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FAMÍLIA ESCRAVA E RELAÇÕES DE COMPADRIO:

ESTUDO DAS TERRITORIALIDADES ESCRAVAS NA FREGUESIA DE


SANT’ANA DE SÃO JOSÉ DE MIPIBU (1841-1862)

CLARA MARIA DA SILVA


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – MESTRADO
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA E ESPAÇOS
LINHA DE PESQUISA: FORMAÇÃO, INSTITUCIONALIZAÇÃO E
APROPRIAÇÃO DOS ESPAÇOS

FAMÍLIA ESCRAVA E RELAÇÕES DE COMPADRIO:


ESTUDO DAS TERRITORIALIDADES ESCRAVAS NA FREGUESIA DE
SANT’ANA DE SÃO JOSÉ DE MIPIBU (1841-1862)

CLARA MARIA DA SILVA

NATAL/RN
2021
CLARA MARIA DA SILVA

FAMÍLIA ESCRAVA E RELAÇÕES DE COMPADRIO:


ESTUDO DAS TERRITORIALIDADES ESCRAVAS NA FREGUESIA DE
SANT’ANA DE SÃO JOSÉ DE MIPIBU (1841-1862)

Dissertação apresentada como requisito parcial para


obtenção do grau de Mestre no Curso de Pós-Graduação
em História, Área de Concentração em História e Espaços,
Linha de Pesquisa Formação, institucionalização e
apropriação dos espaços, da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, sob a orientação do Prof. Dr. Helder
Alexandre Medeiros de Macedo.

NATAL/RN
2021
CLARA MARIA DA SILVA

FAMÍLIA ESCRAVA E RELAÇÕES DE COMPADRIO:


ESTUDO DAS TERRITORIALIDADES ESCRAVAS NA FREGUESIA DE
SANT’ANA DE SÃO JOSÉ DE MIPIBU (1841-1862)

Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre no Curso de
Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, pela comissão
formada pelos professores:

Dr. Helder Alexandre Medeiros de Macedo - UFRN


Orientador

Dr. Gian Carlo de Melo Silva - UFAL


Avaliador Externo

Dra. Juliana Teixeira de Souza - UFRN


Avaliador Externo

Dr. Magno Francisco de Jesus Santos - UFRN


Avaliador Interno

Dr. Lígio de Oliveira Maia - UFRN


Suplente Interno

Dr. Luciano Mendonça de Lima - UFCG


Suplente Externo

Natal, 28 de junho de 2021.


Para Nivaldo e Fátima, meus pais.
“Somos herança da memória
Temos a cor da noite
Filhos de todo açoite
Fato real de nossa história
Se preto de alma branca pra você
É o exemplo da dignidade
Não nos ajuda, só nos faz sofrer
Nem resgata nossa identidade”
(Identidade, Jorge Aragão)

“O navio se tornava maior e mais assustador a


cada impulso dado pelos remos. Os cheiros
ficavam mais fortes e os sons, mais altos – gritos
e lamúrias de um lado, cantos lamentosos de
outro; o alarido anárquico de crianças
secundado pelo barulho de mãos tamborilando
na madeira; uma ou duas palavras soltas
compreensíveis: um pedindo menney, água,
outro soltando uma praga, invocando myabecca,
espíritos. Enquanto os canoeiros manobravam a
embarcação ao lado do navio, ela viu rostos
negros, aparecendo através de buraquinhos no
costado, acima da linha de flutuação, olhando
atentamente para ela. Pouco acima, dezenas de
mulheres e crianças negras e uns poucos homens
de rosto avermelhado espiavam por cima da
amurada. Eles tinham assistido à sua tentativa
de fuga para o banco de areia. Os homens
empunhavam cutelos e vociferavam ordens com
vozes rudes, estridentes. Ela chegara ao navio
negreiro.” (Marcus Rediker. O navio negreiro.)
AGRADECIMENTOS

Esta foi a última coisa escrita nessa dissertação. Não porque é a parte mais fácil de
se escrever, muito pelo contrário, porque é uma das coisas mais difíceis. Difícil pois, apesar
do processo solitário de pesquisa e escrita da dissertação, eu não teria conseguido chegar até
aqui sem uma enorme rede de apoio de familiares e amigos. Então sim, este é um trabalho
escrito por uma pessoa só, mas apoiado, incentivado e sonhado por muitas pessoas.

Primeiramente gostaria de agradecer à CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento


de Pessoal de Nível Superior) pela bolsa de pesquisa concedida durante 24 meses de
mestrado. As pesquisas realizadas nas mais diversas áreas por pesquisadores nas pós-
graduações das Universidades são de fundamental importância para o desenvolvimento do
nosso país, e ter a possibilidade de se dedicar exclusivamente a esta atividade tão importante
é, infelizmente de um privilégio enorme. Agradeço a esta instituição com votos de que em
breve todos os estudantes possam desfrutar e se dedicar exclusivamente às pesquisas como
elas merecem, sendo a concessão de bolsas uma regra e não uma exceção.

Agradeço também as minhas tias, tios, primas, primos e agregados da família


Miguel e Euzébio por sempre sonharem os meus sonhos como se fossem deles. O apoio em
cada almoço, em cada telefonema, em cada ausência minha nas comemorações de família,
me dando forças, acreditando que eu conseguiria terminar este trabalho foram essenciais para
a finalização desta dissertação. Estudar sobre os antepassados de nossa família foram um dos
motivos que me fizeram não desistir de todo esse processo. Muito obrigada!

Aos meus avós paternos, Sebastião Miguel (in memoriam) e Lourdes (in
memoriam), e maternos Otacílio Euzébio e Maria das Graças, por terem criado uma família
tão linda como a nossa. Sou muito grata por poder honrar a memória e história dos meus avós
e poder estar ocupando espaços com o estudo que eles nem sonharam em chegar. Espero
sempre honrar com a luta e educação que meus avós deram aos meus pais, tios, primos e a
mim.
Como dizem: amigos são a família que nós escolhemos em vida... E felizmente o
universo tem me abençoado com pessoas que tenho a sorte de chamar de amigos ao longo de
minha caminhada. Aqueles que estão na minha vida a mais de doze anos: Andréa, Isabel e
Rafael. São difíceis de escolher palavras para agradecer por todo o suporte que sempre me
deram. É uma honra poder aprender todos os dias com vocês, suas experiências, seus jeitos
de pensar, a coragem de vocês. Muito obrigada por todo o apoio desde muito nova. Tenho
muito orgulho dos adultos em que estamos nos transformando.

Do primeiro dia de aula dela no Salesiano ao infinito! A minha melhor amiga, e


artista que dedicou parte de seu tempo e seu enorme talento a embarcar nas ideias malucas
desta historiadora aqui. Renata Alves, obrigada por estar na minha vida a todos esses anos,
por ser meu ombro amigo nos momentos de tristeza e a leveza e companheirismo nos
momentos de felicidade. Saiba que estarei aqui e para ti para sempre!

Agradeço também a outra artista talentosíssima e que tenho orgulho de chamar de


amiga, Júlia Moura, por sempre me apoiar. Obrigada por acreditar em mim e neste trabalho,
por ter aceitado me ajudar sem nem pensar duas vezes. Agradeço pelos anos de amizade e
que venham muitos mais sempre regados a um bom vinho e muita música.

Na faculdade de História fui agraciada com três amizades muito mais que especiais,
professores e pesquisadores com quem venho aprendendo desde a graduação, os quais tenho
certeza de que irei aplaudir muito ao longo da vida professional e pessoal. Gabriel Barreto,
Jussier Dantas e Rita Thainá, nossas vidas se cruzam em vários momentos, pessoas com
quem já pude/posso compartilhar momentos pessoais e profissionais. Tive o privilégio de
trabalhar com os três em projetos de pesquisa e confio de olhos fechados nos profissionais
sensacionais que eles são. Obrigada por me ensinarem, me ouvirem e por continuarem em
minha vida desde 2014.

À minha família carioca, a qual ganhei no ano de 2016 quando fui fazer mobilidade
acadêmica na Universidade Federal Fluminense. Zinha, tia Alexandra, Gustavinho, Felipe,
Carol, Alexandre, André e Alice, obrigada por me acolherem e sempre torcerem pelas minhas
vitórias.
Agradeço aos meus amigos que tive o prazer de fazer no período do mestrado, o
grupo mais nordestino deste PPGH: Ed de Sobral-CE; Emerson e Larrisa de Pombal-PB;
Thiago de Campo Maior-PI; Jhon do Recife-PE; e Pedro de Fortaleza-CE. Cada um com sua
personalidade e experiências de vida tornaram estes dois anos um pouco mais leves e
divertidos. O apoio mútuo entre nós mostrou-se como uma força para continuarmos dia a dia
na labuta da pesquisa. Desejo poder rever cada um de vocês em breve!

Ao longo da minha caminhada como pesquisadora tive o prazer de encontrar


Gustavo Freire, um estudante negro, empolgado igual a mim, que também queria
compreender mais sobre a gente negra no Rio Grande do Norte Oitocentista. Agradeço ao
universo por ter cruzado os nossos caminhos, pois juntos trocamos muitas figurinhas,
vibramos com as descobertas de pesquisa, indicamos novas leituras um ao outro e tentamos,
todos os dias, dar voz ao povo preto em nossas pesquisas. Obrigada pela sua parceria
Gustavo! Certamente o processo solitário e árduo de pesquisa tornou-se muito mais prazeroso
e empolgante ao ter você por perto.

Aos professores Carmem Alveal, Durval Muniz de Albuquerque Júnior, Lígio Maia,
Magno Santos e Raimundo Arrais pelos ensinamentos em cada disciplina que me auxiliaram
a lapidar, refletir e melhorar este trabalho. Meu agradecimento mais que especial ao meu
orientador, professor Helder Macêdo, que com o seu carinho, cuidado, atenção e dedicação
acreditaram em mim e no meu projeto desde o primeiro momento. Sou muito grata por ter
conhecido este pesquisador espetacular, professor dedicado e ser humano incrível que é
Helder. Muito obrigada professor! Não tenho nem palavras para agradecer por tanto apoio.

Dedico também um agradecimento mais que especial a duas professores que


marcaram minha trajetória: Margarida Dias e Juliana Teixeira. Estas duas mulheres
inteligentes, fortes e imbatíveis me mostraram que lugar de mulher é onde ela quiser; me
mostraram como é importante lutarmos pelos nossos ideais, e como vale a pena. Exemplos
de mãe, esposa, professora, pesquisadora e amiga, Margarida e Juliana desde a graduação em
História apresentam-se para mim como um exemplo a ser seguido.

Por fim, agradeço e dedico esta dissertação para a minha mainha e o meu painho:
Fátima e Nivaldo. A paixão pela educação de minha mãe e o amor a História do meu pai não
poderiam dar em outra: uma professora de História. Só eles sabem o quanto se dedicaram,
física, psicológica e financeiramente ao longo dos anos para me fornecer uma educação de
qualidade. O conhecimento é a única coisa que ninguém pode tirar de um ser humano, e
acreditando fielmente nisso meus pais ao longo de minha vida sempre me incentivaram a ler
e estudar. Hoje eu, como mulher, negra e nordestina poder ocupar espaços com o estudo que
meus pais sempre quiseram e por motivos da vida não conseguiram frequentar me fazem
acreditar que todo o esforço deles está valendo a pena. Espero sempre ser motivo de orgulho
para vocês. Muito obrigada por acreditarem em mim. Por sonharem, sofrerem, rirem,
chorarem e se alegrarem com cada passo meu. Amo muito vocês!
RESUMO

O objetivo deste trabalho é analisar a presença de famílias cativas na freguesia de Sant’Ana


de São José de Mipibu entre os anos de 1841 e 1862, observando a construção de uma
territorialidade escrava em um espaço que não era deles a priori, mas sim da Igreja e
sociedade católica. Interpretamos a formação das instituições familiares escravas neste
espaço como um ato de resistência e sobrevivência por parte dessas mulheres e homens
escravizados, os quais estavam inseridos dentro de uma sociedade escravista. Para isso, temos
como fonte principal de estudo os registros de batismo desta freguesia, os quais foram lidos,
transcritos, analisados e sistematizados com base na metodologia da História Serial e
Quantitativa. Assim, acreditamos que as escolhas dos padrinhos e madrinhas pelas famílias
cativas no momento do batismo das crianças escravas seria uma estratégia de sobrevivência,
(re)existência e busca por autonomia destes seres escravizados. A escolha pelo estudo da
freguesia de Sant’Ana se deu, pois, parte de seu território eclesiástico está localizado na zona
rural da cidade de São José de Mipibu que no século XIX desempenhou um papel importante
economicamente dentro da província do Rio Grande do Norte, contando com pequenos e
médios engenhos produtores de açúcar, rapadura e cachaça, atividades que necessitam de
significativa mão de obra escrava para trabalhar nas plantações de cana-de-açúcar.

Palavras–chave: família escrava; escravidão; registros de batismo; compadrio; freguesia de


Sant’Ana de São José de Mipibu.
ABSTRACT

The objective of this study is to analyze the presence of slave families in the parish of
Sant'Ana of São José de Mipibu between the years 1841 and 1862, observing the construction
of a slave territoriality in a space that was not theirs a priori, but rather the Church and
Catholic Society. We interpret the formation of slave family institutions in this space as an
act of resistance and survival by these enslaved women and men, who were inserted in a slave
society. For this, we have as the main source of study the baptism records of this parish,
which were read, transcribed, analyzed and systematized based on the methodology of Serial
and Quantitative History. In fact, we believe in the choices of godfathers and godmothers by
captive families at the time of the baptism of slave children would be a strategy for survival,
(re)existence and the search for autonomy of these slavery people. The choice to study the
parish of Sant'Ana was because part of this ecclesiastical territory is located in the rural area
of the city of São José de Mipibu, which in the 19th century played an important role
economically within the province of Rio Grande do Norte, counting on small and medium
sugar, rapadura and cachaça sugar mills, activities that require significant slave labor to work
in the sugar cane plantations.

