, uma
nós a realização de um imenso esforço, coisa ridícula por parte dum homem,
em nossa vida passada. E assim esta que durante toda a vida se houvesse
viagem, esta viagem que ora me foi esforçado por se aproximar o mais
prescrita, é acompanhada de uma feliz possível do estado em que ficamos
esperança; e o mesmo acontece a quem quando estamos mortos, irritar-se con
quer que possa afirmar que seu pensa tra a morte quando esta se lhe apresen- e
mento está pronto e o possa dizer tasse? •
purificado.
— Absolutamente certo — - disse — Por certo que seria ridículo !
Símias. ' — Assim, pois, Símias, em verdade
— Mas a purificação não é, de fato, estão se exercitando para morrer todos
justamente o que diz uma antiga aqueles que, no bom sentido da pala
tradição?14 Não é apartar o mais pos vra, se dedicam à filosofia, e o próprio
sível a alma do corpo, habituá-la a evi pensamento de estar morto ê para eles,
tá-lo, a concentrar-se sobre si mesma menos que para qualquer outra pessoa,
por um refluxo vindo de todos os pon um motivo de terrores ! Eis como deve
tos do corpo,, a viver tanto quanto mos julgá-los. Não seria o supra-sumo
puder, seja nas circunstâncias atuais, da contradição que eles, por uma parte
seja nas que se lhes seguirão, isolada e sentindo-se de todos os modos mistu
por si mesma, inteiramente 'desligada rados com o corpo, e por outra dese
do corpo e como se houvesse desatado jando que sua alma existisse em si
os laços que a ele a prendiam? mesma e por si mesma, se tomassem
— É exatamente isso. de pânico e de irritação quando sobre
— Ter uma alma. desligada e posta viesse a realização de seus desejos?
à parte do corpo, não é esse o sentido Sim, não seria uma contradição se não
exato da palavra “morte” ? se encaminhassem com alegria para o
— É exatamente esse o sentido. além onde, uma vez chegados, terão a
— Sim. E os que mais desejam essa esperança de encontrar aquilo por que ««
separação* os únicos que a desejam, em toda a sua vida se mostraram apai
14 E sta tradição é do Orfismo. V eja Çhantepie xonados: a sabedoria* que era o seu
de la Saussaye, H i s t ó r i a d a s R e li g i õ e s , Cap. amor; e também não seria contradi
XII. Cf. também E. Rohde, o p. cit., assim com o
S. R einach, O rpheus; Zielinski, L a R e li g i o n
tório deixarem de sentir alegria ante a
d a n s la G r è c e A n t i q u è . (N . d o T .) esperança de serem libertados da com-
76 PLATÃO
panhia daquilo que os molestava? Mas coragem também convém ou não; con
então ! Os amantes, as mulheres, os fi vém, no seu mais alto grau, àquelès em
lhos não foram capazes, quando mor quejn se encontram, pelo contrário, as
tos, de inspirar a muitos o desejo de ir disposições de que eu falava?
voluntariamente para as regiões do — Sem nenhuma dúvida!
Hades, na esperança de lá os encontra — Não acontece a mesma cousa
rem, de rever 0 objeto de seus amores e com a temperança, e até com a tempe
permanecer ao seu lado; ao passo que rança no sentido comum da palavra?
um homem que fosse apaixonado pela Porventura a ausência de veemência
sabedoria, que tivesse ardorosamente nos desejos e uma atitude desdenhosa e
abraçado a esperança de em nenhuma prudente não são próprias unicamente
parte senão no Hades encontrá-la sob daqueles que, no mais alto grau, sen
uma forma digna de ser desejada, tem desprezo pelo corpo e vivem na
então esse homem haveria de irritar-se filosofia?
no momento de morrer, então esse — Necessariamente.
homem não se rejubilaria de poder — Aliás, basta que tenhas a bonda
dirigir-se para aquelas regiões? Eis o de de refletir um momento apenas
que deve pensar, meus companheiros, sobre a coragem e a temperança do
um filósofo, se realmente é filósofo; resto dos homens, para que percebas
pois nele há de existir a forte convic toda a sua estranheza. .
ção de que em parte alguma, a não ser — Que queres dizer, Sócrates?
num outro mundo, poderá encontrar a — Não ignoras que a morte é
pura sabedoria. Ora, se assim é, não considerada por todo o resto dos ho
será o cúmulo da extravagância, como mens como pertencendo ao número
disse .há pouco, que exista o temor da dos grandes males. .
morte no espírito de um tal homem? ' — Ah ! bem o sei.
— Seguramente que seria o cúmu "— O temor de maíes maiores não
lo, por Zeus! leva, por acaso, os que dentre eles têm
— Dize-me, pois — continuou Só mais coragem a enfrentarem a morte,
crates — , não tiveste oportunidade de quando se apresenta a ocasião de
observar várias vezes que quando enfrentá-la? •
alguém se irrita no momento de mor — Como n ã o !
rer, não é a sabedoria que alguém — Assim, pois, é por serem medro
am a1 5, mas sim o corpo? E que esse sos e por temerem que são corajosos
alguém talvez ame ainda as riquezas, todos os homens, com exceção dos
ou as honrarias, quer uma, quer outra filósofos. E, contudo, é absurdo pensar
dessas coisas, ou quem sabe senão as que o temor e a covardia dêem
duas juntas? coragem !
— Realmente. É como dizes. —- Tens toda a razão !
— Assim, Símias, o que chamamos — Vejamos agora os que dentre
15 Platão serve-se de um jogo de palavras: eles são considerados prudentes. Não é
p h i l ó s o p h o s (o que ama a sabedoria), p h ilo sô - uma espécie de desregramento, o prin
m a t o s (o que ama o corp o), philok.hr é m a t o s
(o que am a as riquezas) e p h i l ó t i m o s (o que cípio de .sua temperança? Podemos
ama as honrarias), (N . do E .) afirmar enfaticamente que é impossível
FÉDON 77
serem as cousas assim, mas é um fato, contrário, a verdade nada mais seja do
contudo, que eles se encontram em que uma certa purificação de todas
situação análoga, na sua ridícula tem essas paixões e seja a temperança, a
perança.! Porque é pelo fato de teme justiça, a coragem; e o próprio pensa
rem ser privados de outros prazeres mento outra coisa não seja do que um
que cobiçam que se abstêm em face de meio de purificação. É possível que
alguns — porque, afinal, há muitos ou aqueles mesmos a quem devemos a
tros que os dominam. Parece errôneo instituição das iniciações não deixem
chamar de desregramento a uma certa de ter o seu mérito, e que a verdade já
continência em face dos prazeres, e de há muito tempo se encontre oculta
todavia é certo que, se esses homens sob aquela linguagem misteriosa. Todo
suportam o jugo de certos prazeres, é aquele que atinja o Hades como profa
porque dessa forma conseguem domi no e sem ter sido iniciado terá como
nar alguns outros. Ora, isto concorda lugar de destinação o Lodaçal, en
com o que acabamos de dizer há quanto aquele que houver sido purifi
pouco. De qualquer modo, é num cado e iniciado m orará,-um a vez lá
desregramento que está o princípio de chegado, com os Deuses. É que, como
sua tem perança! vês, segundo a expressão dos iniciados
— Verossimilmente, com efeito. nos mistérios: “numerosos são os por
— Na verdade, excelente Símias, tadores de tirso, mas poucos os Bacan
talvez não seja em face da virtude um tes1 6” . Ora, a meu ver, estes últimos
procedimento correto trocar assim pra não são outros senão os de quem a
zeres por prazeres, sofrimentos por filosofia, no sentido correto do termo,
sofrimentos, um receio por um receio, constitui a ocupação. E quanto a mim,
o maior pelo menor, tal como se se tra durante toda a vida e pelo menos na
tasse duma simples troca de moedas. medida do possível, nada deixei de
Talvez, ao contrário, exista aqui ape fazer para pertencer ao número deles;
nas uma moeda de real valor e em nisso, pelo contrário, pus sem reservas
troca da qual tudo o mais deva ser ofe todos os meus esforços. Entretanto, se
recido: a sabedoria í Sim, talvez seja tudo o que fiz estava certo, se meus
esse o preço que valem e com que se esforços obtiveram algum êxito, é
compram e se vendem legitimamente coisa que espero saber com certeza
todas essas coisas — coragem, tempe dentro em pouco, no além, se Deus
rança, justiça — a verdadeira virtude, quiser: tal é, pelo menos, minha opi
em suma, acompanhada de sabedoria. nião.
É indiferente que a elas se acrescentem “Aqui está, Símias e Cebes, minha
ou se tirem prazeres, temores e tudo o defesa; são estas as razões pelas quais
mais que há de semelhante! Que tudo vos deixo, tanto a vós como a meus
isso seja, doutra parte, isolado da sabe donos daqui, sem sentir dor nem cóle
doria e convertido em objeto de trocas ra, pois que — disso estou convencido
recíprocus, talvez não passe de aluci 16 A lusão aos mistérios eip que havia cerim ô
nação uma tal virtude: virtude real nias de purificação e graus de consagração: o
grau de Bacante é o superior, enquanto que os
mente servil, onde não há nada de são portadores de tirso constituem o grau inferior.
nem de verdadeiro! Talvez, muito ao (N . do T .)
78 PLATÃO
— no outro mundo irei encontrar, não peito dessas coisas. Se, pois, diante de
menos do que aqui, outros bons donos vós fui em minha defesa mais persua
como outros bons companheiros. O sivo do que diante dos juizes de Ate
vulgo, na verdade, é incrédulo a res nas, bem haja!”
A Sobrevivência da Aima
70 a
Os contrários
inversamente, vai do segundo para o enfim, para estes dois termos, as gera
primeiro? Observemos, com efeito, ções são, uma, “ adormecer”, outra,
uma coisa maior e um a coisa menor: “ acordar” . Achas que isto basta, ou
não há entre as duas crescimento e não?
decrescimento, o que permite afirmar, — Certo que b a sta ! .
de uma, que ela cresce, e, da outra, que — Cabe-te agora a vez de dizer
descresce? . outro tanto a respeito da vida e da
— Há. ’ morte. Não dirás, de início, que
— E a decomposição e a composi “viver” tem por contrário “estar
ção, o resfriamento e o aquecimento, e morto” ? .
todas as oposições semelhantes, ainda — E o que eu diria.
que às vezes não possuam nomes apro — E, em seguida, que esses estados
priados em nossa língua, não haveriam se engendram mutuamente?
de comportar em todos os casos essa — Diria.
mesma necessidade, tanto de engen — Que é, por conseguinte, o que
drar-se mutuamente como de admitir provém do que está vivo?
em cada termo uma geração dirigida — O que está morto.
para o outro? — E do que está morto, que é que
— Sim, perfeitamente. provém?
— Por conseguinte, que deveremos — Impossível — disse Cebes —
dizer? — continuou Sócrates. — não admitir que é o que está vivo.
Acaso “viver” não possui um contrá — E, pois, de coisas mortas que
rio, assim como “estar acordado” tem provêm, Cebes, as que têm vida, e,
por contrário “estar dormindo” ? com elas, os seres vivos?
— É absolutamente necessário que — É claro.
tenha. — Quer dizer, então, que nossas
— Qual é? almas existem no Hades19.
— “Estar morto” . , — Parece mui verossímil.
— Não é verdade que esses estados — Das duas gerações, enfim, que
se engendram um ao outro, já que são aqui temos, não há pelo menos uma
contrários, e também que a geração que não nos deixe dúvida sobre sua
entre um e outro é dupla, já que são realidade? Por que o termo “morrer” ,
dois? . penso, está fora de dúvida! Não está?
— Assim é ! — Sim, é absolutamente certo.
— Ora pois — continuou Sócrates — Que faremos, então? Não o
— vou mencionar-te um dos dois compensaremos pela geração contrá
pares de contrários, de que há pouco ria? Porque, se não fosse assim, a
falei, e sua dupla geração; e tu depois Natureza seria co x a! Ou, pelo contrá
me indicarás o outro par. Primeiro falo rio, será preciso supor uma geração
eu: dum lado, direi “estar dormindo” , contrária ao “morrer” ?
do outro, “estar acordado” ; em segui — Isso é, segundo penso, absoluta
da, é de “estar dormindo” que provém mente necessário.
“estar acordado”, e de “estar acorda 19 Hades. Para Platão este nom e tem aqui a
significação de Invisível, o pais do Invisível, o
do” que provém “estar dormindo” ; reino das sombras. (N . d o T .)
FÉDON 81
reais: o reviver, o fato de que os vivos menos dessa maneira, não se consiga
provêm dos mortos, de que as almas convencer-te! Vê se, encarando a ques
dos mortos têm existência, e — insisto tão de outra forma, poderás comparti
* neste ponto — de que a sorte das lhar de minha opinião. Porque, o que
almas boas é. melhor, e pior a das parece difícil de ser compreendido é
almas ru in s! precisamente de que maneira o que
— Em verdade, Sócrates — tornou chamamos aprender seja apenas recor
então Cebes — é precisamente esse dar.
também o sentido daquele famoso — Incredulidade a respeito disso?
argumento que (suposto seja verda —■ volveu Símias; — não, não a
deiro) tens o hábito de citar amiúde. tenho ! Sinto apenas necessidade de ser
Aprender, diz ele, não é outra coisa posto nesse estado de que fala o argu
senão recordar22. Se esse argumento é mento, e de que me façam recordar.
de fato verdadeiro, não há dúvida que, Na verdade, Cebes contribuiu; um
numa época anterior, tenhamos apren pouco, com a exposição que fez, para
dido aquilo de que no presente nos despertar minhas lembranças e con
73 d recordamos. Ora, tal não poderia vencer-me. Mas nem por isso, Sócra
acontecer se nossa alma não existisse tes, deixarei de ouvir, com prazer, a
em algum lugar antes de assumir, pela tua explicação.
' geração, a forma humana. Por conse ‘— Aqui a tens: estamos sem dúvi
guinte, ainda por esta razão é veros da de acordo em que para haver recor
símil que a alma seja imortal. dação de alguma coisa num momento
■ Mas, Cebes — atalhou por sua qualquer é preciso ter sabido antes
vez Símias — de que modo se poderá essa coisa?
provar isso? Faze com que me lembre, — Sim.
pois, de momento, não consigo- recor — E, por conseguinte, sobre o
dar-me muito bem desse argumento. ponto que segue estamos também de
— Temos disso — volveu. Cebes acordo: que o saber, se se vem a pro
— um a prova magnífica: interroga-se duzir em certas circunstâncias, é uma
um homem. Se as perguntas são bem rememoração? Que circunstâncias
conduzidas, por si mesmo ele dirá, de sejam essas, vou dizer-te: se vemos ou
modo exato, como as coisas realmente ouvimos alguma coisa, ou se experi
são. N o entanto, esse homem seria mentamos não importa que outra espé
incapaz de assim fazer se sobre .essas cie de sensação, não é somente a coisa
coisas não possuísse um conhecimento em questão que conhecemos, mas
e um reto ju ízo ! Passa-se depois às temos também a imagem de uma outra
figuras geométricas e a outros meios coisa, que não é objeto do mesmo
b do mesmo gênero, e assim se obtém, saber, mas de um outro. Então, dize-
com toda a certeza possível, que as me, não temos razão em pretender que
coisas de fato assim se passam. aí houve uma recordação, e uma recor
— Entretanto — disse Sócrates — dação daquilo mesmo de que tivemos a
é muito provável, Símias, que, pelo imagem?
— Como assim? •
22 Cf. M e n ã o , 80 (N . d o T .) — Tomemos alguns exemplos. São
FÉDON 83
coisas muito diferentes, penso, conhe sua semelhança com aquilo de que nos
cer um homem e conhecer uma lira? recordamos?
— Efetivamente. — Sim, isso é necessário.
— Ignoras tu que os amantes, à — Examine agora — tornou Só
vista duma lira, duma vestimenta ou de crates — se não é deste modo que isso
qualquer outro objeto de que seus ama se passa: afirmamos sem dúvida que
dos habitualmente se servem, rememo há um igual em si; não me refiro à
ram a própria imagem do amado a igualdade entre um pedaço de pau e
quem esse objeto pertenceu? Ora, aqui outro pedaço de pau, entre uma pedra
tenlos o que vem a ser uma recorda e outra pedra, nem a nada, enfim, do
ção. D a mesma forma, também acon mesmo gênero; mas a alguma coisa
tece que, se alguém vê Símias, muitas que, comparada a tudo isso, disso,
vezes isso lhe faz recordar Cebes. E porém se distingue: — o Igual em si
poder-se-iam encontrar milhares de mesmo. Deveremos afirmar que ele
exemplos análogos. existe, ou negar?
— Milhares, seguramente, por — Seguramente que devemos afir
Z eus! — assentiu Símias. má-lo, por Z eu s! — disse Cebes. —
— Assim, pois, um caso desse gê Muito b em !
nero constitui uma recordação, princi — E sabemos também o que ele é
palmente quando se trata de coisas que em si mesmo?
o tempo ou a distração já nos tinham — Também.
feito esquecer, não é verdade? — E onde obtemos o conhecimento
— Absolutamente certo. que dele temos? Acaso não foi dessas
— Mas responde-me — continuou coisas de que falamos há pouco?
Sócrates: — ao ver o desenho dum Acaso não foram esses pedaços de
cavalo, o desenho de uma lira, pode-se pau, essas pedras, ou outras coisas
recordar um homem? Ao ver um retra semelhantes, cuja igualdade, percebida
to de Símias, recordar-se de Cebes? por nós, nos fez pensar nesse igual que
— Certo que pode. entretanto é distinto delas? Ou dirás
— Ao ver um retrato de Símias, não que ao teu parecer ele não se distingue
é fácil recordar-se do próprio Símias? delas? Pois bem; examina outra vez a
— Seguramente que sim ! questão, mas sob este outro aspecto:
— Assim — não é verdade? — o não acontece que pedaços de pau ou
ponto de partida da recordação em pedras, sem se modificarem, se apre
todos esses casos é, algumas vezes, um sentem a nós ora como iguais, ora
semelhante, outras vezes também um como desiguais?
dessemelhante? — Acontece, realmente.
— É verdade. — Mas então? O Igual em si acaso
— Mas, considerando o caso em te pareceu em alguma ocasião desi
que o ^emçlhante nos sirva de ponto de gual, isto é, a igualdade uma desigual
partida para uma recordação qualquer, dade?
não somos forçosamente levados a — Jamais, Sócrates!
reflexões como esta: falta ou não algu — Logo, a igualdade dessas coisas
ma coisa ao objeto considerado, em não é o mesmo que o Igual em si.
84 PLATÃO
— Mas responde, eis aqui uma mesmo em que adquirimos tais conhe
escolha que estás em condições de cimentos; pois essa é a ocasião que nos
fazer, dizendo-me a seu respeito qual é resta.
a tua opinião: um homem que sabe é — É verdade, meu amigo; mas
capaz, ou não; de dar razões daquilo então, em que outra ocasião nós os
que sabe? perdemos? É certo que não dispú
— Necessariamente, Sócrates! nhamos delés quando nascemos, e a
— Crês, além disso, que toda a este respeito estávamos de acordo faz
gente seja capaz de explicar o que são pouco. Assim, ou nós os perdemos no
os seres de que há pouco nos ocupáva momento mesmo em que os adquiri
mos? mos; ou acaso podes alegar algum
— A h ! Bem o desejaria eu — res outro momento? '
pondeu Símias. — Mas receio, pelo — Impossível, Sócrates! A verdade
contrário, que amanhã não haja mais é que, sem o perceber, falei leviana
um só homem no mundo que esteja em mente.
condições de sair-se dignamente dessa — Em conseqüência, Símias, se
tarefa.2 4 existe, como incessantemente o temos
— Daí resulta pelo menos, Símias, repetido, um Belp, um Bom, e tudo o
que, no teu entender, o conhecimento mais que tem a mesma espécie de reali
das idéias não pertence a todo o dade; se é a essa realidade que relacio
mundo? namos tudo o que nos provém dos sen
—• Absolutamente não ! tidos, porque descobrimos que ela já
— Vale então dizer que os homens existia, e que era nossa; se, enfim, à
se recordam daquilo que aprenderam realidade em questão comparamos
num tempo passado? . esses fenômenos — então, em virtude
— Necessariamente. da mesma necessidade que fundamenta
— E que tempo foi esse em que a existência de tudo isso, podemos
nossas -almas adquiriram saber acerca concluir que nossa alma existia já
desses seres? Seguramente, não havia antes do nascimento. Suponhamos, ao
de ser a datar de nosso nascimento contrário, que tudo isso não exista.
humano? Não seria, então, pura perda o que esti
vemos a demonstrar? Não é desta
— Seguramente que não !
forma que se apresenta a situação?
— Seria pois, anteriormente?
Não há acaso uma igual necessidade
— Sim. -
de existência, tanto para esse mundo
— As almas, Símias, existiam, por
ideal, como também para nossas
conseguinte, antes de sua existência
almas, mesmo antes de termos nasci
numa forma humana, separadas dos
do, e a não-existência dó primeiro
corpos e dotadas de pensamento?
termo não implica a nãorexistência do
— A menos, Sócrates, que o ins
segundo?
tante de nosso nascimento seja aquele
— Não há quem sinta, Sócrates,
•24 G lorificação um tanto exagerada de Sócra mais do que eu — disse Símias — que
tes: amanhã Sócrates estará m orto, e após sua a necessidade é idêntica em ambos os
m orte não se há de encontrar mais um bom
filó so fo . (N . do T .) casos! Que bela base para uma prova,
FÉDON 87
morte o mesmo medo que lhe infun — Ah, é bom ouvir isto ! — disse
dem as assombrações. Cebes.
— Mas é preciso então — replicou — Não é uma questão, mais ou
Sócrates — que lhe façam exorcismos menos como esta, a que temos de
todos os dias, até que as encantações o propor-nos: quais são as coisas que
tenham libertado disso uma vez por são suscetíveis de decomposição? A
to d as!2 6 propósito de que espécie de coisas
is a. — Mas, Sócrates, onde poderemos devemos temer esse estado, e p a ra que
encontrar contra esse gênero de terro espécie de seres isso não acontece? De
res um bom exorcista, uma vez que pois disso, teremos ainda de examinar
estás prestes a deixar-nos? qual dos dois é o caso da alma, para
— A Grécia, Cebes, é bem grande finalmente, conforme o resultado que
— respondeu Sócrates — e nela não obtivermos, haurir daí confiança ou
faltarão homens capazes! E, além temor com respeito à nossa alma.
— É verdade.
dela, quantas nações bárbaras exis
tem !27 Dirigi vossa busca por entre — Não é, pois, às coisas compostas
ou àquelas cuja natureza é composta,
todos esses homens; e na procura de
que cabe corresponder precisamente a
um tal exorcista não poupeis trabalhos
composição? Mas, se acontece haver
nem bens, repetindo convosco, a cada
alguma coisa não-composta, não é só a
momento, que nada há em que possais
ela que convém, mais do que a qual
com mais proveito gastar a vossa for
quer outra coisa, o escapar a esse esta
tuna! Mas, antes disso, é necessário
do de decomposição?29
que procureis entre vós mesmos, pois — Sim — disse Cebes — é o que
b talvez vos seja muito difícil encontrar penso; assim deve ser.
uma pessoa que esteja em melhores — Dize-me então: os seres que
condições do que vós para realizar sempre se conservam imutáveis e sem
essa tarefa!2 8 pre se comportam do mesmo modo,
— Pois bem, assim farem os! — não é altamente verossímil que sejam
disse Cebes. — Agora voltemos à esses precisamente os seres que não se
investigação, no ponto em que a deixa decompõem? Ao contrário, o que ja
mos, a menos que isso te cause mais é o mesmo, o que ora se com
aborrecimento. porta de um modo, ora de outro, é ou
— Muito ao contrário, isso agra não é isso o que chamamos composto?
da-me muito ! Por que havia de ser de — Segundo penso, é.
outro modo? — Passemos, agora, àquilo para
onde nos havia encaminhado a argu
26 A lusão aos costum es populares, que acredi mentação precedente! Essa- essência, d
tavam na possibilidade de expulsar fantasmas
e assom brações mediante a recitação cantada
de cuja existência falamos em nossas
de certas fórm ulas m ágicas. (N . d o T .) interrogações e em nossas respostas,
27 N ações bárbaras quer dizer nações estran
geiras, e não nações incultas; Platão não igno 29 Opinião dos filósofos A naxágoras e Em pé-
rava que os egípcios possuíam doutrinas muito docles: o transformar-se resulta da com posi
im portantes acerca da ciência. (N . d o T .) ção de certas substâncias simples; o desapare
28 D e fato foram os discípulos de Sócrates, cer nada mais é do que a decom posição ou
que constituíram a m ais rica sem enteira de desagregação destas substâncias anteriormente
doutrinas e escolas da antiguidade. (N . d o T .) unidas num corpo com posto. (N . d o T .)
FÉDON 89
— E por que não, com efeito? lugar, um lugar que lhe é semelhante,
— Mas a esta altura podes fazer a lugar nobre, lugar puro, lugar invisível,
seguinte reflexão: depois da morte do o verdadeiro país de Hades, para cha
homem, o que nele há de visível, seu má-lo por seu verdadeiro nome30,
corpo, a parte que continua visível, ou, perto do Deus bom e sábio, lá para
por outra, o que chamamos cadáver, a onde minha alma deverá encaminhar-
isto é que convém dissolver-se, desa se dentro em breve, se Deus quiser; .
gregar-se, dissipar-se em fumo, e entre então há de ser essa alma, digo, cujos
tanto nada de tudo isso lhe acontece caracteres e constituição natural aca
imediatamente. Bem ao contrário, ele bamos de ver, então há de ser ela que,
resiste durante um tempo relativa tão depressa se separe do corpo, se
mente lòngo. Sobretudo para um corpo dispersará e aniquilará, assim como
que, ao morrer, está cheio de vida e em pretende o comum dos homens? Não, - *
todo o seu viço, tal duração é de fato muito ao contrário, meu caro Cebes,
muito grande. Ademais, é fato que, se meu caro Símias; muito ao contrário,
for reduzido e embalsamado como as vede o que acontece.
múmias do Egito, sua conservação
será quase perfeita durante uma dura 30 A lusão à filosofia contemporânea de Platão:
ção, por assim dizer, incalculável. os gregos derivavam a palavra . ' l5vk
(H ades)_ de a e iStm encontra
Além disso há, mesmo num corpo em ram nesta palavra a significação de invisível,
putrefação, certas partes, como os explicando sim plesm ente que H ades, com o rei
dos m ortos, m ora com as almas destes debaixo
ossos, os tendões e outras do mesmo da terra, e é por isso invisível aos hom ens e
gênero, que são, pode-se dizer, imor aos outros deuses. M as Platão m odifica a acep
ção: H ades é o “invisível verdadeiro”, isto é,
tais. Não é verdade? a substância invariável, eterna e im perceptível
— É . - aos sentidos, m as 'captável pelo espírito, que
depois da m orte se aparta dos obstáculos da
— Mas então a alma, aquilo que é matéria (corp o) e vê diretamente o H ades,
invisível e que se dirige para um outro isto é, o ser eterno. (N . d o T .)
“Suponhamos que seja pura a alma tado que ela tendeu. O que equivale
que se separa do corpo: deste ela nada exatamente a dizer que ela se ocupa,
leva consigo, pela simples razão que, no bom sentido, com a filosofia, e que,
longe de ter mantido com ele durante a de fato, sem dificuldade se prepara ai«
vida um contato voluntário, ela conse para morrer. Poder-se-á dizer, pois, de
guiu, evitando-o, concentrar-se em si uma tal conduta, que ela não é um
mesma e sobre si mesma, e também exercício para a morte?”
pela razão de que foi para esse resul . — Sim, realmente é isso.
