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oléncia, conflito e sociedade DESCRIGAO A violéncia na sociedade brasileira, as politicas piblicas referentes as populagées menorizadas e o combate a impunidade na perspectiva de diminuigao da violéncia cotidiana, PROPOSITO Apresentar de que modo a violéncia e o conflito atravessam a vida em sociedade, tema fundamental para 0 pensamento critico de qualquer profissional e cidadao. PREPARAGAO Levando-se em conta a riqueza e as milltiplas possibilidades de andlise do tema, seria importante ter & mao um bom dicionario de Teoria Politica ou de Ciéncias Sociais. Sugerimos 0 Dicionario de Politica, de Norberto Bobbio, e 0 Dicionario de Sociologia, da UFSC/Reposit6rio, ambos disponiveis em formato virtual. OBJETIVOS MODULO 1 Definir como a violéncia se tornou uma marca constitutiva da sociedade brasileira MODULO 2 Reconhecer a relagao entre politicas publics e as populagdes menorizadas MODULO 3 Identificar a impunidade no Ambito social e a busca pela diminuigdo da violéncia cotidiana INTRODUGAO A violéncia & um fenémeno presente em diversas sociedades e periodos histéricos. Segundo a Organizacao Mundial da Satide (OMS), ela é definida como 0 uso de forga fisica ou poder, em ameaga ou na pratica, contra si préprio, outra pessoa ou contra um grupo ou comunidade que resulte ou possa resultar em sofrimento, morte, dano psicolégico, desenvolvimento prejudicado ou privagao (Dahlberg e Krug, 2007). Essa definigao ampla ja aponta a complexidade do tema. Para identificar suas causas e criar politicas puiblicas adequadas para resolver a questo, as diferentes formas de violéncia devem ser compreendidas caso a caso, de acordo com sua especificidade Esse fendmeno é tao presente em nossa sociedade que as autoridades de satide publica definiram a violéncia no Brasil como uma epidemia, ou seja, como uma doenga que se alastra coletivamente e cresce de forma descontrolada. De acordo com o Instituto de Pesquisa Econémica Aplicada (IPEA, 2020) ocorreram 57.956 homicidios no Brasil em 2018. Embora todos os cidados convivam com 0 medo da violéncia, ela toma contornos mais cruéis de acordo com critérios como a cor, a classe social e © género. Mais de 90% dos assassinados no Brasil em 2018 foram homens e 75% deles eram negros. Fonte: EnsineMe A desigualdade racial cria situagées bem distintas para brancos e negros. De 2008 a 2018, por exemplo, as taxas de hor idios entre brancos foram reduzidas em 12% enquanto entre negros aumentou em 11%. Mas a violéncia nao se restringe aos homicidios e os numeros da violéncia contra mulheres e criangas sao ainda mais acentuados. Foram registrados 66.041 casos de violéncia sexual em 2018 & mais de 200 mil ocorréncias de violéncia doméstica. Esses dados podem ser conferidos no Atlas da Violéncia (IPEA 2020). A seguir, investigaremos as causas que tornam o Brasil um dos paises mais violentos do mundo, quais os mecanismos para compreender esse fendmeno e como € possivel combaté-lo. MODULO 1 © Definir como a violéncia se tornou uma marca constitutiva da sociedade brasileira VIOLENCIA COLONIAL E GENOCIDIO © Brasil é frequentemente descrito como o pais do Carnaval, marcado pela cordialidade de seu povo hospitaleiro e pela riqueza de sua cultura. Por muito tempo, afirmou-se que viveriamos uma espécie de “democracia racial”, onde negros, brancos e indigenas seriam tratados como iguais. Esse imagindrio, infelizmente, nao condiz com a histéria real da construgao do Brasil enquanto Estado-nacao. A colonizagao portuguesa € o proceso histérico que resultou no pais como o conhecemos foram caracterizados pela violéncia contra os povos indigenas que aqui habitavam, bem como pelo trafico e a escravizagao de poves africanos. Neste médulo, veremos como a violéncia tornou-se parte constitutiva da identidade nacional e qual o seu papel no desenvolvimento do Estado brasileiro. VIOLENCIA COMO FORMA DE DOMINAGAO De acordo com Weber (2008), 0 Estado aquele que detém o monopdlio legitimo da violéncia fisica dentro de um territério e que constitui, em tiltima insténcia, uma forma de dominagao de homens sobre outros homens. Nessa perspectiva, a relagao de dominacdo pode se legitimar de trés formas: Poder tradicional, que remete a costumes antigos Poder carismatico de um lider que angarie alguma forma de admiragao por parte dos dominados Poder racional legal que se baseie na aceitagao de um conjunto de leis de competéncia positiva e racionalmente determinadas Weber (2008) afirmava que toda dominagao organizada necessita de um “Estado-maior administrative’ de meios materiais de gestdo. A politica seria a disputa entre diferentes grupos pelo poder de assumir 0 Estado e assim exercer 0 monopdlio da violéncia legitima. © que é, entdo, um pais? ®t ATENGAO A ideia de que todos somos brasileiros, diferentes de espanhéis, argentinos, ou angolanos, é de certa forma uma abstrag4o. Podemos apontar o Brasil no mapa, ou justificar a unidade de nosso territério pelo fato de que falamos portugués. Mas as fronteiras de um territério so demarcagées arbitrarias, fruto de disputas, confitos e guerras. O portugués também néo é a Unica lingua falada no Brasil, uma vez que povos de diferentes etnias indigenas se comunicam em mais de 200 linguas diferentes de acordo com 0 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica (IBGE, 2010). VIOLENCIA CONTRA COMUNIDADES INDIGENAS Até meados do século XVIII, a lingua mais falada em muitos estados brasileiros era o nheengatu, uma mistura do dialeto tupinamba com outras linguas indigenas, Muitos elementos que atualmente compreendemos como caracteristicas da identidade nacional foram construidos através de séculos de conflitos e violéncia ao longo dos quais um “Estado” brasileiro foi se consolidando. De acordo com a Fundagao Nacional do Indio (FUNA\, 2010), estima-se que, em 1500, quando os portugueses chegaram ao litoral de Porto Seguro, na Bahia, trés milhdes de indigenas habitavam o territorio que atualmente conhecemos como Brasil. Em 1650, esse numero caiu para 650 mil e, em 1957, chegou a ser estimado em apenas 70 mil individuos. Tais indices estarrecedores refletem séculos de violéncia brutal contra os povos originarios. Aqueles habitantes chamados genericamente de “indios" pelos colonizadores eram, na verdade, povos diversos com linguas, culturas, habitos e costumes variados. 3,5 milh6es 3 milh6es 2,5 milhoes 2milhdes 1,5 milhao 1 milhao 500 mil 0 Fonte: EnsineMe Ao contrario dos portugueses ¢ outros europeus, as culturas indigenas nao consideravam a mata, os tios, 0 solo e os animais como recursos que deveriam ser explorados exaustivamente. Suas culturas e conhecimentos prezavam pela harmonia com a natureza, que era vista como um lar do qual eles faziam parte, Isso ndo significa que os indigenas nao travassem guerras e batalhas entre si, mas essas guerras ocorriam por razdes préprias de suas culturas e nao eram motivadas pela exploracdo da terra e pelo comércio, EXPLORAGAO DA TERRA Como forma de aprofundarmos essa vis4o, bastante corriqueira em toda nossa formagaio escolar, vale comparar a ética apresentada por Thomas Woods (Historiador de Harvard) em seu artigo Os indios americanos realmente eram ambientalistas?. Se para os indigenas a ideia de que a terra podia ser propriedade de alguém era um absurdo, os europeus, por outro lado, rapidamente demarcaram fronteiras imaginarias e se autointitularam os proprietarios de areas imensas. Para fazer valer 0 seu dominio sobre o territério, os recém-chegados utilizaram a forga bruta em guerras que dizimaram populagées inteiras, Essa violéncia capaz de dizimar uma populagdo é atualmente definida como genocidio Fonte: José Rosael/Hélio Nobre/Museu Paulista da USP/Wikimedia Commons, Dominio puiblico. @ Bandeirantes e a caga aos indios, José Rosael/Hélio Nobre/Museu Paulista da USP, 1925. No Brasil, a Lei n, 2.889, promulgada no ano de 1956, que define e pune o crime