Key Words: slave family; slavery; baptism records; godparents; parish of Sant’Ana of São
José of Mipibu.
LISTA DE MAPAS

Mapa 1 - Aldeias potiguares citadas por Cronistas Holandeses (1630 – 1654) 39


Mapa 2 - Aldeamentos e Vilas do Rio Grande do Norte 42
Mapa 3 - Recorte do mapa da Província do Rio Grande do Norte,
identificando a área pertencente ao município de São José de Mipibu - século 47
XIX, 1868
Mapa 4 - Recorte do mapa da Província do Rio Grande do Norte,
59
identificando o Vale do Ceará-Mirim e o Vale do Capió - século XIX, 1868
Mapa 5 - Território, aproximado, da freguesia de Sant’Ana de São José de
105
Mipibu, 1841-1862
Mapa 6 - Localização aproximada do Engenho Porteiras, de propriedade do
144
Capitão João Duarte da Silva (1841-1862)
Mapa 7 - Localização aproximada do Engenho Olho d’Água, de propriedade
154
do Capitão Miguel Antônio Ribeiro Dantas (1841-1862)
LISTA DE GENEAGRAMAS

Geneagrama 1 - Família Ribeiro Dantas de São José de Mipibu 142


Geneagrama 2 - Relações de compadrio na família de Damiana e Vital,
146
escravos do Capitão João Duarte da Silva
Geneagrama 3 - Relações de compadrio na família de José e Benedita,
149
escravos do Capitão João Duarte da Silva
Geneagrama 4 - Relações de compadrio na família de Eugenia, escrava do
159
Capitão Miguel Antônio Ribeiro Dantas
Geneagrama 5 - Relações de compadrio na família de Torquato e Vicência,
161
escravos do Capitão Miguel Antônio Ribeiro Dantas
LISTA DE TABELAS

Tabela 1 - Engenhos da Província do Rio Grande do Norte em 1854 62


Tabela 2 - Dados populacionais da província do Rio Grande do Norte em 1855 66
Tabela 3 - Dados populacionais sobre o número de livres e escravos na
69
província do Rio Grande do Norte (1844-1872)
Tabela 4 - Número de batismos de cativos por ano na freguesia de Sant’Ana
108
(1841-1862)
Tabela 5 - Mapa dos engenhos de moendas de ferro e engenhocas da Comarca
113
de São José de Mipibu e o respectivo número de escravos
LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 - Porcentagem de escravos por Freguesia (1855) 67


Gráfico 2 - Porcentagem dos locais de batismo dos escravos na freguesia de
106
Sant’Ana (1841-1862)
Gráfico 3 - Porcentagem de legitimidade de crianças escravas batizadas na
112
freguesia de Sant’Ana (1841-1862)
Gráfico 4 - Porcentagem da condição jurídica da mãe das crianças escravas
117
na freguesia de Sant’Ana (1841-1862)
Gráfico 5 - Porcentagem da condição jurídica do pai das crianças escravas na
122
freguesia de Sant’Ana (1841-1862)
Gráfico 6 - Porcentagem da condição social do pai das crianças legítimas
123
escravas na freguesia de Sant’Ana (1841-1862)
Gráfico 7 - Porcentagem da condição jurídica do padrinho na freguesia de
136
Sant’Ana (1841-1862)
Gráfico 8 - Porcentagem da condição jurídica das madrinhas da freguesia de
136
Sant’Ana (1841-1862)
LISTA DE IMAGENS

Imagem 1 - Igreja Matriz de Sant’Ana e São Joaquim de São José de Mipibu 94


Imagem 2 - Igreja Matriz de Nossa Senhora do Ó de Nísia Floresta (antiga
95
cidade de Papari)
Imagem 3 - Casa grande do Engenho Olho d’Água 156
Imagem 4 - Chaminé do Engenho Olho d’Água 157
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 20

2 FORMAÇÃO ESPACIAL DA FREGUESIA DE SANT'ANA E A CONSTRUÇÃO


DO TERRITÓRIO PELOS ESCRAVOS (SÉCULOS XVII - XIX) ............................ 38
2.1 Da Missão do Mipibu à Vila de São José de Mipibu: criação da Freguesia de Sant’Ana
............................................................................................................................................. 38
2.2 A estrutura socioeconômica de São José de Mipibu a partir da análise dos Relatórios dos
Presidentes de Província do Rio Grande do Norte (século XIX) ........................................ 55
2.3 Presença negra no território de Mipibu ......................................................................... 72

3 DEMOGRAFIA ESCRAVA EM SÃO JOSÉ DE MIPIBU: CONSTRUÇÃO DO


PERFIL DAS FAMÍLIAS ESCRAVAS A PARTIR DAS ANÁLISES DOS
REGISTROS DE BATISMO E CASAMENTO ............................................................. 80
3.1 As (re)configurações da família escrava na historiografia brasileira ............................ 80
3.2 Filiação de pessoas negras: as informações dos registros de batismo ........................... 91
3.3 Um perfil das famílias escravas na Freguesia de Sant’Ana de São José de Mipibu .........
........................................................................................................................................... 101

4 FAMÍLIAS ESCRAVAS E O COMPADRIO COMO ESTRATÉGIA DE


CONSTRUÇÃO DA TERRITORIALIDADE NEGRA: ESTUDO DE CASO DOS
ENGENHOS PORTEIRAS E OLHO D’ÁGUA .......................................................... 127
4.1 A figura da família e dos padrinhos na sociedade Oitocentista ................................... 128
4.2 Os padrinhos preferenciais: padrões e regularidades .................................................. 133
4.3 Engenho Porteiras ........................................................................................................ 139
4.4 Engenho Olho d’Água ................................................................................................. 153

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 171

6 FONTES ........................................................................................................................ 176

7 REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 179

8 ANEXOS ....................................................................................................................... 188

9 APÊNDICES ................................................................................................................. 192


20

1 INTRODUÇÃO

Uma das imagens historiográficas mais insistentes a respeito do período colonial no


Brasil, e que se internalizaram na cultura histórica, foi/é aquela de que os escravos não tinham
famílias1. Essa perspectiva construída a partir do modelo da família patriarcal colonial e, mais
tarde, da família nuclear de uma sociedade urbano-industrial moderna, incutiu na nossa
mentalidade, de um modo geral e, sobretudo, nas subjetividades dos negros, uma visão e
sentimentos de que não teriam tido laços identitários.
Tais pesquisas evidenciam que interpretações formuladas a partir de tempos e
espaços localizados e específicos se generalizadas para o conjunto de um país caracterizado
por uma ampla diversidade histórico-cultural como o nosso não são cabíveis. As histórias
vividas pelo povo negro são bem mais densas, múltiplas e ricas do que imaginam
historiadores e outros estudiosos da área, de darem conta ao encaixotá-las, formatá-las e
reduzi-las aos limites de suas interpretações.
Por meio da análise documental, algumas dessas histórias estão relatadas neste
trabalho sobre a gente e as famílias negras de pessoas escravas, na freguesia de Sant’Ana de
São José de Mipibu, província do Rio Grande do Norte. Nelas podemos encontrar as lutas
dos negros e o processo de construção da autonomia e territorialização do espaço espiritual
e social, no universo do seu cativeiro escravista. São rupturas, contradizendo a visão
preconceituosa de que os escravos se caracterizavam pela anomia e passividade, embora a
reconstrução de seus enfrentamentos passados não possa - e não deva - calar a exploração a
que foram submetidos por um traiçoeiro regime de trabalho que tantos impactos negativos
gestou em nossa sociedade.
Especificamente nos recentes estudos sobre o parentesco escravo, variados aspectos
são destacados, dentre os quais a metodologia empregada nas pesquisas e a composição
familiar. Enfatizam-se os casamentos, que vão além dos sacramentados pelo catolicismo,

1
PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. 18ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1983
[1942]; FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. 2 vols. São Paulo:
Dominus, Edusp, 1965; CARDOSO, Fernando Henrique. Classes sociais e história: considerações
metodológicas. In: _______. Autoritarismo e democratização. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975. Para
uma revisão bibliográfica aprofundada sobre o tema ver: SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor –
Esperanças e recordações na formação da família escrava: Brasil, sudeste, século XIX. 2ª ed. Campinas, SP:
Editora da Unicamp, 2011; ROCHA, Solange Pereira. Gente negra na Paraíba oitocentista: população,
família e parentesco espiritual. São Paulo: Editora UNESP, 2009.
21

pois as relações consensuais e o parentesco espiritual (compadrio) passaram a ser


valorizados. Além disso, são considerados os impactos e as limitações impostas pelo sistema
escravista - o tráfico externo e interno, as pressões senhoriais, as diversidades étnicas - e a
capacidade de mulheres e homens escravos reelaborarem os laços familiares no contexto do
cativeiro.
O estudo do espaço religioso mostra-se importante, pois a Igreja Católica entre os
séculos XVI e XIX, procurava definir o comportamento e a consciência coletiva da sociedade
através dos seus sacramentos e atos religiosos. Ela representava o Reino de Deus sobre a
terra, e tinha o objetivo de garantir a ordem, a proteção dos pobres e a salvação das almas.
As circunstâncias da vida individual - nascimento, casamento e óbito - se traduziam em atos
representáveis abençoados pela Igreja, sendo as cerimônias religiosas representações das
hierarquias sociais, fundamentais para a construção e manutenção das redes da comunidade.
Os escravos, portanto, passam a utilizar tais atos religiosos como mais uma maneira de
construírem e firmarem relações com pessoas de mesma ou outra condição jurídico,
econômico e social, uma busca por autonomia e sobrevivência dentro do sistema escravista.
Desta forma, procuro adentrar o universo de parte da gente negra escravizada 2 da
província do Rio Grande do Norte, notadamente de mulheres, homens e crianças cativos,
examinando o batismo e as relações parentais - consanguíneas e espirituais - estabelecidas
no decorrer do século XIX. O objetivo principal desta pesquisa é compreender como os
negros cativos (re)organizaram suas vidas familiares, em um território que não era deles a
priori, observando as transformações da sociedade e da economia no período Imperial
brasileiro (1822-1889) que resultaram na diminuição da população escrava e suas estratégias
para o estabelecimento de vínculos parentais. Nossa intenção é de desmistificar o passado
escravocrata do Rio Grande do Norte, do negro como um vaqueiro solitário, amigo do patrão

2
De acordo com Grada Kilomba (2019) o termo correto a ser utilizado ao se referir aos negros africanos e
afrodescendentes retirados forçosamente de suas terras e obrigados a realizarem trabalhos compulsórios contra
sua própria vontade seria escravizado, pois este englobaria todo o processo político ativo de desumanização.
Escravo seria então um estado de desumanização, como se fosse a identidade natural destas mulheres e homens,
que já nascessem com esta pré-condição. Esta discussão ainda é muito recente nas áreas da História,
Antropologia e Humanidades, porém, apesar de concordarmos com Kilomba e por diversas vezes neste trabalho
optarmos por utilizar o termo escravizado, ainda não nos sentimos completamente embasados teoricamente
para assumir por completo este termo ao longo desta dissertação. É necessário um aprofundamento maior no
estudo desta discussão. Por isso, optamos por utilizar preferencialmente o termo escravizado quando estivermos
nos referindo ao processo que estes negros foram submetidos, e escravo quando nos referirmos a condição.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Trad. Jess Oliveira. Rio de
Janeiro: Editora Coboró, 2019.
22

e feliz por ser escravo3. É mostrar a existência de famílias cativas e de sujeitos imbuídos de
vontades e ações, lutando cotidianamente pela sua autonomia.
No Rio Grande do Norte, durante décadas, os estudos sobre escravidão tiveram
como principal referência os trabalhos de Manoel Dantas4; Luís da Câmara Cascudo5,
considerado por decreto oficial6 o “Historiador da Cidade do Natal”; e Tarcísio Medeiros7.
Para Manoel Dantas (1941), durante a vigência do sistema escravista no Rio Grande do
Norte, a relação que existia entre senhores e escravos era fraternal e afetuosa, principalmente
na região sertaneja da província, onde recorrentemente o escravo seria considerado uma
pessoa da família8.
Os escritos de Câmara Cascudo também descreviam relações consensuais entre
escravos e senhores, afirmando que se estabelecia entre aqueles sujeitos “uma identidade
social pela uniformidade das tarefas, iguais a todos, escravos e amos”9, anulando a noção de
conflito dessa perspectiva de abordagem. Na primeira edição de História do Rio Grande do
Norte, Cascudo acrescentou que “o elemento negro não fora decisivo ou indispensável no
trabalho da agricultura ou pecuária”10, diminuindo sua importância na formação histórica do
Estado.
A força dessa linha interpretativa também se deve à difusão dos escritos de outros
autores, cujas ideias se alinharam fortemente às concepções de Cascudo. Para Tarcísio
Medeiros (1973), o escravo teve uma ação coadjuvante na construção da história do Rio

3
CASCUDO, Luís da Câmara. História do Rio Grande do Norte. 2ed. Rio de Janeiro: Achiamé; Natal:
Fundação José Augusto, 1984 [1954].
4
DANTAS, Manoel. Homens de outr’ora. Rio de Janeiro: Pongetti, 1941.
5
Escritor e folclorista, Luis da Câmara Cascudo nasceu em Natal, Rio Grande do Norte, em 30 de dezembro
1898. Em 1928, formou-se pela Faculdade de Direito do Recife e concluiu também, no mesmo ano, o curso de
Etnografia, na Faculdade de Filosofia, do Rio Grande do Norte. Foi professor de Direito Internacional Público,
na Faculdade de Direito do Recife e de Etnologia Geral, na Faculdade de Filosofia, em Natal. Escreveu sobre
os mais variados assuntos. Sua especialização foi na etnografia e no folclore, mas sua predileção era pelas áreas
de história, geografia e biografia, especialmente do Rio Grande do Norte. Faleceu em 1986. Ver: <https:
www.cascudo.org.br/biblioteca/vida/>. Acessado em 17 nov 2019.
6
Decreto de 25 de dezembro de 1948, publicado pelo prefeito da cidade de Natal, Sylvio Pedroza.
7
MEDEIROS, Tarcísio. Aspectos geopolíticos e antropológicos da história do Rio Grande do Norte. Natal:
Imprensa Universitária, 1973.
8
Manoel Dantas, nasceu em Caicó em 1867. Foi advogado, jurista, educador e jornalista. Precursor dos estudos
sobre folclore no Rio Grande do Norte. Em sua cidade natal foi fundador do jornal O Povo (1889-1992), e em
Natal do Diário do Natal (1893), Estado do Rio Grande do Norte (1895), tendo atuado também como redator
no A República. Publicou livros de relevância geográfica e folclórica tais como: O Rio Grande do Norte,
Denominações dos Municípios, Natal daqui a cinquenta anos e postumamente Homens de outro’ora. É patrono
da Cadeira nº 26 da Academia Norte-riograndense de Letras. Faleceu em 1924 (ARAÚJO, 2014).
9
CASCUDO. História do Rio Grande do Norte. 1984, p.44.
10
Ibid, p. 47.
23

Grande do Norte, pois a incapacidade dos escravos de constituírem famílias conjugais os


impediu de manter e transmitir suas heranças culturais11. Observamos, portanto, que os
intelectuais acima citados trabalharam com uma perspectiva de negação do papel dos
escravizados na formação da sociedade norte-rio-grandense, destacando a suposta
cordialidade nas relações entre proprietários e cativos e a irrelevância do elemento negro na
construção da identidade potiguar.
Com a expansão dos cursos de pós-graduação no Brasil a partir de 1970/80, atraindo
pesquisadores de todo país, os estudos sobre o tema seguiram novos parâmetros teórico-
metodológicos12. Maria Regina Mattos, que fez pós-graduação na Universidade Federal
Fluminense (UFF), e Denise Monteiro, que realizou tese de doutoramento na Universidade
de São Paulo (USP), já fundamentam seus trabalhos em fontes documentais – notadamente
legislação e documentação administrativa –, e na metodologia da pesquisa histórica, num
viés marcado pela ênfase no econômico. Enquanto Mattos (1985)13 procurou compreender
os fatores que frearam o desenvolvimento socioeconômico da Vila do Príncipe (atual cidade
de Caicó/RN), resultando na extrema pobreza da população, Monteiro (2007)14 analisou a
transição do trabalho livre para o trabalho escravo na sociedade norte-rio-grandense. Apesar
de atentas à importância da presença cativa, Mattos e Monteiro não tinham a intenção de
investigar as agências dos negros escravizados. Procuraram em seus trabalhos compreender
a formação do mercado de trabalho entre 1850 e 1888, limitando-se em grande medida a
apresentar os negros como mão de obra, anulados como sujeitos históricos por serem
dominados pelos senhores.

