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CRISTOLOGIA BÍBLICO-ECLESIAL

Neste capítulo visitaremos a cristologia Bíblico-Eclesial, privilegiando o percurso


histórico-sistemático, bem como os reflexos desta no Brasil nas últimas décadas e
atualmente. Buscaremos os principais traços da cristologia, para no momento oportuno,
demonstrarmos os elementos de continuidade e ruptura identificados na proposta
cristológica do neopentecostalismo.
Para tal, faz-se necessário um olhar panorâmico sobre o desenvolvimento
teológico-dogmático na grande linha da história, identificando os principais elementos
da cristologia que foram elaborados pela comunidade cristã e católica ao longo dos
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séculos. Sentimos a necessidade de nos apoiar não em um ou outro teólogo ou


pensador, mas em uma síntese destes dois mil anos de caminhada cristã, de aquisições,
entre conflitos e debates. Assim apelamos para o Catecismo. Este instrumento faz parte
não só da tradição católica, mas também da protestante.
O período anterior ao Concílio de Trento foi particularmente fecundo na
elaboração de catecismos e estes foram instrumentos importantes seja da reforma
protestante, como da contra reforma católica. Assim Lutero, em 1529, escreveu dois
catecismos em que expôs a sua doutrina. O ramo reformado ou calvinista do
protestantismo foi pródigo na produção de tais documentos, particularmente no período
decorrido entre o primeiro catecismo de João Calvino, Instrução na Fé (1537), e os
catecismos de Westminster (1648). Marca na história do protestantismo foi o famoso
Catecismo de Heidelberg, o mais importante documento confessional da Igreja
Reformada Alemã. E o Papa Pio V em 1566 promulgou o chamado catecismo de
Trento. Autores católicos e protestantes escreveram seus próprios catecismos. A difusão
destes foi facilitada pela invenção da imprensa e tentativas de inovações pedagógicas.
Assim nos últimos séculos tivemos a produção de inúmeros catecismos, com o objetivo
de deixar clara a fé de cada confissão cristã.
A partir da perspectiva católica, tomamos como base o Catecismo da Igreja
Católica apresentado em 1992. Este volumoso Catecismo apresenta a fé da Igreja
172

Católica expressa após o Concílio Vaticano II e como fruto deste. Ao tomarmos como
base o Catecismo, não ignoramos a importância de toda a teologia e teólogos no Brasil
e no mundo. Mas o Catecismo se apresenta como base para comparação e diálogo com
visões cristológicas apresentadas pelos novos movimentos religiosos cristãos,
especialmente o Neopentecostalismo. Além disso, naquilo que é estritamente
cristológico, ou seja, a fé cristã explicitada nos primeiros Concílios Ecumênicos é a
mesma para católicos, protestantes e ortodoxos. Desta forma encontramos no Catecismo
da Igreja Católica o fundamental da cristologia de acordo com os maiores
representantes do cristianismo na atualidade.

5.1 - A Revelação

A elaboração de uma cristologia pela comunidade cristã nasce e se sustenta na


reflexão sobre a Revelação Divina, na compreensão da pedagogia divina que se mostra
na história, através de um Deus que fala e age, que elege e convoca, e que na
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encarnação do Verbo Divino, no evento Jesus Cristo, manifesta o seu desígnio salvífico.
Assim, faz-se necessário perquirir estes fundamentos da fé cristã, bem como a
elaboração do cânone da Sagrada Escritura na e pela Igreja, para depois adentrarmos na
formulação histórica da cristologia.

5.1.1 - Definição

A Revelação367 é o ato divino pelo qual o próprio Deus quis revelar ao ser
humano quem realmente Ele é, para dar ao homem a capacidade de lhe responder368.
Obviamente em nosso trabalho, seguindo nosso objetivo, entenderemos a Revelação a
partir do conceito católico, citando também, a perspectiva protestante, sem a pretensão
de exaurir um tema tão complexo e discutido. O Catecismo da Igreja Católica afirma
que a Revelação é iniciativa de Deus, dá-se em etapas e atinge seu ápice na Pessoa do

367
A etimologia da palavra está ligada a “tirar o véu”.
368
No Dicionário Lexicon se lê a respeito do termo ‘Revelação’: “Ato livre com que Deus comunica o
seu mistério à humanidade convidando-a à partilha. A revelação constitui o fundamento da fé e sua
referência constante; a teologia, que nasce da revelação, procura compreender o mistério à luz da
inteligência. O termo ‘revelação’ deve sua origem ao grego apokalýptein que significa: tornar manifesto,
retirar o véu; o uso que é feito pela Escritura, seja como for, não pode ser resumida a uma única
terminologia. No AT, a revelação é expressa de preferência com a expressão ‘palavra de Iahweh’;
segundo a concepção hebraica, de fato, não é possível ver Deus, apenas ouvir a sua voz. O NT utiliza
pelo menos 15 termos diferentes para falar da revelação, mas a referência é sempre Jesus de Nazaré e sua
atividade; a revelação, portanto, é principalmente a descrição de sua pessoa, atividade e ensinamento”.
LEXICON. Dicionário Teológico Enciclopédico, p. 663.
173

Verbo, Jesus369. São Paulo em sua primeira carta a Timóteo fala da habitação de Deus
em uma luz inacessível370 E Santo Anselmo explicita que aos homens não é possível
chegar a Deus diretamente.

É realmente inacessível a luz em que habitas, ó Senhor, e não há ninguém, exceto tu, que
possa penetrá-la bastante para contemplar-te com clareza. Eu não a vejo, sem dúvida, por
causa do seu brilho, demasiado para os meus olhos, e, todavia, o que consigo ver, vejo-o
através dela, da mesma maneira que o olho fraco do nosso corpo vê tudo aquilo que vê
pela luz do sol, que, no entanto, não pode contemplar diretamente.371

No entanto, a tradição da Igreja Católica manifesta que há em Deus o desejo de se


comunicar, ou seja, de comunicar a vida divina aos homens, com o intuito de fazê-los
em Cristo, seu único Filho, seus filhos adotivos.372 Com isso, existe em Deus o
propósito de encontrar no homem uma resposta que conduz ao conhecimento de quem
Ele é, o que leva o homem a amar a Deus de uma forma sobrenatural373.
Deus se comunica aos homens usando categorias inteligíveis numa comunicação
que não se resume à transmissão de informações, mas em conteúdos que têm uma
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eficácia salvífica374. O plano de Deus é elevar o homem à vida divina. Mas, para isso,
Ele cria o ser humano livremente a fim de que este possa optar por essa condição.
Em todo caso, o conhecimento de Deus por parte do homem revela o amor de
Deus por sua criatura. A obra-prima da criação, o ser humano, por sua natureza e
quando visto de forma isolada, está infinitamente distante da condição divina, mas por
graça, o ser humano pode participar da vida divina, sendo chamado a responder a essa
graça, conhecendo e amando a Deus375.
A maneira como Deus se revelou foi gradual para que o homem pudesse estar
preparado para acolher a Revelação plena em Jesus376. Assim a tradição cristã entende
que o projeto divino da Revelação acontece de forma concomitante através de ações e
de palavras377 que se ligam e se iluminam mutuamente378. Tudo isso faz parte de um

369
CEC, 51.
370
1Tm 6,16.
371
ANSELMO, Santo. Proslógio. Col. Os Pensadores, vol. VII. São Paulo: Abril Cultural, 1973 p. 119.
372
CEC, 52.
373
Ibid.
374
Cf. TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica I, q. 1, a 1. O Doutor angélico destaca o fato de que Deus
faz a revelação a respeito das coisas divinas que não são por si acessíveis à razão humana.
375
Nas palavras de K. Barth Deus em sua autodoação “se nos dá e se nos dá a entender”. BARTH, K.
Dogmatik 1/1, 164, citado por WERBICK, Jürgen. Prolegômenos. In.: SCHNEIDER, Theodor (org.).
Manual de Dogmática. Vol I, Petrópolis: Vozes, 2012, p. 17
376
DV, 3.
377
DV, 4.
174

projeto de Deus379 que comporta uma pedagogia particular em que Ele se comunica de
maneira gradual com o ser humano, em etapas, para que este possa ser preparado para
acolher a Revelação divina380 que Deus faz de si mesmo, até culminar na Pessoa de
Jesus Cristo e sua missão381.

5.1.2 - A pedagogia divina

Pelo projeto divino, o homem tem acesso à Revelação sobrenatural num processo
de comunicação de Deus com a humanidade em que Ele escolhe homens com os quais
se comunica diretamente. Pelo testemunho das Sagradas Escrituras, vários foram os
momentos em que os homens preferiram recusar o plano divino e se apoiar apenas em
suas próprias forças382. Mesmo assim, Deus sempre propôs aliança383 com seu povo384.
Os Padres conciliares do Vaticano II sublinham este acontecimento quando
expressam na Constituição Dogmática Dei Verbum a pedagogia divina, que soube ser
paciente com seu povo. No documento, é feita menção do chamado de Abraão, que é
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escolhido por Deus para constituir um povo385. A partir da descendência abraâmica386, e


também dos patriarcas e profetas387, Deus ensina a esse povo que o reconheça como
Deus único, vivo e verdadeiro, e também como um pai que é providente e que faz
justiça, de modo que o povo também espere o Messias388. Todo esse processo fez com
que o caminho para o Evangelho fosse preparado ao longo dos séculos até a chegada do
salvador prometido389.

378
“Deus se manifesta verbalmente” significa, portanto, duas coisas. Primeiro, ele se abre, se comunica,
se exprime no Logos, sua palavra da essência, no Logos tornado humano; ele se exprime verbalmente de
forma insuperável em Jesus Cristo, na sua vida, morte, consumação. Segundo: Deus se exprime
verbalmente no testemunho de vida e no testemunho verbal dos crentes – por meio do seu Espírito, que
aparece na vida e no discurso dos crentes por ele arrebatados e impregnados. Cf. WERBICK, Jürgen.
Prolegômenos, p. 18.
379
1Cor 2,9.
380
Cl 1,12-14.
381
CEC, 53.
382
DH, 1521.
383
CEC, 761.
384
Citando a Oração Eucarística IV do Missal Romano, o Catecismo diz: “E quando pela desobediência
perderam vossa amizade, não os abandonastes ao poder da morte. (...) Oferecestes muitas vezes aliança
aos homens e às mulheres” (CEC, 55).
385
Gn 12,2s.
386
CEC, 59.
387
CEC, 61.
388
CEC, 64.
389
DV, 3.
175

Assim também aparece escrito no início da Carta aos Hebreus. “Muitas vezes e de
modos diversos falou Deus, outrora, aos Pais pelos profetas; agora, nestes dias que são
os últimos, falou-nos por meio de seu Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as
coisas. E pelo qual fez os séculos”390.
Cristo é a plenitude da Revelação. É por Ele que Deus se dá a conhecer. Quando
Deus se manifesta, Ele se revela, revela o seu Ser, pronuncia sua Palavra Eterna que
ressoa pela eternidade. Assim, a ação trinitária do Pai que revela, do Filho que é
revelado e do Espírito Santo que ilumina os homens para que compreendam a revelação
de Deus faz com que o ser humano tome parte na salvação que Deus oferece a todos.
A Dei Verbum compreende esta ação e expõe seus efeitos no projeto redentor de
Deus. De acordo com o documento, é da vontade divina querer, em sua bondade e em
sua sabedoria, revelar-se a si mesmo e assim revelar o mistério de sua vontade como
também observa São Paulo em sua carta aos Efésios391. A ação é trinitária: os homens
chegam ao Pai através da participação na natureza divina que se dá pelo Cristo, no
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Espírito Santo de Deus392.

5.1.3 - Revelação natural e sobrenatural

A Revelação pela qual Deus se comunica diretamente aos homens, falando com
eles, é considerada extraordinária ou sobrenatural393. Isso porque os homens também
poderiam chegar a Deus pela Revelação natural ou ordinária394, isto é, através da
Criação, das obras do Criador395.
A Igreja considera que em todas as coisas criadas, Deus deixou sua marca396. Pela
inteligência, com o uso da razão, os homens poderiam chegar a conclusão de que Deus

390
Hb 1,1-2.
391
Ef 1,9.
392
DV, 2.
393
CEC, 53.
394
FISICHELLA, Rino. Cristologia e Cristologias. In.: LEXICON. Dicionário Teológico Enciclopédico.
São Paulo: Loyola, 2003, p. 663. Item 1 do verbete “Revelação”.
395
CEC, 32.
396
O Concílio Vaticano I afirma na Constituição Dei Filius a respeito deste assunto: “A mesma santa mãe
Igreja sustenta e ensina que Deus, princípio e fim de todas as coisas, pode ser conhecido com certeza pela
luz natural da razão humana, a partir das coisas criadas; “pois o invisível dele é divisado, sendo
compreendido desde a criação do mundo, por meio do que foi feito” [Rm 1,20]; mas ensina que aprouve à
sua misericórdia e bondade revelar-se à humanidade a si mesmo e os eternos decretos da sua vontade, por
outra via, e esta sobrenatural, conforme diz o Apóstolo: “Havendo Deus outrora em muitas ocasiões e de
muitos modos falado aos seus pais pelos profetas, ultimamente, nestes dias, falou-nos pelo Filho” (DH
3004).
176

existe397 e ainda mais compreender o querer de Deus para cada criatura, através das
Vestigia Dei, conforme afirmou São Boaventura em sua obra “De Scientia Christi”.
No entanto, esse conhecimento não é imediato como acontece na Revelação
sobrenatural, mas se caracteriza por ser um conhecimento a posteriori, dos efeitos à
causa, conforme constava no Juramento Antimodernista que vigorou entre 1910 e
1967398.
O Papa São Pio X, que é autor do Motu Próprio “Sacrorum antistitum”399, dá o
seu aval ao Decreto de 27 de julho de 1914 da Sagrada Congregação dos Estudos em
que se destrincham as consequências deste conhecimento mediato.

Conhecemos a existência de Deus não por intuição imediata, nem por demonstração a
priori, mas a posteriori, ou seja, “pelas criaturas” (Rm 1,20), conduzindo o argumento do
efeito até as causas; isto é, partindo das coisas que se movem e não podem ser seu próprio
adequado princípio de movimento, até chegar a um primeiro motor imóvel; da produção
das coisas mundanas por causas subordinadas entre si, até uma causa primeira não
causada; das coisas corruptíveis que tanto podem ser como não ser, até o ente
absolutamente necessário; daquilo que segundo diminutas perfeições do ser, viver,
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compreender ora mais, ora menos é, vive e entende, até aquilo que maximamente
compreende, maximamente vive, maximamente é; finalmente, da ordem do universo até o
intelecto separado que ordenou e dispôs as coisas e as dirige ao fim. 400

Esse pensamento tem suas raízes na filosofia aristotélica e é elaborado por São
Tomás de Aquino. Trata-se da analogia entis401, em que a criação fala do Criador402.
Apesar de tudo, só foi possível essa compreensão após a Revelação sobrenatural,
conforme o entendimento católico. Apesar de ser possível chegar a Deus pela
Revelação natural, o homem não chegou ao conhecimento de Deus verdadeiramente
antes que a Revelação sobrenatural apontasse também esse caminho403.
Para o pensamento protestante, a razão humana só é capaz de criar ídolos404,
portanto, não é possível o conhecimento de Deus pelos meios ordinários 405. Isso acabou
influenciando alguns teólogos católicos como salienta Rene Latourrele. Segundo ele, o
problema estaria no enfoque. Assim a dificuldade primordial advém dos enfoques
diferentes que esses teólogos abordam. Tanto teólogos católicos quanto protestantes que

397
CEC, 31.
398
DH, 3538.
399
Neste Motu Próprio estava contido o Juramento Antimodernista.
400
DH, 3622.
401
WERBICK, Jürgen. Prolegômenos, p. 21.
402
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica,v. I. I, 12, 12, C.
403
PIO XII considera essa ideia na Encíclica Humani Generis.
404
Por isso, a rejeição de Karl Barth a toda teologia natural. (WERBICK, Jürgen. Prolegômenos, p. 22).
405
LACOSTE, Jean-Yves. Dicionário crítico de teologia. Verbete Revelação, p. 1541.
177

seguem nesta direção, problematizaram de tal forma a questão, que obscureceram a


reflexão teológica, a realidade da “revelação” ou “desvendamento”. Quiseram partir do
inexplicado para lançar luzes sobre o explicado. Preferiram partir de princípios
teológicos ao invés de se deixarem conduzir pela própria corrente da revelação, a fim de
escutar o que ela diz de si mesma406.
Esses desacordos tornam problemática a função que a Revelação realmente tem
no mundo contemporâneo, já que para além da Revelação natural, outras religiões fora
do cristianismo consideram-se portadoras de uma revelação sobrenatural, revelações
essas, que via de regra, não estão de acordo entre si407.
O cristianismo se destaca por ser, dentre todas as religiões, a única em que Deus é
quem tem a iniciativa de se comunicar com o homem408 e a fé é a resposta que este Lhe
dá. Em todas as outras religiões é o homem quem busca a Deus.

5.1.4 - A necessidade da Revelação


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Segundo o entendimento cristão, Deus tem um desígnio que é de levar os homens


a terem acesso a Ele409 a fim de se tornarem participantes da natureza divina por meio
de Jesus, no Espírito Santo410. Cria-se um vínculo de comunhão entre o céu e Terra e se
revela a verdade ao homem, que é o próprio Deus411. A salvação que é o objetivo final
para o homem consiste em participar da comunhão trinitária412.
Dessa forma, a Revelação divina é absolutamente necessária à salvação, como já
sancionou o II Sínodo de Orange e ratificou o Papa Félix III no Cânon 8 desse mesmo
Sínodo.