de genocidio, afirma a putabilidade de: ART. 1. QUEM, COM A INTENGAO DE DESTRUIR, NO TODO OU EM PARTE, GRUPO NACIONAL, ETNICO, RACIAL OU RELIGIOSO, COMO TAL: A) MATAR MEMBROS DO GRUPO; B) CAUSAR LESAO GRAVE A INTEGRIDADE FISICA OU MENTAL DE MEMBROS DO GRUPO; C) SUBMETER INTENCIONALMENTE O GRUPO A CONDIGOES DE EXISTENCIA CAPAZES DE OCASIONAR-LHE A DESTRUIGAO FISICA TOTAL OU PARCIAL; D) ADOTAR MEDIDAS DESTINADAS A IMPEDIR OS NASCIMENTOS NO SEIO DO GRUPO; E) EFETUAR A TRANSFERENCIA FORGADA DE CRIANGAS DO GRUPO PARA OUTRO GRUPO. (LEI 2.889/1956) Como veremos nos médulos seguintes, a existéncia dessa lei infelizmente nao evita que a violéncia em patamares semelhantes continue acontecendo, ESCRAVISMO NEGRO A colonizagao do Brasil também foi feita a partir da maior migracdo forgada da histéria, Embora a escravidao j4 ocorresse na Africa, a demanda dos europeus por escravos gerou um aumento jamais visto no tréfico de seres humanos, @ VOCE SABIA ‘Ao longo de mais de 300 anos, cerca de 4,9 milhdes de africanos foram trazidos para o Brasil, 0 pals que recebeu quatro em cada dez afticanos escravizados no mundo. A titulo de comparagao, os Estados Unidos respondem por 489 mil (ROSSI, 2018), um numero dez vezes menor. Aqueles que sobreviviam & travessia eram obrigados a realizar trabalhos forgados e submetidos a tortura e outras formas de violéncia. Em busca de uma vida digna, homens e mulheres africanos fugiam das plantagSes e se organizavam em quilombos. No decorrer de todo 0 perfodo escravista, intmeras batalhas foram travadas entre africanos nos quilombos e aqueles dedicados a recapturé-los, como os bandeirantes e capalazes pagos pelos senhores de engenho e pelos governadores das capitanias hereditarias. © quilombo mais famoso foi Palmares, liderado por Zumbi, contra quem holandeses ¢ depois portugueses travaram batalhas por anos. Estima-se que, em 1670, cerca de 20 mil africanos fugidos dos engenhos chegaram a viver em Palmares. A titulo de comparagao (MOURA, 1981), cerca de sete mil pessoas moravam no Rio de Janeiro naquele mesmo periodo. Fonte: Antonio Parreiras - ARTExplorer/Wikimedia Commons, Dominio ptiblico, @ Zumbi dos Palmares, Antonio Parreiras — ARTExplorer, sem data, ZUMBI Zumbi dos Palmares é, sem diivida, uma figura emblematica e que, exatamente por isso, esté sob 08 holofotes de quem busca santificé-lo ou condené-lo. Para derrotar 0 poderoso Quilombo dos Palmares, 0 governador de Pernambuco contratou os servigos do bandeirante Domingos Jorge Velho, que reuniu um contingente de seis mil homens armados a fim de combater os quilombolas liderados por Zumbi. Fonte: Shutterstock.com & Regio quilombola, Leonardo Mercon, sem data. Palmares nao foi o primeiro nem o titimo quilombo do Brasil. Milhares de escravos fugiram dos dominios de senhores de engenho ao longo dos séculos e ainda existem no Brasil comunidades remanescentes de quilombos. Essas comunidades sao habitadas por descendentes de africanos que fugiram da escraviddo e passaram a viver em terras livres, PATRIARCALISMO periodo colonial foi profundamente marcado por conflitos, guerras e batalhas que por diferentes motivos contestaram a ordem vigente e o dominio da coroa portuguesa. A repressao por parte dos colonizadores fc fundamental para que os senhores de engenho e a coroa portuguesa mantivessem 0 seu dominio ao longo dos séculos. De acordo com a historiadora Eulalia Lobo (1970), um dos mais marcantes tragos da historia brasileira é © seu elemento de continuidade. Em suas pesquisas, a autora observou que certas caracteristicas como a distribuigao de terras pautada no sistema latifundidrio sofreram poucas alteragées do periodo colonial até 0 século XX. Esse sistema, em um contexto em que a terra representava o centro da produgao de riquezas, permitiu que 0 senhor rural angariasse grande poder na sociedade colonial - poder esse que se manteve até a primeira metade do século XX. No auge de sua dominagao, o senhor rural controlava a terra, a mao de obra e as financas, e representava o principal elemento de continuidade do poder no Brasil (LOBO, 1970). Fonte: Frans Post — Itamaraty Safra catalogue | Wikimedia Commons, Dominio puiblico. Engenho colonial, Frans Post ~ Itamaraty Safra catalogue, 1993. O TERMO PATER FAMILIS, ORIUNDO DA ESTRUTURA SOCIAL DA ROMA CLASSICA (IDADE ANTIGA), PODE TAMBEM NOS AJUDAR A ENTENDER O SENHOR RURAL, QUE, DE ACORDO COM FREYRE (2002), EXERCIA O PODER DESPOTICO SOBRE MULHER, FILHA, ESCRAVOS E CLIENTELA NO COMPLEXO CASA GRANDE-SENZALA. Os senhores de engenho tinham grande influéncia politica do Periodo Colonial ao Império, Essa forma de dominagao tradicional exercida sobre uma comunidade e determinada pelo pertencimento a uma fami como um niicleo de — 0 patriarcalismo — contribuiu para o desenvolvimento do cla fami extrema importancia para a compreensdo da vida politica brasileira Avvioléncia contra as mulheres era fundamental para o dominio patriarcal do senhor de engenho, Além de ter total autoridade sobre suas esposas, geralmente mulheres brancas de origem europeia, os senhores de engenho violentavam mulheres negras e indigenas escravizadas. © SAIBA MAIS Segundo Cameiro (2018), pode-se inferir que 0 estupro colonial perpetrado pelos senhores brancos portugueses sobre negras e indigenas origina todas as construgdes de identidades brasileiras e as hierarquias de género e raga existentes em nossa sociedade. E a partir das relagdes do “estupro colonial” cometido por senhores brancos contra mulheres escravizadas negras e indigenas que se constréi a nossa massa de populagao mestica. Esse tipo de violéncia sexual era tao disseminado que deixou marcas profundas na populagao brasileira que podem ser sentidas até os dias atuais. Pesquisadores do Instituto de Biociéncias da Universidade de Sao Paulo (USP) sequenciaram em 2019 o genoma de brasileiros e brasileiras em diferentes regides do pais (ESCOBAR, 2020). A descoberta feita por eles é que 70% das maes que deram origem a nossa populagao tém ascendéncia africana ou indigena, mas 75% dos pais foram europeus. Outra percepgao sobre o periodo pode nos chegar também pela Arte. As contradigées internas dos escravismos e das complexas relagdes sociais — e mesmo pessoais — que eram geradas é bem explicita na letra da mdsica Morro Velho, de Milton Nascimento: Filho do branco e do preto, correndo pela estrada atras de passarinho Pela plantagao adentro, crescendo os dois meninos, sempre pequeninos (...) Filho do senhor vai embora, tempo de estudos na cidade grande Parte, tem os olhos tristes, deixando o companheiro na estagdo distante (...) Quando volta ja ¢ outro, trouxe até sinha mocinha pra apresentar nda como a luz da lua que em lugar nenhum rebrilha como ld Ja tem nome de doutor, e agora na fazenda é quem vai mandar E seu velho camarada, jé nao brinca, mas trabalha (NASCIMENTO, 1967) B& RESUMINDO O desenvolvimento da sociedade brasileira nao ocorreu a partir da ideia de que os cidadaos deveriam ser tratados da mesma forma. Da colonizagdo, a partir do século XVI até meados do século XX, eram os senhores de engenho e grandes proprietarios rurais que detinham toda a riqueza e poder. De acordo com Hollanda (2002), a formagao da sociedade brasileira se deu a partir do patrimonialismo, uma forma de dominagao concentrada nas opinides e valores do senhor de engenho e nao com base em critérios de igualdade entre toda a populagdo. A unido entre uma burocracia em expansdo e a cultura patrimonialista gera um Estado ineficiente em diversos sentidos. Aqueles que detinham o poder ‘econémico podiam usar o Estado para seus proprios interesses e nao para o bem comum, ou seja, 0 interesse privado ganha espaco em detrimento do publico, gerando praticas corruptas e clientelistas. HEGEMONIA processo histérico que formou 0 Brasil como o conhecemos é profundamente marcado pela dominagao de alguns grupos politicos sobre outros menos favorecidos. Essa correlagao de