11
Tarcísio Medeiros nasceu em Natal no ano de 1918. Era bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de
Recife. Em 1938 ocupou cargo de Secretário do Tribunal da Apelação (atual Tribunal de Justiça do Rio Grande
do Norte). Participou da organização da Faculdade de Filosofia, Letras e Artes de Natal e da Faculdade de
Ciências Econômicas, Contábeis e Atuariais de Natal. Em 1968 foi nomeado Professor Adjunto do Curso de
História da UFRN. Também foi sócio efetivo e redator da Revista do Instituto Histórico do Rio Grande do
Norte e sócio correspondente do Instituto Histórico do Ceará e da Academia de Letras Mossoroense. Faleceu
em 2003. Ver: <https://www.tre-rn.jus.br/o-tre/centro-de-memoria/memoria-viva-1/biografia-do-prof.-
tarcisio-medeiros>. Acessado em 17 nov. 2019.
12
MONTEIRO, Denise Mattos. Balanço da historiografia norte-rio-grandense. In: I Encontro Regional da
ANPUH-RN, 2006, Natal. I Encontro Regional da ANPUH-RN: O ofício do historiador. Natal: EDUFRN,
2006. p.51-54.
13
MATTOS, Maria Regina Mendonça Furtado. Vila do Príncipe – 1850/1890. Sertão do Seridó – um estudo
de caso da pobreza. (Dissertação de Mestrado em História, UFF). Niterói/RJ, 1985.
14
MONTEIRO, Denise Mattos. Terra e trabalho na História: estudos sobre o Rio Grande do Norte. Natal:
EDUFRN, 2007.
24

Seguindo caminho diverso, Muirakytan Macêdo (2012 [1998])15 optou por uma
perspectiva social ao analisar o trabalho escravo na região do Seridó do Rio Grande do Norte,
chegando a concordar com Cascudo sobre a inexistência dos maus tratos aos negros escravos
nos sertões, afirmando haver uma maior plasticidade no trato dos escravos sertanejos. Mas
posteriormente, em artigo publicado na revista Mneme (2010)16, ao analisar processos
criminais da comarca da Vila do Príncipe, Macêdo pôde identificar os homens de cor sendo
espancados, feridos ou mortos. Para Macêdo, “essa questão nos remete a uma resistência não
tão pacífica. Se sofreram a ação da violência branca é porque não se acomodaram,
reclamaram com impropérios, xingaram e bateram”17, oferecendo à historiografia potiguar
uma nova abordagem sobre o papel dos escravos e de suas experiências no cativeiro,
inserindo a noção de conflito na relação senhor-escravo.
A criação do Laboratório de Documentação Histórica – LABORDOC na
Universidade Federal do Rio Grande do Norte no Centro de Ensino Superior do Seridó
(CERES) na cidade de Caicó/RN no ano de 1998 pelo, à época, Departamento de Estudos
Sociais e Educacionais (DESE), ampliou as possibilidades sobre os estudos da escravidão no
Rio Grande do Norte. Promovendo e integrando estudos e pesquisas interdisciplinares
voltados à guarda, preservação, conservação e disseminação da memória histórica e
sociocultural da região do Seridó18 e desenvolvendo atividades relativas à produção,
preservação, divulgação e discussão da memória histórica e sociocultural desta região, o
acervo do LABORDOC impactou as produções do Programa de Pós- Graduação em História
da UFRN. Acervo constituído principalmente por documentação paroquial, jurídica e
administrativa que abrange os séculos XVIII, XIX e XX da Região do Seridó Potiguar e
Seridó Paraibano, tem permitido aos estudantes compreender sobre as famílias escravas,

15
MACÊDO, Muirakytan. A penúltima Versão do Seridó: uma história do regionalismo seridoense. 2 ed.
Natal: EDUFRN, 2012 [1998].
16
MACÊDO, Muirakytan. Crime e Castigo: Os escravos nos processos judiciais do Seridó. Mneme - Revista
de Humanidades, v. 4, n. 08, 30 jun. 2010.
17
MACÊDO. Crime e Castigo. Mneme – Revista de Humanidades. 2010, p. 118.
18
O Seridó é uma região geográfica e cultural pertencente ao estado do Rio Grande do Norte, que atualmente,
compreende as microrregiões do Seridó Ocidental, Seridó Oriental e parte da microrregião do Vale do Açu e
da Serra de Santana. A região do Seridó é formada por 24 municípios: Acari, Bodó, Cerro Corá, Carnaúba dos
Dantas, Caicó, Cruzeta, Currais Novos, Equador, Florânia, Ipueira, Jardim de Piranhas, Jardim do
Seridó, Jucurutu, Lagoa Nova, Ouro Branco, Parelhas, São Fernando, São Vicente, São João do Sabugi, São
José do Seridó, Santana do Seridó, Serra Negra do Norte, Timbaúba dos Batistas e Tenente Laurentino Cruz.
Para saber mais, consultar: <http://sit.mda.gov.br/download/ptdrs/ptdrs_qua_territorio076.pdf>. Acesso em 29
maio 2021.
25

alforrias e estratégias de sobrevivência dos cativos no sistema escravista, principalmente para


a região da Vila do Príncipe (atual cidade de Caicó/RN), o que tem aberto portas para estudos
sobre a temática no Estado19.
A inovação na interpretação dos escravizados como agentes/sujeitos históricos
mostra-se como um marco para os estudos desta temática. No Rio Grande do Norte, a boa
infraestrutura dos laboratórios de análise e conservação de documentos e o crescimento dos
programas de pós-graduação permitiram avanços nos estudos do tema para o Estado.
Compreender a lógica e autonomia, mesmo que relativa nas ações cotidianas dos
escravizados, apresenta-nos um outro lado deste sistema tão cruel. As ações desses homens
e mulheres devem ser compreendidas como um movimento constante, tecidas,

através de lutas, conflitos, resistências e acomodações, cheias de ambiguidades.


Assim, as relações entre senhores e escravos são frutos de ações [...], enquanto
sujeitos históricos, tecidas nas experiências destes homens e mulheres diversos,
imersos em uma vasta rede de relações pessoais de dominação e exploração 20.

As pesquisas mais recentes sobre escravidão no Brasil têm se realizado a partir dessa
premissa, considerando os escravos como agentes históricos, marcando assim, o
deslocamento de foco da concepção de uma escravidão na qual o indivíduo cativo era
totalmente passivo em relação à dominação do sistema senhorial e na ideia da ênfase
excessiva na violência do sistema, que transformava o escravo em objeto. A emergência dos
programas de pós-graduação permitiu que tal abordagem fosse dissipada e aplicada às
pesquisas de outras partes do país.
Juntamente ao trabalho de disponibilização dos documentos paroquiais e criminais
do Seridó, desenvolvido pelo LABORDOC/UFRN, e a esta nova perspectiva de estudo sobre
a escravidão, observamos, uma crescente no número estudos sobre a temática no Rio Grande
do Norte defendidos no Programa de Pós-graduação em História da UFRN a partir de 2011.

19
MACÊDO, Helder Alexandre Medeiros de. Outras famílias do Seridó: genealogias mestiças nos sertões do
Rio Grande do Norte (séculos XVIII-XIX). Curitiba: CRV, 2020; PEREIRA, Ariane de Medeiros. Escravos
em ação: autonomia e criminalidade de cativos na comarca do Príncipe (1870-1888). Dissertação (Mestrado
em História) – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Natal, 2014; LOPES, Michele Soares. Escravidão na vila do Príncipe: província do Rio Grande do Norte
(1850- 1888). Dissertação (Mestrado em História) – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade
Federal do Rio Grande do Norte. Natal, 2011.
20
LARA, Silvia Hunold. Blowin’in the Wind. E. P. Thompson e a experiência Negra no Brasil. Projeto
História. São Paulo, n. 12, p. 43-56, out. 1995. p. 46.
26

O primeiro deles foi defendido, neste mesmo ano, por Michele Soares Lopes21. Por meio da
análise dos acervos judiciais e cartoriais de Caicó e dos Relatórios dos Presidentes de
Província do Rio Grande do Norte, Lopes tinha como objetivo compreender a relação entre
o espaço, estrutura de posse e família escrava. A autora observou na documentação conflitos
entre senhores e escravos, não corroborando com a democracia racial a que se referia
Cascudo (1984). Foi possível observar na documentação a construção de uma relativa
autonomia por parte dos escravos, lhes rendendo benefícios como permissão para
desenvolverem determinados ofícios, embora tivessem dificuldade de encontrar parceiros de
trabalho fora dos domínios físicos da fazenda. A ocorrência de uniões conjugais pelos cativos
foi numericamente inferior aos dos livres e libertos, quanto ao compadrio, Lopes identificou
uma preferência tanto por parte dos escravos como dos livres e libertos de estabelecerem
parentesco com pessoas livres, demonstrando que o parentesco espiritual era um
compromisso de dimensão religiosa e social22.
Em 2013, Aldinízia de Medeiros Souza defendeu dissertação em que, através da
análise de inventários, mapas da população e cartas de liberdade registradas no tabelionato
da vila de Arez (atual município de Arez/RN) entre 1774 e 1827, procurou identificar o perfil
dos escravos e as possibilidades de alforria em uma região de poucas atividades econômicas.
Apesar de se tratar de uma região periférica dentro da própria capitania do Rio Grande do
Norte, Souza concluiu que a porcentagem de alforrias pagas no termo da Vila de Arez
aproximavam-se das estimativas feitas em estudos sobre alforria nas áreas urbanas em outras
regiões brasileiras23.
Um ano depois, Ariane de Medeiros Pereira24 propôs investigar as negociações e
condições do cativeiro em sua dissertação, focando nos casos em que os escravos recorriam
ao crime para alcançar a liberdade. Levando em consideração o espaço como categoria
significativa na relação servil, e após analisar os processos cíveis e criminais, relatórios dos

21
LOPES, Michele Soares. Escravidão na vila do Príncipe: província do Rio Grande do Norte (1850- 1888).
Dissertação (Mestrado em História) – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do
Rio Grande do Norte. Natal, 2011.
22
Ibid.
23
SOUZA, Aldinízia de Medeiros. Liberdades possíveis em espaços periféricos: escravidão e alforria no
termo da Vila de Arez (séculos XVIII e XIX). Dissertação (Mestrado em História) – Centro de Ciências
Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal, 2013.
24
PEREIRA, Ariane de Medeiros. Escravos em ação: autonomia e criminalidade de cativos na comarca do
Príncipe (1870-1888). Dissertação (Mestrado em História) – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes,
Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal, 2014.
27

Presidentes de Província do Rio Grande do Norte, censos, jornais e o livro do fundo de


Emancipação do Município do Príncipe (atual cidade de Caicó/RN), entre os anos de 1873 e
1886, Pereira observou que os escravos possuíam conhecimentos das leis e das discussões
sobre o fim da escravatura, munindo-se deste conhecimento como estratégia para conseguir
sua liberdade25.
A última dissertação defendida no PPGH-UFRN sobre o tema foi em 2020. Danielle
Bruna Alves Neves analisou a influência da territorialização da Igreja Católica e da
cristianização dos espaços no litoral lesta da Capitania do Rio Grande na evangelização e
moralização de escravos por meio do sacramento matrimonial, entre 1727 a 1760, com base
nos registros de casamento da freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, da cidade do
Natal. A autora pode perceber ao longo do seu trabalho que os registros apresentaram um
número expressivo de casamentos de cativos de origens diferentes, observando que este
espaço foi caracterizado por uniões entre indivíduos de diferentes qualidades e condições
jurídicas, o que possibilitou as mesclas biológicas e culturais encontradas nos registros
paroquiais da Igreja26.
Ao analisar as dissertações defendidas no PPGH-UFRN sobre a temática da
escravidão27, percebemos que a maioria dos espaços analisados pelas autoras, como no caso
da Vila de Arez, no litoral, ou da cidade do Príncipe, no interior, eram regiões de economias
com pouca dinamicidade. Ou seja, não era necessário o uso de significativa mão de obra
escrava. Em vista disso, observa-se uma lacuna na historiografia norte-rio-grandense, pois
não encontrávamos estudos sobre escravidão em espaços produtores de cana-de-açúcar, áreas

25
Ibid.
26
NEVES, Danielle Bruna Alves. Cristianização espacial e estratégias matrimoniais de escravos na
capitania do Rio Grande do Norte: território, escravidão e mestiçagens na freguesia de Nossa Senhora da
Apresentação (1727-1760). Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de
Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-graduação em História. Natal, RN, 2020.
27
Além dos trabalhos mencionados nesta introdução que estudaram sobre escravidão no Rio Grande do Norte,
ao longo de todos os anos de existência do PPGH/UFRN, houve apenas mais uma dissertação que também
estudou sobre o sistema escravista. No ano de 2013, Antonia Marcia Pedroza defendeu a dissertação intitulada
“Desventuras de Hypolita: luta contra a escravidão ilegal no sertão (Crato e Exu, século XIX)”, em que através
de notícias de jornal, documentos paroquiais, cartoriais e Relatórios dos Presidente de Província do Ceará a
autora conseguiu mapear a luta de Hypolita, mulata que nasceu livre, e foi escravizada ilegalmente na Província
cearense. Através deste caso, Pedroza procurou compreender como se estabeleceram as tensões e alianças que
envolveram a luta pela liberdade dentro e fora da instância jurídica, em espaços provinciais diferenciados.
PEDROZA, Antonia Márcia Nogueira. Desventuras de Hypolita: luta contra a escravidão ilegal no sertão
(Crato e Exu, século XIX). 2013. 172 f. Dissertação (Mestrado em História e Espaços) - Universidade Federal
do Rio Grande do Norte, Natal, 2013.
28

que historicamente necessitaram de significativos braços escravos. O trabalho de Danielle


Neves (2020) abre as portas para o estudo das freguesias litorâneas, a partir do século XVIII,
regiões economicamente mais ativas da capitania do Rio Grande, futura província do Rio
Grande do Norte.
As pesquisas no país que renovaram os estudos sobre a escravidão têm focalizado
regiões de plantation do Sudeste, áreas que perdiam relativamente poucos escravos por
venda. Robert Slenes (2011)28 apontou a necessidade de se ampliarem os estudos sobre o
Nordeste e o Sul, espaços com propriedades escravistas menos estáveis. O estudo dessas
regiões se faz importante para compreendermos as estratégias de controle senhorial e as
táticas dos escravos para criarem comunidades unidas em torno de experiências, valores e
memórias, em situações distintas, e possivelmente menos favoráveis. As conclusões desses
estudos sobre as chamadas províncias do Sul não podem ser estendidas para o Rio Grande
do Norte, pois as novas abordagens sobre a família escrava no Brasil têm destacado como o
processo de produção e a apropriação do espaço influi de forma decisiva na constituição da
família escrava. Na historiografia do Rio Grande do Norte faltam estudos articulando a
constituição das propriedades dedicadas à lavoura de cana-de-açúcar, a organização das
atividades econômicas e padrões de posse da mão de obra escrava com as experiências das
famílias cativas.
O estudo da freguesia de Sant’Ana apresenta-se como um novo espaço de
investigação interessante para as pesquisas sobre escravidão e a territorialização negra por
famílias cativas. A atividade econômica desta região era baseada no cultivo da cana-de-
açúcar, contando com engenhos e engenhocas que produziam açúcar, rapadura e cachaça. O
Relatório escrito pelo Presidente da Província do Rio Grande do Norte no ano de 1862, Pedro
Leão Veloso, conta com dados populacionais levantados pelo chefe de polícia de Natal,
Herculano Antonio Pereira da Cunha. As informações foram levantadas no ano de 1855 a
partir da coleta e reunião dos dados populacionais obtidos pelas freguesias da província, pois
eram as paróquias que detinham os registros de batismo, casamento e óbito da população.
Por isso, os censos populacionais do período colonial e imperial eram quase sempre baseados
nesses registros eclesiásticos.

28
SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor – Esperanças e recordações na formação da família escrava:
Brasil, sudeste, século XIX. 2ª ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2011.
29

Segundo o chefe de polícia, do ano de 1855, o Rio Grande do Norte dispunha de


132.216 habitantes29. Fazendo uma comparação entre São José de Mipibu e Príncipe, esta
última contava com 7.046 livres para 1.216 escravos, enquanto São José de Mipibu dispunha
de 18.118 livres para 9.816 escravos. Em termos percentuais, levando em consideração a
população total de cada cidade, São José de Mipibu contava com 35% de população cativa,
enquanto o Príncipe dispunha de apenas 15% de cativos. A capital da Província, Natal, nesta
época contava com 5.934 livres e 520 escravos, menos de 1% de escravizados, de acordo
com os dados levantados pelo pároco da freguesia. Percebemos, portanto, uma significativa
mão de obra escrava em São José de Mipibu a qual estamos nos debruçando, o que nos faz
levantar a hipótese de que a quantidade de batismos e matrimônios de escravos também é
significativa em comparação com outras regiões do Rio Grande do Norte30.
É interessante destacarmos a importância dos registros paroquiais em uma época
onde a Igreja era a instituição responsável pelos registros da população, em que não se tinham
dados oficiais dos órgãos administrativos. Por isso, as nossas fontes mostram-se mais uma
vez importantes para o estudo da escravidão na província do Rio Grande do Norte, pois
estamos tratando de uma sociedade em que o catolicismo era a religião oficial, e segundo o
dever cristão, todos aqueles que nascessem, casassem ou morressem deveriam realizar tais
cerimônias eclesiásticas na Igreja Católica para ter as benções de Deus.
As fontes paroquiais, pelo seu detalhamento de informações, mostraram-se como
uma documentação fundamental para a revisão dos estudos sobre escravidão no final da
década de 1980. Robert Slenes (2011) ao trabalhar com este material em sua tese de
doutorado defendida na Universidade de Stanford, posteriormente publicada, foi um dos
responsáveis pela mudança de perspectiva sobre a existência e o papel da família cativa na
sociedade imperial. Analisando registros matrimoniais da cidade de Campinas no século
XIX, procurou recuperar aspectos da cultura e da experiência dos cativos, desvendando suas
relações com os senhores e refletindo sobre o impacto de embates e negociações cotidianas
na reprodução ou transformação do sistema escravista. Seu livro, enfatizando uma
abordagem política da escravidão, insiste na centralidade dos processos de “luta de classes”

