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soinar2021 ‘A DECLARAGAO UNIVERSAL DOS 4A DECLARACAO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS — 50 ANOS Patricia Helena Massa Arzabe* Potyguara Gildoassu Graciano** ‘Procradora do Esta Asistnt ~ Arca da Assia dvi, meno do Grupo de Tebalbo de Diets Hunaos da Procuraora Geral do Esto de So Pal, otorands em Dire peta USP e Mesa em Dire Esonimico pela USP, Profesor de Davtos Humans a Acadvmia do Baro Branco e mestando cm Dist Constiteional pela PUC-SP, ‘A Declaraciio Universal dos Direitos Humanos, que comemora em 1998 seu cingiientendrio, € um documento novo, com conteiido novo, Sua novidade reside no fato de constituir o primeiro documento internacional a trazer por destinatérios no somente Estados, mas todas as pessoas de todos os Estados territérios, mesmo os nao signatatios da Declarago. Seu contetido ¢ novo, pelo conjunto de direitos que atribui, extravasando 0 campo dos direitos civis e politicos para especificar também direitos econdmicos, sociais ¢ culturais ¢ pela universalidade, por postular a dignidade, a protegdo ¢ a promogio dos direitos de todos os humanos do planeta. O fato é que 0 discurse dos direitos humanos, que a Declaraao proclama e institucionaliza, é um fator deste século. Até entdo, a preocupagdo com os direitos ¢ a dignidade das pessoas independentemente de fronteiras era presente somente na filosofia e na religiti. Exatamente ao proclamar os direitos humanos para todas as pessoas, estabelecendo-os como uma meta a ser atingida por todos os povos e todas as nagdes, a Declarago Universal dos Direitos Humanos se manifesta como uma construgao que vem abrir o espaco para o tratamento universalizante das questdes relacionadas aos direitos humanos ¢ as suas violagdes. E com a Declatagao que 0 discurso dos direitos humanos toma forma e contetido mais precisos, passando a transitar cada vez com maior intensidade nos ambitos politico € juridico. Por discurso de direitos humanos quer-se designar aqui todo 0 conjunto de instrumentos, técnicas, principios e normas que, tanto na esfera politica como na esfera juridica, possibilitam modificar pacifica e racionalmente a realidade existente para a constituigo de uma nova, em que as relagdes entre as pessoas & entre estas e os Estados se dém com a observancia dos elementos desse discurso. ‘Como um discurso novo, assentado no 'reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da familia humana e de seus direitos iguais e inaliendveis' e tendo esse reconhecimento como 'fundamento da liberdade, da justiga ¢ da paz no mundo’), sua incorporagdo a praxis politica e social apenas se inicia. A dificuldade dessa incorporaco explica-se pela natureza das relagdes de forga que caracterizam as relagdes politicas atuais, que ndo sdo exatamente compativeis com o respeito ittestrito aos primados da liberdade e da igualdade. Porém, devido & incontestavel relevancia dos principios contidos na Declaragio para as sociedades, & certo que sua incorporagdo no Ambito juridico esté consolidada em todo o mundo, estando presentes em quase todas as Constituigdes dos Estados. \www_pge sp gov bricentrodeestudos/ibliotecavituaidretostraladod.htm att sonaraa2s |ADECLARAGAO UNIVERSAL DOS Aproximagio historica Os antecedentes remotos da Declaragio da ONU de 1948 sio encontrados, de um lado, no direito internacional ¢ no direto humanitario dos séculos XVIII ¢ XIX e, de outro em dois documentos relacionados, um ao processo histérico de mudanga de poder da Franga ¢ 0 outro, & instituigao de poder ligada & forma do Estado norte-americano, a saber, a Declaragio de Direitos do Homem e do Cidadio, de 1789 ea Declaragao de Independéncia dos Estados Unidos, de 1776. O tempo da Declaragdo Francesa de 1789 coincide com o periodo da codificagZo das normas juridicas, sendo pouco anterior ao Cédigo de Napoledo. Elias Diaz recorda que é em fins do século XVIII que se opera a transformagdo do direito natural, universal e absoluto em direito positivo, vindo a criar um vazio valorativo, sob certo aspecto; visto que os ideais, uma vez positivados, tornam-se realidade (ao menos parcialmente), para, entdo, transformarem-se em ideologiag). A Declaragdo Francesa veio afirmar como dado aspectos culturais que ainda deveriam ser construidos, qualificando como direitos naturais a liberdade, a propriedade e a igualdade em direitos. Tais direitos nao eram, de fato, naturais, ¢ eram acessiveis a uma minoria, posto que a estruturagao da sociedade em estamentos apenas acabara de ser abolida. Diferentemente da Declaragdo Universal dos Direitos Humanos, que se estende a todas as pessoas, sem contudo, possuir originariamente carster vinculante, a Declaragio dos Direitos do Homem ¢ do Cidadao de 1789 efetivamente integra o direito positivo francés - vigorando até a atualidade, ao lado da Constituigao francesa. Os tragos comuns desta com a Declaragao da ONU, como a afirmagao da liberdade, da propriedade, da seguranga como diteitos inerentes ao homem, o principio da legalidade, o prinefpio da reserva legal e o da presungio de inocéncia, a liberdade de opinido e de crenga, dentre outros, so, sem diivida, referencias da linha comum que ligam os dois documentos. Deve-se, todavia, lembrar, com o historiador Hobsbawm, que as exigéncias do burgués é que foram delineadas na famosa Declaragdo dos Direitos do Homem e do Cidadao, de 1789, Segundo afirma, "este documento é um manifesto contra a sociedade hierdrquica de privilégios da nobreza, mas no um manifesto a favor de uma sociedade democratica e igualitaria, ‘Os homens nascem e vivem livres ¢ iguais perante a leis’, dizia seu primeiro artigo; mas ela também prevé a existéncia de distingdes soviais, ainda que ‘somente no terreno da utilidade comum’. ... a declaragdo afirmava (posigao contriria & hierarquia da nobreza ou absolutismo) que ‘todos os cidadios tém o direito de colaborar na elaboragdo das leis pessoalmente ou por meio de seus representantes’, E a assembléia representativa que ela vislumbrava como érgdo fundamental de governo no cra necessariamente uma assembléia democraticamente cleita. ... Uma monarquia constitucional baseada em uma oligarquia possuidora de terras era mais adequada & maioria dos liberais burgueses do que a repiiblica democritica que poderia parecer uma ‘expressdio mais légica de suas aspiragées tedricas. De modo geral, o burgués liberal classico de 1789 (¢ 0 liberal de 1789-1848) nado era um democrata, mas sim um devoto do constitucionalismo, de um Estado secular com liberdades civis e garantias para a empresa privada ¢ de um governo de contribuintes © proprietérios."