92; PLATÃO
A função da filosofia
“Pois bem, aí estão, Símias, meu que lhes confere o infortúnio, não é
amigo, e tu, Cebes, os motivos pelos capaz de atemorizá-los, como faz aos
quais os que, no exato sentido da pala que amam o poder e as honras. Por
vra, se ocupam com a filosofia, perma isso, eles permanecem afastados dessa
necendo afastados de todos os desejos espécie de desejos.”
corporais sem exceção, mantendo uma — Aliás, o contrário de tudo isso,
atitude firme e não se entregando às Sócrates, é que lhes ficaria m a l! . —
suas solicitações. A perda de seu patri acrescenta Cebes.
mônio, a - pobreza não lhes infunde — De fato, por Z eu s! Eis aí por
medo, como à multidão dos amigos que motivo se aparta de todas essas
das riquezas; e, da mesma forma, a pessoas, Cebes, o homem que tem al
existência sem honrarias e sem glória, guma preocupação com sua alma e
94 PLATÃO.
cuja vida não é gasta em mimar o Que não creiam enfim senao no pró
corpo. Seu caminho não se confunde prio testemunho desde que tenham
com o daqueles que não sabem para examinado bem o que cada coisa é na
onde vão. Acreditando que não deve sua essência e que se persuadam de
agir em sentido contrário à filosofia, que as coisas que são examinadas por
nem ao que ela proporciona para liber meio de um intermediário qualquer
tar-nos e purificar-nos, esse homem nada possuem de verdadeiro, e perten
volta-se para o lado dela e segue-a na cem ao gênero do sensível e do visível
rota que ela lhe aponta. enquanto que o que elas vêem pelos
— De que modo, Sócrates? seus próprios meios é inteligível e, ao
— Vou dizer-te. É uma coisa bem mesmo tempo, invisível!
conhecida dos amigos do saber, que “Contra essa libertação a alma do
sua alma, quando foi tomada sob os verdadeiro filósofo persuade-se de que
cuidados da filosofia, .se encontrava não se deve opor, e por isso se afasta
completamente acorrentada a um tanto quanto possível dos prazeres,
corpo e como que colada a ele; que o assim como dos desejos, dos incômo
corpo constituía para a alma uma dos e dos terrores. Ela sabe com efeito
espécie de prisão, através da qual'ela que, quando sentimos com intensidade
devia forçosamente encarar as realida um prazer, um incômodo, um terror ou
des, ao invés de fazê-lo por seus pró um desejo, por maior que seja o mal
prios meios e através de si mesma; que, que possamos sofrer riesse momento,
enfim, ela estava submersa numa igno entre todos os que se podem imaginar
rância absoluta. E o que é maravilhoso — cair doente, por exemplo, ou arrui
nesta prisão, a filosofia bem o perce nar-se por causa de suas paixões — ela
beu, é que ela é obra do desejo, e quem sabe que não há nenhum desses males
concorre para apertar ainda mais as que não seja ultrapassado por aquele
suas cadeias é a própria pessoa! que é o mal supremo; é deste mal que
Assim, digo, o que os amigos do saber sofremos, e não o notam os!”
não ignoram é que, uma vez tomadas — E que mal é esse, Sócrates?
sob seus cuidados as almas cujas con — É que em toda alma humana,
dições são estas, a filosofia entra com forçosamente, a intensidade do prazer
doçura a éxplicar-lhes a.s suas razões, a ou do sofrimento, a propósito disto ou
libertá-las, mostrando-lhes para isso de daquilo, se faz acompanhar da crença
quantas ilusões está inçado o estudo de que o objeto dessa emoção é tudo o
que é feito por intermédio dos olhos, que há de mais real e verdadeiro, em
tanto como o que se faz pelo ouvido e bora tal não aconteça. Esse é o efeito
pelos outros sentidos; persuadindo-as de todas as coisas visíveis, não é?
ainda a que se livrem deles, a que evi — Efetivamente.
tem deles servir-se, pelo menos quando — E não é em tais afetos que no
não houver imperiosa necessidade; mais alto grau a alma fica sujeita às
recomendo-lhes que se concentrem e se cadeias do corpo?
voltem para si, não confiando em nada — De que modo, dize?
mais do que em si mesmas, qualquer — Assim: todo prazer e todo sofri
que seja o objeto de seu pensamento. mento possuem uma espécie de cravo
FÉDON 95
contrário, é isto mesmo o que vos nenhuma ave canta quando sente fome
d embaraça, nada de hesitações! Falai, ou frio, ou quando sente dor; não, nem
dizei, o que vos parecer necessário e, mesmo o rouxinol, a andorinha e a
por vossa vez, tomai-me por auxiliar, poupa, que são precisamente, segundo
se acreditais que vos será mais fácil a tradição, os pássaros cujo canto é
sair das dificuldades com o meu um lamento dolorido. Para mim, não é
auxílio! a dor que faz com que eles cantem,
— Pois bem, Sócrates — respon-como não é ela que faz cantar os cis
"deu Símias — vou dizer-te a verdade; nes3 2. Estes, muito ao contrário, pro
já faz um bom tempo que, sentindo vavelmente porque são as aves de
certa dificuldade a propósito do teu Apoio, possuem um dom divinatóriq, e
argumento, cada um de nós está procu é a presciência dos bens existentes íno
rando fazer com que o outro se decida Hades que os faz, no dia de sua morte,
e te interrogue; temos, com efeito, cantar de modo tão sublime, como ja
muito desejo de ouvir-te falar, mas mais o fizeram no curso anterior de
receamos também causar-te incômodo sua existência. Ora, eu, quanto a mim,
e angústia, pois levamos em conta a penso ter a mesma missão que os cis
situação penosa em que te encontras! nes; creio que estou consagrado ao
Ouvindo isso, Sócrates teve um leve mesmo Deus, que os cisnes não me
sorriso: — Misericórdia, Símias! superam na faculdade divinatória due
Como me seria difícil e incômodo con- recebi de nosso Soberano33, e que, do
e vencer a outros homens de que não mesmo modo, não sinto mais tristeza
considero penosa a situação em que do que ele ao separar-me desta vida.
atualmente me encontro, uma vez que Essas são as cousas que deveis ter em
não consigo convencer disso nem avós mente quando quiserdes falar e propor
próprios, e que, além disso, tendes a as questões que desejardes, tanto quan
desconfiança de que nesta ocasião eü to o permitirem os Onze 3 4 em nome
esteja possuído de uma enorme triste do povo de Atenas.
za, como nunca senti em minha vida
— Alegra-me, Sócrates, esse teu
passada! Isso, possivelmente, provém
modo de falar! — disse Símias. —
de me julgardes menos bem dotado do
Vou, portanto, expor-te o que está me
que os cisnes para a adivinhação.
embaraçando, e Clebes, depois, dirá
Realmente, quando eles sentem aproxi
por que motivo não aceita o que até
mar-se a hora da morte, o canto que
agora foi dito. Meu ponto de vista, Só
85 a antes cantavám se torna mais fre
crates, a respeito de questões deste gê-
qüente e mais belo do que nunca, pela
alegria que sentem ao ver aproximar-se 32 Há aqui alusão a uma antiga lenda da Ática,
o momento em que irão para junto do segundo a qual a andorinha e o rouxinol são
Procne e Filomela, filhas do rei Pandião, de
Deus a que servem. Mas os homens, Atenas. (N. d o T .)
com o pavor que têm da morte, calu 33 O cisne é a ave consagrada a Apoio, deus
da adivinhação. Sócrates aqui se compara poe
niam até os cisnes: estes estão, dizem, ticamente ao cisne e considera como seu derra
a lamentar a sua morte, e a dor é que deiro canto a doutrina sobre a imortalidade da
alma. (N. d o T .)
lhes inspira aquele canto supremo. No 34 Funcionários encarregados da execução dos
entanto, ninguém se lembra de que condenados e de fiscalizar a prisão. (N. do T .)
FÉDON 97
logo destruída como as outras harmo não tenha sido (se pelo menos não é
nias, quer se realizem em sons, quer presunção afirmá-lo) demonstrado de
em outras formas de arte; ao passo que modo plenamente satisfatório. Mas,
o despojo corporal resiste ainda por pretender que depois de nossa morte a
muito tempo, até o dia em que o tenha alma continue a existir, eis um a coisa
d destruído o fogo ou a putrefação. Exa com que não estou de acordo. Por
mina, pois, Sócrates, o que poderíamos certo, a alma 6. uma entidade mais
objetar a essa teoria segundo a qual a vigorosa e durável que o corpo; e isso
alma, sendo a combinação dos elemen não concedo à objeção levantada por
tos de que é feito o corpo, deve ser des- Símias, pois minha convicção é a de
truídá em primeiro lugar quando so que, em todos os pontos, a superiori
brevêm aquilo a que chamamos morte. dade da alma é imensa. “Então por que
Sócrates teve aquele olhar pene motivo, dir-me-ão, permaneces ainda
trante que, em muitas circunstâncias, em dúvida? Não reconheces que, uma
lhe era habitual, e sorriu: — Há algu vez morto o homem, o que continua a
ma verdade, palavra!, no que Símias subsistir é precisamente o que há de
acaba de dizer! Com efeito, se há den mais frágil? E quanto ao que é mais
tre vós alguém que esteja menos atur durável não achas necessário que con
dido do que eu por suas palavras, por tinue a viver durante esse tempo?”
que não lhe responde? Pois é um temí Examina agora se minha linguagem
vel golpe que ele parece ter desfechado encerra alguma verdade, pois eu, natu
ralmente, assim como Símias, sinto
contra as minhas provas! Contudo,
necessidade duma imagem para que
* segundo penso, antes de responder-lhe
me possa exprimir. P ara mim, com
devemos primeiramente ouvir dos lá
efeito, seria isso o mesmo que dizer
bios de Cebes o que este por sua vez
alguém a respeito da morte dum velho
reprova no meu argumento. Assim
tecelão: “ O bom do velho tecelão não
teremos tempo para refletir sobre o que está morto; ele continua a viver em
devemos dizer. Depois disso, ouvidos qualquer parte, e, como prova, aqui
ambos, por-nos-emos acordes com está o vestuário que ele usava, e que ele
eles, se julgarmos que seu canto está próprio tecera, conservado em bom es
bem cantado; senão, será porque o tado e não destruído.” E a quem não
processo do argumento deve ser revisa concordasse, poderia fazer esta per
do. Pois bem, Cebes, avante! Fala, por gunta: “Qual dos dois, em seu gênero,
tua vez, sobre o que te preocupa. é mais durável: o homem ou a veste de
— P ara mim — disse então Cebes que se serve e traz no corpo?” Então,
— é bem claro que o argumento ainda
baseado na resposta de que muito mais
se encontra na mesma situação e conti durável é o homem, imaginaria ter
nua a ser passível das mesmas obje- demonstrado que, com maior razão
87 a ções de há pouco. Que nossa alma ainda, o homem deve permanecer intei
realmente existiu antes de assumir a ro em alguma parte, pois o que* é
forma que agora possui, isso não sou menos durável do que ele não foi
obrigado a admitir. N ada aí existe que destruído!
vá contra o meu modo de pensar e que “Contudo, segundo penso, as coisas
FÉDON 99
mim mesmo, disso. Penso, pois, caro dèle, pois pensa que aquela nada mais
amigo, como um egoísta. Se é verdade è do que uma espécie de harmonia.
o que digo, então é bom estar conven Quanto a Cebes, concede, por seu
cido; se, pelo contrário, não há espe lado, que a alma dure mais do que o
rança- para quem morre, eu, pelo corpo, mas, segundo pensa, é bem difí
menos, não terei tomado meus últimos cil sáber se a alma, depois de haver
instantes desagradáveis para meus gasto muitos corpos sucessivamente,
amigos, obrigando-os a suportar mi não se dissolve ao sair do último, e se a
nhas lamentações. De resto, não terei morte não consiste justamente nisto,
muito tempo para meditar nisso (o que na destruição da alma, pois que o
seria efetivamente desagradável). Mais corpo, esse, está continuamente des
um pouco e logo tudo estará acabado. truindo-se. Não é isto, Símias e Cebes,
Assim, preparado com esse espírito, o que devemos examinar?
Símias e Cebes, entro na discussão. Ambos declararam que sim.
Vós, entretanto, se me acreditais, cui — Ora — tom ou Sócrates — , não
dai menos de Sócrates que da verdade ! aceitais o conjunto das afirmações que
Concordai comigo, se achardes que fizemos ou que apenas aceitais umas e
digo a verdade; se não, objetai-me a outras, não?
cada argumento, a fim de que —• ilu — Umas sim, outras não — res
dindo a vós e a mim também, com meu ponderam os dois.
entusiasmo — eu não me vá daqui, —: Que pensais a respeito da dou
como a abelha, deixando o ferrão ! 41 trina segundo a qual instruir-se é ape
“Então, avante! Antes de tudo, nas recordar e, que sendo assim, é
porém, fazei-me recordar bem o que necessário que nossa alma, antes de vir
dissestes, se notardes que não me encadear-se em nosso corpo, tenha vi
recordo. Para Símias, salvo errò meu, vido primeiramente noutro lugar?
o objeto de sua dúvida e dos seus — Quanto a mim — respondeu
temores é o de que a alma, sendo algo Cebes — estou perfeitamente persua
de mais belo e mais divino dò que o dido disso, e que não há pensamento
corpo, venha a corromper-se antes ao qual eu mais ligado esteja.
41A abelha, que deixa seu ferrão na ferida, — Eu também — ajuntou Símias
provoca dores. Assim. Sócrates, que faria m al e — ficaria muito admirado se viesse a
causaria sofrim entos a seus discípulos se se
fosse, deixando-lhes erros. (N . d o T .) mudar de opinião a' esse respeito.
104 PLATÃO
Resposta a Símias
“Suporta, coração! Infelicidades, já suma como uma coisa por demais divi
as suportaste bem piores!” 4 4 • na para se comparar à harmonia?
— Crês que ele teria dito isso se — Por Zeus! é isso justamente o
houvesse considerado a alma como que penso, Sócrates.
simples harmonia, inteiramente sujeita — Logo, meu excelente amigo, não
às inclinações do corpo, e não como é coisa assisada considerar a alma
algo que rege e governa o corpo, em como uma simples harmonia; pois,
44 O autor recorre aqui a H om ero, divino poeta, assim, não ficaríamos de acordo nem
porque este dístico se encaixa perfeitam ente na
tese que vem desenvolvendo no diálogo; mas em
com Homero, divino poeta, nem co
outras obras Platão o censura, deixando de lhe nosco mesmos. •
chamar divino e sem reconhecê-lo com o autori
dade com a qual é conveniente “estarmos de
— E justamente isso — concedeu
acordo”. (N . do T .) Símias.
Resposta a Cebes
Ora, o essencial do que queres saber é localizar-se num corpo humano marca
isto: desejas que se demonstre que o- início de seu fim, e uma espécie de
nossa alma é indestrutível e imortal; doença; por isso, é num estado de
sem o que, para o filósofo que está pró miséria que deve viver essa existência,
ximo de morrer, a confiança, a convic e, quando a termina por aquilo a que
ção de ir encontrar no além, depois da chamamos morte, deve ela ser des
morte, um a felicidade que jamais teria truída. É indiferente, como dizes, saber
alcançado se vivesse doutra forma, se ela se localiza em corpos uma só ou
essa confiança seria, pensas, desarra muitas vezes; cada um de nós tem
razão de recear por sua alma. Quem
zoada e tola. M ostrar que a alma ê não tem certeza., nem sabe provar que
forte e semelhante à divindade, e que a alma é imortal, deve temer a morte,
existia antes de nos havermos tornado
se não for tolo. Ê mais ou menos isto,
homens, pode ser prova, como dizes, caro Cebes, o que dizes? Repito-o
não de que a alma é imortal, mas ape propositadamente, para que não olvi
nas de que ela dura muito, de que sua demos nada e para que acrescentes ou
existência anterior preencheu um tires alguma coisa, se quiseres.
tempo incalculável com uma multidão Então Cebes — N ada tenho, no
enorme de conhecimentos e de ações; o momento, que acrescentar, nem que
que, no entanto, não lhe confere imor tirar. É aquilo justamente o que preten
talidade, pois o próprio fato de vir do.
O Problema da Física
A esta altura fez Sócrates uma longa em jn inha mocidade senti-me apaixo
pausa, absorto em alguma reflexão. nado .por esse gênero de estudos a que
Depois disse — Não é coisa sem dão o nome de “ exame da natureza” ;
importância, Cebes, o que procuras. A parecia-me admirável, com efeito, co
causa da geração e da corrupção de nhecer as causas de tudo, saber por
todas as coisas, tal é a questão que que tudo vem à existência, por que pe
devemos examinar com cuidado. Se o rece e por que existe. Muitas vezes
desejares, poderei relatar-te detalhada detive-me seriamente a examinar ques
mente as minhas experiências a esse tões como esta:: se, como alguns pre
respeito. E se vires que uma ou outra tendem, os seres vivos se originam de
coisa do que eu disser é útil aproveita- uma putrefação em que tomam parte o
a para reforçar tua tese. frio e o calor; se é o sangue que nos faz
— Sim — disse Cebes — é justa pensar, ou o ar, ou o fogo, ou quem
mente o que eu quero. sabe se nada disso, mas sim o próprio
— Escuta, então, o que vou contar: cérebro, que nos dá as sensações de
FÉDON 109
ouvir, ver e cheirar, das quais resulta é visto ao lado dum pequeno, ele é de
riam por sua vez a memória e a opi uma cabeça50 maior do que o peque- c
nião, ao passo que destas, quando no, e, da mesma forma, um cavalo é
adquirem estabilidade, nasceria o co maior do que outro. E o que é mais evi
nhecimento 4 9. Examinei, inversa- dente: o número “dez” me parecia
c mente, a maneira como tudo isso se maior do que o número “oito” , preci
corrompe, e, também, os fenômenos samente por causa do acréscimo de
que se passam na abóbada celeste e na “dois” , e o tamanho de dois côvados
terra. E acabei por me convencer de me parecia ser maior do que o de um
que em face dessas pesquisas eu era côvado por este ser a metade daquele.
duma inaptidão notável! Vou contar-te — E agora — perguntou Cebes —
uma ocorrência que bem esclarece qual é a tua opinião a esse respeito?
minha situação naquele tempo. Havia — Por Zeus, atualmente estou
coisas acerca das quais eu antes pos muito lônge de saber a causa de qual- p? „
suía um conhecimento certo, ao menos quer dessas coisas! Não sei resolver
na minha opinião, e na dos outros. nem sequer se quando se adiciona uma
Pois bem, essa espécie de estudo che unidade a outra, a unidade à qual foi
gou a produzir em mim uma tal acrescentada a primeira torna-se duas,
cegueira que desaprendi até aquelas ou se é a acrescentada e a outra que
coisas que antes eu imaginava saber, assim se tom am duas pelo ato de adi
como, por exemplo, o conhecimento ção. Fico adm irado! Quando as duas
que eu julgava ter das causas que unidades estavam separadas uma da
determinam o crescimento do homem ! outra, cada uma era uma, e não havia
d Outrora eu acreditava, como é claro dois; logo, porém, que se aproximaram
para todos, que isso acontece em virtu uma da outra, esse encontro tornou-se
de do comer e do beber: adicionando, a causa da formação do dois. Também
pelos alimentos, carne a carne e ossos não entendo por que motivo, quando
aos ossos, e em geral substância seme alguém divide uma unidade, esse ato
lhante a substância semelhante, acon de divisão faz com esta coisa que era
tece que o volume, antes pequeno, uma se transforme pela separação em
aumenta, e assim, o homem pequeno se duas ! Essa coisa que produz duas uni- b
torna grande. Desse modo pensava eu dades é contrária à outra: antes, acres
naquela época. Não achas tu que isso centou-se uma coisa a outra — agora,
era razoável? afasta-se e separa-se uma de o u tra51.
— Pelo que me parece, sim — res Nem sequer sei por que um é u m !
pondeu Cebes. Enfim, e para dizer tudo, não sei abso
— Mas repara no seguinte: naquele lutamente como qualquer coisa tem
tempo, eu também achava razoável origem, desaparece ou existe, segundo
pensar que quando um homem grande este procedimento metodológico. Esco
49 Platão, quer dizer aqui que em sua moci
lhi então outro método, pois, de qual
dade se dedicõu ao estudo de todas as teorias quer modo, este não me serve. Ora,
da filosofia naturalista pré-socrática. N ão há
dúvida de que ele coloca nos lábios de Sócra 5° O ta'manho da cabeça é usado aqui como
tes a história de sua própria evolução intelec medida. (N. d o T .)
tual. Cf. Burnet, E arly G reek P hilosophy. 51 Crítica aos filósofos eleáticos, que abusam
(N . do T.) às vezes da dialética. (N. d o T .)
110 PLATÃO
certo dia ouvi alguém que lia um livro relativas como de suas revoluções e de
de Anaxágoras. Dizia este que “o espí outros movimentos que lhes são pró
rito é o ordenador e a causa de todas prios: Nunca supus que depois de ele
e as coisas” . Isso me causou alegria. haver dito que o Espírito os havia
Pareceu-me que havia, sob certo aspec ordenado, ele pudesse dar-me outra
to, vantagem em considerar o espírito causa além dessa que é a melhor e que . b
como,causa universal. Se assim é, pen é a que serve a cada uma em particular
sei eu, a inteligência ou espírito deve assim como ao conjunto.
ter ordenado tudo e tudo feito da me Grandes eram as minhas esperan
lhor forma. Desse modo, se alguém ças! Pus-me logo a ler, com muita
desejar encontrar a causa de cada atenção e entusiasmo os seus livros.
coisa, segundo a qual nasce, perece ou Lia o mais depressa que podia a fim de
existe, deve encontrar, a respeito, qual conhecer o que era o melhor e o pior.
é a melhor maneira seja de ela existir, Mas, meu grande amigo, bem depressa
seja de sofrer ou produzir qualquer essa maravilhosa esperança se afas
d ação. E pareceu-me ainda que a única tava de m im ! À medida que avançava
coisa que o homem deve procurar é e ia estudando mais e mais, notava que
aquilo que é melhor e mais perfeito, esse homem não fazia nenhum uso do
porque desde que ele tenha encontrado espírito nem lhe atribuía papel algum
isso, necessariamente terá encontrado como causa na ordem do universo, c
o que é o pior, visto que são objetos da indo procurar tal causalidade no éter,
mesma ciência. no ar, na água em muitas outras coi
Pensando desta forma, exultei acre sas absurdas ! 5;!. Parecia-me que ele se
ditando haver encontrado em Anaxá portava como um homem que dissesse
goras o explicador da causa, inteligível que Sócrates faz tudo o que faz porque
para mim, de tudo que existe. Esperava age com seu espírito; mas que, em
que ele iria dizer-me, primeiro, se a seguida, ao tentar descobrir as causas
« terra é plana ou redonda, e, depois de o de tudo o que faço, dissesse que me
ter dito, que à explicação acrescentasse acho sentado aqui porque meu corpo é
a causa e a necessidade desse fato, formado de ossos e tendões, e os ossos
mostrando-me ainda assim como é ela
52 F oi discutido muitas vezes o problema de sa
a melhor. Esperava também que ele, ber se Platão tinha razão ao descrever histori
dizendo-me que a terra se encontra no camente, desta forma, o pensamento de Anaxá
centro do universo, ajuntasse que, se goras. Os mencionados livros de Anaxágoras só
nos chegaram em reduzidos fragmentos. O que
assim é, é porque é melhor para ela sabemos é que aquele filósofo reconhecia,
estar no centro. Se me explicasse tudo como princípio material, umas partículas míni
mas de matéria — as homeomerias — e ainda,
isso, eu ficaria satisfeito e nem sequer como outro princípio — o espírito — cuja fun
desejaria tomar conhecimento de outra ção para nós não é ainda bem clara, e sobre a
qual, aliás, já havia dúvidas na antiguidade:
espécie de causas. Naturalmente, a alguns explicadores antigos viam nesse espírito
propósito do sol eu estava pronto tam um deus, outros, um ordenador do mundo, e
finalmente outros, como nosso autor e também
bém a receber a mesma espécie de Aristóteles, uma simples primeira força motriz,
m« explicação, e da mesma forma para a isto é, um princípio quase material ou mesmo
material. Cf. J. Burnet, Early G reek P hiloso
lua e os outros astros, assim como phy e Cari Joel, Geschichte der A n tiken P h ilo
também a respeito de suas velocidades sophie. (N. do T.)
FÉDON 111
são sólidos e separados uns dos outros melhor e com inteligência — essa é >>
d por articulações, e os tendões con uma afirmação absurda. Isso importa
traem e distendem os membros, e os ria, nada mais nada menos, em não
músculos circundam os ossos com as distinguir duas coisas bem distintas, e
camçs, e a pele a tudo envolve! Articu em não ver que uma coisa é a verda
lando-se os ossos em suas articulações, deira causa e outra aquilo sem o que a
e estendendo-se e contraindo-se, sou causa nunca seria causa. Todavia, é a
capaz de flexionar os meus membros, e isso que aqueles que erram nas trevas,
por esse motivo é que estou sentado segundo me parece, dão o nome de
aqui, cóm os membros dobrados. Tal causa, usando impropriamente o
homem diria coisas mais ou menos termo 5 ?. .O resultado é que um deles,
semelhantes a propósito, de nóssa con tendo envolvido a terra num turbi
versa, e assim é que consideraria como lhão 5 7, pretende que seja o céu o que a
causas dela a voz, o ar, o ouvido e mantém em equilíbrio, ao passo que
muitas outras coisas — mas, em reali para outro ela não passa duma espécie
dade, jamais diria quais são as verda de gamela 58, à qual o ar serve de base
deiras causas disso tudo: estou aqui
* porque os atenienses julgaram melhor 56 Esta frase exprime desprezo pela filosofia
naturalista: “os demais” poderia ser entendido
condenar-me à morte, e por isso pare aqui como indicando apenas a opinião vulgar,
ceu-me melhor ficar aqui, e mais justo mas o que o autor posteriormente atribui aos
‘demais” são os sistemas filosóficos naturalis
aceitar a punição por eles decretada53. tas. Platão, como quase sempre quando fala nas
Pelo Cão 54. Estou convencido de que teorias naturalistas, acha que não vale a pena
citar os nomes de seus autores, contentando-se
estes tendões e estes ossos já poderiam com dizer “uns”, “alguns” e "outros”. (N . do T.)
o há muito tempo se encontrar perto de 57 A palavra díne (turbilhão) é técnica no
sistema de Demócrito e Leucipo. Para estes
Mégara ou entre os Beócios, para onde naturalistas gregos, o princípio de todas as coi
os teria levado uma certa concepção sas são os átomos; corpos minúsculos e indivi
do melhor, se não me tivesse parecido síveis (donde átomos, em grego), eternos e invi
síveis; esses átomos estão a cair no vácuo; os
mais justo e mais belo preferir à fuga e mais pesados caem mais depressa, pelo que se
à evasão a aceitação, devida à Cidade, apartam dos demais. Dão, assim, encontrões
uns nos outros, com a conseqüente formação
da pena que ela me prescreveu! de turbilhões, produtores de complexos dè áto
Dar o nome de causas a tais coi mos, que nada mais são do que os objetos exis
tentes. Esses turbilhões jamais terminam, e con
sas 5 5 seria ridículo. Que se diga que tinuamente os átomos estão a separar-se e a
sem ossos, sem músculos e outras coi reunir-se; é a isto que damos o nome de geração
sas eu não poderia fazer o que me e corrupção. A terra existe e permanece em seu
lugar, porque continuamente está a receber e a
parece, isso é certo. Mas dizer que é perder átomos; e o mesmo vale para os demais
por causa-disso que realizo as minhas corpos. Logo, quando um corpo não recebe
novos átomos em troca dos que vai perdendo,
ações e não pela escolha que faço do dá-se sua destruição. Platão se refere aqui ao
turbilhão do céu para meter a ridículo esta
53 Platão conta que Sócrates, tendo uma opor teoria, que mais tarde iria ter grande impor
tunidade para fugir do cárcere, não se apro tância nas ciências naturais. (N . d o T .)
veitou dela porque era sua convicção que um 58 É uma ironia contra Anaxímenes,. mas indi
cidadão deve obedecer sempre às leis e decre cadora das doutrinas deste filósofo. Conforme
tos do Estado, mesmo quando os concidadãos e ele, o princípio de todas as coisas é o ar: tudo
as autoridades legítimas são injustos. (N . do T.) se forma do ar, volta ao ar, e o próprio ar é
54 Pelo Cão: Sócrates jura muitas vezes desta também: o sustentáculo da terra, a qual tem a
forma, certamente porque o cão sempre foi con forma de um tamborim. O termo propriamente
siderado como símbolo da lealdade. (N . do T.) empregado por Platão é o de “gamela”, com o
55 Isto é: as causas materiais. (N . d ò T .) que exprime seu desprezo deste sistema.
112 PLATÃO
A Idéia
veu Sócrates — e não estou a enunciar faça a sua comunicação com este. O
nenhuma novidade, mas apenas a repe modo por que essa participação se efe
tir o que, em outras ocasiões como na tua, não o examino neste momento;
pesquisa passada, tenho me fatigado afirmo, apenas62, que tudo o que é
de dizer 61. Tentarei mostrar-te a espé belo é belo em virtude do Belo em si.
cie de causa que descobri. Volto a uma Acho que é muitíssimo acertado, para - e
teoria que já muitas vezes discuti e por mim e para os demais, resolver assim o
ela começo: suponho que há um belo, problema, e creio não errar adotando
um bom, e um grande em si, e do esta convicção. Por isso digo convicta-
mesmo modo as demais coisas. Se con mente, a mim mesmo e aos demais,
cordas . comigo também admites que que o que é belo é belo por meio do
isso existe, tenho muita esperança de, Belo. Acaso não é esta também a tua
por esse modo, explicar-te a causa opinião? .
mencionada e chegar a provar que. a
— É.
alma é imortal.