Se alguém sustenta que alguns podem chegar à graça do batismo por via de misericórdia,
outros ao contrário por meio do livre-arbítrio, que consta ser viciado em todos quantos

406
LATOURELLE, René. Revelação, p. 2.
407
“[O documento do Concílio Vaticano II] Nostra Aetate entra na forma e na intenção de algumas
religiões, sendo que a trajetória de reflexão leva das religiões mais distantes da confissão cristã para as
mais próximas: muitas religiões naturais cultuam uma divindade oculta inerente às leis da natureza, o
hinduísmo exprime o mistério divino em mitos e busca refúgio em Deus por meio de formas ascéticas de
vida, o budismo aponta caminhos como as pessoas podem atingir o estado de liberdade perfeita (cf. NA
2). O islamismo, juntamente com o judaísmo e o cristianismo, professa o Deus uno, Criador do céu e da
terra (cf. NA 3). Para o judaísmo vale até hoje a inquebrantável promessa da aliança por parte de Deus
(cf. NA 4)”. SATLER, Dorothea; SCHNEIDER, Theodor. Doutrina sobre Deus., p. 95.
408
AMATO, Angelo. Gesù Il Signore., p 13.
409
DH, 3004.
410
DV, 2.
411
GS, 22.
412
DH, 4814.
178

nasceram a partir da prevaricação do primeiro homem, este tal se mostra estranho à


verdadeira fé. Pois afirma que o pecado do primeiro homem não enfraqueceu o livre-
arbítrio de todos, ou decerto o pensa lesado de tal modo que todavia alguns sejam capazes
de alcançar, por si mesmo, sem a revelação de Deus, o mistério da salvação413.

Nesse sentido, a atitude da Igreja combate o pelagianismo, heresia do início do


cristianismo que considerava ser o homem capaz de chegar a salvação com suas
próprias forças, sem o auxílio da graça414. A Revelação415 é graça divina que vem em
socorro do homem para que ele alcance a salvação definitiva.
Preparada ao longo de muitos séculos, a Revelação tem início no Antigo
Testamento com a escolha de Abraão416 que recebe a promessa de ser pai de uma
grande multidão. Através de Abraão, Deus escolhe um povo417 para lhe revelar seus
desígnios, sua vontade e quem Ele realmente é. A Revelação veterotestamentária não é
definitiva, como já foi dito, mas se dará em etapas através dos patriarcas e dos
profetas418. Deus respeitará a cultura e a mentalidade de seu povo até que, na plenitude
dos tempos, revela-se na Pessoa do Verbo encarnado419.
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A Igreja considera que a Revelação termina e se completa com a morte do último


apóstolo. Após esse acontecimento não houve uma nova Revelação420 e a Igreja tem por
missão transmitir lealmente as verdades reveladas, ou seja, o depósito da fé, através dos
séculos a todos os seus filhos, tendo a garantia da assistência do Espírito Santo para
conservar e expor santamente a Revelação transmitida pelos Apóstolos421.
O Magistério eclesiástico422 deve, portanto, honrar a veracidade do depósito da fé
não inventando nenhuma doutrina nova, mas expondo a fé de sempre herdada de Cristo
e dos apóstolos.

413
DH, 378.
414
Já o XV Sínodo de Cartago, realizado em 418, condenou a doutrina pelagiana, se expressando nestes
termos: “Cân. 3. Igualmente foi decidido: quem disser que a graça de Deus, pela qual o homem é
justificado mediante Nosso Senhor Jesus Cristo, serve somente para remissão dos pecados já cometidos,
não também para dar auxílio para não cometê-los, seja anátema”. (DH 225).
415
Sempre que o termo Revelação aparecer a partir de agora, estará se referindo a Revelação
sobrenatural, a não ser que o mesmo termo seja complementado.
416
CEC, 59.
417
DV, 3.
418
“No devido tempo, Deus chamou Abraão, a fim de fazer nele um grande povo, que, após os Patriarcas,
Deus educou por meio de Moisés e dos profetas para reconhecê-lo como único Deus vivo e verdadeiro,
Pai providente e justo juiz, e para esperar o Salvador prometido; e assim preparou, ao longo dos séculos,
o caminho para o Evangelho”. (Ibid.).
419
Jo 1.
420
CEC, 66.
421
DH, 3070.
422
Esse Magistério foi confiado aos bispos em comunhão com o Papa, sucessor de Pedro e bispo de
Roma. (Cf. CEC 85).
179

O conteúdo desse depósito encontra-se tanto nas Sagradas Escrituras quanto na


Tradição da Igreja, como o define o Concílio de Trento e retoma o Concílio Vaticano I
na Constituição Dei Filius. De acordo com esses dois concílios, a revelação
sobrenatural, de acordo com a doutrina da Igreja Católica consta nos escritos e das
tradições não escritas, mas que, tendo sido recebida pelos apóstolos do próprio Jesus ou
tendo sido transmitidas por estes, de acordo com a inspiração do Espírito Santo,
chegaram até os dias atuais. Os Concílios professam ainda que os livros do Antigo e do
Novo Testamento devem ser aceitos integralmente como sagrados e canônicos423,
devendo ser utilizado o cânon que Trento estabeleceu e que são encontrados na edição
latina da Vulgata424. Apesar de terem sido redigidos por homens, foram aprovados pela
Igreja como conteúdo isento de erro. Mas, acima de tudo, são credíveis porque o
próprio Espírito Santo os inspirou, sendo que é Deus o seu autor425, que por sua vez os
confiou à sua Igreja426.
No tempo da Igreja, não se deve esperar uma nova Revelação pública, a não ser na
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segunda vinda de Cristo. Os fiéis devem dar seu pleno assentimento a tudo aquilo que
foi revelado através da fé427, já que embora não esteja em desacordo com a razão, esta,
por si mesma, não pode justificar todas as verdades reveladas. É a graça divina que
permite ao homem dar o seu assentimento ao depósito da fé428, indo além das
faculdades naturais do ser humano429.
Mas se não há um progresso na Revelação, pode haver, por outro lado um
progresso no conhecimento daquilo que já foi revelado430. A isso se dedica o Magistério
da Igreja com o auxílio da Teologia431. Grandes contribuições deram os Santos
Padres432, estudiosos dos primórdios da Igreja, que legaram a interpretação dos escritos
sagrados.

423
DV, 11.
424
Tradução oficial da Igreja.
425
CEC, 105.
426
DH, 3006.
427
A Constituição Dei Filius diz em seu capítulo 3: “Visto que o homem depende inteiramente de Deus
como seu criador e Senhor, e que a razão criada está inteiramente sujeita à Verdade incriada, somos
obrigados a prestar, pela fé, a Deus que revela, plena adesão do intelecto e da vontade”. (DH, 3008).
428
DH, 3010.
429
DV, 8.
430
CEC, 94.
431
CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ. Donum Veritatis. Instrução sobre a vocação
eclesial do teólogo, n 21.
432
“O interesse histórico-literário pelos Padres, próprio da patrologia que a recente Instrução para o
estudo dos Padres define como a disciplina que tem por objetivo a vida e o escrito dos Padres e que se
move sobretudo no âmbito da pesquisa histórica e da informação biográfica biográfica e literária nasce já
180

5.1.5 - As etapas da Revelação

Pode-se considerar que as etapas da Revelação aconteceram em quatro partes:


1) Revelação natural – “os céus narram a glória de Deus”433. Não é só pelo que é
dito, porém é também pela palavra transmitida por gestos, obras, que os homens se
comunicam. É a revelação cósmica434, Deus que se revela em todo universo, e em sua
obra, a Criação. O ser humano percebe435 assim quem é Deus por tudo aquilo que foi
criado, ainda que de maneira vaga e imperfeita436.
2) Revelação na Escritura ou profética437. Pela eleição de Israel, Deus se dá a
conhecer a um povo e semeia através dele fazendo germinar a mensagem da salvação
como fruto, que muito tempo depois irá ser transplantada em toda humanidade. “No
intuito de abrir caminho à salvação, manifestou-se ainda, desde o início, a nossos
primeiros pais”438. Deus atua pela Lei e pela Divina Providência para amparar seu povo.
Os profetas têm papel especial no testemunho que irão aprofundar daquilo que foi
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revelado no Sinai. É a partir disso que surge a Escritura.


3) Revelação através do Verbo Encarnado. É a “Palavra de Deus” que se dirige ao
ser humano pela voz de um ser humano: Jesus Cristo439. A revelação bíblica atinge seu
cume sendo a fase definitiva da Revelação. Jesus Cristo, sendo Deus, revela o próprio
Deus, portanto, a si mesmo. É pela mensagem contida no Novo Testamento que o
homem pode ser salvo, o que não elimina, mas completa aquilo que estava contido no
Antigo Testamento. A Dei Verbum enuncia que pela presença de Jesus, por suas
palavras e seus atos, também por seus sinais e milagres, e principalmente, por sua
paixão, morte e ressurreição, agindo com o Espírito Santo, Ele dá plenitude à revelação

na Igreja antiga e responde à necessidade tanto de mostrar a antiguidade e a continuidade da fé cristã


como de conservar a memória dos escritores cristãos ilustres” (PADOVESE, L. Patrologia., p. 576).
433
Sl 18,1.
434
“a partir do movimento e do devir, da contingência, da ordem e da beleza do mundo, pode-se conhecer
a Deus como origem e fim do universo” (CEC, 32).
435
“Com sua abertura à verdade e à beleza, com seu senso do bem moral, com sua liberdade e a voz de
sua consciência, com sua aspiração ao infinito e à felicidade, o homem se interroga sobre a existência de
Deus” (CEC, 33).
436
Rm 1,20
437
No AT, três são as correntes principais da Revelação de Deus. A primeira se dá através de Moisés, pela
Lei em que são estabelecidas a aliança e a conduta do povo que o próprio Deus escolheu para si. A
segunda é o profetismo, em que os profetas interpretam as ações de Deus na vida do povo, de acordo com
a palavra que lhes é dada. E a terceira corrente é a sabedoria em que o autor, através de um carisma
especial, desvenda a maneira como a sabedoria de Deus conduz todas as coisas, conservando assim as
tradições e a Lei. É através destas três correntes que Deus regula a vida e a fé do povo israelita.
(MCKENZIE, John L. Dicionário Bíblico. pp. 727-728).
438
DV, 3.
439
Jo 1,1; Hb 1,1.
181

e testemunha que Deus está com os homens para livrá-los da escuridão do pecado e da
morte e ressuscitá-los para a vida eterna440.
4) Revelação na glória ou escatológica441. João diz em sua primeira carta que
“ainda não se manifestou o que seremos”442. Pelo Ressuscitado se tem um modelo que
dá a possibilidade de vislumbrar a realidade futura do próprio homem. Pela sua
condição, Ele supera o espaço e o tempo443, penetrando a realidade das coisas criadas.
Ele é a plenitude do cosmos444. Jesus Cristo é, portanto, a total realização e revelação da
bondade e da divindade das coisas. Quando Ele “em grande poder e glória”445 aparecer,
a consumação do mundo se realizará e surgirá o novo céu e a nova terra.
Na Exortação Apostólica Verbum Domini446, o papa Bento XVI fez menção à
Tradição patrística e medieval que ao se referir a Cristologia da Palavra, os autores
faziam uso da expressão “O Verbo abreviou-se”. Os Padres da Igreja se referiam a uma
frase contida no profeta Isaías447, que de acordo com a tradução grega do Novo
Testamento de que dispunham (já que São Paulo também citava essa passagem)448, o
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autor sagrado considera que os caminhos novos de Deus já estavam preanunciados no


Antigo Testamento449. Os termos usados para a Palavra são “compendiar” e “abreviar”.
O Filho é a Palavra, ou seja, o Logos. O então papa faz essa ligação ao afirmar que o
Filho se fez pequeno, cabendo até em uma manjedoura450. Jesus se fez uma criança, a
fim de que a Palavra pudesse ser compreendida pelo ser humano451. Dessa forma, não
apenas se escuta a Palavra, mas ela passa a possuir um rosto a ser enxergado por todos.
Essa Palavra é uma Pessoa: Jesus Cristo452.

440
DV, 4.
441
“Escatologia é a reflexão teológica que, baseando-se no mistério pascal de Cristo, vê nele o protótipo
da condição final da humanidade como coroação do plano divino de criação e de salvação da pessoa”
(STANCAT, T. Escatologia, p. 241).
442
1Jo 3,2.
443
Jo 20,19.
444
Ef 1,23; Col 1,19.
445
Mc 13,26.
446
Essa Exortação apostólica de 2010 traz as conclusões do Sínodo sobre a Palavra acontecido no
Vaticano entre os dias 5 e 26 de outubro de 2008.
447
Is 10, 23.
448
Rm 9,28.
449
Segundo Santo Agostinho, o Novo Testamento está escondido no Antigo, ao passo que o Antigo é
desvendado no Novo Testamento. (CEC, 129).
450
Lc 2,7.
451
DA, 218.
452
Verbum Domini, 12.
182

Cristo é, portanto o Verbo de onde emana e para quem converge toda ação
reveladora de Deus453, porque Cristo é a própria revelação que não se reduz a um livro,
mas é uma Pessoa454.

5.1.6 - A transmissão da Revelação

Se a Revelação se deu pela Encarnação, a transmissão da Revelação se dá pela


continuidade da Encarnação, ou seja, pelo corpo da Igreja455, que é uma realidade santa,
pura e imaculada, apesar de ter membros pecadores.
“Cheio de bondade, Deus estabeleceu que a revelação destinada a todos os povos
se mantivesse na sua integridade através dos tempos e fosse transmitida a todas as
gerações”456. Nestas palavras do Concílio Vaticano II se percebe que há uma garantia
de fidelidade àquilo que foi revelado da parte de Deus para que a mensagem
permanecesse íntegra ao longo dos séculos, no tempo da Igreja.
Certos autores457, em uma busca, talvez mais racional, contrapõem explicitamente
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essa fidelidade458. Apregoam que as narrativas bíblicas teriam sido uma construção das
primeiras comunidades que adaptaram e acrescentaram vários elementos de tal forma
que nos dias atuais não seria possível identificar aquilo que realmente aconteceu e
aquilo que foi inventado, sendo necessária uma garimpagem histórica na tentativa de se
alcançar uma certeza relativa a respeito do que é o cristianismo459.
No entanto, essa não é a compreensão da Igreja Católica. A Tradição Apostólica é
a garantia da fidelidade àquilo que foi revelado460. Pela ordem que Jesus deu aos seus
apóstolos, estes deveriam transmitir aquilo que receberam461 sem inventar nada. Essa

453
DV, 4.
454
Jo 1,14.
455
O Concílio de Trento afirmou em sua quarta sessão: “O Sacrossanto Sínodo ecumênico e geral de
Trento legitimamente reunido no Espírito Santo, tendo sempre diante dos olhos sua intenção de que,
extirpados os erros, se conserve na Igreja a pureza do Evangelho que, prometido primeiramente pelos
profetas nas Santas Escrituras, nosso Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, promulgou por sua própria boca
e então mandou a seus apóstolos ‘pregá-lo a toda criatura’ [Mc 16,15] como fonte de toda verdade salutar
e de toda ordem moral, vendo claramente que essa verdade e essa ordem estão contidas em livros escritos
e tradições não escritas que, recebidas pelos Apóstolos da boca do próprio Cristo ou transmitidas como
que de mão em mão pelos Apóstolos, sob o ditado do Espírito Santo, chegaram até nós” (DH 1501).
456
DV, 7.
457
Como é o caso de Rudolf Bultmann.
458
GIBELLINI, Rosino. A teologia do século XX, p. 33.
459
Esse ponto de vista surgiu no meio protestante, é conhecido como teologia liberal, e seu primeiro
expoente foi o teólogo alemão Friedrich Schleiermacher. Outros expoentes dessa escola são Albrecht
Ritschl e Ernst Troeschl.
460
DV, 8.
461
1Cor 11.
183

Tradição se deu de duas formas: por via oral e por via escrita462. São dois métodos de
transmissão. Aqui a compreensão católica difere daquela protestante.

5.1.7 - Sagradas Escrituras e Sagrada Tradição

A Tradição transmitida por escrito identifica-se com as Sagradas Escrituras,


enquanto que por via oral está se falando da Tradição em si. Tanto a Sagrada Tradição
quanto as Sagradas Escrituras são parte integrante da Tradição Apostólica463.
O próprio Jesus quando anunciou o Reino não deixou nada escrito. Ele deixou a
Igreja, novo464 Povo de Deus465. E esta realidade deixada por Jesus é um organismo
vivo que continua vivendo ao longo dos séculos. A Igreja tem por finalidade dar
testemunho dessa Tradição viva466.
Os Padres do Concílio Vaticano II467 salientam que os ensinamentos da pregação
dos apóstolos deviam ser conservados até o fim dos tempos. Esses ensinamentos
aparecem de forma especial nos livros inspirados468. Os próprios apóstolos469
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advertiram aos fiéis para que se mantivessem firmes naquilo que havia sido prescrito
tanto por tradição oral quanto por escrito470, conservando intacto o ensinamento que
eles mesmos haviam recebido de Jesus. Os fiéis deviam também lutar por aquela fé
recebida de uma vez para sempre471. Esse conteúdo estava relacionado com aquilo que
contribui para a santificação da vida do Povo de Deus e para o crescimento de sua fé.
Assim se caracteriza a missão da Igreja que em sua doutrina, vida e culto, mantém
através das gerações e transmite472 a elas aquilo que a própria Igreja é e tudo aquilo que
ela crê473.

