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CRISTIANA BARRETO

A CONSTRUÇÃO
DE UM PASSADO
PRÉ-COLONIAL:
UMA BREVE
HISTÓRIA DA
ARQUEOLOGIA
NO BRASIL

CRISTIANA BARRETO
Departament of
Anthropology
University of Pittsburgh
E-mail:
cbarreto@internetcom.com.br

32 REVISTA USP, São Paulo, n.44, p. 32-51, dezembro/fevereiro 1999-2000


ARQUEOLOGIA BRASILEIRA, ARQUEOLOGIA DO BRASIL

A
maior parte do conhecimento arqueo-

lógico produzido no Brasil trata do pe-

ríodo pré-cabralino. A arqueologia feita

no Brasil é essencialmente uma ar-

queologia de sociedades indígenas extintas que vi-


veram em um passado distante, deixando como

testemunho de sua existência somente restos ma-


teriais. Há 500 anos que estes restos materiais têm

sido encontrados, estudados e interpretados. Há


500 anos que estes restos têm sido a matéria-pri-

ma para a construção de um passado pré-colonial

brasileiro.

Rever a história da arqueologia no Brasil é


acompanhar o confronto do brasileiro ao longo

destes anos com um passado pouco conhecido,


que traduz as diversas formas de identificação ou

rejeição das raízes indígenas por parte da socieda-


de nacional, e que nem sempre corresponde a ide-

ais de uma (pré)história nacional.

A perspectiva colonial, do europeu branco ex-

plorando um passado exótico e distante, predomi-


nou até a institucionalização da arqueologia dentro

de museus e centros de pesquisa científica, a partir


do século XIX. Ironicamente, movimentos que valo-

rizaram a cultura indígena, como os movimentos


nativistas, o romantismo, e mesmo o modernismo,

pouco influíram no desenvolvimento de uma arqueo-


logia mais científica e menos eurocêntrica.

Ao contrário, o crescimento científico da ar-

queologia foi promovido inicialmente por naturalis-

tas europeus trazidos pela Corte portuguesa, mais

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tarde pelo próprio imperador Pedro II, e fi- construção civil e pública.
nalmente pelos professores estrangeiros tra- O futuro da arqueologia no Brasil, ainda
zidos ao Brasil para a construção de centros que sujeito em grande parte ao Estado (como
de pesquisas e universidades. Nesse senti- órgão de controle de como é afetado o
do, a arqueologia brasileira, ao longo de sua patrimônio arqueológico), depende cada vez
história, tem sido muito pouco brasileira. mais da formação acadêmica especializada
Ao contrário de alguns países vizinhos de uma nova geração de profissionais, e dos
onde o resgate do patrimônio arqueológico empreendimentos de construção que vêm
é movido pela identidade cultural das po- abrindo um novo mercado para estes profis-
pulações atuais, no Brasil, a arqueologia é sionais, mas também gerando recortes geo-
marcada pela ruptura irreversível na sua gráficos e temáticos bastante arbitrários na
história, que foi o extermínio das popula- produção de dados arqueológicos.
ções indígenas e a construção de uma soci- A história da arqueologia reflete então
edade nacional branca, não indígena. Tam- não só os vários contextos históricos de
bém, ao contrário de outros países onde a pesquisa e produção de conhecimento, mas
legislação de proteção deste patrimônio é também a relação entre o papel do arqueó-
fruto da demanda de grupos regionais ou logo na sociedade e o que a sociedade espe-
nacionais que buscam fortalecer suas tra- ra, anseia e exige que o arqueólogo produ-
dições culturais, no Brasil, esta legislação za sobre o passado pesquisado.
é promovida por uma pequena elite inte- Alguns temas recorrentes ao longo da
lectual sendo promulgada de forma história da arqueologia no Brasil são dignos
paternalística ou autoritária pelo Estado. de nota, como a origem e a antigüidade dos
A arqueologia no Brasil é marcada não primeiros brasileiros, ou ainda a existência
só pela falta de identificação étnica e cultu- no passado de sociedades mais complexas e
ral com o passado indígena, mas ainda sofre “avançadas” do que as conhecidas socieda-
o agravante do caráter pouco monumental e des indígenas brasileiras. Estas recorrências
modesto do patrimônio material, em grande apontam áreas de maior aproximação entre
parte perecível e de difícil conservação, di- a pesquisa acadêmica/científica e o interes-
ficultando ainda mais a valorização e iden- se popular, exemplificando assim a relação
tificação cultural com este patrimônio por entre a arqueologia e a sociedade.
parte da sociedade em geral.
Nas últimas décadas a arqueologia bra-
sileira passou por transformações decisi- O PRIMEIRO OLHAR: ARQUEOLOGIA
vas no seu desenvolvimento dentro e fora
da academia. A comunidade científica, E O DESCOBRIMENTO
antes uma pequena elite acadêmica do Sul
e Sudeste do país, com uma produção de As poucas “histórias” da arqueologia
pequena penetração e relevância para a brasileira já escritas (Mendonça de Souza
sociedade como um todo, hoje se mostra 1991; Prous 1991; Schmitz 1994) tratam
ativa em todo o país através de diversos do conhecimento sobre as antigas popula-
centros de formação, publicações periódi- ções indígenas brasileiras acumulado ao
cas especializadas, e uma sociedade politi- longo do tempo, e, portanto, abrem esta
camente atuante. história com as primeiras descrições dos
Fora da universidade, o papel do ar- indígenas encontrados à época do desco-
queólogo e sua responsabilidade perante brimento, como por exemplo as cartas de
a sociedade em recuperar e preservar o Pero Vaz de Caminha. Contudo, apesar dos
patrimônio arqueológico vem aumentan- relatos dos cronistas do descobrimento
do rapidamente face à crescente partici- constituírem importantes fontes para a ar-
pação da arqueologia nos exigidos estu- queologia e a etno-história, tais crônicas
dos de impacto ambiental e resgate do não possuem ainda um olhar arqueológico.
patrimônio nas vastas áreas afetadas pela Afinal, como nos lembra Prous, na Europa,