— E o que é grande é grande por
— Naturalmente admito que isso
meio da Grandeza; e o que é maior
existe — confirmou Cebes; — e,
pelo M aior; e o que é menor é Menor
agora, faze depressa o que dizes.
por meio da Pequenez?
— Examina, pois, com cuidado, se
estás de acordo, como eu, com o que se — Indubitavelmente.
deduz dessa teoria! Para mim é evi — Em conseqüência, jamais esta
rias de acordo com quem te viesse
dente: quando, além do belo em si,
existe um outro belo, este é belo por dizer que um é maior do que outro pela
que participa daquele apenas por isso e cabeça, e que o menor é menor pelo
por nenhuma outra causa. O mesmo mesmo motivo; mas continuarias fir
afirmo a propósito de tudo mais. Reco memente a afirmar que tudo aquilo que wi *
nheces isto como causa? é maior do que outro, não o é por
— Reconheço. nenhuma outra causa senão pela Gran
— Logo — prosseguiu Sócrates — deza; e que o que é menor, não o é por
não compreendo nem posso admitir nenhuma outra causa senão pela Pe
aquelas outras causas científicas. Se quenez. Pois acho que terias medo de
alguém me diz por que razão um obje cair em contradição se dissesses que
to é belo, e afirma que é porque tem uma coisa é maior ou é menor pela
cor ou forma, ou devido a qualquer cabeça: primeiro, porque nesse caso o
coisa desse gênero — afasto-me sem maior seria maior e o menor seria
discutir, pois todos esses argumentos menor, ambos em virtude da mesma
me causam unicamente perturbação. coisa; segundo, porque o maior seria b
Quanto a mim, estou firmemente con
maior pela cabeça — que é pequena!
vencido, de um módo simples e natu Seria, com efeito, prodigioso que al
ral, e talvez até ingênuo, que o que faz
guém fosse grande em virtude de uma
belo um objeto é a existência daquele
coisa pequena! Acaso essa tolice te
belo em si, de qualquer modo que se
assusta?
6i Alusão ao Fedro e ao B anquete, que já apre
sentaram a doutrina das idéias. (N. d o T .) 62 Cf. P arm ênides. (N . do T.)
114 PLATÃO
— Eu? Claro que sim ! — Cebes riu ignorância e o teu apego à segurança
e disse. que encontraste ao tomar por base a
— E não temerias igualmente dizer tese em questão— tudo isso te inspira
— continuou Sócrates — que o dez é ria uma resposta semelhante. E se
maior do que o oito porque o ultra alguém se apresentasse censurando
passa de dois e considerar isso como essa tese, porventura não o deixarias
causa, ao invés de dizer que é pela em paz e sem resposta, até o momento
quantidade e por causa da quantidade? em que houvesses examinado as conse
E serias capaz de dizer, da mesma qüências dela extraídas e verificado se
forma, que um objeto do tamanho de ela concorda consigo mesma ou se
dois côvados é maior do que outro de contradiz? E depois, quando viesse a
um côvado pela metade, em lugar de ocasião de dar as razões desta tese em
dizer que é pela grandeza? Pois, sem si mesma, não o farias da mesma
dúvida, isso não é menos estapafúrdio! forma, tomando desta vez por base
— Efetivamente. uma outra tese, aquela em que encon
trasses maior valor, até atingires um
— Não te envergonharias de dizer
que, acrescentando-se a unidade à uni resultado satisfátório? E não é claro c
dade, esse acréscimo, e dividindo-se a que tu, desejando uma doutrina do ser
unidade, essa separação, são ambos verdadeiro, te absterias de tagarelices e
causas da formação do dois? Não mais discussões a propósito do princí
protestarias aos gritos que não com pio e das suas conseqüências, assim
preendes como cada coisa se possa for como fazem os que polemizam profis
mar por outro modo que não seja pela sionalmente? N ada daquilo, com efei
participação na própria substância em to, figura nas pesquisas e preocupações
que essa coisa tom a parte? Não dirias, de tais homens: dão-se por superior
neste caso, que não encontras outra mente satisfeitos com a sabedoria que
causa de formar-se o dois a não ser a possuem, embora confundam tu d o 64.
participação na idéia do dois, e que Tu, porém, se na verdade és filósofo, m *
deve participar dela o que vem a tor tenho a certeza de que farás o que
nar-se dois, e também que deve partici digo!
par da idéia de unidade o que se torna — O que dizes é a pura verdade —
unidade? E, em conseqüência, não responderam ao mesmo tempo Símias
haverias de pôr de lado essas tais sepa e Cebes.
rações e acréscimos e demais artima EQUÉCRATES:: i
nhas do mesmo gênero, deixando a dis — Por Zeus, caro Fédon, e com
cussão de tais coisas a homens que são 64 Golpe violento contra naturalistas e sofistas:
mais sábios do que tu? Mas o medo estes desejam apenas discutir por discutir, sem
cogitar de obter a verdade; aqueles podem ter
que tens, como se costuma dizer, da uma convicção pessoal da veracidade de suas
tua própria som bra63, o receio da tua teorias, mas seus métodos são tão deficientes
que não conseguem oferecer mais do que fra
63 Temer a própria sombra: expressão prover cas tolices, não merecendo por isso o nome de
bial que exprime o cúmulo do m edo.(N . d o T .) filósofos. (N. d o T .)
FÉDON 115
— Não serão, caro Cebes, essas trário da que nelas existe. Volta, aliás,
coisas cuja existência as obriga a con às tuas lembranças (não há mal que; se
ter em si não só sua própria idéia, mas repitam as mesmas coisas!): O cinco
também, e sempre, a idéia contrária a não receberá em si a natureza do par;
uma certa coisa? nem o dez, que lhe é o dobro, a do
— Não compreendo o que dizes. ímpar. Este dez, como tal, não é con
— Quero dizer o que disse há trário ao outro, mas apesar disso não
pouco: sabes, com efeito, que o que receberá a idéia do ímpar. E o mesmo
contém a idéia do três necessariamente o que acontece com. o um e meio e com
não é só três, mas é também a idéia de os outros números que comportam o
ímpar. “meio” , em face da natureza do intei
— Sim. ro; e o mesmo, também, com o terço e
— E que dele jamais se aproximará as demais frações dessa espécie. Supo
a idéia de par? nho que estás a acompanhar-me e a
— É. participar da minha opinião?
— Então a idéia de par jamais se — Participo com todas as minhas
aproximará do três? forças — ' disse Cebes — e te acompa
— Efetivamente, jamais se aproxi nho.
mará. — Agora — disse Sócrates —
— Em conseqüência, o três não recorda-te de nosso ponto de partida e
participa da idéia de par? fala, sem empregar., para responder, as
— Nunca, com efeito. próprias palavras de minha pergunta,
— Com isso, então, diremos que o mas tomando-me por modelo. Expli
três é ímpar? . co-me: ao lado da resposta de que eu
— Necessariamente. em primeiro lugar .falava, a resposta
— Desta forma, pois* é que se certa a que me referia, vejo, à luz do
determina, como disse, a natureza das que agora dissemos, uma outra certe
coisas, que, sem serem contrárias, não za. Podes pergüntar-me: que é qúe
admitem a presença de seu contrário: o entrando num corpo o faz quente? Não
três, por exemplo, sem ser contrário ao te darei aquela resposta certa, mas
par, nunca o aceita, e não o aceita por simples, que é o calor, mas responder-
que sempre tem incluído em si o con te-ei com uma mais hábil, dizendo que
trário do par; e do mesmo modo o dois é o fogo. Perguntas: que é qúe,
inclui o contrário do ímpar, o fogo o entrando num corpo, o tom a doente?
do frio, e assim em muitíssimos outros Não direi que é a doença, mas a febre.
exemplos. Pensa agora e dize-me se D a mesma forma, não irei declarar que
não concluirias assim: nao é somente o um número se tom a ímpar devido à
contrário que não recebe em si o seu imparidade, mas sim devido à unidade,
contrário, mas o mesmo acontece tam e assim por diante. Examina, entre
bém a coisas que, sem serem mutua tanto, se compreendeste bem o que
mente contrárias umas às outras, pos quero dizer!
suem sempre em si os contrários, e as — Compreendi suficientemente —
quais verossimilmente não receberão respondeu Cebes.
jamais, uma qualidade que seja o con — Então responde-me, se puderes:
FÉDON 119
muito tempo ainda adejando ao redor cida com a de que falas. Teria, pois,
do cadáver e dos mofíumentos funerá- muito prazer em te ouvir a esse
b . rios, oferece resistência e sofre, e só se respeito.
deixa levar pelo gênio sob violência e — Pois bem, meu caro Sími'as.
exigindo grandes esforços. Mas quan Todavia, para explicar como isso é,
do essa alma, afinal, chega ao lugar em evidentemente não necessitamos da
que já se encontram as outras almas, arte de G lauco7 4. Provar, porém, que
cada uma destas imediatamente se isso de fato assim é, eis uma tarefa que
afasta e a evita, pois sabem que ela de muito ultrapassa a arte de Glauco.
praticou-uma das negras ações seguin Eu talvez não seja capaz de demons
tes: ou matou injustamente alguém, ou trá-lo, e, mesmo que fosse, parece-me
praticou qualquer crime desse gênero, que ainda assim a minha própria vida,
ou qualquer obra que seja própria caro Símias, não seria suficiente para
dessa espécie de almas. Por isso, nin fazê-lo, tendo em vista a extensão do
guém deseja ter sua amizade e ser seu assunto. Quanto a explicar-vos, entre- ■«
companheiro, nem servir-lhe de guia. tanto, as minhas opiniões a respeito da
e Assim, essa alma erra desnorteada terra e de suas regiões, nada me impe
daqui para lá, em ignorância absoluta, de de fazê-lo.
durante certo tempo, e em virtude de — N ada mais querenlos! — excla
uma necessidade fatal é levada a uma mou Símias.
residência que lhe é conveniente. Inver — Pois bem — continuou Sócra
samente, a alma cuja vida na terra foi tes. — Em primeiro lugar, estou con
pura e sábia lá encontra, por compa vencido de que a terra, sendo redonda
nheiros e guias, os próprios deuses, e e estando colocada, no centro da abó
sua residência será, da mesma forma, a bada celeste, não precisa nem do ar
que lhe é adequada. nem de qualquer outra matéria para
“ Ora, a terra possui grande número não cair. Ao contrário, a uniformidade 109 a
de regiões maravilhosas, e nem pela existente em cada parte do céu, dum
sua constituição nem pela sua grande lado, e, de outro, o próprio equilíbrio
za, ela não é o que admitem as pessoas da terra são suficientes para sustentá-
que têm o costume de falar sobre ela, la. Assim, pois, um objeto que se man
conforme a convicção que alguém me tém em equilíbrio no centro de um con
transmitiu 73.” tinente uniforme não tem motivo
i — Mas que queres dizer, Sócrates? nenhum para inclinar-se mais para lá
— perguntou Símias. — Já tenho ou ou mais para cá e mantém-se efetiva
vido dizer muitas coisas a propósito da mente em sua posição, sem descair
terra, mas, confesso, nenhuma pare- para os lados. Aqui tendes o primeiro
73 Platão apresenta a exposição de uma fantás 74 Glauco: nome de alguns personagens da lenda
tica, teoria cosmográfica, na qual não se mostra grega, que realizaram obras dificílimas. A ex
de acordo com nenhuma das teorias naturalis pressão “obra de Glauco” serve para designar
tas que haviam sido elaboradas até então. uma realização árdua e complicadíssima.
(N . do Ti.) (N. do T.)
123
FÉDON
que vêm ter as almas dos mortos, as avança, nas proximidades do lago
quais, após ali permanecerem durante Aquerúsia, mas do lado oposto. Suas-
o tempo que lhes foi prescrito, tempo águas tampouco se misturam com
mais longo para umas, mais breve para outra; também'elas, após o trajeto cir
outras, são outra vez enviadas para cular, finalmente desembocam no Tár
formarem os seres vivos. Um terceiro taro, num ponto oposto ao Periflege
rio nasce a meia distância entre os dois tonte: o nome deste rio, ao dizer dos
primeiros e, perto do ponto em que poetas é C ocito88.
nasceu, vem a desembocar num vasto “Tal é, pois, meus amigos, a distri
espaço onde arde um fogo imenso; aí, buição natural desses rios. Eis, agora,
então, forma um lago muito maior do os mortos chegados ao lugar para onde
que o nosso m ar8 5, fervendo sempre cada um foi conduzido por seu gênio
água e lama; e daí sai, sujo e cheio de tutelar. Aí, antes do mais, todos são
lama, serpeando por muitas voltas e julgados, tanto os que tiveram uma
passando por muitos lugares, che vida sã e piedosa como os outros. Em
gando a cruzar pela extremidade do seguida, aqueles de quem se verifica
lago Aquerúsia, sem todavia se mistu
que tiveram uma existência comum
rar com suas águas, para ir, final são dirigidos ao Aqueronte, e nele, em
mente, após mais alguns coleios repeti qualquer embarcação, se encaminham
dos, lançar-se no Tártaro, num ponto para o lago Aquerúsia. Lá, então, pas
mais abaixo: é a este terceiro rio que se sam a morar e a submeter-se a purifi
dá o nome de Periflegetonte8 6, e dele é cações, quer remindo-se pelas penas
que brota toda lava que se encontra, que sofrem das ações de que se tom a
onde quer que ela exista, sobre a face ram culpados, quer obtendo pelas boas
de nossa terra. Fazendo por sua vez ações que praticaram recompensas
face a este, corre o quarto rio: rolam
proporcionadas aos méritos de cada
suas águas primeiramente por uma
região de assombrosa horripiíância e um 89. Outros, porém, que se verifica
selvageria, completamente revestida de serem incuráveis por causa da gran
uma uniforme coloração azulada — é deza dos pecados que cometeram,
a região que se denomina região Estí- autores de roubos em templos repeti
gia; e Estige87 é então o nome do lago dos e graves90, de muitos homicídios
formado por esse rio. Depois de se 88 Cocito (rio das queixas) é igualmente um
haver lançado nesse lago, onde suas dos fabulosos rios do Hades. Platão esclarece:
águas adquirem temíveis propriedades, “ao dizer dos poetas”. Mas aproveitou dos poe
tas apenas o nome do rio, pois em nenhuma
mergulha pela terra adentro e, descre poesia ele desempenha o papel que Platão lhe
vendo espirais, corre em sentido con empresta. (N .d o T .)
89 Os que viveram uma vida comum, consti
trário ao Periflegetonte, ante o qual tuem a maioria: não têm nem grandes vícios,
nem grandes virtudes. Conforme a vida que le
85 Não é bem claro se “nosso mar” indica o varam, recebem punição ou recompensa tempo
Mediterrâneo ou o Egeu, que é o mar propria rária e, ademais, como indica o trecho ante
mente grego. Em todo caso, este lago é bem rior, voltam a inserir-se em novos corpos.
grande. (N .d o T .) Platão não descreve as punições nem as recom
86 Periflegetonte (ao pé da letra: rio de cha pensas. (N .d o T .)
mas de fogo) é também um rio fabuloso que 90 Os salteadores de templos figuram entre os
corre no Hades. Nosso autor utiliza este rio em maiores criminosos: onde se observa o respeito
sentido naturalista para explicar os vulcões. de Platão à religião tradicional. Sócrates, acusa
(N . do T.) do de inimigo desta religião,, é que expressa tais
87 Estige, na mitologia, é um rio do Hades. pensamentos. Assim, Platão está defendendo seu
Platão o transforma em lago. (N . do T.) caro mestre. (N . do T .)
128 PLATÃO
contra a justiça e contra a lei, e de mui da verdadeira te rra !92 E, entre estes,
tas outras coisas desse gênero — estes aqueles que pela filosofia se purifi
recebem a paga merecida e são precipi caram de modo suficiente passam a
tados no Tártaro, de onde nunca mais viver absolutamente sem os seus cor
sairão91. Quanto àqueles cujos erros pos, durante o resto do tempo, e a resi
foram reconhecidos como sendo faltas dir em lugares ainda mais belos que os
que, não obstante sua gravidade, não demais93. Mas descrever esses lugares
deixam de ter remédio, como as come não é fácil nem possível, pois temos
tidas pelos que sob o domínio da ira pouco tem po!
usaram de violência contra o pai e a “Pois bem, meu caro Símias, são
mãe, e que disso se arrependeram para estas as realidades, cuja exposição
ii4 «. o resto da vida, ou que, em condições fizemos por alto, e, que nos devem
semelhantes, se tom aram assassinos levar a tudo fazermos por participar da
— estes, também, devem necessaria virtude e da sabedoria nesta vida. Bela
mente ser lançados no Tártaro; mas, é a recompensa e grande a esperança!
quando houver decorrido um ano de Entretanto, pretender que essas coisas
pois que foram precipitados, uma onda sejam na realidade exatamente como
os arremessa p ara fora — e os assassi as descrevi, eis o que não será próprio
nos são lançados no Cocito, e os crimi de üm homem de bom senso ! Mas crer
nosos contra pai e mãe no Periflege- qué é uma coisa semelhante o que se
tonte. Comboiados por esses rios, dá com nossas almas e o seu destino
chegam ao lago Aquerúsia: e ali, cha — porque a alma é evidentemente
mam e pedem em altos brados, uns imortal — eis uma. opinião que me pa
àqueles que mataram, outros àqueles rece boa e digna de confiança. Belo
que violaram; e lhes suplicam que os será ter esta coragem ! É preciso repe
deixem passar do rio ao lago e vir ter ti-lo como fórmula mágica e é — pala
i> com eles. Se conseguem o que pedem, vra! — por tal razão que há muito
saem do rio e não sofrem mais. Em estou a falar nessa lenda mitológica.
caso contrário são de novo jogados ao Pois bem! Considerando estas cren
Tártaro, e de lá outra vez aos rios, ças, deve permanecer confiante sobre o
assim numa repetição sem tréguas, até destino de sua alma o homem que
que hajam obtido o perdão de suas ví
timas — pois essa é a punição que os 92 Chegamos enfim a conhecer quais são os fe
lizes habitantes da superfície da verdadeira
juizes lhes impuseram. Aqueles, enfim, terra,, sobre os quais e sobre cuja bem-aventu-
cuja vida foi reconhecida como de rança Platão tanto tem falado: são os adeptos
da religião tradicional, os piedosos. Agora se
grande piedade, são libertados, como compreende também por que Platão disse antes
de cárceres, dessas regiões interiores que estes tinham comunicação direta com os
deuses: adoravam os deuses nesta vida e nas
da terra, e levados para as alturas da cavidades da terra, e sua recompensa na super
c morada pura, indo morar na superfície fície da mesma será uma vida feliz e o contato
com os deuses. (N .d o T .)
91 Castigo eterno para os maiores pecadores. 93 Grau superior da classificação dos homens:
Platão não dá precisão acerca dos sofrimentos os filósofos. Estes fazem parte dos piedosos a
por que passam no Tártaro. Possivelmente, é que nos referimos na nota anterior; mas são
opinião sua que os turbilhões de água e ar, entre eles os mais genuinamente piedosos, e por
atrás descritos, façam padecer os habitantes da este motivo terão uma sorte melhor do que os
quela região. (N .d o T .) demais adèotos da religião tradicional. (N. do T.)
FÉDON 129
durante sua vida desprezou os prazeres tanto a mim e aos meus quanto a vós
do corpo e os ornamentos deste, princi mesmos, ainda que não tenhais assu
palmente, pois são, a seu ver, coisas mido esse*compromisso. Suponhamos,
estranhas e nocivas. O homem que, ao pelo contrário, que de vós próprios não
contrário, se dedicou aos prazeres que tomeis cuidado, e que não queirais
têm a instrução por objeto, e que dessa absolutamente viver em conformidade
forma ornou sua alma, não com ador com o que foi dito tanto hoje como em
nos estranhos e nocivos, mas com o outras ocasiões. Então* quaisquer que
que é propriamente seu e mais lhe con possam ser hoje o número e a força de
vém, com a temperança, a justiça, a vossas promessas, nada tereis adianta
coragem, a liberdade, a verdade9 4 — do !
esse aguarda confiante e corajoso o — Poremos todo o nosso coração, *
momento de por-se a caminho do naturalmente — disse Críton — em
as o Hades, quando seu destino o chamar ! conduzir-nos dessa forma. Mas como
“Vós, seguramente — ajuntou Só haveremos de enterrar-te?
crates — , vós, Símias, Cébes, e todos -—■ Como quiserdes — respondeu
os outros — será mais tarde, não sei — , isto é, se conseguirdes reter-me a
quando, que vos poreis a caminho. mim, e se eu não vos escapar! —
Quanto a mim, o meu destino neste Então riu-se docemente e, voltando-se
momento me chama, como diria um para nós, disse: — Não há meio, meus
amigos, de convencer Críton de que o
ator de tragédia9 5.
“Creio que ainda me sobra algum que eu sou é este Sócrates que se acha
tempo para tomar um banho: parece- presentemente conversando convosco e
me melhor, com efeito, lavar-me antes que regula a ordem de cada um de seus
de tomar o veneno, e não deixar para argumentos! Muito ao contrário, está
as mulheres o trabalho de lavar um persuadido de que eu sou aquele outro
cadáver.” ^ Sócrates cujo cadáver estará daqui a
Depois destas palavras de Sócrates, pouco diante de seu olhos; e ei-lo a
b Críton falou: — Então, que ordens nos perguntar como me deve enterrar! E d
dás, Sócrates, a estes ou a mim, a res .quanto ao que desde há muito venho
peito de teus filhos ou de qualquer repetindo — que depois de tomar o ve
outro assunto? Quanto a nós, essa neno não estarei mais junto de vós,
seria, por amor a ti, nossa tarefa mais mas me encaminharei para a felicidade
que deve ser a dos bem-aventurados —
im portante!
tudo isso, creio, eram para ele vãs
— Justamente, Críton, não cesso de
palavras, meras consolações que eu
falar sobre ela — respondeu — e nada procurava dar-vos, ao mesmo tempo
de novo tenho para vos dizer! Vede: que a mim mesmo ! Sede, pois, meus
cuidai de vós próprios, e de vossa parte fiadores junto a Críton, garantindo-lhe
então toda tarefa será feita com amor, o contrário daquilo que ele afiançou
94 Nesta enumeração de virtudes, a liberdade só aos juizes9 6. Ele jurou que eu ficaria
pode ter o sentido de “libertação de paixões e no meio de vós; vós, porém, afirrrrai-
vícios”. (N. d o T .) .
95 Nas tragédias, os heróis despedem-se de seus 96 Alusão ao processo de Sócrates: Críton ga
amigos com frases como esta e em tom dramá rantiu ao tribunal que Sócrates não fugiria.
tico. (N . d o T .) (N. d o T .) '
130 PLATÃO
lhe que não ficarei entre vós quando estou sofrendo dores inenarráveis, e
morrer, mas que partirei, que me irei que no decorrer dos funerais diga estar
embora! Este é o único meio de fazer expondo Sócrates, conduzindo-o a se
« com que esta provação seja mais pultura e enterrando-o! N ota bem,
suportável a Críton, o meio de evitar meu bravo Críton: a incorreção da lin
que, vendo queimar ou enterrar meu guagem não é somente uma falta
corpo97, se impressione e pense que cometida contra a própria linguagem.
Ela faz mal às alm as! N ã o ! É preciso
97 A época clássica dos gregos não conheceu o perder esse temor. Realiza estes fune
costume generalizado dos funerais, tendo insti
tuído a liberdade de queimar ou enterrar os
rais como quiseres e como achares //«<■
cadáveres, como se quisesse. (N. d oT .) mais conforme aos usos.