29
A cidade do Assú e seu termo foi a única que não enviou os dados populacionais para a administração
provincial no período deste levantamento (RELATÓRIO, 1862, p. 6).
30
RELATÓRIO, 1862, p. 6.
30

na constituição do sistema escravista, vendo os escravos como agentes históricos que


frustraram a tentativa dos senhores de impor um cativeiro “perfeito”31.
Slenes vai na contramão do discurso de Manolo Florentino e José Roberto Góes
(1997)32. Estes historiadores cariocas estudaram o tráfico externo e as relações de parentesco
adotadas pelos escravos em vários municípios do Rio de Janeiro, os quais detinham uma
economia basicamente agrícola, entre 1790 e 1850. Ao longo do trabalho, as mudanças na
família escrava são apontadas, considerando as várias conjunturas do tráfico internacional.
Concluem que o comércio internacional de escravos não impediu a formação e estabilidade
das famílias escravas, afirmando que os vínculos parentais desses sujeitos contribuíam para
a manutenção do sistema escravista. Segundo os autores “sem se constituir um instrumento
direto de controle senhorial, a família escrava funcionava como elemento de estabilização
social, ao permitir ao senhor auferir uma renda política”33.
Tal posicionamento recebeu duras críticas de Slenes, o qual discordou dessa
interpretação da família escrava como estruturante do sistema por não acreditar que o
“esforço” dos escravizados de manterem “a paz nas senzalas” seria para o benefício apenas
do senhor. Solange Rocha (2009)34 vem somar juntamente com o trabalho de Slenes nos
estudos sobre família escrava. Trabalhando com uma região menos dinâmica que Campinas
e Rio de Janeiro, a historiadora apresenta os resultados acerca da família escrava e da
experiência do povo negro cativo e livre na província da Paraíba Oitocentista. Utilizando a
metodologia da demografia histórica e da micro história, Rocha analisa registros paroquiais
de três freguesias urbanas e rurais da Zona da Mata Paraibana: Livramento, 1831-1863; Santa
Rita, 1862-1864; e Nossa Senhora das Neves, 1863-1868. A sua pesquisa assume a linha de
abordagem de que os indivíduos escravizados iam além da perspectiva senhorial dos escravos
como seres sem organização. A autora

busca entender a lógica dos escravos como seres complexos que criaram estratégias
para sobreviverem num mundo demarcado por mecanismos de dominação e
exploração, manifestando suas vontades e tentando interferir no rumo de suas
vidas. As transgressões não passavam só pela rebeldia coletiva de ataques ao

31
SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor. 2011.
32
FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio
de Janeiro, c.1790-1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.
33
Ibid, p. 175.
34
ROCHA, Solange Pereira. Gente negra na Paraíba oitocentista: população, família e parentesco espiritual.
São Paulo: Editora UNESP, 2009.
31

sistema; foram desenvolvidas também na vida cotidiana, no interior e nas frestas


do sistema, passando tanto pela resistência individual quanto pela “acomodação”
para criarem novas práticas e condutas nas relações com seus senhores e os outros
grupos sociais com os quais conviviam. Portanto, recupero histórias de mulheres e
homens escravizados e dos não-escravos, dos “pretos livres” como seres humanos,
dotados de subjetividades, que lutaram de variadas maneiras contra a coisificação
social e a desumanização35.

Tomando como base essa linha de interpretação, procuraremos, em nosso trabalho,


portanto, analisar a construção do território da freguesia de Sant’Ana, a qual estava inserida
em um espaço com importância econômica para a província do Rio Grande do Norte, dando
ênfase na seguinte questão: que territorialidades escravas foram construídas na freguesia de
Sant’Ana de São José de Mipibu de 1841 a 1862? Qual o perfil dessas famílias cativas? Qual
o perfil dos padrinhos escolhidos pelas famílias escravas nos atos de batismo? O
entrecruzamento de fontes paroquiais (registros de batismo e casamento) e documentos
administrativos (Relatórios dos Presidentes de Província) nos possibilitaram apreender sobre
as identidades negras desta região e as estratégias de sobrevivência, como o compadrio,
utilizadas pelos escravos dentro do sistema escravista. Trabalhar com uma região
economicamente produtora da Província nos possibilita ampliar em termos quantitativos
nossa análise, podendo utilizar uma metodologia da história demográfica.
A partir da Demografia História, de tradição francesa, cuja dimensão evoluiu
fundindo as técnicas de estudo da metodologia da História Serial e Quantitativa, procuramos
enxergar nas estatísticas os personagens que atuaram no cotidiano público e privado, antes
imersos somente na teia da análise quantitativa. Embora, inicialmente, a nossa intenção fosse
usar o método francês de reconstituição de famílias, preferimos, nesse primeiro momento,
computar as estatísticas que os livros nos oferecem sobre a população escrava, para, em
momento futuro, tentar reconstruir os laços de parentesco entre essa população, os brancos e
os mestiços.
As novas pesquisas, com base principalmente em fontes eclesiásticas e cartoriais,
têm possibilitado um avanço nos estudos sobre o parentesco dos escravos. A partir da análise
destes documentos, é possível recuperar informações sobre a capacidade das pessoas
submetidas à escravidão explorarem as mínimas possibilidades de realizar mudanças em suas
vidas ou de seus descendentes, estabelecendo casamentos formais, consensuais e parentescos

35
Ibid, p. 72.
32

espirituais, ampliando suas relações sociais. Assim, nesse novo contexto da historiografia da
escravidão brasileira, inaugurada na década de 1980, a vivência e luta dos cativos ganharam
centralidade, historicidade e suas vivências foram recuperadas. A metodologia da História
Serial e da História Quantitativa nos possibilita mostrar, portanto, os vínculos ampliados para
além da família conjugal, sacramentada pela Igreja, valorizando as relações consensuais e o
parentesco espiritual.
A demografia histórica como uma dimensão que se caracteriza pelo
desenvolvimento de técnicas de análise, possibilitando descrever quantitativamente como as
populações se transformaram ao longo do tempo, apresenta-se através da metodologia da
História Serial e Quantitativa mais apropriada para observar o ciclo vital dos cativos.
Utilizando uma vasta documentação, estas metodologias nos forneceram base para
reconstituir histórias de famílias escravas, seja o parentesco consanguíneo ou o espiritual.
As abordagens da História Serial e Quantitativa, nos ajudam a compreender através
de dados numéricos (gráficos, tabelas) e das especificidades em meio as generalizações
observadas na seriação da documentação a construção do território pelos negros escravos na
freguesia de Sant’Ana. A especificidade do compadrio reside exatamente no fato de
apresentar uma grande possibilidade de extensão, permitindo a criação de sólidos vínculos
entre pessoas das mais diferentes condições sociais, que passavam a se reconhecer como
parentes. Entre elas não haveria nenhuma implicação de ordem patrimonial, como ocorria,
por exemplo, no estabelecimento de alianças matrimoniais. Segundo Cacilda Machado
(2008)36,

o parentesco espiritual poderia ser utilizado como estratégia para ‘criar laços
morais com pessoas de recursos, para proteger-se a si e aos filhos’, como salientou
Slenes. Mas também poderia funcionar como meio de socialização de modo a
formar uma comunidade escrava (...)37.

Este tipo de metodologia, baseada na organização, levantamento, transcrição e


análise de fontes seriais a partir da produção de dados estatísticos, no nosso caso dos registros
de batismo e casamento da freguesia de Sant’Ana de São José de Mipibu entre os anos de

36
MACHADO, Cacilda. A trama das vontades: negros, pardos e brancos na produção da hierarquia social do
Brasil escravista. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008.
37
Ibid, p. 56.
33

1841 e 1862, permite-nos valorizar as relações conflituosas de resistência direta contra o


sistema quanto às formas de oposição à escravidão que passavam pela negociação cotidiana,
contribuindo para a formação de uma autonomia de mulheres e homens escravos nas relações
de trabalho e na vida pessoal.
Nosso recorte espacial, assim, corresponde à freguesia de Sant’Ana de São José de
Mipibu criada em 1762 juntamente com a Vila de São José do Rio Grande (correspondente
ao atual município de São José de Mipibu/RN). Somada a importância econômica desta
região e do significativo número de escravos presentes na mesma, os assentos paroquiais
desta freguesia foram preservados e digitalizados pela Arquidiocese de Natal em parceria
com o Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Está, portanto, a disposição do público uma documentação relevante para os estudos sobre
escravidão e família escrava no Rio Grande do Norte, ainda pouco estudados.
O recorte temporal da pesquisa compreende o período de 1841 a 1862, de forma a
analisar: como esta região responde, em números quantitativos de escravos, à aprovação da
lei do fim do tráfico transatlântico de escravos, publicada em 1850; o período de destaque
econômico e comercial deste município – entre as décadas de 50 e 60 -, observando se houve
crescimento da mão de obra escrava e a constituição de famílias nas propriedades; e cruzar
as informações disponíveis nos assentos de batismo e livros memorialísticos, a fim de
localizar estas famílias cativas.
Apesar de estar disponível o primeiro livro de batismo desta freguesia, 1833-1840,
o documento encontra-se em avançado estado de deterioração, o que impediu a análise dele.
Também explicitamos que, apesar de existirem mais livros de batismo e casamento – até
1889 – e de óbito, foi necessário realizarmos recortes para conseguirmos dar conta de toda a
complexidade que este tipo de material exige. Optamos, então, neste momento, em nos
debruçarmos apenas sobre 4 livros de batismo desta freguesia, os quais abrangem o período
de 1841 a 1862, e assim podermos compreender um pouco do que era a escravidão em uma
das cidades economicamente mais importantes da província do Rio Grande do Norte antes e
depois da publicação da lei do fim do tráfico transatlântico de escravos, em 1850, a fim de
identificar se impactou o sistema escravista nesta província.
A vida parental da gente negra de São José de Mipibu, investigada neste trabalho,
pretende tomar como principal suporte documental os registros de batismo, com o objetivo
34

de evidenciar as redes de relações sociais dos escravos com outros escravos, forros e/ou
livres. Foram estudados aqui quatro livros de batismo (1841- 1843; 1843-1848; 1851-1857;
1857-1862) disponíveis em formato digital no Arquivo Metropolitano da Arquidiocese de
Natal.
A análise destas fontes torna possível a recuperação de informações acerca do
crescimento vegetativo, dos dados de compadrio, da identificação da condição social e/ou
ascendência dos nubentes e outras pessoas envolvidas nestas cerimônias. Isso porque a Igreja
Católica garantia em sua constituição o direito da realização de cerimônias e registros dos
cativos em todos os seus sacramentos, como qualquer outro indivíduo, tratando-os,
diferentemente de sua condição jurídico-econômica como sujeitos com almas, não apenas
como objetos materiais, apesar de que na prática nem sempre a lei eclesiástica era cumprida.
Desta forma, os livros paroquiais apresentam alguns aspectos da vida dos
indivíduos negros escravos e sua condição jurídica; de diferentes qualidades; e de suas
práticas sociais, como o parentesco espiritual. Entretanto é importante destacar, também, que
nem todos os escravos foram batizados sob a bênção do sacramento cristão. As mães solo
que aparecem batizando seus filhos nos registros de batismo não necessariamente estavam
sozinhas, sem companheiro ou família. Entretanto, não podemos deixar de considerar que
nem todos os escravos, por algum motivo, realizaram as cerimônias católicas, enquadrando-
se, portanto, em nossa análise apenas a parcela do grupo de cativos que as realizou.
Por meio da sistematização e cruzamento dos dados disponíveis nos assentos de
batismo, poderemos avaliar as características da população cativo dos proprietários rurais e
urbanos de uma das principais cidades da região do litoral leste da província do Rio Grande
do Norte, produtora de açúcar. Rebatendo a visão clássica dos intelectuais potiguares, iremos
tratar das experiências e aspectos das relações parentais escravas, principalmente o
compadrio, explicitando valores, atitudes e necessidades desse grupo desprovido de prestígio
social de (sobre)viver, com poucos recursos e quase sem autonomia, em uma sociedade
escravista nesta província.
Outros documentos como os relatórios dos presidentes de província e os jornais da
época forneceram indícios das experiências de crianças, mulheres e homens escravos nesta
freguesia. Experiências que são buscadas nos vínculos familiares, no trabalho, na moradia, e
em todos os espaços de sociabilidades, solidariedades, conflitos e tensões ocorridas no
35

interior das relações de pessoas negras e das firmadas com outros grupos sociais. No que diz
respeito aos relatórios, serão analisados aqueles produzidos entre 1840 e 1872 –
contabilizando 36 documentos – tendo sido trabalhados aqui apenas os que possuíam
informações referentes à situação econômica da província, da cidade e freguesia de São José
de Mipibu – 16 relatórios. Estes documentos oficiais estão disponíveis ao público no site do
Center for Research Libraries38. Os jornais publicados no Rio Grande do Norte no período
de nosso estudo serão utilizados de maneira complementar, a fim de compreender como a
imprensa tratou dos assuntos políticos e econômicos, principalmente a cerca da questão da
mão de obra escrava. Eles também estão disponíveis ao público de forma online na
Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional39.
Os registros paroquiais revestem-se de especial importância no estudo das
populações de origem africana uma vez que a natureza da fonte documental permitia o
assentamento de todas as camadas da população que vivessem numa freguesia. A condição
básica era que os indivíduos fossem católicos e tivessem cruzado um dos ritos de passagem
cristãos – o batizado, o casamento ou a morte.
Nossa pesquisa tem apontado para a existência significativa de laços de parentesco
“simples” (aqueles entre cônjuges e entre pai/mãe e filhos), apesar do desequilíbrio numérico
entre homens e mulheres pelo tráfico africano e interno de escravos. Assim, tem apresentado
dados qualitativos sugerindo que a constituição de famílias (inclusive extensas, incorporando
pessoas não aparentadas, como o parentesco espiritual) interessava aos escravos como parte
de uma estratégia de sobrevivência dentro do cativeiro.
O levantamento da bibliografia especializada sobre o tema da escravidão no século
XIX mostrou-se fundamental para compreendermos o panorama em que estes estudos estão
inseridos. Diante disso, a adoção da nova perspectiva que trata do escravo como um sujeito
histórico é fundamental para o avanço de nossas pesquisas, pois acreditamos que a formação
das famílias cativas em um território que não eram dessas mulheres e homens escravizados
os fizeram agir cotidianamente de diferentes formas para construir sua autonomia. A
possibilidade de realização de cerimônias na Igreja Católica representou uma ruptura social

38
Para consulta dos Relatórios dos Presidentes de Província do Rio Grande do Norte, acessar: <https:www.
ddsnext.crl.edu/titles/181/items>.
39
Para consulta dos jornais publicados na província do Rio Grande do Norte no século XIX, acessar:
<https:www.bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/>.
36

para a época em que se acreditava econômica e juridicamente no escravo apenas como um


objeto. Foi lhes dado o direito de participar dos atos religiosos e, principalmente, o poder de
escolha sobre os padrinhos espirituais.