@) As palavras de Hobsbawm permitem identificar que as intengdes que nortearam a Declara¢ao dos Direitos do Homem e do Cidadao diferem em sentido e extensio da Declaracdo Universal dos Direitos Humanos, mas, uma vez que 0 texto escrito se desprende de seu contexto, hoje lemos a Declarago Francesa de 1789 com os olhos do nosso tempo. Se, por um lado, a Declaragio Francesa, a Declaragdo de Direitos da Virginia ¢ a Declaragdo de Independéneia Americana foram importantes para o desenvolvimento dessas idéias especialmente dentro dos Estados, 0 mesmo nio ocorre de maneira direta para o direito internacional dos direitos humanos. A origem da proliferagio dos documentos intemnacionais de protegio de direitos humanos esté, principalmente, nos tratados internacionais bilaterais ¢ multilaterais para a aboligdo da escravatura ¢ do comércio de eseravos, assim como nas normas de direito humanitirio para o banimento de armas cruéis e para a salvaguarda de prisioneiros de guerra, de feridos e de civis. As normas de Direito Humanitérios) comegam a surgir no século XIX, para disciplinar 0 tratamento das em conflitos armados, a protegdo humanitéria aos militares postos fora de combate (feridos, doentes, ndufragos, prisioneiros) e as populagdes civis(, declarando limites ao uso da violéneia em guerras A Liga das Nagées, materializada no Tratado de Versalhes, de 28 de junho de 1919, ao fim da Prim Guerra Mundial, veio abrir caminho para a protegio, de forma mais ampia, aos direitos de pessoas, prevendo, também, o direito de peti¢ao a Liga, reconhecido as populagdes dos Estados membros. Segundo observa Louis Henkin, "com base nos precedentes do século XIX, Estados dominantes pressionaram determinados \www_pge sp gov bricentrodeestudos/ibliotecavituaidretostraladod.htm aint soinar2021 ‘A DECLARAGAO UNIVERSAL DOS Estados a aderir a ‘tratados de minorias’ garantidos pela Liga, nos quais os Estados Partes assumiam obrigagdes de respeitar direitos de minorias étnicas, nacionais ou religiosas determinadas" . Este ¢ 0 periodo a partir do qual o dircito internacional deixa de ter por objeto, com poucas excegses, a io somente entre Estados, pasando a tratar, também, das p dignidade humana. Observa-se, entretanto, que 0s tratados sobre minorias celebrados sob os auspicios da Liga das Nagées cram impostos seletivamente, em especial sobre nagées derrotadas em guerras e sobre Estados recém criados ou ampliados. Tais documentos nao previam, ao contrario do que se esperaria hoje, normas gerais impondo o respeito is minorias também por parte dos Estados com maior poder, assim como nao exigiam que fossem respeitadas as pessoas que nao pertenciam as minorias especificadas ou as pertencentes a maioriag) Muitas vezes esquecida no seu papel de fixago e promogdo de direitos humanos, a Organizagio Internacional do Trabalho — OIT, constituida também por ocasido do Tratado de Versalhes, tem desempenhado papel importante na defesa e promogiio de direitos relacionados ao trabalho, bem como de outros direitos econémicos, sociais e culturais, por meio de programas especificos ¢ de suas convengdes, estabelecendo definiges e padrdes minimos sobre as condigdes de exercicio dos direitos de que trata. E no Ambito da OIT que se vé os primeiros documentos internacionais de protegdo 4 mulher, a crianga, aos indigenas e povos tribais, ao trabalhador, documentos contra a discriminagao racial, e de redugao dos efeitos do desemprego, dentre outros. ‘Vale notar que a introdugdo de mecanismos intemacionais de protegdo de direitos humanos ndo se deveu & ‘ientizagdo sibita’ da relevancia e necessidade de protegdo desses direitos ou de um comprometimento ético dos Estados. No caso da Liga das Nagdes, como visto, a protego de minorias estava voltada, via de regra, a protego daquelas que foram incorporadas a outros Estados ou que ficaram sem vinculo a um Estado, como os curdos ¢ palestinos, nao significando isto, por si, que outros grupos étnicos, lingiiisticos ou nacionais existentes, estariam igualmente protegidos, como de fato ndo estavam, a exemplo dos ciganos. No ambito da OIT, pode-se dizer que, ao tempo de sua criagdo, o socialismo estava em expansio na Europa, justificando a implantagiio, nos Estados capitalistas, de medidas de protegao as condigdes do trabalhoan. Melhores condiges sociais e de trabalho em todos os Estados significava, também, como ainda significa, melhores condigdes para a competi¢do no mercado internacional, possibilitando minimizar os efeitos de paises que, com menos direitos sociais garantidos, entram no mercado com pregos mais baixos. Porém, & com a criagio da Organizagdo das Nagdes Unidas — ONU, na Carta de Sdo Francisco, em 1945, que a protec e promogio internacionais dos direitos humanos se converte em principio juridico de direito internacional. A Carta de Sao Francisco ou Carta das Nagées Unidas consiste em tratado internacional, vinculando juridicamente, portanto, todos os Estados que fazem parte da ONU. Desse modo, todos os Estados membros devem dar cumprimento ao principio do "respeito universal aos direitos humanos e as liberdades fundamentais para todos, sem distingao por motivos de raga, sexo, idioma ou religido”. De fato, 0 artigo 1° da Carta coloca como propésitos das Nagdes Unidas, "conseguir uma cooperagao internacional para resolver os problemas internacionais de carater econdmico, social, cultural ou humanitério e para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e as liberdades fundamentais", sem qualquer distingao. Tratam da questo da protecio © promogo dos direitos humanos 0 artigo 1°, itens 2 ¢ 3, artigos 13, 55 ¢ 56. A importincia dada pela Carta matéria é revelada com especial forga no artigo 55, que vem vincular 0 respeito universal ¢ efetivo dos direitos humanos e liberdades fundamentais como necessirio a criagio de condigdes de estabilidade e bem-estar, que, por sua vez, so necessarias as relagGes pacificas e amistosas entre as nagdes, estando tais relagées fundadas no respeito ao principio da igualdade de direitos e da autodeterminacao dos povos. A Declaragio Universal dos Direitos Humanos Ji quando da claboragio da Carta das Nagdes Unidas, grupos defendiam que ela deveria trazer uma declarago de direitos anexa, Isso ndo ocorreu, Entretanto, apesar de mencionar os direitos humanos de modo conciso e genérico, a Carta trouxe a valiosa