forgas 6 0 pilar dos fenémenos politicos (GRAMSCI, 1984), Na argumentagao desse ponto de vista, para analisar as forgas que atuam na histéria de um periodo, é preciso compreender a relagdo entre estrutura superestrutura e procurar as relagées de forgas sociais intrinsecas a estrutura. Aqui se esta baseando em um aparato dialético A sociedade civil, cuja dominagao seria fundamentada na hegemonia. Nesta categoria, inserem-se as instituigées capazes de difundir os valores da classe dirigente por toda a sociedade: a Igreja, a midia corporativa, a escola etc. x A sociedade politica, baseada na dominagao coercitiva. Esta categoria seria composta pelo aparelho juridico-coercitivo responsével por manter, pela forga, a ordem estabelecida. NOS MOMENTOS DE CRISE ORGANICA, A CLASSE DIRIGENTE PERDE O CONTROLE DA SOCIEDADE CIVIL E APOIA-SE NA SOCIEDADE POLITICA PARA MANTER SUA DOMINAGAO. (CYMROT, 2013) Deve-se também avaliar 0 grau de homogeneidade e de consciéncia de classe atingidos pelos varios grupos sociais e compreender a relacao das forcas militares, que podem ter um grau técnico-militar, ou politico-militar. s conflitos entre grupos que disputam o aparato do Estado muitas vezes se manifestaram de forma violenta ao longo da histéria. Quando ouvimos falar de violéncia, a primeira coisa que pensamos é nos assaltos & mao armada e nos altos indices de homicidio que caracterizam o Brasil contemporaneo. Muitas vezes escutamos de nossos pais e avés que, no tempo deles, “nao era assim". Embora seja verdade que ha algumas décadas a violéncia armada nao era tao presente no cotidiano, a violéncia e 0 conflito sempre fizeram parte da prépria constituigdo da sociedade brasileira Fonte: Shutterstock.com @ Assalto a mao armada, Apiwan Borrikonratchata, sem data. processo histérico que levou construgao do Brasil como 0 conhecemos foi marcado por séculos de violéncia colonial, de modo que esse fendmeno sempre esteve presente em nosso pais. Como veremos nos préximos médulos, as sequelas deixadas por séculos de escravidao e pelo patriarcalismo atravessam de varias formas a violéncia que vivemos atualmente. 2 ATENGAO A repressao ¢ a violéncia nao so a tinica forma de construir um pais democratico, Ao refletirmos sobre as formas de organizagao e ago coletiva da sociedade civil, podemos entender que tanto a busca por cooperagao entre individuos a fim de atingirem um resultado étimo a todos quanto a desergao em situag6es em que haveria a possibilidade de associagdo constituem solugdes racionais que trazem potencial estabilidade aos grupos sociais que as adotam (PUTMAN, 1999) A solugao ébvia encontrada em um contexto no qual os individuos nao conseguem associar-se entre si nem contar com o cumprimento de acordos por parte dos outros 6 recorrer a um poder coercitivo, baseado na represso, que garanta certa estabilidade a sociedade. Segundo Putman (1999), a partir do conceito de capital social — cujo pilar principal é a confianga —, os individuos se assoc m com o cumprimento de acordos por parte uns dos outros, por meio de normas, regras e sistemas. Essa siluagao aumenta a eficiéncia da sociedade, pois nesse caso busca-se um resultado 6timo a todos sem recorrer represséo. A verdadeira demooracia, para Robert Putman (1999), seria um sistema baseado na confianga miitua e na cooperagao, aumentando a eficiéncia da sociedade @ a0 mesmo tempo fazendo com que o Estado nao se baseie apenas na coergao e na violéncia A construgao de uma sociedade mais justa e menos violenta depende de que todos os cidadaos se comprometam com o reconhecimento dos conflitos sociais e busquem formas de reparar coletivamente as bases da violéncia. CONCEITO DE CAPITAL SOCIAL Capital social diz respeito a caracteristicas da organizagao social, como confianga, normas sistemas, que contribuam para aumentar a eficiéncia da sociedade (PUTMAN, 1999). No video a seguir, o especialista Dennis Novaes comenta sobre fatores histéricos, como 0 escravismo @ patriarcalismo, que contribuiram para uma sociedade marcadamente violenta. Vamos assistir! Para assistir a um video D>, sobre o assunto, acesse a ° verso online deste contetido. ~o— VERIFICANDO O APRENDIZADO 1. SOBRE A VIOLENCIA NO BRASIL, PODEMOS AFIRMAR QUE: ‘A) E um fenémeno recente que teve inicio nas grandes cidades a partir da segunda metade do século XX. B) Trata-se de uma violéncia limitada as periferias urbanas, onde facgdes criminosas comandam 0 tréfico de drogas. C) A violéncia fez parte da propria constituigao do Estado-nagdo brasileiro de uma forma que moldou o pais como atualmente o conhecemos. D) Os povos indigenas exterminaram grandes massas de colonizadores, por isso a maior parte da populagdo brasileira atual tem origem indigena E) Os africanos escravizados exterminaram indigenas e portugueses, por isso a maior parte da populagdo brasileira atual tem origem negra. 2. DE ACORDO COM AS REFLEXOES DO CIENTISTA POLITICO ROBERT PUTMAN (1999), A DEMOCRACIA IDEAL DEVE SER UM REGIME: ‘A) No qual alguns grupos politicos disputam o controle do aparelho estatal e a dominacao hegeménica, B) Baseado na confianga e na cooperagao entre os cidaddos, de modo que o Estado nao recorra & repressdo e a coergao. C) No qual poucos homens de bem tenham controle sobre o aparelho burocratico do Estado. D) Baseado no controle da classe operaria sobre os meios de produgao das mercadorias. E) Em que todos tenham direitos iguais, contanto que sigam as mesmas crengas religiosas, tenham as mesmas orientagSes sexuais e ideologias politicas. GABARITO 1. Sobrea léncia no Brasil, podemos afirmar que: Aalternativa “C " esta correta. A constituigao da sociedade brasileira foi moldada por séculos de violéncia colonial, o que definiu as caracteristicas linguisticas e socioculturais do Brasil contemporaneo. 2. De acordo com as reflexées do cientista politico Robert Putman (1999), a democracia ideal deve ser um regime: A altemativa "B " esta correta. cientista politico Robert Putman (1999) defende que tanto a busca por cooperagdo entre individuos a fim de atingirem um resultado étimo a todos quanto a desergéo em situagdes em que haveria a possibilidade de associagao constituem solugées racionais que trazem potencial estabilidade aos grupos sociais que as adotam. MODULO 2 © Reconhecer a relagao entre politicas publicas e as populagdes menorizadas MINORIAS POLITICAS E PROCESSOS DE ESTEREOTIPIA Em 1960, a escritora Carolina Maria de Jesus langava a sua obra mais famosa. O livro Quarto de Despejo: diério de uma favelada reunia trechos do diario escrito pela autora sobre a dura condigao de uma mulher negra e moradora da favela do Canindé, em Sao Paulo. Em uma das passagens mais marcantes de seu livro, ela afirmou: O BRASIL PRECISA SER DIRIGIDO POR UMA PESSOA QUE JA PASSOU FOME. A FOME TAMBEM E PROFESSORA. QUEM PASSA FOME APRENDE A PENSAR NO PROXIMO E NAS CRIANGAS. (JESUS, 1963) Pobre, negra e escritora, Carolina Maria de Jesus era uma excegao, tendo em vista que a maioria dos moradores de favelas e periferias daquela época eram analfabetos. MINORIAS POLITICAS No ano de 1960, foi publicada uma grande pesquisa sobre as favelas do Rio de Janeiro que nos ajuda a compreender a dimenséo do problema. O relatério da Sociedade de Anélises Graficas e Mecanograficas Aplicadas aos Complexos Sociais (SAGMACS) foi a iniciativa mais robusta, até aquele momento, de andlise da conjuntura em que viviam os moradores de favelas. O levantamento (SAGMACS apud MELLO et al, 2012), cuja diregao técnica ficou sob a responsabilidade de José Arthur Rios, foi realizado em 58 favelas e apontava um cenério que ainda nos soa familiar: praticamente 80% da populacao era composta de pretos e pardos e quase metade era analfabeta. Os estudos sobre 0 acesso a educagao apresentados no relatério deixavam claro que esse cendrio nao estava perto de ser transformado. Brasil ainda estava longe de ser governado por alguém que passou fome, como queria Carolina de