Epílogo
Dito isto, Sócrates pôs-se de pé, e, com eles em presença de Críton, fazen
para banhar-se, passou a outra peça. do-lhes algumas recomendações. Em
Críton seguiu-o, fazendo-nos sinal que seguida ordenou que se retirassem e
esperássemos. Ficamos, pois, a conver veio para junto de nós.
sar e a examinar tudo quanto se havia Já o sol estava próximo de recolher-
dito. Lamentávamos a imensidade do se, pois Sócrates havia passado muito
infortúnio que sobre nós descera. Ver tempo no outro quarto. Ao voltar do
dadeiramente, era para nós como se banho sentou-se novamente, e a con
perdêssemos um pai, e iríamos passar versa desta vez durou pouco. Apresen
como órfãos o resto de nossa v id a! tou-se então o servidor dos Onze, e, em
b Depois de se ter banhado, trouxe pé, diante dele disse:
ram-lhe seus filhos (tinha dois peque — Sócrates, por certo não me darás
nos e um já grande), e as mulheres de a mesma razão de queixa que tenho
casa98 também vieram; entreteve-se contra os outros!! Esses enchem-se de c
98 Esta frase suscitou na antiguidade a seguinte cólera contrâ mim e me cobrem de
tentativa de explicação: em seguida à guerra
do Peloponeso, em que morreram muitos ho
imprecações quando os convido a
mens; os atenienses consentiram que cada cida tomar o veneno, porque tal é a ordem
dão passasse a ter mais mulheres além da legí dos Magistrados. Tu, como tive muitas
tima esposa; e Sócrates, modelo de patriota,
acrescentou a Xantipa uma nova esposa, da ocasiões de verificar, és o homem mais
qual teve um de seus três filhos. Mirto era o
nome desta última. Mas tudo isso não está bem
generoso, o mais brando e o melhor de
provado. Platão, quando aqui fala em mulhe todos aqueles que passaram por este
res de casa, talvez queira significar apenas que
Xantipa compareceu ao cárcere acompanhada
lugar. E, muito particularmente hoje,
de parentes ou de escravas. (N .d o T .) estou convencido de que não será con-
FÉDON 131
tra mim que sentirás ódio, pois conhe do demais; vai, obedece, e não me
ces os verdadeiros culpados, mas con contraries.
tra eles. Não ignoras o que vim Assim admoestado, Críton fez sinal
anunciar-te, adeus! Procura suportar a um de seus servidores que se manti
da melhor forma o que é necessário ! nham nas proximidades. Este saiu e
Ao mesmo tempo pôs-se a chorar e, retornou daí a poucos instantes, con
escondendo a face, retirou-se. Sócrates duzindo consigo aquele que devia
tendo levantado os olhos para ele: administrar o' veneno. Este honrem o
— Adeus! —- disse. — Seguirei o trazia numa taça. Ao vê-lo Sócrates
teu conselho. disse:
Depois, voltando-se para nós: -—■ Então, meu c a ro ! Tu que tens
— Quanta gentileza neste homem ! experiência disto, que é preciso que eu
Durante toda a minha permanência faça?
aqui veio várias vezes ver-me, e até ■—■ N ada mais — respondeu — do
conversar comigo. Excelente hom em ! que dar umas voltas caminhando, de
E, hoje, quanta generosidade no seu pois, de haver bebido, até que as pernas
p ran to ! Pois bem, avante! Obedeça se tornem pesadas, e em seguida ficar
mos-lhe, Críton, e que me tragam o ve deitado. Desse modo o veneno produ
neno se já está preparado; se não, que zirá seu efeito.
o prepare quem o deve preparar !/ Dizendo isso, estendeu a taça a Só
Então disse Críton: crates. Este a empunhou, Equécrates,
— Mas, Sócrates, o sol se não me conservando toda a sua serenidade,
engano está ainda sobre as montanhas sem um estremecimento, sem uma alte
e não se deitou de todo. Ademais, ouvi ração, nem da cor do rosto, nem dos
dizer que outros beberam o veneno só seus traços. Olhando em direção do
muito tempo depois de haverem rece homem, um pouco por baixo e perscru-
bido a intimação, e após terem comido tadoramente, como era seu costume,
e bebido bem, e alguns, até, só depois assim falou:
de haverem tido contato com as pes — Dize-me, é ou não permitido
soas que desejaram. Vamos! nada de fazer com esta beberagem uma libação
precipitações; ainda há muito tempo ! às divindades?"
Ao que Sócrates respondeu: ■—■ Só sei, Sócrates, que trituramos
— É muito natural, Críton, que as a cicuta em quantidade suficiente para
pessoas de quem falas tenham feito o produzir seu efeito, nada mais.
que dizes, pensando que ganhavam al — Entendo. Mas pelo menos há de
guma coisa fazendo o que fizeram. ser permitido, e é mesmo um dever,
Mas, quanto a mim, é natural que eü dirigir aos deuses uma oração pelo
não faça nada disso, pois penso que bom êxito desta mudança de residên-
tomando o veneno um pouco mais
99 Nos banquetes dos gregos era costume que
.tarde nada ganharei, a não ser, tornar- todos os convivas, antes de tocarem na primeira
me para mim mesmo um objeto de taça, derramassem no chão algumas gotas, em
homenagem aos deuses, e que ao mesmo tempo
riso, agarrando-me dessa forma à vida recitassem uma breve oração. Aqui, Platão quer
e procurando economizá-la quando sublinhar a tranqüilidade de Sócrates: este se
comporta como se estivesse num banquete.
dela nada mais resta! Mas temos fala (N . do T.)
132 PLATÃO
cia, daqui para além. É esta minha então de costas, assim como lhe havia
prece; assim seja! recomendado o homem. Ao mesmo
E em seguida, sem sobressaltos, sem tempo, este, aplicando as mãos aos pés
relutar nem dar mostras de desagrado, e às pernas, examinava-os por interva
bebéu até o fundo. los. Em seguida, tendo apertado forte
Nesse momento nós, que então mente o pé, perguntou se o sentia. Só
conseguíramos com muito esforço crates disse que não. Depois disso ns
reter o pranto, ao vermos que estava recomeçou no tornozelo, e, subindo
bebendo,-que já havia bebido, não nos aos poucos, nos fez ver que Sócrates
contivemos mais. Foi mais forte do começava a ficai- frio e a enrijecesse.
que eu. As lágrimas me jorraram em Continuando a apalpá-lo, declarou-nos
ondas, embora, com a face velada, esti que quando aquilo chegasse até o cora
vesse chorando apenas a minha infeli ção,. Sócrates ir-se-ia101. Sócrates já se
cidade — pois, está claro, não podia tinha tornado rijo e frio em quase toda
chorar de pena de Sócrates! Sim, a a região inferior do ventre, quando des
infelicidade de ficar privado de um tal cobriu sua face, que havia velado, e
d com panheiro! De resto, incapaz, disse estas palavras, as derradeiras que
muito antes de mim, de conter seus pronunciou:
soluços, Críton se havia levantado — Críton, devemos um galo a
para sair. E Apolodoro100, que mesmo Asclépio ; não te esqueças de pagar
antes não cessara um instante de cho essa dívida. .
rar, se pôs então, como lhe era natural, — Assim farei — respondeu Crí
• a lançar tais rugidos de dor e de cólera, ton. — Mas vê se não tens mais nada
que todos os que o ouviram sentiram- para dizer-nos.
se comovidos, salvo, é verdade, o pró A pergunta de Críton ficou sem res
prio Sócrates: . posta. Ao cabo de breve instante, Só
— Que estais fazendo? — excla crates fez um movimento. O homem
mou. — Que gente incompreensível! então o descobriu. Seu olhar estava
Se mandei as mulheres embora, foi fixo. Vendo isso, Críton lhe cerrou a
sobretudo para evitar semelhante cena, •boca e os olhos.
pois, segundo' me ensinaram, é com Tal foi, Equécrates, o fim de nosso
belas palavras que se deve morrer, companheiro. O homem de quem po
e Acalmai-vos, vam os! dominai-vos! demos bendizer que, entre todos o.s de
Ao ouvir esta linguagem, ficamos seu tempo que nos foi dado conhecer,
envergonhados e contivemos as lágri era o melhor, o mais sábio e o mais
mas. justo. •
Quanto á Sócrates, pôs-se a dar
umas voltas no quarto, até que decla 101 A descrição minuciosa do efeito do veneno
está a mostrar que na realidade se trata da ci
rou sentir pesadas as pernas. Deitou-se cuta, planta muito venenosa; e manifesta, da
mesma forma, a humanidade com que os ate
100 o leitor do Banquete já conhece Apolodoro nienses realizavam suas execuções capitais, pro
como o mais emotivo dos alunos de Sócrates. curando torná-las isentas de sofrimentos e do
(N . d o T .) res. (N . d o T .)
SOFISTA
Teodoro, Sócrates,
Estrangeiro de Eléia, Teeteto
I
138 PLATÃO
bemos esta distinção: que são os obje- parte não será menos ridículo que o da
e tos que servem ao alimento ou ao uso, primeira e, pois que o que ela vende
tanto do corpo como da alma, que se são as ciências, deveremos chamá-la,
vendem e se trocam por dinheiro? necessáriamente, por um nome que
TEETETO tenha correspondência próxima com o
— Que queres dizer com isso? nome de sua própria prática.
E STR A NG EIRO TEETETO
— Que, talvez, falte-nos reconhecer — Certamente.
parte relativa à alma, pois a outra,
E ST R A N G E IR O
creio, ê-nos clara. — Assim, nesta importação por
TEETETO atacado das ciências, a seção relativa
— Sim. às ciências das diversas técnicas terá
« E STR A NG EIRO ^ um nome; e a que cuida, em sua impor
— Podemos dizer que a música em tação, da virtude, um outro nome.
todas as suas formas, levada de cidade
em cidade, aqui comprada para ser TEETETO
-—- Naturalmente.
para lá transportada e vendida; que a
pintura, a arte dos prestidigitadores em E ST R A N G E IR O ^
— À primeira convém o nome de
seus prodígios, e muitos outros artigos
importação por atacado das técnicas.
destinados à alma, que se transportam
Quanto à outra, procura tu mesmo
e vendem, seja a título de divertimento
encontrar-lhe o nome.
ou de estudos sérios, dão àquele que as
transporta e vende, tanto quanto ao' TEETETO _
vendedor de alimentos e bebidas, direi — Que nome daremos, que não pa
to ao título de negociante? reça falso, a menos que digamos: aí
TEETETO
está o objeto que procuramos, o famo
— O que dizes é a pura verdade. so gênero sofístico.
b E STR A NG EIRO E ST R A N G E IR O
— Àquele que, de cidade em cidade -—■ Esse, e nenhum outro. Agora,
vende as ciências por atacado, trocan- vejamos, recapitulando, e repitamos:
dò-as por dinheiro, darias o mesmo esta parte da aquisição, da troca, da
nome? troca comercial, da importação, da
TEETETO importação espiritual, que negocia dis
— Certamente. cursos e ensinos relativos à virtude, eis,
E STR A N G EIR O em seu segundo aspecto, o que é a
— Nesta importação espiritual, sofística.
uma parte não se chamaria, com'justi TEETETO
ça, arte de exibição? O nome da outra — Perfeitamente.
148 PLATÃO
E ST R A N G E IR O ESTR A N G EIR O .
— Dentre as partes da arte de aqui — Colocando, de um lado, a sim
sição, havia a luta. ples rivalidade, e de outro, o combate.
TEETETO TEETETO
— É exato. — Bem.
E STR A N G EIR O ESTR A N G EIR O
— Não está, pois, fora de propósito — Poderíamos definir conveniente
dividir a luta em duas partes. mente o combate que se realiza corpo
TEETETO a corpo, como um assalto a força
— Explica de que modo. bruta? .
SOFISTA 149
. TEETETO TEETETO
— Sim. — . E certo; as suas divisões são
E STR A NG EIRO realmente muito pequenas e muito
— Mas, àquele em que se opõem diversas. .
argumentos contra argumentos, por ^ESTRANGEIRO
que outro nome chamaríamos, Teeteto, — Mas a contestação conduzida
além de contestação? com arte, e relativa ao justo em si, ou
TEETETO . ao injusto em si, e a outras determina
— Por nenhum outro. ções gerais, não a chamamos, comu
E STR A NG EIRO mente, por erística?
— Ora, o gênero de contestação . TEETETO
deve ser considerado em duas partes. — E de que outra forma have
TEETETO ríamos de chamá-la?
— De que ponto de vista? E STR A N G EIR O
ESTR A NG EIRO — Ora, na realidade, a erística ou
— Uma vez, opondo-se a um longo bem nos leva a perder ou a ganhar
desenvolvimento outro desenvolvi dinheiro.
mento igualmente longo de argumen TEETETO
tos contrários, mantendo-se uma con — Perfeitamente.
trovérsia pública sobre as questões de E STR A N G EIR O
justiça e de injustiça; é a contestação — Procuremos dizer que nome pró
judiciária. • prio se aplica a cada uma delas.
TEETETO TEETETO .
— Sim. — Sim, procuremos.
ESTR A NG EIRO E ST R A N G E IR O • •
— Mas, se a contestação é privada, — Quando, encantados por esta
fragmentando-se "na alternância de per ocupação, sacrificamos os negócios
guntas e respostas, que outro nome lhe pessoais sem darmos, como se diz, pra
damos, comumente, além do de contes zer algum à massa de nossos ouvintes,
tação contraditória? ela se chamará, ao que creio, e tanto
TEETETO quanto posso julgar, simplesmente,
— Nenhum outro. tagarelice.
E STR A N G EIR O TEETETO _
—- A contradição que tem por obje — E precisamente esse o nome que
to contratos e que, realmente, é contes se lhe dá.
tação, mas que procede ao acaso e sem E ST R A N G E IR O .
arte, deve, é certo, constituir uma — É tua vez, agora. Procura dizer
forma especial, umà vez que a sua que nome se dá à arte oposta que rece
originalidade ressalta claramente de be dinheiro por disputas privadas.
nossa discussão. Mas, os que viveram TEETETO •
antes de nós não lhe deram nome — Que hei de dizer, ainda desta
algum, e a procura de um nome que lhe vez, sem risco de erro, senão que nova
seja próprio não merece agora a nossa mente aí está. o prestigioso personagem
atenção. e que assim nos aparece, pela quarta
150 PLATAO
TEETETO TEETETO
— Agora que tu o dizes, é quase — E bem ridículos, certamente.
evidente. E ST R A N G E IR O
E STR A NG EIRO — Totalmente ridículos, Teeteto.
— Para a última espécie não tenho Mas, afinal, ao método de argumenta
nome algum que a designe, mas para a ção não importa menos a lavagem com
primeira, a que retém o melhor e rejei esponjas do que os medicamentos,
ta o pior, tenho um nome. atendendo-se a que a ação purificadora
TEETETO de uma arte seja mais ou menos bené
— Dize-o. fica que a de outra. N a realidade, é
ESTR A NG EIRO para alcançar a penetração de espírito
— Toda a separação desta espécie •que, investigando todas as artes, ele se
é, creio, universalmente chamada de esforça em descobrir as suas afinida
purificação. des e as suas dessemelhanças. Assim,
TEETETO deste ponto de vista, todas elas valem
— É precisamente assim que é igualmente para ele. Nenhuma arte,
chamada. desde que atenda à conformidade pro
ESTR A NG EIRO curada, lhe parecerá mais ridícula que
— A dualidade desta forma de outra. Que a arte da estratégia seja
purificação não é visível à primeira uma ilustração mais grandiosa do que
vista? a arte da caça, o que não aconteceria
TEETETO com a arte de m atar piolhos, não admi
— Talvez, se refletirmos. Por en te o método de argumentação que,
quanto, não vejo dualidade alguma. naquela primeira arte, apenas vê maior
ESTR A NG EIRO pompa. Assim, no caso presente, ele
— Em todo o caso, as múltiplas apenas considera a questão que pro
formas de purificação que se aplicam pões: que nome se deve dar ao con
aos corpos podem ser reunidas sob um junto destas forças purificadoras desti
único nome. nadas aos corpos, animados ou
TEETETO inanimados, sem se preocupar em
— Que formas e que nome? saber que nome seja o mais distinto.
E STR A NG EIRO Bastará separar tudo o que purifica a
— Para os corpos vivos, todas as alma e agrupar, em um novo todo,
purificações internas que se operam, tudo o que purifica outras coisas que
graças a uma exata discriminação, não a alma. O que lhe compete, agora,
pela ginástica e pela medicina, e todas se é que compreendemos os seus
as purificações externas, por taenos propósitos como método de argumen
característico que lhe seja o nome, e as tação, é discernir, realmente, a purifi
quais a arte do banhista nos prescreve; cação que se dirige ao pensamento e
e para os corpos inanimados, todos os distingui-la de todas as demais.
cuidados próprios do apisoador, ou TEETETO
mais universalmente, próprios à prepa — Sim, compreendo, e concordo
ra ç ã o do couro, e que se distribuem ém que há duas formas de purificação,
nomes que parecem ridículos. . . uma das quais tem por objeto a alma e
152 PLATÃO
são, se armam contra ela, de um novo a acreditar saber justamente o que ela
método. sabêj inas nãda além.
TEETETO TEETETO
— Qual? — Essa é, infalivelmente, a melhor
ESTR A NG EIRO disposição e a mais sensata.
— Propõem, ao seu interlocutor, E STR A N G EIR O
questões às quais acreditando respon — Aí estão, pois, muitas razões,
der algo valioso ele não responde nãda Teeteto, para afirmarmos que a refuta
de valor; depois, verificando facil ção é o que há de mais importante e de
mente a vaidade de opiniões tão erran mais eficaz na purificação e para acre
tes, eles as aproximam em sua crítica, ditarmos, tambémj que permanecer à
confrontando umas com outras, e por parte desta prova é, ainda quê sé tf até
meio desse confronto demonstram que do grande Rei, permanecer impürifi- *
a propósito do mesmo objeto, sob os cado das màiorés máculas e conservar
mesmos pontos de vista, e nas mesmas a falta de educação e a fealdade onde a
relações, elas são mutuamente contra maior pureza, e a mais perfeita beléza
ditórias. Ao percebê-lo, os interlocu se requer, a quem pretenda possuir a
tores experimentam um descontenta verdadeira beatitude.
mento para consigo mesmos, e TEETETO
disposições mais conciliatórias para — Perfeitamente.
com outrem. Por este tratamento, tudo E ST R A N G E IR O
o que neles havia de opiniões orgulho — Pois bem! Que nome daremos
sas e frágeis lhes é arrebatado, ablação aos que praticam esta arte? Pois eu
em que o ouvinte encontra o maior tenho receio de chamá-los de sofistas. 231 a
TEETETO
encanto e, o paciente, o proveito mais -— Que receio ? ‘
duradouro. Há, na realidade, um prin
E ST R A N G E IR O
cípio, meu jovem amigo, que inspira
— De dar muita honra aos sofistas.
aqueles que praticam este método pur TEETETO
gativo; o mesmo que diz, ao médico do — E entretanto, há algurr\a seme
corpo, que da alimentação que se lhe lhança entre eles e aquele de quem, hâ
dá não poderia o corpo tirar qualquer pouco, falamos.
proveito enquanto os obstáculos inter E STR A N G EIR O
nos não fossem removidos. A propó — N a realidade, tal como entre o
sito da alma formaram o mesmo con cão e o lobo, como entre o animal mais
ceito: ela não alcançará, do que se lhe selvagem e o mais doméstico. Ora,
possa ingerir de ciência, benefício para estarmos bem seguros é sobre
algum, até que se tenha submetido à tudo com relação às semelhanças que é
refutação e que por esta refutação, preciso manter-nos em constante guar
causando-lhe vergonha de si mesma, se da: na verdade, é um gênero extrema
tenha desembaraçado das opiniões que mente escorregadio. Mas, por enquan
cerram as vias do ensino e que se tenha to, admitamos que sejam os mesmos,
levado ao estado de manifesta pureza e pois desde que observem uma fronteira
156 PLATÃO
E ST R A N G E IR O TEETETO
— Primeiramente descansemos e — Sim, e o quarto personagem que
durante esta pausa vejamos o que dis- ■ele nos revelou foi o de um produtor e
semos. Sob quantos aspectos se apre vendedor destas mesmas ciências.
sentou a nós o sofista? Creio que, em
E STR A NG EIRO
primeiro lugar, nós descobrimos ser ele
— Tua memória é fiel. Quanto ao.
um caçador interesseiro de jovens
seu quinto papel, eu mesmo procurarei
ricos.
lembrá-lo. Na realidade, filiava-se ele à
TEETETO arte da luta, como um atleta do discur
— Sim.
so, reservando, para si, a erística.
E ST R A N G E IR O . '
— Em segundo lugar, um nego- TEETETO
ciànte, por atacado, das ciências relati — Exatamente.
vas à alma. ESTR A NG EIRO
TEETETO . — O seu sexto aspecto deu margem
— Perfeitamente. à discussão. Entretanto, nós- concor
ESTR A N G EIR O - . damos em reconhecê-lo, dizendo qué é
-— .Em seu terceiro aspecto, e com ele quem purifica as almas das opi
relação às mesmas ciências, não se niões que são um obstáculo às ciên
revelou ele varejista? cias.
SOFISTA 157
b E ST R A N G E IR O TEpTETO
" -—’ Como chegam esses homens a -— Erbem voluntariamente.
• r.
incutir na juventude que somente eles,
E STR A N G EIR O
e a propósito de todos os assuntos, são — E 'què; ao que creio, eles pare
mais sábios que todo o mundo? í^ois, cem ter uma sabedoria pessoal sobre
na realidade, s e ‘como contraditòres todos os ássuntos que contradizem.
UViOV
nao tivessem ràzão, ou não garèces-
TEETETO
sem, à sua juventude, ter razao; se, -— Irrecusavelmente.
mesmo assim, a sua Habilidade em dis
cutir não ' désse algum brilho à sua E STR A NG EIRO
sabedoria, então seria caso de dizer, — E assim fazem, a propósito de
tudo, segundo cremos?
como tu, que ninguém viria voluntaria
mente dar-lhes dinheiro para deles TEETETO
— Sim.
aprender estas duas artes.
TEETETO ESTRANGEIRO'
— Certamente. — Dão, então, a seus discípulos a
• E STR A N G EIR O
impressão de serem oniscientes. 1
— Ora, na verdade, os que os pro TEETETO
curam o fazem voluntariamente.
• \
— Como n ã o !
SOFISTA 159
. E ST R A N G E IR O ^ TEETETO
— Ora, não é neste caso que se — É mesmo o que parece.
encontra uma grande parte da pintura E ST R A N G E IR O ^ j
e da mimética, em seu todo? — É a consciência da dificuldade
TEETETO que te leva a essa afirmação ou estará
— Sem dúvida. sendo levado pelo curso da argumenta
E ST R A N G E IR O ção e pela força do hábito, ao afirma
— Mas à arte que, em lugar de uma res, tão prontamente, o que eu afirmo?
cópia, produz um simulacro, não cabe TEETETO
ria, perfeitamente, o nome de arte do — Que queres dizer? Por que essa
simulacro? pergunta? '
— SimJ perfeitamente. E STR A N G EIR O
E ST R A N G E IR O
— É que, realmente, jovem feliz,
— Aí estão as duas formas que te nos vemos frente a uma questão extre
anunciei da arte que produz imagens: a mamente difícil; pois, mostrar e pare- «
arte da cópiâ è à arte do simulacro. cer sem ser, dizer algo sem, entretanto,
—- ísso mesmo. dizer com verdade, são maneiras que
trazem grandes dificuldades, tanto
E ST R A N G E IR O
— P ara o problema que então me hoje, como ontem e sempre. Que modo
deixara perplexo, o de saber em qual encontrar,- na realidade, para dizer ou
destas artes colocar o sofista, ainda pensar que o falso é real sem que, já ao
não vejo, claramente, uma solução. proferi-lo, nos encontremos enredados
à Esse homem é verdadeiramente um na contradição? Na verdade, Teeteto,
assombro e é muito difícil apanhá-lo a questão é de uma dificuldade extre- 237 a
compiètániente, pois ainda desta vez, ma.
lá está éle, belo e bem refugiado, em TEETETO
uma forma cujo mistério é indecifrável. — Por quê?
h á pouco e ainda agora, afirmei como — Por que então falar de mim por
e princípio que o não-ser não deve parti mais tem po? Paira m ostrar que fui ven
cipar nem da unidade nem da plurali cido, agora como sempre, nesta argu
dade, já ao afirmá-lo eu o disse uno; m entação contra o não-ser? Não é,
pois disse >co não-ser” . Com preendes pois, no que eu falo, como te dizia, que
certamente. devemos procurar as regras de falar
corretam ente a respeito do não-ser.
TEETETO
— . Sim, M as prossigam os e agora vamos pro
curá-las em ti. :
ESTRANGEIRO
— Instantes antes afirm ava ainda TEETETO
que ele é impronunciável, inefável e — Que queres dizer?
inexprimível. Estás seguindo? ESTRANGEIRO
— A diante pois. Tu que és jovem ,
TEETETO .
— Sim, como não te seguir? sê grande e bravo. C oncentra todas as
tuas forças e, sem unir ao não-ser, nem
ESTRANGEIRO
— Tentar aplicar-lhe este “é” não é o ser, nem a unidade, nem a plurali
239 a ■ contradizer as minhas proposições an dade num érica, procura dar-nos um
teriores? enunciado correto a seu respeito.
TEETETO TEETETO c
— Provavelmente. . — .Seria grande a m inha tem eri
ESTRANGEIRO dade, e insensata a m inha em presa se
— E então? Aplicar-lhe não era me atrevesse onde vi sofreres um tal
dirigir-me, nele, a um a unidade? revés.
TEETETO ESTRANGEIRO
— Sim. — Pois b e m ! Se te parece melhor,
ESTRANGEIRO não cogitemos nem de ti nem-de mim.
— E mais: dizendo-o inexprimível, M as, até que encontremos alguém
inefável, impronunciável, eu o expres capaz dessa proeza, digamos que o
sava como unidade. sofista, da m aneira mais astuciosa do
TEETETO m undo, se escondeu num refúgio inex
— Com o não reconhecê-lo? tricável. ' ‘
ESTRANGEIRO TEETETO
— Ora, nós afirmamos que é im — E precisam ente o que parece.
possível a quem fale com rigor, defini- ESTRANGEIRO
lo, seja como uno ou como múltiplo, e — Em conseqüência, se afirmamos
mesmo absolutamente impossível de que ele possui um a arte de simulacro, o
falar dele, pois, ainda aqui, essa m anei emprego de tais fórmulas lhe tornaria </
166 PLATÃO
fácil a resposta. Facilm ente ele voltaria todos eles. F ala agora, e sem permitir-
çpntr.a nós as nossas fórmulas, e quan lhe vantagem alguma, repele o adver
do. p gham ássem os de produtor dç imar sário.
gens ele nos perguntaria o que, afinal TEETETO v
de contas, cham am os de imagens. — Que outra definição daríam os à
Devem os, pois, procurar, Teeteto, o imagem, estrangeiro, se não a de um
que se ppderia responder, com acerto, segundo objeto igual, copiado do ver
a este espertalhão. . dadeiro?
TEETETO ESTRANGEIRO
— Evidentemente que responde — Teu “ segundo objeto igual” sig
rem os lem brando as imagens das nifica um objeto verdadeiro, ou, então,
águas e dos espelhos, as imagens pinta que queres dizer com esse “ igual” ? *
das ou gravadas, e todas as demais, da TEETETO
m esm a espécie. — De form a algum a um verda
« ESTRANGEIRO deiro, certam ente, m as um que com ele
— Bem se vê, Teeteto, que jam ais se pareça.
yiste um sofista. ESTRANGEIRO
TEETETO ^ ■—■ M as, por verdadeiro, tu entendes
—: Por quê? “um ser real” ?
ESTRANGEIRO TEETETO
— Ele te parecerá um homem que — Certam ente.
fecha ps olhos ou que, absolutamente, ESTRANGEIRO _
não tem olhos. — Então? Por não-verdadeiro tu
TEETETO entendes o contrário do verdadeiro?
— Com o assim? TEETETO
e s t r a n Ge i r q — Certamente.
— Q uandp assim lhe responderes, ESTRANGEIRO
ao lhe falar do que se form a nos espe — O que parece é, pois, p a ra ti, um
lhos ou do que as mãos amoldem, ele não-ser irreal, pois o afirmas não-ver-
se rirá de teu-s exemplos, destinados a dadeiro.
um hom em que vê. Fingirá ignorar TEETETO
espelhos, águas e a própria vista e te — Entretanto, há algum ser.
240 a perguntará, unicam ente, o que se deve ESTRANGEIRO
concluir de tais exemplos. — Em todo o caso, não um ser
TEETETO verdadeiro, ê o que dizes.