contribuigio de tornar a promogdo dos direitos humanos uma ww 9909 govbrlcontrodeestudos/ibiolecavitualidretostaladod him ant sonaraa2s ADECLARAGAO UNIVERSAL DOS finalidade da ONU e¢, sobretudo, expande a relagdo entre os Estados © seus habitantes para esfera intemacional. Merece ser observado que, "no seio da ONU, programou-se, a partir de 1947, uma International Bill of Human Rights, que deveria ter sido constituida por uma Declaracao universal, contendo a enunciagao dos direitos humanos, por um Covenant contendo compromissos especificos juridicos dos Estados no que toca ao respeito dos mesmos direitos humanos ¢ um sistema de controle Measures of Implementation, voltado para a garantia desses direitos. A realizagdo desse programa encontrou enormes dificuldades"(11). A propria Declaragio poderia ter tomado a forma de tratado, de modo a, apés sua adogdo pela ONU, vincular os Estados que a ratificassem a obrigagdo de proteger e promover os direitos humanos. Prevaleceu, entretanto, o entendimento de que a carta de direitos deveria tomar a forma de declarago, ou seja, de uma recomendaco de maior solenidade, utilizada em raras ocasides relacionadas a matérias de grande importincia, em que se espera 0 maximo comprometimento moral e politico dos participes. A Declaragdo vem constituir, entio, a especificagdo dos direitos que a Carta de So Francisco meneiona apenas de maneira genérica, estabelecendo, como afirmado em seu Preémbulo, uma compreensio comum do que sejam esses direitos para seu pleno cumprimento. Este detalhamento de direitos humanos, que a Declarag%o Universal dos Direitos Humanos traz, constitui a primeira iniciativa de enumeraco de direitos humanos no Ambito do direito internacional e institui, sobretudo, como aponta Flavia Piovesanii2), "extraordindria inovagio, ao conter uma linguagem de direitos até entio inédita .... Ao conjugar o valor da liberdade com o valor da igualdade, a Declaragdo demarea a concepgio contemporanea de direitos humanos, pela qual esses direitos passam a ser concebidos como uma unidade interdependente e indivisivel". A Declaracdo expressa, a um s6 tempo, 0 discurso liberal dos direitos civis e politicos, nos artigos 3° a 21, com o discurso social dos direitos econdmicos, sociais e culturais, nos artigos 22 a 28. Nao é demasiado lembrar que a invocagao de direitos econdmicos, sociais e culturais, como decorrentes do principio da igualdade, era politicamente relacionada ao socialismo ¢, portanto, a movimentos politicos de grande apelo popular. Recorde-se que jé a Declaragdo Francesa de 1793 — incorporada como introdugio Constituigdo de 1793 — da Repiiblica Jacobina do Ano I, conseqiiéncia da segunda revolugo em 1792, proclamava a igualdade por natureza ¢ perante a lei (art. 3°), prevendo o dever da sociedade de colocar a educagao ao alcance de todos (art, 22), proporcionar trabalho ¢ seguridade social aos menos favorecidos (art. 21)as. Mas essa Declaragdo, forjada no periodo do Terror de esquerda, vigorou somente por trés meses(1s). Os direitos econémicos ¢ sociais somente vém tomar relevo juridico neste século, com a Constituigao Mexicana, de janeiro de 1917, a Declaragéo dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado da URSS, de janeiro de 1918 e a Constituigdo de Weimar, de agosto de 1919. Sobre as condigdes que impulsionam os direitos sociais, José Afonso da Silva alerta que "o desenvolvimento industrial e a conseqiiente formagio de uma classe operaria logo demonstraram a insuficiéncia daquelas garantias formais, caracterizadoras das chamadas liberdades formais, de sentido negativo, como resisténcia e limitago ao poder. Pois a opressio nao era, em relagdo a ela, apenas de carter politico formal, mas basicamente econdmico. Nao vinha apenas do poder politico do Estado, mas do poder econémico capitalista. De nada adiantava as constituigdes e leis reconhecerem liberdades a todos, se a maioria nao dispunha e ainda nao dispde, de condigées materiais para exercé-las. Sintetiza bem a questo Juan Ferrando Badia, quando eseteve: "A burguesia liberal aparenta conceder a todos a liberdade de imprensa, a liberdade de associacio, 08 direitos politicos, as possibilidades de oposigo politica: mas, de fato, tais direitos e liberdades nao podem ser exercidos seno pelos capitalistas, que sio os que tém meios indispensaveis para que tais liberdades sejam reais. E, assim, no caso do direito ao sufragio, este servia para camuflar diante dos olhos dos proprietirios uma papeleta de voto, mas a propaganda eleitoral se encontra nas mos das forgas do dinheiro.” us) Desse modo, os direitos econdmicos, sociais e culturais revelam-se essencialmente necessérios para que direitos civis e politicos possam ser verdadeiramente efetivos, provando-se reciprocamente necessarios. Como visto na Introdugio, a Declarag%o Universal dos Direitos Humanos se constitui numa construgio, de matriz iluminista — a Declaragdo Francesa de 1789 se apresenta como sua fonte mais evidente — e como construgdo reflete as disputas de poder no ambito internacional. Os direitos ali plasmados nao se confundem com direitos naturais ¢ absolutos que, segundo os jusnaturalistas, acompanhariam os seres humanos desde \wn-pge sp govbricenlrodeestudos/bblotecavirtualidretositatades.htm an sonaraa2s |ADECLARAGAO UNIVERSAL DOS tempos imemoriais. Ou, segundo Celso Lafer, nfo so um dado, externo polis; sio um construido, uma invengio ligada 4 organizagdo da comunidade politicavs. Consistem, sim, em resultado de disputas entre grupos sociais ¢ entre estes ¢ o Estado, desenvolvidas no tempo, Os direitos humanos, nos dizeres de Jo: Afonso da Silva, "sio histéricos, como qualquer direito. Nascem, modificamese ¢ desaparecem. Fles apareceram com a revolugdo burguesa ¢ evoluem, ampliam-se com correr dos tempos, Sua historicidade rechaga toda fundamentagao baseada no direito natural, na esséncia do homem ou na natureza das coisas."(17 A dimensio histériea dos direitos humanos esti ligada, como nao poderia deixar de ser, & nogdo de pessoa, em sua conerecio social e histérica. Miguel Reale, ao tratar sobre 0 ser pessoa, aponta que "o homem ¢ a sua historia, mas também é a historia por fazer-se. E propria do homem, da estrutura mesma de seu ser, essa ambivaléncia ¢ polaridade de ‘ser passado’ ¢ ‘ser futuro’, de ser mais do que sua propria historia". Reale arremata: "e note-se que 0 futuro nao se atualiza como pensamento, pata inserir-se no homem como ato, — caso em que deixaria de ser futuro — mas se revela em nosso ser como possibilidade, tensfio, abertura para © projetar-se intencional de nossa consciéncia, em uma gama constitutiva de valores."