***

O nosso trabalho está dividido em três capítulos. O primeiro intitulado Formação


espacial da freguesia de Sant’Ana e a construção do territórios pelos escravos (séculos XVII-
XIX), em que através da análise da historiografia sobre o Rio Grande do Norte, textos de
memorialistas e da análise dos Relatórios dos Presidentes de Província, procuraremos
compreender como se deu a formação espacial do nosso espaço de estudo: a freguesia de
Sant’Ana. Munidos das informações acerca da formação institucional religiosa, política e
econômica do espaço, poderemos investigar como os negros escravos chegaram a esse
espaço, resignificando os sacramentos católicos como estratégia de resistência para
formarem redes de contato dentro desta sociedade através do parentesco espiritual, ou seja,
da escolha dos padrinhos dos seus filhos e de seus casamentos.
No capítulo segundo, Demografia escrava em São José de Mipibu: construção do
perfil das famílias escravas a partir das análises dos registros de batismo, iremos tabular os
dados extraídos dos assentos de batismo de recém-nascidos cativos procurando quantificar:
o número de nascimentos por ano; os locais preferenciais de batismo; a legitimidade das
crianças; e a condição jurídica das mães e pais das crianças batizadas. A partir destes dados
poderemos traçar o perfil das famílias escravas formadas neste território. Juntamente a isto,
fizemos o esforço de mapear os locais em que as cerimônias ocorriam, a fim de compreender,
de maneira aproximada, qual era o espaço e os limites da freguesia de Sant’Ana de São José
de Mipibu.
O terceiro capítulo, Famílias escravas e o compadrio como estratégia de construção
da territorialidade negra: estudo de caso dos Engenhos Porteiras e Olho d’Água, teve
influência da metodologia da Micro História, juntamente com os dados estatísticos obtidos
na análise das fontes eclesiásticas. Nos debruçamos sob duas propriedades desta freguesia: o
Engenho Porteiras, de propriedade do Capitão João Duarte da Silva; e o Engenho Olho
d’Água, de propriedade do Capitão Miguel Antônio Ribeiro Dantas; os quais ao longo dos
21 anos de análise aparecem recorrentemente na documentação como locais de morada de
37

várias famílias cativas. Nosso objetivo foi de ir além apenas dos números e procurar
compreender mais detalhadamente o perfil das famílias escravas e dos padrinhos espirituais.
Ao longo de nossa pesquisa observamos além da numeração ao lado do registro de
batismo de alguns anos algumas siglas abaixo do nome das crianças batizadas: “P. Cap.”, “P.
Escr.” e “P. P.”. Como não conseguimos identificar tal recorrência em outros trabalhos da
área, e nos próprios registros de batismo o vigário geral da freguesia ao registrar estes
pequenos não faz nenhum tipo de indicação da cor das crianças, adotamos a seguinte
convenção: “P. Cap.” abreviação de “preto e/ou pardo cativo”; “P. Escr.”, abreviação de
“preto e/ou pardo escravo”; e “P. P.”, abreviação de “Preto Preto”, ou “Preto Pardo”, ou
“Pardo Preto” ou “Pardo Pardo”. Assim, conseguiremos abranger ambas as classificações de
cor dos negros escravizados. Da mesma forma, utilizaremos o termo “livre” entre aspas, pois
nos registros não há indicação direta se os adultos envolvidos no sacramento (pais e
padrinhos) quando aparecem como “livres” ou são livres desde que nasceram ou adquiriram
liberdade por meio da alforria.
Muniremos ao longo do trabalho os conceitos de territorialidade, territorialização,
desterritorialização e reterritorialização a partir dos geógrafos Marcos Aurelio Saquet
(2009)40 e Rogério Haesbaert (2003)41 a fim de compreendermos como se deu o processo de
apropriação e produção deste novo territórios pelos negros escravizados.

40
SAQUET, Marco Aurélio. Por uma abordagem territorial. In: SAQUET, Marcos Aurélio; SPOSITO, Eliseu
Savério. Territórios e territorialidades: Teorias, processos e conflitos. São Paulo: Expressão Popular, 2009.
p.69-90.
41
HAESBAERT, Rogério. Da Desterritorialização à Multiterritorialidade. Boletim Gaúcho de Geografia,
Porto Alegre, v. 29, n. 1, p. 11-24, jan./jun. 2003.
38

2 FORMAÇÃO ESPACIAL DA FREGUESIA DE SANT'ANA E A CONSTRUÇÃO


DO TERRITÓRIO PELOS ESCRAVOS (SÉCULOS XVII - XIX)

Com o propósito de delimitar os espaços de ação nas novas terras, a Igreja Católica
e os reinos de Portugal e de Espanha fizeram um tratado, a fim de lutar pela hegemonia do
comércio mundial no início dos Tempos Modernos, de difundir a fé católica aos povos
nativos das terras conquistadas e lutar contra o avanço das religiões reformadas. Foi criado,
portanto, o Padroado Régio que esteve em vigor no Brasil do século XVI até a Proclamação
da República em 1889. A Igreja delegava aos monarcas dos reinos ibéricos a administração
e a organização da Igreja Católica em seus domínios. O Rei mandava construir igrejas,
nomeava os padres e os bispos, sendo estes depois aprovados pelo Papa. Portanto, o sentido
da implantação da ordem do padroado no Brasil se convergia em dois motivos: a expansão
das fronteiras e a propagação da fé católica, como pressuposto necessário da colonização das
novas terras “descobertas”. Nas palavras de Charles Boxer (1981), o Padroado poderia ser
definido como uma combinação de direitos, privilégios e deveres, concedidos pelo papado à
Coroa Portuguesa, pois o rei era patrono das missões católicas e instituições eclesiásticas na
África, Ásia e Brasil. Ou seja, a Igreja estava subordinada ao controle dos representantes do
governo português, a não ser em assuntos estritamente da doutrina42.
Analisaremos neste capítulo, portanto, como se deu a criação da freguesia de
Sant’Ana de São José de Mipibu, espaço de nossa pesquisa. Para isso, recuamos a análise
para compreender o processo que levou à formação desta freguesia, e como os negros
escravizados foram incorporados a este território que não era a princípio deles. Estamos
falando de sujeitos que não tinham o catolicismo como religião oficial, mas que tiveram que
se adaptar e ressignificar estas cerimônias religiosas para poder sobreviverem nesta sociedade
escravista.

2.1 Da Missão do Mipibu à Vila de São José de Mipibu: criação da Freguesia de


Sant’Ana
No século XVII, o espaço hoje formado pela cidade de Nísia Floresta/RN era
povoado por índios Potiguara. Tem-se notícia desde a época do período holandês no Rio

42
BOXER, Charles. A Igreja e a expansão Ibérica (1440-1770). Rio de Janeiro: Edições 70, 1981. p. 99.
39

Grande da existência da aldeia "Moppobu”, provavelmente uma das primeiras formações da


aldeia na ribeira do Mipibu. Neste período, os colonizadores holandeses destacaram em suas
crônicas o tamanho significativo desta aldeia comparado às outras da Capitania43.
Observamos a identificação da aldeia de Mipibu no mapa apresentado por Lopes (2010)44
sobre as aldeias Potiguaras existentes na Capitania do Rio Grande, citadas por cronistas
holandeses, entre 1630 e 1654:

Mapa 1- Aldeias potiguares citadas por Cronistas Holandeses (1630 – 1654)

Fonte: O sinal indicativo em vermelho remete à localização da Missão de Mipibu. Mapa disponível em: LOPES,
Fátima. Índios, colonos e missionários na colonização da Capitania do Rio Grande do Norte. 2 ed.
Mossoró: Fundação Vingt-un Rosado, 2010, p. 462. Com adaptação técnica da arquiteta Júlia Rêgo de Moura
Fé.

43
LOPES, Fátima Martins. Índios, colonos e missionários na colonização da Capitania do Rio Grande do
Norte. 2 ed. Mossoró: Fundação Vingt-un Rosado, 2010. p. 354.
44
Ibid.
40

Em 1633, os jesuítas já exerciam missões volantes45 no local de Mipibu46. Em 1681,


quando o trabalho missionário jesuíta é retomado de maneira mais estável, a Junta das
Missões reunida em Pernambuco, resolveu que a administração das aldeias47 deveria ser
assumida por padres seculares e que a aldeia de Mipibu fosse incorporada a Missão de
Guaraíras (atualmente correspondente ao território do município de Arez/RN), “por ambas
serem pequenas e assistirem nesta dois religiosos que melhormente poderiam cuidar dos
índios”48. Além disso, havia a necessidade de incorporação de povoadores neste território,
como estava determinado no Regimento dos Governadores de D. João III49. Apesar das

45
As missões poderiam ser de dois tipos: volantes ou fixas. A primeira se caracterizava pelo deslocamento do
missionário à procura de indígenas em seu habitat natural. O missionário deles se aproxima e tenta
primeiramente ganhar sua confiança no intuito de catequizá-los. Já a missão fixa, se distingue da primeira,
porque esses espaços são especialmente criados para esse fim. Como regra geral, a missão volante precedeu a
missão fixa no período colonial. TEIXEIRA, Rubenilson Brazão. Da Cidade de Deus à Cidade dos Homens:
a secularização do uso, da forma e da função urbana. Natal: EDUFRN, 2009. p. 59-60.
46
MEDEIROS FILHO, Olavo de. Terras natalenses. Natal: Fundação José Augusto, 1991. p. 81.
47
As aldeias e missões constituem as expressões mais evidentes do papel que exerceu a Igreja Católica,
associada ao Estado, na formação do território e da rede urbana no Brasil entre os séculos XVI e XVIII. A
missão é o termo mais geral, que no período colonial designou uma localidade semiurbana que reunia nativos
sob a administração de padres regulares ou seculares para fins de evangelização. Para o caso do Rio Grande do
Norte colonial, assim como em outras capitanias, o uso da palavra aldeia ficou restrito ao significado de habitat
natural exclusivo dos índios, sem a intervenção de missionários ou colonos. Já a missão fixa, em que espaços
eram criados pela Igreja para fins de evangelização, recebeu a denominação de aldeamento. O missionário
deixava seu lugar de origem, mas não abandonava sua cultura. Pelo contrário, criava um novo espaço para essa
mesma cultura. Os índios que eram transportados para esse local ou o espaço da antiga aldeia onde viviam era
transformado para responder às finalidades previstas na cultura cristã (TEIXEIRA, 2009). As Missões de
Aldeamento, organizadas com base na ordem de 30 de março de 1560, deram início a uma nova fase da ação
catequética no Brasil. Para a Igreja era necessário fornecer condições para que os indígenas se convertessem, e
isso só seria possível, não apenas com pregações, mas através do exemplo de bons cidadãos e do controle,
através da vida sedentária em aldeias e sob a orientação dos missionários, onde se facilitaria a educação cristã
dos adultos e crianças. Os índios considerados "mansos" deveriam ser estabelecidos em aldeamentos sob o
governo dos principais e autoridades espirituais e temporais dos missionários, com garantia da liberdade. As
Missões, como seriam chamados todos os aldeamentos que fossem criados e organizados por missionários,
geralmente localizavam-se afastadas das povoações e mais próximas do habitat natural dos indígenas, passando
a ser a centro da ação catequética. LOPES, Fátima Martins. Índios, colonos e missionários na colonização da
Capitania do Rio Grande do Norte. 2 ed. Mossoró: Fundação Vingt-un Rosado, 2010. p. 327-328.
48
LEMOS, Vicente de. Capitões-mores e governadores do Rio Grande do Norte. Rio de Janeiro: Typ. do
Jornal do Comércio, 1912. v. 1, p.35 apud LOPES, Fátima Martins. Índios, colonos e missionários na
colonização da Capitania do Rio Grande do Norte. 2010, p. 355.
49
O Regimento dos Governadores foi criado no século XIV, o qual instituía a figura do Governador-geral que
de acordo com este regimento além de administrar as terras deveria promover o povoamento das mesmas e
propagar a fé católica. Outro tema contido no regimento de 1548 e que permaneceu como constante preocupação
da Coroa nos regimentos seguintes, era o do relacionamento com os índios. Nesse sentido, o regimento do
governador-geral determinava que se conservasse a paz e punisse os índios que causassem conflitos ou
promovessem guerras. Havia a proibição para os cristãos que fossem tratar com os índios em suas aldeias sem
licença especial do governador-geral, além de estipular um dia específico para a realização de feiras para que
se pudesse comprar e vender mercadorias com nativos, impedindo que armas fossem distribuídas a estes. Para
facilitar a conversão ao catolicismo, o regimento mandava que o governador-geral zelasse para que os índios
41

determinações régias, de acordo com Lopes (2010), a incorporação da aldeia de Mipibu à


Missão de Guaraíras não foi cumprida, mas esta aldeia não desapareceu, pois alguns índios
de Mipibu, Cunhaú e Guaraíras aparecem em 1688 sendo reconduzidos ao aldeamento de
Mipibu após terem fugido para a aldeia da Preguiça, na Paraíba, com medo da guerra que se
iniciava no Rio Grande50.
No ano de 1698, uma Carta do Senado da Câmara de Natal ao Bispo de Pernambuco
informava sobre a existência de “uma paragem em o meo dela a que chamarão Mepebu donde
há uma Capela em que se administram os Sacramentos aos moradores desta Ribeira”51,
reafirmando a presença do aldeamento indígena e dos missionários católicos nesta região
exercendo os sacramentos cristãos naquele local. Com efeito, em 1703, foi feita a demarcação
de terras da aldeia de Nossa Senhora do Ó do Mipibu (atualmente correspondente ao território
do município de Nísia Floresta/RN), pelo Juiz Christóvão Soares Reymão, e confirmada pela
Rainha no ano seguinte52. Na época, a missão abrigava trinta e sete casais de índios, tendo
sido transferida para outro sítio a 3km de distância, sobre uma colina, em 1736 ou 1740
(correspondente atualmente ao município de São José de Mipibu/RN)53.

morassem próximos às vilas e povoações. Disponível em: <http://mapa.an.gov.br/index.php/dicionario-


periodo-colonial/196-governador-geral-do-estado-do-brasil>. Acesso 27 jun 2020.
50
Estavam referindo-se a Guerra dos Bárbaros iniciada na Capitania do Rio Grande na década de 1680. Para
saber mais sobre o assunto, consultar: PIRES, Maria Idalina da Cruz. Guerra dos Bárbaros: resistência
indígena e conflitos no Nordeste colonial. Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 1990; PUNTONI, Pedro
Paulo. A Guerra dos Bárbaros: povos indígenas e a colonização do sertão Nordeste do Brasil (1650-1720).
São Paulo: Editora Hucitec, 2008.; SILVA, Tyego Franklim da. A ribeira da discórdia: terras, homens e
relações de poder na territorialização do Assu colonial (1680 - 1720). Dissertação (Mestrado) - Universidade
Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação em
História. Natal/RN, 2015.; DIAS, Patrícia de Oliveira. Onde fica o sertão rompem-se as águas: processo de
territorialização da Ribeira do Apodi-Mossoró (1676-1725). Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do
Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação em História.
Natal/RN, 2015.; ALENCAR, Júlio César Vieira de. Para que enfim se colonizem estes sertões: a Câmara de
Natal e a Guerra dos Bárbaros (1681-1722). Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação em História. Natal/RN, 2015.
51
CASCUDO, Luís da Câmara. Nomes da Terra. Natal: Fundação José Augusto, 1968. p. 249. Até 1740, a
documentação eclesiástica cita somente a Capela de Nª Srª do Ó de Mipibu, da ribeira do Mipibu, na atual
cidade de Nísia Floresta, RN apud LOPES, Fátima Martins. Índios, colonos e missionários na colonização da
Capitania do Rio Grande do Norte. 2010, p. 356.
52
Auto de Mediação e Demarcação da Légua de Terra da Aldeia de Mipibu, apud. BARBALHO, Gilberto
Guerreiro. História do Município de São José de Mipibu. Rio de Janeiro: Gráfica Editora NAP, 1960. p. 39-
43; Arquivo Histórico Ultramarino, códice 257, fl. 167, 18/11/1704. Carta da Rainha ao Ouvidor Geral da
Paraíba Christóvão Soares Reymão apud LOPES, Fátima Martins. Índios, colonos e missionários na
colonização da Capitania do Rio Grande do Norte. 2010, p. 356.
53
TEIXEIRA, Rubenilson Brazão. Da Cidade de Deus à Cidade dos Homens: a secularização do uso, da
forma e da função urbana. Natal: EDUFRN, 2009. p. 216.
42

Entretanto, somente no ano de 1736 que a missão volante de Mipibu foi finalmente
elevada à Missão de Aldeamento com a presença fixa de missionários capuchinhos e recebeu
uma nova demarcação de terras, instalando-a no local de São José de Mipibu atual:

Mapa 2 - Aldeamentos e Vilas do Rio Grande do Norte

Fonte: O sinal indicativo em vermelho remete à localização da Aldeia de Mipibu. Mapa disponível em: LOPES,
Fátima. Índios, colonos e missionários na colonização da Capitania do Rio Grande do Norte. 2 ed.
Mossoró: Fundação Vingt-un Rosado, 2010, p. 463. Com adaptação técnica da arquiteta Júlia Rêgo de Moura
Fé.

Após o deslocamento da missão, foi construída uma nova Igreja, concluída em 1746, na
época do missionário capuchinho Juvenal de Albano, que tinha continuado o trabalho de seus
antecessores, Mauro de Lessano e João Crisóstomo de Gênova54.
No ano 1757 o Governo Português publica o Diretório dos Índios, documento que
expressava importantes aspectos da política indigenista. A intenção do reino era de evitar a
escravização dos índios, sua segregação, seu isolamento e a repressão ao tratamento dos
indígenas como pessoas de segunda categoria entre os colonizadores e missionários brancos.