462
Já o II Concílio de Niceia tinha isso bem formulado no ano 787. “Se alguém rejeita toda a tradição
eclesiástica, escrita ou não escrita, seja anátema” (DH 609). Isso foi reafirmado pelo Concílio de Trento e
também pelo Vaticano I e II.
463
DV, 8.
464
Nesse sentido, Israel era o povo escolhido por Deus no Antigo Testamento. Jesus, quando no embate
com os fariseus em Mt 23,43 anuncia que o Reino de Deus lhes seria tirado e entregue a um povo que
desses frutos, referia-se a Igreja, povo de Deus, que abarcaria não apenas os israelitas, mas também os
povos pagãos.
465
LG, 9.
466
DH, 4211.
467
Na Constituição Dogmática Dei Verbum.
468
DV, 11.
469
Em especial São Pedro e São Paulo.
470
2Tes 2,15.
471
Jud 3.
472
Pela ação do Espírito Santo.
473
DV, 8.
184

Dessa forma, a tentativa de buscar as próprias palavras de Cristo, muito embora


empolgante e atraente a nível acadêmico, pode se tornar um princípio não de acordo,
totalmente, com a fé católica, pois, se a Igreja crê que a Revelação se encerra com a
morte do último apóstolo474, mesmo que Jesus não tenha dito algo, podem existir
ensinamentos que tenham sido sugeridos pelo Espírito Santo475 enviado pelo próprio
Cristo após sua Ascensão aos céus476. Estes ensinamentos esclareceram e orientaram a
comunidade cristã a respeito do mesmo Cristo Jesus477.
No que se refere aquilo que foi deixado por via escrita, a Igreja ressalta o fato de
que os livros considerados inspirados foram escritos pelos Apóstolos e por varões
apostólicos478, ou seja, por aqueles homens que conviveram e transcreveram aquilo que
os Apóstolos ensinaram em suas épocas.
Mesmo que um livro sagrado não tenha sido escrito a próprio punho por um
Apóstolo, ele pode ser considerado inspirado mesmo assim. Se a Igreja acolheu esse
escrito, então é canônico, já que se considerou que nele estava a autêntica Palavra do
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Senhor.

5.1.8 - Sagrado Magistério

Para que a transmissão desse conteúdo fosse perpetuado, os Apóstolos


constituíram os bispos479 como fiéis continuadores480 da comunicação da Palavra de
Deus481. São eles quem assumem o encargo do Magistério482 e pelos seus sucessores
transmitem a vida da Igreja483.

Para que o Evangelho fosse perenemente conservado íntegro e vivo na Igreja, os


Apóstolos deixaram os bispos como seus sucessores, "entregando-lhes o seu próprio

474
Isso porque “uma vez que em Jesus Cristo, Deus expressou a si mesmo de forma completa e não pode
haver ulteriores revelações. Entretanto, a historicidade do homem faz com que o evento da revelação não
possa ser apreendido de uma vez por todas em sua totalidade; ele sempre é percebido de uma maneira
perspectiva segundo as limitações da situação cultural em que o evangelho é pregado, ou seja, a revelação
é sempre encarnada em alguma forma histórica. Portanto, é preciso uma reflexão continuada, que já se
fez presente e que ainda continua presente” (CHAPPIN, Marcel. Introdução à História da Igreja, pp. 29-
30).
475
CEC, 137.
476
CEC, 76.
477
DV, 7.
478
Ibid.
479
At 20, 28.
480
Eles devem estar em comunhão com o sucessor de Pedro.
481
DV, 10.
482
DH, 3010.
483
LG, 22.
185

ofício de magistério". Com efeito, a pregação apostólica, que se exprime de modo


especial nos livros inspirados, devia conservar-se, por uma sucessão ininterrupta, até à
consumação dos tempos.
Esta transmissão viva, realizada no Espírito Santo, denomina-se Tradição, enquanto
distinta da Sagrada Escritura, embora estreitamente a ela ligada. Pela Tradição, a Igreja,
na sua doutrina, vida e culto, perpetua e transmite a todas as gerações tudo aquilo que ela
é e tudo em que acredita. Afirmações dos santos Padres testemunham a presença
vivificadora desta Tradição, cujas riquezas entram na prática e na vida da Igreja crente e
orante.484

Os Santos Padres têm um papel relevante485. São eles quem coletam no período
pós-apostólico muitos dos ensinamentos orais dados pelos apóstolos. Também
registram a forma autêntica como as primeiras comunidades cristãs interpretavam a
Revelação, mostrando assim a dinamicidade da Igreja pela ação do Espírito Santo que
iluminava nas situações emblemáticas aqueles que haviam sido colocados para
resguardar a norma da fé486.
Pelas homilias e escritos dos Santos Padres também foi possível destrinchar o
ensinamento apostólico, aplicando às diferentes comunidades de acordo com o contexto
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em que estavam inseridas, principalmente, aquelas que estavam em contato com a


cultura helênica.
Eles são autênticos transmissores da Palavra de Deus que se faz vida na e da
Igreja487. O patrimônio legado através dos séculos é uma fonte segura para as gerações
posteriores no que se refere a legítima interpretação da Revelação divina. “A pregação
eclesiástica tem a virtude de fazer presente quanto transmitir”488.
A Igreja transmite assim através da Sagrada Tradição e das Sagradas Escrituras,
que são uma fonte só489, pelos séculos afora, o ensinamento do Senhor. Elas se
articulam entre si, comunicando-se. As duas procedem do Espírito Santo, formando no
conjunto uma unidade que tende para o mesmo fim490. Tanto as Sagradas Escrituras
quanto a Tradição são Palavra de Deus, já que redigidas e transmitidas sob a moção do
Espírito Santo. De forma especial a Tradição foi confiada aos apóstolos por Cristo e é

484
CEC, 77-78.
485
DV, 8.
486
Ibid.
487
Dentre vários que existiram podemos citar alguns de mais renome como Clemente de Roma (+97),
Inácio (+110), Policarpo (+155), Justino Mártir (o primeiro apologista importante da Igreja; +165), Ireneu
(+202), Cipriano (+258), Atanásio (+373), Basílio (+379), Cirilo de Jerusalém (+386), Ambrósio (+397),
João Crisóstomo (+407), Jerônimo (+420), Agostinho (+430), Cirilo de Alexandria (+444), Papa Leão
Magno (+461) e Papa Gregório Magno (+604).
488
SCHMAUS, Michael. A fé da Igreja: Fundamentos. Vol I 2. Ed. Petrópolis: Vozes, 2012, p. 119.
489
DV, 9.
490
Essa inter-relação é devida ao fato da promessa de Jesus de permanecer com seus discípulos até o fim
dos tempos como está em MT 28,20. (CEC, 80).
186

transmitida na íntegra aos seus sucessores que devem conservá-la, explicá-la e propagá-
la491. Dessa forma, a Igreja Católica não depende exclusivamente da Escritura no que se
refere a Revelação492, mas considera de forma determinante a Tradição Apostólica493,
diferentemente da visão protestante494.
As Escrituras quando lidas isolada da Tradição padecem de esclarecimento e dão
margem a interpretações que não necessariamente são condizentes com aquilo que os
apóstolos quiseram transmitir. A Igreja Católica sempre considerou ambas como parte
integrante do depósito da fé, de modo que as Escrituras são oriundas da Tradição.
O entendimento protestante, diferente do católico e do ortodoxo, é que só pelas
Escrituras se pode ter acesso a Cristo. Essa compreensão advém da ideia de que a Igreja
é apenas uma associação humana495 já que Cristo não poderia ter deixado uma Igreja
que possui membros pecadores. Segundo eles, se assim é, a transmissão da Revelação
teria sido corrompida e é necessário se assegurar em uma fonte imutável como é o caso
das Escrituras.
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5.1.9 - A canonicidade das Escrituras

No entanto, historicamente não é essa a compreensão que sempre se teve desde a


era apostólica. Acrescente-se ainda o fato de o cânon bíblico ter origem496 no interior da
Igreja que é quem assegura a autoridade das Escrituras.
Michael Schmaus, em sua coleção “A Fé da Igreja”, no volume Fundamentos,
esclarece que a Igreja é autora das Escrituras497, sendo que alguns fiéis dos primórdios
do cristianismo, são os autores dos Evangelhos. Eles foram responsáveis por fixar a
mensagem transmitida oralmente no texto e o fizeram como representantes da
comunidade. Esta aparece por trás da ação do autor individual com sua fé, suas
dificuldades, sua problemática teológica e sua luta contra os pensamentos da época.

491
DH, 4822.
492
CEC, 84.
493
DV, 9.
494
“Daí resulta que a Igreja, à qual estão confiadas a transmissão e a interpretação da Revelação ‘não
deriva a sua certeza a respeito de tudo o que foi revelado somente da Sagrada Escritura. Por isso, ambas
devem ser aceitas e veneradas com igual sentimento de piedade e reverência” (CEC, 82).
495
POCOCK, J. G. A. Linguagens do Ideário Político, São Paulo: Edusp, 2003, p. 437.
496
Já no ano 382, no Sínodo de Roma aparece o cânon da Igreja sob o Pontificado do Papa Dâmaso I, no
decreto “Decretum Damasi” (Cf. DH, 179). Essa norma foi reafirmada no III Sínodo de Cartago no ano
397.
497
A inspiração é divina, mas foi no interior da Igreja que se escolheram os livros sagrados.
187

Assim, o autor reconhece na Escritura toda, a partir dos Evangelhos, a marca eclesial498,
ou seja, da comunidade499.
Quanto mais o tempo passava e as comunidades se distanciavam temporalmente
da era apostólica, sentiu-se a necessidade de colocar por escrito aquele que era o
autêntico ensinamento dos apóstolos500. Muitas literaturas surgiram e a Igreja precisou
selecionar aqueles livros que continham de fato o ensinamento apostólico. Por isso foi
elaborado o cânon bíblico501.
Em relação aos livros do Antigo Testamento502, a Igreja aceitou os livros que
também eram usados e citados pelos Apóstolos em sua pregação. Neles estava já
traçada a promessa do Messias que, passando pela leitura cristã, assumiu seu pleno
significado em Jesus503.
Já os Livros do Novo Testamento, para se chegar a lista final contendo os vinte e
sete livros que são aceitos, foram maiores as dificuldades para se definir quais seriam os
canônicos, já que existiam correntes antagônicas como a dos seguidores de Marcião504,
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que queriam uma lista breve, enquanto os gnósticos defendiam que fossem dezenas os
livros inspirados. Por fim, chegou-se a lista final por volta do ano 300 com base na fé
dos apóstolos505.
O autor da Escritura é o próprio Deus que agiu em homens inspirados pela ação
do Espírito Santo. Imbuídos pela graça divina, eles escreveram sem sombra de erro, a
verdade e o conteúdo que Deus quis naquilo que se refere ao seu desígnio salvífico para
toda a humanidade506.

498
DV, 11.
499
SCHMAUS, Michael. A fé da Igreja, pp. 139-140.
500
CEC, 106.
501
CEC, 120.
502
CEC, 121-122.
503
DV, 15.
504
Este propunha a separação entre o Deus do Antigo Testamento e o do Novo Testamento, que deu
origem a um sistema dualista já que o que Jesus ensinava era incompatível com as ações de Deus no
Antigo Testamento.
505
A primeira lista ortodoxa dos livros do NT é o fragmento de um cânon da Escritura, redigido em latim,
da segunda metade do século II, descoberto em Milão e publicado em 1740, conhecido como “cânon
muratoriano”, o qual, assim mesmo, omite cinco cartas do Cânon atual. Apresenta provavelmente o cânon
da Igreja de Roma. A canonicidade de alguns livros do NT só foi estabelecida depois de muita hesitação.
Na Igreja Ocidental não foi estabelecida até cerca de 380-390, ao passo que na Oriental, uma vez que
restava ainda questões relativas ao livro do Apocalipse, este não foi estabelecido sequer no final do
século VII. Em 367, Sto. Atanásio apresenta o primeiro cânon completo do Novo Testamento.
(COFFFELE, G. Cânon. In.: LEXICON. Dicionário Teológico Enciclopédico. São Paulo: Loyola, 2003
p. 90).
506
DV, 12.
188

A interpretação desses escritos precisa ser feito de forma cautelosa, e um dos


critérios é levar em conta o gênero literário, já que Deus se serve do escritor sagrado,
mas respeita o contexto em que está inserido, sua língua, seu modo de ser e de
pensar507.
Isso quer dizer, segundo a Dei Verbum, que a verdade está expressa e proposta de
forma diferente nos diversos textos. Os gêneros podem variar, podendo ser históricos,
proféticos, poéticos, dentre outros, de acordo com a opção feita pelo autor. Aquele que
interpreta o texto deve sempre levar em conta o tempo e a cultura em que o autor
sagrado estava situado, além de desvendar o gênero literário de acordo com aqueles que
eram comuns em sua época508.
Outro fator indispensável para uma correta interpretação dos textos sagrados é a
unidade da Escritura ligada a Tradição da Igreja509, bem como a analogia da fé510.
Obedecidos esses critérios, os estudiosos estarão dando grande contributo para o
amadurecimento do pensamento da Igreja. Tudo isso, no entanto, deve sempre estar
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submetido ao crivo do Magistério eclesiástico que tem a palavra final no que se refere a
correta interpretação dos textos sagrados511.
As Sagradas Escrituras, a Sagrada Tradição e o Sagrado Magistério estão
entrelaçados entre si512, de acordo com a vontade de Deus, unidos numa
interdependência que, pela ação do Espírito Santo, contribuem de forma decisiva para a
salvação do gênero humano.
Michael Schmaus diz que a Tradição encontra-se vinculada ao ministério
apostólico. Sendo assim, a missão da Igreja de transmitir não se encerrou com a criação
do Cânon dos livros inspirados das Escrituras. Embora passe a constituir o instrumento
da pregação da Igreja, os escritos reunidos no Cânon devem continuar a serem
interpretados até o retorno de Cristo513.
Há ainda que se acrescentar que hoje em dia se coloca em dúvida a historicidade
dos Evangelhos. A Igreja professa a fé de que os Evangelhos têm base histórica e,
portanto devem ser acreditados514. A ideia de que haveria um Jesus histórico, mas que

507
CEC, 110.
508
DV, 12.
509
CEC, 113.
510
CEC, 114.
511
DV, 12.
512
CEC, 97.
513
SCHMAUS, Michael. A fé da Igreja, p. 149.
514
DV, 19.
189

tempos depois, as comunidades primitivas teriam inventado o Cristo da fé é totalmente


rechaçado pelo Magistério da Igreja515.
O Papa Bento XVI, ainda enquanto era cardeal, começou a escrever a trilogia
Jesus de Nazaré. Embora assuma que sua obra não tem caráter magisterial, ele é um dos
expoentes, enquanto teólogo católico, que defende a não distinção entre o Jesus
histórico e o Cristo da Fé. Na introdução do primeiro volume da obra, Joseph Ratzinger
já coloca que em sua obra defenderá que há muito mais sentido em defender essa
posição do que tentar fazer constructos artificiais em bases muito pouco sólidas para
chegar à conclusão de quem, na verdade, teria sido Jesus.
Para escrever sua obra, ele já parte do pressuposto de que para se alcançar a
verdadeira identidade de quem é Jesus, os evangelhos são uma fonte segura a qual se
deve recorrer. Isso não quer dizer que ele ignore aquilo que o Concílio Vaticano II e a
exegese moderna colocam a respeito dos gêneros literários, da intenção do autor, do
contexto das comunidades em que foram escritos e mesmo do próprio falar do texto no
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contexto vivo. Ele acolhe tudo isso e em toda sua obra tenta representar o Jesus dos
Evangelhos com o Jesus verdadeiro, isto é, aquele autenticamente histórico. Diz
Ratzinger: “Estou convencido (...) que esta figura é mais lógica e historicamente
considerada mais compreensível do que as reconstruções com as quais fomos
confrontados nas últimas décadas”516.
De todo modo, a Igreja crê na Palavra de Deus (Cristo) como uma Pessoa viva e
não como um livro. E também por isso, cada texto inspirado não pode estar restrito
somente ao seu sentido literal, mas possui também o sentido espiritual517 que, por sua
vez, divide-se em alegórico (significação dos acontecimentos em Cristo), moral (agir do
cristão) e anagógico (significação eterna dos acontecimentos).
Toda a Escritura possui uma unidade entrelaçada pelo Antigo e o Novo
Testamento518. À luz dos acontecimentos pascais, a Igreja lê os textos inspirados,
considerando que é assim que eles atingem seu pleno e verdadeiro significado519.

515
Esse ensinamento foi rechaçado pela bula Silabo de Pio IX no ano de 1864 (cf. DH 2907), fato
reafirmado pelo Concílio Vaticano I na Constituição Dei Filius (cf. DH 3034) no ano de 1870, e que foi
seguido por outros papas que condenavam os erros do modernismo.
516
BENTO XVI. Jesus de Nazaré: Do Batismo no Jordão à Transfiguração. São Paulo: Planeta, 2007, p.
17.
517
CEC, 115-119.
518
CEC, 128.
519
CEC, 129.
190

A Revelação baseia-se, portanto, nestes dois alicerces: Escrituras e Tradição. E


auxiliada pelo Magistério, a Igreja lê os textos inspirados, buscando respostas para os
fiéis de todos os tempos e lugares, para salvaguardar isento de qualquer manipulação a
mensagem salvífica de Jesus.

5.1.10 - Revelação Pública e revelações particulares

Uma última distinção que é necessária fazer se refere às revelações particulares. Já


foi dito que a Revelação se encerrou com a morte do último apóstolo. Contudo, na
história da Igreja, em muitas ocasiões pessoas de virtude que possuem uma vida santa
dizem ter tido visões ou ouvido mensagens contendo revelações a respeito de
acontecimentos ou com algum conteúdo específico520.
Nesses casos, é necessário um longo processo de investigação521 e discernimento
que possibilitem a aprovação eclesiástica. De todo modo, a Igreja não obriga ninguém a
crer no conteúdo dessas revelações que para serem dignas de crédito, não podem estar
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em contradição com a Revelação em si.