(1s) Suas palavras permitem perceber como as pessoas ndo sio meros pacientes da historia, mas agentes possiveis de agir de forma ativa (0 ‘projetar-se intencional da consciéncia’) — participar criativamente da vita activa, como dizia Hannah Arendt — constituindo novos valores. Retomando a dimensio politica da construgdo da Declaragdo Universal dos Direitos Humanos, que, neste aspecto, coincide com a Declaragdo Americana de Direitos Humanos, verifica-se que liberdade ¢ igualdade, no sentido que temos atualmente, no se encontravam, em meados deste século, no mesmo nivel. Pugnar pela igualdade, muitas vezes, significava assumir-se comunista ou socialista, ainda que no o fosse, Defender a liberdade, por outro lado, significava, muitas vezes, defender a liberdade de agdo e, por via de conseqiiéncia, a possibilidade de sucesso dos melhores, dos mais capazes, em consagragdo ao liberalismo, © tempo da Declaragdo é também o tempo da consolidago da Guerra Fria. Segundo Lindgren Alves, "durante esse periodo, a disputa ideoldgica entre os dois sistemas antagénicos favorecia, pelo enfoque estritamente coletivista de um deles, a idéia de que a obtengdo de condigdes econémicas adequadas teria prioridade sobre o usufruto dos direitos civis e politicos e das liberdades fundamentais" 9. Boaventura de Souza Santos, de outra parte, observa que "durante muitos anos apés a Segunda Guerra Mundial, os direitos humanos foram parte integrante da politica da Guerra Fria, e como tal foram considerados pela esquerda."20) A tensao entre o discurso liberal ¢ o discurso socialista esta presente na Declaragiio, quando se verifica que vinte um artigos tratam dos direitos civis e politicos, dos quais vinte referem-se a direitos civis e um refere-se unicamente a direitos politicos (a liberdade de opinido e de expresso, bem como a liberdade de associagao ¢ reunido pacificas so relacionadas simultaneamente aos direitos politicos) ¢ apenas seis esto relacionados aos direitos sociais. O artigo XXVIII ja trata, de forma especialmente genérica da espécie de direitos que posteriormente veio a ser denominada Jireitos de solidariedade, ao prever que toda pessoa tem direito a uma ‘ordem social e internacional em que os direitos e liberdades constantes da Declarago possam ser plenamente realizados. Este artigo nao consubstancia, pois, quer direitos civis, politicos, econémicos, sociais ou culturais, tratando, sim, de um dos direitos de solidariedade. O contetido da Declaragio ‘A Declaracao Universal dos Direitos Humanos traz, em seu Preambulo, sete consideranda, consolidando, em especial, (i) a dignidade humana inerente a todos como fundamento da liberdade, da justiga ¢ da paz; (ii) 0 destespeito aos direitos humanos como causa da barbirie; (iii) o direito de resisténeia & opressiio como alternativa ultima a auséncia de protegdo e garantia dos direitos humanos sob o império da lei; (iv) a relagdo direta entre a efetividade dos direitos humanos ¢ a construgdo do progresso social e de melhores condigdes de vida e (v) estabelecimento de uma compreensdéo comum dos direitos humanos para seu pleno cumprimento. Ao proclamar a Declarago, a Assembléia Geral a coloca como um ideal comum a ser atingido por todos os povos ¢ todas as nagées. Ela dirige seu campo de validade, portanto, a todas as pessoas, independente do Estado ou nago a que pertengam ou de qualquer outra especificidade. Ainda, ao dispor que cada pessoa e cada érgdo da sociedade devam se esforgar para promover o respeito aos direitos humanos e para a adogdo de medidas progressivas para assegurar seu reconhecimento © observancia universais © efetives, prevé, \www_pge sp gov bricentrodeestudos/ibliotecavituaidretostraladod.htm sit sonaraa2s ADECLARAGAO UNIVERSAL DOS efetivamente, que ndo somente aos Estados incumbe cuidar para a protegdo, ndo violagdo © promogao desses direitos, mas a todos os membros da sociedade, quer sejam pessoas, quer sejam empresas com fins lucrativos, quer sejam organizagées nao governamentais — j4 que todos so orgaos da sociedade. Nicola Matteucci alerta, a esse respeito, que "as ameagas podem vir do Estado, como no pasado, mas podem vir, também da sociedade de massa, com seus conformismos, ou da sociedade industrial, com sua desumanizacio. E significativo tudo isso, na medida em que a tendéncia do século atual e do século passado parecia dominada pela luta em prol dos direitos sociais, e agora se assiste a uma inversio de tendéncias ¢ se retoma a batalha pelos direitos civis." en E interessante notar que, mesmo passados cingiienta anos da Declaracdo Universal, o postulado nela contido que atribui a todos os agentes sociais a incumbéncia de nfo violar, de proteger e promover os direitos humanos pouco adentrou praxis da Organizagio das NagGes Unidas. A participago das ONGs nos procedimentos da ONU € demasiadamente restrito, a despeito da grande capacidade de mobilizagio da sociedade civil que algumas delas congregam e da sua proximidade com as situagdes de violagio de direitos humanos, néo sé civis e politicos. Ainda, pelo que prevé a Declaragao, cada pessoa poderia ou deveria cuidar para a protecao e promogo dos direitos humanos independente das fronteiras dos Estados e no apenas no Ambito de seu Estado nacional. Verifica-se a permanéncia da concep de que a ONU somente pode relacionar-se com Estados, seguindo a matriz do direito internacional que vigorou até o inicio deste século. Cumpre destacar que a Declaragio nao faz distingao de processo de efetivagdo ou de efetividade formal ou material entre direitos civis e politicos ¢ direitos econémicos, sociais e culturais, diversamente do que expressam os dois Pactos Internacionais de Direitos de 1966. Os direitos previstos na Declaragao devem, todos, ser implementados progressivamente pela educagdo e ensino e por politicas piblicas que assegurem seu reconhecimento ¢ observancia, O sentido da expresso ‘progressivamente” ndo deve significar ‘na medida da vontade politica’, mas sim ‘iniciar-se de imediato ¢ seguir continuamente avangando até sua integral implementagdo’. Ou seja, ndo seré ‘na medida da existéncia de recursos’, mas na destinagdo continua e prioritéria de recursos publicos para a sua consecugdo, de modo a no se verificar, ai, qualquer ‘margem para a discricionariedade administrativags) A linguagem dos direitos humanos ‘A Declaragaio