Jesus, Naquela época, analfabetos ainda eram proibidos de votar e, portanto, uma enorme parcela da populagao ndo podia escolher os seus representantes. O direito ao voto foi por muito tempo restrito em nosso pais. As mulheres, por exemplo, s6 votaram pela primeira vez em 1934. Mas ainda assim nao eram todas as mulheres, apenas aquelas com certo grau de instrugao e condigées financeiras. Foi sé a partir da constituigéo de 1988, também conhecida como a “Constituigéo Cidada”, que 0 direito universal ao voto foi consolidado no Brasil. Mesmo que isso represente um avango para a nossa democracia, aprofundando os direitos da populagao, trata-se de pouco mais de trinta anos de voto universal comparados a séculos em que os direitos politicos eram reservados para um restrito grupo de homens brancos e ricos. Fonte: Shutterstock.com ESSA CONJUNTURA NA QUAL ALGUNS GRUPOS TEM MAIS DIREITOS EM RELAGAO A OUTROS E O QUE GERA AS MINORIAS POLITICAS, TAMBEM CHAMADAS DE MINORIAS SOCIAIS. A NOGAO SOCIOLOGICA DE MINORIA NAO E A MESMA DA MATEMATICA. UM GRUPO NUMERICAMENTE MAIOR PODE SER SISTEMATICAMENTE EXCLUIDO DOS PRINCIPAIS ESPAGOS DE PODER NA SOCIEDADE. Embora cerca de 54% da populagao brasileira seja composta por negros, eles ocupam apenas 20% das cadeiras no Congresso Nacional (GONGALVES, 2018). Algo semelhante ocorre com as mulheres, que ‘compdem 51% da nossa populagao, mas ocupam apenas 15% das vagas na Camara dos Deputados (HAJE; BECKER, 2018). NEGROS MULHERES, MPopulacdo brasileira. Ml Presenca politica Fonte: EnsineMe @ VOCE SABIA Brasil é um dos paises mais atrasados do mundo em relagao a participagdo das mulheres na politica, ‘ocupando a 154* posicao no ranking de participagao elaborado pela ONU, que compara 174 paises. Esses exemplos demonstram que uma minoria politica nao é necessariamente a que esta em desvantagem numérica na populagao, mas aquela que esta distante das principais instancias coletivas de poder e decisao. Antes, trata-se de grupos que sao sistematicamente marginalizados em fungao de aspectos econdmicos, sociais, culturais, fisicos ou religiosos. AS MINORIAS SOCIAIS SAO AS COLETIVIDADES QUE SOFREM PROCESSOS DE ESTIGMATIZAGAO E DISCRIMINAGAO, RESULTANDO EM DIVERSAS FORMAS DE DESIGUALDADE OU EXCLUSAO SOCIAIS. SAO EXEMPLOS DE MINORIAS SOCIAIS, ATUALMENTE, NEGROS, INDIGENAS, IMIGRANTES, MULHERES, HOMOSSEXUAIS, IDOSOS, MORADORES DE FAVELAS, PORTADORES DE DEFICIENCIAS E MORADORES DE RUA. (NOVO, 2019) A desigualdade manifesta-se para além dos quadros politicos, como o Congreso Nacional, prefeituras, assembleias ou governos estaduais, em todos os Ambitos da sociedade. PROCESSOS DE ESTEREOTIPIA Essa imagem trata de uma propaganda de calgas masculinas veiculada nos Estados Unidos nos anos 1960. Na pega publicitéria, uma mulher ¢ feita de tapete por um homem que pisa sobre sua cabeca ena legenda se |é: “E bom ter uma mulher na casa” A imagem em questao reforca uma série de esteredtipos sobre as relagdes entre homens e mulheres em que 0s primeiros so retratados como superiores e as segundas como submissas. Esse imagindrio é ainda difundido por diversos setores da sociedade, e sua perpetuagao faz com que a desigualdade entre homens e mulheres seja tida como algo natural na sociedade. Chamamos isso de “naturalizagéo”, que é a inculcagao de valores culturais dos quais perdemos o distanciamente critico em fungao da sua recorrénci Fonte: propagandashistoricas.com. br & Calcas Dracon (machista) - Anos 1960. O mesmo se pode dizer de esterestipos de cunho racista, homofébico, xenéfobo etc., que so perpetuados por propagandas, novelas, programas televisivos, ou na midia em geral. Ha ai um reforco sistematico de certas imagens estereotipadas utlizadas para representar os grupos minoritérios e que retroalimenta a cultura da exclusao e estigmatizagao desses mesmos grupos. © processo de estereotipia de populagdes memorizadas passa, entao: Pela auséncia dessas figuras em espagos de poder, como os ambientes decisérios da politica institucional Pelas representagdes midiaticas, que fazem circular certas imagens em detrimento de outras A recorrente exibigdo de certos aspectos visuais, enquanto imagens estereotipadas de mulheres, negros, homossexuais, indigenas etc., significa também a invisibilidade de outros aspectos que poderiam contribuir com a desconstrugdo dos esterestipos. Mas por que as grandes emissoras de televisdo, as revistas que mais vendem seus contetidos e as empresas publicitarias arriscariam investir ‘em imagens cuja boa repercussao/circulag4o/aceitagao nao seria garantida, uma vez que esteja instituida uma cultura de exclusdo dessas minorias e repetigao de esteredtipos relacionados a essa légica? Voltaremos a essa questéo mais adiante. Por hora, o que importa é reconhecer as dindmicas de desigualdade estabelecidas, O PROCESSO DE ESTEREOTIPIA DE POPULAGOES MENORIZADAS TAMBEM PASSA PELA AUSENCIA DAS MINORIAS SOCIAIS NOS ESPAGOS DE PRODUGAO DO CONHECIMENTO, COMO AS UNIVERSIDADES, POR EXEMPLO, O QUE IMPEDE QUE OS INTERESSES DESSES GRUPOS SE MANIFESTEM NAQUILO QUE E DADO COMO VERDADES CIENTIFICAS, ARTISTICAS E TECNICAS. Voltemos & pergunta sobre por que a grande midia investiria em imagens que vao contra os estereétipos estabelecidos. Uma leitura atenta e critica desse texto coloca a diivida sobre se 0 que a midia tem feito atualmente 6, de fato, a reprodugao dos esterestipos tao alardeada pelos movimentos sociais. E podemos pensar, nesse caso, nas campanhas publicitarias da Natura, por exemplo, grande empresa de cosméticos brasileira. we EXEMPLO Uma busca rapida sobre o assunto na internet nos mostra as polémicas dos tiltimos anos envolvendo as campanhas publicitérias da Natura, grande empresa de cosméticos brasileira, como as campanhas de Dia dos Namorados, que mostram casais gays presenteando-se com cosmeéticos da marca, além de casais inter-raciais, pessoas negras, velhas ou gordas. ‘A marca tem assumido como estratégia de divulgagao de seus produtos a quebra de esterestipos relacionados a padrdes de beleza como a campanha “sou mais que um rétulo”, que exibe mulheres. descolando de suas peles adesivos onde se pode ler “brava’, “histérica’, ‘mal resolvida’, irritada” e “chorona’, como metafora para os esteredtipos socials normalmente usados para definir mulheres. A modelo protagonista da campanha é uma mulher negra de cabelos crespos e volumosos, e a fotografia de divulgacdo a mostra entre outras mulheres; com diversos biétipos, inclusive uma modelo de pena amputada usando prétese mecanica. Como a Natura, diversas outras marcas tém feito o mesmo, uma vez que o problema das minorias, pollticas, pelas reivindicagdes dos movimentos sociais ao longo dos anos, vem ganhando notoriedade e, portanto, contomos de um nicho de mercado inexplorado pelos mais diversos setores da economia Utiizar imagens de divulgagao que vao na contramao dos esteredtipos passa a ser vidvel, em termos do isco que isso implica para as empresas. Enquanto os ciclos culturais de manutengao de desigualdades se sustentarem, a opresséo de certos grupos por outros, organizados em relagdes de poder estabelecidas na sociedade, tendem a se manter. E com a opressao, a violéncia, em sua dimensao simbélica, VIOLENCIA SIMBOLICA E POLITICAS PUBLICAS Essa forma de dominagao inculcada no imagindrio social é definida por Bourdieu (2018) como “violencia simbélica”. Em suas palavras: O QUE DENOMINO DE VIOLENCIA SIMBOLICA OU DOMINAGAO SIMBOLICA, OU SEJA, FORMAS DE COERGAO QUE SE BASEIAM EM ACORDOS NAO CONSCIENTES ENTRE AS ESTRUTURAS OBJETIVAS E AS ESTRUTURAS MENTAIS. (BOURDIEU, 2018) Trata-se de uma forma de violéncia que pode ser reproduzida por todos os individuos, reforgando a dominagao de alguns grupos sobre os outros. A violéncia simbélica permeia as mentes dos individuos que violentam ou sao violentados, fazendo com que fenémenos como o racismo, 0 machismo, a homofobia, entre outros, sejam reproduzidos cotidianamente. Fonte: Shutterstock.com Um bom exemplo seria o caso do homem que retém, escondidos, os documentos da propria mulherfesposa com objetivo de impedir seu afastamento (ou mesmo fuga) da realidade imposta por ele. Embora legalmente reconhecida como violéncia patrimonial, nao deixa se ser uma violéncia simbélica a partir do momento que um individuo (homem) se considera no direito de tomar decisdes sobre outro Fonte: Shutterstock.com ‘Também podemos pensar nas interagées das criangas na escola. Em como os individuos, em uma idade em que estéo descobrindo a si mesmos e aos outros, e ainda nao tm condigdes socioemocionais para a elaboragao de criticas auténomas aos sistemas de dominagao e relagdes de poder em que estdo inseridos, tanto reproduzem quanto se fragilizam diante desses jogos relacionais. Repetem os preconceitos dos familiares, das geragdes anteriores, que sao os porta-vozes do que consideram “o certo” e podem se mostrar tanto violentos quanto vulneraveis aos esquemas de opressao raciais, de classe e aos esteredtipos de maneira geral. I ATENGAO A escola seria um dos principais espagos onde a violéncia simbdlica ¢ exercida. Ao valorizar tipos especificos de conhecimento em detrimento de outros, a instituigao escolar muitas vezes contribui para que minorias politicas sejam inferiorizadas simbolicamente. Um exemplo é 0 fato de que, embora o Brasil seja 0 pais com a maior populagao de origem africana do mundo, até pouco tempo a historia da Africa e de seus povos ndo era ensinada nas escolas. Isso mudou com a Lei n. 10.639/2003, que entre outras coisas determinou o ensino obrigatério da histéria da Africa. E muito recente que negros passaram a ter maior conhecimento sobre suas origens e as culturas ancestrais dos povos afticanos. Os efeitos desse tipo de apagamento s4o muito profundos e contribuem enormemente para a manutengdo dos preconceitos contra minorias politicas. De volta a escritora Carolina Maria de Jesus, podemos citar outro trecho de sua obra em que ela reflete sobre a invisibilizagdo das mulheres, outro grupo que tem sua histéria apagada na sociedade brasileira Em uma passagem de Quarto de Despejo, a autora relata’ QUANDO EU ERA MENINA, O MEU SONHO ERA SER HOMEM PARA DEFENDER O BRASIL, PORQUE EU LIAA HISTORIA DO BRASIL E FICAVA SABENDO QUE EXISTIA GUERRA, SO LIA OS NOMES MASCULINOS COMO DEFENSORES DA PATRIA ENTAO EU DIZIA PARA MINHA MAE: — POR QUE A SENHORA NAO FAZ EU VIRAR HOMEM? (JESUS, 1963) A teflexao de Carolina Maria de Jesus demonstra de que forma a violéncia simbdlica — nesse caso 0 apagamento da contribuigao das mulheres na histéria do Brasil ~ é inculcada no imaginério dos individuos. Para combater essas formas de violéncia simbdlica, que impedem que a sociedade se desenvolva de forma mais justa e igualitaria, é preciso criar politicas puiblicas, a exemplo da Lei n. 10.639/2003. UMA SOCIEDADE REALMENTE DEMOCRATICA E AQUELA ONDE OS INDIVIDUOS NAO SAO DISCRIMINADOS POR ORIGEM, COR, RAGA, GENERO, CLASSE SOCIAL OU RELIGIAO. PARA ISSO, E PRECISO QUE AS INSTITUIGOES ESTATAIS GARANTAM QUE AS DIFERENGAS E AS INDIVIDUALIDADES DAS PESSOAS SEJAM RESPEITADAS, DESDE QUE NAO FIRAM OS DIREITOS UMAS DAS OUTRAS. DE QUE FORMAS O ESTADO DEVERIA ATUAR, NA PRATICA, NO ESTABELECIMENTO DESSAS GARANTIAS? RESPOSTA 0 Estado Nacional Moderno jé assumiu diversas formas ao longo do tempo. No Brasil, a forma atual do Estado é reconhecida como sendo a de um Estado Democratico de Direito, 0 que significa que o seu funcionamento acontece a partir de uma tripartigo do poder do Estado: Executivo, Legislativo e Judiciario. Para que haja uma coordenagao harmoniosa das garantias dos direitos de grupos minoritarios e dos direitos individuais por parte do Estado, 6 necessario, inicialmente, que o equilibrio de forgas pactuado seja respeitado. A relagao entre democracia e direitos individuais foi o principal objeto de investigagao do filésofo & economista britanico John Stuart Mill, considerado um dos pais do liberalismo politico. Em seu livro Sobre a Liberdade, publicado originalmente em 1859, ele observou como a sociedade britanica escolhia seus representantes e criava suas leis. JOHN STUART MILL John Stuart Mill (1806-1873) foi um filésofo inglés, um dos mais influentes pensadores do século XIX, responsdvel por langar as bases da revisao do utilitarismo como ideologia suprema e dedicou- se ao estudo de numerosas questées sociais de seu tempo. Fonte: ebiografia com Para Stuart Mill, o estabelecimento de cargos eletivos ocupados por representantes do povo criou a impressdo de que nao havia mais por que temer a tirania, j4 que o povo nao devia temer sua propria vontade. Acontece que o povo pode desejar reprimir uma parte de si mesmo, ou seja, grupos numérica ou politicamente minoritarios. Contra essa repressao, Stuart Mill observava que as leis devem definir mecanismos de protegao aos grupos minoritarios. A sociedade deveria respeitar a esfera individual, restringindo-se apenas a definigao de penalidades civis, estando proibida de envolver-se em assuntos referentes & alma e a conduta individual. © homem comum é movido por preferéncias individuais no que tange aos seus gostos, costumes e moralidade; mas quando essas preferéncias individuais séo transplantadas a nivel piblico por homens detentores da autoridade secular — transformando-se em leis -, 0 que ha é incompreensao, abuso de poder e 0 despertar do édio. O PODER QUE RESTRINGE O COMPORTAMENTO DOS INDIVIDUOS NA ESFERA PUBLICA NAO SE FUNDAMENTA EM SUAS PREFERENCIAS, NO QUE E BOM PARA ELES, MAS NO QUE PODE CAUSAR DANO A OUTREM. OU SEJA, A LIBERDADE INDIVIDUAL ENCONTRA SEU LIMITE QUANDO PASSA A PREJUDICAR O OUTRO E NESSES TERMOS E QUE DEVEM SER RESTRINGIDOS OU DETERMINADOS OS CAMPOS DE ATUAGAO DO ESTADO. AS POLITICAS PUBLICAS DEVEM GARANTIR AS LIBERDADES INDIVIDUAIS DE MODO QUE A VONTADE DA MAIORIA NAO IMPEGA A LIBERDADE DAS MINORIAS. No video a seguir, especialista Dennis Novaes aprofunda 0 conceito de violéncia simbélica. Vamos assistir! Para assistir a um video D>, sobre 0 assunto, acesse a ° verso online deste contetido. ~o— VERIFICANDO O APRENDIZADO 1. A RESPEITO DA DISCUSSAO SOBRE MINORIAS POLITICAS, MARQUE A ALTERNATIVA INCORRETA: A) Minorias politicas so apenas aqueles grupos numericamente inferiores na sociedade. Os descendentes de asi icos no Brasil, por exemplo, sao uma minoria porque representam 1,09% da populagao. B) As minorias sao grupos sub-representados em espacos de poder na sociedade. C) 0 conceito de minoria politica nao se restringe & ordem numérica da Matematica. Trata-se, na verdade, de um conceito usado para falar da representatividade politica. D) Uma minoria politica pode ser a maioria numérica em uma sociedade. E) As minorias politicas geralmente sofrem com a violéncia simbdlica. 2. TENDO ESTUDADO SOBRE O CONCEITO DE “VIOLENCIA SIMBOLICA" DE BOURDIEU, QUAL DAS ALTERNATIVAS ABAIXO REPRESENTA UM EXEMPLO DO FENOMENO DESCRITO PELO AUTOR? A) Relagdes entre alunos e professores em que os alunos sao agressivos, de maneira inadequada & hierarquia estabelecida nas instituigdes de ensino. B) Violéncia familiar e doméstica em que os abusos so entendidos como parte natural da dinamica de poder da casa C) O crime comum violento, como 0 caso dos assaltos na rua, em que as vitimas sao surpreendidas pelos meliantes que Ihes subtraem seus bens. D) Violéncia policial, em que as vitimas s4o mortas ao serem confundidas com criminosos gerando revolta e comogao entre seus familiares e redes de vizinhanga. E) Nos casos em que pessoas sistematicamente aviltadas pela ordem social conseguem se rebelar e procuram fazer valer seus direitos por meio da forga. GABARITO 1. Arespeito da discussao sobre minorias politica, marque a alternativa incorreta: Aalternativa "A" esta correta. A nogo sociolégica de minoria ndo é a mesma da Matematica. Um grupo numericamente maior pode ser sistematicamente excluido dos principais espagos de poder na sociedade. 