— O quê? TEETETO
ESTRANGEIRO — Certam ente não; ainda que ser
— O que há de comum entre todos por semelhança seja real.
esses objetos que tu dizes serem múlti ESTRANGEIRO
plos m as que’ hqnras por um único — Assim, pois, o que chamamos
nome, que é o nome de jmagem, e que semelhança é realmente um não-ser
entendes como um ^ unidade sobre irreal?
SOFISTA 167
ESTRANGEIRO TEETETO ^
— Que, p ara defender-nos, teremos — Evidentemente, esse é o ponto
de necessariam ente discutir a tese de que teremos de debater em nossa
nosso pai Parmênides e dem onstrar, discussão. .
pela força de nossos argumentos que, ESTRANGEIRO
em certo sentido, o não-ser é; e que, — Como não .haveria de ser evi
por sua vez, o ser, de certa form a, não dente mesmo p ara um cego, como se
é. • diz? Enquanto não houverm os feito
SOFISTA
esta contestaçao, nem essa dem onstra
contestação sempre ultrapassou as m i
ção, não poderemos, de form a alguma,
nhas forças e, certamente, ainda ultra
falar nem de discursos falsos nem de passa.
opiniões falsas, nem de imagens, de có
pias, de imitações ou de sim ulacros, e TEETETO •
— Sim, declaraste.
m uito menos de qualquer das artes que
deles se ocupam, sem cair, inevitavel ESTRANGEIRO
mente, em contradições ridículas. — Temo, depois do que declarei,
TEETETO ' que me tomes por insensato, vendo-me
— É bem verdade. passar à vontade, de um a outro extre
ESTRANGEIRO mo. Ora, n a verdade, é somente p ara *
— Essa é a razão por que é chega teu agrado que nos decidimos a contes
da a hora de atacar a tese de nosso pai tar a tese, no caso de tal contestação
ou se algum escrúpulo nos impede de ■ser possível.
fazê-lo, de renunciar absolutam ente à TEETETO
questão. ' — Confia, que, pelo menos eu,
TEETETO nunca te observarei se te lançares
— Isso não; creio que nada deve nessa contestação e nesta dem onstra
deter-nos. ção. Se é só o que te preocupa, prosse
ESTRANGEIRO gue sem nad a temer.
— Nesse caso, pela terceira vez ESTRANGEIRO
quero pedir-te um pequeno favor. — Então prossigamos. Por onde ,
TEETETO começarem os um a argum entação tão
— Dize o que é. perigosa? A meu ver, este é o caminho
ESTRANGEIRO que se impõe.
— Declarei há pouco, creio, e de TEETETO ■
um a m aneira expressa, que um a tal — Qual?
As doutrinas unitárias
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
— E m bora não tenham os proce — Alguns procuram trazer à terra
dido aqui ao exame de todos os que, tudo o que h á no céu e no invisível,
porm enorizadam ente, tratam do ser e tom ando, num simples aperto de m ão,
do não-ser, aceitemos o exame que a rochas e carvalhos. E, n a verdade, é
fizemos como suficiente. H á outros em virtude de tudo o que, dessa forma,
que, em suas explicações, têm preten podem alcançar que afirmam obstina
sões diferentes; e devemos examiná- damente que só existe o que oferece
los, igualmente, p a ra convencer-nos, resistência e o que se pode tocar. Defi
246 a por um exame completo, que não é nem o corpo e a existência como idên
nada mais fácil dizer o que é o Ser do ticos e logo que outros pretendam atri
que o que é o não-ser. buir o Ser a algo que não tenha corpo,
TEETETO m ostram por estes um soberbo des
■
—■ É preciso então examiná-los prezo nada mais querendo ouvir.
também. TEETETO
ESTRANGEIRO — E verdade. Os homens de quem
— N a verdade, parece que, entre falas são intratáveis! Eu mesmo já
eles, h á um com bate de gigantes, tal o encontrei vários deles.
ardor com que disputam, entre sir ESTRANGEIRO
sobre o ser. — Por sua vez, os seus adversários
TEETETO nesta luta se m antêm cuidadosamente
— Com o assim? em guarda, defendendo-se do alto de
SOFISTA 175
TEETETO ESTRANGEIRO
— U m a vez que, até agora, eles não — A paixão ou a ação resultante de
têm nenhum a definição melhor, aceita um poder que se exerce ao encontro de
rão essa. dois objetos. Talvez tu, Teeteto, desco
ESTRANGEIRO nheças a resposta que dão a esta per
■
— Está bem. Talvez adiante, tanto gunta, m as eu talvez a saiba, pois, eles
nós como eles m udarem os de opinião. me são familiares.
248 a Por enquanto, fique assim entendido, TEETETO
entre eles e nós. — Qual é, então, essa resposta?
TEETETO ESTRANGEIRO
— Sim, entendido. — N ão concordam , absolutamente,
ESTRANGEIRO com o que h á pouco dizíamos, a res
— Passemos agora aos outros, aos peito do Ser, aos filhos da T e rra 4.
Amigos das Form as, e ainda aqui TEETETO
traduze-nos tu a sua resposta. — O quê?
TEETETO ESTRANGEIRO
— Assim farei. — A definição que adiantam os:
“ aquilo em que está presente o poder
ESTRANGEIRO
— Vós separais o devir do ser e a de exercer ou de sofrer a ação, por
ele vos referis como sendo distintos, menor que seja55, bastaria para, de
não é? algum m odo, definir os seres?
TEETETO
TEETETO — Sim.
— Sim.
•ESTRANGEIRO
ESTRANGEIRO — Pois eles responderão o seguin
— E é pelo corpo, por meio da sen te: o devir participa, certamente, do
sação, que estamos em relação com o poder de sofrer e de exercer; m as ao
devir; m as pela alma, por meio do ser, nenhum destes poderes convém:
pensam ento, é que estam os em comu
TEETETO
nhão com o ser verdadeiro, o qual di — E, no que dizem, há algum a
zeis vós, é sempre idêntico a si mesmo coisa?
e imutável; enquanto que o devir varia
ESTRANGEIRO
a cada instante. — A lgum a coisa a que devemos
TEETETO responder pedindo-lhes que nos ensi
— É precisam ente o que afirmanem, m ais claram ente, se concordam
mos. em que a alm a conhece e que o ser é
ESTRANGEIRO conhecido.
— M as que sentido, diremos, em TEETETO
prestais vós, excelentes pessoas, a esta — Q uanto a isso, certam ente con
com unhão, em sua dupla atribuição? cordam.
Será o mesmo sentido a que há pouco ESTRANGEIRO
nos referimos? — Pois bem, conhecer ou ser co-
4 Referência irônica aos filósofos, ou mais pre
TEETETO cisamente, aos sofistas por sua impiedade.
— Qual? ÍN. do E.)
178 PLATÃO
A irredutibilidade do ser
ao movimento e ao repouso
ESTRANGEIRO TEETETO
— E então? Não parece que, a p ar — E ra o que pelo menos eu acredi
tir de agora, encerram os perfeitamente tava, e não sei bem em que estejamos
o ser em nossa definição? assim enganados.
TEETETO
ESTRANGEIRO
— Perfeitamente. — Exam ina, então, mais clara
ESTRANGEIRO mente, se a propósito de nossas últi
— O h ! assim fosse, Teeteto!, pois
m as conclusões, não se teria direito de
ao que creio ê precisam ente este o propor-nos as mesmas questões que 250 a
mom&nto em que veremos o quanto o propusem os antes aos que definiam o
seu exame é difícil. Todo pelo quente e o frio.
TEETETO
— Em quê, ainda? Que quçres TEETETO
-—■ Que questões? Dize-as de novo.
dizer?
' ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
— O jovem fe liz ! N ão te apercebes — D e bom grado. Ao recordá-las,
de que, em bora acreditando discemi-lo procurarei fazê-lo interrogando-te da
claram ente, nós agora nos encon m esm a form a como então os interro
tram os na ignorância m ais profunda a gara; o que nos servirá para, ao mesmo
seu respeito? tem po, progredir um pouco.
180 PLATÃO
TEETETO TEETETO
— M uito bem. — E m ais ou menos assim.
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
— Vejamos: o repouso e o movi — P a ra onde deve dirigir o racio
m ento não são, n a tua opinião,.absolu cínio quem quiser descobrir um a teoria
tam ente contrários um ao outro? bem fundada a esse respeito?
TEETETO TEETETO
— Sem dúvida. — P ara onde? Dize.
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
— E ntretanto tu afirmas que — Creio que em nenhum a parte é
ambos são e tanto um como outro? fácil; pois, se um a coisa não se move,
TEETETO como é possível que não esteja para
— Sim, certam ente o afirmo. da? E como deixará de ter movimento
ESTRANGEIRO aquilo que nunca está quieto? Portan
— D izendo que são, declaras esta to, o ser revelou-se agora como sepa
rem os dois e cada um deles em rado dos dois. Isto é possível?
m ovim ento? TEETETO
TEETETO — É a coisa mais impossível entre
— N unca. todas.
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
— M as dizendo que ambos são, — A qui devemos lem brar isto.
declaras que estão imóveis? TEETETO
TEETETO ■ ' — O quê?
— Com o é isso? ESTRANGEIRO
ESTRANGEIRO^ .— Que encontram os grande difi
— Logo, supões em teu espírito, culdade quando alguém nos perguntou
além dessas duas coisas, um a terceira: com que coisa se relaciona a expressão
o ser. E s te . abrange repouso e movi “não-ser” . Recordas?
mento. N ão dizes que os. dois são, TEETETO
unindo-os e observando a sua partici — Certam ente.
pação n a existência? . ESTRANGEIRO
TEETETO ■ — Será porventura m enor a dificul
— Parece realmente que pressen dade em que o ra nos encontram os a
tim os um a terceira coisa, o ser, quando propósito do ser?
dizemos que movimento e repouso são. TEETETO
ESTRANGEIRO — A meu ver, estrangeiro, se me
— Logo, o ser não é a reunião de permites dizer, é ainda maior.
repouso e movimento, m as é coisa dife ESTRANGEIRO
rente de ambos. — Nesse caso, parem os nossa ex
TEETETO posição nessa delicada questão. Já,
— Naturalm ente. pois, que o ser e o não-ser nos trazem
ESTRANGEIRO iguais dificuldades, podemos dora
— Por sua própria natureza, o ser vante esperar que, no dia mais ou
não está imóvel nem em movimento. menos claro, em que um deles se reve-
SOFISTA 181
lar, o outro se esclarecerá de igual que nos for possível, tomando a ambos
25i a m odo. Se nenhum deles se revelar a sim ultaneam ente.
nós, não deixaremos de prosseguir em TEETETO
nossa discussão, da melhor m aneira — M uito bem.
O problema da predicação e
a comunidade dos gêneros
A dialética e o filósofo
ESTRANGEIRO ^ ESTRANGEIRO
— M uito bem. Desde que os gêne — Dividir assim por gêneros, e não
ros, como conviemos, são eles tam bém tom ar por outra, um a form a que é a
m utuam ente suscetíveis de semelhantes mesma, nem pela m esm a um a form a
associações, não haverá necessidade que é outra, não é essa, como diríam os,
de um a ciência que nos oriente através a obra da ciência dialética?
do discurso, se quisermos apontar com
TEETETO
exatidão quais os gêneros que são — Sim, assim diríamos.
m utuam ente concordes e quais os ou
tros que não podem suportar-se, e m os ESTRANGEIRO
— Aquele que assim é capaz dis
trar mesmo, se h á alguns que, estabele
cerne, em olhar penetrante, um a form a
cendo a continuidade através de todos,
única desdobrada em todos os senti
tom am possíveis suas combinações, e
dos, através de um a pluralidade de for
se, ao contrário nas divisões, não há
mas, das quais cada um a perm anece
outros que, entre os conjuntos, são os
distinta; e mais: um a pluralidade-de
fatores dessa divisão?
formas diferentes um as das outras
TEETETO • envolvidas exteriormente por um a
— C ertam ente é necessária tal
form a única repartida através de plura
ciência que é, talvez, a suprem a ciên
lidade de todos e ligada à unidade;
cia?
finalmente, num erosas form as inteira
ESTRANGEIRO mente isoladas e separadas; e assim
— Que nom e, então, daríam os a
sabe discernir, gêneros por gêneros, as
essa ciência, Teeteto? Por Zeus, não
associações que para cada um deles
estarem os, sem o sabermos, dirigindo-
são possíveis ou impossíveis.
nos p a ra a ciência dos hom ens livres è
correndo o risco., nós que procuram os TEETETO
o sofista, de haver, antes de encontrá- — Perfeitamente.
lo, descoberto o filósofo? ESTRANGEIRO
TEETETO — Ora, esse dom, o dom dialético,
— Que queres dizer? não atribuirás a nenhum outro, acredi-
SOFISTA 185
TEETETO ESTRANGEIRO
— É o que é necessário fazer. — M as certamente nem o movi
ESTRANGEIRO mento nem o repouso não serão o
— O ra, os m ais im portantes desses “ outro” nem o “mesmo” .
gêneros são precisam ente aqueles que TEETETO
acabam os de examinar: o próprio ser, — Com o assim?
o repouso e o movimento. ESTRANGEIRO
TEETETO — O que quer que atribuam os de
— De longè, os maiores. comum ao movimento e- ao repouso
ESTRANGEIRO não poderá ser nem um nem outro
— D issem os, por outro lado, que deles.
os dois últim os não podiam associar-se TEETETO
um ao outro. • -—■ Por quê?
TEETETO ESTRANGEIRO
— É exato. — Porque ao mesmo tem po o mo
ESTRANGEIRO
vimento se im obilizaria, e o repouso se
— M as o ser se associa a ambos: tornaria móvel. Com efeito, se qual
pois, em suma, os dois são. quer um dentre eles se aplicar a esse
TEETETO
par, obrigará o outro a m udar sua pró
— N ão h á dúvida. pria natureza n a natureza contrária,
pois o to m a rá participante de seu b
ESTRANGEIRO
— E ntão, h á três. contrário.
TEETETO TEETETO
— Evidentemente. — Certam ente.
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
— A ssim , cada um é outro com — M as ambos participam , quer do
relação aos dois que restam , e o mesmo, quer do outro.
mesmo que ele próprio. TEETETO
— Sim.
« TEETETO •
— Sim. ESTRANGEIRO
ESTRANGEIRO — N ão digamos, pois, que o movi
— M as que significado demos a mento é o mesmo ou o outro, nem o
este “m esm o” e a este. “outro” ? Serão digamos p ara o repouso.
estes dois gêneros diferentes dos três TEETETO
prim eiros, se bem que sempre necessa — Realmente, não o diremos.
riam ente associados a eles? Devere E STR A N G EIR O
mos, então, considerar cinco seres e — M uito bem, deveremos entender
não três, ou este “m esm o” e este o ser e o mesmo como constituindo
2JJ <. “outro” serão, sem que o saibamos, um?
simplesmente outros nomes que damos TEETETO
a qualquer um dos gêneros preceden — Talvez.
tes? ESTRANGEIRO
TEETETO — M as se o ser e o mesmo não sig
— Talvez. nificam nada de diferente, ao afirmar-
SOFISTA 187
mos que o movimento e o repouso são, vimos perfeitamente que tudo o que é
diremos que eles são o mesmo, como outro só o é por causa da sua relação
seres que são. necessária a o utra coisa.
TEETETO TEETETO
— Entretanto, isso é impossível. — É verdade o que dizes.
E STR A NG EIRO ESTRANGEIRO
— Então é impossível que o mesmo — É necessário, pois, considerar a
e o ser não sejam senão um. natureza do “outro” como um a quinta
TEETETO form a, entre as que já estabelecemos.
— Sim, ao que parece. TEETETO
E STR A NG EIRO -—■ Sim.
— Deveremos, pois, às três form as ESTRANGEIRO
precedentes, adicionar “o m esm o” — Direm os, também, que ela se
como quarta forma? estende através de todas as demais.
TEETETO C ada um a delas, com efeito, é outra
— Perfeitamente. além do resto, não em virtude de sua
E STR A NG EIRO própria natureza, m as pelo fato de que
— E então? “ O outro” deverá ser ela participa da form a do “outro” .
contado como um a quinta form a? Ou TEETETO
será necessário entender a ele e ao ser — Certam ente.
como dois nomes que servem a um gê ESTRANGEIRO
nero único ? — Eis, pois, o que nos é necessário
TEETETO dizer a respeito dessas cinco form as
— Talvez. tom adas um a a um a.
ESTR A NG EIRO TEETETO
— M as concordarás, creio, que — O quê?
dentre os seres uns se expressam por si ESTRANGEIRO ■
mesmos e outros, unicam ente em algu — Em primeiro lugar, o movim en
m a relação. to: ele é absolutam ente outro que não o
TEETETO repouso. N ão é o que dizemos?
— Evidentemente. TEETETO
E STR A NG EIRO — É.
— Ora, “o outro” se diz sempre E ST R A N G E IR O
relativam ente a um outro, não é? — Logo, ele não é repouso.
TEETETO TEETETO
— Certam ente. — De m aneira alguma.
E ST R A N G E IR O , ESTRANGEIRO
— Isso não se daria se o ser e o — E ntretanto, ele “é” pelo fato de
“ outro” não fossem totalm ente diferen participar do ser.
tes. Supondo-se que o “outro” partici TEETETO
passe das duas form as, como acontece — É.
com o ser, poderia acontecer que, a um ESTRANGEIRO
dado m omento, houvesse um outro que — E mais: o movimento é outro
não fosse relativo a outra coisa. Ora, já que não o “mesm o” .
188 PLATÃO
TEETETO TEETETO
— Seja. — Seria, ao contrário, perfeita
mente correto, se devemos convir que,
ESTRANGEIRO
— E ntão ele não é “o m esm o” . entre os gêneros, uns se prestam à
associação m útua, outros não.
TEETETO
ESTRANGEIRO
— Certam ente não. .
— Ora, essa é justam ente a de
ESTRANGEIRO . m onstração à qual havíam os chegado
— Entretanto, vimos que ele é o antes de atingirmos esta, e havíamos
mesmo, pois como conviemos tudo provado que é precisam ente essa a sua
participava do mesmo. natureza.
TEETETO TEETETO
— Certam ente. — Evidentemente.
ESTRANGEIRO ^ ESTRANGEIRO
— E ntão o movimento é o mesmo, — Retomem os, pois: o movimento
e não o mesmo: é necessário convir é outro que não o “outro” , assim como
nesse ponto sem nos afligirmos, pois, era outro que não o mesmo e que não o
quando dizem os o mesmo e não o repouso?
mesmo, não nos referimos às mesmas TEETETO
relações. Q uando afirmamos que ele é — Necessariam ente.
o mesmo é porque, em si mesmo, ele ESTRANGEIRO
participa do mesmo, e quando dizemos — Em certa relação ele não é, pois,
que ele não é o mesmo, é em conse o outrtff e é outro de acordo com o
qüência de sua comunidade com “o nosso raciocínio de agora.
outro” , com unidade esta que o separa TEETETO
do “m esm o” e o to m a não-mesmo, e — É verdade.
sim outro; de sorte que, neste caso, ESTRANGEIRO
temos o direito de chamá-lo — Daí o que se segue? Irem os nós,
“não-o-m esm o” . afirmando-o outro que não os três pri
meiros, negar que seja outro que não o
TEETETO ' quarto, havendo concordado que os
— Perfeitamente.
gêneros que estabelecemos e que nos
ESTRANGEIRO propusem os examinar eram cinco?
— Se, pois, de algum a maneira, o TEETETO
próprio movim ento participa do repou — E o meio? Não podem os admitir
so, haveria algo de estranho em cha um número menor que aquele que há
má-lo estacionário? pouco demonstram os?
SOFISTA 189
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
— É, pois, sem tem or que susten-, — Assim, vemos que tantos quan
tam os esta afirmação: o movimento é- tos os outros são, tantas vezes o ser
outro que não o ser. não é; pois, não os sendo, ele é um em
TEETETO si; e por sua vez, os outros, infinitos
— Sim, sem som bra de escrúpulo. em núm ero, não são.
ESTRANGEIRO . TEETETO
— Assim, pois, está claro que o — Parece ser verdade.
m ovimento é, realmente, não ser, ainda ESTRANGEIRO
que seja ser na m edida em que parti — Aqui, ainda, não há nada. que
cipa do ser? . nos deva. preocupar, pois a natureza
TEETETO dos gêneros com porta comunidade
— Absolutam ente claro. mútua. Aquele que se recusa a concor
ESTRANGEIRO dar conosco neste ponto, que comece
— Segue-se, pois, necessariam ente, por converter à sua causa os argum en
que há um ser do não-ser, não somente tos precedentes, antes de procurar
no movimento, m as em toda a série negar as conclusões.
dos gêneros; pois n a verdade, em todos TEETETO
eles a natureza do outro faz cada um — O que pedes é justo.
deles outro que não o ser e, por isso ESTRANGEIRO
mesmo, não-ser. Assim, universal — Eis, ainda, um ponto a conside
mente, por essa relação, cham arem os a rar.
todos, corretam ente, não-ser; e ao TEETETO
contrário, pelo fato de eles partici — Qual?
parem do ser, diremos que são seres. ESTRANGEIRO
TEETETO — Quando falam os no não-ser isso
— É possível. não significa, ao que parece, qualquer
ESTRANGEIRO coisa contrária ao ser, mas apenas
— Assim, cada form a encerra um a outra coisa qualquer que não o ser.
m ultiplicidade de ser e um a quantidade TEETETO
infinita de não-ser. ' — Com o assim?
ESTRANGEIRO
TEETETO . — Q uando, por exemplo, falamos
— É possível. de àlgo “não grande” , crês que por
ESTRANGEIRO essa expressão designamos mais' o
— Logo, é necessário afirmar que o pequeno que o igual?
próprio ser é outro que não o resto dos TEETETO
gêneros. — Que razão teríam os nós?
TEETETO - ' ESTRANGEIRO
— Necessariamente. — N ão podemos, pois, admitir que
190 PLATÃO
tes como seres pela m esm a razão que o samente; o não-ser que buscávam os a
que quer que seja. propósito do sofista. %*
TEETETO
— Evidentemente. ESTRANGEIRO
— Ele não é, pois, como disseste,
ESTRANGEIRO
— Assim, ao que parece, quando inferior em ser a nenhum outro. É
um a parte da natureza do outro e um a necessário anim arm o-nos a proclam ar,
parte da natureza do ser se opõem desde já, que o não-ser é, a título está
m utuam ente, esta oposição não se vel, possuidor de um a natureza que lhe
assim podemos dizer, m enos ser que o é própria do mesmo modo que o gran
próprio ser; pois não é o contrário do de era grande e o belo era belo, e o
ser o que ela exprime; e sim, simples não-grande, não-grande, e o não-belo,
mente, algo dele diferente. não-belo; por essa m esm a razão tam
TEETETO bém, o não-ser era e é não-ser, unidade
— É claro. integrante no número que constitui a
ESTRANGEIRO
m ultidão das formas. Ou a teu ver,
— E, então, que nome lhe daría
mos? Teeteto, teríam os algum a dúvida?
TEETETO TEETETO
— Claro que o de “não-ser” preci — Nenhum a.
ESTRANGEIRO TEETETO
— N a verdade, meu caro amigo, — Tens razão nesse ponto. M as
esforçar-se por separar tudo de tudo, não compreendo por que devemos,
e não ê apenas ofender à harm onia, mas agora, definir em comum o discurso.
ignorar totalm ente as m usas e a filoso ESTRANGEIRO
fia. — Eis, talvez, algumas razões que
te farão — se me quiseres ouvir —
TEETETO ^
— Por quê? compreender mais facilmente.
TEETETO
ESTRANGEIRO — Quais?
— É a m aneira mais radical de ani
ESTRANGEIRO
quilar 'todo discurso, isolar cada coisa — Havíam os descoberto que o
de todo o resto; pois é pela m útua não-ser é um gênero determinado entre
com binação das form as que o discurso os demais, e que se distribui por toda
nasce.
série dos gêneros.
TEETETO
TEETETO
— É verdade.
— É exato.
* ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
— Vês, pois, como era oportuno, — M uito bem; resta-nos agora exa
como o fizemos há pouco, lutar contra m inar se ele se associa à opinião e ao
essas pessoas e constrangê-las a acei discurso.
tar a associação mútua. TEETETO
TEETETO — Por quê?
— Oportuno p ara quê? ESTRANGEIRO
ESTRANGEIRO
— Se ele não se associa, segue-se
— P ara assegurar ao discurso lugar necessariam ente que tudo é verdadeiro.
no número dos gêneros do ser. Privar M as, um a vez que a ele se associe,
m o-nos disso, com efeito, seria, desde então, a opinião falsa e o discurso
logo — perda suprem a — privar-nos falso serão possíveis. O fato de serem
da filosofia. Além disso, é-nos necessá não-seres o que se enuncia ou se repre
rio, agora, definirmos a natureza do senta, eis o que constitui a falsidade,
discurso. Se dele fôssemos privados, quer no pensam ento, quer no discurso.
recusan'do-lhe absolutam ente o ser, TEETETO
isso significaria negar-nos toda possi — Com efeito.
bilidade de discorrer sobre o que quer ESTRANGEIRO
b que fosse, e dele estaríamos privados — O ra, se h á falsidade, há engano.
se concordássem os que absolutamente TEETETO
n ad a se associa a nada. — Sim.
194 PLATÃO
TEETETO TEETETO
— Sim. — Certam ente.
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
— Que qualidade devemos, pois, — Ora, se não se refere a ti, não se
atribuir a um e outro? refere, certam ente, a ninguém mais.
TEETETO TEETETO
— Poderemos dizer que um é falso, — Evidentemente.
outro verdadeiro. ' ESTRANGEIRO
ESTRANGEIRO — N ão discorrendo sobre pessoa
— Ora, aquele que, dentre os dois, alguma, não seria então, nem mesmo
é verdadeiro, diz, sobre ti, o que é tal um discurso. N a verdade demons
como é. tram os que é impossível haver discurso
TEETETO que não discorra sobre algum a coisa.
— C laro! TEETETO
ESTRANGEIRO — Perfeitam ente exato.
:— E aquele que é falso diz outra ESTRANGEIRO
coisa que aquela que é. — Assim , o conjunto form ado de
TEETETO verbos e de nomes, que enuncia, a teu
— Sim. respeito, o outro como sendo o mesmo,
e o que não é como sendo, eis, exata
ESTRANGEIRO
— D iz, portanto, aquilo que não é. mente, ao que parece, a espécie de con
junto que constitui, real e verdadeira
TEETETO
— M ais ou menos. mente, um discurso falso.
TEETETO
ESTRANGEIRO — É a p ura verdade.
— Ele diz, pois, coisas que são,
ESTRANGEIRO
m as outras, que aquelas que são a teu — E então? N ão é evidente, desde
respeito; pois, como dissemos, ao já, que o pensam ento, a opinião, a
redor de cada realidade há, de certo im aginação, são gêneros suscetíveis,
modo, muitos seres e m uitos não-seres. em nossas almas, tanto de falsidade
TEETETO como de verdade?
— Certamente. TEETETO
ESTRANGEIRO — Com o?
— Assim, o último discurso que fiz ESTRANGEIRO
a teu respeito deve, em prim eiro lugar, — Com preenderás m ais facilmente
e tendo em vista o que definimos como a razão se me deixares explicar em que
a essência do discurso, ser, necessaria eles consistem e em que diferem um
mente, um dos mais breves. dos outros.