reconhece os direitos humanos considerados essenciais para garantir a dignidade de cada pessoa na sociedade em que vive, de forma a possibilitar a cada uma o desenvolvimento integral de sua personalidade ¢ de sua capacidade de participagdo na sociedade. FE de se observar, todavia, que a linguagem normativa de enunciagao de direitos contida na Declaragdo Universal dos Direitos Humanos, e especialmente por se tratar de direitos humanos, vem permeada de palavras gerais e que, por sua generalidade e vagueza, apresentam um grau de incerteza alto. Termos como ‘liberdade’, ‘igualdade’ e mesmo ‘pessoa’ sao polissémicos, ou seja, comportam varios sentidosay. A conseqiiéneia disso redunda na selegdo, ou eleigio, de um sentido determinado para, no Ambito dos Estados, desenhar-se ¢ implementar-se direitos e politicas pliblicas destinadas a satisfazer a pauta dos direitos humanos. Estes termos ‘liberdade’, ‘igualdade’, ‘democracia’, ‘pessoa’, dentre outros que esto presentes em toda a Declaragio, bem como em todas as normas juridicas de direitos humanos, internas ou intemacionais, so correntes na linguagem politica ¢ na linguagem comum, ¢ possuem carga emotiva forte, sendo, por isso mesmo, imprecisas na linguagem juridica. Desse, modo, além de sua fungao descritiva, tais palavras ou expressdes comportam uma fungdo persuasiva. A conjugagdo dessas duas fungdes das palavras, especialmente as retiradas da linguagem politica, a linguagem dos direitos humanos - e do direito, de forma geral - se converte, como colocado por José Eduardo Faria, num instrumento nao sé de compreensio, mas também de modificagao e transformaco das pautas valorativas em fungio das mudangas sécio-ccondmicas, possibilitando a formagio de habitos, a indugdo de comportamentos ¢ a consolidagao de crengases As expresses de arco aberto desempenham papel decisivo na reprodugao das formas de poder e dominagio, podendo conduzir a alienagio da realidade, conforme o grau de participagdo popular na esfera publica, a0 firmar nos agentes sociais, individuais ou coletivos, a renga em uma ordem harménica ¢ equilibrada, ‘mantidas intactas, todavia, as estruturas de poder preexistentes( ww 9909 govbrlcontrodeestudosfibiolecavitualldretlostaladod him a soinar2021 ‘A DECLARAGAO UNIVERSAL DOS Verificarse a necessidade, entdio, de inerementar-se as ages ¢ mecanismos que permitam amplificar a participagao ativa dos agentes sociais, especialmente pela via associativa, para que seja reivindicada a efetividade dos direitos proclamados na Declaragio Universal, com apropriagdo ex parte populi da linguagem dos direitos humanos, com propostas concretas de politicas publicas que permitam 0 acesso material ao gozo desses direitos em todas as suas vertentes. Para um discurso eficiente dos direitos humanos, & necessirio que a participagdo por meio de associagdes ¢ entidades em favor desses direitos e de politicas publicas se dé também e cada vez mais, no ambito internacional ou transnacional. Boaventura de Souza Santos salienta que as atividades cosmopolitas, que caracterizam as globalizagdes de baixo-para-cima, incluem entre outras, "didlogos e organizagdes Sul-Sul, organizagdes mundiais de trabalhadores (a Federagao Mundial de Sindicatos e a Confederagdo Internacional dos Sindicatos Livres), filantropia transnacional Norte-Sul, redes internacionais de assisténcia juridica alternativa, organizagdes transnacionais de direitos humanos, redes mundiais de movimentos’ feministas, organizagdes nao governamentais (ONGs) transnacionais de militincia anticapitalista, redes de movimentos e associagdes ecolégicas e de desenvolvimento alternative, movimentos literdrios, artisticos ¢ cientificos na periferia do sistema mundial em busca de valores culturais alternativos, ndo imperialistas, empenhados em estudos sob perspectivas pés- coloniais ou subaltemas, ete."20. A Indivisibilidade dos Direitos Humanos na Declaragio Do que ficou dito acima, infere-se que a Declaragiio Universal dos Direitos Humanos ao combinar 0 discurso liberal e 0 discurso social da cidadania, associando o valor da liberdade ao valor da igualdade, traz para si, de fato, a tensio entre estes dois valores. Esta tensio € aparente e existe somente enquanto se mantenha a leitura de seus sentidos sob a forma do absoluto. E da tradigao ocidental, acentuada com 0 cartesianismo, a oposi¢ao. de valores, 0 maniqueismo, que impede a visualizagdo da miriade de possibilidades entre dois extremos, como existem entre 0 branco ¢ 0 preto, 0 zero € 0 infinito. O zero pressupde o infinito, assim como a liberdade deve pressupor a igualdade, uma conduzindo 4 outa, reciproca e simultaneamente. O equilibrio entre estes dois valores é essencialmente necessério para que uma e outra existam no mundo real. Segundo observa Domenico Losurdow) a partir da critica efetuada por Marx, "o que est em discussdo é a relacdo liberdade-igualdade. Além de certo limite, a desigualdade nas condigdes econémico-sociais acaba anulando a liberdade, por mais que esta esteja solenemente garantida ¢ consagrada em nivel juridico-formal” E, cita esse autor uma passagem de Hegel de Fundamentos da Filosofia do Direito, p. 127: "quem softe de fome desesperada, chegando a correr o risco de morrer de inanigo, est numa condigdo de ‘total falta de direitos’, ou seja, numa condigdo que, em tltima andlise, ndo difere substancialmente da situagio de escravo". Por isso & que no € possivel considerar-se direitos humanos simplesmente os direitos civis ¢ politicos, pois, sem os direitos econdmicos, sociais e os culturais, eles se desmancham no vazio, sem ualquer possiilidade de realizacdo sequer parcial. A garantia e o acesso efetivos ans direitos econdmicos, sociais € € manter — as condigdes econdmicas e sociais necessérias para que possam se fazer concretes os direitos civis e politicos, como a liberdade de opinio com eontedido opinativo, a liberdade de expresso possivel de contribuir criativa ¢ construtivamente para a comunidade politica, com pleno acesso aos meios ¢ modos para tal expresso — os meios de comunicagao, ete. ‘As desigualdades nio so privadas, isto &, nao estdo situadas — e nem podem estar — fora da dimensio da esfera publica, E indevido associat-se a liberdade ao pliblico ¢ a igualdade ao privado, de forma a situar somente a liberdade no plano da regulagdo estatal para a sua protegao, especialmente pelo direito civil e pelo direito penal. Nada hé no sistema juridico que permita comparar o nivel de protegao da liberdade com o nivel