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OS SAPATOS de ALhte iMevad ERA um belo par de sapatos pretos, de sola dupla ¢ com a ponta, como dizem os sapateiros, @ la Duilio, Eu 0s tinha comprado duran- te a guerra, sem experimentar, € os guardara para dias mais dificeis. Mas, quando vieram esses dias, compreendi que no poderia usi-los. Um sapato apertado pode ser, até um certo ponto, alargado; um sapato grande pode ser enchido com jornais; mas com um sapato pequeno, como era 0 caso, nio se pode fazer nada, Primeiro, pensei ‘em revendé-Ios; mas, a0 encontrar meu amigo Cesare, que sabia estar muito necessitado, depois de inimeros rodeios e muitas precaugdes, porque sabia que era orgulhoso e temia ofendé-lo, arrisquei ofere- cer-lhe o par de presente, Mas ele me cortou com um cinismo novo ¢ alegre: “Um par de sapatos? Bem-vindos,., Passo amanhd mesmo para apanhé-los.” E preciso que se diga que Cesare, funcionério pablico ¢ literato ras horas vagas, tinha um filo de nome Giovanni, Que nio poderia ser mais diferente do pai: enquanto Cesare era inteligente, mordaz, até mesmo maldoso, 0 filho, a0 contririo, era lerdo, ingénuo e obtu- so, De complei¢io robusta e atarracada, com grandes olhos afetuosos da cor das castanhas a0 sair do fogo, Giovanni lembrava um bom e estiipido cio. Ele era a maior preocupagio de seu pai, pois no era estavam formados. Nio que nio & aplieado, Apenas nfo conseguia chegar lt Poucos dias depois desse presente, uma noite amigo, a quem de antemio eu jé havia prevenido, jantar em casa de amigos, Cesare motava no iio dio de funcionirios, em um apartamento cheio de livros, com bom gosto, mesmo que modestamente. Encontre ‘scritério, em uma poltrona, com um livro na mio. Estava ve pata sas, mas nos pés, etm vez de sapatos, usava dus erernes Ge feluro que o faziam assemelhar-se vagamente a alan em um asilo de indigentes. Estava lendo 4 luz de uma ‘Assim que me viu, pousou o livro na mesa. erguntei se extava pronto, Respondeus “Estou pronto, dda cabega a0s pés... 86 da cabega até os tornozelos... ainda sapatos.” “Como, ainda?”, perguntei. Nao ousei acrescentar: “E os tnas, mesmo assim, ele me entendeu € respondeu tr Fique sossegado, nio vendi os seus sapatos... simple te os emprestei a meu filho... Hoje ele tinha uma festa em ci alguns amigos no apartamento de baixo ¢ percebi que estava ¢o vergonba dos seus sapatos..¢ entio The emprestei os mews. Day pouco”, olhou o relogio, “a festnha termina e ele vem me crazcr 4 volta os sapato: Contfesso que esta historia, em ver de comover-me, me Nio gosto de sentir pena de meus amigos; por outro I cia me indigna mais que meu espirito de compaixto. Assi fqso, A costumeira irritagdo somava-se a do atraso: naquela ct vam A nossa espera ¢ quando chegissemos ja estariam impossivel que vocé nio tenha um outro par de sapat contrariado. Sem dizer palavra, ele foi até wi cortina e tirou um hort | par de sapatos, todo arranhado e deformado: “$6 tenho e ‘os sapatos esto custando no minimo dez mil lias... e co “salirio..”” A irritagio tomava conta de mim e mudei de discurso. como s6i acontecer, o mau humor procurava uma safda; ¢, quase s querer, comecei a falar com Cesare sobre o seu filo Giovan naquele momento estava dangando com os sapatos do pai: “Apesa de sua pretensa intelectualidade, vocé tem uma mentalidade d pequeno-burgués”, disse. “Seu filo, como vocé bem sabe, nao & talhado para os estudos e para as profissdes liberais.. Qualquer outro em seu lugar se teria dado conta de s6 ser burgués de nome e teria aceitado uma mudanga de classe, que jé se mostra inevitdvel... teria feito 0 filho aprender um oficio Geil qualquer... que sei eu: marcenei- 10, eletricista, mecinico... Mas nio, ele & pobre, nio é inteligente, ‘mas tem que se formar e virar um desajustado a mais. Nio o peguei de surpresa. De outras vezes jf Ihe havia dito as ‘mesmas coisas, embora de forma menos explicita. Mas ele, quase que adivinhando a causa de meu mau humor, sorriu: “Mas é isso o que eu quero... que eve seja um desajustado, “Essa nio! E por qué?’ Ele respondeu com calma: “O seu modo de raciocinar & excessi- vamente simples ¢ talvez mais pequeno-burgués que 0 meu... Meu filo médico ou advogado sera um desajustado, por assim dizer, tée~ nico, porque nio saber’ exercer a sua profisio... mas nio se um desajustado em sentido psicologico, porque, mesmo que nfo tenha trabalho, julgari exercer a profissio para a qual sua educago e suas origens o destinam... Porém, se fosse operirio, admitindo por um Momento que possa até tornar-se um bom operitio, estaria coloca~ do, na realidade, em um plano estritamente técnico, mas psicologica- mente seria um desajustado... Nao poderia nunca se esquecer de que ‘hasceu em uma casa como esta, entre estes livros, nem libertar-se nunca da impressio de que poderia e deveria ter-se tornado médico ou advogado se nio tivesse havido o que vocé, el egantemente, cha~ ", disse sorrin Eu fazer e, no ¢ ‘Adiitamos até que seja. ero fazer-lhe uma confidénci justado, tenho 0 trabalho qu condena a passar fome... Por meio de meu sociedade quer que eu me dobre 4 sua v caprichos... exige opel advogado do qual ela nao tem a menor necessi cima um mau advogado” “Isto € um paradoxo.” “Pode ser... porém, © que resta a um homem sem si ser 0 paradoxo, 0 sofisma e a extravagincia?” ‘Agora ja tinha ficado tarde e eu disse preocupado: “O: saimos ou." Ele suspirou e disse: “Est b por os sapatos velhos.” Foi até a cort comigo do apartamento. Comegamos a descer devagar a ese mos do andar «le | . Meu filho esti ina, calgou 08 saj zenta e escura, Mas, inesperadamente, ou que brincava, que se ¢ um murmiirio de vozes: gente que ri mentava, despedindo-se. Depois alguém subiu corn em diregio a nés. Eta Giovanni, o filho do meu amigo. atrasido”, disse, ofegante, ‘Nio faz eu ja estava indo.” © bom rapaz estava realmente desolado pelo atraso. to afetuoso ¢ pouco inteligente lia-se a consternagio. Diss \do: “Vamos subir um instante... atrap: 348 OS Alsenro monaviA $Q O pai apressou-se a trangiiilizi-lo: "Se & por causa dos sapatos vocé pode tiri-los aqui mesmo... Alberto é de casa... ” E assim fizeram. Giovanni tirou os sapatos e 0 meu amigo os cal- 04, apoiando-se em mim. A seguir Giovanni pegou os sapatos do pai ¢, caminhando s6 de meias, na ponta dos pés, corre escada aci- ma para casa. Recomegamos a descer. “E um bom filho”, disse Cesare, “e, além disso, temos a sorte de calgar 0 mesmo nimero.” ges

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