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a arqueologia nasceu somente no século jantes da segunda metade do século XVIII e
XVIII (com escavações como as de início do XIX. Mesmo antes da instalação
Pompéia), sendo que culturas considera- da Corte portuguesa no Brasil e do decor-
das “primitivas” só se tornaram dignas do rente incentivo à exploração mais sistemá-
estudo científico mais tarde (Prous 1991). tica do território brasileiro, o país já vinha
Nas crônicas do descobrimento, exis- sendo palco de inúmeras excursões, viagens
tem sim muitas alusões à cultura material e pesquisas de naturalistas estrangeiros, so-
indígena que ajudam os arqueólogos a atri- bretudo franceses e alemães.
buir a determinadas culturas coisas hoje Eram projetos não mais regidos pela
conhecidas apenas arqueologicamente. Um curiosidade renascentista da era das desco-
bom exemplo são as casas subterrâneas dos bertas, mas pela especulação científica
guaianases mencionadas por Gabriel Soa- iluminista do estudo da natureza de forma
res de Sousa em 1580 em seu Tratado racional. Apesar da pouca especialização
Descritivo do Brasil (Soares de Sousa das áreas de saber (descrevia-se com igual
1974). Raramente, alguns cronistas chegam amplitude a flora, a fauna, os nativos e a
a reconhecer sítios arqueológicos enquan- cultura material), eram projetos já marca-
to tal, como os sambaquis descritos pelo dos pelo crescente interesse europeu pela
jesuíta Fernão Cardim, ou as inscrições etnologia, e pelo reconhecimento do po-
rupestres observadas pelos soldados do tencial informativo da cultura material.
capitão-mor Feliciano Coelho em 1598 Além disso, as teorias formuladas sobre
(Cardim 1978; Sampaio 1955). Contudo, origem e antigüidade dessas populações se
não há interesse em estudá-los. No máxi- baseavam cada vez mais em evidências
mo, algumas peças arqueológicas eram arqueológicas.
coletadas por oficiais da Coroa juntamente Este ciclo de viajantes inaugurou-se com
com outros objetos exóticos para o Gabi- expedições amazônicas, como as de La
nete Real de Curiosidades (Schwarcz 1989). Condamine (1745), Franz Keller-Leusinger
Às crônicas do descobrimento, seguem- (1784) e Alexandre Rodrigues Ferreira
se os relatos monçoeiros, bandeirantes e (1785-1790), doutor em Ciências pela
sertanistas, além das crônicas e relações Universidade de Coimbra, e muitos outros
eclesiásticas. Interpretações sobre as ori- (Sampaio 1955). Para os naturalistas dos
gens das populações indígenas recém-en- séculos XVIII e XIX, a Amazônia repre-
contradas são tímidas e condizentes com o sentava o lugar onde a natureza e o homem
criacionismo ou monogeísmo cristão da podiam ser observados em sua forma mais
época. Entre as teses mais comuns estão a pura, um local precioso para a pesquisa.
do paraíso terrestre na América e a da des- Quanto à arqueologia, este é o início de
cendência das tribos perdidas de Israel. No uma longa tradição de expedições estran-
entanto, nenhuma delas se inspirou em geiras ao Amazonas, região que, até os dias
evidências arqueológicas. Finalmente, com de hoje, continua a atrair a atenção de ar-
a expulsão dos jesuítas em 1759 encerrou- queólogos estrangeiros.
se todo um gênero de estudos e relatos por A viagem de estudos de Alexandre von
parte da instituição que, até então, mais se Humboldt (1799-1803) insere-se neste con-
aproximara e melhor conhecia as diferen- texto de expedições amazônicas. Além de
tes culturas indígenas do país. registrar importantes sítios arqueológicos,
Humboldt propôs a primeira teoria de ori-
gem das populações americanas com base
A ARQUEOLOGIA NA ERA DAS em suas observações antropológicas. Su-
geriu uma origem asiática única, “uma só
EXPEDIÇÕES raça,… um só tipo orgânico modificado por
circunstâncias que nos ficarão para sempre
Uma perspectiva mais propriamente ar- desconhecidas” (Rocque s/d).
queológica surgiu com os naturalistas via- Humboldt foi impedido pelo governo

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português de adentrar o território brasileiro. o inconformismo tende a se transformar em
Suas idéias e teorias pareciam prejudiciais desinteresse e desprezo das elites intelec-
aos interesses da Coroa a qual, apesar de tuais pela arqueologia brasileira, mais tar-
incentivar a exploração do território para de agravados por um certo tecnicismo por
promover a imagem de um país vasto, diver- parte da arqueologia acadêmica brasileira
sificado, cheio de riquezas naturais, também e pelo seu isolamento do restante das ciên-
procurava impedir novas idéias que fortale- cias humanas e sociais praticadas no país.
cessem o incipiente nativismo brasileiro. Ao longo desse processo, coleções de
Com a instalação da Corte no Brasil, as materiais foram sendo reunidas essencial-
expedições tornaram-se oficiais e o país se mente por naturalistas estrangeiros, inici-
transformou no paraíso de naturalistas via- almente com uma preocupação mais
jantes (Sampaio 1955). Em particular, en- museológica, isto é, voltada para a coleta
tre as expedições que fizeram registros de de amostras e vestígios de culturas extintas
interesse arqueológico estão as de Eschwege ou em extinção que seriam enviados e pre-
(1809), Wied Neuvied (1815), Saint-Hilaire servados em museus europeus, e em segui-
(1816-22), Koster (1816) e von Martius da com uma preocupação mais científica
(1818-21). Este último, juntamente com von em ordenar e classificar estes vestígios
Spix e Natterer, integrou a missão Pohl, que (Lopes 1995; Nizza da Silva 1983).
acompanhou a arquiduquesa e futura impe- No Brasil, o Museu Real , fundado em
ratriz Leopoldina ao Brasil. 1808 no Rio de Janeiro, e mais tarde com a
Von Martius dedicou-se particularmen- República rebatizado como Museu Nacio-
te à etnografia e à arqueologia indígena. nal, assumiu desde o início um perfil de
Especialmente preocupado com a origem museu de História Natural, servindo de
dos grupos indígenas brasileiros, classifi- home land para muitas das expedições es-
cou tribos por afinidade lingüística e tra- trangeiras. Com o objetivo explícito de
çou seus caminhos migratórios. Sustentou incentivar os estudos de botânica e zoolo-
a teoria de raça única de Humboldt, desen- gia, mas longe ainda dos padrões científi-
volvendo-a como uma teoria de involução cos e museológicos europeus, foi também
cultural indígena, voltada para localizar a o local onde seriam depositadas as peças
civilização de origem (Roquete Pinto 1927). arqueológicas de proveniências diversas,
Com isso inaugurou-se também todo um na maioria coletadas por naturalistas, mas
ciclo de especulações imaginosas que viam ainda tratadas como simples curiosidades
os índios brasileiros como o estágio final (Schwarcz 1989).
de uma civilização decadente, a qual pode- Finalmente, não se pode encerrar a re-
ria ser desde a dos fenícios, hebreus, chine- visão dessa etapa da “pré-história” da ar-
ses, japoneses e mongóis, até a de outros queologia brasileira sem mencionar o epi-
povos fictícios como os atlantes. Tais es- sódio das descobertas de Peter Wilhem
peculações eram sobretudo populares en- Lund, as quais até hoje têm revolucionado
tre os intelectuais brasileiros que, forma- teorias sobre a ocupação antiga do territó-
dos sob a ótica colonial européia, estavam rio brasileiro. Este naturalista dinamar-
ainda inconformados com um passado in- quês, vindo ao Brasil inicialmente em 1825
dígena “pobre”, ao contrário de seus vizi- para a coleta de espécimes para o Museu
nhos que, em seus movimentos nativistas e Natural de Copenhague, retornou ao país
anticoloniais, podiam evocar a tradição de em 1834, fixando residência em Lagoa
altos impérios e civilizações, como as dos Santa, Minas Gerais. Aí, com uma preocu-
astecas e incas. pação já voltada para a zoologia e a
Esta ótica marcou o desenvolvimento paleontologia, Lund pesquisou mais de 800
da arqueologia no país até os dias de hoje. cavernas, coletando e documentando ves-
À medida que os ideais de identificação tígios de animais extintos. Foi na Lapa do
com altas civilizações são frustrados por Sumidouro que Lund encontrou restos de
resultados de pesquisas mais sistemáticas, esqueletos humanos fossilizados em meio