O Catecismo reconhece a existência destas revelações ditas “privadas”522 ao longo
dos séculos e também que algumas delas foram reconhecidas pela Igreja. Apesar disso,
afirma que elas não são parte integrante do depósito da fé, isto é, um fiel pode se achar
no direito de não acreditar em uma revelação privada523.
Elas são reconhecidas pela autoridade eclesiástica, o que também não quer dizer
que elas melhorem ou completem algum aspecto da revelação definitiva deixada por
Cristo e pelos apóstolos. Entretanto, elas podem ajudar os fiéis a viverem com mais
plenitude em determinada época histórica.
Sempre em consonância com o Magistério da Igreja, o Catecismo crê que o senso
dos fiéis524 terá a capacidade de discernir e, depois disso, de acolher aquilo que nessas

520
A Igreja usa de muita cautela frente a estas “mensagens”. Muitas das pessoas envolvidas foram
investigadas durante décadas. Nem sempre a Igreja profere alguma palavra sobre o acontecido.
521
Nesse processo que acontece no Vaticano, a Igreja consulta especialista de diversas áreas da ciência
para se certificar de que não se está diante de uma fraude.
522
CEC, 67.
523
A revelação privada nunca pode contradizer a Revelação feita por Cristo. Diz o Catecismo: “A fé
cristã não pode aceitar ‘revelações’ que pretendam ultrapassar ou corrigir a Revelação da qual Cristo é a
perfeição. Este é o caso de certas religiões não-cristãs e também de certas seitas recentes que se
fundamentam em tais ‘revelações’” (CEC, 67).
524
CEC, 93.
191

revelações estiver de acordo com a vontade de Cristo e que constitui um apelo autêntico
dos santos à Igreja525.

5.2 - Os Concílios cristológicos

Os principais concílios da História da Igreja terão seu enfoque específico em Jesus


Cristo. Destacam-se Nicéia (325), Éfeso (431), Calcedônia (451) e o Segundo de
Constantinopla (553). Esses concílios surgirão como respostas a uma série de heresias
que se disseminaram na Igreja Antiga pelo fato de não haver uma clareza teológica que
proporcionasse uma exatidão de termos para designar o que e quem era, de fato, Jesus
Cristo, o Verbo de Deus526.
Derivado disso, muitos teólogos criaram hipóteses que acabaram se convertendo
em heresia527, isto é, não expressavam a realidade a respeito da pessoa de Jesus, mas se
apegavam a passagens específicas das Escrituras em detrimento de outras que poderiam
expressar corretamente a verdade dos fatos528. Faziam, portanto, uma escolha, termo
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que se encontra na origem etimológica da palavra ‘heresia’.


Apolinário de Laodiceia, por exemplo, foi um herege que afirmava que Cristo
teria assumido um corpo humano529, o que é diferente de dizer que ele se fez homem,
como está no Evangelho de São João530. Por essa elaboração, ele afirma que Deus
atuaria como a alma desse corpo humano. Uma espécie de “marionete”. Ora, se Jesus
não se fez homem igual aos homens, então estes não podem se fazer divino, pois aquilo
que não foi assumido não foi redimido. Essa heresia ficou conhecida como
apolinarismo531.
Muito embora o fato de Jesus ser Deus não teve influências psicológicas no
homem Jesus. Ele tinha alma humana e nasceu também na ignorância, salvo aquilo que
o Pai considerou por bem que ele soubesse, pois seria importante para sua missão. A

525
CEC, 67.
526
SESBOÜÉ, Bernard. O Deus da salvação (séculos I-VIII). São Paulo: Loyola, 2002, p. 177.
527
CEC, 465.
528
Segundo o dicionário LEXICONN “Do grego háiresis (escolha, em seu significado originário, a
heresia é a acentuação de um aspecto particular da verdade em detrimento do conjunto orgânico e do
vínculo com as demais verdades. Em âmbito católico, é a negação não só do fato (materialmente) mas
também livre, pertinaz e consciente (formalmente) de uma ou mais verdades de fé ensinadas pela Igreja”
(OCCHIPONTI, G. Heresia., p. 334).
529
BARTMANN, Bernardo. Teologia Dogmática. A Redenção – A Graça – A Igreja., Vol II. São Paulo:
Paulinas, 1962, p. 40.
530
Jo 1,14.
531
BETTENCOURT, Estevão. As Heresias Cristológicas e trinitárias. Disponível em:
<http://www.clerus.org/clerus/dati/2009-01/02-13/As_Heresias_Cristologicas_e_Trinitarias.html>.
192

Carta aos Hebreus é que confirma este fato ao dizer que Jesus era semelhante a nós em
tudo, exceto no pecado532.
No entanto, como está no Catecismo533, as primeiras heresias não negavam a
divindade de Jesus, mas sua humanidade. Se os apóstolos tiveram certeza de que ele era
homem, as gerações seguintes passaram a considerar que sua humanidade seria apenas
uma aparência, dando origem ao docetismo534 (doceo = parecer) gnóstico535.
É num período posterior que surgem as heresias que negavam a divindade de
Jesus. Uma das primeiras é o adocionismo536 de Paulo de Samósata. Segundo ele, Jesus
seria um homem normal que no batismo foi adotado como filho de Deus e assim
permaneceu durante sua vida pública. Na hora da cruz, no entanto, Deus teria
abandonado Jesus e por isso o mesmo teria exclamado “Meu Deus, meu Deus, por que
me abandonastes?”

5.2.1 - O Concílio de Nicéia


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Por fim, veio o arianismo por causa de seu propagador Ário. Ele considerava que
o Verbo era divino537. No entanto, ele afirma que houve um tempo em que Deus não era
Pai e num determinado momento o Pai teria criado o Verbo538 numa condição divina539.
O Catecismo enuncia este fato quando faz o relato de que no Primeiro Concílio
Ecumênico de Niceia540, ocorrido no ano de 325, os Padres Conciliares confessaram em
seu Credo541 que o Filho de Deus é gerado, não criado, sendo consubstancial
(homousios) ao Pai. Dessa forma, ficaram condenados os ensinamentos de Ário que
consideravam que o Filho de Deus teria surgido do nada e que ainda seria portador de
uma substância que diferia da de Deus Pai542.
Ário foi presbítero em uma igreja próxima ao porto de Alexandria. Ele começou a
pregar suas ideias e a difundi-las criando pequenos refrãos musicais que faziam as
pessoas guardarem mais facilmente aquilo que ele apregoava. Usava como citação o

532
Hb 4,15.
533
CEC, 465.
534
AMATO, Angelo. Gesú il Signore, p. 220
535
SESBOÜÉ, Bernard. O Deus da salvação (séculos I-VIII), p. 40.
536
AMATO, Angelo. Gesú il Signore , pp. 218-219.
537
SESBOÜÉ, Bernard. O Deus da salvação (séculos I-VIII), pp. 206-211.
538
BARTMANN, Bernardo. Teologia Dogmática, p. 42.
539
AMATO, Angelo. Gesú il Signore, pp. 229-231.
540
DUPUIS, J. Introdução à cristologia, p. 108.
541
DH, 125.
542
CEC, 465.
193

trecho de Provérbios que diz “Deus me criou, primícias de sua obra/ de seus feitos mais
antigos”543.
Essa conclusão equivocada surge porque Ário usava o método dedutivo e não
conseguia entender como Deus poderia ser Um e Dois ao mesmo tempo544. A partir
dessa incompreensão, ele busca citações nas Escrituras que embasem sua lógica
racional-filosófica.
O trecho abaixo, compilado por Hilário de Poitiers traz em resumo a síntese do
pensamento de Ário.

Conhecemos um só Deus, só incriado (ingêntio), só eterno, só sem princípio, só


verdadeiro, só imortal, só inteiramente bom, só todo-poderoso. Esse Deus gerou um Filho
unigênito antes de todos os séculos, por meio do qual criou os séculos e todas as coisas;
nascido não em aparência, mas em verdade; obediente à sua vontade, imutável e
inalterável; criatura perfeita de Deus, mas não uma a mais das criaturas; feitura perfeita,
mas não como as outras feituras... É, como dissemos, criado pela vontade do Pai antes
dos tempos e dos séculos, recebe do Pai a vida e o ser, e o Pai o glorifica ao fazê-lo
partícipe de seu ser... O Filho saiu do Pai fora do tempo, criado e construído antes dos
séculos; não existia antes de nascer, senão que, nascido fora do tempo, antes de todas as
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coisas, ele recebe o ser só do Pai... Mas não é eterno, nem coeterno nem incriado
juntamente com o Pai545.

O bispo de Alexandria, Alexandre, promoveu alguns debates 546 e Ário não


conseguiu convencer os presentes de suas teses. Depois de um Sínodo, ele é expulso da
cidade e se refugia em Nicomédia por volta de 319, junto ao bispo do local. Essa cidade
será futuramente a residência do imperador por um tempo.
O chefe supremo do Império Romano nessa época era Constantino que devido à
crise que as teses de Ário estavam gerando na Igreja, tentou diplomaticamente intervir
na situação547, mas não teve êxito. Ele então convoca o Concílio de Nicéia ou Concílio
dos 318 Padres para tentar solucionar a questão.
Alguns trechos bíblicos poderiam trazer especial dificuldade para a heresia de
Ário como é o caso do evangelista João em que Jesus diz: “Eu e o Pai somos um”548.
Mas ele considera que é uma unidade na vontade. No entanto, ele se apega a outros que
hipoteticamente o ajudariam como na carta de São Paulo a Timóteo, em que o apóstolo

543
Prov 8, 22.
544
RAUSCH, Thomas P. Quem é Jesus?Uma introdução a Cristologia. Aparecida: Santuário, 2006, pp.
250-251.
545
LADARIA, Luis F. Deus vivo e verdadeiro. São Paulo: Edições Loyola, 2005, p. 184.
546
SESBOÜÉ, Bernard. O Deus da salvação (séculos I-VIII), p. 207.
547
Ibid, p. 212.
548
Jo 10,30.
194

fala que há um só Deus e um só mediador entre Deus e os homens549. Também no


evangelho de João, Jesus fala que o Pai é o Único Deus e o Cristo é o Enviado550, dando
a impressão de que Ele, Jesus, não é Deus. Ou ainda na carta aos Colossenses em que
São Paulo coloca Jesus como o “Primogênito de toda criatura”551. Algumas respostas
serão dadas posteriormente a esses versículos, pontuando que as Escrituras estão se
referindo ao Filho, mas enquanto Verbo encarnado.
Alguns autores não consideram o Concílio de Niceia como Cristológico, mas
Trinitário. No entanto, o debate principal gira em torno, principalmente, da segunda
Pessoa da Santíssima Trindade, portanto de Jesus Cristo. Contudo, negando a divindade
do Filho, Ário acaba por negar também a divindade da terceira Pessoa da Santíssima
Trindade, o Espírito Santo.
O Concílio de Niceia sofre as acusações de ter sofrido influências helênicas e
distorcer a Revelação divina. Isso por causa do uso do termo homousios, traduzido
como ‘consubstancial’. Ora, mas o uso desse termo é o que justamente faz com que essa
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concepção de quem é a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade não seja aceita pelos
helenistas. Apenas usa a linguagem grega para refutar os argumentos dos helenizantes,
que não aceitavam o fato de que Deus poderia ser um e três ao mesmo tempo552.
Quando o imperador Constantino abre o Concílio, ele dá liberdade aos Padres
para que discutam livremente as ideias e a paz retornasse ao Império através de um
acordo de paz entre os bispos553. Foi Ósio de Córdoba quem no findar do Concílio,
sugeriu com apoio dos Padres Conciliares e do Imperador o acréscimo do termo
homousíos no Credo que já havia sido aprovado e que fora proposto por Eusébio de
Cesareia554.
O Concílio, por fim, condenou Ário dizendo que “Antes de tudo, pois, foi
examinado o que diz respeito à impiedade e ao delito de Ário e dos seus seguidores, ... e
unanimemente decidimos anatematizar a sua ímpia doutrina”555. O Concílio se refere às

549
1Tm 2, 4-5.
550
Jo 17,3.
551
1,15.
552
“Na realidade, o que ocorreu não foi uma helenização do cristianismo, mas uma cristianização do
helenismo. O processo de inculturação do cristianismo numa cultura determinada implica sempre e
necessariamente um movimento de cristianização dessa cultura, em que os conceitos adquirem algo mais
no seu significado, à medida que são usados para enunciar o mistério cristão” (DUPUIS, J. Introdução à
cristologia, p. 112).
553
SESBOÜÉ, Bernard. O Deus da salvação (séculos I-VIII), p. 213.
554
Ibid., pp. 214-215.
555
DH, 130.
195

ditas expressões blasfemas em que Ário afirmava que o Filho de Deus teria vindo do
nada e que teria havido um tempo em que ele não era.
Outra condenação se remeteu ao fato de Ário dizer que Jesus “por sua própria
vontade era capaz do mal e da virtude, e ao chamá-lo de criatura e produto; tudo isso, o
santo Sínodo anatematizou, não suportando sequer ouvir a ímpia doutrina ou desvario,
nem as palavras blasfemas”556.

5.2.2 - As consequências de Nicéia

Apesar dos bispos terem assinado o acordo feito no Concílio, alguns deles se
arrependeram e quiseram tirar seu apoio557 ao termo grego a ponto de o Imperador se
arrepender de ter aceitado o acréscimo de tal termo. Santo Atanásio558 surge como uma
figura importante a defender a manutenção do homousios559.
Tão grande foi a reviravolta que na iminência da morte de Constantino, Ário havia
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sido reabilitado e Atanásio estava exilado. O desenrolar da história leva Atanásio a


recorrer ao papa560.
Com a morte de Constantino, seus três filhos assumem o império. Um deles,
Constâncio, tinha tendências arianas e além de tudo, estava mais preocupado com as
questões políticas do que com as teológicas. Em várias ocasiões, principalmente, depois
da morte de seus dois irmãos, ele convoca Concílios para condenar as ideias de Santo
Atanásio, mesmo após a morte de Ário.
Serão os padres capadócios Gregório Nazianzeno, Gregório de Nissa e São
Basílio a ter um papel importante no esmiuçar da fé de Niceia561, principalmente no que
se refere à hypóstasis (Pessoa) até chegar ao Concílio de Constantinopla em 381 que
definirá a divindade do Espírito Santo562.
No período entre os dois Concílios, Constâncio quis impor o Arianismo a todo
império. Com sua morte, sobe ao trono Juliano, o apóstata, que persegue tanto arianos

556
Ibid.
557
SESBOÜÉ, Bernard. O Deus da salvação (séculos I-VIII), pp. 217-218.
558
“Atanásio nasceu em Alexandria em 298 ou 299. Com a morte do bispo Alexandre, é eleito arcebispo
de Alexandria, embora não tenha ainda completado os trinta anos canônicos para tanto. Essa
irregularidade lhe causará muitos aborrecimentos. Sua longa vida de bispo será extremamente
movimentada e pontuada por cinco exílios sucessivos, em razão das variações da política imperial” (Ibid.,
p. 220).
559
Ibid., pp. 219-220.
560
Ibid., pp. 224-225.
561
RAUSCH, Thomas P. Quem é Jesus?, p. 254.
562
SESBOÜÉ, Bernard. O Deus da salvação (séculos I-VIII), pp. 240-242.
196

quanto nicenos. Estes, no entanto, tiveram tempo de se articular num período de trégua.
Com a morte de Juliano, Valeriano assume o império no Ocidente e dá liberdade aos
nicenos. No Oriente, no entanto, assume Valente, um ariano. Este morre logo e
Valeriano assume todo império e convoca o Concílio de Constantinopla563.

5.2.3 - Concílios de Éfeso e Calcedônia

No século V, as grandes heresias estiveram mais centradas na Pessoa do Filho em


particular, isso porque não ficou claro como era a humanidade de Cristo dentro do
esquema trinitário.
Nestório564, patriarca de Constantinopla, começou a ficar indignado com as
pessoas que chamavam Maria, mãe de Deus (theotókos em grego e deípara em
latim)565. Segundo ele, Maria teria que ser chamada mãe de Cristo, pois ela deu à luz à
natureza humana566. No entanto, o que se definirá no Concílio de Éfeso é que Jesus
possui duas naturezas unidas em uma única pessoa divina.
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O Catecismo resgata o fato de que a heresia nestoriana enxergava em Cristo uma


pessoa humana unida à pessoa divina do Filho de Deus. Fez frente a isso São Cirilo de
Alexandria, que foi uma voz importante no III Concílio Ecumênico que aconteceu na
cidade de Éfeso no ano de 431567. Os Padres conciliares afirmaram, na ocasião, que o
Verbo, ao unir a si em sua pessoa uma carne animada por uma alma racional, tornou-se
homem568. Assim, se concluiu que o sujeito da humanidade de Cristo é a pessoa divina
do Filho de Deus, que assumiu a condição humana como sua desde sua concepção a
partir da Virgem Maria. Disso, abstraiu-se que ela é verdadeiramente Mãe de Deus
devido a concepção humana do Filho de Deus em seu ventre569.