2. Tendo estudado sobre o conceito de" Iéncia simbélica” de Bours u, qual das alternativas abaixo representa um exemplo do fenémeno descrito pelo autor? Aalternativa "B " esta correta. Violéncia abrigada na hierarquia familiar (seja de homens sobre mulheres ou de pais sobre filhos) naturalizada porque entendida como parte do sistema de manutengao da ordem naquele grupo pode ser considerada como violéncia simbética devido a estar entranhada na cultura de tal forma que leve ao nao reconhecimento da violéncia pela prépria vitima: MODULO 3 © Identificar a impunidade no ambito social e a busca pela diminuigao da violéncia cotidiana PUNIGAO E TIPOS DE PENA As perspectivas sobre a impunidade possuem uma variagao disciplinar. E as Ciéncias Sociais podem contribuir para uma apreciagao histérica da “punigao”, problematizando o seu lugar nas sociedades contemporaneas, sobretudo no Brasil. Por exemplo, é possivel em classica abordagem sociolégica estabelecer um contraste entre as penas punitivas e as restitutivas (DURKHEIM, 1999). Quando um crime 6 cometido, sua forma de reparagao pode se processar de duas maneiras: Reparagao do dano causado x Punig&o aquele que comete o crime (quando a reparagéo do dano causado ndo for possivel) Pensemos, a titulo de exemplo, no crime de difamagao, previsto pelo nosso Cédigo Penal. ART. 139. DIFAMAR ALGUEM, IMPUTANDO-LHE FATO OFENSIVO A SUA REPUTAGAO: PENA — DETENGAO, DE TRES MESES A UM ANO, E MULTA. (DECRETO-LE! 2.848/1940) Fonte: Shutterstock Quando aquele que causou o dano é condenado a pena de multa, entende-se que o valor pago restitui o dano causado, restabelecendo a ordem das coisas, a “justia”, Assim, se um individuo processa uma empresa que Ihe prestou um mau servigo, a empresa pode ser condenada a indenizé-lo, pagando um valor que funciona, em sentido filoséfico e material, como compensagao por aquele mau servigo. Trata- se de uma pena restitutiva, sob esse ponto de vista de entendimento da sociedade e suas formas de regulagao e ordem. Fonte: Shutterstock No caso da pena de detengao, recluséo (que sao penas restritivas da liberdade do sujeito condenado) e, no caso de ordenamentos juridicos de outros Estados-nagao que nao o Brasil, da pena de morte, o que estd em jogo nao é a reparagao do dano causado via restitui¢ao material ou pagamento. Nesses casos, aplicados como penas de maior severidade, a “restituigdo” acontece em um nivel mais sutil,filoséfico, ¢ que no limite passa por infigir sofrimento aquele que cometeu o crime. @ VOCE SABIA Em muitos ordenamentos juridicos antigos como 0 eédigo de Hamurabi, por exemplo, havia a chamada Lei de Talido. Taliao vem do latim falio, talis e significa “tal qual”, “idéntico”. “Olho por olho, dente por dente’. Assim, se um individuo batesse em seu pai, 0 que era considerado um ato contra o valor da honra, sua mao deveria ser cortada; se matou, deveria ser morto. Essa lei é a antecessora dos ordenamentos juridicos atuais no sentido de estabelecimento de uma proporcionalidade da pena em relagdo a lesdo. CODIGO DE HAMURABI Khammu-rabi, rei da Babilénia no 18° século A.C., estendeu grandemente o seu império e governou uma confederagao de cidades-Estado. Erigiu, no final do seu reinado, uma enorme “estela" em diorito, na qual ele é retratado recebendo a insignia do reinado e da justiga do rei Marduk. Abaixo mandou escreverem 21 colunas, 282 cléusulas que ficaram conhecidas como Cédigo de Hamurabi (embora abrangesse também antigas leis). Fonte: dhnet.org,br Historicamente, tratou-se de vulgarizagao da pena de morte, uma vez que 0 ofendido, especialmente se provinha de camadas mais abastadas da sociedade, precisava sentir-se vingado. Algumas leis do cédigo de Hamurabi mostram a amplificagao do escopo da pena de morte’ SE ALGUEM ROUBAR A PROPRIEDADE DE UM TEMPLO OU CORTE, DEVE SER CONDENADO A MORTE, E AQUELE QUE RECEBER O PRODUTO DO ROUBO DO LADRAO DEVE SER IGUALMENTE CONDENADO A MORTE. SE ALGUEM RECEBER EM SUA CASA UM ESCRAVO FUGITIVO DA CORTE, HOMEM OU MULHER, E NAO O TROUXER A PROCLAMAGAO PUBLICA NA CASA DO GOVERNANTE LOCAL OU DE UM HOMEM LIVRE, O MESTRE DA CASA DEVE SER CONDENADO A MORTE. SE ALGUEM ARROMBAR UMA CASA, ELE DEVERA SER CONDENADO A MORTE NA FRENTE DO LOCAL DO ARROMBAMENTO E SER ENTERRADO. SE UM CONSTRUTOR CONSTRUIR UMA CASA PARA OUTREM, E NAO A FIZER BEM FEITA, E SEA CASA CAIR E MATAR SEU DONO, ENTAO O CONSTRUTOR DEVERA SER CONDENADO A MORTE. SE MORRER O FILHO DO DONO DA CASA, O FILHO DO CONSTRUTOR DEVERA SER CONDENADO A MORTE. (QUEIROZ, 2019) Esse tipo de penalidade que segue, quando em uma cultura religiosa mais primitiva, a Iégica do sacrificio, trata-se de uma restituigao no sentido de estabelecimento da justia, entendendo-se justi¢a ‘como um tipo de equilibrio magico que, se corrompido, pode ser cruel, pode trazer morte e dor, sendo essa crueldade entendida como parte indelével de um bem maior. Trata-se de uma austeridade que institui o sentido de importancia e de valor da ordem e da prépria vida, abrigada nessa ordem social. Esse pensamento estaria na origem do proprio sentido da vinganga, sendo uma espécie de impulso pouco refinado que os individuos experimentam quando lesados por outrem ® COMENTARIO Neste caso, Cunha (2019) afirma podermos dizer que a pena é entendida como suplicio e expiagao, aplicada passional e difusamente, muitas vezes associada a vergonha publica. Na abordagem sociolégica aqui adotada, ¢ importante perceber que ela identifica uma genealogia das penas quanto a esses dois tipos, associada as sociedades primitivas ou complexas. Para o autor, 0 direito punitivo faz muito mais sentido nas sociedades primitivas, como sociedades da Idade Média e de periodos histéricos anteriores, ou nas sociedades tribais onde exista uma comunidade de valores considerados sacros e que deveriam ser incorruptiveis, enquanto as penas restitutivas teriam surgido em momentos histéricos subsequentes e seriam caracteristicas das sociedades mais contemporaneas e complexas, onde a divisdo do trabalho é estratificada e existe uma pluralidade de valores em disputa, possibilitada pelo multiculturalismo. Nas sociedades complexas, como é o caso da nossa, temos assim um dispositivo juridico que combina: Penas restitutivas Penas punitivas As penas punitivas, expiatorias, sdo aplicadas quando o bem juridico tutelado pelo Estado esta relacionado a um valor de importancia central na nossa sociedade. Assim, atentados contra a “vida’, a “infancia’, a “propriedade privada”, por exemplo, so punidos com prisdo e, em outros paises, até mesmo com a morte do criminoso. Devemos acrescentar que a prisdo, assim como a condenagao a morte, possui um carter pratico, enten: lo como a retirada daquele individuo do convivio soci I, uma vez que se considera que o crime cometido possui enorme potencial ofensivo dos valores tutelados pelo Estado. Isso nao exclui, contudo, o sentido de expiagéo desse tipo de pena, basta observar o clamor puiblico, a comogdo social ‘em tomo de crimes que ofendam nossos valores mais caros como crimes hediondos cometidos contra criangas ou pessoas incapazes, por exemplo. Fonte: Bain News Service — Divisao de Gravuras e Fotografias da Biblioteca do Congreso dos Estados Unidos/Wikimedia Commons, Dominio ptiblico. Podemos refletir sobre a gana social, feroz, por justia quando se ofende gravemente a ordem social ions mediante algumas praticas tra do folelore nacional como a “malhagao do judas”, ou nas iniciativas populares de “fazer justica com as préprias maos”, como os linchamentos de estupradores. Fonte: Shutterstock.com Podemos ainda pensar em instancias medianas entre a iniciativa solitéria ou espontanea dos que se vingam de um crime brutal e as respostas do Estado a esses crimes pela aplicagao das penalidades previstas em lei. Entre uma coisa e outra, hd os tribunais do trafico e as tropas de milicias em grandes cidades brasileiras. Esses grupos armados se estabelecem no