TEETETO TEETETO
— Pelo m enos é o que resulta de — Explica.
nossas conclusões de há pouco. ESTRANGEIRO _
ESTRANGEIRO — Pensam ento e discurso são, pois,
— Deve, em segundo lugar, refe a m esm a coisa, Salvo que é ao diálogo
rir-se a alguém. interior e silencioso da alm a consigo
198 PLATÃO
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
— N ão nos desencorajemos, pois, — Dividim os a arte que produz as
com aquilo que resta fazer. U m a vez imagens em duas form as: um a produz
c esclarecido este ponto, recordemos a cópia, outra produz o simulacro.
nossas anteriores divisões por formas. TEETETO
— Sim.
TEETETO • ESTRANGEIRO
— Exatam ente que divisões? — Q uanto ao sofista, embaraça-
SOFISTA 199
m o-nos sem saber em que form a este m étodo, têm as m ais próxim as afi- 265 a
colocá-lo. nidades de espírito.
TEETETO . TEETETO
— Realmente. . — M uito bem.
E STR A NG EIRO E ST R A N G E IR O
-— E no meio desta dificuldade um a — N ão começamos, então, nossas
vertigem ainda mais tenebrosa nos ata divisões pela arte da produção e arte
cou quando se propôs o argumento da aquisição?
que, contrariando a todos, sustenta que TEETETO
nem a cópia, nem a imagem, nem o — Sim.
simulacro são; pois não h á falsidade E STR A N G EIR O
de modo algum, em tempo algum, em — E, n a arte da aquisição, a caça,
parte alguma. • a luta, o negócio, e outras form as desta
TEETETO '
espécie, não nos deixaram entrever o
— É verdade. sofista?
ESTR A NG EIRO TEETETO
— Agora, entretanto, um a vez des — Perfeitamente.
coberta, pelo menos, a existência do E ST R A N G E IR O •
discurso falso, e da opinião falsa, são — J á que ele está incluído n a arte
possíveis as imitações dos seres; e da m im ética 6, é evidentemente necessário,
intenção em produzi-las, pode nascer em prim eiro lugar, dividir em dois a
um a arte da falsidade. própria arte da produção. Pois a imita- t>
ção é, n à verdade, um a espécie de pro
TEETETO
dução; produção de imagens, certa
— É, realmente, possível.
mente, e não das próprias realidades.
E STR A NG EIRO N ão é certo?
— Que o sofista, finalmente, fosse
TEETETO
colocado em um a das form as acim a — Sim, perfeitamente.
referidas, é um a conclusão sobre a
EST R A N G E IR O
qual já concordam os anteriormente.
— Com ecem os, então, por distin
TEETETO guir, na produção, duas partes.
— Sim. TEETETO
ESTR A N G EIR O j — Quais?
— Procurem os,. então, prosseguir E ST R A N G E IR O
novam ente, dividindo em dois o gênero — U m a divina, outra hum ana.
proposto, e seguindo sempre a parte TEETETO
direita de nossas divisões, e prenden — A inda não compreendo.
do-nos ao que elas apresentam de E ST R A N G E IR O
comum com o sofista, até que, haven — E produtor, dizíamos, se nos
do-o despojado de tudo o que ele tem recordam os de nosso início, todo
de comum, só lhe deixemos a sua n atu poder que se torna causa daquilo que,
reza própria. Poderem os, assim, tor
ná-la clara, prim eiram ente a nós mes 6Arte mimética é a arte da imitação, conside
rada em seus caracteres gerais e em suas seme
m os, e, em seguida, àqueles que, com lhanças com o que se produz. (N . d o T .j
200 PLATÃO
rados igualmente a produção e a obra pela arte que produz as coisas reais; de
de Deus. E o que sabemos, não é outro, a imagem, devida à arte que
certo? produz imagens.
TEETETO TEETETO
— Sim. — A gora compreendo m elhor e
ESTRANGEIRO
estabeleço, p a ra a arte da produção,
— Ao lado de cada um a delas vêm, duas form as, das quais cada um a é
em seguida, colocar-se suas imagens dupla; de um lado, produção divina e
que não são mais suas realidades, e produção hum ana; de outro, criação
que tam bém devem a sua existência a de coisas, ou criação de certas seme
um a arte divina. lhanças.
TEETETO ESTRANGEIRO
— Que imagens? — M uito bem; m as lembremos que
ESTRANGEIRO esta produção de imagens deveria
— Aquelas que nos vêm no sono e compreender dois gêneros: a produção
todos os simulacros que, durante o dia, de cópias e a produção de simulacros,
se formam, como se diz, espontanea um a vez dem onstrado ter o falso um
mente: a som bra que projeta o fogo ser real de falso e assim contado, por
quando as trevas o invadem ; e esta direito de sua natureza, como unidade *
aparência, ainda, que produz, em su entre os seres.
perfícies brilhantes e polidas, o concur TEETETO
so, num mesmo ponto, de duas luzes: — F oi exatamente esse nosso ra
sua luz própria e um a luz estranha, e ciocínio.
que opõe, à visão habitual, um a sensa
ESTRANGEIRO _
ção inversa. — O ra, a dem onstração foi feita e,
TEETETO por conseguinte, é incontestável nosso
— Eis, pois, as duas obras da pro direito de distinguir essas duas form as.
dução divina: de um lado, a coisa em TEETETO
si m esm a; e de outro, a imagem que — Sim.
acom panha cada coisa. ESTRANGEIRO 2d
ESTRANGEIRO — D ividam os, ainda, o simulacro
— M as que diremos de nossa arte em dois.
humana? Não afirmaremos que, pela TEETETO
arte do arquiteto, se cria um a casa — Em que sentido?
real, e, pela arte do pintor, um a outra ESTRANGEIRO
casa, espécie de sonho apresentado — De um lado, o sim ulacro se faz
pela m ão do hom em a olhos desper por meio de instrum entos. D e outro, a
tos? pessoa que executa o simulacro se
TEETETO presta, ela própria, como instrumento.
— Perfeitamente. TEETETO
ESTRANGEIRO — Que queres dizer?
— Assim, pois, se repete até o fim ESTRANGEIRO
esta dualidade de obras de nossa ação — Supõe que alguém movimente o
produtora: de um lado, a própria coisa, seu corpo p a ra reproduzir um a atitude
202 PLATÃO
tua, ou sua voz p ara reproduzir a tua suas forças e zelo, p a ra fazê-la apare
voz; esta m aneira de sim ular é, acredi cer como um a qualidade pessoal real
to, o que se cham a propriam ente por mente neles presente, im itando-a o
mímica. mais que podem em seus atos e
TEETETO palavras?
— Sim. TEETETO
ESTRANGEIRO — M uitos, realmente, muitos.
— Separem os, pois, esta parte com ESTRANGEIRO
o nom e de mímica. Quanto ao resto, — E será que todos falham em
deixemos tranqüilam ente de lado, sem parecer justos sem absolutam ente o
com ele preocupar-nos, ficando a ou serem? Ou é exatamente' o contrário o
tros o cuidado de reduzi-lo à unidade e que acontece?
de dar-lhe um nom e conveniente. TEETETO
TEETETO . . — Exatam ente o contrário.
— Sim, separemos e prossigamos. ESTRANGEIRO
ESTRANGEIRO . — Eis, pois, dois im itadores que é
— M as esta prim eira parte, Teete- necessário considerar diferentes um do
to, deve ainda ser dividida em dois. outro: aquele que não sabe e aquele
Vejamos por quê. qué sabe.
TEETETO TEETETO .
— Dize-o. — Sim.
ESTRANGEIRO . ESTRANGEIRO *
— D entre os que imitam, uns co — Sendo assim, onde encontra
nhecem o objeto que imitam, e outros remos p ara cada um deles um nome
assim fazem sem o conhecer. Orã, que que lhes caiba? Evidentemente é difícil
m aior princípio de divisão poderemos encontrá-lo, pois p ara esta divisão
estabelecer senão este do não-conhe- por gêneros e form as, parece ter sido
cimento e do conhecimento? inveterada a indolência de nossos
TEETETO predecessores que dela tiveram tão
— Nenhum . pouca noção que nem mesmo o tenta
ESTRANGEIRO ram. Assim, nossos recursos a propó
— : Bem; a im itação de que faláva sito de nomes são, necessariam ente,
m os h á pouco, era im itação por pes pouco abundantes. Entretanto, embora
soas que conhecem, pois tua figura e pareça m uito ousada nossa expressão,
tua pessoa são possíveis de serem nós a usarem os p a ra distinguir bem
conhecidas por quem quer que queira um a da outra: à im itação que se apóia
imitá-las. n a opinião darem os o nome de doxo-
TEETETO . . m im ética; e à que se apóia na ciência,
—; Naturalm ente. o nome de m im ética sábia.
ESTRANGEIRO TEETETO .
— M as que dizer da figura da justi — E stá bem.
ça, e, em geral, de toda virtude? Não ESTRANGEIRO
haverá m uitos que, sem a conhecer, — Ora, é da prim eira que nos deve
m as dela tendo apenas um a opinião mos ocupar, pois o sofista não per
qualquer, se desdobram em todas as tence ao número daqueles que sabem,
SOFISTA 203
m as daqueíes que se lim itam a imitar. argum entos breves, obrigando seu in
TEETETO terlocutor a se contradizer.
— Certamente. TEETETO
ESTRANGEIRO — O que dizes é bem exato.
— Examinemos, então, o doxô- ESTRANGEIRO
mimo p ara ver se ele é perfeito como — Que personagem, será, pois,
um a barra de ferro ou se há nelè algu p a ra nós, o hom em dos discursos lon
m a divisão. gos? Político ou orador popular?
TEETETO TEETETO
— Examinemos. ' — O rador popular.
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
— Há, realmente, e um a divisão — E como chamarem os ao outro?
268 a bem visível. D entre estes im itadores há Sábio ou sofista?
o ingênuo, que crê ter ciência do que TEETETO
apenas tem opinião, e, além dele, outro — Sábio, exatamente, é impossível,
que, de tanto haver revolvido os argu pois já afirmamos que ele não sabe
mentos, em si mesmo desperta um a nada. M as, porque imita ao sábio, ele
forte desconfiança, um a viva apreen terá um nome que se aproxime deste, e
são de ignorância pessoal, mesmo em já estou quase convencido de que é a
relação a assuntos sobre os quais, seu propósito que devemos dizer: eis,
diante dos outros, ele se dá ares de verdadeiram ente, nosso famoso sofista.
sábio. ESTRANGEIRO
TEETETO — Encerrarem os aqui a cadeia,
Um e outro gênero existem, como o fizemos anteriormente, rea
certamente, tal como dizes. tando juntos, de ponta a ponta, retros
ESTRANGEIRO pectivam ente, os elementos de seu
— Assim, a um considerarem os nome.
simples imitador, e a outro como imi TEETETO
tador irônico? — É precisam ente o que quero.
TEETETO ESTRANGEIRO
— É razoável. — Assim, esta arte de contradição
ESTRANGEIRO que, pela parte irônica de um a arte fun
— E o gênero ao qual pertence este dada apenas sobre a opinião, faz parte
último, considerarem os único ou da m im ética e, pelo gênero que produz
duplo? os sim ulacros, se prende à arte de criar
TEETETO imagens; esta porção, não divina m as
— Decide tu mesmo. hum ana, da arte de produção que, pos
b ESTRANGEIRO suindo o discurso por domínio próprio,
— Ao exam inar, percebo clara através dele produz suas ilusões, eis
mente dois gêneros. No prim eiro, dis aquilo de que podemos dizer “ que é a
tingo o homem capaz de praticar esta raça e o sangue” do autêntico sofista,
ironia em reuniões públicas, em longos afirm ando, ao que parece, a pura
discursos, diante de m ultidões; ao verdade.
passo que o outro, em reuniões parti TEETETO
culares, dividindo seu discurso em — Perfeitamente.
POLÍTICO
Sócrates, Teodoro, Estrangeiro,
Sócrates, o Jovem
estes jovens poderão ser meus parentes Sócrates, ele não teria lugar n a mesma
longínquos. D izes que um deles se pa classificação.
rece comigo, pelos traços fisionômi- SÓCRATES, O JOVEM
258 a cos 5; o outro, tendo nom e semelhante — Em qual, então?
ao meu, terá comigo certo parentesco. E STR A N G EIR O
E nós devemos sempre procurar reco — Em outra.
nhecer nossos parentes pela m aneira SÓCRATES, O JOVEM
por que conversam. Com Teeteto con — Sim, é o que parece.
versei ontem e ouvi, ainda há pouco, o E STR A N G EIR O
que te respondeu; m as do jovem Sócra — E onde poderíamos encontrar o
tes, nad a ouvi. É m ister, porém, que o caminho pelo qual poderem os chegar à
conheçam os. Interroga-o tu primeiro e compreensão do que é o político? É
mais tarde responderá a mim, mister que o encontrem os e que o sepa
E ST R A N G E IR O remos dos demais, diferenciando-o por
— M uito bem. Ouviste, jovem Só aquilo que lhe é característico, para, a
crates, o que disse Sócrates? seguir, dar aos outros cam inhos, que
SÓ C R A T E S, O JOVEM dele se afastam , um caráter único espe
— Sim. cífico a todos, de sorte a finalmente
E ST R A N G E IR O perm itir ao nosso espírito classificar
— C oncordas com o que ele pro todas as ciências em duas espécies.
põe?
SÓCRATES, O JOVEM
SÓ C R A T E S, O JOVEM
— Esse trabalho, caro Estrangeiro,
— Com todo o gosto.
parece-me ser teu, e não meu.
b E ST R A N G E IR O
— A ssim se tu não te recusas, E STR A NG EIRO
— Entretanto., jovem Sócrates, en
m uito m enos posso eu recusar-'me. D e
contrando esse caminho, ele será tanto
pois do sofista, penso que devemos
teu quanto meu.
agora estudar o político. Dize-me,
SÓCRATES, O JOVEM
pois: devemos ou não colocar o polí
— E stá bem.
tico entre os sábios?
E STR A N G EIR O
• SÓ C R A T E S, O JOVEM —- A aritm ética assim como outras
— Sim.
artes que lhe são semelhantes não são
E ST R A N G E IR O
— Nesse caso devemos classificar separadas da ação e dirigidas apenas
as ciências do mesmo modo como o p ara o conhecimento?
fazíam os ao estudar a personagem SÓCRATES, O JOVEM
precedente 6? — É verdade.
SÓCRATES, O JOVEM E STR A N G EIR O
— Creio que sim. — Entretanto, as artes que se rela
E STR A N G EIR O cionam com a arquitetura ou com
— M as, ao que me parece, jovem qualquer outra form a de construção
5Também no diálogo T e e t e t o assinala-se a se m anual estão ligadas originalm ente à
melhança fisionômica entre Sócrates e Teeteto. ação e o seu concurso à ciência faz
(N . do T.)
6A personagem precedente é o Sofista. (N. com que sejam produzidos corpos que
do T J antes não existiam.
POLÍTICO 209
ca, com o papel de simples espectador, pesquisa tem por objeto o dirigente e
ou será mçlhor decidirmos pela arte não o oposto do dirigente.
diretiva, pois na realidade ele ordena, SÓCRATES, O JOVEM
como o senhor? — Sim.
SÓCRATES, O JOVEM ESTRANGEIRO
— N ão há razão p ara hesitar. . — O ra, muito bem, se o gênero em
ESTRANGEIRO ' questão está bem separado dos outros
— Devemos agora exam inar se por meio desta oposição, do poder pes
tam bém a arte de dirgir perm ite qual soal e do poder de empréstimo, é mis
quer divisão. Penso que do mesmo ter que o dividamos, por sua vez, se
modo que na arte dos com erciantes se encontrarm os nele possibilidade p ara
distinguem os produtores dos revende isso. c
dores, da mesma foram se diferencia o
SÓCRATES, O JOVEM
gênero real do gênero dos arautos.
— Perfeitamente.
SÓCRATES, O JOVEM
ESTRANGEIRO
— Como?
— Julgo que há essa possibilidade.
ESTRANGEIRO A com panha-m e e faze comigo essa
— Os comerciantes, com prando as divisão. .
m ercadorias produzidas por outrem , as
SÓCRATES, O JOVEM
revendem a terceiros.
— Qual?
SÓCRATES, O JOVEM
— Claro. ESTRANGEIRO
— Q uando pensam os em dirigen
ESTRANGEIRO
— Assim tam bém a fam ília dos tes, no exercício de alguma direção,
arautos recebe as decisões alheias p ara não vimos tam bém que as suas ordens
transm iti-las a terceiros. têm sempre como finalidade alguma
coisa a ser produzida? - .
SÓCRATES, O JOVEM
— É verdade. SÓCRATES, O JOVEM
— Evidentemente.
ESTRANGEIRO
— E então? Confundirem os a arte ESTRANGEIRO
do rei com a do intérprete, do patrão — Pois bem. N ão é difícil dividir-se
de barco, do adivinho, do arauto e em duas partes tudo o que se produz.
m uitas outras semelhantes, que têm em SÓCRATES, O JOVEM
si, realmente, um poder diretivo? Ou — D e que m aneira?
preferes que, prosseguindo, a nossa ESTRANGEIRO
com paração, forjemos, por analogia, —- U m a parte desse todo é form ada
um outro nome, pois nenhum existe pelos seres inanim ados, e a outra pelos
p a ra designar esse gênero de dirigentes seres animados.
cujo m ando deriva deles mesmos? Este SÓCRATES, O JOVEM
característico servirá p a ra a nossa — Sim.
divisão e assim porem os o gênero real ESTRANGEIRO
n a classe autodirigente sem nos preo — E desse mesmo modo que a
cuparm os com as demais e darm os a parte diretiva da ciência teórica deve
elas outro nom e qualquer, pois a nossa ser dividida.
212 PLATÃO
S Ó C R A T E S , O JO V EM E S T R A N G E IR O
— Como? — Queres dividi-lo em seres de
E S T R A N G E IR O duas e de uma só unha? Ou, conforme
— Um grupo não possui chifres, o princípio da procriação, em cruzados
enquanto o outro os tem. e puros? Creio que compreendes o que
SÓ C R A T E S , O JO V EM quero dizer?
— Sim.
S Ó C R A T E S , O JO V E M
E S T R A N G E IR O — O quê?
— Divide, pois, a arte de criar os
E S T R A N G E IR O .
animais que andam sobre a terra
— Que, por exemplo, é natural
consagrando uma parte a cada um des
realizar-se a reprodução de cavalos e
ses grupos; e observa que, se quisesses
burros por cruzamento.
dar um nome a cada espécie, encontra
rias maiores dificuldades do que as que S Ó C R A T E S , O JO V E M
— Sim.
são necessárias.
S Ó C R A T E S, O JO V EM E S T R A N G E IR O
— Como deverei denominá-las? — Por outro lado, os outros ani
mais deste rebanho domesticável não
E S T R A N G E IR O
— Assim: dividindo-se a ciência da se podem procriar por cruzamento.
criação dos animais que andam sobre S Ó C R A T E S , O JO V EM
a terra em duas partes; uma abrangerá — Claro.
a parte do rebanho com chifres e a E S T R A N G E IR O
outra, a parte sem chifres. — Pois bem, de qual destes grupos
SÓ C R A T E S, O JOVEM parece cuidar o político, dos que se
— Concordo que isso é bem claro. procriam por cruzamento, oü dos
E S T R A N G E IR O demais?
— Quanto ao rei é evidente que
S Ó C R A T E S , O JO V E M
pastoreia um rebanho sem chifres.
— Evidentemente, daqueles que
SÓ C R A T E S, O JO V E M não se cruzam.
-— Nem poderia deixar de ser.
E S T R A N G E IR O
E S T R A N G E IR O
— Dividamos, então, esse rebanho, — Temos, ao que parece, de dividir
e procuremos atribuir ao Rei o que lhe esta família, como as anteriores, em
pertence. duas partes.
S Ó C R A T E S , O JO V EM S Ó C R A T E S , O JO V EM
— Sim. — Sim, temos.
218 PLATÃO
Quadrúpedes e bípedes.,
O concurso das duas majestades
« E S T R A N G E IR O S Ó C R A T E S, O JO V E M
— Todos os seres mansos e que — Não.
vivem em rebanho já estão discrimi E S T R A N G E IR O
nados, exceto duas espécies, pois, ao — Ora, o modo de caminhar, pró
que creio, não convém incluir a família prio a um segundo gênero tem um
dos cães no número dos animais que se valor igual à diagonal daquele valor
criam em rebanhos. próprio ao nosso modo de caminhar,
S Ó C R A T E S , O JO V E M ^ pois que, naturalmente, ele vale duas
— Não, mas segundo que princípio vezes dois pés.
dividiremos essas duas espécies? S Ó C R A T E S , O JO V EM
E S T R A N G E IR O . — É certo. Agora começo a com
— Segundo o princípio que distin preender aonde queres chegar.
gue Teeteto de ti, pois que vós ambos E S T R A N G E IR O
vos ocupais da geometria. — Mas, caro Sócrates, não vemos
S Ó C R A T E S , O JO V EM ocorrer novamente, nessa divisão, algo
— Como? ridículo? .
E S T R A N G E IR O S Ó C R A T E S , O JO V EM
— Pela diagonal, e depois pela dia — O quê?
gonal da diagonal. E S T R A N G E IR O ^
S Ó C R A T E S , O JO V EM — Colocar o gênero humano na
— Como? mesma liça e fazê-lo disputar em velo
b E S T R A N G E IR O ^ cidade com o gênero de seres ao
— A natureza do gênero húmano mesmo tempo imponente e o mais
nos permitirá um mòdo de caminhar indolente.
diverso daquele que se exprime pelo S Ó C R A T E S , O JO V E M
valor da diagonal, igual á dois pés8. -=— Sim, vejo, é uma coincidência
curiosa. '
8 Pé é medida grega. N o M en ã o está substituí
do pelo metro,, a fim de facilitar a leitura do E S T R A N G E IR O
diálogo pelo leitor moderno. Encontramos no — Mas como? Não é natural que o
Político idêntico quadrado ao que aparece na
quele livro. A diagonal dessa figura é o lado
mais vagaroso venha por úítimo?
de um quadrado cuja área é o duplo da área S Ó C R A T E S , O JO V E M
do primeiro quadrado. A digressão pela mate
mática é puramente simbólica. A área do qua
— Sim.
drado cujo lado mede dois pés de quatro pés E S T R A N G E IR O
quadrados e sua diagonal é o lado do quadra — Mas não observas também que o
do de área dupla. Por causa desses dois núme
ros — dois e quatro — o autor considera a rei será ainda mais ridículo ao concor
diagonal ,do 19 quadrado como símbolo do mo rer com seu rebanho e ao medir-se,
do de andar .dos seres de dois pés e a do 2<?
quadrado — cujo lado é a diagonal do 1(? — sobre a pista, com o homem mais
como símbolo do modo de andar dos quadrú entregue a esta vida indolente9.
pedes. Essas proposições provocam sorrisos
entre os ouvintes, predispondo-os a prestar mais 9 Platão refere-se aqui aos monarcas persas que
atenção. Tal método didático era empregado estão sempre cercados de ajudantes, fâmulos e
pelo autor em suas aulas. (N. do T .) companheiros. (N . d o T .)
POLÍTICO 219
mais sem chifres; e, ainda, esta raça de procuramos; a a:rte que se honra por
animais sem chifres inclui uma parte dois nomes: política e real.
que só poderá ser compreendida por S Ó C R A T E S , O JO V E M
Crítica da definição. Os
rivais do político
membros do rebanho, mas também dos que 10 000 outros que pretendam
governantes? sê-lo.
S Ó C R A T E S , O JO V EM S Ó C R A T E S , O JO V E M
— E. não teriam razão de assim — De nenhum modo.
protestar? E S T R A N G E IR O ^
— Não teríamos nós razoes para
E S T R A N G E IR O
inquietação quando, ainda há pouco,
— Talvez. Haveremos de ver. Uma
nos assaltou a suspeita de que talvez
coisa, porém, sabemos, e que ninguém
houvéssemos traçado um esboço plau
negará, é que isso também se estende
sível do caráter real mas que, no entan
ao criador de bois. É ele que alimenta
to, não o leváramos até o retrato fiel
o seu rebanho, é ele o médico e só ele
do político, pelo fato de não o distin
escolhe os coitos: tanto na procriação
guirmos de todos aqueles que à sua
como no nascimento, é o único par
volta se agitam e que reclamam uma
teiro competente. Na medida em que
parte dos seus direitos de pastor? Não
seus animais participam da sedução da
o separamos suficientemente dos. seus
música, nenhum outro é mais capaz de
rivais para mostrá-lo, unicamente, na
acalmá-los e de consolá-los por meio
sua pureza?
de sons. Sabe executar excelentemente
SÓ C R A T E S , O JO V E M
a música de que seu rebanho gosta,
— Muito bem.
seja por intermédio de instrumentos,
E S T R A N G E IR O
seja apenas pela voz. O mesmo poder-
— É o que faremos, caro Sócrates,
se-ia dizer dos demais pastores, ou
se não quisermos levar esta discussão
não?
a um fim que a desmereça.
S Ó C R A T E S , O JO V EM S Ó C R A T E S , O JO V E M
•— Claro. — E o que preciso evitar a todo
E S T R A N G E IR O ^ _ custo.
— Mas, então, será tão certa e E S T R A N G E IR O
inatacável a nossa teoria sobre o rei? — Partiremos de outro ponto, pros
Nós o consideramos como pastor e seguiremos por outro caminho.
alimentador do rebanho humano, di S Ó C R A T E S , O JOVEM .
zendo que é ele mais importante do — Qual?
222 PLATÃQ
O Recurso ao Mito
agora, deveremos conhecer, pois que é capaz. Eis por que foi animado do
ela nos será útil para definir a natureza movimento de retrocesso circular que
do rei.. dentre todos é o que menos o afasta de
S Ó C R A T E S , O JO V EM
seu movimento primitivo. Ser a causa
— Disseste bem. Conta-a, e nela contínua de sua própria rotação não é
não suprimas nada! ^ possível senão ao que rege tudo aquilo .
que se move. Esse ser, porém,, não
E S T R A N G E IR O
pode mover-se, ora num sentido, ora
—- Escuta! Este universo, em que
no sentido contrário. Por estas razões
estamos, algumas vezes é o próprio
todas não podemos afirmar que o
Deus que lhe dirige o curso e preside à
mundo seja a causa contínua de sua
sua revolução; outras vezes, termina
própria rotação nem dizer que toda
dos os períodos que lhe foram determi
ela, sem interrupção, é dirigida por um
nados, ele o deixa seguir; e então, por
• deus nas suas revoluções contrárias e
si mesmo, o Universo retoma o seu
alternadas e muito menos que ela se 270 a
curso circular, em sentido inverso, em
deve a duas divindades cujas vontades
d- virtude da vida que o anima e da inteli
se opõem. Mas, como dizia há pouco,
gência qúe lhe foi dada, desde a sua
a única solução que resta é que umas
origem, por aquele que o criou. Esse
vezes ela seja dirigida por uma ação
movimento de retrocesso faz parte
estranha e divina e assim, recebendo
necessariamente da sua natureza, pelo
uma nova vida, recebe, igualmente de
motivo seguinte.
seu autor, uma nova imortalidade, que
SÓ C R A T E S, O JO V EM
outras vezes, abandonado a si mesmo,
— Que motivo?
caminhe em retrocesso durante milha
E S T R A N G E IR O res e milhares de períodos, p.ois que a
— Somente ao que há de mais divi sua grande massa se move num per
no convém conservar sempre as mes feito equilíbrio sobre um eixo extrema
mas qualidades, permanecer no mesmo mente pequeno.
estado e ser sempre o mesmo. A natu S Ó C R A T E S , O JO V E M «•
reza corpórea não participa dessa — Tudo o. que acabas de dizer pa
ordem. O que chamamos céu e mundo, rece estar bem próximo da verdade.
apesar dos muitos dotes esplêndidos E S T R A N G E IR O ^
que recebeu de seu criador, está preso — Prossigamos no raciocínio e
e à sorte do corpo. Por isso é impossível examinemos a causa, como dissemos,
que fique eternamente alheio à mudan de todos esses prodígios. Ele consiste
ça e, na medida de suas forças, move- no seguinte:
se no mesmo espaço, coiii um movi SÓ CRATES^ O JO V E M
mento mais idêntico e máis uno de que — Em quê?