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a ossadas de animais pleistocênicos, o que pela primeira vez sítios da cultura marajoa-
o levou a formular a hipótese de contem- ra, a famosa Thayer Expedition (1865) da
poraneidade de seres humanos com esta qual participam os arqueólogos america-
fauna hoje extinta (Junqueira1980; Prous nos Frederich Hartt e James Orton, as esca-
1991:6-7). vações de sítios amazônicos encontrados
Até então não havia notícias de restos por Hartt e retomadas por Orville Derby
humanos fossilizados em nenhuma outra (1871) e J. B. Steere da Universidade de
parte do mundo, e tampouco era aceita a Michigan (1876), e, no Sul, as escavações
idéia de tamanha antigüidade do ser huma- de Rath nos sambaquis paulistas (1876), e
no. Mesmo entre os cientistas da época, as de Carlos Wiener e Roquete Pinto nos
predominava ainda o criacionismo, e sambaquis do litoral sul (1876) (Mendon-
paleontólogos como Cuvier, mestre de ça de Souza 1991).
Lund, desenvolveram a teoria de catástro- Seguiu-se um período de efervescência
fes sucessivas para explicar os vestígios de científica na arqueologia brasileira não só
formas de vida extintas. Segundo o catas- quanto ao levantamento de dados primá-
trofismo em voga, o dilúvio bíblico teria rios com expedições, escavações e monta-
sido o último desses acontecimentos, e a gem de coleções, mas também quanto à
idéia de seres humanos contemporâneos à formulação de hipóteses e teorias sobre a
fauna extinta implicaria a existência de um origem e filiação cultural dos índios brasi-
homem antediluviano, o que para os parâ- leiros. Tendo em vista a tardia criação de
metros de conhecimento da época era ina- centros universitários no país, foi dentro
ceitável (Prous 1991). dos museus que pesquisa e teoria foram
Sem ser ouvido pelos cientistas de sua desenvolvidas.
época, a hipótese de Lund parecia antever
a teoria evolucionista de Darwin e Wallace
apresentada logo a seguir, em 1848. A A ARQUEOLOGIA NA ERA DOS
questão do “homem de Lagoa Santa” e
subseqüentes pesquisas na região atraves- MUSEUS
saram a história da arqueologia brasileira
pelo restante do século XIX e todo o sécu- Foi dentro de novos paradigmas de co-
lo XX, com controvérsias tanto a respeito nhecimento que a pesquisa arqueológica
da antigüidade dos vestígios humanos, passou a ser institucionalizada no Brasil.
como da sua origem racial, estendendo-se Evolucionismo, positivismo, e naturalismo
até os dias de hoje, quando então já é bas- começaram a penetrar o país a partir dos
tante aceita a idéia de um homem pleistocê- anos 1870. Paralelamente, uma elite inte-
nico americano. lectual brasileira começou a se organizar
A polêmica que se seguiu à publicação em torno do debate romântico sobre os
das obras de Lund na Europa, por sua vez, fundamentos de uma “cultura nacional”. A
acabou por sensibilizar também os gover- criação de museus locais, brasileiros, veio
nantes brasileiros, em especial D. Pedro II, de certa forma refletir estes novos ideais
que se mostrou particularmente interessa- contrapondo-se aos legados metropolita-
do no assunto, resolvendo incentivar a pes- nos e à ótica colonial (Shwarcz 1989).
quisa arqueológica no país, através tanto O papel destes novos museus, o Museu
do Museu Nacional como da promoção de Paulista em São Paulo, o Museu Paraense
expedições brasileiras. em Belém, e do reformado Museu Nacio-
Neste fim de século, expedições espe- nal no Rio de Janeiro, foi decisivo para o
cíficas para a pesquisa de sítios arqueoló- desenvolvimento da arqueologia no país,
gicos foram então organizadas, com as pri- não só na forma como a pesquisa foi
meiras escavações científicas de sítios ar- institucionalizada mas também ao definir
queológicos, tais como as expedições ama- os modelos científicos de produção de co-
zônicas de Ferreira Penna documentando nhecimento. Neles, antes de mais nada, a

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arqueologia e a etnologia ganharam espa- mais antigos e fornecer fundamentos
ços próprios, apesar de secundários em empíricos para as várias teorias em voga.
relação à botânica, à zoologia, e à geologia, A maior contribuição da época foi sem
enfim, às “verdadeiras” ciências naturais. dúvida a obra de Ladislau Netto, diretor do
A ciência do homem era exercida mais Museu Nacional a partir de 1879, que, ten-
como uma arte classificatória, na qual ves- do promovido várias expedições arqueoló-
tígios arqueológicos eram coletados e or- gicas pelo território nacional, além de ter
ganizados enquanto ilustração material participado pessoalmente de algumas, pu-
empírica da evolução humana. blicou a primeira síntese de arqueologia do
No recém-reinaugurado Museu Nacio- país intitulada Investigações sobre a
nal (1876) a seção de “Anthropologia, Archeologia Brasileira (1885). Algumas
Zoologia geral e applicada e Paleontologia idéias ousadas para a época se destacam
animal” abarcaria também a arqueologia, quer por seu pioneirismo, como o reconhe-
contando inclusive com um primeiro arqueó- cimento da origem artificial dos sambaquis,
logo nos quadros do museu, Ladislau Netto. quer por sua atualidade, como sua tese de
Tendo em vista a produção do museu na que a cultura marajoara teria se originado
área da antropologia, fortemente influencia- alhures, ou ainda seu reconhecimento da
da pela direção de J. P. Lacerda, a disciplina função cerimonial dos tesos amazônicos e
era praticada essencialmente como antro- da hierarquia social documentada nas ur-
pologia biológica, como exemplificam os nas funerárias de Pacoval.
vários estudos de craniometria e traços raci- No Museu Paulista, inaugurado após a
ais indígenas publicados pela revista do mu- queda do Império em 1894, já com um pro-
seu (Lopes 1997; Schwarcz 1989). jeto científico bastante mais rígido, e igual-
O problema da origem das populações mente inspirado nos museus de História
indígenas brasileiras se colocava então em Natural europeus, a arqueologia passou
termos de raças, dentro do debate interna- também a ocupar um espaço relativo, cuja
cional maior entre os poligenistas, como o importância se traduzia no interesse pesso-
francês Louis Agassiz, que defendiam a al do diretor fundador, o zoólogo Hermann
idéia de vários centros de criação humana von Ihering. O exemplo da produção de
correspondendo a raças distintas, e os von Ihering junto ao museu e seu tratamen-
monogenistas, como os seguidores de to das coleções arqueológicas talvez sejam
Humboldt, que ainda acreditavam na evo- o mais representativo da forte herança do
lução e dispersão pelo mundo de uma única naturalismo alemão ainda hoje presente na
raça. O debate era obviamente inspirado arqueologia brasileira. O taxonomismo
nas preocupações nacionalistas européias cultural, esvaziado de dimensões humanas
desse fim de século e na decorrente neces- e sociais, marcou de forma decisiva uma
sidade política em se determinar as origens incipiente ciência do homem, na qual, no
e diferenciações étnicas dos diversos po- dizer de Ihering, “estudar a flora e a fauna
vos europeus. era também estudar o homem primitivo”.
No Brasil, o debate assumiu contornos Entre 1885 e 1908 Ihering publica mais
provincianos, voltado para a investigação de 20 obras sobre arqueologia brasileira,
de possíveis centros de criação ou evolu- incluindo a síntese Archeologia Compara-
ção de raças no território nacional, em tor- tiva do Brasil (1904), além de adquirir
no de estudos de antropometria e a defini- numerosas coleções arqueológicas para o
ção de categorias raciais tais como “a raça Museu Paulista. De certa forma, seu
de Lagoa Santa”, ou “o Homem dos Sam- envolvimento na longa polêmica sobre a
baquis”. É dentro desse contexto de teorias origem dos sambaquis (Ihering não admi-
evolucionistas e do que seria mais tarde tia serem estes acúmulos de conchas feitos
cunhado como escola “evolucionista racis- por populações indígenas antigas) refletia
ta” que foi inserida a arqueologia, com o sua posição bastante eurocêntrica sobre os
papel de documentar os vestígios humanos nativos brasileiros, dos quais chegou a de-