54
Ibid, p. 216-217.
43

Há neste documento o incentivo a elevação das missões indígenas a Vilas, sendo o caso da
então Missão do Mipibu. Para concretizar tal ato, o Diretório previa a necessidade de índios
e brancos no mesmo espaço para que estes últimos os ensinassem atividades agrícolas e
manuais, além do incentivo aos casamentos inter-raciais. Lê-se, dessa maneira, no Diretório:

Entre os meios, mais proporcionados para se conseguir tão virtuoso, útil, e santo
fim, nenhum é mais eficaz, que procurar por via de casamentos esta
importantíssima união. Pelo que recomendo aos Diretores, que apliquem um
incessante cuidado em facilitar, e promover pela sua parte os matrimônios entre os
Brancos, e os Índios, para que por meio deste sagrado vínculo se acabe de extinguir
totalmente aquela odiosíssima distinção, que as nações mais polidas do mundo
abominaram sempre, como inimigo comum do seu verdadeiro, e fundamental
estabelecimento. Para facilitar os ditos matrimônios, empregarão os Diretores toda
a eficácia do seu zelo em persuadir a todas as Pessoas Brancas, que assistirem nas
suas Povoações, que os Índios tanto não são de inferior qualidade a respeito delas,
que dignando-se Sua Majestade de os habilitar para todas aquelas honras
competentes às graduações dos seus postos, consequentemente ficam logrando os
mesmos privilégios as Pessoas que casarem com os ditos índios; desterrando-se por
este modo as prejudicialíssimas imaginações dos Moradores deste Estado, que
sempre reputaram por infâmia semelhantes matrimônios55.

Percebemos, portanto, que o casamento e a geração de filhos eram fundamentais para a


formação da Vila. Isto garantiria o desenvolvimento do espaço e a integração dos índios à
sociedade. O papel da Igreja Católica começa a mostrar-se singular na colonização e
expansão dos territórios lusitanos, afinal, a sociedade cristã portuguesa tinha no catolicismo
as bases da moral e dos bons costumes, sendo a religião fundamental para a proteção e as
bênçãos de Deus. Tal proteção era invocada pela Coroa, desde a colonização no século XV
até o fim do Império no século XIX, como um instrumento de suma importância para o
projeto colonizador que viria a se desenvolver nas terras do Novo Mundo português.
Em fins de 1761 os índios Pegas aldeados na aldeia do padre secular José Saraiva,
na Serra Cepilhada (atualmente correspondente ao território da cidade de João do Vale, na
Paraíba), foram transferidos para a Missão de Mipibu em razão do interesse dos colonos pelas
terras desta serra para a realização da pecuária. Como podemos observar no mapa 1, este
aldeamento estava situado na região norte da Capitania da Paraíba, próximo da divisa com o
Rio Grande do Norte. Longo foi o percurso que os índios Pegas tiveram que fazer até a
Missão de Mipibu, tendo que atravessar a pé grande parte da Capitania. Apesar da

55
DIRETÓRIO, 1758, 88-89.
44

transferência forçada e do registro por administradores de algumas fugas de índios Pegas da


Missão do Mipibu após sua instalação na mesma, observamos que as autoridades
administrativas, a Igreja e seus religiosos trabalharam mutuamente no objetivo de controlar
e civilizar os indígenas. A figura do Estado e da Igreja nesse momento se completam no papel
de cristianização destes povos caracterizados pelas autoridades como ignorantes e cegos56.
Após a instalação dos novos moradores, o Juiz de Fora Castelo Branco foi à região
em janeiro 1762 para dar início aos preparativos para a criação da Vila de São José do Rio
Grande no antigo espaço da Missão do Mipibu. Com o aumento a cada dia da população
indígena e branca na missão, devido à fertilidade do solo, em 20 de fevereiro do mesmo ano
o Juiz de Fora procedeu à demarcação definitiva do território em edital publicado nesta data.
Segundo ele:

tendo transferido para a aldeia a nação dos índios Pêgas e aggregado varios casaes
dispersos com alguns moradores do districto, uns por serem uteis em razão dos
officios que exercitavam, outros pela sua distincção, procedimento e cuidado com
que se empregavam na agricultura, designava o dia 22 para a fundação da villa e
convidava o povo para assistir a respectiva solenidade57.

Dois dias depois, houve a incorporação imediata de quinze casais luso-brasileiros,


originalmente moradores da Vila de Extremoz, cumprindo as determinações régias quanto à
formação dos novos moradores, preferencialmente oficiais de profissões necessárias a uma
vila - como ferreiro, sapateiro, pedreiro. Assim em 13 de março do mesmo ano houve a
oficialização da Vila de São José do Rio Grande, em que tomaram posse da Câmara os
oficiais eleitos como Juízes Ordinários o Sargento-mor Manoel Fernandes de Oliveira e o
Capitão-mor dos Índios Leandro de Souza e Silva. Como vereadores assumiram: Antônio
Marinho de Carvalho, Francisco Tavares Guerreiro e Salvador Soares (índio), tendo como
Procurador Manoel Gomes da Silva. Em 3 de abril de 1762 foi feita a Provisão de Escrivão
da Câmara e Órfãos, Tabelião do Público Judicial e Notas e Escrivão da Almotaçaria da Vila
de São José do Rio Grande, cargo ocupado por João Barbosa Marques Ferreira58.

56
LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio Grande do Norte sob o
Diretório Pombalino no século XVIII. 2005. 700f. Tese (Doutorado em História do Brasil) – Universidade
Federal de Pernambuco, Recife, 2005. p. 155.
57
DANTAS, Manoel. Denominações dos Municípios. Natal: Empresa Typographica Natalense Ltda., 1922.
p. 39.
58
LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio Grande do Norte sob o
Diretório Pombalino no século XVIII. 2005, p. 157.
45

No momento da criação da Vila de São José do Rio Grande havia uma população
de 1.235 índios, Potiguara e Pega, sendo: 253 casais, 93 meninos em idade de ir para a escola,
4 rapazes para aprender ofícios, 589 moças e rapazes e 5 Companhias de Milícias com seus
250 Praças. Números um pouco diferentes dos que deixou o Juiz de Fora Castelo Branco em
1762, observando-se um acréscimo devido aos moradores brancos e índios de diversas nações
que foram agregados, contabilizando 1.338 moradores, entre índios e não-índios, 272 casais
e 292 homens para as armas. A criação de uma nova Vila apresentava-se como sinônimo
de crescimento e desenvolvimento para a região, uma oportunidade de adquirir terras
e desenvolver a economia, podendo significar a ascensão de postos sociais melhores para
brancos e índios59.
A formação da Missão de Mipibu no antigo território da aldeia no século XVII, a
transferência dos índios Pegas da Paraíba para este espaço no século XVIII, a incorporação
das famílias brancas de Extremoz e a criação da Vila no antigo espaço da Missão religiosa
extinta, em fins do Setecentos, foram ações planejadas pelo Padroado Régio que afetaram a
vida humana e social dos indígenas que originalmente viviam neste território. A
concomitância de processos históricos ocorrida até a criação da Vila de São José do Rio
Grande em 1762, produziram um novo território, não apenas geográfico e político, mas
sobretudo, social formado por índios e brancos.
O Diretório dos Índios instituiu também que o trabalho espiritual das Vilas deveria
ser dirigido pelos padres seculares60, havendo a expulsão dos missionários regulares do
Brasil. Assim, as localidades elevadas à categoria de Vila se tornavam igualmente a sede de
uma freguesia, tendo ambos os mesmos limites61. De acordo com Câmara Cascudo:

A freguesia era realmente um documento coletivo de vitória econômica. Só a


mereciam as populações que justificavam uma produção elevada, um nível de vida
estável, a segurança do arruado, um comércio mantenedor dos moradores sem

59
Ibid, p. 157-158.
60
O claro regular era constituído pelos sacerdotes pertencentes às ordens religiosas que deveriam viver
afastados das populações, nos mosteiros ou conventos. Eles possuíam uma organização jurídica e hierárquica
próprios. Já o clero secular exercia o ministério em uma paróquia, interagindo com os fiéis e eram diretamente
subordinados ao Bispo, o que no aspecto eclesial fazia com que o Bispado tivesse um maior controle sobre os
seus padres e fiéis. Para saber mais sobre o assunto, consultar: SILVA FILHO, José Rodrigues da. O amigo do
dinheiro: a visita do Cônego Garcia Velho do Amaral aos “sertões do Norte de baixo” (1762-1766). Dissertação
(Mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes.
Programa de Pós- graduação em História. Natal, RN, 2019.
61
TEIXEIRA, Rubenilson Brazão. Da Cidade de Deus à Cidade dos Homens. 2009, p. 114; p. 455-456.
46

maior dependência de importação, os meios claros de comunicação terrestre com


as vilas maiores e um caminho certo de escoadouro para o mar. Um Ministro de
Deus não podia viver sem os elementos permanentes da tranquilidade pública, sem
o ritmo sereno de uma continuidade social, organizada e normal. Ser freguesia era
o melhor credencial para obter-se a outra categoria – o município62.

Constatamos, assim, que a organização sagrada do território precedia sua


organização laica. A benção de Deus acompanhava de perto as ações dos homens, desde a
fundação da capela, com vistas ao estabelecimento definitivo dos homens no território. A
capela era efetivamente a melhor garantia da estabilidade social e econômica, pois ao seu
redor iam agrupando-se casas e desenvolvendo a agricultura e o comércio, tudo sob a
autoridade espiritual do pároco local. Havia também a estabilidade política, porque a capela,
e em seguida a Igreja Matriz, constituíam a sede da vida política, posto de votação, lugar de
reuniões da Câmara antes da construção de sua casa. Era nesse lugar de culto que os chefes
políticos locais assumiam seus mandatos, sob a benção de Deus e da Igreja 63. Observamos,
mais uma vez, como as relações do Estado e da Igreja eram tão próximas que por vezes se
misturavam. Houve, portanto, no momento da criação da Vila de São José do Rio Grande a
criação também da freguesia de Sant'Ana.
A Vila recebeu o nome de São José em homenagem ao santo José, ao rei de Portugal
na época, Dom José I e seu neto homônimo, filho de Maria I. Todavia, a população não ficou
satisfeita com a supressão do nome indígena “Mipibu”. A insatisfação da sociedade e as
reclamações oficiais foram tantas que em 1845, quando a Vila foi elevada à categoria de
cidade e comarca, teve seu nome modificado para São José de Mipibu pela lei de 26 de julho
de 185564. De acordo com o memorialista Manoel Ferreira Nobre (1971)65, contemporâneo
que publicou a 1ª edição do seu livro Breve Notícia sobre a Província do Rio Grande do
Norte no ano de 1877, os limites do município de São José de Mipibu eram os mesmos limites
da freguesia, tendo o seu território limitado ao Norte com a freguesia de Natal e São Gonçalo
e ao Sul com a freguesia de Goianinha e Papari, conforme o mapa a seguir:

62
CASCUDO, Luís da Câmara. Notas e documentos para a História de Mossoró. Mossoró: ETFRN; UNED;
PETROBRAS, 1996. p. 43.
63
TEIXEIRA, Rubenilson Brazão. Da Cidade de Deus à Cidade dos Homens. 2009, p. 456.
64
DANTAS, Manoel. Denominações dos Municípios. 1922, p. 40.
65
NOBRE, Manoel Ferreira. Breve Notícia Sôbre a Província do Rio Grande do Norte: baseada nas leis,
informações e fatos consignados na história antiga e moderna. 2ª edição. Rio de Janeiro: Editora Pongetti, 1971.
47

Mapa 3 - Recorte do mapa da Província do Rio Grande do Norte, identificando a área


pertencente ao município de São José de Mipibu - século XIX, 1868

Fonte: A mancha em vermelho e verde indica a localização da cidade de São José de Mipibu. Mapa disponível
em: ALMEIDA, Candido Mendes de (Org.). Atlas do Imperio do Brazil comprehendendo as respectivas
divisões administrativas, ecclesiasticas, eleitoraes e judiciarias [...] Rio de Janeiro: Lithographia do Instituto
Philomathico, 1868. p. VIII. Com adaptação técnica da arquiteta Júlia Rêgo de Moura Fé.
O espaço que veio a tornar-se o território da freguesia de Sant'Ana, teve desde a sua
fundação, como Missão do Mipibu, o pretexto de conversão das almas como ponto de partida
para a construção deste território religioso. A Igreja Católica e o Estado português
conjuntamente tinham o objetivo de explorar as terras do Novo Mundo e cristianizar os povos
considerados por eles como “bárbaros”, os quais não conheciam o cristianismo. Mas por que
a Igreja era um instrumento tão importante assim na conquista das terras brasileiras?
48

De acordo com a geógrafa Zeny Rosendahl (2005)66, o capital religioso é um


instrumento de poder dos detentores da produção e reprodução do saber sagrado, os quais
são responsáveis por construírem e desconstruírem o território religioso. Múltiplas são as
estratégias que interligam religião, território e a dimensão política do sagrado, as quais juntas
pretendem assegurar a vivência da fé e a vigilância dos fiéis, afirmando assim sua identidade
religiosa. A religião é construída e sustentada não apenas pelos produtores e porta-vozes do
sagrado, investidos de poder, mas principalmente pela comunidade religiosa a qual forma e
valida a Igreja. Há uma troca mútua: a comunidade constrói a Igreja e esta, com sua função
político-social, sustenta a própria comunidade.
As pessoas desenvolviam e mantinham, então, uma ligação emocional com o
território sagrado. Com o propósito de associar e definir a dimensão deste lugar simbólico, a
Igreja investia na construção de um prédio central, a Igreja Matriz, e em prédios secundários
mais distantes, as capelas, a fim de dar conta de todo o seu território, até mesmo os mais
distantes. As freguesias, no século XIX, faziam parte de uma das estratégias da Coroa e da
Igreja no processo de conquista do espaço. Além de ser responsável pela cristianização das
almas, também fazia parte de uma cristianização do espaço, adequando o mesmo sob
características de um território cristão.
Em Arraiais e Vilas d’El Rei: espaços de poder nas Minas setecentistas, Cláudia
Damasceno (2011)67 ao investigar os processos de ocupação do território e da rede urbana
mineira desde o século XVII, aborda todas as escalas do território, do intraurbano às relações
colônia- metrópole. Para o caso dos sertões, discutido na primeira parte do livro, Damasceno
trata da conversão do território do sertão em território colonial, nas dimensões políticas,
administrativas e religiosas, mostrando como o território ocupava-se com as várias
dimensões do poder colonial. Assim, o sertão se tornou distrito, concelho, freguesia e
comarca, tornando-se espaço das administrações civil e religiosa, controlando a vida dos
moradores e sendo também instrumentalizados por eles.

66
ROSENDAHL, Zeny. Território e territorialidade: uma perspectiva geográfica para o estudo da religião. In:
Encontro de Geógrafos da América Latina, 10, 2005, São Paulo: Anais... São Paulo: Observatório Geográfico
América Latina, 2005, p. 28-42.
67
FONSECA, Cláudia Damasceno. Arraiais e Vilas d’El Rei: espaços de poder nas Minas setecentistas. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2011.
49

Apesar de Damasceno estar trabalhando com um espaço diferente do nosso,


compreendemos que, tanto no espaço sertanejo quanto no litorâneo, a Igreja Católica tinha o
mesmo objetivo principal: garantir a conversão e manutenção da fé católica nos diversos
espaços da freguesia. Assim como a autora observou no sertão, acreditamos que na freguesia
de Sant’Ana a Igreja também utilizou a criação de prédios sagrados para cristianizar os
espaços. A construção de capelas e igrejas, espaços estes considerados sagrados pela
população, eram fundamentais para praticarem os atos de fé - os sacramentos católicos. E era
neste momento que havia também a cristianização das almas, o incentivo da Igreja e da
sociedade cristã em converter os povos conforme a conduta explicitada nos evangelhos
bíblicos.
As próprias autoridades provinciais reconheciam em seus relatórios oficiais que a
Igreja ultrapassava suas funções religiosas, sendo responsáveis também por ensinar e
propagar valores sociais aos seus fiéis. Para o presidente de província Antonio Francisco
Pereira de Carvalho a religião não era apenas importante para a sociedade, mas também
responsável por sua moral:

Não tratarei de demonstrar-vos a necessidade da Religião, por que só a


perversidade e a ignorancia poderiam pô-la em questão. Sem Religião não ha
moral, e sem moral não é possível a sociedade; portanto não só em relação ao bem
individual, como ao interesse social, por ser ella um meio governativo, convém
prestar-lhe toda a coadjuvação necessaria ao seu desenvolvimento [...]68.