vacuo do poder ptiblico e atendem, muitas vezes, a uma demanda de ordem que o Estado nao é capaz de suprir. Aplicam pena de morte ‘em casos como o de estupro e centralizam a aplicagdo da violéncia nas regides onde atuam. O PROBLEMA DO ESTABELECIMENTO DA VERDADE Curiosamente, 0 suplicio do criminoso tem em si um valor social. & como se mediante aquele suplicio tivéssemos uma extitpagao do préprio crime. Ao longo da historia, a exlirpagao do crime pela expiagao do criminoso assumiu muitas formas no Ocidente, as quais flertavam com as cosmologias cristés muitas vezes, dada a importancia cultural do cristianismo ao estabelecer os entendimentos do que seria justiga e sua relagdo com a transcendéncia, E 0 caso da pena de morte na fogueira para mulheres acusadas de bruxaria pelos tribunais do Santo Oficio. Acreditava-se que 0 fogo poderia “queimar a praga’ espiritual e salvar a alma da mulher acometida pelas tentagdes demoniacas. E o mesmo principio dos sacrificios rituais, em que se abre mao, oferece-se ou se descarta algo importante em prol de um bem maior. Fonte: Jan Luyken — Cl Roger-ViolletWikimedia Commons, Dominio puiblico. © Representacdo, feita por Jan Luyken (1685), da execugao na fogueira de Anneken Hendriks (Amsterda, 1571), durante as Guerras Religiosas (Reforma e Contrarreforma), Jan Luyken — Cl Roger- Viollet, 1685. SANTO OFICIO A tematica da Inquisigao e do Santo Oficio também é bastante controversa. Embora nao seja o objetivo deste estudo aprofundar tais questées, vale destacar que, entre 1998 e 2004, um grupo de 30 renomados historiadores, especialistas no tema, realizaram o Simpésio Internacional sobre as Inquisigées. Por ter acontecido na Cidade do Vaticano (que abriu sua biblioteca para esses profissionais), era de se esperar que o resultado fosse também controverso (BORROMEO, 2003) 1 ATENGAO As penas tm, nesses casos, sempre algum castigo que envolva corpo do criminoso e sua aflicao. Essa relagdo com o corpo esteve presente, nos séculos passados, nao apenas na pena, mas no estabelecimento da verdade. Experimentos sociojuridicos envolvendo 0 corpo mostravam resultados espirituais que eram interpretados pelos juristas numa fase do processo que era anterior a da aplicagao da pena. Como era predominante a viséo de que o suplicio fisico (desde jejuns a dores infligidas), aplicado de forma voluntaria ou imposta, purificaria a alma — e, consequentemente, a relagao com Deus —, era ‘comum entender a importancia do juramento ou confissdo nesse processo (FOUCAULT, 2005). As palavras ditas pelo acusado recebiam uma gama de interpretagdes, que implicaria em pena. Pode-se destacar ainda, nesse contexto, os chamados ordélios (provas fisicas), que consistiam em submeter uma pessoa a uma espécie de jogo, de luta com seu préprio corpo, para constatar se venceria ou fracassaria Por exemplo, na época do Império Carolingio, havia uma prova célebre imposta a quem fosse acusado de assassinato em certas regiées do norte da Franga. O acusado devia andar sobre ferro em brasa e, dois dias depois, se ainda tivesse cicatrizes, perdia o proceso. Havia ainda outras provas como 0 ordalio da égua, que consistia em amarrar a mao direita ao pé esquerdo de uma pessoa e atird-la na agua. Se ela nao se afogasse, perdia 0 processo, porque a prépria agua néo a recebia bem e, se ela se afogasse, teria ganho o proceso, visto que a dgua nao a teria rejeitado. Todos esses afrontamentos do individuo ou de seu corpo com os elementos naturais so uma transposigao simbélica, cuja semantica deveria ser estudada, da propria luta dos individuos entre si. No fundo, trata-se sempre de uma batalha, trata-se sempre de saber quem é 0 mais forte. No velho Direito germénico, o processo é apenas a continuagao regulamentada, ritualizada da guerra (FOUCAULT, 2005). ‘Ao longo das Idades Média e Moderna, diversos procedimentos de inquérito foram experimentados na medida em que as resolugdes dos litigios entre individuos foram sendo centralizadas pelo Estado. Com isso, os métodos de depuracdo da verdade se formaram e se modificaram culturalmente. IMPUNIDADE X PUNITIVISMO estabelecimento da verdade, das penas cabiveis aos crimes, a aplicagdo dessas penas e a garantia de seu cumprimento pelo Estado Moderno concorrem para 0 estabelecimento do principio da “seguranga juridica’, que rege o entendimento de que ao Estado cabe prover as relagdes humanas o maior grau de previsibilidade e estabilidade possivel. A questéo ¢ que nossa cultura penal, que é herdeira da Lei de Talido, desenvolveu-se historicamente fundamentada na importancia da extirpagao do crime através da expiagao do criminoso. Temos, na verdade, toda uma cultura da punigao que atravessa os séculos. Corrompé-la gera um sentimento de inseguranga nas pessoas, um temor de que se estabelega a desordem social. Desde a Inglaterra do séc. XVII ja era chamado de “luta de todos contra todos" a um estado de natureza em que 98 individuos, sem a regulagao do Estado, estariam livres para exercer os seus impulsos uns sobre 0s outros, como animais, fazendo valer, no final das contas, a lei do mais forte, sem nenhuma racionalidade que organizasse o convivio humano em fungao de um principio abstrato de justiga (HOBBES, 2003). Fonte: Shutterstock.com © Manifestacdo nao pacffica, Hayk_Shalunts, 2020. O CRIME E REVERSO DA LEI. ESTA, DE CERTA FORMA, CRIA O CRIME, AO PREVER, TIPIFICAR DETERMINADA CONDUTA COMO ILEGAL. ASSIM, UM ESTADO EFICIENTE DEVERIA REGULAR O CONJUNTO DE LEIS QUE REGE O CONVIVIO, PUNINDO ADEQUADAMENTE OS INFRATORES E A RADICALIZAGAO DESSA LOGICA QUE CRIA E SUSTENTA UMA CULTURA DAS PUNICOES, ESTABELECENDO A APLICAGAO DA PENA COMO CONDICGAO FUNDAMENTAL PARA A PAZ SOCIAL. © socidlogo Loic Wacquant fez um amplo estudo sobre a cultura punitivista na Europa e no continente americano, mostrando a insergao dessa cultura no sistema capitalista de produgo. Ele conclui sobre o viés de classe social que recorta a aplicagao de penalidades pelos Estados nos dois continentes, Segundo 0 autor, o Estado minimo preconizado pelo neoliberalismo — a “mao invisivel” (SMITH, 2013) — possui um revés: a mao de ferro do punitivismo que se abate preferencialmente sobre as classes pobres. LOIC WACQUANT Eu nasci e cresci no sul da Franga. Fiz meus estudos na Franga, inicialmente em Economia Industrial e depois em Sociologia. Fui para os EUA em 1985 para fazer meu doutorado na Universidade de Chicago. Trabalhei inicialmente sobre as desigualdades urbanas e a marginalidade social na cidade. Foi meu trabalho sobre a marginalidade urbana que me levou a encontrar a prisdo, porque, para fazer um estudo sobre a transformago do gueto negro de Chicago, inscrevi-me em um clube de boxe do gueto como forma de fazer uma observacdo participante e descobri que todos os meus colegas de boxe haviam passado pela prisdo. Fiz esse trabalho de campo para me aproximar da realidade cotidiana, em particular, da juventude negra e pobre do gueto de Chicago. (WACQUANT apud BOCCO et al, 2008) POLICIAMENTO PERMANENTE estabelecimento de politicas de seguranga publica que passa pelo policiamento permanente de areas socioeconomicamente degradadas, como é 0 caso das cités na Franga, dos guetos norte-americanos & das favelas brasileiras, com suas relativamente recentes Unidades de Policia Pacificadora. PRIVATIZAGAO DOS PRESIDIOS © processo de privatizagao dos presidios norte-americanos, que indica a transformagao das penalidades em um lucrativo negécio, uma vez que a reclusao penal é um sistema que muito onera 0 Estado e que as prisdes tendem a ser mal administradas pelo poder puiblico, que nao consegue, de fato, com esse sistema, ressocializar 0 criminoso. No fim das contas, é como se o encarceramento em massa fosse uma forma eficaz, na contemporaneidade, de gerir 0 enorme contingente de mao de obra que nao encontra lugar no mercado de trabalho. E numa perspectiva ainda mais atual, a questo racial pode ser percebida, presente