de protego da igualdade, em scu sentido material. A igualdade formal permanece somente como 0 cixo legitimador do sistema liberal de atribuigdo de direitos. Porém, exatamente porque o exercicio da igualdade material esté geneticamente ligado a0 exercicio da liberdade, torna-se a primeira (a igualdade) de fundamental relevincia para a esfera publica, impondo a ago do Estado para sua protegdo, especialmente com a implementagio de politicas. Jamais se podera falar, por conta do modo como opera o sistema capitalista — que faz maximizar o lucro com a desvalorizagdo da mo-de-obra —, que a desigualdade existe por conta da preguiga ou da auséneia de vocagao para o trabalho e para a riqueza, mantendo certo mimero de pessoas na miséria. Este darwinismo social é argumento préprio dos que vém a desigualdade na distribuigao da riqueza como natural ao primado da liberdade — em sua acepgao absoluta. \www_pge sp gov bricentrodeestudos/ibliotecavituaidretostraladod.htm mt soinar2021 ‘A DECLARAGAO UNIVERSAL DOS A percepgiio da liberdade sob a perspectiva do confronto (a liberdade de um vai até onde se inicia a liberdade do outro) nao & adequada 4 efetivagao dos preceitos da Declaragdo Universal dos Direitos Humanos, pois, para tal é necessario ¢ inerente a colaborago — o labor com —, ou scja, a liberdade de um termina quando termina a liberdade do outro. O discurso dos direitos humanos nao pode persistir associado ao parametro do direito subjetivo, pilar fundamental do direito privado. A titularidade dos direitos humanos, pelo que deflui da Declaragio, nao € ‘contra todos” erga omnes, mas ‘com todos’, exercendo-se coletivamente. Partindo desta concepgio, 0 acesso aos direitos proclamados na Declaragdo ndo se dé de modo passivo, a mera recepgio ou o simples reconhecimento desses direitos, mas de forma ativa, com a conjugagao de todos ‘os agentes sociais para a efetivagio de todo o rol ali previsto, bem como dos direitos humanos que se somaram, Desta forma, toma-se evidente que a materializago dos direitos civis, dos direitos politicos, dos direitos econémicos, dos direitos sociais, dos direitos culturais, e também dos direitos de solidariedade — estes ja desenhados no artigo 28 da Declaragio —, esto indissoluvelmente ligados ¢ interrelacionados, sendo verdadeiramente indivisiveis e interdependentes, A Declaragdo sobre 0 Direito ao Desenvolvimentops, que vem sendo considerada parte integrante da Carta Intemacional dos Direitos Humanos, ao lado da Carta de Sio Francisco, da Declarago Universal dos Direitos Humanos, e dos dois Pactos Internacionais de Direitos de 1966, prevé expressamente (como ja dispunha a Declaragio de Teer, de 1968) no artigo 6°, item 2 que "todos os direitos humanos e liberdades. fundamentais so indivisiveis ¢ interdependentes; atenglo igual e consideragio urgente devem ser dadas & implementagdo, promogio ¢ protegao dos direitos civis, politicos, econdmicos, sociais e culturais." A Declaracio e Programa de Ag&o de Vienags igualmente afirma a indivisibilidade dos direitos humanos no item 15: "todos os direitos humanos so universais, indivisiveis, interdependentes e inter-telacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos de forma global, justa e eqiiitativa, em pé de igualdade e com a mesma énfase. Embora particularidades nacionais e regionais devam ser levadas em consideragao, assim como diversos contextos histéricos, culturais e religiosos, é dever dos Estados promover € proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, sejam quais forem seus sistemas politicos, econémicos e culturais". A Universalidade dos Direitos Humanos na Declaray © item reproduzido da Declaragio e Programa de Aco de Viena afirma, também, a universalidade dos direitos humanos, que ja estava prevista na Declaragdo Universal dos Direitos Humanos. De fato, a Declarasio de 1948 é universal por seu titulo e por seu contetido. Vimos, no inicio deste trabalho, que a intengio primeira era elaborar uma declarag3o internacional. A mudanga nos termos refletiu uma concepedo intencional. A Declaragdo Universal dos Direitos Humanos se pauta pela generalidade na atribuigao dos direitos e pela abstragio de quaisquer diferengas entre pessoas ou grupos. Em contraposig&io aos documentos celebrados anteriormente a ela, em que se buscava a proteco de nacionais ou de minorias, a Declaragdo visou a protegdo de todos os seres humanos. Conforme anota Rudolf Bystrickyao, a resolugdo da ONU A/C3/307 R ev, Vadd. | apontou, em relagao universalidade da Declaragdo, nao haver necessidade de protegdo especifica de minorias. De fato, elas sequer foram mencionadas ¢ o argumento usado nao justifica a omissio. Dentre as formas de manifestago da universalidade na Declaragio Universal dos Direitos Humanos, Bystricky aponta (i) o sentido pessoal: a Declaragio utiliza as expressdes ‘toda pessoa’, ‘ninguém’, ‘todos’, “homens e mulheres’, significando, assim, que os direitos humanos devem ser gozados por todos os seres humanos, independente de cidadania ou de domicilio; (ii) a validade sem fronteiras, conforme prevé o artigo 2°, item 2; (iii) a formulago de apelo nao sé aos Estados, mas a cada individuo e a cada érgio da sociedade para a cooperacio integral. © autor tcheco observa, porém, haver varias concepgdes de mundo e de pessoa & que as nogdes de direito, justica, democracia, liberdade, etc., so categorias histéricas, cujo conteido & determinado pelas condigdes de vida de um povo e por suas eircunstineias sociais. A medida em que as condigdes de vida mudam, também podem mudar o conteiido dessas nogdes ¢ idéias. As idéias regentes de uma época sio as idéias de sua classe dominante. Entretanto, o mesmo autor adverte que essa abordagem nio \wo.pge sp govrlcenirodesstudos/ibiotecavitusidreliotrelado4 Ni an sonaraa2s |ADECLARAGAO UNIVERSAL DOS nega a existéncia de ideais, principios, nogdes que possuem, ao menos em certa medida, um cardter universal uma espécie de denominador comum em certo periodo histéricoa», 0 fato & que 0 proprio termo “universalidade’ possui acepgdes diversas no tempo ¢ no espago, confundindo- se, nao raro, com ‘universalismo’, Riccardo Scartezzini adverte que o carater contraditério do universalismo é genético, salientando que o universalismo modemo se fundamenta em uma ideologia individualista que defende a autonomia e a liberdade do individuo, emancipado de crenas e de dependéncias coletivas. Em suas palavras, "0 universalismo modemo nao se conota como promogao universal das totalidades, mas