Os líderes religiosos - párocos e vigários -, como detentores do saber cristão e do


poder sagrado, eram os responsáveis por converter os pagãos, realizar as cerimônias
sacramentais, assegurar a vivência da fé e vigiar os fiéis. Como representantes da instituição
que pregava a fé e os bons costumes sociais, suas ações deveriam servir de exemplo para a
comunidade. Reproduzindo a crença social, o presidente da província do Rio Grande do
Norte, Joze Joaquim da Cunha, no relatório de 1852, afirmou que as leis divinas podiam mais
do que as humanas, e sem a religião não haveria sociedade. Inclusive fez crítica aos
"pastores" da província, relatando que a falta de assiduidade destes na instrução religiosa,

68
RELATÓRIO, 1853, p. 8.
50

caridade e zelo poderia disseminar exemplos negativos na sociedade norte riograndense,


gerando ondas de injustiça, imoralidade, individualismo e paganismo69.
Para compreender como a figura do religioso era importante para a manutenção da
crença, vigilância e conversão dos fiéis, o presidente da província de 1861, José Bento da
Cunha Figueiredo Júnior envia um ofício ao prefeito da Igreja da Penha do Recife para que
missionários capuchinhos vinhessem a esta província realizar missões:

Sincero admirador dos serviços importantissimos prestados nas provincias de


Pernambuco e Alagoas pelos missionarios capuchinhos, que tantos monumentos
teem levantado á custa da piedade dos fieis, solicitei do rvm. prefeito da Penha do
Recife a vinda de um desses religiosos, que alem de innumeraveis fructos que
poderia colher pela palavra e pelo exemplo a bem da religião é da moralidade
publica, conseguiria sem duvida em favor das obras pias a prestação do serviços
gratuitos e outras contribuiçõs, que de alguma sorte suppririam a falta dos auxilios
pecuniarios que a provincia não pode actualmente conceder. Tenho promessa de
ver satisfeito o meo desejo logo que o convenio possa dispor de algum religioso
que venha exercer sua missão nesta provincia70.

Além da questão missionária, percebemos que as figuras religiosas, representantes da


instituição católica, eram importantes para as Paróquias, pois suas ilustres presenças
poderiam arrecadar fundos para as freguesias. Muitas vezes estas unidades religiosas não
possuíam fundos suficientes para manter, preservar e/ou construir os prédios sagrados -
fundamentais para a cristianização dos espaços - e o Estado assumia esse papel, devido à
importância destes edifícios para a territorialização dos espaços. Como as províncias também
tinham outras funções administrativas para além de manter os territórios sagrados
entendemos a preocupação religiosa e administrativa de Figueiredo Júnior.
Sagrado, profano e território estavam interligados, contribuindo para que o grupo
religioso reforçasse o sentido de pertencimento à instituição religiosa. De acordo com
Rosendahl (2005), “o exercício do poder religioso ocorre na vivência da fé. [...] Dessa forma,
a manutenção do lugar sagrado favorece a noção de que a comunidade partilha uma
identidade comum, um sentimento de integração e de comunidade religiosa”71. O território

69
RELATÓRIO, 1852, p. 3.
70
RELATÓRIO, 1861, p. 8.
71
ROSENDAHL, Zeny. Território e territorialidade: uma perspectiva geográfica para o estudo da religião.
2005, p. 32.
51

religioso das freguesias não era apenas simbólicos, mas também um local de práticas ativas
e rituais, por intermédio das quais se afirmavam e viviam as identidades.
E foi justamente com o avanço da Reforma Protestante na Europa do século XVI,
que a Igreja Católica observou uma necessidade permanente de buscar um instrumento de
distinção e controle sob cada um dos seus membros. Era preciso conhecer claramente quais
e quem eram seus membros, e a melhor forma de obter tais informações era através do
conhecido. Assim, foi levado ao Concílio de Trento (1545-1563) a proposta de registrar
individualmente cada católico, criando um modelo, inicialmente para os registros de batizado
e casamento, e apenas depois para o de óbito72. Segundo as determinações do Concílio, os
registros de batismo, por exemplo, deveriam ter: o nome completo do batizando, o nome dos
seus pais, quando conhecido, o local da residência dos pais, além do nome de pelo menos um
padrinho, embora o ideal fosse que cada registro tivesse dois padrinhos/testemunhas.
Este modelo foi reforçado na legislação canônica, as Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia organizadas após a realização do primeiro sínodo diocesano (1707) e
sua publicação em 1718, quando há a compilação das normas e orientações do cristianismo
a serem implantadas neste território, sendo uma iniciativa do arcebispo Dom Sebastião
Monteiro Vide. Estava determinado, portanto nesta legislação que o registro dos batizados
seria feito em livro específico e na seguinte forma: “Aos tantos de tal mez, e de tal anno
baptizei, ou baptizou de minha licença o Padre N. nesta, ou em tal Igreja, a N. filho de N. e
de sua mulher N. e lhe puz os Santos Oleos: forão padrinhos N. e N. casados, viuvos, ou
solteiros, freguezes de tal Igreja e moradores em tal parte”73. Esta ideia, até aquele período
inovadora, acabou se tornando uma das principais formas de controle cristão e social, tanto
da Igreja quanto da sociedade civil, reforçando o território religioso do catolicismo.
Os registros de batismo e casamento, portanto, se mostram como fontes
privilegiadas para o estudo das sociedades a partir do século XVI no Brasil, pois com a
necessidade de registrar os seus fiéis a Igreja passou a ser detentora das informações dos
indivíduos, os quais viviam em sociedade predominantemente católicas, em que as
cerimônias e registros faziam parte da cultura católica. No nosso caso que estamos nos
debruçando sobre o período oitocentista, estes registros paroquiais são fundamentais na

72
MARCÍLIO, Maria Luiza. Os registros paroquiais e a história do Brasil. Revista Varia Historia, 2004. p.
14.
73
VIDE, D. Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. 1853 [1720], p. 29.
52

compreensão do estudo da sociedade de São José de Mipibu. A análise de seis livros


paroquiais da Freguesia de Sant’Ana (quatro livros de batismo, de 1841 a 1862, e dois livros
de casamento, de 1853 a 1862) disponíveis no Arquivo da Arquidiocese de Natal, tanto de
forma quantitativa quanto qualitativa, poderão auxiliar-nos na compreensão dos perfis desta
sociedade, principalmente das famílias escravas, objeto principal de nossa análise.
As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia garantiam aos escravos o
direito de serem batizados e de se casarem na Igreja74. Como a maioria dos cativos não
sabiam ler ou escrever, vivendo sob a exploração do sistema escravista, estes sujeitos não
deixaram efetivamente escritos sobre suas vivências ou experiências. Assim, as fontes
paroquiais apresentam-se como documentos singulares para o estudo da História dos sujeitos
escravos, porque a partir da identificação, transcrição, leitura, análise e tabulação desses
registros, podemos mostrar a presença deles dentro da construção e territorialização da
freguesia de Sant’Ana, assim como analisar suas estratégias de sobrevivência.
Estamos analisando os registros de batismo de crianças, pais, mães e/ou padrinhos
escravos, e de casamento de nubentes escravos da Freguesia de Sant’Ana entre os anos de
1840 a 1862. A escolha pelo estudo deste período se deu por diferentes fatores. O primeiro
deles foi o estado de conservação das fontes. Como estamos trabalhando com documentos
manuscritos, atualmente digitalizados75 no esforço de preservá-los, os quais sobreviveram a
quase dois séculos de história, alguns encontram-se deteriorados devido à má conservação e
ação do tempo. Os mais danificados são aqueles referentes a década de 30 do século XIX –
período do primeiro livro de registros para esta Freguesia -, os quais não tivemos como
analisar. Somado a isto, é a partir da década de 40 que os presidentes da província do Rio
Grande do Norte voltam seu interesse e preocupação para com a cultura canavieira,
destacando a região do vale do Capió como espaço fértil privilegiado para o desenvolvimento

74
“Mandamos a todas as pessoas, assim Ecclesiasticas, como seculares, ensinem, ou fação ensinar a Doutrina
Christã á sua familia, e especialmente a seus escravos, que são os mais necessitados desta instrução pela sua
rudeza, mandando-os á Igreja, para que o Parocho lhes ensine [...] os sete Sacramentos, para que dignamente
os recebão, e com elles a graça que dão [...]” (VIDE, D. Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia. 1853 [1720], p. 3).
75
A partir de 2011, o projeto de extensão “Classificação Documental e produção de Instrumentos de Pesquisas
para o Acervo Documental da Arquidiocese do Rio Grande do Norte” coordenado pela Profª Dra. Margaria
Dias, realizou ação conjunta a Arquidiocese de Natal e professores do departamento de História da UFRN, Profª
Draª Carmen Alveal, Profª Drª Fátima Lopes e Profª Drª Juliana Souza, viabilizando a restauração, organização
e digitalização dos registros de batismo, casamento e óbito de diferentes freguesias do Rio Grande do Norte,
inclusive as fontes paroquiais da freguesia de Sant’Ana (livros que datam de 1833 à 1888).
53

desta indústria na província. Assim, buscamos observar também este crescimento na


quantidade de registros de batismo e casamento de sujeitos escravos nesta freguesia,
associando o crescimento da cultura da cana-de-açúcar com o aumento da presença negra
escrava na região.
Estudar a presença negra a partir do período de crescimento e desenvolvimento
açucareiro da província, passando pela data de promulgação da Lei Eusébio de Queirós e
pelo consequente aumento do tráfico interprovincial de escravos da região Norte para a região
Sul do Império, nos possibilita investigar o impacto destes fatores na mão de obra escrava
em São José de Mipibu. Devido à importância econômica e social da mesma na província,
este trabalho pode nos fornece indícios sobre algumas das estratégias que os escravos
produziram em meio a esta dicotomia entre o crescimento econômico e fim do tráfico de
africanos, para lutar pela manutenção de suas famílias, melhores condições de vida ou até
mesmo a busca pela liberdade.
Ao invés de vítimas passivas de imposições culturais, buscamos compreender, aqui,
os negros escravos como agentes ativos dos processos que incorporaram elementos da cultura
cristã, dando a eles significados próprios e utilizando-os para a obtenção de possíveis ganhos
nas novas situações em que viveram. Seria uma espécie de “resistência adaptativa”76, formas
que acharam de sobreviver e garantir melhores condições de vida na nova situação em que
se encontravam. Chamamos de nova situação, pois compreendemos que os negros e negras
cativos, sejam eles nascidos em África ou Brasil, foram retirados de seus territórios originais
de maneira forçosa, tendo que territorializar um novo espaço, se reconstruírem,
reterritorializarem.

76
Estamos nos apropriando do termo “resistência adaptativa” com base em Stern (1987). Apesar deste autor
estar tratando da realidade indígena, acreditamos que os escravos e índios foram grupos marginalizados desde
a sociedade colonial, os quais tiveram que mudar de território ou se readaptar ao seu espaço agora
territorializado com uma nova cultura. Almeida (2001) acrescenta ainda, para o caso dos indígenas que “as
aldeias indígenas na colônia podem ser vistas, então, como espaço de interação de grupos sociais e étnicos
diversos, nos quais os índios aprendiam novas práticas culturais e políticas, que reelaboravam a partir de seus
próprios valores e tradições e de acordo com as necessidades que se lhe apresentavam. Neste processo de
ressocialização, adquiriam o instrumento necessário que lhes permitia sobreviver e adaptar-se ao mundo
colonial em formação e sabiam lançar mão dele nos momentos apropriados” (ALMEIDA, 2001, p. 52). Apesar
dos autores estarem tratando dos povos indígenas, acreditamos que os negros cativos também tiveram que fazer
reelaborações a partir de seus valores, como estratégia de sobrevivência, apropriando-se da cultura branca
quando necessário para sobreviver e construir redes de relações. STERN, Steve. Resistence, Rebellion and
Consciounnes in the Andean Peasant World, 18ª to 20ª Century. The University of Winsconsin Press, 1987
apud ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios aldeados: histórias e identidades em construção.
Tempo. Revista do Departamento de História da UFF, Rio de Janeiro, v. 16, p. 51-71, 2001. p. 52.
54

Para compreender este processo, portanto, o estudo da territorialização da freguesia


de Sant’Ana mostra-se fundamental. Diferentes processos históricos ocorrem desde o século
XVIII no espaço que hoje corresponde a São José de Mipibu até ter-se a efetivação da
presença de negros escravos neste território. Estes buscaram territorializar esta sociedade
através de estratégias como a criação de redes e malhas por meio do compadrio, construindo
com os seus parentes espirituais – livres, libertos e/ou escravos – redes de comunicação-
circulação e de representações simbólicas. Apesar de Maria Regina Celestino de Almeida
estar trabalhando com a questão indígena, concordamos com a autora quando a mesma afirma
que “os grupos sociais humanos, mesmo reduzidos à escravidão e às piores condições, são
capazes de reconstituir significados, culturas, histórias e identidades”77.
Conforme a Vila de São José do Rio Grande foi se desenvolvendo social e
economicamente, o número de moradores aumentava, desenvolvendo-se as zonas urbana e
rural, expandindo as atividades agrícolas e comerciais. Todo este processo pelo qual os
negros escravos precisaram enfrentar para construir novamente laços sociais na freguesia de
Sant’Ana são multiescalares e multitemporais. Ocorreram de forma simultânea e sobreposta
vivendo “diferentes temporalidades e territorialidades, em unidade, em processo constante e
concomitante de desterritorialização e reterritorialização que gera sempre novas
territorialidades e novos territórios que contém traços/características dos velhos territórios e
territorialidades”78.
Tomando como inspiração o pensamento de Raffestin, podemos, portanto,
caracteriza o território da freguesia de Sant’Ana em dois níveis: cotidiano e sagrado. Torna-
se cotidiano através das ações dos atores sociais sobre este espaço, territorializando-o a todo
instante. Já o território sagrado era a associação à atuação da igreja e às ações políticas,
campos de força estabelecidos historicamente por relações de controle e influência política
e/ou sagrada. Tendo a Igreja Católica o objetivo de catequisar os povos e propagar a fé cristã,
principalmente sob os povos não cristãos, a Igreja mune-se de estratégias para salvar estas
almas. A criação de freguesias, construção de igrejas e capelas e a obrigação do registro do

77
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. O lugar dos índios na história: dos bastidores ao palco. In: .
Os índios na História do Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2010. p. 23-24.
78
SAQUET, Marco Aurélio. Por uma abordagem territorial. In: SAQUET, Marcos Aurélio; SPOSITO, Eliseu
Savério. Territórios e territorialidades: Teorias, processos e conflitos. São Paulo: Expressão Popular, 2009.
p. 78.
55

batismo e matrimônio nas instituições católicas eram formas da Igreja exercer poder e
controle sobre livres, libertos e escravos que vivessem em São José de Mipibu, cristianizando
o espaço. Porém, é importante compreender como esses sujeitos sociais se apropriaram e
ressignificaram tal território. Estes são territórios concomitantes e sobrepostos que se
caracterizam pelo controle e domínio, pela apropriação e referência, por estratégias sociais
que envolvem as relações de poder, materiais e imateriais, historicamente construídas.
A territorialização da freguesia de Sant’Ana foi formada por continuidades e
descontinuidades no tempo e no espaço e estão intimamente ligadas a cada lugar: elas dão-
lhe identidade e são influenciadas pelas condições históricas e geográficas desse lugar. A
apropriação e construção do território sagrado pelos escravos geraram identidades e
heterogeneidades e que estas, concomitantemente, geraram os territórios aos quais esses
negros passam a se identificar. Nesta reterritorialização, eles produziram traços comuns e
heterogeneidade que, ao mesmo tempo, estão na base da apropriação e produção dos novos
territórios, como veremos nas próximas seções.
Após compreendermos como se deu a formação do espaço da freguesia de Sant'Ana
(atualmente correspondente ao território do município de São José de Mipibu/RN) e o
processo de cristianização deste território pela Igreja, mostra-se necessário apreendermos
como foram construídas e como funcionavam as estruturas político, sociais e econômicas
deste espaço, dentro daquilo que é possível, com a documentação que dispomos. Para isso,
iremos analisar a seguir fontes oficiais administrativas e escritos de contemporâneos do
período Oitocentista, os quais poderão nos fornecer dados sobre a organização destas
estruturas.