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fender publicamente o extermínio, em nome mais a preocupação em acompanhar e par-
do progresso civilizatório. Percebe-se no ticipar dos debates internacionais do que
exemplo de von Ihering o grande fosso que implantação de uma nova área de estudo
se desenvolveu a partir de então entre uma em território nacional.
arqueologia mais “científica” e a socieda- É fora dos museus, nas inúmeras socie-
de nacional. Apesar da posição de von dades históricas e geográficas que se cria-
Ihering ter provocado a reação de muitos ram no novo Brasil republicano, que a ar-
intelectuais brasileiros, gerando inclusive queologia surgiu de forma mais populari-
debates que culminaram na criação do Ser- zada. O ciclo de busca a cidades perdidas
viço de Proteção aos Índios, as inspirações foi intensificado nas primeiras décadas do
teóricas que marcaram seu trabalho cientí- século XX, acrescido de inúmeras inter-
fico como diretor do museu não foram pretações místicas de inscrições rupestres,
questionadas na época. propiciando abundante literatura nos jor-
Finalmente, o Museu Paraense também nais da época. À medida que ia se desbra-
teve importância decisiva para a arqueolo- vando o território nacional, as fictícias ci-
gia brasileira por sua localização em Belém dades, pirâmides, escritos fenícios, etc., iam
ter propiciado seu uso como field-station se deslocando para cada vez mais longe,
para muitas das expedições de pesquisa permanecendo contudo no imaginário po-
arqueológica na Amazônia. Reformulado pular de forma cada vez mais romântica.
em 1894 pelo zoólogo suíço e ex-naturalis- Enquanto isso, a elite de especialistas,
ta do Museu Nacional, Emílio Goeldi, nele enclausurada em seus museus, estava às
a etnografia, a arqueologia e a antropolo- voltas com os polêmicos debates sobre a
gia compartilhavam uma seção própria, origem dos sambaquis entre naturalistas e
apesar de também secundária às outras de artificialistas, sobre a antigüidade da raça
ciências naturais. Apesar do discurso de de Lagoa Santa, e sobre a origem local ou
Goeldi no número inicial do boletim do externa das culturas do baixo Amazonas,
museu destacar questões como a origem do definindo assim as principais temáticas a
homem americano ou se referir à região serem desenvolvidas na futura arqueologia
amazônica como palco ideal para o estudo acadêmica brasileira.
do homem primitivo, fica clara a orienta- Após a Primeira Guerra Mundial, ape-
ção do museu nestas disciplinas ainda sob nas o Museu Nacional conseguiu manter
um olhar que vem de fora, como continua- alguma atividade de pesquisa arqueológica.
ção do trabalho dos naturalistas estrangei- A falta de recursos para manter a eferves-
ros. Todos os artigos publicados pelo mu- cente produção científica do final do século
seu eram de fato de autoria estrangeira, com anterior levou à dispersão de pesquisas em
raras contribuições na área de arqueologia centros menores e autodidatas. A década de
(Barreto 1992). 1920 marcou o final da “era dos museus”
Assim, nos três casos aqui destacados nacionais que abandonaram o seu modelo
de institucionalização da arqueologia nos enciclopédico e projetos grandiosos, trans-
museus brasileiros, nota-se que é um pro- formando-se em museus exclusivamente de
cesso que ocorreu à margem tanto das preo- ciências naturais (Schwarcz 1989).
cupações nacionalistas da nova República Contudo, a decadência dos grandes
como dos ideais românticos de revaloriza- museus não foi o único fator responsável
ção do passado nacional. Ao contrário, é pela baixa produção científica na área de
um processo que acabou por oficializar o arqueologia durante o período entre guer-
lugar da arqueologia dentro das ciências ras. Uma certa mudança de interesse na
naturais, isolando-a como um conhecimen- área de antropologia acabou por acentuar
to especializado, desligada da dinâmica o isolamento da arqueologia e conseqüen-
histórica e social da época, e reservada a te desinteresse pela comunidade intelec-
poucos especialistas, na sua maioria estran- tual da época.
geiros. As inspirações teóricas refletiam A preocupação naturalista em se estu-

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dar o “primitivo” de forma a documentar pologia teria efeito decisivo na produção
culturas ainda inalteradas foi substituída, a da primeira geração de arqueólogos acadê-
partir dos anos 1920, por novos interesses micos no Brasil, na maioria desprovida de
pela formação do povo brasileiro moder- qualquer formação em ciências sociais ou
no. Temas como a miscigenação racial e mais especificamente em antropologia.
novas populações de imigração européia O fim da era dos museus foi marcado
chamavam a atenção para outros grupos ainda por um novo olhar preservacionista.
étnicos. Os indígenas brasileiros só atrairi- Foi com o modernismo que surgiu inicial-
am a atenção dos antropólogos em ques- mente a idéia de se preservar o passado e a
tões referentes à sua aculturação e cultura nacional não só levando-se objetos
integração na sociedade nacional, enquan- para dentro de museus, mas também atra-
to o seu passado mais antigo passou a ocu- vés da proteção de um patrimônio materia-
par um lugar marginal na obra dos cientis- lizado em uma diversidade de sítios, mo-
tas sociais brasileiros a partir dessa época. numentos e edifícios. A preocupação com
Por outro lado, na esfera internacional, a preservação deste patrimônio se traduziu
a antropologia também passou por mudan- no projeto de lei elaborado por Mário de
ças importantes com a crítica radical ao Andrade em 1936 (Lima 1988). Reunindo-
paradigma do evolucionismo e a introdu- se o patrimônio histórico e arqueológico
ção de novos conceitos de cultura, como, sob a mesma legislação, também na esfera
por exemplo, o relativismo cultural de F. dos futuros órgãos públicos responsáveis
Boas. A arqueologia, que ainda se apoiava por sua proteção, a arqueologia tornou-se
em teorias da antropologia biológica, pas- mais próxima da história, criando-se uma
sou também a buscar um novo papel no tradição na área de preservação e proteção
estudo de diferentes culturas. O abandono de patrimônio no Brasil, onde historiado-
da idéia de que todo comportamento hu- res e arquitetos, e não antropólogos, seriam
mano é biologicamente determinado abriu os principais atores responsáveis pelo
portas para o estudo de áreas culturais, para gerenciamento do patrimônio material de
as teorias difusionistas, e para o antigas culturas indígenas.
comparativismo cultural que viriam emer-
gir nas décadas seguintes na produção ar-
queológica internacional.
No Brasil, a antropologia, ao sair dos
A ARQUEOLOGIA ACADÊMICA NO
museus, ressurgiria nas universidades com
esses novos paradigmas, de certa forma BRASIL
abandonando de vez a arqueologia que,
ainda moldada pelo cientificismo do sécu- Diferentemente das outras ciências so-
lo XIX, só seria integrada à universidade ciais no Brasil, a arqueologia surgiu dentro
tardiamente, dissociada da antropologia e das universidades, não através de projetos
como um apêndice da História, isto é, como intelectuais específicos, mas a partir de
pré-História. campanhas preservacionistas, promovidas
Apesar de alguns poucos antropólogos por alguns poucos intelectuais indignados
continuarem a se interessar pela arqueolo- com a destruição acelerada dos sítios ar-
gia, sobretudo na sua vertente biológica, queológicos e a falta de profissionais
como atestam os estudos raciais e especializados para resgatá-los.
craniométricos de vestígios arqueológicos Já em 1935, Luis de Castro Faria, uma
ainda publicados na década de 1950 por das personalidades mais atuantes na defesa
antropólogos como E. Willems, E. Shaden do patrimônio arqueológico, fundou o Cen-
e H. Baldus (Willems e Shaden 1951), de tro de Estudos Archeológicos, mais tarde
forma geral, não mais reconheceram a ar- absorvido pelo Museu Nacional e que, pela
queologia como parte da antropologia primeira vez no Brasil, conferia nível aca-
(Baldus 1955). Essa dissociação da antro- dêmico à arqueologia, servindo de modelo