224 PLA TÃ O
E S T R A N G E IR O E S T R A N G E IR O ^
— Na rotação do universo que ora — Mas não sabemos, também, que
se faz no sentido atual, ora em sentido é com grande dificuldade que a natu
oposto. reza dos seres vivos suporta mudanças
S Ó C R A T E S , O JO V EM profundas, numerosas e diversas ao
— Como? mesmo tempo?
E S T R A N G E IR O S Ó C R A T E S, O JO V E M
— Essa mudança de sentido deve — Sim.
ser considerada como a mais impor E S T R A N G E IR O _
tante e mais perfeita das variações a — Nessas ocasiões é fatal que a
c que está sujeito o universo, o maior e o morte faça as suas maiores devasta
mais completo. ções entre os seres vivos, reduzindo,
S Ó C R A T E S , O JO V EM
especialmente, o gênero humano a um
— Isso é claro. número ínfimo de sobreviventes. Ao
E S T R A N G E IR O
realizar-se a inversão do movimento d
— Logo, deveremos supor que na atual, os que sobrevivem sofrem toda
quela época é que se produziram as espécie de estranhos e insólitos aciden
transformações mais importantes para tes, dos quais o mais grave, que se deve
nós que residimos e vivemos no seu à mudança de sentido do movimento
interior. do universo, é este:
S Ó C R A T E S , O JO V E M S Ó C R A T E S, O JO V E M •
— É claro. — Qual?
Os filhos da Terra
Os Pastores Divinos
O mundo abandonado
Assim termina este mito, do qual a tomaram desde logo selvagens, agora
primeira parte servirá à nossa teoria do que também eles se viram sem força e
Rei. Quando o mundo, por um movi sem proteção, os homens se tomaram
mento reverso, desviou-se para o modo presas desses animais. Nos primeiros
atual de geração, a evolução das ida tempos, não tiveram qualquer indús
des parou uma segunda vez para voltar tria ou arte; e foi desde este momento
num sentido contrário àquele que de grande abandono, em que seus ali
então seguia. Os seres vivos que se ha mentos deixaram de vir-lhes esponta
viam reduzido a quase nada voltaram neamente, e em que não sabiam ainda
a crescer e os corpos recém-nascidos procurá-los, pois que nenhuma necessi
da terra tornaram-se grisalhos, defi- dade os havia, até então, obrigado a
274 a nharam-se e voltaram à terra. E todo o isso, que, segundo as antigas tradições,
resto voltou, da mesma forma em sen nos foram dadas, pelos deuses, lições e
tido contrário, amoldando-se e regu ensinamentos indispensáveis: o fogo
lando-se à nova evolução do universo; por Prometeu1 2; as artes por Hefes-
e especialmente a gestação, o parto e a to 1 3 e sua companheira; as sementes e
criação imitaram e seguiram o pro as plantas por outras divindades.
cesso geral. Já não era possível que o Assim tudo o de que a vida humana é
animal nascesse do seio da terra, por feita nasceu desses primeiros passos;
um concurso de elementos estranhos; quando os homens, como disse, vi
uma vez que o mundo assim se tomara ram-se privados da vigilância divina,
o seu próprio senhor, sujeito a dirigir a devendo conduzir-se sós e zelar por si
sua evolução, também as suas partes mesmos, tal como o universo, pois
deveriam, por uma lei análoga, conce tudo o que fazemos é imitá-lo e segui-
ber, dar à luz e criar por si mesmas, na lo, alternando, na eternidade do tempo,
í> medida em que pudessem. E assim eis estas duas maneiras opostas de viver e
nos agora chegados ao ponto a que se nascer. Terminemos aqui o nosso mito,
dirigia todo este raciocínio. No que se dele nos servindo para medir a falta
refere aos outros animais seriam neces que cometemos ao jdefinir, como o fize
sárias muitas palavras e muito tempo mos anteriormente, o homem real e o
para dizer qual era então a condição político.
de cada espécie e por que influências S Ó C R A T E S, O JO V E M
ela se modificou; mas relativamente — A que falta te referes, e qual a
aos homens, esta exposição será mais sua importância?
breve e mais a propósito. Uma vez pri 12 Prometeu: gigante amigo dos homens. Doou
o fogo aos homens, coníra a vontade de Zeus.
vados dos cuidados deste deus que os Nesta versão, porém, o fogo é dádiva feita aos
possuía e os mantinha sob sua guarda, homens pelos próprios deuses. (N .d o T .)
13 Hefesto: deus dos ferreiros. A companheira
cercados de animais dos quais a maior de Hefesto é Atena, protetora dos trabalhos
parte era naturalmente ferozs e que se manuais femininos, como o bordado. (N . do T.)
POLÍTICO 229
E S T R A N G E IR O S Ó C R A T E S , O JO V EM
— Pequena, uma vez; outra vez, — Justamente.
considerável, muito mais séria e mais E S T R A N G E IR O
grave que a outra. — Mas a meu ver, Sócrates, esta fi
gura do pastor divino é ainda muito
S Ó C R A T E S , O JO V E M
— Como assim? elevada para um rei; os políticos de
hoje, sendo por nascimento muito
E S T R A N G E IR O semelhantes aos seus súditos, aproxi
— Ao indagarmos do rei e do polí mam-se deles, ainda mais, pela educa
tico do cicio atual, e do modo atual de ção e instrução que recebem.
gerações, fomos até ao "ciclo oposto e
S Ó C R A T E S , O JO V EM
falamos do pastor que governava o — Perfeitamente.
275 a rebanho humano, pastor divino ao
E S T R A N G E IR O
invés de humano, o que é uma falta — Mas, mesmo assim, eles devem
grave. Por outro lado, apresentá-lo ser examinados igualmente de sorte a
como chefe de toda uma cidade, sem ver se estão acima de seus súditos, tal
explicar de que maneira ele assim o é, como o pastor divino, ou no mesmo
era dizer a verdade, mas não a verdade nível.
completa, nem a verdade clara, e esta SÓ C R A T E S , O JO V EM
última falta é menor do que a primeira. — Sem dúvida.
SÓ C R A T E S , O JO V E M E S T R A N G E IR O
— É verdade. — Voltemos, então, onde estáva
E S T R A N G E IR O mos. Lembras-te de que falamos desta
— Precisamos, pois, ao que me arte que concede um poder autodire-
parece, determinar primeiramente o gê tivo sobre os animais e que deles cuida
nero de governo que o político exerce não individual, mas coletivamente, e a
sobre a cidade, se quisermos orgulhar- qual, aliás, logo chamamos de “ arte de
nos de lhe haver dado uma definição cuidar dos rebanhos” ?
perfeita. SÓ C R A T E S , O JO V E M
S Ó C R A T E S , O JO V E M — Sim.
— É certo. E S T R A N G E IR O
b E S T R A N G E IR O — A li também cometemos algum
— Foi precisamente com esse pro erro. Em nenhum lugar consideramos
pósito que nos referimos a este mito: o político nem falamos em seu nome;
nossa intenção não era apenas mostrar antes, afastamo-nos dele sem dar-nos
que o título de tratador do rebanho, o conta, embora acreditando referirmo-
chefe a quem procuramos, é disputado nos a ele.
por todos; quisemos também revelar S Ó C R A T E S , O JO V E M
melhor aquele que, sendo o único a — Como assim?
assumir tão completamente como os E S T R A N G E IR O
pastores de ovelhas e de bois os encar — Cuidar de seu rebanho, para si
gos de educar o seu grupo de homens, mesmo, é comum a todos os demais
fosse também o único com direito a pastores; mas ao político não cabia o
honrar-se daquele título. nome que lhe atribuímos; seria neces-
230 PLATÃO
sário, pois, um nome que servisse a comum a todos? Falando, pois, da arte
todos, ao mesmo tempo. que se ocupa dos rebanhos, que por
S Ó C R A T E S , O JO V E M eles vela e deles cuida, designando a
— O que dizes é certo, desde que função que compete a todos, haveria
tal nome exista. um termo capaz de servir ao político e
E S T R A N G E IR O a todos os seus rivais, e é esse, precisa
— Como não? O cuidado para mente, o fim de nossa pesquisa.
com os rebanhos desde que não se S Ó C R A T E S, O JO V E M _
determine como alimentação ou qual — Bem, mas como proceder então ne „
quer outro cuidado específico., não é à divisão que seguiria?
SÓ C R A T E S , O JO V E M S Ó C R A T E S , O JO V E M
— Tens razão. — Sim, compreendo.
E S T R A N G E IR O «
E S T R A N G E IR O
— E foi precisamente por não
— Mas, dito isto, Sócrates, não nos
haver feito esta distinção que nós
apercebemos de que, ao fim de nossa
cometemos este erro, mais por distra
análise, cometemos um grave erro? ção, confundindo o rèi e o tirano, bem
S Ó C R A T E S, O JO V E M distintos entre si, pelas suas maneiras
— Qual? de governar.
SÓ C R A T E S , O JO V EM
E S T R A N G E IR O — É verdade.
— O seguinte: como poderíamos
E S T R A N G E IR O
nós, supondo que existisse uma arte à — Corrigindo-nos, dividamos,
qual coubesse cuidar dos rebanhos bí então, como dizia, a arte do cuidado
pedes, tê-la por certa e desde logo dizer para com os homens em duas, aten
que essa arte é a do rei e a do político? dendo a que este cuidado seja imposto
S Ó C R A T E S, O JO V EM pela força ou aceito de boa vontade.
— E então? S Ó C R A T E S , O JO V E M "
— Perfeitamente.
E S T R A N G E IR O
— O que devemos, primeiramente, E S T R A N G E IR O
à é precisar-lhe o nome, aproximando-o — Poderemos, então, quando ela se
mais da idéia de um cuidado geral do exerce pela força, chamá-la tirânica, e
que da idéia de um cuidado pela quando seus préstimos, livremente ofe
alimentação, e a partir daí, dividi-la, recidos, são livremente aceitos pelo
pois ela mesma será ainda suscetível rebanho de bípedes, chamá-la política;
de divisões que não podem ser negli afirmando, desde já, que quem exercer
genciadas. esta arte e tiver a si estes cuidados
será, verdadeiramente, um Rei e um
SÓ C R A T E S, O JO V E M
— Quais? Político?
SÓ C R A T E S , O JO V E M ;
E S T R A N G E IR O ^ — E assim fazendo, Estrangeiro,
— A primeira divisão nos levará a
creio havermos terminado a nossa
distinguir o pastor divino, do admi demonstração, relativamente ao Políti
nistrador humano. co. '
SÓCRATES, O JOVEM
E S T R A N G E IR O
— Muito bem. — Seria esplêndido, Sócrates.
E S T R A N G E IR O Mas não basta a tua convicção; ape
— Depois, havendo assim determi nas; é preciso que tu e eu, em comum,
nado esta arte de cuidar, devemos divi a tenhamos. Ora, a meu ver, a nossa
di-la novamente em duas paftes. descrição do Rei ainda não está termi
S Ó C R A T E S , O JO V E M nada. Ao contrário: tal como esculto
— Como? res que, algumas vezes, trabalhando
E S T R A N G E IR O ^ apressádámente e havendo exagerado
— Distinguindo entre o que é im várias partes de sua obra, perdem
posto pela força e o que é aceito de boa tempo, depois, em corrigi-las, retar- >
>
vontade. dando o que lhes cabe fazer, da mesma
232 PLATÃO
forma nós, procurando corrigir, sem minado, mas ao qual, entretanto, falta
demora, e de maneira grandiosa o erro o relevo que lhe será dado pela pintura
cometido em nossa exposição anterior, e pela harmonia de cores. E o que me
acreditamos que para o Rei só eram lhor nos convém não é o desenho, nem
dignos os modelos de alta grandeza; e uma representação manual qualquer;
assim tomamos uma parte enorme de são as palavras e o discurso; pois que
uma lenda da qual nos servimos mais se trata de expor um assunto vivo a
do que seria necessário, alongamo-nos espíritos capazes de segui-lo. Para
na demonstração sem havermos, afi outros, seria necessária uma represen
nal, chegado ao fim de nosso mito. Ao tação material.
contrário do que te parece, o nosso dis SÓ C R A T E S, O JO V EM
curso se assemelha a um quadro muito — É certo. Mas é preciso mostrar
bem desenhado em suas linhas exterio então o que, segundo crês, falta em
res, de sorte a dar a impressão de ter nossa exposição.
E S T R A N G E IR O E S T R A N G E IR O
— Seria difícil, meu caro amigo, — Sim, falarei, pois vejo que estás
tratar satisfatoriamente um assunto pronto a seguir-me. Nós sabemos,
importante sem recorrer a paradigmas. creio, que as crianças, logo que come
Poderíamos quase dizer que cada um çam a aprender a. escrita. . .
de nós conhece todas as coisas como S Ó C R A T E S , O JO V EM
sonho, mas que, à luz do despertar, se — Que vais dizer?
apercebe de nada saber.
E S T R A N G E IR O
S Ó C R A T E S , O JO V EM — Que elas distinguem suficiente
— Que queres dizer?
mente bem as várias letras, nas sílabas
E S T R A N G E IR O
mais curtas e mais fáceis, e são capa
— Parece-me ser uma descoberta
zes de, a esse respeito, dar respostas
curiosa que me leva a falar em que
exatas.
consiste, em nós, a ciência.
SÓCRATES^ O JO V EM S Ó C R A T E S , O JO V EM
— Em quê? — Sem* dúvida.
E S T R A N G E IR O E S T R A N G E IR O
— Precisarei, meu caro, de um — Entretanto, já não as distinguem
outro paradigma para explicar o meu. em outras sílabas, e pensam e falam
S Ó C R A T E S , O JO V E M ^ - erradamente a seu respeito.
— Pois bem, fala. Não há razão SÓ C R A T E S, O JO V EM
para hesitares ao falar comigo. — É certo.
POLÍTICO 233
O paradigma da teçedura
talvez essa. distinção te seja lição mamos fios da trama e dizemos que a
oportuna. arte que preside sua colocação tem por
finalidade a fabricação da trama, i 233 „
S Ó C R A T E S , O JO V E M
S Ó C R A T E S , O JO V E M
— Como fazê-lo?
— Muito bem.
E S T R A N G E IR O
— Do seguinte modo: entre os pro E S T R A N G E IR O
dutos da cardadura, existe um que pos — Eis, pois, a parte da tecedura
sui comprimento e largura, a que cha que nos interessava, perfeitamente
mamos roca? compreensível daqui por diante. Quan
do a operação de reunião, que é a parte
S Ó C R A T E S , O JO V E M
do trabalho da lã, entrelaçou a urdi
— Sim.
dura e a trama, de maneira a formar
E S T R A N G E IR O
um tecido, damos, ao conjunto do teci
— Muito bem, pela fiação rotativa
do, o nome de vestimenta de lã, e, à
no fuso, que a transforma num sólido
arte que o produz, o nome de tecedura.
fio, obteremos o fio da urdidura e a
SÓ C R A T E S, O JO V EM
arte que dirige esta operação é a arte
— Muito bem.
de fabricar urdidura.
E S T R A N G E IR O
S Ó C R A T E S , O JO V E M — Bem, mas então por que não
— Correto. dizer logo: “A tecedura é a arte de b
E S T R A N G E IR O entrelaçar a urdidura e a trama” em
— Mas todas as fibras que produ lugar de fazer tantos rodeios e um
zem apenas fios frouxos e que.possuem acervo de distinções inúteis?
justamente a flexibilidade necessária S Ó C R A T E S , O JO V EM
para se entrelaçarem na urdidura e — A meu ver, Estrangeiro^iadahá
resistirem às trações da tecedura, cha de inútil no que dissemos.
E S T R A N G E IR O S Ó C R A T E S, O JO V EM
— Não me admira o que respon — Explica-te melhor. ,
E STR A N G E IR O '
deste; mas, caro amigo, o que dissemos
— Examinemos primeiramente, de
poderia, a outros, parecer inútil, e
maneira geral; o excesso e a falta; e
sendo bem possível que esse mesmo assim teremos uma regra para elogiar
mal te acontecesse, mais tarde — o ou censurar, nó momento próprio, o
que bem pode suceder — ouve estas que parecer demasiado ou o que for
c considerações que convêm a todas as muito pouco, nas conversas que man
questões deste gênero. temos.
POLÍTICO 239
SÓ C R A T E S, O J O V E M S Ó C R A T E S , O JO V E M
— Examinemos, então. — Aparentemente.
E S T R A N G E IR O ^ E S T R A N G E IR O
— Ora, penso que é exatamente a — Eis-nos, pois, forçados a admi
essas coisas que deveríamos aplicar as tir, para o grande e para o pequeno,
considerações que faço. dois modos de existência e dois pa
SÓ C R A T E S , O JO V E M drões: não nos podemos ater, como
— A que coisas? fazíamos há pouco, à sua relação recí
E S T R A N G E IR O ^ proca, mas sim distinguir, como o
— À grandeza e à pequenez, a tudo fazemos agora, de um lado, sua rela
d que constitui excesso ou falta; pois ção recíproca e, de outro, a relação de
acredito que é a isso tudo que se aplica ambos com a justa medida. Não nos
a arte da medida. seria interessante saber a razão disso?
SÓ C R A T E S, O JO V E M S Ó C R A T E S , O JO V EM
— Sim. — Certamente.
E S T R A N G E IR O E S T R A N G E IR O 2
— Dividamos, pois, essa arte em — Negar à natureza do maior,
duas partes: tal divisão é necessária ao qualquer relação que não seja com a
propósito que nos domina. natureza do menor, não será excluí-lo
de toda relação com ajusta medida?
S Ó C R A T E S , O JO V EM
— Explica-me em que ela se funda S Ó C R A T E S , O JO V EM
— Sim.
mentará.
E S T R A N G E IR O E S T R A N G E IR O
— No seguinte: de um lado, na — Não iríamos destruir, com tal
relação que possuem entre si a gran pretensão, as artes e tudo o que elas
deza e a pequenez; de outro, nas neces produzem, e abolir, por outro lado, a
sidades essenciais do devir. própria política que procuramos defi
nir e essa. arte da tecedura que acaba
SÓ C R A T E S, O JO V EM
— Que queres dizer? mos de estudar? Pois podemos afirmar
E S T R A N G E IR O _
que, para todas essas artes, aquilo que
— Não és da opinião de que o se situa aquém ou além da justa medi
maior só é maior com relação ao da não é uma coisa irreal; é, ao contrá
e menor, e o menor com relação ao rio, uma realidade desagradável que
maior, exclusivamente? elas procuram afastar de suas produ
SÓ C R A T E S , O JO V EM
ções, e é preservando a medida que
— Sim, certamente. elas asseguram a bondade e a beleza de b
E S T R A N G E IR O
suas obras.
— Mas, então, aquilo que ultra S Ó C R A T E S , O JO V E M
passa o nível da medida, ou permanece — É evidente.
inferior a ele, seja em nossa conversa, E S T R A N G E IR O
seja na realidade, não é exatamente, a — Abolir a política não será impe
nosso ver, o que melhor denuncia a dir-nos de continuar nossa análise
diferença entre os bons e os maus? sobre a ciência real?
240 PLATÃO
b certo número de coisas possui algo em traços de semelhança que elas encer
comum, não abandoná-las antes de ram, reunindo-as na essência de um gê
haver distinguido, naquilo que tem em nero. Basta o que fica dito quanto a
comum, todas as diferenças que consti esse problema e quanto às faltas e aos
tuem as espécies; e, com felação às excessos: observemos apenas que aqui
dessemelhanças de toda espécie, que encontramos dois gêneros de medida, e
podemos observar numa multidão, não lembrando-nos dos caracteres que lhes
nos desencorajarmos nem delas nos atribuímos.
separarmos, antes de havermos reuni SÓ C R A T E S , O JO V EM
do, em uma única similitude, todos os — Não os esqueceremos.
A norma verdadeira.
A síntese dialética
ao político, aplicando a ele nosso nem política; mas não há, por outro
exemplo sobre a tecedura. lado, operação alguma da arte real que
S Ó C R A T E S, O JO V E M lhes possamos atribuir.
— Tens razão. Façamos como S Ó C R A T E S , O JO V E M
dizes. — Não, com efeito.
E S T R A N G E IR O E S T R A N G E IR O
— Havíamos, pois, separado o Rei — Realmente é difícil a tarefa que
de todas as artes que possuem o nos propusemos, procurando distinguir
mesmo domínio e, especialmente, de este gênero dos demais., pois não há
todas aquelas relativas aos rebanhos. nada que não se possa com alguma
Restam, entretanto, no interior da razão chamar de instrumento disto ou
cidade, as artes auxiliares e as artes daquilo. Há, entretanto, entre os obje
produtoras, e é necessário, antes de tos què possui a cidade, uma espécie
tudo, separar umas das outras. que é necessário caracterizar de outro
S Ó C R A T E S , O JO V EM modo.
— Muito bem.
S Ó C R A T E S , O JO V EM
E S T R A N G E IR O ^ — Como?
— Sabes que é difícil dividi-las em
E S T R A N G E IR O
duas? Penso que compreenderemos — Suas propriedades são diferen
melhor a razão disso, prosseguindo. tes. Pois ela não é fabricada como
SÓ CRATES, O JO V E M _ instrumento, para servir à produção de
— Prossigamos, então. qualquer coisa, mas para conservá-la,
E S T R A N G E IR O uma vez produzida.
— Sendo impossível a divisão em
S Ó C R A T E S , O JO V EM
duas, temos que dividi-las membro a
— A que te referes?
membro como a uma vítima. Pois é
necessário sempre dividir no menor E S T R A N G E IR O
ESTRANGEIRO ^ ESTRANGEIRO
— Em todo o caso, não há perigo — Em seguida, há a classe sacerdo
de que esses assalariados e interessa tal que, segundo afirma a crença públi
dos, que vem os oferecer seus serviços a ca, oferece aos deuses em nosso nome
qualquer que se apresente, possuam ja os sacrifícios que eles desejam, dirigin
mais um a participação na função real. do-lhes as preces necessárias para que </
SÓCRATES, O JOVEM
nos outorguem seus favores. Ora, creio
— Certamente não. que numa ou noutra dessas funções
ESTRANGEIRO
praticam uma arte útil.
— Que dizer dos homens através SÓCRATES, O JOVEM "
dos qbais sempre nos foram prestados — Sim, é o que parece.
certos serviços? ESTRANGEIRO
— Eis-nos, pois, a meu ver, a cami
SÓCRATES, O JOVEM
nho do fim a que nos propusemos, pois
— Que homens e que serviços?
que os sacerdotes e os adivinhos pare
b ESTRANGEIRO
cem ter grande importância e desfru
— Refiro-me aos arautos e a todos
tam de grande prestígio pela grandeza
aqueles que, à força de prestarem ser
de seus empreendimentos. Assim é que
viços, se tornam hábeis letrados; e a
no Egito um rei não pode reinar se não
outros, cuja universal competência
possuir a dignidade sacerdotal e se, por
leva a múltiplos trabalhos junto às
acaso, apoderar-se do governo, perten- •«
magistraturas. Como os chamaremos?
cendo a uma classe inferior, deverá,
SÓCRATES, O JOVEM finalmente, fazer-se admitir nesta últi
— Como dizias há pouco., servido ma casta. Entre os gregos também, na
res e não chefes possuidores de autori maioria das vezes, é aos mais altos
dade própria nas cidades. magistrados que se confia a tarefa de
ESTRANGEIRO realizar os mais importantes desses
— Creio, entretanto, que não so sacrifícios, e entre vós, aliás, parece
nhei ao afirmar que dentre eles surgi verificar-se. claramente o que digo, pois
riam os mais declarados pretendentes à são também os magistrados que pela
c política; e seria estranho procurá-los sorte se tomaram reis que se incum
em qualquer outra atividade. bem dos antigos e mais solenes sacrifí
SÓCRATES, O JOVEM cios consagrados pela tradição.
— Certamente. SÓCRATES, O JOVEM
ESTRANGEIRO — Perfeitamente.
— A proxim em o-nos agora daque ESTRANGEIRO ' «
les que ainda não foram examinados; e — Muito bem; examinemos esses
dentre eles, em primeiro lugar, dos que réis e sacerdotes eleitos* com seus
se dedicam à arte do adivinho, prati servidores, e além deles, um grupo
cando certamente uma ciência útil, novo e grande de pessoas que agora se
pois passam por intérpretes dos deuses manifesta, uma vez afastados os de
junto aos homens. mais rivais.
SÓCRATES, O JOVEM SÓCRATES, O JOVEM
— Sim. — A que te referes?
POLÍTICO 247
E S T R A N G E IR O E S T R A N G E IR O
— Certamente a pessoas estranhas. — Sim, pois o que há de estranho
SÓ C R A T E S , O JO V E M resulta de nossa ignorância. Foi, -com
— Qüem são elas? efeito, o que aconteceu a mim mesmo,
E S T R A N G E IR O há pouco; eu não ousava crer que
— Uma raça de tribos numerosas, repentinamente tinha diante de mim,
ao que parece à primeira vista. São ho reunidas, as pessoas que se agitam em
mens que em grande número se pare torno à administração pública.
cem a leões, centauros e outros mons S Ó C R A T E S , O JO V E M
tros dessa espécie e que, em maior — De quem se trata"?
número ainda, se assemelham a sátiros E S T R A N G E IR O ■
e outros animais fracos, mas astucio — Do mais mágico de todos os
sos, que rapidamente trocam entre si sofistas, o mais consumado nesta arte,
as aparências exteriores e proprieda difícil de distinguir dos verdadeiros
des. Realmente, Sócrates, parece-me políticos e do verdadeiro homem real;
que sabes agora quem são estes ho mas que, entretanto, é preciso distin
mens. guir, se quisermos bem compreender o
SÓ C R A T E S, O JO V E M que procuramos.
— Explica-te: tens o ar de quem S Ó C R A T E S , O JO V EM
descobriu algo estranho. -— Sim, e é preciso não esmorecer.
E S T R A N G E IR O S Ó C R A T E S , O JO V E M
— E também o que me parece. A — Sem dúvida.
propósito, dize-me o seguinte:
E S T R A N G E IR O
SÓ C R A T E S , O JOVEM ' ' - — E a terceira forma de constitui
— Quê? ção não é a soberania da massa, a que
E S T R A N G E IR O chamamos democracia?
— A monarquia não é uma das for
S Ó C R A T E S , O JO V EM
mas de poder político que conhece
— Perfeitamente.
mos?
E S T R A N G E IR O ^
S Ó C R A T E S , O JO V E M .