563
“O Concílio de Constantinopla I foi de pacificação. Pôs fim aos cinquenta anos de conflito que
assolaram o Oriente cristão após o Concílio de Niceia. Recolheu a herança deste e confirmou sua
definição ao retomar a afirmação do consubstancial a propósito do Filho. Situou seu próprio ensinamento
na esteira de seu glorioso predecessor, afirmando a propósito do Espírito, com outros termos decerto, a
mesma divindade que a do Pai e a do Filho. Não foi, portanto, sem razão – além das numerosas
contaminações que se produzirão na tradição manuscrita entre as duas confissões de fé – que seu Símbolo
recebeu a designação de Niceia-Constantinopla” (Ibid., p. 242).
564
CEC, 466.
565
DUPUIS, J. Introdução à cristologia, p. 120.
566
RAUSCH, Thomas P. Quem é Jesus?, p. 255.
567
SESBOÜÉ, Bernard. O Deus da salvação (séculos I-VIII), pp. 316-317.
568
Ibid., pp. 328-329.
569
CEC, 466.
197

A má compreensão570 de como essas duas naturezas se unem em uma única


pessoa foi a grande geradora tanto da heresia nestoriana quanto da heresia
monofisista571. A fé da Igreja definirá que é pela união hipostática que acontece a
perfeita união entre as duas naturezas572.
Duas grandes escolas teológicas e suas diferentes acentuações estão por trás de
toda a discussão: as escolas de Alexandria e a de Antioquia. A primeira acentuava mais
a divindade de Jesus, enquanto a segunda acentuava mais a humanidade. Nestório era
formado na escola de Antioquia e por isso considerava absurdo chamar Maria, mãe de
Deus.
No Concílio, Cirilo de Alexandria será o grande defensor da maternidade divina
de Maria, título que encerra em si as causas e efeitos da salvação 573. De acordo com sua
tese, o filho que nasceu de Maria necessariamente tem que ser uma Pessoa divina que
assume também a natureza humana, corpo e alma, para que o ser humano possa ser
salvo de fato.
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Em uma das cartas de Cirilo a Nestório, ele afirma que de Maria não nasceu um
homem qualquer e, posteriormente, sobre este homem desceria o Verbo. O que na
realidade aconteceu foi que o Verbo, estando unido desde o útero materno, assumiu o
nascimento carnal, apropriando-se o nascimento de sua própria carne. Cirilo afirma
ainda nessa carta que desde o começo, os Santos Padres chamaram a Virgem Maria de
Deípara, esclarecendo que isso não se deve ao fato de que ela teria gerado a natureza
divina do Verbo, “mas no sentido de que, por ter recebido dela o santo corpo dotado de
alma racional ao qual também estava unido segundo a hipóstase, o Verbo se diz nascido
segundo a carne”574.
Esse é um equilíbrio que precisa ser mantido, pois, caso contrário, como
aconteceria na controvérsia, que também, levou ao Concílio de Calcedônia de 451,
pode-se cair no outro extremo, em que a natureza humana será anulada pela natureza
divina de tal forma que segundo os monofisitas haveria apenas uma natureza.
A heresia monofisita foi derrotada pela fé expressa no chamado Tomo a
Flaviano575. Este foi lido durante o Concílio de Calcedônia576 causando nos Padres

570
RAUSCH, Thomas P. Quem é Jesus?, p. 258.
571
BARTMANN, Bernardo. Teologia Dogmática, p. 43.
572
AMATO, Angelo. Gesú il Signore., p. 293.
573
DUPUIS, J. Introdução à cristologia, p. 129.
574
DH, 251.
575
AMATO, Angelo. Gesú il Signore, pp. 287-289.
198

conciliares um espanto pela clareza com que definia a fé na Pessoa Divina de Cristo e
suas duas naturezas577. Nela o ensinamento que o Concílio assumiu como sendo a
verdadeira fé católica:

Na sequência dos santos Padres, ensinamos unanimemente que se confesse um só e


mesmo Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, igualmente perfeito na divindade e perfeito na
humanidade, sendo o mesmo verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem, composto
duma alma racional e dum corpo, consubstancial ao Pai pela sua divindade,
consubstancial a nós pela sua humanidade, semelhante a nós em tudo, menos no pecado:
gerado do Pai antes de todos os séculos segundo a divindade, e nestes últimos dias, por
nós e pela nossa salvação, nascido da Virgem Mãe de Deus segundo a humanidade.
Um só e mesmo Cristo, Senhor, Filho Único, que devemos reconhecer em duas naturezas,
sem confusão, sem mudança, sem divisão, sem separação. A diferença das naturezas não
é abolida pela sua união; antes, as propriedades de cada uma são salvaguardadas e
reunidas numa só pessoa e numa só hipóstase578.

5.2.4 - O Segundo Concílio de Constantinopla

Apesar da clareza com que a fé é exposta, haverá distorções que precisaram ser
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esclarecidas no II Concílio de Constantinopla579 que aconteceu no ano de 553580. Logo


após o fim do Concílio de Calcedônia, alguns teólogos fizeram da natureza humana de
Cristo, aquilo que o Catecismo chama de “espécie de sujeito pessoal”581. Apesar das
controvérsias políticas e dos interesses pessoais que circundaram esse Concílio,
principalmente no que diz respeito à tentativa do imperador Justiniano de atrair para si
os monofisitas582, o papa Virgílio aceita o Concílio583 tendo por consequência a
afirmação de que em Jesus há apenas uma Pessoa e essa Pessoa é uma da Santíssima
Trindade584.
Em outras palavras, o que os hereges estavam afirmando é que quando Jesus
sofria, quem sofria era o humano apenas. Ora, por certo, que a natureza divina sendo
impassível não sofreu, mas a Pessoa divina sofreu. Assim, o que morreu na cruz foi a
natureza humana de uma Pessoa divina. Não há como separar.

576
BARTMANN, Bernardo. Teologia Dogmática, p. 70.
577
DUPUIS, J. Introdução à cristologia, p. 128.
578
CEC, 467.
579
Formulações contidas em DH, 421-438.
580
DUPUIS, J. Introdução à cristologia, pp. 133-134.
581
CEC, 468.
582
AMATO, Angelo. Gesú il Signore, p. 311.
583
SESBOÜÉ, Bernard. O Deus da salvação (séculos I-VIII), p. 358.
584
“Um, de fato, é Deus Pai, de quem tudo, um o Senhor Jesus Cristo, por quem tudo, um o Espírito
Santo, em quem tudo” (DH, 421).
199

Assim, “aquele que foi crucificado na carne, Nosso Senhor Jesus Cristo, é
verdadeiro Deus, Senhor da glória e Um da Santíssima Trindade”585, conforme as
palavras que estão no Catecismo e que foram retiradas do Segundo Concílio de
Constantinopla.
A dificuldade que aqui se encontra é que nem todos reconheceram no escritores
condenados os erros que foram imputados aos seus escritos e a dificuldade que se tem
hoje em dia é que não se tem acesso direto aos seus escritos, mas somente através de
citações de seus adversários, pois sempre que alguém era condenado, seus escritos eram
todos queimados.
Os autores condenados são: 1) Teodoro de Mopsuéstia († 428), sua pessoa e seus
escritos; 2) os escritos de Teodoreto de Ciro († 466) contra Cirilo e o Concílio de Éfeso;
3) a carta do bispo Ibas de Edessa († 457) ao bispo Mário de Ardashir em defesa de
Teodoro de Mopsuéstia e contra os anatematismos de Cirilo586.
Mesmo com as controvérsias, o Concílio foi sendo gradualmente aceito pelas
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Igrejas também do Ocidente. Assim o Concílio de 553 foi sendo reconhecido como
sendo Ecumênico e ficou conhecido como Constantinopla II587. Depois deste Concílio,
outras questões cristológicas foram discutidas, tanto na Escolástica quanto no contexto
da Reforma até o Concílio Vaticano II. Todavia, com o objetivo de pontuarmos apenas
os principais marcos da cristologia bíblica-eclesial, daremos um salto histórico dada a
brevidade deste capítulo.

5.3 - O Concílio Vaticano II e a Cristologia na América latina

Quando o Concílio Vaticano II foi convocado pela Papa João XXIII588, este tinha
por intenção pastoral transmitir a mensagem de salvação de Jesus Cristo para a
sociedade contemporânea em mudança589, com uma linguagem mais apropriada aos
tempos modernos. Queria com isso, aproximar a Igreja Católica de um mundo com
profundas transformações590.

585
CEC, 467.
586
AMATO, Angelo. Gesú il Signore, p. 318.
587
DUPUIS, J. Introdução à cristologia, p. 134.
588
Através da Constituição Apostólica Humanae Salutis de 25 de dezembro de 1961.
589
SOUZA, N. Uma análise da sociedade no caminho do Vaticano II. In.: Revista de Cultura Teológica,
n. 48, 2004, p. 19-29.
590
VATICANO II. Mensagens, discursos e documentos, pp. 11-18.
200

João XXIII identificou seu tempo com a insurgência de uma nova ordem mundial
em que a humanidade atingia um patamar nunca antes experimentado no que se refere
aos avanços tecnológicos591. Contudo, situa-se em meio a vários dramas éticos resultado
de seu afastamento de Deus.
O Papa viu nisso não uma encruzilhada da qual não há saída, mas um leque de
oportunidades para uma ação eclesial efetiva, da mesma forma como sempre se deu nas
grandes crises históricas enfrentadas pela Igreja.
Na Constituição Apostólica Humanae Salutis, através da qual convocou o
Concílio Vaticano II, João XXIII revela sua perspectiva otimista de desencadear nos
mais diversos âmbitos eclesiais uma renovação que leve a Igreja a se fortalecer e a se
unir em meio às profundas transformações vividas pela sociedade.
Ele considerava essas mudanças como uma verdadeira surpresa em uma
humanidade nova. Queria com isso salientar que também a Igreja deveria experimentar
com o Concílio uma mudança, tornando-se mais perfeita e mais unida, de forma a
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tornar a doutrina que já é rica um tanto mais fecunda a fim de que ela brilhe com uma
santidade mais intensa e assim estar preparada para os grandes combates da fé que são
travados na contemporaneidade.
Essa preocupação com a Igreja deriva do fato de que era necessário, segundo o
Papa, refletir ao mundo a imagem de Jesus Cristo de tal forma que a humanidade se
sinta amada e protegida, assim como a esposa é amada e protegida pelo esposo.
O Concílio teve início em 11 de outubro de 1962 e encerrou suas atividades em 8
de dezembro de 1965. Ele foi interrompido pelo falecimento do Papa João XXIII (em
1963) que foi substituído pelo Papa Paulo VI. Este teve a difícil tarefa de decidir se iria
até o fim com o Concílio ou se iria suspendê-lo. Por fim, em meio a tantas controvérsias
e as divisões que surgiram entre os Padres Conciliares, o Papa Paulo VI decide por
levá-lo adiante.
O clima entre os bispos de todo mundo e mesmo entre os teólogos católicos era de
muita esperança. Algumas pequenas reformas já estavam sendo implementadas aos
poucos pelos Papas que precederam Paulo VI como é o caso da reforma litúrgica
realizada por Pio XII e João XXIII, bem como uma certa liberdade de pensamento nos
ambientes acadêmicos católicos como é o caso da utilização do método histórico-crítico
para ler os textos das Sagradas Escrituras. Além disso, começava a ter espaço dentro da

591
ZANON, Darlei. Para ler o Concílio Vaticano II, p. 7.
201

Igreja Católica o movimento ecumênico que abriu pontes de diálogo com outras
denominações cristãs.
No Concílio, houve grupos592 que polarizaram as discussões. Dois se destacaram
de forma especial: um grupo mais conservador ligado à Cúria Romana e outro mais
reformador, integrado por cardeais europeus e bispos americanos. A consequência disso
no pós-Concílio é que se formaram duas hermenêuticas do Vaticano II: uma que faz
uma leitura em continuidade com a Tradição da Igreja e outra que enxerga no Concílio
uma ruptura com o passado593.
Desde o pontificado de João Paulo II e mais ainda no de Bento XVI, a linha que
foi assumida é a chamada hermenêutica da continuidade. É uma forma de enxergar o
Concílio com base nos dezesseis textos que foram produzidos e que possuem um valor
desigual entre si. O conjunto dos textos exprime um magistério não infalível, mas
autêntico, em consonância com a autoridade da Igreja. Esses textos devem ser lidos
numa perspectiva de continuidade com os documentos que vieram antes e também os
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que vieram depois594, isto é, à luz da Tradição da Igreja595.


Já a outra posição tem sua expressão mais significativa na chamada “Escola de
Bolonha”596, para quem o Concílio inaugurou uma nova época. Para os autores dessa
Escola, o Concílio precisa ser lido como uma ruptura com o passado, algo totalmente
novo que trouxe à luz várias polêmicas e discussões, como um verdadeiro evento
histórico que causou mudanças profundas na forma da Igreja enxergar a si mesma e o
mundo597.
O atual Pontífice, o Papa Francisco apresentou e promulgou um Ano Santo
Extraordinário da Misericórdia, a ser aberto em 8 de Dezembro de 2015, ou seja na
celebração dos cinquenta anos de encerramento do Concílio Vaticano II. Em sua bula
de proclamação o Papa diz:

Escolhi a data de 8 de Dezembro, porque é cheia de significado na história recente da


Igreja. Com efeito, abrirei a Porta Santa no cinquentenário da conclusão do Concílio
Ecumênico Vaticano II. A Igreja sente a necessidade de manter vivo aquele

592
FISICHELLA, Rino. Cristologia e Cristologias. In.: LEXICON. Dicionário Teológico Enciclopédico.
São Paulo: Loyola, 2003, p. 782.
593
MATTEI, Roberto de. Apologia da Tradição. Turim: Ambientes & Costumes Editora, 2013, p. 127.
594
Ibid., p. 128.
595
Id. O Concílio Vaticano II: Uma história nunca escrita. Porto: Caminhos Romanos, 2012, p. 9.
596
A Principal obra que expressa essa posição é de Giuseppe Alberigo, chamada Storia del Concilio
Vaticano II.
597
Expressa bem essa visão o adágio “João XXIII, de um Papa de Transição”, converteu-se no Papa da
Igreja em transição. (MARINS, José F. Vaticano II, p. 56).
202

acontecimento. Começava então, para ela, um percurso novo da sua história. Os Padres,
reunidos no Concílio, tinham sentido forte, como um verdadeiro sopro do Espírito, a
exigência de falar de Deus aos homens do seu tempo de modo mais compreensível.
Derrubadas as muralhas que, por demasiado tempo, tinham encerrado a Igreja numa
cidadela privilegiada, chegara o tempo de anunciar o Evangelho de maneira nova. Uma
nova etapa na evangelização de sempre. Um novo compromisso para todos os cristãos de
testemunharem, com mais entusiasmo e convicção, a sua fé. A Igreja sentia a
responsabilidade de ser, no mundo, o sinal vivo do amor do Pai598.

De fato o Concílio Vaticano II tem suas peculiaridades e suas características que


lhe são próprias. A começar pela forma como foi convocado. Além da ausência
programática de um objetivo histórico específico, e também a rejeição dos projetos e
formulações apresentadas e elaboradas pelos órgãos preparatórios, destaca-se também, a
intensa cobertura dada pela imprensa, sendo o Concílio acompanhado pela opinião
pública com bastante apreço599.
A América Latina, de forma geral, aderiu a essa segunda hermenêutica do
Concílio600. Embora, ele tenha sido considerado um evento europeu levando-se em
conta a ínfima participação dos outros continentes em sua preparação, ele alcançou sua
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dinamicidade longe das terras europeias segundo alguns autores.


Na América Latina, um evento anterior ao Concílio foi fundamental para sua
aplicação. Em 1955, aconteceu a Primeira Conferência Geral do Episcopado Latino-
Americano, convocada por Pio XII no Rio de Janeiro601. Dela, originou-se o CELAM
(Conselho Episcopal Latino-Americano), que serviu como instrumento de colegialidade
entre os bispos do continente.
Algo que chamou bastante atenção na América Latina e que mereceu muitas
atenções de teólogos do continente foi um trecho do discurso radiofônico de João XXIII
no dia 11 de setembro de 1962, um mês antes da abertura do Concílio. Em sua
mensagem o papa dizia: “Outro ponto luminoso: pensando nos países
subdesenvolvidos, a Igreja se apresenta e quer realmente ser a Igreja de todos, em
particular, a Igreja dos pobres”602.

598
Misericordiae Vultus, 4.
599
MATTEI, Roberto de. O Concilio Vaticano II, p. 10.
600
Ibid., p. 74.
601
Cf. CALIMAN, C. Do Rio de Janeiro (1955) a Aparecida (2007). O Itinerário profético da Igreja na
América Latina, 2007. Disponível em <www.cefep.org.br/noticias/mariana>. Acessado no dia 23 de
novembro de 2012.
602
VATICANO II. Mensagens, discursos e documentos, p. 23
203

Esse trecho mereceu menção de vários teólogos em especial do criador da


Teologia da Libertação, Gustavo Gutierrez603. Embora, a Igreja dos Pobres não tenha
sido colocada como temática central no Concílio604, na América Latina tornou-se o
epicentro de toda atividade eclesial, devido sobretudo aos apelos de vários cardeais e
dos papas João XXIII e Paulo VI em relação aos excluídos da sociedade.
O Padre José Marins, que acompanhou de perto os trabalhos do Concílio Vaticano
II, faz menção em uma de suas obras a um pronunciamento considerado emotivo e
lúcido do cardeal Lercaro a respeito dos pobres. Esse pronunciamento foi realizado no
final da primeira sessão do Concílio em 1962. Outro bispo, Himmer, um francês,
emendou que os pobres deveriam ocupar os primeiros lugares na Igreja. Já em outubro
de 1963, o bispo Gerlier lamentou o fato de que se estava dando pouco espaço aos
pobres no documento sobre a Igreja e se questionou a respeito da imagem de Jesus que
o Concílio iria transmitir: se seria do Todo Poderoso ou daquele que lavou os pés de
seus discípulos na última ceia605.
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A Cristologia latino-americana adotará este último rosto de Cristo, aquele em que


o Filho de Deus se faz pobre, excluído e abandonado assemelhando-se a situações de
milhões que vivem na miséria e na pobreza, que tem que se rebaixar todos os dias para
servirem aos poderosos deste mundo e que mesmo assim são oprimidos pelos que
detêm o poder.