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a outras instituições de pesquisa arqueoló- como disciplina acadêmica. Com a presen-
gica no Brasil. ça bastante expressiva de intelectuais eu-
Em São Paulo, foi também assim que a ropeus, e sobretudo franceses, a arqueolo-
Comissão de Pré-História, criada por de- gia foi inserida na universidade, seguindo
creto em 1952 e fruto da conhecida luta o modelo francês, como o estudo do passa-
política de Paulo Duarte para a preserva- do pré-histórico humano, isto é, como pré-
ção dos sambaquis, tornou-se o núcleo do história, herdando assim toda a ambigüida-
futuro Instituto de Pré-História junto à USP. de e problemas envolvidos em se delimitar
Este mesmo processo ocorreu no Paraná este período da história humana que, na
onde a atuação de José Loureiro Fernan- Europa, tradicionalmente se definiu como
des, importante personalidade das campa- aquele que antecede a escrita. Apresenta-
nhas de proteção dos sambaquis, desembo- vam-se ainda os problemas adicionais da
cou na criação do Centro de Ensino e Pes- transposição de tal conceito para terreno
quisas Arqueológicas (Cepa) junto à Uni- brasileiro que, de certa forma, foi hoje ele-
versidade Federal do Paraná em 1956. gantemente corrigido por arqueólogos bra-
Portanto, os primeiros e mais marcan- sileiros com o uso da expressão “pré-colo-
tes centros acadêmicos de arqueologia fo- nial” ao invés de “pré-histórico”.
ram frutos de uma política preservacionista Sem o embasamento teórico da antro-
antes de mais nada preocupada em garantir pologia, a arqueologia desenvolveu-se em
os direitos à pesquisa científica de um uma situação bastante paradoxal, uma vez
patrimônio em crescente destruição, sur- que a maior parte da pesquisa feita no país
gindo praticamente à margem dos projetos se dedicava ao estudo do passado das soci-
intelectuais mais amplos do ensino das ci- edades indígenas. Assim, enquanto o cam-
ências sociais no Brasil. po da antropologia e o estudo das socieda-
No entanto, com os centros de pesquisa des indígenas vivas floresceriam no Brasil
inseridos em universidades, a arqueologia a partir dos anos 40, com a vinda de pessoas
não deixaria de desfrutar do principal recur- como Lévi-Strauss ou alunos diretamente
so utilizado na implantação de centros uni- treinados por Radcliff-Brown, a arqueolo-
versitários no país, os especialistas estran- gia no Brasil ficou estagnada. O primeiro
geiros (Massi 1989). Tendo em vista a falta manual de arqueologia brasileira, de auto-
de projeto acadêmico específico para a ar- ria de Angione Costa (1934), ilustra bem o
queologia, foram estes especialistas estran- vácuo teórico em que se pensava a discipli-
geiros que, na verdade, cunharam as princi- na, constituindo-se em uma árida compila-
pais inspirações teóricas da arqueologia bra- ção dos achados arqueológicos no Brasil.
sileira e tiveram papel decisivo na formação Por outro lado, apesar de próxima à
das futuras gerações de arqueólogos. História, a arqueologia no Brasil também
O convite a especialistas estrangeiros e não absorveu nada da forte influência dos
o entusiasmo em absorver um novo saber historiadores marxistas ingleses (tão influ-
residiam essencialmente nas áreas mais entes na história colonial/econômica do
técnicas da arqueologia, sobretudo méto- Brasil) e tampouco da influência francesa
dos de escavação, classificação, datação e dos historiadores da École des Annales,
documentação. Estes, porém, não poderi- também bastante forte nos departamentos
am ser aplicados ao contexto brasileiro de de História no Brasil, e hoje recuperados
forma teoricamente neutra e estavam ne- por correntes teóricas recentes da arqueo-
cessariamente imbuídos das tradições teó- logia internacional.
ricas de suas matrizes de origem. O distanciamento da arqueologia brasi-
As conseqüências dessas tradições teó- leira da tradição marxista das ciências so-
ricas se refletiram no legado das escolas ciais no Brasil e na américa Latina em geral
estrangeiras na arqueologia brasileira con- também a manteve isolada da “arqueolo-
temporânea de diversas maneiras, inician- gia social” desenvolvida e compartilhada
do-se pelo próprio conceito de arqueologia por comunidades arqueológicas em países

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como a Venezuela, a Colômbia, o Peru e o Paulo (Massi 1989). Vale a pena ressaltar
México (Barreto 1999a). que o incentivo de Paul Rivet não se limi-
Foi, portanto, dentro desse isolamento tou ao apoio intelectual mas também
das ciências humanas em geral, dessa am- institucional, incluindo recursos financei-
bigüidade conceitual sobre a natureza da ros colocados à disposição da Universida-
arqueologia, e de um certo “tecnicismo” de de São Paulo para a criação de “um la-
promovido pela emergente arqueologia boratório de pesquisas sobre as origens e a
acadêmica, que passaram a atuar os arqueó- vida do Homem paleoamericano” (Duarte
logos estrangeiros na pesquisa e formação 1977), que futuramente se transformaria em
de novos arqueólogos no Brasil. Franceses Instituto de Pré-História.
e norte-americanos deixaram marcas pro- A maior influência francesa se deu,
fundas no desenvolvimento da arqueolo- porém, através da atuação do casal Joseph
gia brasileira por toda esta segunda metade Emperaire (geógrafo) e Annette Laming
do século XX. (arqueóloga), trazido por Rivet, e cujas
contribuições são bastante reconhecidas em
termos tanto de formação científica de uma
nova geração de arqueólogos brasileiros,
O LEGADO DAS ESCOLAS como de introdução de métodos científicos
mais rigorosos ao estudo de certos tipos de
ESTRANGEIRAS sítios brasileiros (Barreto 1998; Mendon-
ça de Souza 1991; Prous 1995). Entre 1954
O papel das missions archéologiques e 1956, o casal pesquisou vários sambaquis
no Brasil deve ser entendido dentro do pro- do Paraná e São Paulo, proporcionando as
jeto maior de missões arqueológicas fran- primeiras datações por C14 no Brasil, e,
cesas na América Latina (Legoupil 1998; mais tarde, outros sítios pré-cerâmicos no
Prous 1995). Essas missões nasceram do interior do Paraná. Annette Laming reto-
interesse crescente desde o início deste mou também as escavações de Lagoa San-
século em se pesquisar culturas pré-histó- ta e inaugurou no país uma metodologia de
ricas da América Latina menos conhecidas documentação e análise de arte rupestre.
dos que as famosas culturas maia, asteca, Na bagagem metodológica trazida para
ou inca. Na verdade, desde a criação da o Brasil pelo casal estavam fatalmente os
Sociedade dos Americanistas em 1876, que ensinamentos de mestres como Leroi-
o “americanismo” passou a ser uma nova Gourhan aplicados ao contexto de sítios
via de estudos (assim como o “africanis- paleolíticos franceses. Assim, no Brasil, a
mo”) para historiadores e etnólogos fran- escolha de sítios pré-cerâmicos é privilegia-
ceses, possibilitando inclusive a formula- da, concentrando-se em métodos de esca-
ção de novos paradigmas de pensamento. vação de superfícies amplas para a recons-
Atualmente existem 17 missões arqueoló- trução de solos de ocupação de determina-
gicas francesas distribuídas na América dos sítios, e na análise de artefatos, essen-
Latina (Legoupil 1998). cialmente líticos, dentro das tipologias e
Foi a partir do modelo de pesquisas terminologias francesas da época. Seus
etnológicas praticadas pelo Musée de seminários e manuais sobre análise de arte-
l’Homme de Paris e das pioneiras expedi- fatos líticos marcaram toda uma geração
ções de seu diretor, o americanista Paul de arqueólogos até hoje atuantes na arqueo-
Rivet, que chegaram ao Brasil as influên- logia brasileira (Emperaire 1967).
cias francesas na área da arqueologia. Paul Contudo, a priorização do estudo de
Rivet, a convite de seu amigo pessoal Pau- sítios em um passado bastante distante, que
lo Duarte, integraria o grupo já considerá- nada tem a ver com as sociedades indíge-
vel de historiadores, sociólogos e etnólogos nas conhecidas, juntamente com a introdu-
franceses que veio fundar e desenvolver as ção de todo um novo jargão técnico torna-
ciências sociais na Universidade de São ram os resultados de suas pesquisas pouco