sim de individuos coneretos. Com efeito, diferentemente dos universalismos clissicos e monoteistas, 0 universalismo moderno fomenta o individual, o singular, a diferenga."c2) Dai que falar-se em universalismo nao pode jamais permitir que se tente evocar um modelo de homem universal. Modelos nio existem no mundo real, assim como nio ha um ‘homem padrio’, uma ‘mulher padrao” ou a ‘crianga padrio’. Consideragées dessa espécie s6 se prestam a afastar os prinefpios ¢ as regras de direitos humanos da realidade, neuttalizam alternativas, produzem a irrelevancia das pessoas pelo nivelamento ¢ produzem a desresponsabilizagdo dos agentes piiblicos e dos agentes sociais. E por isso que a universalidade nao pode significar uniformidade. A universalidade da Declara levar ao equivoco, que ainda se vé, da desconsideragdo das diferencas especificas entre pessoas por razdo de género, raga, procedéncia, credo, etnia, ete. Tratar como igual o que é diferente, ou seja, tratar igualmente homens, mulheres, criangas, indigenas, minorias, negros, brancos, produ, de fato, desigualdades muitas vezes severas, que se constituem em violagdes de direitos humanos. A protego maior a tais grupos é necesséria para a efetividade da Declaragao. Porém, nestes tempos de globalizagdo, a diferenga especifica em razio das marcas culturais vem tomando relevo, sob 0 temor da pasteurizagao cultural. Nao falamos aqui de aspectos que, sob a falsa protegao da cultura em seu aspecto positivo, significam, em verdade, mecanismos de opressio e¢ desumanizagio ideologica de grupos ou segmentos da populagdogs, mas de diferengas entre culturas que, a0 invés de atrapalhar, contribuem para esse chamado universalismo dos direitos humanos. Ressaltando a importincia da cultura para a construcao dos direitos humanos, Boaventura de Souza Santos propde uma concepgdo multicultural de direitos humanos. O autor observa que "concebidos como direitos humanos universais, os direitos humanos tenderdo a operar como localismo globalizado — uma forma de globalizagio de cima-para-baixo. Para poderem operar como forma de cosmopolitismo, como globalizagao de-baixo-para-cima ou contrashegeménica, os direitos humanos tém de ser reconceptualizados como multiculturais. ... O conceito de direitos humanos assenta num bem conhecido conjunto de pressupostos, todos eles tipicamente ocidentais, designadamente: existe uma natureza humana universal que pode ser conhecida racionalmente; a natureza humana é essencialmente diferente e superior a restante realidade; 0 individuo possui uma dignidade absoluta ¢ irredutivel que tem que ser defendida da sociedade ou do Estado; a autonomia do individuo exige que a sociedade esteja organizada de forma nao hierarquica, como soma de individuos livres."(34) Tratando dessa questio, Boaventura de Sousa Santos prossegue alertando que contra o universalismo uniformizante deve se proceder a ‘didlogos interculturais’ sobre ‘preocupagées isomérficas’, de forma a se buscar por "valores ou exigéncias mximos ¢ nao por valores ou exigéncias minimos (quais scriam tais valores minimos? Os direitos fundamentais? Os menores denominadores comuns?). A adverténcia freqiientemente ouvida hoje com novos direitos ou com concepgdes mais exigentes de direitos humanos & uma manifestagao tardia da redugdo do potencial emancipatério da modemnidade ocidental a emancipagio de baixa intensidade, possibilitada ou tolerada pelo capitalismo mundial. Direitos humanos de baixa intensidade como 0 outro lado de democracia de baixa intensidade."o5) O estabelecimento de um verdadeiro dialogo intercultural voltado 4 conjungao dos valores maximos de cada cultura ind permitir a construcdo de um discurso dos direitos humanos habil a implementar a efetividade da dignidade humana, conferindo contetido material aos direitos previstos na Declaragao Universal dos Direitos Humanos. Um didlogo dessa espécie no pode se dar sem a compreensio da cultura do outro como uma cultura de igual valor, nem melhor nem pior. Deve ser, pois, um didlogo permeado pela solidariedade. Assim como so solidarios entre si os direitos humanos, também devem ser solidarias as culturas entre si. \www_pge sp gov bricentrodeestudos/ibliotecavituaidretostraladod.htm ait soinarza2t ‘A DECLARAGAO UNIVERSAL DOS (1) Bias refers nici o Prembulo da Declarago Univesl dos Dire manos, (2) Wer Socoog floofa dl derecho, Mai, Tears, 1984, 9p. 286, (@) Ere Hobsbawn. "A Revlugdo Frances" xe de 4 Ba das Revolusdes, So Palo: Paz Tar, 1996p. 19-2. (4) Ver Loais Henkin, lemons Law: polis, ves and fnstions +216 Called Courses of Hague Academy of Intemational Law 13,4 1989, p. 208 in Hemy J ‘Seinere Philp Alston, ftrmatonal human right in conte law, polite, morale Oxford Clarendon ress, 1996, 915-118 (6) Para uma indicago dos tamdos e convengSes fmados nese pvido, ver Enrique Ricardo Lewandowski, Prorgdo dos diretos humanos ma ondem interna ¢ Internacional, Ro de lai: Foren, 1984p. 7879. (8 Piowetn, Dirios umanos eo dircitconstitaciona internacional, Sio Polo, Max Lion, 1996p, 133 (7 Astono Tayo y Sea, Los derechos humanas, Madi Teco, 197, p ()0p.cit.p. 4 (9) Vide, a ess espet, Louis Hea, ct p15. (40) Hew, idem. (1) Paolo Mengozi, Dist Humana I, Dicondria de polica, ng. Nobo Bobbio eli 6 Basis, UB, 1992, 9.356 (12) Opt. 16, (15) Algae exenlo de desitoscoonmicoe sons provisos na Dear dot Diets do Homer edo Ciao de 24 demo de 1793 Artigo 5 - Todos os cialis so geaimente amiss 20s empre gs pablics, Os povos ives no conhecem otros mvs depreferéni, em Artigo 17 -Nio se poe impo qu os siadios se dediquem a qualquer pode trabalho, atvdaée ou cométco, ‘Aatigo 19 - Qualgue pessoa pole contr seus serves e seu temp, mas no pode se vende nem served sua peson no € propiedad alindvel. A lei no adite a ‘teri; no pd Raver mado gus um compro de servion crue ene o Ramer gu raaihae 9 qe The deme. ‘Artigo 21 A henefiéaca pba & ua divida sora, A socidade deve aseguar a subssncia 2s ciados menos fverecidos, sa proporconandetestabaho, sia gurninds thes of mesos de exsncia as gee ncaacinos para tabular. ‘Aigo 2 - A istry & ume necssdae prs todos. A soled deve fvorecer com tol sn pro progetto da uso pice e colocer air a lcace de {dos oe cidade ‘Not: Pata iat ter da Declrado, ver Marla José Ao Reig tall, Derchas humana eos y casas pris, Vlecia, Ta lo Blt, 1996, . 25.28 (14 Em 1795, falda o Tero de ii, fo implanad ctr Contino, que spin os diteltosesontmics esas de 1783. (15) Ver Cut de Diet constitcional positive, 9 evs (16) Ver 4 rconsnigo doe dios humana - uy dingo com o pensamento de Hannah Arend, SSo aslo, Companhia ds Letras, 1991 . 