5.3.1- A Cristologia no Magistério Eclesial Latino Americano

A partir da Segunda Assembleia Geral do Episcopado Latino Americano, em


Medellín, no ano de 1968, começou a ser desenhado neste continente uma nova forma
de fazer teologia, diferente do modelo manualístico europeu. A proposta defendida por
Gustavo Gutierrez e amplamente aceita pelo episcopado era de se partir não mais do
que já estava pronto e definido magisterialmente, mas da realidade das pessoas, das
bases onde elas estavam inseridas606.
Mudando o lugar teológico, mudou-se também a forma de se fazer teologia no
continente.

603
Na obra de ALBERIGO, Giuseppe; JOSSUA, Jean Pierre. La Reception de Vatican II.
604
MARINS, José F. Vaticano II, p. 64.
605
Ibid., p. 58-59.
606
Ibid., p. 75.
204

Foi uma aventura de toda a Igreja, uma aventura espiritual, teológica e pastoral plena de
entusiasmo, levada a cabo com participação, com verdadeira paixão, talvez como
nenhuma outra que se possa lembrar ao longo da história da Igreja. A Igreja Latino-
americana se tornou um fervedouro de ideias, de novas experiências, de renovação
pastoral e compromisso social, de reflexão teológica e uma nova experiência espiritual607.

As Igrejas Particulares do continente assumiram como missão não apenas se deter


nos textos do Concílio, mas relê-lo a partir de cada realidade própria, chegando até a
reinterpretá-los. Com isso, a busca de ‘libertação’ das situações de miséria e opressão a
qual estavam sujeitos grande parte da população latino-americana adquire um especial
relevo e a Igreja no continente enxerga nessa libertação sua missão primordial
norteadora de todos os planos de ação pastoral.
Essa atitude também foi reflexo da assinatura do Pacto das Catacumbas, assinada
no dia 16 de novembro de 1965 por bispos do mundo inteiro, sendo um bom número de
bispos latino-americanos e brasileiros.
O padre Marins esclarece que esse documento foi assinado depois da Missa
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realizada na Catacumba de Domitila e contém treze pontos, nos quais todos aqueles que
o assinaram se comprometiam em viver uma vida austera, na pobreza, repudiando todos
os símbolos e privilégios que tinham conotação de poder e assumiam o compromisso de
colocar os pobres no centro de seu ministério pastoral. Além disso, através desse pacto,
também se comprometiam em viver a colegialidade entre os bispos e com a
corresponsabilidade da Igreja como Povo de Deus, além da abertura ao mundo e da
prioridade na acolhida dos irmãos608.
As consequências dessa práxis levaram as Conferências de Medellín e de Puebla
em 1979 a centrarem seus esforços em projetar no rosto dos pobres do continente o
rosto do próprio Cristo.
Leonardo Boff, um dos impulsionadores da Teologia da Libertação na América
Latina, identifica na morte de Cristo na cruz o desejo de Deus em querer uma libertação
integral para o ser humano. O autor salienta que a história da salvação sempre foi uma
história de opressão nos mais diversos níveis, mas que a ação de Deus fez irromper a
libertação, de modo que os homens pudessem dar passos em direção a um reino de paz

607
VIGIL, José Maria. O Concílio Vaticano II e sua recepção na América Latina, REB, n. 66, 2007, p.
373.
608
MARINS, José F. Vaticano II, p. 72.
205

e justiça. A figura de Jesus Cristo aparece como um libertador integral, que assume para
si a causa dos pobres e dá a eles o privilégio de serem os primeiros no Reino de Deus.
Boff diz ainda que a forma de Cristo assumir a morte faz transparecer sua
perspectiva de libertação integral do ser humano e considera que a temática dos pobres
não pode ser visto apenas como um tema entre tantos outros que existem no evangelho,
senão como um elemento substancial sem o qual não é possível entendê-lo. Por isso
mesmo, a Igreja deve ser instrumento e também sinal da libertação de Jesus Cristo ao
longo da história. O lugar teológico da Igreja é em meio aos pobres, ponto de partida
para se estabelecer as demais relações dela com a sociedade609.
É bastante acentuada a importância que os teólogos da libertação e o episcopado
latino-americano deram a um trecho da Constituição Dogmática Lumen Gentium, que
trata da Igreja610, em que os Padres Conciliares fazem referência aos que sofrem. “[A
Igreja] reconhece nos pobres e nos desvalidos a imagem de seu fundador, pobre e
sofredor, empenha-se em combater a pobreza e se coloca a serviço dos pobres, como a
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serviço de Cristo”611.
A Conferência de Medellín não traz em si uma cristologia específica, mas recolhe
dos conhecimentos já existentes e a aplica à realidade social latino americana 612. Um
dos exemplos desta prática pode ser vista na leitura que Ivanise Bombonatto faz da
análise de John Sobrino sobre a cristologia latino-americana.
A autora diz que os bispos reunidos na Conferência de Medellín confessam tanto
a divindade quanto a humanidade de Cristo, em comunhão com o que a Igreja diz, mas
introduz o princípio de parcialidade, ou seja, Jesus Cristo faz uma opção e sua opção é
pelos pobres. Ele não apenas faz essa opção como também abraça a pobreza. Segundo
Sobrino, este ponto constitui uma novidade dentro da Cristologia, já que
tradicionalmente se costumava dizer que a opção de Jesus estava radicada na
imparcialidade, no sentido de que Cristo seria universalmente homem, e por isso, salvou
e chamou todos os homens igualmente613.

609
Cf. BOFF, Leonardo. Novas Fronteiras da Igreja: o futuro de um povo a caminho. Campinas: Verus
Editora, 2004, pp.55-56.
610
ZANON, Darlei. Para ler o Concílio Vaticano II, p. 18.
611
LG, 8.
612
MARINS, José F. Vaticano II, p. 74.
613
BOMBONATTO, Ivanise. Seguimento de Jesus na Cristologia de Jon Sobrino. Dissertação de
Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2012, p. 42. Disponível em:
<http://www.sapientia.pucsp.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=15189>. Acesso em 1 de mar. De
2015.
206

No documento de Medellín também consta a perspectiva evolutiva da humanidade


como sendo ação do próprio Cristo que redimindo toda humanidade e o próprio homem
dá a este as condições de intervir no futuro através das conquistas realizadas pelo
amor614.
A Conferência de Medellín acaba por se centrar na figura do Pai enquanto que a
de Puebla dará mais atenção ao Filho dedicando parte do Capítulo 1 à explanação a
respeito de Jesus Cristo e sua obra libertadora.
A tentativa de um retorno às fontes da doutrina é clara em Puebla, para não correr
o risco de reduzi-lo apenas a sua humanidade. Por isso, essa Conferência fala da história
do Povo de Deus e da Encarnação do Verbo como momento de plenitude. Mas,
novamente associa sua missão à obra de libertação que centrada no pecado, por
consequência, busca aniquilar pela raiz o mal social, aquilo que será chamada
“libertação integral”.
“Jesus de Nazaré nasceu e viveu pobre no meio do seu povo de Israel,
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compadeceu-se das multidões e fez o bem a todos. Este povo, acabrunhado pelo pecado
e pela dor, esperava a libertação que ele lhes prometeu”615. Com essas palavras, os
bispos buscaram identificar o contexto histórico-social de Jesus com o contexto
histórico-social dos povos latino-americanos.
Esse rosto de Jesus o difere daquele apresentado muitas vezes pela própria liturgia
como o Deus Todo-Poderoso, distante e alheio às realidades sofridas do Povo de Deus.
Faz-se uma verdadeira reconstrução histórica tendo como base os marginalizados da
sociedade.
O Magistério eclesial Latino-Americano encontrará ampla abertura nesses
primeiros anos após o Concílio, conseguindo dessa forma empreender seu intento de
relê-lo a partir de sua própria realidade. No Brasil, de forma especial, com o aval da
CNBB, tanto as Diretrizes Gerais da ação Evangelizadora quanto as Campanhas da
Fraternidade focarão durante anos aspectos sofridos da realidade do povo brasileiro. A
Liturgia, as homilias, os encontros de formação promovidos pelos Regionais enfatizarão
com muita força essa necessidade de sanar as injustiças sociais a fim de buscar a
libertação integral.

614
CELAM. A Igreja na atual transformação da América Latina à luz do Concílio. Conclusões de
Medellín. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 42.
615
PUEBLA, p. 128
207

Um dos exemplos que se pode citar em termos de produção musical da Campanha


da Fraternidade e que recebeu grande incentivo para ser usada na Liturgia foi a letra de
uma das Campanhas da década de 80 em que Jesus aparece configurado com as mais
variadas classes de pessoas excluídas e marginalizadas da sociedade.

1. Seu nome é Jesus Cristo e passa fome/ e grita pela boca dos famintos,
e a gente quando vê passa adiante/ às vezes pra chegar depressa a igreja.
Seu nome é Jesus Cristo e está sem casa/ e dorme pelas beiras das calçadas.
E a gente quando vê aperta o passo/ e diz que ele dormiu embriagado.

ENTRE NÓS ESTÁ E NÃO O CONHECEMOS


ENTRE NÓS ESTÁ E NÓS O DESPREZAMOS (2X)
ENTRE NÓS ESTÁ E NÃO O CONHECEMOS
ENTRE NÓS ESTÁ E NÓS O DESPREZAMOS (2X)

2. Seu nome é Jesus Cristo e está doente/ e vive atrás das grades das cadeias,
e nós tão raramente vamos vê-lo/ sabemos que ele é um marginal.
Seu nome é Jesus Cristo e anda sedento/ por um mundo de Amor e de Justiça,
mas logo que contesta pela Paz/ a “ordem” o obriga a ser de guerra.
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3. Seu nome é Jesus Cristo e é difamado/ e vive nos imundos meretrícios,


mas muitos o expulsam das cidades/ com medo de estender a mão a ele.
Seu nome é Jesus Cristo, e é todo homem,/ que vive neste mundo ou quer viver,
pois pra Ele não existe mais fronteiras/ só quer fazer de todos nós irmãos.

Nesta linha ainda, o documento de Puebla coloca os pobres como destinatários


especiais da mensagem de Jesus Cristo de modo que existe entres eles e Cristo uma
especial configuração, especial cuidado e ternura.
Puebla utiliza o Jesus Histórico como metodologia de discernimento a respeito da
missão especial do Filho de Deus sobre a Terra, colocando o pobre como “sacramento
de Jesus” em duas dimensões fundamentais, como entende John Sobrino. São elas:
1) Chamam à conversão, pois sua própria realidade – como a de Jesus crucificado
– é a máxima interpelação do cristão e do ser humano, e, neste mundo, os pobres
exercem uma “profecia primária” pelo que eles são enquanto vítimas;
2) Oferecem realidades e valores como as que ofereceu Jesus, e, neste sentido, são
portadores de um evangelho, exercem uma “evangelização primária”616.
A IV Conferência Geral do Episcopado Latino Americano aconteceu em 1991 na
cidade Santo Domingo. Ressalte-se o fato de que na década de 80, portanto entre a
Conferência de Puebla e a de Santo Domingo, houve teólogos da Libertação que

616
BOMBONATTO, Ivanise. Seguimento de Jesus na Cristologia de Jon Sobrino, pp. 38-39.
208

exerceram grande influência das Conferências de Medellín e de Puebla foram


silenciados pela Congregação para Doutrina da Fé, entre eles, Leonardo Boff.
Com isso, o episcopado do continente procurou se voltar para uma dimensão mais
espiritual em Santo Domingo. Esta aparece em primeiro lugar, gerando uma mudança
na linha de reflexão que não mais parte da realidade do povo, mas parte dos dados
contidos na Teologia, para em seguida lançar luzes sobre a realidade do continente. Este
considerável avanço dá uma mudança de tom no documento que se preocupa
nitidamente com a evangelização da cultura. No entanto, esse aspecto é criticado
sumariamente por aqueles que consideram ter acontecido uma traição aos princípios de
Medellín e Puebla.
Segundo Bombonatto, a metodologia seguida em Santo Domingo gerou graves
repercussões de forma geral para a teologia que está subjacente ao documento oficial. A
reflexão cristológica foi também atingida. A Conferência se baseou na expressão
contida na Carta aos Hebreus “Jesus Cristo, ontem, hoje e sempre”617, que permeou e
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serviu como princípio interpretativo de todo o documento. Por isso mesmo, a crítica que
os que se apegaram a Medellín e Puebla fazem é que se deixou de lado o Jesus de
Nazaré, que se fez pobre entre os pobres, para colocar no lugar um Jesus Cristo abstrato
e intangível para o povo618.
A Nova Evangelização convocada pelo Papa João Paulo II ressoa com bastante
força no documento final de Santo Domingo. Os bispos encaram esse chamado como
um desafio diante do divórcio entre fé e vida que se dá no continente e que é causador
de tantas realidades de injustiças, desigualdades e violência.
Aparece ainda como fundamental a adesão a Jesus Cristo e sua Igreja, sem a qual
não será possível qualquer compromisso concreto com a retomada das energias perdidas
por tantos cristãos que passam a viver alheios a fé e sem compromissos efetivos com a
transformação da realidade.
O documento aponta a necessidade de uma renovação da linguagem para
conseguir inserir Jesus Cristo na nova cultura urbana e assim fazer com que o Verbo se
encarne também nas novas formas de pensamento, sem no entanto, descaracterizar a
mensagem cristã em sua essência.

617
Hb 13,8.
618
BOMBONATTO, Ivanise. Seguimento de Jesus na Cristologia de Jon Sobrino, p. 46.
209

A última Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano aconteceu em


Aparecida no ano de 2007. No período que antecedeu a conferência, John Sobrino,
teólogo com grande influência na cristologia latino-americana, recebeu uma advertência
por parte da Congregação para a Doutrina da Fé.
O Documento de Aparecida enfatizará Jesus como caminho, verdade e vida, o
encontro pessoal com Jesus e o papel de cada cristão batizado em ser discípulo-
missionário de Jesus Cristo.
Bombonatto identifica que o princípio cristológico de todo o Documento de
Aparecida é a definição que Jesus dá de si mesmo no Evangelho de João: “Eu sou o
Caminho, a Verdade e a Vida”619. Ele é o Verbo eterno que veio ao mundo para ensinar
a toda humanidade o caminho, para revelar a verdade e também para conceder a vida
em abundância a todos. Nessa linha, o Documento dá a Jesus o lugar central na História
da Salvação. É ele a fonte de vida para toda humanidade. O cristão, chamado a ser
discípulo missionário, identifica no Cristo o ponto de referência para sua conduta, sua
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vida e também para o futuro da Igreja, e assim, consegue iluminar suas relações com as
pessoas e com a sociedade620.
Nesse documento, a opção por Jesus é a opção fundamental capaz de
comprometer a própria liberdade do cristão. Mas essa escolha é a única capaz de dar ao
homem a realização verdadeira, porque é uma resposta ao amor, que amou primeiro
cada ser humano.
A partir dessa resposta, o discípulo é chamado a se configurar ao Mestre pelo
mandamento do amor. Jesus deve ser a chave de leitura dos acontecimentos
contemporâneos.
O Documento final de Aparecida exorta os cristãos para que na trilha do
seguimento de Jesus, possam aprender e praticar as bem-aventuranças do Reino, bem
como o estilo de vida do próprio Jesus, tendo presente seu amor e sua obediência filial
ao Pai. Nas relações com os seres humanos em geral, o cristão precisa ter compaixão
frente às diversas situações que ocasionam a dor humana e se fazer próximo dos pobres
e dos pequenos, como fazia Jesus que foi tão fiel a missão que lhe foi dada pelo Pai, que
chegou a doação de sua própria vida621.

619
Jo 14,6.
620
BOMBONATTO, Ivanise. Seguimento de Jesus na Cristologia de Jon Sobrino, p. 47.
621
DA, 139.
210

O discípulo missionário de Jesus deve nos dias atuais se aprofundar no


conhecimento de quem é Jesus, tendo como fonte segura os Evangelhos, a fim de imitá-
lo para poder discernir o que fazer em cada circunstância622. O encontro com Jesus
dignifica e plenifica a vida dos povos e por isso dá pleno sentido à existência humana,
atingindo todas as dimensões do cristão: pessoal, familiar, social e cultural.
A mudança de tom que acontece no Documento de Aparecida é que a busca de
Cristo impulsiona a pessoa na direção do próximo, sendo que mais acentuadamente em
Medellín e Puebla devia-se ir ao próximo para reconhecer nele o rosto de Cristo. Agora,
é Jesus o ponto de partida que faz a pessoa experimentar uma conversão e um encontro
pessoal com o Mestre para então seguir seus passos e imitar seu exemplo.