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atraentes ao resto da comunidade acadêmi-
ca e ao público em geral que não mais acom-
panhava a relevância de tais estudos.
Ao contrário da França, no Brasil, onde
tão pouco se conhecia sobre a distribuição
temporal e espacial das diferentes culturas
indígenas extintas, o estudo tão pormeno-
rizado de alguns poucos sítios arqueológi-
cos, mesmo que tomados como exemplos
típicos de uma unidade maior desconheci-
da, tornou-se uma estratégia pouco produti-
va diante de tão vasto e inexplorado territó-
rio. As escavações eram demoradas e os
arqueólogos nem sempre estavam prepara-
dos para reconstruções de solos de ocupa-
ção em depósitos sedimentares espessos,
típicos do contexto tropical, onde a ativida-
de biológica é particularmente mais intensa.
Um outro problema herdado da perspec-
tiva metodológica francesa foi a importação
das categorias classificatórias para coleções
de peças líticas, fazendo com que os arqueó-
logos se esforçassem para que uma maioria
de instrumentos informais (ou “expeditos”,
no atual jargão analítico) se encaixasse em
categorias inspiradas pela indústria bastan-
te formal do Paleolítico francês. Pouca aten-
ção foi dada a aspectos tecnológicos ou fun-
cionais desse tipo de artefatos que poderiam
se mostrar mais informativos sobre as cultu-
ras que os produziram.
Ao longo das últimas décadas esses
problemas foram certamente trabalhados e
adaptados aos contextos locais por toda uma
geração de arqueólogos influenciados pela
tradição francesa a qual perdura até hoje
através das missões arqueológicas em an-
damento em Minas Gerais, Piauí e Mato
Grosso. Todas elas, de certa forma, priori-
zam o estudo do período pré-cerâmico,
realizam escavações de superfícies amplas
e continuam a lidar com documentação e
análise da arte rupestre.
Contudo, essa trajetória de aprendiza-
do de conformação de determinadas
metodologias a temas e contextos específi-
cos brasileiros não parece ter sido sistema-
tizada de forma a constituir uma verdadei-
ra linha ou escola de pesquisa francesa com
variante brasileira. A exemplo das próprias
missões que atuaram e continuam atuando

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de forma independente no território brasi- ta de suas marcas no Brasil.
leiro, a influência francesa não gerou es- Suas pesquisas no Amapá e em Marajó
forços combinados de concordância da revelaram que a introdução da cerâmica na
comunidade arqueológica nacional em tor- Amazônia era bem mais antiga do que se
no de determinadas teorias ou mesmo de supunha. Mas o mais importante foram as
práticas metodológicas, com exceção de teorias de desenvolvimento cultural na
algumas tentativas de padronização Amazônia tecidas por Meggers a partir
terminológica (Chmyz 1969). destes dados. Meggers propôs que as con-
A influência da escola americana na dições ambientais da várzea amazônica
arqueologia brasileira foi bastante tardia impediram o desenvolvimento local de
quando comparada à de outros países lati- sociedades complexas. Com poucos recur-
no-americanos. Sem dúvida, a falta de sos protéicos e um potencial agrícola redu-
monumentalidade e de altas civilizações zido (os solos anualmente lavados das vár-
não atraiu as expedições dos grandes mu- zeas impossibilitam uma agricultura além
seus americanos do começo do século con- da coivara de mandioca), as várzeas ama-
centradas então nos Andes e Mesoamérica. zônicas impunham um teto demográfico
Apesar da Amazônia ter continuado atra- baixo às populações locais que, assim como
indo algumas expedições como as de W. as populações indígenas atuais, não pode-
Farabee do Museu de Filadélfia (1921) e a riam ter ultrapassado as formas simples de
de J. B. Steere da Universidade de Michigan assentamento e organização social em pe-
(1927), estas não tiveram uma real influên- quenas aldeias autônomas. Portanto, cul-
cia na arqueologia acadêmica brasileira. turas extintas como as de Santarém e
Os arqueólogos americanos mais in- Marajó, cujos vestígios arqueológicos ates-
fluentes no Brasil foram Wesley Hurt e o tavam um maior grau de organização soci-
casal Betty Meggers e Clifford Evans. W. al em grandes assentamentos, só poderiam
Hurt retomou as escavações de forma mais ser interpretadas como culturas oriundas
sistemática em vários abrigos de Lagoa de outra região que, ao migrarem para a
Santa, escavações nas quais participaram Amazônia, teriam entrado em decadência
vários pesquisadores brasileiros, entre eles até a sua extinção (Meggers 1992).
Castro Faria, do Museu Nacional, e Olde- Estas teorias, pouco questionadas na
mar Blasi, do Museu Paranaense. Destas época, foram aos poucos sendo elaboradas e
escavações surgiriam as primeiras data- detalhadas por Meggers ao longo das últi-
ções radiocarbônicas de níveis arqueoló- mas décadas, propondo não só os locais de
gicos em Lagoa Santa, atestando uma an- origem dessas culturas como também tecen-
tigüidade mínima de 10.000 anos. Nos do teorias mais abrangentes sobre a introdu-
anos 1960 Hurt também trabalhou nos ção da cerâmica na América do Sul. Hoje,
sambaquis do Sul, onde ajudou a formar tais teorias constituem a referência princi-
novos centros de pesquisa (Museu Parana- pal para os atuais pesquisadores da arqueo-
ense e Museu de Antropologia da UFSC). logia amazônica que, ao questionarem os
Sua contribuição maior foi, portanto, o pressupostos do determinismo ambiental de
treinamento de arqueólogos brasileiros em Meggers, começam a montar outros cená-
escavações sistemáticas. rios para o desenvolvimento de sociedades
Já o casal Betty Meggers e Clifford indígenas na Amazônia (Neves 1998).
Evans, apesar de terem iniciado suas pes- A maior contribuição desses pesquisa-
quisas na Amazônia na década de 1940, só dores à arqueologia brasileira é no entanto
tiveram uma atuação na formação de ar- o grande projeto por eles organizado e di-
queólogos brasileiros a partir da década de rigido de levantamentos arqueológicos em
1960. Eles trabalharam inicialmente em nível nacional, o Programa Nacional de
outros países da América Latina, como o Pesquisas Arqueológicas (Pronapa). O pro-
Equador e a Venezuela, deixando nesses grama, promovido pelo Smithsonian
países uma herança teórica bastante distin- Institution, CNPq e Iphan, foi realizado por

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arqueólogos brasileiros de quase todos os de muitos arqueólogos questionarem o seu
estados fora da Bacia Amazônica e dirigi- uso, a maior parte dos resultados de pes-
do pelo casal. Entre 1965 e 1970, as pes- quisas em nível regional foi e continua sen-
quisas foram realizadas dentro de uma do organizada em “fases” e “tradições”
metodologia padronizada de levantamen- arqueológicas.
tos de um máximo de sítios arqueológicos A dificuldade de se integrar os dados
em cada região, com o material sendo da- coletados ao longo de décadas em uma sín-
tado e organizado por métodos de seriação tese de arqueologia nacional é, sem dúvi-
em categorias denominadas “tradições”, da, a conseqüência maior da fragilidade de
“fases” e “subfases” (Dias 1995). tais categorias e da falta de orientação teó-
Betty Meggers e Clifford Evans, com rica explícita do Pronapa. Em contraste, em
suas pesquisas na Amazônia e desdobra- outros países da América do Sul nos quais
mentos teóricos, de certa forma, trouxeram atuaram Meggers e Evans, a interface de
à arqueologia da região um pouco do neo- sua bagagem neo-evolucionista com um
evolucionismo da arqueologia americana e quadro interpretativo marxista permitiu não
da ecologia cultural dos anos 1950 (na for- só sínteses de dados arqueológicos em ca-
mulação de Julian Steward, orientador aca- tegorias tais como “formações sociais” ou
dêmico de Betty Meggers). Contudo, fora “modos de produção” mas também promo-
da Amazônia, onde se deu o treinamento veu a integração da arqueologia às demais
de arqueólogos brasileiros por meio de se- ciências sociais, como uma ciência históri-
minários e participação no Pronapa, esta ca (Patterson 1994).
orientação neo-evolucionista teve pouco Tanto o legado das missões francesas
impacto na organização da arqueologia bra- como o dos pesquisadores americanos de-
sileira. Assim, apesar de a grande contri- monstram como as especificidades das ba-
buição de Meggers dentro da arqueologia gagens teóricas trazidas por certas persona-
se concentrar em seus argumentos apoia- lidades nem sempre podem por si sós expli-
dos em teorias de determinismo tecno-am- car os resultados provocados no Brasil. Elas
biental, moldando inclusive sua interpreta- devem ser entendidas dentro dos contextos
ção da ocupação humana da Amazônia, históricos também bastante específicos de
muito pouco deste corpo teórico foi passa- desenvolvimento da comunidade acadêmi-
do aos muitos arqueólogos brasileiros por ca de arqueólogos brasileiros.
ela orientados.
Categorias evolutivas como arcaico,
formativo e clássico, ou outros tipos de
“horizontes” evolutivos, nunca vingaram A ORGANIZAÇÃO DA ARQUEOLOGIA
na arqueologia brasileira moderna. Ao in-
vés, o Pronapa escolheu organizar seus MODERNA NO BRASIL
dados nas categorias também americanas
de “fases” e “tradições”, originalmente pro- A vinda de especialistas estrangeiros, a
postas por Willey e Phillips (1955). Contu- entrada da arqueologia nas universidades e
do, a forma como essas categorias foram programas de pesquisa tais como o Pronapa
usadas em terreno brasileiro, identificando proporcionaram a formação de toda uma
variantes culturais ou étnicas a uma deter- primeira geração de arqueólogos acadêmi-
minada distribuição de artefatos no tempo cos brasileiros, ainda hoje responsáveis pela
ou espaço, se assemelha mais às práticas direção de vários centros de pesquisa e
do difusionismo cultural europeu do que ensino de arqueologia no país. Trata-se de
ao neo-evolucionismo ecológico america- uma formação essencialmente prática, de
no. O uso de tais cotegorias, ainda um tanto técnicas de pesquisa de campo e de classi-
ambíguas quanto ao tipo de unidades so- ficação de materiais arqueológicos em la-
cioculturais que designam, marcou defini- boratório. Um levantamento realizado em
tivamente a arqueologia brasileira. Apesar 1972 demonstra que a maior parte dos pro-