— Sim. . — Mas, estas três formas não cons
tituem cinco, por derivarem delas duas
E S T R A N G E IR O
— Além da monarquia poderíamos novas denominações?
mencionar, creio, o governo de um S Ó C R A T E S , O JO V EM
pequeno número. — Que denominações? •
248 PLATÃO
e ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
— Considerando os caracteres que — O que dissemos de início subsis
essas formas apresentarem, opressão tirá ainda, ou já não estamos mais de
ou liberdade, pobreza e riqueza, legali acordo?
dade ou ilegalidade, podemos dividir SÓCRATES, O JOVEM
em duas cada uma das duas primeiras — A que te referes?
formas. A monarquia apresenta duas ESTRANGEIRO
espécies às quais chamaremos tirania e — Que o governo real depende de
realeza. uma ciência. Creio que o dissemos.
SÓCRATES, O JOVEM SÓCRATES, O JOVEM
— Evidentemente. — Sim.
ESTRANGEIRO ESTRANGEIRO
— Em toda a cidade onde a força — E não de qualquer ciência; mas
está nas mãos de um pequeno número de uma ciência crítica e diretiva, mais
haverá ou uma aristocracia ou uma do que de qualquer outra.
oligarquia. SÓCRATES, O JOVEM
SÓCRATES, O JOVEM • — Sim.
— Perfeitamente.
ESTRANGEIRO ^
ESTRANGEIRO — Nesta ciência diretiva, havíamos
— Apenas, na democracia, é indife-
distinguido entre a direção das obras
292 a rente que a massa domine aqueles que
inanimadas e a dos seres vivos, e pro- *
têm- fortuna, com oü sem seu assenti
cedendo sempre por esse modo de divi
mento, ou que as leis sejam estrita
são, chegamos ao ponto em que esta
mente observadas ou desprezadas; nin
mos, no qual não perdemos de vista a
guém ousa alterar-lhe o nome.
ciência mas não nos tornamos capazes
SÓCRATES, O JOVEM de defini-la com precisão suficiente.
— É verdade.
ESTRANGEIRO SÓCRATES, O JOVEM
— E então? Alguma dessas consti — É exato.
tuições será exata se definirmos sim ESTRANGEIRO
plesmente por estes termos: “ um, al — Ora, parai sermos conseqüentes
, guns, muitos — riqueza ou pobreza — aos nossos princípios, não nos aperce
opressão ou liberdade — leis escritas bemos de que o caráter que deve servir
ou ausência de leis” ? para distinguir essas constituições é a
SÓCRATES, O JOVEM presença de uma ciência, e não a
— N a d a o impede, realmente. “ liberdade” ou a “ opressão” ., a
b ESTRANGEIRO “pobreza” ou a “ riqueza” , “ alguns” ou
— Pensa melhor, atendendo a este “ muitos” ?
ponto de vista.
SÓCRATES, O JOVEM *
E S T R A N G E IR O E S T R A N G E IR O
— O problema que se apresenta, — Tens razão em lembrar-me. A
doravante, é, pois, necessariamente o conclusão, pois, ao que me parece é de
seguinte: em qual dessas constituições que a forma correta de governo é a de
reside a ciência do governo dos ho apenas um, de dois, ou de quando
mens, a mais difícil e a maior de todas muito alguns, se é que esta forma cor
as ciências possíveis de se adquirir? reta possa realizar-se.
Pois essa é a ciência que é necessário
S Ó C R A T E S , O JO V EM
considerar se quisermos saber que ri — Claro.
vais devemos afastar do rei compe
E S T R A N G E IR O
tente, concorrentes que pretendem ser
— E quer governem a favor ou con
políticos, persuadindo a muitos de que
tra a vontade do povo; quer se inspi
o são, embora não o sejam de maneira
rem ou não em leis escritas; quer sejam
alguma.
ricos ou pobres, é necessário conside
S Ó C R A T E S, O JO V E M rá-los chefes, de acordo com o nosso
— Sim, segundo o que já se de
atual ponto de vista, desde que gover
monstrou na discussão, essa separação
nem competentemente por qualquer
realmente se impõe.
forma de autoridade que seja. Assim
e E S T R A N G E IR O
— Muito bem! Poderemos acredi como aos médicos, quer nos curem
tar que numa cidade toda a multidão contra ou por nossa própria vontade,
quer nos operem, cauterizem ou nos
seja capaz de adquirir essa ciência?
inflijam qualquer outro tratamento
S Ó C R A T E S , O JO V E M
— Impossível. doloroso, quer sigam regras escritas ou
as dispensem, quer sejam pobres ou
E S T R A N G E IR O
— E será que numa cidade de mil ricos, não hesitamos absolutamente em
chamá-los médicos, bastando para isso
habitantes, haveria cem ou cinqüenta
capazes de chegar a adquiri-la de que suas prescrições sejam ditadas
maneira satisfatória? pela arte; que purificando-nos ou dimi
nuindo nossa gordura por qualquer
SÓ C R A T E S , O JO V E M ^
— Nesse caso, a política seria a modo, ou, ao contrário, aumentando-a,
mais fácil de todas as artes; pois sabe pouco importa, eles o façam para o
mos muito bem que em toda a Grécia bem do corpo, melhorando seu estado,
não encontramos tal proporção, por e que, como médicos, assegurem a
mil, nem entre os campeões do jogo de saúde dos seres que lhes são confiados.
damas, e muito menos a encontra Essa é, a meu ver, a única maneira de
ríamos entre os reis. Pois só merecem, definir corretamente a medicina e qual
. realmente, o título de rei os que pos- quer outra arte.
293 a suem a ciência real, quer reinem ou S Ó C R A T E S , O JO V E M
não, como anteriormente dissemos. — Certamente.
250 PLATÃO
A ilegalidade ideal.
A força impondo o bem
coisas humanas, não admite em nenhu mas que prescrevem, ao dirigir essas
ma arte, e em assunto algum, um abso competições, os treinadores que as
luto que valha para todos os casos e conduzem de acordo com regras cientí
para todos os tempos. Creio que esta ficas.
mos de acórdo sobre esse ponto. S Ó C R A T E S , O JO V E M
SÓ C R A T E S, O JO V E M — Que máximas?
— Sem dúvida. E STR A N G E IR O ^
E S T R A N G E IR O ^ — A eles, não parece necessário
— Ora, em suma, é precisamente considerar os pormenores dos casos
este absoluto que a lei procura, seme individuais, formulando, para cada
lhante a um homem obstinado e igno pessoa, prescrições especiais; ao con
rante que não permite que ninguém trário, acreditam que é necessário ver
faça alguma coisa contra sua ordem, e as coisas de um modo geral, estabele
não admite pergunta alguma, mesmo cendo, para a maioria dos casos e das «
em presença de uma situação nova que pessoas, preceitos que sejam úteis para
as suas próprias prescrições não ha o corpo em geral.
viam previsto, e para a qual este ou S Ó C R A T E S , O JO V EM
aquele caso seria melhor. — Muito bem !
SÓ C R A T E S, O JO V E M E S T R A N G E IR O _
— É verdade: a lei age sobre cada — Essa é a razão por que, na reali
um de nós, exatamente como acabas dade, impõem a um grupo de pessoas
de dizer. as mesmas fadigas, iniciando e paran
E S T R A N G E IR O . / do ao mesmo tempo a corrida, a luta
— E não é, porventura, impossível, ou qualquer outro exercício corporal.
ao que permanece sempre absoluto, S Ó C R A T E S , O JO V E M
adaptar-se ao que nunca é absoluto? — É verdade.
SÓ C R A T E S, O JO V EM E S T R A N G E IR O
— Assim parece. — Acontece o mesmo com o legis
E S T R A N G E IR O ^ ^ lador: tendo que prescrever a suas ove
— Por que, pois, é necessário fazer lhas, obrigações de justiça e contratos
as leis se elas não são a regra perfeita? recíprocos, jamais seria capaz, pro- 295«
É necessário investigar por quê? mulgando decretos gerais, de aplicar, a
S Ó C R A T E S , O JO V E M cada indivíduo, a regra exata que lhe
— Naturalmente. convém.
E S T R A N G E IR O ^ . S Ó C R A T E S , O JO V EM
— Não há entre vós, assim como :— Provavelmente.
nas outras cidades, constituições onde E S T R A N G E IR O
os homens praticam a corrida, ou ou — Estabeleceria, antes, o que con
tras provas, por simples espírito de viesse à maioria dos casos e dos indiví
emulação? duos, e assim de modo geral, legislaria
SÓ C R A T E S , O J O V E M ^ para cada um, por meio de leis escritas
— Certamente, e muitas espécies. ou não, contentando-se, neste caso, em
E S T R A N G E IR O ^ dar força de lei aos costumes nacio
— Lembremo-nos então das máxi- nais.
252 PLATÃO
menos, de acordo com o que acabamos — Mas quando essas leis, escritas
de dizer. ou não, editadas para um ou outro des
ses rebanhos humanos que, repartidos
E S T R A N G E IR O
— E ainda mais certamente, meu em cidades, aí vivem sob as leis de seus
bom amigo, de acordo com o que respectivos legisladores, se referem ao
vamos dizer. que é justo ou injusto, e o legislador
competente ou outro que lhe seja.igual,
S Ó C R A T E S , O JO V EM
— O quê? volta atrás, deve-se interditá-lo de
modificar essas primeiras prescrições?
E S T R A N G E IR O
— O seguinte: suponhamos que um Tal interdição não seria, nesse caso, 296 a
médico ou professor de ginástica quei pelo menos tão ridícula quanto a
ra empreender uma viagem que o rete primeira?
c rá por muito tempo afastado de seus S Ó C R A T E S , O JO VEM
alunos ou clientes. Persuadido de que — Certamente.
estes não se lembrariam de suas pres E S T R A N G E IR O
crições, gostaria de deixar-lhes instru — Sabes o que diz, a esse respeito,
ções escritas, não é certo? a maioria das pessoas?
S Ó C R A T E S , O JO V EM SÓ C R A T E S, O JO V EM
— Sim. — Não me recordo.
E S T R A N G E IR O E S T R A N G E IR O
— E então? Voltando antes do — E interessainte. Dizem, com'efei
tempo, após ausência mais curta do to, que se alguém conhece leis melho
que imaginara, não teria ele, porven res que as existentes não tem o direito
tura, coragem de substituir essas or de dá-las à sua própria cidade senão
dens escritas por outras novas, que no com o consentimento de cada cidadão;
caso favoreceriam os enfermos, dado o de outro modo não.
estado dos ventos ou a intervenção S Ó C R A T E S , O JO V EM
d imprevista de Zeus? Ou iria, ao con — Muito bem! Não estarão eles
trário, obstinar-se, julgando que as ve- certos?
POLÍTICO 253
A legalidade necessária;:
os dois perigos
E S T R A N G E IR O SÓ C R A T E S, O JOVEM
— Além de tudo isso seria neces — Ê claro que veríamos desapa
sário ainda elaborar a seguinte lei: recer completamente todas as artes,
quem quer que procurasse estudar a sem esperança alguma de retorno,
arte náutica e a ciência da navegação, sufocadas por essa lei que proíbe toda
as regras da saúde, a exatidão da medi pesquisa. E a vida que já é bastante
cina sobre os ventos frios e quentes, penosa, tornar-se-ia então totalmente
fora das leis escritas, tornando-se co insuportável. *
nhecedor desses assuntos, não poderia,
E S T R A N G E IR O
em primeiro lugar, ser chamado médi — E que dizes desta outra hipótese:
co ou piloto e sim, visionário e sofista quando houvéssemos submetido à letrá
fraseador; em seguida, o primeiro que escrita a prática d'e cada uma dessas
tivesse esse direito acusá-lo-ia diante artes e imposto esse código de governo
de um tribunal, denunciando-o como ao chefe que a eleição ou a sorte desig
corruptor de jovens a quem induz dedi
nasse e supondo que não respeitasse
car-se à ciência náutica e à medicina,
arvorando-se eles próprios em senho ele a lei escrita e, desprovido de conhe
res dos navios e dos enfermos, sem se cimentos, se dispusesse a agir contra
orientarem pelas leis. Se ficar provado ela, tendo em vista uma vantagem
que ele instrui jovens e velhos no des qualquer ou simplesmente um capricho
prezo às leis e à palavra escrita, será pessoal, não haveria um mal muito
punido com os maiores suplícios. Pois maior que o precedente?
não temos o direito de sermos mais sá S Ó C R A T E S, O JOVEM
bios que as leis nem de ignorar a medi — Sim, realmente.
cina, a higiene, a arte náutica e a nave
E S T R A N G E IR O t
gação, sendo permitido, a quem quiser, — A meu ver, pois, as leis resultam
aprender os preceitos escritos e os cos de múltiplas experiências e cada artigo
tumes tradicionais. Se essas ciências, é apresentado ao povo através da
caro Sócrates, fossem tratadas da orientação e exortação de conselheiros
maneira por que descrevemos, inclu
bem-intencionados. Aquele que ousas
sive a estratégia ou qualquer outro
se infringi-las cometeria uma falta cem
ramo da caça, a pintura ou qualquer
outra parte da imitação, a marcenaria vezes mais grave que a primeira,
ou qualquer outra arte de fabricar mó perturbando qualquer atividade muito
veis, a agricultura ou outra espécie dâ mais que a lei escrita.
arte de cultivar plantas; se fossem S Ó C R A T E S, O JO V EM
reguladas por um código a criação de — Como não?
cavalos ou de qualquer outro rebanho, E S T R A N G E IR O '
a náutica ou qualquer outra parte da — Portanto, em qualquer domínio
ciência do trabalho, os jogos de damas em que se estabeleçam leis e códigos
ou a ciência dos números — seja pura escritos, impõe-se, em segundo lugar, c
ou aplicada ao plano, ao sólido, ao jamais permitir ao indivíduo ou à
movimento — o que aconteceria a massa qualquer ato que possa infrin
tudo isso, conduzido pela sorte, regido gi-los, no que quer que seja.
pela letra escrita em lugar de orientado SÓ C R A T E S, O JOVEM
pela arte? — Exatamente.
POLÍTICO 257
A s constituições imperfeitas
E S T R A N G E IR O _ E S T R A N G E IR O
— Esses códigos não seriam, pois, — Anteriorrtiente, entretanto, con
em cada domínio, imitações da verda cordamos em que a massa jamais seria
de executadas o mais perfeitamente capaz de assimilar arte alguma.
possível, sob a inspiração daqueles que S Ó C R A T E S , O JO V E M
sabem? — Continuamos de acordo.
S Ó C R A T E S, O JO V E M E S T R A N G E IR O
— Sem dúvida. — Se existe pois uma arte real, a
E S T R A N G E IR O massa dos ricos ou do povo jamais se
— Entretanto, se bem nos lembra apropriará dessa ciência política.
mos, havíamos dito que o homem S Ó C R A T E S , O JO V EM
competente, o verdadeiro político, ins- — Não seria possível.
pirar-se-á na maioria dos casos unica
E S T R A N G E IR O
mente em sua arte e não se preocupará, — Ê necessário pois que tais simu
de modo algum, com a lei escrita se lhe lacros de constituições, para imitar o
parecer que um novo modo de agir mais perfeitamente possível esta cons
valerá mais, na prática, do que as pres tituição verdadeira — o governo do
crições redigidas por ele e promul único competente— procurem, uma vez
gadas para o tempo de sua ausência. estabelecidas suas leis, jamais fazer
SÓ C R A T E S, O JO V E M algo contra as leis escritas e os cos
— Foi, realmente, o que dissemos. tumes nacionais.
E S T R A N G E IR O
— Quando o primeiro indivíduo ou S Ó C R A T E S , O JO V EM
— Disseste bem.
a primeira massa, possuindo leis, resol
vem agir contrariamente a elas, acredi E S T R A N G E IR O _
tando assim agir melhor, não proce --- Quando pois são os ricos que
dem, dentro de seu alcance, da mesma realizam esta imitação, a constituição
forma como o político verdadeiro? se chama uma aristocracia; mas se não
observam as leis, será uma oligarquia.
S Ó C R A T E S , O JO V E M
— Perfeitamente, S Ó C R A T E S , O JO V E M
— Provavelmente.
E S T R A N G E IR O
— Agindo, por ignorância, ao pro E S T R A N G E IR O
curar imitar a verdade, eles a imitarão — Se-, porém, governa um chefe
erradamente. Mas se agirem com com único, de acordo com as leis, imitando
petência, em lugar de uma imitação, o chefe competente, chamamo-lo rei,
não teremos a própria realidade em sem servir-nos de nomes diferentes
toda a sua verdade? para os casos em que esse monarca,
S Ó C R A T E S , O JO V E M respeitador das leis, seja guiado pela
— Perfeitamente. ciência ou pela opinião.
258 PLATÃO
S Ó C R A T E S, O JO V E M
— Ora, no momento em que busca
— Examinemo-la. Como evitá-la? mos a constituição verdadeira, essa
E S T R A N G E IR O ^
divisão não era necessária, como de
— Muito bem. É necessário dizer- monstramos. Entretanto, afastada
te agora que, dessas três, uma é, ao essa constituição perfeita e aceitas,
mesmo tempo, a mais desagradável e a como inevitáveis, as demais, a legali
melhor. dade e a ilegalidade constituem, em
S Ó C R A T E S, O JO V EM
cada uma delas, um princípio de
— Que queres dizer? dicotomia.
E S T R A N G E IR O S Ó C R A T E S , O JO V EM
— Que os governos de um só, de — Aparentemente,, de acordo com
alguns, ou da multidão, constituem as essa explicação.
três grandes constituições de que fala E S T R A N G E IR O
mos no início desta enorme conversa. — MÍuito bem. A monarquia unida
SÓ C R A T E S, O JO V E M a boas regras escritas a que chamamos
— É verdade. leis, é a melhor das seis constituições,
E S T R A N G E IR O ao passo que, sem leis, é a que torna a
— Dividamos cada uma delas em vida mais penosa e insuportável.
duas partes, formando seis, e coloque S Ó C R A T E S , O JO V E M «
mos de lado a constituição verdadeira, — É possível.
como sétima.
E S T R A N G E IR O
S Ó C R A T E S, O JO V EM — Quanto ao governo do pequeno
— Como?
número, sendo o de “poucos” , ele se
E S T R A N G E IR O situa entre a unidade e o grande núme
— O governo de um apenas dá ori
ro e é necessário considerá-lo interme
gem, como dissemos, à realeza e à tira
diário entre os dois outros. Finalmente
nia; o governo de alguns origina a aris
o da multidão é fraco em comparação
tocracia, de belo nome, e a oligarquia;
com os demais e incapaz de um grande
quanto ao governo do grande numero
bem ou de um grande mal, pois nele os
havíamos considerado apenas o que
poderes são distribuídos entre muitas
chamamos democracia; vamos agora,
pessoas. Do mesmo modo, esta é a
entretanto, considerar nela também,
pior forma de constituição quando
duas formas.
submetida à lei e a melhor quando
S Ó C R A T E S , O JO V E M estas são violadas. Estando todas elas b
— Quais? Como a dividiremos? fora das restrições da lei, é na demo
E S T R A N G E IR O . cracia que se vive melhor; sendo,
— De maneira semelhante à das porém, todas bem ordenadas esta é a
demais, ainda que ela não possua um última que se deverá escolher. Sob este
segundo nome; em todo o caso, é pos ponto de vista a que nomeamos em pri
sível governar conforme ou em desa meiro lugar é a primeira e a melhor de
cordo com as leis, nela como nas todas exceto a sétima, pois esta se
demais. assemelha a um deus entre os homens
260 PLATÃO
E S T R A N G E IR O S Ó C R A T E S, O JO V E M
— Resta ainda outro bando muito — É exatamente assim que aconte
mais difícil de separar por estar ao ce, pelo que se diz.
mesmo tempo mais próximo ao gênero E S T R A N G E IR O
real e ser mais difícil de discernir: — Parece-me que seguimos o
parece-me estarmos na mesma situa niesmo processo, separando da Ciência
ção daqueles que refinam o outro. política tudo aquilo que difere dela,
que lhe é estranho e hostil, e conser
S Ó C R A T E S , O JO V E M vando apenas as ciências preciosas, 304 a
— Como?
suas parentes. São elas a ciência mili
E S T R A N G E IR O
tar, a ciência jurídica e toda essa retó
— Aqueles que fazem esse trabalho rica aliada da ciência real, que, de
começam, eles também, por uma elimi comum acordo com ela, emprestando
nação, rejeitando a terra, as pedras e à justiça sua força persuasiva, governa
muitas outras impurezas; depois disso toda a atividade no interior das cida
permanecem na mistura os metais pre des. Qual será, pois, o meio mais fácil
ciosos da mesma família do ouro que de separá-las, revelando em estado
se separa pelo fogo, o cobre, à parte e, puro e despido de toda a combinação o
algumas vezes, também o diamante. objeto que procuramos?
Assim, dificilmente separados pelas S Ó C R A T E S , O JO V E M
chamas, deixam a descoberto o que — É isso evidentemente que nos é
chamamos ouro puro. necessário tentar de qualquer maneira.
POLÍTICO 261
E S T R A N G E IR O SÓ C R A T E S , O JO V EM
— Se não se trata senão de tentar, — Sem dúvida.
seja!, nós o encontraremos. E para me E S T R A N G E IR O
lhor compreendê-lo recorramos à mú — Muito bem. A que ciência atri
sica. Assim, dize-me. . . buiremos, pois, a virtude de persuadir
S Ó C R A T E S, O JO V EM as massas e multidões, narrando-lhes
— Quê? fábulas em lugar de instruí-las?
E S T R A N G E IR O S Ó C R A T E S , O JO V E M
— A música requer um aprendi — Isso pertence evidentemente à
zado, e não acontece o mesmo com retórica, ao que me parece.
todas as artes que exigem exercícios
E S T R A N G E IR O
manuais? ' ~ — Mas a que ciência atribuiremos
SÓ C R A T E S, O JO V E M a decisão de saber se se deve — tratan
— Sim. do-se destas ou daquelas pessoas, neste
E S T R A N G E IR O ^ ou naquele caso — usar de força ou de
— E então? Não será ainda uma persuasão, ou simplesmente nada
ciência que decidirá da necessidade ou fazer?
não de aprendermos esta ou aquela
S Ó C R A T E S , O JO V EM
dessas ciências? Que achas? — Àquela que governa a arte de
SÓ C R A T E S, O JOVEM^ persuadir e de falar.
— Sim, será uma ciência: .
E S T R A N G E IR O
E S T R A N G E IR O ^
— Ora, acredito que ela não é
— Não concordamos em que ela é
outra senão aquela de que é dotado o
distinta das primeiras?
político.
SÓ C R A T E S, O JO V E M
— Sim. S Ó C R A T E S , O JO V EM
— Disseste muito bem.
E S T R A N G E IR O ^
— Deveriam as demais ciências ser E S T R A N G E IR O
superiores a esta ou nenhuma delas — Eis, pois, ao que parece, esta fa
será superior às outras? Ou é a esta mosa retórica rapidamente separada
ciência que pertencem o controle e a da política: pertence a uma outra espé
direção geral? cie e é sua subordinada.
S Ó C R A T E S , O JO V E M
SÓ C R A T E S, O JO V EM
— A ela sobre todas as demais. — Sim.
E S T R A N G E IR O ^ E S T R A N G E IR O
— Entre a ciência que decide se é — Mas que pensar desta outra
necessário ou não aprender e aquela faculdade?
que ensina, declaras, pois, que é à pri S Ó C R A T E S , O JO V E M
meira que nós devemos dar a primazia. — Qual?
S Ó C R A T E S , O JO V E M E S T R A N G E IR O
— Certamente. — A de saber como fazer guerra
E S T R A N G E IR O
àqueles a. quem decidimos fazê-la:
— Dá-se o mesmo entre aquela que diríamos que a guerra depende de uma
decide da necessidade ou não de per arte ou que esta arte lhe é estranha?
suadir e aquela que sabe persuadir? S Ó C R A T E S , O JO V EM
262 PLATÃO
E S T R A N G E IR O
— Vemos, assim, que os juizes não
305a — Afirmaremos, pois, que ela diri se elevam à força real: são apenas
ge a outra, se quisermos permanecer guardiães das leis e subordinados a
fiéis às nossas afirmativas preceden essa força.
tes? SÓ C R A T E S, O JO V EM
S Ó C R A T E S , O JO V E M
— Aparentemente.
— É minha opinião. E S T R A N G E IR O
E S T R A N G E IR O
— O que nos resta verificar, após
— Entretanto, considerando a sa havermos assim examinado todas as
bedoria e a vastidão da arte bélica e ciências, é que nenhuma delas nos apa
seu conjunto, que outra ciência pode rece como a ciência política. A verda
ríamos dizer sua soberana, a não ser a deira ciência real não possui, com efei
verdadeira ciência real? to, obrigações práticas: dirige, ao
S Ó C R A T E S , O JO V E M
contrário, aquelas que existem para
— Nenhuma outra. realizar essas obrigações, pois sabe
E S T R A N G E IR O que ocasiões são favoráveis ou não
— .Não colocaríamos, pois, no mesmo para iniciar ou levar adiante os gran
plano que. a política, uma ciência que a des empreendimentos e as demais ape
ela é apenas subordinada, a ciência dos nas executarão suais ordens.
generais? SÓ C R A T E S, O JO V E M
SÓ C R A TE S, O JOVEM — Tens razão.
— Claro que não. E S T R A N G E IR O
E S T R A N G E IR O — Assim, as ciências que acaba
b — Adiante examinaremos, tam mos de passar em revista, se bem que
bém, a força que possuem os juizes nenhuma delas seja senhora de si
quando julgam corretamente. mesma nem das demais, possuem,
SÓ C R A T E S , O JO V E M entretanto, cada uma delas, seu gênero
— Muito bem. de atividade que lhe dá, justamente,
E S T R A N G E IR O seu nome particular.
— Estende-se ela além das decisões S Ó C R A T E S , O JO V EM
em matéria de contratos, decisões — Aparentemente, pelo menos.
baseadas em artigos de leis que ele re E S T R A N G E IR O ‘
cebe prontos das mãos do rei legisla — Mas àquela que dirige a todas,
dor, julgando da justiça ou injustiça que tem o cuidado das leis e dos assun-
POLÍTICO 263
SÓ CR ATES, O JOVEM ^
— É o que também sucede.
— Parece-me que assim é. E S T R A N G E IR O
E S T R A N G E IR O
— Como, pois, negar que há entre
— Ora, este simples conflito de esses dois gêneros de espíritos uma
caracteres não passa de um jogo. fonte contínua e profunda de inimizade
Entretanto, nas coisas graves toma-se e discórdia?
a enfermidade mais perigosa que há S Ó C R A T E S , O JO V E M
suá. alma com um fio divino, e em vida em cidade, ao passo que, privado
seguida, depois dessa parte divina, .une das luzes que apontamos, atrairia a si,
a parte animal com fios humanos. > com justiça, a humilhante fama de
S Ó C R A T E S, O JO V E M
tolo?
— Que queres novamente dizer? SÓ C R A T E S , O JO V EM *
E S T R A N G E IR O — Perfeitamente.
— Se uma opinião realmente ver E S T R A N G E IR O
dadeira e firme se estabelece nas — Não será necessário afirmar,
almas, a propósito do belo, do bom, do agora, que este laço jamais unirá de
justo e de seus opostos, digo que algo maneira durável, nem os maus, entre
divino se realizou numa raça demonía si, nem os maus com os bons, e que
ca. ciência alguma jamais pensará seria
SÓ C R A T E S, O JO V E M
mente em servir-se de pessoas desta
— Isto, seguramente, convém dizer. espécie?
E S T R A N G E IR O S Ó C R A T E S , O JO V E M
— Ora, não sabemos que somente — ■Como pretendê-lo, com efeito?
o político e o sábio legislador têm esse E S T R A N G E IR O 310 a