5.3.2 - A Cristologia da Libertação

A Cristologia da Libertação, que produziu muito material acadêmico, é


considerada por alguns o ápice de todo o despertar teologócio-pastoral pós Vaticano II e
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por outros uma quebra em relação à leitura que a Tradição da Igreja faz da Pessoa de
Jesus, que é o centro da fé. As raízes dessa mudança de foco tiveram origem a partir da
distinção realizada por R. Bultmann entre o Jesus Histórico e o Cristo da Fé623. Segundo
o teólogo alemão, não se pode sustentar cientificamente que o Jesus apresentado pelos
Evangelhos seja de fato a personagem histórica que andou pela Judéia e Galiléia no
século I.
Nessa linha, as Sagradas Escrituras e a Tradição da Igreja têm sua credibilidade
abalada, tornando supremo o critério científico624. Isso deixou a cristologia, que é o
núcleo da fé, esvaziada e sujeita a novas interpretações. A figura de Jesus passa a estar
apta a receber novos significados625.
Essa leitura, que foi feita pelo Cardeal Joseph Ratzinger no ano de 1984, período
em que ele era Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, acrescenta ainda a
importância que Bultmann teve no resgate do conceito “hermenêutica”.
Ratzinger salienta que na palavra ‘hermenêutica’ pode se expressar a ideia de que
uma compreensão real dos textos históricos não se dá por uma mera interpretação

622
Ibid.
623
RATZINGER, Joseph. Introdução ao Cristianismo: Preleções sobre o Símbolo Apostólico. São Paulo:
Loyola, 2005, pp. 159-161.
624
Cf. BAUCKHAM, Richard. Jesus e as testemunhas oculares: Os Evangelhos como testemunhos de
testemunhas oculares. São Paulo: Paulus, 2011, pp. 13-17.
625
Cf. PAGOLA, José Antonio. Jesus: Aproximação Histórica. Petrópolis: Vozes, 2010, p. 25.
211

histórica. No entanto, afirma que toda interpretação histórica traz consigo decisões
preliminares. “A hermenêutica tem a função de atualizar, em conexão com a
determinação de dado histórico. Nela, segundo a terminologia clássica, se trata de uma
‘fusão dos horizontes’ entre ‘então’ (‘naquele tempo’) e o ‘hoje’”626. Ficaria então a
questão sobre qual o significado do “então” nos dias de hoje? No caso de Bultmann,
Ratzinger diz que ele respondeu a esta pergunta fazendo uso da filosofia de Heidegger e
interpretou a Bíblia, seguindo esta linha, no sentido existencialista627.
Essa leitura abriu a possibilidade de transferência da figura de Jesus para uma
realidade mais de acordo com o tempo presente. Como nos ambientes acadêmicos a
partir da década de 60, o principal esquema utilizado para uma leitura da sociedade é o
esquema marxista, ele será incorporado como método hermenêutico da Teologia pelos
teólogos da libertação. Assim, a Cristologia é atingida de forma determinante por esse
esquema.
O que se busca, na verdade, é que a Teologia da Libertação não seja mais um dos
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ramos da Teologia, mas uma nova forma de se fazer Teologia, como afirma
Kloppenburg: “A idéia de libertação deveria estar presente em todos os pontos de todas
as áreas da teologia e deveria ser um novo princípio de síntese”628.
A hermenêutica que será usada pelos teólogos da Libertação é a “opção
preferencial pelos pobres” que denuncia o esquema tradicional de se fazer Teologia
como sendo uma maneira de manter o status quo social e privilegiar o homem branco
europeu. Ao radicar-se na realidade do povo sofrido, em especial na América Latina, a
Cristologia da Libertação vê o próprio Cristo como aquele que sofre nos pobres e
marginalizados da sociedade.
Baseados nessa figura de um Jesus que também foi pobre, esses teólogos
selecionam os trechos das Escrituras que correspondem à sua leitura, criando uma
armadilha para o Magistério da Igreja que, ao querer intervir, é considerado como
instrumento da classe dominante.
Os conceitos tradicionais do cristianismo são relidos a partir da hermenêutica
marxista. Alguns deles como “Povo de Deus”, “Igreja”, “experiência” adquirem novas
significações e passam a servir aos interesses desses teólogos. Uma de suas principais

626
CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ. Instrução sobre alguns aspectos da Teologia da
Libertação, pp. 18-19.
627
Ibid.
628
KLOPPENBURG, Bonaventure. Temptations for the Theology of Liberation. Chicago: Herald Press,
1974, p.13.
212

características é o fato de se desprender da linha transcendental e se firmar na libertação


social e política.
Pode-se perceber que a Cristologia da Libertação da ênfase sobretudo no encontro
acontecido entre o Cristo pobre com os pobres dos dias atuais e propõe que a Igreja
caminhe no sentido de uma libertação que seja econômica, social e política dos grupos
que são oprimidos e dominados dentro da sociedade629.
A Cristologia da Libertação se caracteriza não tanto pela reconstrução do Jesus
Histórico, mas por buscar elementos na prática de Cristo que impulsionem o projeto
libertador, já que segundo esses teólogos as condições sociais do povo daquela época
seriam muito semelhantes àquelas que acometem os marginalizados de hoje.
Assim, Jesus é aquele que deve ser seguido em suas práticas e isso resultará na
ação libertadora que é missão da Igreja cristã. Em face às injustiças sociais, a
comunidade tem por obrigação anunciar Jesus libertador e denunciar as situações de
opressão e miséria política e social.
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O Jesus histórico é, portanto, o critério de discernimento da prática cristã. Da


mesma forma que ele deu voz e vez aos marginalizados, é função da Igreja libertar o
povo dos dominadores, formando uma consciência crítica na população em prol da luta
de classes, assim como propõe o marxismo.

A práxis histórica de Jesus torna-se, então, o tema privilegiado da cristologia da


libertação: suas ações, sua mensagem, suas atitudes, suas escolhas e opções, seu
compromisso social e as implicações políticas e sociais de sua vida e morte. Numa
palavra, a cristologia libertadora reavalia a história humana de Jesus – sem a pretensão de
reescrever uma “história de Jesus” – como meio de ação libertadora e salvífica de Deus
na historia. Essa cristologia é, decididamente, “de baixo para cima”, mas sem prescindir
da identidade pessoal de Jesus como Filho de Deus. Não se separa o Jesus da história do
Cristo da Fé, ainda que a ortopraxia preceda a ortodoxia. Na história humana do Filho de
Deus, a cristologia da libertação busca “o projeto” de uma libertação humana integral, já
realizada nele por Deus630.

Alguns conceitos cristãos que são fundamentalmente importantes para os teólogos


da libertação são abordados sob um novo prisma. O conceito de amor identifica-se com
a opção preferencial pelos pobres. O Sermão da Montanha (Mt 5-7) denota a escolha da
parte de Jesus pelos que mais sofrem. O próprio conceito de ressurreição é, na verdade,
a esperança daqueles que são crucificados pelo sistema opressor e desigual que vigora
na sociedade. Mais importante do que a ressurreição escatológica, é a ressurreição que

629
FISICHELLA, Rino. Cristologia e Cristologias., p. 159.
630
DUPUIS, J. Introdução à cristologia, p.42.
213

dá uma nova vida neste mundo àqueles que são vítimas da luta de classes e essa é a
missão da Igreja.
Outra passagem bíblica de fundamental importância é a narrativa do Êxodo, vista
como uma figura da libertação integral que Deus quer, através de seu Filho, operar em
toda humanidade.
Essa elaboração teológica e sistemática exposta em poucas palavras neste trabalho
sofreu intervenções por parte do Magistério da Igreja. A Congregação para a Doutrina
da Fé, em 1984, emitiu um documento frisando aquilo que havia de positivo e
condenando a leitura reducionista da Cristologia da Libertação. De acordo com o
Cardeal Ratzinger, a busca de uma convivência fraterna, justa e solidária que emana do
coração do povo é coerente com a vida nova que Cristo trouxe à humanidade e já
aparecia no profetismo do Antigo Testamento. No entanto, a noção de liberdade que o
cristianismo adota não se restringe à dimensão social e econômica, mas é muito mais
ampla.
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Ele dá a entender no documento que a Teologia da Libertação abdica da fé e adota


uma visão imanentista, pois restringe o sentido de pecado ao “pecado social”. Além
disso, a reforma das estruturas sociais e econômicas não geraria por si mesma a
dissolução de todos os problemas da humanidade.
No documento de 1984 emitido pela Congregação para a Doutrina da Fé, e que
vem assinada pelo então prefeito Cardeal Ratzinger, o Magistério da Igreja ensina que
não se pode situar o mal unicamente ou de modo particular nas estruturas econômicas,
sociais ou políticas, como se tudo o que acontecesse de ruim estivesse de alguma forma
radicado nessas estruturas, tomando-as como únicas causadoras. Se assim fosse, a partir
do momento em que se instaurassem estruturas sociais e políticas diferentes, poderia
então se concretizar o surgimento de um novo ser humano. Essa constatação não deve,
no entanto, desconsiderar o fato de que existem situações iníquas e geradoras de
iniquidades que precisam ser mudadas631.
O Magistério detecta, na verdade, que essas estruturas, sejam elas boas ou más,
não são causas, mas consequências da ação do homem. Com isso, verifica-se que a raiz
do mal encontra-se nas pessoas livres e responsáveis, que necessitam experimentar a
conversão, a partir da ação da graça de Jesus Cristo, a fim de conseguirem viver e agir

631
CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ. Instrução sobre alguns aspectos da “Teologia da
Libertação”.
214

como criaturas novas, no amor ao próximo, na busca eficaz da justiça, no domínio de si


próprio e na prática das virtudes632.
Além disso, o Magistério da Igreja também condenou a tentativa de se fazer uma
nova leitura do cristianismo, através da hermenêutica marxista. A análise científica é
importante, mas não se pode tê-la como suprema, correndo-se o risco de tornar-se
dogmática. O marxismo é um método de análise ateu que prescinde da presença e
atuação de Deus no entendimento da realidade. As experiências vividas pela
humanidade naqueles povos que foram governados por pessoas que queriam implantar
as ideias de Marx sempre resultaram em sistemas totalitários tendo como fruto milhões
de mortos.
Não se pode querer enxergar a morte de Cristo apenas como um ato político, em
que as estruturas sócias apresentam-se corrompidas e por isso acontece a morte do
justo, tal qual nos dias de hoje, muitos justos padecem pela mesma causa. A Paixão de
Cristo transcende a História e tem em seu sentido espiritual a verdadeira razão da
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Encarnação do Verbo. O Paraíso não é alcançado na Terra, com todos vivendo em


igualdade de condições, mas ele acontece em Deus, no transcender da História.
O Magistério da Igreja considerou assim que a aspiração pela libertação integral
do homem é autêntica, mas precisa ser vista em comunhão com toda a doutrina da
Igreja que enxerga o homem sob seus vários aspectos, tanto no campo espiritual quanto
no corporal.
Um dos entendimentos que levou em conta esse documento foi o do teólogo
Clodovis Boff que, num artigo publicado na Revista Eclesiástica Brasileira, em outubro
de 2007, reconheceu os erros da Teologia da Libertação afirmando que ela “substituiu o
Cristo pelo pobre”633.
De acordo com Clodovis, o que está em jogo é que o fundamento da Cristologia
esteja de fato em Cristo e que Ratzinger à época em que emitiu a condenação a aspectos
da Teologia da Libertação estava, de fato, defendendo a essência da mesma. Clodovis
foi duramente criticado por seus colegas e por seu irmão, que não se reconheciam nas
críticas feitas por ele, ao que Clodovis escreveu uma réplica.

632
Ibid.
633
BOFF, Clodovis. Teologia da Libertação e volta ao fundamento. Revista Eclesiástica Brasileira, n.
268. Disponível em: < http://amaivos.uol.com.br/amaivos2015/?
pg=noticias&cod_canal=29&cod_noticia=11384>. Acesso em 1 de mar. de 2015.
215

Segundo diz o teólogo, a reafirmação de que o princípio da Teologia é Cristo e


não pode ser outro é fundamental. Quando se fala em opção pelo pobre e por sua
libertação, esta pode aparecer, mas como um princípio secundário da opção
fundamental e não preponderante. Boff diz ainda que é tautológico afirmar que o pobre
e sua libertação não são o princípio geral da teologia em geral, mas o princípio
específico, que é a teologia da libertação. “O princípio-pobre assenta, por sua parte, no
princípio geral da teologia, que é a fé no Theos de Jesus Cristo. Essa é base comum de
todas as teologias, permitindo, aliás, o diálogo entre elas”634.
Nesse artigo, Clodovis reafirma um dos principais problemas da Teologia da
Libertação ligado diretamente à Cristologia que é o fato de os teólogos manterem a
ambiguidade enxergarem Deus e Jesus sempre em relação ao pobre selecionando textos
nas escrituras que servem a essa intenção. Clodovis diz que é necessário reconhecer o
Absoluto em Cristo e firmar-se nas passagens que veem nele esse Absoluto.
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5.3.3 - A Cristologia da Renovação Carismática Católica

O movimento da Renovação Carismática Católica tem origem em meados da


década de 60 nos Estados Unidos. Para alguns historiadores sua espiritualidade está
intrinsecamente ligada ao pentecostalismo protestante, passando a ser conhecido
também como pentecostalismo católico635.
No meio protestante, essa forma de espiritualidade havia se intensificado na
primeira metade do século XX em muitas igrejas, porque se percebeu que era uma
forma importante e com eficácia de se alcançar resultados a fim de se obter uma
revitalização da fé nos Estados Unidos. Não demorou para que também os católicos
pudessem experimentar essa forma de espiritualidades nos conglomerados urbanos da
classe média636.
Alguns vão defender a ideia de que o movimento carismático já existe desde a
época dos apóstolos com a vivência dos carismas relatados por São Paulo nas

634
Ibid.
635
CARRANZA, Brenda. Renovação Carismática Católica: Origens, mudanças e tendências. Editora
Santuário: Aparecida, 2000, p. 25.
636
VALLE, Edênio. Renovação Carismática Católica: algumas observações, p. 10. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/ea/v18n52/a08v1852.pdf>. Acesso em 27 de fev. de 2015.
216

comunidades637. Além disso, esse movimento também encontra seguidores na Idade


Média com Joaquim de Fiori638.
No entanto, o retorno deste movimento após o Concílio Vaticano II traz suas
próprias peculiaridades e se insere em um contexto em que várias espiritualidades
surgem ao mesmo tempo, agregando multidões que se firmam na identidade e na
espiritualidade desses movimentos.
De forma geral, mas principalmente no Brasil, a Renovação Carismática Católica
surgiu em um contexto de expansão de uma teologia que buscava a inserção do cristão
na política e na ação social, batendo de frente com essa realidade já que prima pela
piedade e sentimentalismo da fé639.
O chamado pentecostalismo católico consegue se diferenciar do protestante por
alguns elementos básicos e que de forma alguma são aceitos naqueles meios: Maria, a
Eucaristia e o Papa. A centralidade que Jesus ocupa na pregação carismática impulsiona
o movimento a se assemelhar a um cristianismo autêntico com as devidas
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diferenciações explicitadas em relação aos protestantes.


O encontro com Deus Pai e com seu Filho Jesus Cristo é o principal traço do
movimento que o vivencia nas experiências com os carismas do Espírito Santo. O
marco para o surgimento do movimento é um retiro espiritual acontecido no ano de
1967 organizado e vivenciado por jovens universitários da Universidade de Duquesne,
em Pittisburgo640.
O prisma através do qual o carismático deve enxergar toda a realidade é o próprio
Jesus Cristo que é tomado como referência. Assim, o movimento não tem o objetivo de
isolar o fiel do mundo, mas é preciso colocar Jesus no centro de tudo aquilo que se vai
fazer e viver641.
Outro resgate que a Renovação Carismática Católica trouxe se refere ao
protagonismo leigo que espelhado no tríplice múnus de Cristo (rei, sacerdote e profeta)
constituem a vocação batismal do cristão. Com isso, novas comunidades de vida e de
aliança surgem e abrem as portas para que o leigo atue com papel decisivo em meio a
sociedade.

637
1Cor 12-15.
638
VALLE, Edênio. Renovação Carismática Católica, p. 1.
639
Ibid., p. 2
640
CARRANZA, Brenda. Renovação Carismática Católica, pp. 23-24.
641
PRANDI, Reginaldo. Um sopro do Espírito: a renovação conservadora do catolicismo carismático.
São Paulo: Edusp, 1998, p.79.
217

Essas novas comunidades passaram a ser mencionadas no Código de Direito


Canônico possuindo um estatuto próprio e o papa João Paulo II deu grande força ao
movimento, realizando vários encontros mundiais com os membros dessas novas
comunidades642. “Há, hoje, uma efusão, uma grande chuva de carismas, para fazer
maravilhosa e fecunda a Igreja, capaz de impor-se à atenção do mundo profano e
laicizante”643.
Em todas as esferas da Renovação Carismática Católica, o leigo atua de forma
preponderante, pois o movimento prega que ele está assumindo o papel do próprio
Cristo em meio aos homens, não no sentido de uma personificação, mas de uma
presença.
Apesar de ter uma característica bastante intimista no que se refere a vida de
oração e à espiritualidade em geral, a Renovação Carismática Católica prega o
reencontro com Cristo através da doutrina eclesiástica e da fiel obediência ao
Magistério da Igreja.
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Na busca de arrebanhar multidões, o movimento prega, no entanto que cada


pessoa viva seu encontro com Cristo, na busca de ser um homem novo644 a partir da
vivência com os carismas do Espírito Santo.
Em termos de conteúdo da oração, é possível perceber que as petições e os
louvores se dirigem fatalmente na Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, o que
diverge da oração tradicional da Igreja Católica que reza ao Pai, pelo Filho. Na oração
carismática, o Filho ocupa o centro da oração, através de uma repetição contínua do
nome de Jesus ao qual são atribuídos a fortaleza e o poder dos milagres.
A mãe de Jesus é evocada de forma contínua dentro da experiência carismática,
pois facilita o encontro com Cristo. O movimento considera, na linha tradicional da
Igreja, que Maria conduz a Jesus645. Isso tem facilitado até a aceitação por parte de
muitos bispos do movimento em suas dioceses646, já que é um traço que o distingue do
pentecostalismo protestante. É uma forma também de evitar que muitos católicos que
não possuem uma identidade religiosa firme migrem para o protestantismo.