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fissionais envolvidos em pesquisa arqueo- levantamento de novas áreas “virgens”
lógica até então não tinha formação especí- (Barreto 1998).
fica em arqueologia e vinha sobretudo das Como era de se esperar, esta produção
áreas de história ou história natural, biolo- científica, de caráter essencialmente des-
gia e geociências (Mendonça de Souza critivo e classificatório, não conseguiu
1972). Uma parcela muito pequena vinha extrapolar as fronteiras nacionais. Os pou-
das áreas de ciências sociais ou antropolo- cos temas da arqueologia brasileira que
gia, explicando assim a ausência de um pro- vieram a chamar a atenção da literatura
jeto teórico para a arqueologia nacional. internacional especializada referem-se às
Os principais núcleos desses profissio- datações antigas de alguns sítios estudados
nais surgiram primeiro na década de 1960 por pesquisadores franceses ou às contro-
no Paraná (Cepa-UFPR), em São Paulo vérsias que se seguem entre pesquisadores
(IPH-USP) e Minas (MHN-UFMG); de- americanos na arqueologia amazônica (Car-
pois em Belém (MPEG), Rio Grande do neiro 1995). Ao longo das décadas de 1960
Sul (Unisinos), Rio de Janeiro (CBA-Mu- e 1970, a produção propriamente brasileira
seu Nacional e IAB) e em Goiás (UCG, foi praticamente ignorada pela comunida-
MA-UFGO), já na década de 1970. de internacional.
Nesses anos, vários congressos de ar- Assim, a comunidade arqueológica bra-
queologia brasileira foram organizados quer sileira, apesar de melhor organizada nas ins-
dentro das reuniões científicas da SBPC, quer tituições acadêmicas e bastante ativa na pes-
como reuniões à parte. A Sociedade de Ar- quisa de levantamentos arqueológicos, cres-
queologia Brasileira (SAB), fundada em ceu ainda dentro de um certo provincianismo,
1980, inaugurou-se com uma centena de do qual a formação de pequenos “feudos”
profissionais, distribuídos por mais de 20 profissionais e a falta de sistemas de avalia-
instituições, cobrindo praticamente todos os ção externa da produção científica apare-
estados brasileiros (Schmitz 1982). cem como traços típicos (Funari 1992, 1995;
O rápido crescimento e organização da Roosevelt 1991:105-11).
comunidade científica intensificou a pes- Enquanto a revolucionária década de
quisa arqueológica no país, sobretudo au- 1960 engendrava também uma verdadeira
mentando consideravelmente a cobertura revolução epistemológica na arqueologia
do território ainda desconhecido arqueolo- com o nascimento da New Archaeology e
gicamente. Contudo, a falta de orientação suas variantes processuais no mundo anglo-
teórica fez com que as décadas de 1960 e saxão, e com a articulação de uma arqueo-
1970 se caracterizassem por projetos de logia propriamente latino-americana com
área, isto é, por levantamentos sistemáti- base nas tradições marxistas das ciências
cos de sítios, mas não o estudo de proble- sociais praticadas em países como o Méxi-
mas específicos (Schmitz 1982). Também co e a Venezuela, a comunidade acadêmica
as publicações especializadas se intensifi- brasileira isolava-se em projeto próprio de
caram, publicando resultados desses levan- organização e pesquisa.
tamentos enquanto estudos “preliminares” Contudo, a partir do anos 1980, o apa-
ou “parciais”, sem discutir ou aprofundar recimento de uma segunda geração de ar-
as poucas teorias já formuladas no passa- queólogos brasileiros, agora não só com
do, como por exemplo as referentes a po- formação acadêmica especializada no
pulações pleistocênicas, ao significado Brasil e no exterior, mas também com
cultural dos sambaquis, ou ao desenvolvi- projetos teóricos mais bem definidos,
mento de sociedades complexas na Ama- começou a mudar o tipo de arqueologia
zônia. Ao contrário, mesmo quando alguns feita no país. Reflexos de uma arqueolo-
novos problemas foram revelados pelos gia anglo-saxônica, mais dedutiva e ori-
dados levantados, a continuidade das pes- entada por problemas específicos em
quisas não foi direcionada para o seu busca da formulação de modelos e teo-
aprofundamento, mas sim para o infindável rias, chegaram ao país, não sem o atraso