138. Podeseairmas, como ‘Selarecinenze que eneademos a comutidae pollca come ado adseasimplesmate as Lines eitviis ds Estados. A jusapoiei indvida ese Estado comniade politen€atalmeste desi deconsisiéaci material. Nese tempos em gue o capital &globslzado egraga Sem regrs,cosiear os dteos como leas ou nacionis ‘fea pom a vol de od o conus de dios bumanon, (1) 0p,» 165 (1) CF "Peso, sociedad histrie',om Paralioma libedade, 0 Paul, Saravs, 1963, p71 (19) Yer Or airetins humanos como toma global, So Pcl, Pespetvas, 1994, p. 4, Stic Estos. (20) Ver "Uma coneepso miu de drt bumanes", em Lua Nova - Revista de Cultura Politica, CEDEC,n. 39,9. 105, 1997 (21 CF. Verte Diets Hamanos, icin de Pott 9.356. (22) Ese entendimento deft to somente da Declaragio Univsal, nas especialnerte da Constiuigo Federal qu, no seu artigo isin com objeivosfundamentis da Replies (I) constrain de sosiedae ve, jose sola, (I) garni odesenelvmenta aaciona, (I) x emadicaco (eno simplemente ree) da pba, da smarginlzato e rdupio das desigualdads sociaserelonise(0V) «promogio dobar de todos, sem presoncutos de ong aga, seo, cor, ida «wun owas ‘orm de cecriminavin, Contino objets da Republica, ods ae agdes Go Estado o 8k tcidads dover eva vlads eno inetamens 8 conse tote estes fins eno de modo meramente formal, pra dose sent pst alguns grupos. (25) Sobre ox conceit « cones jrico ndcermiades, ver Hos Rebcro Gray, Dino conceio« arma juridica, Sho Paso, Revs don Tebunat, 19H, 5543, ‘Spevialeatep. 72 5. Geno Cala, em suas Naas sobre derecho y lengua, 4 ed comigigaeaumeatada, Buetos Aes, Absledo-Peno, 1965 (1090), alta gue "ES “ariel pevuponer que las eterior que presen oso de at palabras gue eplcamor are hablar acerca del ead estan stanentedeerminador. Par en é Inds que ina that. Sis not pide he hegamos epic cl cero de aplcaton dena palabra podemes indica in clera nimere de euraceritcat, o propedadet ‘lftorany coer que todas las ora propidadesposbss no incidas ere aquellos estan, por elo. exclidas como mo reevanes. Esta croracia vs equvocada. Silo [pueden ser excllda! como irievants tas propiedades 0 araceriicas posiles que han sido consierades, pero mo las gue nolo han sido. Estas timas no extn ‘xcuidas;ewando se presenta un caso enol que sparece una a msde ellas es perectamentlgitimo que sintamas duds gue no puedem sr eliminades por un proceso te pure deduccin a parr del significado coriente dela plabre #1 a00 ue estar esse repel, totlmente“aieta” Es deci no decidilo 0 en or termi ‘lspueso a amir extonsones o educciones "(gfe ose. Ques salen com exta listo de Genaro Came que a texture abla da Taguagem no peeite gue, Se “nto ou or prs de, sjam determina seni cxchdon quando dew pega (24) José Bardo Paria (0 modelo hea desi ¢Fstato In: Diet jst anc social do udiciro, Sto Pl, Aiea, 1989, . 221) observa a ese respi que “papas ala crea enotiva desas plata, com Uibedads eguldads', els poem »defesa Ge Valores ables por ages que as avocam =o que expla sz pein qual oIibralsno jrece-pollc,patindo ds noo de Iiberdade frase converte num efiiat recurs retrice de qu se vale uma dada cls pra, um dado Imomeato da his air begeonscunte tama da onnasSo soil, As mascara a prescga de signticados chelivos fla aparaca de contedosinermative, eset ‘xpolienes recrces sbrem camino para a congusa de unaimidade de Um comusto de attudes, habits e procedimentos. Ou see produzem reastes de SprovainldesspovacSoe amorlso, nb propsiamete por meio de ispapdes sobre realidad, rat por mea de pedeterminaSerieslpies Urea como dads Ingustondves sore o mundo. A Tora opcrativadescsexpedinisretrces ¢ ue fa, do beralisno juice poles ede su hfe 8 noydo de Merde tlds pla, ‘im dot mais mporaneseteretipon pcos do menda moserno« coniemporines Vinca so confor de nereee 4 fu pelo poe,» exteestio plea € terme gus as apuencasdesrivascovolvem, manipula eescondememojic,peitinds aos goverases eongUstar«adesio ds goveraadas ss Vlotes pcvalecstes pela forga mica dos elementos signfcans, em derimento da signiiagbes. As exes estereatipadas na nguagem poicacmprem assim, um papel decisive ‘Rprodundo ds formas do podsr- eC nesse sentido que oesterebupo Ital’, produstdao efi de dtancamenlo co consaente cepa oleae gual oFrado ‘moderne manopolza a produ do deo e manip os instumentos rmavos e polices ueessiros i manitenao Ge ur pao especfico de cominaso,provcs ua ‘Slnaglo coproucive cre “cidade” foreaeesne igus’ aia, a srt levadoa a acrediar va potas deus cees lp eaulibadee bartonc, on ual ot ‘onto socio-econdmicos slo masaraose "eslvidoe ela fry eric Gas normas gue regula ¢ decide os confitosuiicos, cs "idados” tora capazes Se ‘Sompreender dominu ar estas svi em gue ele, ein sbdaos Ntriamone stad, en eros” wvn-pge sp.govbricentredoestudostbibliotecavitualliretosivalades htm son soinarza2t ‘A DECLARAGAO UNIVERSAL DOS (25) Patrica Helena Massa, dlgunas bservacies sobre dreto ambiental e mercado, Disseragio de Mestad, FD-USP, 198, (25) pct. 0 (27) Ver “Mary, teadioliteal ea consruohitven do concio univer de borne” em Educa © cidade, Revista Qube de Ciéncia da Educagio {CEDES, 57, Campings, 1996p. 687. (28) Adotad pla Reslogdon. 41/128, da Assembla Geral das nasSes Unitas, de 4 de dezembro de 1986. Vide, pura to intel, Insrumenios internacional de [prota doe dinstos ams, Can de Estados Posada Gero Fads - See Documenog, 14 dcr. 1986 5-60 (29) Adoadaconsnsualmets, em plenii,pela onfecia Muni dos iret Humanos, em 25 de juno de 1998. Vide Isrumenta.. ip 6199. (60) Ver he universal of oman rigs ina world of conflicting ideologies, 4 61 0p itp. 8488, 62) er 199%,» 28 razon del niverslidedy dela dernca” cm Universidad aferenia, Salvaer Giver ¢ Rieu Scarezis (eds), Madd Alianza Uivesidad, (65) A mutes geil femininapricnda por maatmans em especial por cristivesoptas cm bos pare da Aisa, &0 exempl it, sempre cdo, Mas, bm, 9 Tratumenls outro dling proton rs mst pe emus lon pss deve uaimene, aes clr ua aend em mone pom menos defeated ‘co primero exerplo. Como bem apnta A. Lindten Alves," vlog Glberaga de dio humans, do pono de via dos porptedore,foqntrent em {ode eusiquer era pa de urs postu eoletia, ais ou menos astumia, que deegsahuranidade da tina (cA ftoraia de wm cone, Holt es para 1 Domacraci, 4a. 13,910, jus jal 1998) (64) pct. 2. 65)Cit,p. 4 wvn-pge sp.govbricentredoestudostbibliotecavitualliretosivalades htm aw

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