642
JESUS, José Soares de. A Renovação Carismática Católica e a elaboração da identidade religiosa dos
seus seguidores. Recife, 2012, p. 39. Disponível em <http://www.unicap.br/tede//
tde_busca/arquivo.php?codArquivo=777>. Acesso em 27 de fev. de 2015.
643
TERRA, João Evangelista Martins. Os novos movimentos eclesiais. São Paulo: Loyola, 2004, p. 16.
644
2Cor 5,17.
645
JESUS, José Soares de. A Renovação Carismática Católica, p. 112.
646
CARRANZA, Brenda. Renovação Carismática católica, p.144.
218

A adoração de Jesus na Eucaristia também expressa essa diferenciação em relação


ao protestantismo. Os carismáticos católicos veem nos sacramentos em geral e na
Eucaristia em particular uma fonte e alimento para sua ação no mundo. Disso deriva a
insistência em relação a adoração eucarística647.
Alguns associam que essa devoção não está muitas vezes associada a desejo de
um encontro com Jesus, mas sim, influenciada pela teologia da prosperidade com raiz
protestante, voltada para a busca pela graça e pelo milagre. Alguns pregadores e
cantores católicos insistem sobremaneira nesta realidade.
Um dos exemplos disso pode ser conferido na música “Filho de Davi” do cantor
católico-carismático Tony Alisson. É possível perceber a busca do milagroso no texto
abaixo.

Me contaram que o senhor ia passar


E que havia uma chance de eu poder enxergar
Me disseram que tinhas poder
Pra ressuscitar e fazer o paralítico andar
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Renasceu dentro de mim a fé


Que há muito eu já não tinha
Eu senti meu coração arder
E eu gritei para o senhor me responder

(Refrão)
Jesus filho de Davi, me cura
És o Santo de Israel
Diante de ti a tempestade se cala
Meu Deus, honra a minha fé (2x)

Me contaram que o senhor ia passar


E que havia uma chance de eu poder enxergar
Me disseram que tinhas poder
Pra ressuscitar e fazer o paralítico andar

Renasceu dentro de mim a fé


Que há muito eu já não tinha
Eu senti meu coração arder
E eu gritei para o senhor me responder

Jesus filho de Davi, me cura


És o Santo de Israel
Diante de ti a tempestade se cala
Meu Deus, honra a minha fé (2x)

Eu sei o que o Senhor tem pra mim


Tuas promessas não vão deixar de se cumprir
Eu sei, teu Espírito está agindo em mim, Jesus!

647
JESUS, José Soares de. A Renovação Carismática Católica, p. 42.
219

Jesus filho de Davi, me cura


És o Santo de Israel
Diante de ti a tempestade se cala
Meu Deus, honra a minha fé
Jesus filho de Davi, me cura
És o Santo de Israel
Diante de ti a tempestade se cala
Meu Deus, honra a minha fé648.

Essa atitude acaba sendo uma tendência nos membros da Renovação Carismática
Católica, influenciada pelo movimento neopentecostal, surgido no meio protestante a
partir da década de 70 e que acentuava justamente a realização dos milagres na vida das
pessoas do Evangelho e trazia a possibilidade da repetição destes mesmos fatos na vida
do fiel dos dias atuais.
No Documento 53 da CNBB, a entidade chama a atenção para essa distorção da
vivência da fé e afirma que uma busca de satisfação de exigências íntimas e de
respostas às necessidades imediatas não pode ser o único foco do agir do fiel. Esse
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discurso acaba comportando uma negação da cruz, o que está errado, já que a fé católica
sempre a propôs como caminho para a vida plena na ressurreição649.
Nos ensinamentos da Renovação também se acentua o quanto a palavra
pronunciada tem poder. Baseados num trecho do Evangelho de Marcos 650, os
pregadores ensinam que, assim como em Jesus, as palavras ditas podem ser portadoras
de bênção ou de maldição. E por isso mesmo é necessário fazer orações de súplicas a
Jesus, pelo poder de seu sangue, para que sejam extirpadas todas as maldições que
eventualmente tenham recaído sobre a vida do fiel651.
Nessa mesma linha espiritualista, uma das obras da Renovação Carismática
Católica que mais gerou polêmica no Brasil foi a do fundador da Comunidade Canção
Nova de Cachoeira Paulista (SP), Monsenhor Jonas Abib, chamada “Sim, sim! Não,
não”.
No livro, que foi considerado de teor fundamentalista e que sofreu processos na
justiça652, o sacerdote é acusado de incitação a intolerância religiosa. A obra, que é

648
Cf. TONY ALLYSON. Filho de Davi. Música disponível em: <http://www.vagalume.com.br/tony-
allyson/filho-de-davi.html>.
649
CNBB. Orientações Pastorais sobre a Renovação Carismática Católica, p. 24.
650
Mc 11, 13-14.20-23
651
TANNUS, Roberto Andrade. Livres de toda maldição: aprendendo a plantar palavras de vitória.
Aparecida: Santuário, 2000, p. 7-9.
652
Cf. MARTINEZ, Manuela. Justiça baiana manda recolher livro de padre. Folha de S. Paulo, 17 maio
2008, Brasil. Disponível em < http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1705200818.htm#_=_ >.
220

voltada para pessoas que tem ou tiveram contato com espiritismo, magia negra, cultos
afros, dentre outras formas de culto envolvendo orixás, afirma a necessidade de uma
purificação espiritual na vida daqueles que abandonaram essas práticas e se decidiram
por Jesus653.
Monsenhor Jonas exorta a que se recorra a orações de renúncia e também à
invocação do sangue de Jesus para que se alcance a libertação dos males espiritais que,
segundo ele, são a causa de tantos problemas enfrentados pelas pessoas em suas vidas
cotidianas654.
Diante desses problemas e dos próprios vazios existenciais com os quais as
pessoas vivem, a Renovação sempre insiste de que todas as respostas devem ser
buscadas em Jesus. Sentimentos ruins, depressão, rejeição, ansiedade, solidão que na
psicologia demandariam várias sessões de terapias encontram resposta simples e
objetiva entre os pregadores do movimento: basta buscar e aceitar Jesus655.
Ao mesmo tempo, em que Ele é colocado como um ser com poderes divinos,
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também é apresentado como uma pessoa comum e que deve ser um modelo para todos
de seguimento. Um dos partidários dessa visão é o Padre Marcelo Rossi, que tendo
vendido milhões de Cds pelo Brasil, também sagrou-se por escrever os livros “Ágape” e
“Agapinho”, que por muitas semanas permaneceram como livros mais vendidos do
país.
Nessas obras, o padre narra trechos das Escrituras de forma simples, trazendo ao
final uma moral para os leitores. Ele faz um paralelo com as histórias do Evangelho e
com situações do cotidiano da vida das pessoas656.
Com toda essa complexidade, a Renovação Carismática Católica, no entanto, é
vista como fator positivo, tendo encontrado acolhida até mesmo junto a diversos papas,
que realizaram encontros com seus líderes e com multidões657, sempre os exortando à
comunhão com a Igreja Católica.

653
ABIB, Jonas. Sim, sim! Não, Não!. Cachoeira Paulista: Canção Nova 2004, pp. 28-29.
654
Ibid., p.97
655
GAMBARINI, Alberto Luiz. Cura das emoções em Cristo. São Paulo: Vida Nova, 1996, pp.51-53.
656
ROSSI, Marcelo. Ágape. São Paulo: Ed. Globo S.A, 2013, pp. 64-65.
657
Cf. RADIO VATICANA. Papa Francisco participará de Encontro da RCC, no Estádio Olímpico, em
Roma.
221

5.3.4 - Outras Vertentes

Uma das grandes vertentes da Cristologia é a africana negra. Para ser bem
compreendida, é necessário situá-la dentro do contexto e da mentalidade tribal africana
que concede grande poder aos antepassados, pois, Deus é a fonte da vida, e aqueles que
já passaram pela morte estão de certa forma mais próximo à fonte. Possuem, portanto, a
missão de mediadores da graça.
Os africanos, por valorizarem seus ancestrais, acabam vendo em Jesus um
estranho e em sua missão de mediador entre Deus e os homens uma pretensão que não
corresponde à realidade. Para que o cristianismo pudesse fincar raízes nas África foi
necessária uma teologia da Encarnação658.
A missão de Jesus adquire relevância através da identificação dele com a
identidade dos ancestrais africanos: ele é o protoancestral universal, derivado daquilo
que São Paulo diz de Jesus ser o “primogênito de todas as criaturas” 659. Outro aspecto
relevante é o fato de Jesus não estar ligado a nenhum clã africano e, por isso mesmo,
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seu amor pode guiar todos os clãs de forma geral.


A Cristologia africana vai se assemelhar em parte com a cristologia da libertação
latino-americana, pois associa a Cristo o valor de defesa dos fracos, dos pobres e dos
oprimidos, devido a situação de miséria e precariedade que existe no continente, além
dos diversos modos de dominação política e ditatoriais que existem nas mais variadas
partes da África.
Outras imagens que são feitas de Jesus no continente africano é o de enxergá-lo
como chefe ou cacique, mas lhe dando uma conotação de generosidade e de
reconciliador660. Também pode ser visto como mestre de iniciação, já que esses rituais
são muito comuns em meios as diversas tribos. O sentido que isso adquire é o de ver em
sua paixão, morte e ressurreição uma iniciação que revela o amor de Deus e ao qual os
homens são convidados a aderir através de seu seguimento.
A face de curador também é imputada a Jesus, já que são comuns os curadores
terapêuticos no continente. A base disso são as curas que Jesus protagoniza nos
Evangelhos. Ele assume o papel de auxiliador e libertador que possibilita a vida nova
para os africanos negros.

658
KESSLER, Hans. Cristologia, In: SCHNEIDER, Theodor (org.). Manual de Dogmática. Vol I. 4. Ed.
Petrópolis: Vozes, 2012, pp. 343-343.
659
Cl 1,15.18.
660
KESSLER, Hans. Cristologia, p. 343.
222

No continente asiático, a cristologia se defronta com a presença de outras grandes


religiões e tem dificuldade para se afirmar como único caminho de salvação. O contexto
local encontra oposição no hinduísmo e no budismo e o cristianismo é apenas uma
presença pequena no continente mais populoso da Terra.
A mentalidade hinduísta enxerga em Jesus um dos maiores mestres da
humanidade e admira sua doutrina ética que eleva o ser humano e o faz tomar
consciência de que ele pertence a uma unidade universal.
Em meio a população em geral, a divindade sempre resgata os seres humanos do
mal, e por isso, de tempos em tempos, acontece a encarnação de algum líder que deve
conduzir o povo e livrá-lo dos perigos. Assim o fizeram Buda, Jesus e Maomé,
considerados avatares.
Dentro do próprio hinduísmo, existem os que veem em Jesus aquele que realizou
de modo exemplar sua identidade com o divino661, tornando-se um líder espiritual ou
guru.
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Para que a cristologia se desenvolva nesse contexto sem perder o cerne da fé, ou
seja, sem que Cristo seja visto apenas como um líder a mais e seja realmente o centro, é
necessário tomar certo cuidado para não se fazer uma excessiva inculturação. Duas
correntes se desenvolvem hoje para possibilitar isso:
A primeira dialoga com a filosofia e a religiosidade indianas e enxerga a presença
de Deus em toda realidade do mundo. Assim, pode-se afirmar que há revelações de
Deus em todas as religiões. Cristo é aquele que une em si toda a realidade formando a
unidade do cosmo662.
A segunda está relacionada com a situação social da Índia e com a identificação
da opção de Jesus pela grande maioria da população que vive na miséria devido ao
sistema de castas que impera no país663.
Ainda no continente asiático existe a cristologia no contexto chinês. Naquele país,
existe uma preocupação para com o homem, sendo que a religião e a ética carregam
essa conotação antropocêntrica. Todas as religiões são iguais para o chinês, desde que
ela cumpra sua missão de fazer do homem um ser ético. Jesus aparece nesse contexto
como um entre tantos líderes que tem ensinamentos bonitos e que são úteis para a
conduta humana.

661
Ibid., pp. 344-345.
662
Ibid., pp. 345-346.
663
Ibid., p. 346.
223

Na China, um viés que seria possível de trabalhar é a redenção do ser humano


pelo amor, pois lá existe a concepção de que o verdadeiro amor é o amor materno, que
não deixa de ser um amor dolorido e de entrega como foi a Paixão, morte e ressurreição
de Jesus.

5.4 - Considerações finais

A caminhada para a compreensão da pessoa e mensagem de Jesus Cristo não tem


sido tarefa fácil nestes quase dois mil anos de caminhada histórica dos seguidores do
Mestre de Nazaré. Sobre Jesus muito se escreveu e muito mais ainda se escreverá. A
Bíblia cristã é ainda o livro mais publicado e lido no planeta. Sobre o homem de Nazaré
já se afirmou de tudo, desde a sua não existência até o fato de ser um alienígena, um ser
de outro planeta. Desde o início de seu movimento foram elaboradas as mais variadas
interpretações e grupos se dividiram, ora para defender sua identidade, para negar suas
palavras, ora para descobrir a essência de sua mensagem.
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A cristologia, estudo sistemático sobre o Cristo, ou para outros a jesuologia,


estudo do homem que viveu na Galiléia do primeiro século da era “cristã”, ou da era
comum, como alguns defendem hoje, tem muitas linhas com visões opostas e até
extremamente contraditórias. Grupos que se referem a Jesus Cristo, encontramos em
todas as partes do mundo.
Podemos falar do Cristo da filosofia ou dos filósofos, dos psicólogos e de tantas
outras áreas do conhecimento humano. Hoje livros de autoajuda que se reportam a Jesus
não faltam nas livrarias e bancas de jornais. Podemos encontrar o Cristo estudado e
apresentado nas grandes religiões da humanidade: a figura de Jesus no Hinduísmo, no
Judaísmo, no Budismo, no Islamismo, em religiões antigas, mais antigas que o
cristianismo. O encontramos estudado e apresentado em novos grupos religiosos, das
mais variadas vertentes. Entre tantas interpretações a respeito do mesmo personagem
temos aquelas que o apresentam glorioso e celeste e aquelas que o exibem frágil e
derrotado.
Além das cristologias clássicas, mais antigas, temos as mais recentes: a
cristologia transcendental de Karl Rahner, a cristologia trinitária de Hans Urs von
Balthasar, a cristologia cósmica de Teilhard de Chardin, a cristologia histórica de
Walter Kasper, a cristologia escatológica de Marcello Bordoni, as cristologias
teândricas de Pedro Parente, Romano Guardini, Marie-Dominique Chenu, George
224

Florovski. As cristologias de Karl Barth e Emil Brunner apresentam-se como


teocêntricas. Não podemos esquecer as chamadas cristologias existencialistas de Rudolf
Bultmann, de Paul Tillich, as denominadas históricas como a de Oscar Cullmann,
Wolfhart Pannenberg e Wili Marxsen. As ditas seculares de Dietrich Bonhöffer, de
John Robinson, de Paul van Buren, de Piet Schoonenberg. As análises de Jürgen
Moltmann e Karl Baaten podem ser apresentadas como cristologias escatológicas.
Cristologias políticas podem ser percebidas nas obras de Havey Cox, Johannes Metz e
Richard Schaull.
A busca de anunciá-lo leva à inculturação com cristologias asiáticas, africanas,
norte-americanas, da Oceania e de cada contexto local. No Brasil temos estudos
referentes à cristologia gaúcha, nordestina, amazônica.
A piedade popular é rica em apresentar Jesus das mais diversas maneiras. O
“Santo Ninõ” das Filipinas e o Bom Jesus flagelado da América Latina demonstram o
quanto foi assimilado pela religiosidade popular o mesmo personagem de dois mil anos.
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Cristãos perseguidos e mártires não faltam na longa história do cristianismo e


todos eles, católicos, ortodoxos, luteranos, anglicanos, pentecostais ou coptas morreram
por professarem a fé no mesmo Jesus, compreendido, vivenciado e celebrado de formas
diversas. E hoje se fala de cristofobia no mundo globalizado e secular.
Místicos, intelectuais, políticos, governantes, homens livres e escravos, piedosas
mulheres e homens de todas as classes e condições sociais se reportam a Cristo e o
contemplam, invocam-no ou o acusam, mas se voltam à Ele. Ainda hoje em meio a
tantas religiões o cristianismo continua sendo a que maior número de seguidores possui.
Neste capítulo, ao retomarmos a cristologia, procuramos apresentar aquilo que se
pode compreender como conteúdo essencial do Cristo bíblico-eclesial. Sem maiores
pretensões e sabendo dos riscos, procuramos apresentar os pilares sem os quais não se
pode falar de uma cristologia que respeite os conteúdos essenciais da fé cristã, católica,
ortodoxa, protestante. Só assim nos é possível analisar, comparar e dialogar com o
Cristo apresentado pelos novos movimentos religiosos emergentes no Brasil e na
América Latina.
Algumas questões, agora elaboradas, se tornam agora latentes diante do objetivo
do nosso trabalho: O Cristo do neopentecostalismo, o Cristo apresentado pelos diversos
grupos religiosos é o mesmo Cristo da fé bíblico-eclesial de tantos séculos? Estamos
diante de uma nova cristologia? Trata-se de uma cristologia defeituosa ou frágil? Ou,
ao contrário, os Novos movimentos Religiosos, enfatizam algo que havia sido
225

esquecido ao longo dos séculos? Estamos diante de uma nova heresia cristológica?
Estes movimentos podem ser considerados cristãos? Contribuição, enfraquecimento,
desvirtuamento? Nova cristologia? Estas e outras questões serão determinantes para
compreendermos em que medida a cristologia neopentecostal é continuidade ou ruptura.
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