na dinamica cultural do encarceramento: O QUE PODERIAMOS CHAMAR DE GERME DO SISTEMA CRIMINAL BRASILEIRO JA SE INICIOU PUNITIVISTA. DE 1500 A 1822, O QUE SERIA UM CODIGO PENAL ERAM AS ORDENAGOES FILIPINAS, NOTADAMENTE 0 LIVRO V, ONDE PREDOMINAVA A ESFERA PRIVADA E DA RELAGAO SENHOR/PROPRIETARIO-ESCRAVIZADO/PROPRIEDADE. COM ISSO, A LOGICA DO DIREITO PRIVADO IMPERAVA JA NO NASCEDOURO DO NOSSO SISTEMA E, DADO O CARATER VIOLENTO DO ESCRAVISMO, JA TINHA EM SEU CERNE AS PRATICAS DE TORTURA, FOSSEM PSICOLOGICAS, FOSSEM FISICAS, POR MUTILAGOES E ABUSOS SOFRIDOS PELOS ESCRAVIZADOS. HAVIA, COM ISSO, DIFERENCIAGAO DAS PENAS ENTRE ESCRAVIZADOS E LIVRES. UM EXEMPLO E A EXECUGAO DA PENA CAPITAL EM QUE OS “BEM-NASCIDOS” ERAM EXECUTADOS PELO MACHADO, CONSIDERADA UMA MORTE DIGNA, E AOS DEMAIS ERA UTILIZADA A CORDA, CONSIDERADA UMA MORTE DESONROSA. POSTERIORMENTE ESSA DIFERENCIAGAO NAO APARECERA NA LETRA DA LEI, MAS SERA EXERCIDA E SENTIDA NA APLICAGAO DA PUNIGAO AOS REUS. (BORGES, 2019) A populagao carcerdria, no Brasil atual, caracteriza bem isso, por ter uma cor de pele especifica. Nao sera porque pessoas negras delinquem mais que brancas, nem porque pessoas pobres (em sua maioria negras) delinquem mais que as ricas. Ha, talvez, um recorte social do tipo de crime cometido pelos individuos e um direcionamento do aparato punitivista do Estado para esses crimes, que passam a ser considerados de maior poder ofensivo, seja porque o racismo é estrutural e pode orientar subliminarmente os préprios julgamentos e sistemas de acusagées, seja porque pessoas pobres (em sua maioria negras) nao possuem os recursos necessérios para custear profissionais com maior formago e experiéncia Essa situagao nao nasceu em nossos dias: COM RELAGAO AOS PADROES DE DETENGAO, AS PESQUISAS DE 1810 A 1821 DEMONSTRAM O CRITERIO DE COR. SAO POUQUISSIMOS OS BRANCOS PRESOS. NO RIO DE JANEIRO DA EPOCA (QUASE METADE DA POPULAGAO ERA NEGRA), 80% DOS JULGADOS ERAM ESCRAVOS, 95% NASCIDOS NA AFRICA, 19% EX-ESCRAVOS E APENAS 1% LIVRES. NO SISTEMA PENAL DIRIGIDO A ESCRAVIDAO, OS PRINCIPAIS MOTIVOS PARA A PRISAO DE ESCRAVOS ERAM FUGA OU PRATICA DE CAPOEIRA. (BATISTA, 2003) Resta-nos, portanto, néo somente aprofundar contetido aqui apresentado, mas, principalmente, compreender nosso papel nesse processo, buscando formas, cada vez mais eficientes, institucionais e pessoais, de combatermos a violéncia. No video a seguir, o especialista Dennis Novaes apresenta a relacao entre os conceitos de impunidade e violéncia no contexto do tema estudado. Vamos assistir! Para assistir a um video D>, sobre o assunto, acesse a ° verso online deste contetido. ~o— VERIFICANDO O APRENDIZADO 1. SOBRE A RELAGAO ABORDADA ENTRE PUNITIVISMO E IMPUNIDADE, PODEMOS AFIRMAR QUE: ‘A) A impunidade pode ser pensada como uma propaganda de uma cultura punitivista. B) A impunidade e 0 punitivismo sao, na verdade, 0 mesmo processo social. C) O punitivismo é um dispositivo cultural superado pelas sociedades contemporaneas apés 0 surgimento do que Durkheim chamou de penas restitutivas D) O punitivismo possui estreita relagao com a igualdade de direitos na nossa sociedade. E) A impunidade é o maior motivo da proliferagao da violéncia no Brasil e no mundo 2. PARA DURKHEIM, AS PENAS PUNITIVAS ESTAO PRESENTES: A) Exclusivamente nas sociedades complexas, uma vez que as sociedades primitivas possuem maior habilidade politica para a resolucao de confltos. B) Exclusivamente nas sociedades contemporaneas tribais, em que os lideres politicos precisam de fortes exemplos daquilo que nao pode ser feito. C) Exclusivamente em sociedades simples ou primitivas, como € 0 caso de tribos e das grandes sociedades da Idade Média. D) Principalmente em sociedades cujos valores sociais mais fundamentais e compartilhados por todos possam sofrer atentados na forma de ilegalismos. E) Tanto em sociedades simples quanto em sociedades complexas, tendo sido 0 fruto do desenvolvimento das penas restitutivas. GABARITO 1. Sobre a relagdo abordada entre punitivismo e impunidade, podemos afirmar que: A altemativa "A esta correta. A impunidade, vista através das lentes da desnaturalizagdo, é um dispositivo cultural, uma imagem que a sociedade pode ter a respeito de si mesma. De acordo com os exemplos historicos em que isso se da, tem a ver com o estabelecimento de uma demanda de justica atrés do anseio da populagdo por uma mais ampla aplicagao das punigées legais e de um reforgo cultural da importancia da punigo/condenagao. 2. Para Durkheim, as penas punitivas estao presentes: Aalternativa "D " esta correta. As penas punitivas so aquelas mais primitivas em termos de surgimento histérico, originadas em sociedades nas quais a violagao de valores importantes tinha um grande efeito emocional na populagao, © que gerava a demanda por expiagao/suplicio do criminoso. CONCLUSAO CONSIDERAGOES FINAIS No decorrer dos trés médulos, vimos como a violéncia é um fenémeno complexo com implicagdes variadas para a vida em sociedade. Em primeiro lugar, analisamos de que forma a violéncia esteve presente na constituigao da identidade nacional. O processo histérico que deu origem ao Brasil enquanto Estado-nacao foi permeado por conflitos e disputas violentas pelo dominio sobre um territério. Em seguida, refletimos sobre as populages menorizadas e como as politicas piiblicas podem fomentar uma sociedade verdadeiramente democratica. Para isso, 6 necessério que os grupos alijados dos espagos de poder tenham voz e sejam representados, mas também que as minorias tenham seus direitos preservados. Por fim, apresentamos como a punigdo e os tipos de pena se constituiram em diferentes periodos histéricos ¢ sociedades. A relagao entre impunidade e violéncia 6 mais complexa do que 0 senso ‘comum muitas vezes faz parecer e, por esse motivo, uma abordagem socioantropolégica sobre esse fenémeno é fundamental para a criagao de politicas piiblicas eficazes. Para ouvir um podcast sobre o assunto, acesse a versao online deste contetido. REFERENCIAS BATISTA, V. M. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma histéria. Rio de Janeiro: Revan, 2003 BOCCO, F; NASCIMENTO, M. L.; COIMBRA, C. A seguranga criminal como espetaculo para ocultar a inseguranga social: entrevista com Loic Wacquant. In: Fractal, Rev. Psicol., Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, p. 319-329, jun. 2008. BORGES, J. 0 que é encarceramento em massa? Sao Paulo: Sueli Cameiro; Pélen, 2019. BORROMEO, A. L'inquisizione: atti del Simposio intemazionale, Citta del Vaticano, 29-31 ottobre 1998. Roma: Biblioteca apostélica vaticana, 2003. 788 paginas. BOURDIEU, P. Sobre o Estado, Séo Paulo: Companhia das Letras, 2018. BRASIL. Casa Civil. Decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Cédigo Penal. Brasilia, 1940. BRASIL. Casa Civil, Lei n. 2.889, de 1 de outubro de 1956. Define e pune o crime de genocidio. Brasilia, 1940. CARNEIRO, A. S. Escritos de uma vida. 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O livro O que é encarceramento em massa?, escrito por Juliana Borges, apresenta de forma didética a situagao dramatica do sistema carcerdrio no Brasil. Somos um dos paises que mais prendem no mundo, mas isso nao tem se refletido na redugdo dos indices de violéncia, pelo contrario. A autora traz reflexdes fundamentais para quem deseja compreender 0 encarceramento ea violencia no Brasil contemporaneo, Para conhecer uma das polémicas em torno da figura de Zumbi dos Palmares, leia a breve reportagem da revista Veja (21 nov. 2015), assinada por Leandro Narloch e intitulada Zumbi tinha escravos. E dai?. Como forma de aprofundarmos a visdo da relagao dos indigenas com a terra, vale a leitura apresentada por Thomas Woods (Historiador de Harvard) em seu artigo Os indios americanos realmente eram ambientalistas?. CONTEUDISTA Dennis Novaes @ CURRICULO LATTES Natania Lopes @ CURRICULO LATTES

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