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típico de países marginais e a resistência Society for American Archaeology
de gerações anteriores. (Nashville, 1997) e a Primeira Reunião In-
Velhos temas começaram a ser tratados ternacional de Teoria Arqueológica na
sob novas perspectivas. A questão da anti- América do Sul (Vitória, 1998), refletem os
güidade da ocupação humana no território resultados ainda iniciais dessas novas preo-
nacional, antes centrada em discussões cupações e abordagens da arqueologia aca-
sobre datações de sítios isolados, como os dêmica no Brasil (Barreto 1998).
de Lagoa Santa em Minas Gerais e Pedra A arqueologia de contrato também vem
Furada no Piauí, passou a ser estudada den- proporcionando uma nova dinâmica no
tro das diversas teorias da entrada do ho- desenvolvimento da pesquisa arqueológi-
mem na América e da reconstrução de ca no Brasil. Praticada como um serviço
ambientes e modo de vida das antigas po- contratual prestado por arqueólogos a fir-
pulações de caçadores pleistocênicos mas privadas ou governamentais, desen-
(Kipnis 1998). Os sambaquis passaram a volve-se em geral dentro de um contexto
ser estudados como conjuntos de sítios, e maior de levantamentos de impacto
os projetos de pesquisa se voltaram para ambiental e salvamentos de patrimônios
entender melhor o modo de vida das anti- ameaçados por construções diversas. Ape-
gas populações litorâneas, tanto do ponto sar de a legislação existente desde os anos
de vista adaptativo como também da orga- 1950 obrigar tais estudos e salvamentos a
nização social (Gaspar 1998). No interior, serem realizados, esta prática, inicialmen-
os levantamentos de áreas deram espaço a te denominada de arqueologia de salvamen-
estudos regionais de padrão de assentamen- to, iniciou-se no Brasil apenas nos anos
to (Wüst 1992), demonstrando uma visão 1970. Nas duas últimas décadas, com um
mais dinâmica de cultura. boom de obras de desenvolvimento como
Novos temas de pesquisa enfocam ago- usinas hidroelétricas, gasodutos e comple-
ra processos de mudança, como processos xos viários de grande porte, este tipo de pes-
de sedentarização e transição para a agri- quisa tem se intensificado de forma mais
cultura, de complexificação social, ou dos padronizada e sistemática, com a inclusão
efeitos da conquista, e não mais se moldam da arqueologia nos obrigatórios “Estudos de
à rígida separação de sítios arqueológicos Impacto Ambiental” (EIAs), e “Relatórios
nas estáticas categorias de pré-cerâmicos e de Impacto ao Meio Ambiente” (Rimas).
cerâmicos (ou sociedades caçadoras-cole- A arqueologia de contrato, apesar de
toras e sociedades agricultoras) (Barreto absorver novos quadros formados nos di-
1999b). Novas abordagens, como a etnoar- versos centros acadêmicos do país, que
queologia, e a integração de outras fontes agora oferecem algum tipo de especializa-
de dados às interpretações arqueológicas, ção em arqueologia, e, também, apesar de
como dados históricos, lingüísticos e bio- propiciar uma fonte alternativa ao financia-
lógicos, acompanham as tendências da ar- mento da pesquisa arqueológica, tem gera-
queologia internacional ao começar a se do até o momento um certo retrocesso ci-
reaproximar da antropologia social prati- entífico com a volta de levantamentos
cada no país. meramente descritivos e classificatórios
Nota-se também uma postura da comu- como os dos anos 1960 e 1970. A própria
nidade de arqueólogos brasileiros mais auto- natureza do contrato impõe limitações de
reflexiva sobre sua produção científica, com tempo de pesquisa e exigências de cobertu-
esforços consideráveis de sínteses (Prous ra de territórios bastante extensos e arbitra-
1991), e estudos históricos sobre os rumos riamente delimitados, não favorecendo
da disciplina no país (Mendonça de Souza estudos interpretativos dos achados arqueo-
1991). Eventos recentes, como o Simpósio lógicos e tampouco o aprofundamento de
Internacional sobre Teoria e Método em questões específicas. Outro problema ge-
Arqueologia (USP, 1995), o simpósio sobre rado pela intensificação desta prática de
arqueologia brasileira na 62a reunião da pesquisa é a formação de inúmeras cole-

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ções de materiais arqueológicos dos salva- científica na educação (Mokus 1992).
mentos realizados e a falta de infra-estrutu- No Brasil, apesar do papel da arqueolo-
ra e locais para a sua guarda e preservação. gia perante a sociedade nacional ser cada
Diante desses problemas, a aplicação vez mais marcante, este papel só agora
de novos métodos de pesquisa, sobretudo começa a ser discutido pela comunidade
das variadas técnicas de amostragem em arqueológica. A autoridade do arqueólogo
arqueologia, parece ser decisiva para o fu- enquanto especialista se afirma cada vez
turo dessa prática. Contudo, uma avaliação mais. A crescente prática da arqueologia
mais precisa deste novo vetor de desenvol- contratual no Brasil confere ao arqueólogo
vimento da arqueologia no Brasil é bastan- não só o poder de avaliar a relevância e a
te arriscada por se tratar de uma prática importância do patrimônio arqueológico
ainda recente. para a sociedade nacional como um todo,
como também o de tomar decisões
irreversíveis sobre qual parte deste patri-
mônio deve ser preservada.
ARQUEOLOGIA BRASILEIRA: Apesar do poder do arqueólogo estar
embasado no reconhecimento do saber ci-
PASSADO E FUTURO entífico e da integridade moral desta classe
de especialistas, a possibilidade de ele ser
Nas últimas duas décadas, a arqueolo- permeado por interesses de grupos distin-
gia contemporânea ocidental passou por um tos (como o governo, empreiteiras, ou gru-
processo bastante decisivo de debates, crí- pos interessados em reafirmar identidades
ticas e revisões de linhas teóricas dominan- étnicas passadas) estará sempre presente
tes, desembocando em um pluralismo teó- porque o patrimônio arqueológico (em sua
rico, temático e metodológico jamais visto materialidade) faz parte de um contexto de
na história da arqueologia (Leone 1986; valores contemporâneos.
Preucel 1991; Wylie 1993). Inicialmente O fato de a arqueologia ser uma ciên-
desencadeado pelas críticas contundentes cia interpretativa, podendo gerar recons-
vindas de Cambridge à arqueologia pro- truções alternativas do passado, só vem
cessual anglo-saxônica, e depois continua- aumentar a possibilidade de interferências
do com o aparecimento de um novo leque “externas” ocorrerem. Uma maneira dos
de perspectivas teóricas, este processo tam- arqueólogos se protegerem contra essas
bém veio ressaltar a importância de uma possíveis interferências é a de explicitar e
arqueologia mais reflexiva quanto à sua fortalecer a relação entre os princípios que
natureza e mais consciente de seu papel guiam o seu trabalho (tradições teóricas e
social (Yoffee e Sherrat 1993). teorias particulares, modelos, hipóteses,
Na América Latina, o desenvolvimen- etc.) e as interpretações do passado que
to da arqueologia também tem sido pensa- apresentam à sociedade. Por isso, revisões
do com a ajuda de historiografias críticas históricas das raízes do conhecimento ar-
como demonstram as coletâneas editadas queológico hoje produzido e a identifica-
por Politis (1992) e Oyuela-Caycedo ção das suas inspirações teóricas são im-
(1994) e debates recentes (Lizárraga 1999; portantes para tornar a arqueologia não só
Oyuela-Caycedo et al 1997; Patterson mais sólida enquanto ciência social mas
1994). Uma preocupação constante nas também mais relevante aos olhos do pú-
análises resultantes são as conseqüências blico em geral.
sociais, políticas e culturais do trabalho Todas as histórias da arqueologia brasi-
da arqueologia, ressaltando a importância leira enfatizam o rápido desenvolvimento
decisiva das inspirações teóricas adotadas da disciplina nas últimas décadas, sobretu-
para a definição de questões como as rela- do o aumento de produção científica e a
tivas à identidade cultural, preservação do institucionalização de pesquisas a partir dos
patrimônio, ou à projeção da produção anos 1950 (por exemplo, Prous 1991;

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Schmitz 1994). Outros autores (Barreto pologia cultural, e das ciências sociais em
1998; Funari 1989; Neves 1988) apontam geral; e o uso pouco consciente, inadequa-
para um desenvolvimento também marca- do, ou ainda mal adaptado ao contexto bra-
do pelo isolamento e marginalização da sileiro, de teorias e práticas metodológicas
arqueologia brasileira em relação à arqueo- introduzidas no Brasil por escolas estran-
logia do restante da América Latina e do geiras (Barreto 1999a).
cenário internacional em geral. À medida que tanto o isolamento do
Mantendo-se isolada, a arqueologia contexto internacional como a falta de
brasileira não só absorveu muito pouco dos embasamento teórico vêm se revertendo, o
debates e avanços teóricos do cenário in- grande desafio que deverá enfrentar a ar-
ternacional das últimas décadas, como tam- queologia brasileira nas próximas décadas
bém não chegou a se constituir em uma será a incorporação e desenvolvimento de
arqueologia nacional, particularmente con- um corpo teórico-metodológico condizen-
cebida para os problemas do passado bra- te com os problemas e condições específi-
sileiro e, menos ainda, em uma arqueolo- cas da arqueologia nacional. Estes avan-
gia nacionalista, voltada para a afirmação ços, porém, só serão relevantes para a cons-
de ideais nacionais. trução de um passado nacional se desen-
A história da arqueologia no Brasil de- volvidos dentro de uma prática de pesquisa
monstra como esta situação foi moldada arqueológica consciente de seu papel soci-
por dois fatores: as circunstâncias históri- al, voltada para os meios de comunicação
cas que afastaram a arqueologia da antro- e educação da sociedade brasileira.

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