2.2 A estrutura socioeconômica de São José de Mipibu a partir da análise dos Relatórios
dos Presidentes de Província do Rio Grande do Norte (século XIX)
Manoel Ferreira Nobre (1971)79 publica pela primeira vez no ano de 1877 o livro
Breve Notícia Sôbre a Província do Rio Grande do Norte: baseada nas leis, informações e
fatos consignados na história antiga e moderna. Na apresentação da segunda edição do livro,
Enélio Lima Petrovich, então presidente do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande

79
NOBRE, Manoel Ferreira. Breve Notícia Sôbre a Província do Rio Grande do Norte: baseada nas leis,
informações e fatos consignados na história antiga e moderna. 2ª edição. Rio de Janeiro: Editora Pongetti, 1971.
56

do Norte, apresenta Nobre como “o primeiro historiador do Estado”80, nascido em 1824 e


falecido em 1897. Ainda no Prefácio desta edição, Manoel Rodrigues de Melo destaca que
“Tavares de Lira, Rocha Pombo, Luís da Câmara Cascudo, Antônio Soares, Nestor Lima,
José Augusto, Luís Fernandes, Vicente de Lemos, todos os grandes historiadores do Estado
têm se louvado nêle para explicar aspectos da nossa nebulosa e mal estudada história
provinciana”81. Este livro mostra-se importante, pois foi produzido ainda no século XIX,
período em que as fontes de informação e de estudos na província eram escassas 82. Seu
trabalho influenciou posteriormente os historiadores norte-riograndenses, pois antes da
fundação do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte em 1902, este era o
único trabalho publicado que compilava informações - estilo dos estudos da época - acerca
da história, geografia e economia das cidades e da província83.
De acordo com Nobre, a agricultura constituía a principal riqueza na cidade de São
José de Mipibu, empregando a maior parte da população. Cultivavam-se a cana-de-açúcar e
o algodão em escala considerável, sendo os terrenos vantajosos a estas culturas. Os vales do
Capió eram os principais pontos de agricultura, em que “a sua uberdade compensa larga e
generosamente o trabalho do homem”84. Os gêneros produzidos na região como o açúcar,
algodão, aguardente, farinha de mandioca, milho, arroz, fumo e madeiras eram conduzidos
por terra à povoação de Macaíba e ao Porto de Guarapes, vendidos e exportados para fora da
província.
É importante compreendermos que a cana-de-açúcar tem características próprias
para o cultivo e produção: exige terras boas e clima especial, grande investimento em prédios
e equipamentos e um grupo significativo de pessoas dedicado à atividade contínua e pesada
durante certos períodos do ano. Juntamente a isso, a lavoura de cana-de-açúcar precisava de
um engenho para o processamento da cana, seja este para transformá-lo em açúcar, ou em

80
Ibid, p. 5
81
Ibid, p. 10.
82
O Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte só veio a ser fundado no ano de 1902. No ano
seguinte passou a publicar a Revista do IHGRN com textos relativos à história, geografia, genealogia e cultura
do Rio Grande do Norte. Para saber mais sobre o assunto, consultar: COSTA, Bruno Balbino Aires da. A
emergência do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte: como, para que e por quem foi criado?
Revista de História (São Paulo), n. 179, 2020.
83
MARIZ, Marlene da Silva. Balanço da historiografia norte-rio-grandense. In: I Encontro Regional da
ANPUH-RN, 2006, Natal. I Encontro Regional da ANPUH-RN: O ofício do historiador Natal: EDUFRN,
2006. p. 59-60.
84
NOBRE, Manoel Ferreira. Breve Notícia Sôbre a Província do Rio Grande do Norte. 1971, p. 50.
57

outros produtos, como a cachaça e a rapadura. Essa combinação de atividades agrícolas e


industriais integradas nas propriedades rurais dava à lavoura açucareira necessidades
diferenciadas comparadas a outras atividades agrícolas, como significativa mão de obra e
alto investimento monetário.
De acordo com Stuart Schwartz (2001)85, na Bahia do século XVIII a safra durava
cerca de nove meses, e o plantio se estendia por mais dois meses, portanto o trabalho da
colheita durava a maior parte do ano, o que tornava a produção de açúcar o emprego ideal
para a mão de obra escrava, na opinião dos agricultores. Durante a safra, os engenhos
funcionavam noite adentro, e os trabalhos, às vezes duravam de 18 a 20 horas por dia, com a
mão de obra organizada em turnos. Apesar de o autor estar tratando de uma região diferente
da nossa, em termos quantitativos de engenhos e cativos, é interessante o detalhamento que
ele faz sobre o funcionamento da produção e indústria canavieira, a qual se adaptou muito
bem à região norte litorânea do Império (correspondente atualmente a região nordeste do
Brasil). Assim, conseguimos compreender a que tipo de regime de trabalho e produção as
famílias escravas estudadas aqui estavam submetidas.
A partir do momento que compreendemos que o Vale do Capió é a região fértil
localizada na área rural de São José de Mipibu, buscamos também identificar nos documentos
oficiais que tipo de atenção esta região recebeu dos presidentes da província do Rio Grande
do Norte, tendo em vista sua importância econômica. Apesar deste tipo de documentação
tratar sobre o espaço administrativo (vilas, cidades, comarcas e província), para o caso de
São José de Mipibu, Manoel Nobre afirmou que os limites da cidade eram os mesmos da
freguesia86. Assim, ao nos apropriarmos dos dados e informações contidos sobre o município
nos relatórios também estaremos mapeando o território religioso da freguesia de Sant’Ana.
No ano de 1849, pela primeira vez no século, um presidente da província destacou
o potencial açucareiro de Mipibu. Na época, Benvenuto Augusto de Magalhães Taques
ocupava esta posição, detalhando inclusive a quantidade de engenhos da Província:

A grande secca dos tres annos de 1845 a 1847 mostrou a instabilidade da riqueza
do gado, e convenceu a muitos da necessidade de formar estabelecimentos
agricolas mais solidos: com isso ganhou a industria do assucar, ainda muito

85
SCHWARTZ, Stuart B. “Trabalho e cultura: vida nos engenhos e vida dos escravos”. In: SCHWARTZ, Stuart
B. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru, SP: EDUSC, 2001, p. 83-115.
86
NOBRE, Manoel Ferreira. Breve Notícia Sôbre a Província do Rio Grande do Norte. 1971, p. 52.
58

atrazada; uma vez, porém, que á ella se appliquem maiores capitaes, deverá tomar
outras proporções; a fertilidade das terras vizinhas aos rios Cunhaú, Trairi, ou
Capió, e Ceará Mirim assegura grande fortuna à lavoura da canna. Esta parte da
Provincia, a unica bem regada, que comprehende trinta legoas do seu litoral, da
extrema da Parahyba para o Norte, é a mais rica e distinada á maior importancia.
Contão-se já na Provincia quarenta e tres Engenhos de assucar sendo trinta e dous
de moendas de ferro, e noventa e tres Engenhocas, que fabricão assucar, rapadura
e agoardente87.

Observa-se, portanto, que a indústria do açúcar na província começa a ganhar


investimentos a partir da segunda metade do XIX, devido à instabilidade na criação do gado
e do comércio do couro, até então uma das principais mercadorias comercializadas.
Respondendo a uma demanda dos mercados internos e externos, o açúcar aparece como uma
possibilidade de gênero a ser produzido e exportado, devido também, ao potencial de duas
principais regiões férteis: Capió e Ceará Mirim. Diferentemente do gado, que era criado e
comercializado no sertão do Seridó, as duas áreas destacadas por Magalhães Taques estavam
localizadas no litoral leste da província, próximas a bacias fluviais que possibilitavam a
constante irrigação e evacuação da produção.

87
RELATÓRIO, 1849, p. 15.
59

Mapa 4 - Recorte do mapa da Província do Rio Grande do Norte, identificando o Vale do


Ceará-Mirim e o Vale do Capió - século XIX, 1868

Fonte: A mancha em vermelho e verde indica a localização do Vale do Capió, zona rural da cidade de São José
de Mipibu; e a mancha amarela indica a localização do Vale do Ceará-Mirim. Mapa disponível em: ALMEIDA,
Candido Mendes de (Org.). Atlas do Imperio do Brazil comprehendendo as respectivas divisões
administrativas, ecclesiasticas, eleitoraes e judiciarias [...] Rio de Janeiro: Lithographia do Instituto
Philomathico, 1868. p. VIII. Com adaptação técnica da arquiteta Júlia Rêgo de Moura Fé.

Quatro anos depois, em 1853, a indústria do açúcar aparece novamente no relatório


do presidente Antonio Francisco Pereira de Carvalho, mostrando-se como um recurso em
crescimento no Rio Grande do Norte, o qual não precisava mais ser importado de outras
províncias. De acordo com Carvalho,

O assucar, que até bem poucos annos era importado de Pernambuco para o
consumo ordinario da Provincia, e que si bem fosse cultivada a canna, o era em
pequena escala, e para o uso das rapaduras, vai-se tornando hoje uma das suas
60

principaes industrias; o numero de engenhos já é bastante consideravel, e os seus


productos já excedem às necessidades do consumo Provincial, e chegam para
serem exportados. Apezar do atrazo existente no fabrico do assucar, comtudo muita
prosperidade promette esta industria, attenta a fertilidade das terras, em que se
cultiva a canna [...] A’ propósito devo recommendar-vos que façais cessar o grande
clamor, que se levanta em quasi toda a Provincia, por causa do enorme tributo, á
que está sujeita a aguardente n’esta fabricada, industria associada á do assucar, e
quasi indispensavel para a manutenção dos engenhos, pois que nos intervallos das
safras é d’ella que ordinariamente os seus proprietarios tiram os meios precisos
para todo o seu costeio em geral, é gravando-se esta de um modo que a extinga, é
difficultar tambem o desenvolvimento da industria sacharina, e assim ameaça-la de
morte, quando promette tanto á Provincia; lembrai-vos, Senhores, que sendo a
maior parte dos proprietaros dos engenhos homens, que estream agora esse genero
de vida, sem terem as precisas forças, sendo a maior, ou pelo menos grande parte
dos braços livres, não tendo além disso abundancia de capitaes, si faltarem-lhes os
recursos que lhes fornece a aguardente, não terão meios de occorrer ás suas
despezas, e com o perecimento desta industria definhará a do assucar, o que será
de lastimar [...]88.

Respondendo as previsões criadas por Magalhães Taques em 1849, o presidente da


província em 1853, Carvalho, demostra que foram atendidas as expectativas quanto ao
desenvolvimento da cultura da cana-de-açúcar, tanto que já neste período as regiões férteis
conseguiam suprir as demandas internas, chegando a exportar para a Paraíba o excedente da
produção89. E não apenas o açúcar era produzido e exportado, mas também a rapadura e a
cachaça, produtos provenientes da produção da cana-de-açúcar. É importante
compreendermos o papel dos engenhos de cachaça na economia do Rio Grande do Norte,
pois segundo Carvalho sem a produção do mesmo na entre safra do açúcar, não seria possível
a manutenção da cultura canavieira. Assim, estabelecemos que a economia desta província
manteve o emprego de mão de obra livre e escrava não apenas para a produção da cultura do
açúcar, mas destacadamente também nos engenhos de rapadura e cachaça, estabelecendo
aqui uma diferença com a economia do Sudeste do Império, baseada nas médias e grandes
propriedades açucareiras.
Em 1854 aparecem novas informações sobre a situação das plantações e engenhos
de açúcar. Neste documento oficial Antonio Bernardo de Passos faz comparações dos dados
acerca da produção e do seu crescimento, entre 1848 e 1854. Somado a isto, neste relatório
há um mapa detalhado com a quantidade de engenhos de moendas de ferro e pau em cada
uma das cidades e vilas, além da quantidade de escravos por engenho:

88
RELATÓRIO, 1853, p. 11 – 12.
89
Ibid.
61

A exportação do assucar effectuada no anno financeiro de 1848-1849, era apenas


de 11.534 arrobas; no de 50 a 51 já subia a 18.974, mas n’esse mesmo anno de 51
a exportação de todo elle foi de 35.511 arrobas: no de 1852 chegou a 62.624, e no
primeiro semestre do corrente, temos a exportação avultada para uma indústria
nascente de 80.749 arrobas no curto período pois dos 3 ½ annos tomados para
termo de comparação, a cultura da canna tornou-se maior mais de sete vezes. Tal
he o seu maravilhoso desenvolvimento. Ora dando esta indústria tão grandes
lucros, que nem nos annos infelizes deixa prejuízo; havendo tantas terras ainda por
cultivar, e tantos braços por ocupar, as crescidas sommas, que ella produz, virão de
certo argumenta-la cada vez mais90.

Comparando os dados obtidos nos relatórios a cima analisados, observamos que em


seis anos a quantidade de açúcar despachado pela Mesa do Consulado91 cresceu mais de sete
vezes em quantidade de exportação, o que é bastante significativo, saindo de 11.534 arrobas
despachados no ano 1848-1849 para 80.749 arrobas somente no primeiro semestre de 1854
(ver Anexo A). Este crescimento era resultado do investimento de gestores e senhores de
terras na construção de estruturas fundiárias mais modernas e consequentemente de mão de
obra para o trabalho. Tanto o presidente da província do ano de 1853, Antonio Francisco
Pereira de Carvalho, quanto o do ano de 1854, Antonio Bernardo de Passos, deixam claros
em seus relatórios que havia o emprego de mão de obra livre e escrava nos engenhos de
produção de açúcar, rapadura e cachaça. Entretanto, este último presidente apresenta-nos um
mapa de grande importância para a nossa pesquisa, em que contabiliza a quantidade de
engenhos e escravos em cada propriedade existente na província do Rio Grande do Norte.
Estes dados são importantes, porque demonstram a importância da mão de obra cativa na
economia.

90
RELATÓRIO, 1854, p. 13.
91
As mesas do Consultado foram criadas por D. João VI em 1818, as quais tinham a finalidade de arrecadar os
impostos de exportação e algumas contribuições que pesavam sobre o comércio exterior. A Província do Rio
Grande do Norte era submetida a Mesa do Consulado de Pernambuco, a qual acabou sendo extinta no ano de
1860. Para mais informações <http://www.mapa.an.gov.br/index.php/menu-de-categorias-2/247-
administracao-das-diversas- rendas-nacionais-mesa-do-consulado> Acesso 29 jul 2020.
62

Tabela 1 - Engenhos da Província do Rio Grande do Norte em 1854


Nº. Nº. DE
Nº. DE Nº TOTAL
Nº. DE TOTAL ENGENH % DE % DE
ESCRAVOS DE
ENGENHOS DE OS COM ESCRAV ENGENH
CIDADE POR TIPO DE ESCRAVO
POR TIPO ENGENH ESCRAV OS OS
ENGENHO S
OS OS
FERRO PAU FERRO PAU
Natal 5 4 9 9 165 29 194 12,9 7,6
São 8 10 18 14 50 60 110 7,3 12,5
Gonçalo
Extremoz 15 12 27 21 167 32 199 13,3 18,8
Goianinha 4 9 13 13 99 58 157 10,5 9,0
Arez 5 5 10 9 113 16 129 8,6 6,9
Vila Flor 11 5 16 12 208 6 214 14,3 11,1
São José 11 21 32 23 197 68 265 17,7 22,2
de Mipibu
Papari 7 12 19 18 194 39 233 15,5 13,2
TOTAL 66 78 144 119 1.193 308 1.501 100,0 100,0
Fonte: Tabela produzida por Clara Maria da Silva a partir da apropriação dos dados do Mapa nº 37 disponível
no Relatório do Presidente de Província do ano de 1854 (RELATÓRIO, 1854, mapa 37).

A partir da análise detalhada das tabelas acima, os engenhos localizados na zona


rural de São José de Mipibu em comparação às demais cidades e vilas da Província, detinha
cerca de 17,5% do total de escravos e 22,2% do total de engenhos da província, o que justifica
em dados quantitativos os relatos dos presidentes de província sobre a fertilidade das terras
dessa região. Comparado com os dados do ano de 1849, observamos que o número de
engenhos de ferro, por exemplo, teve um aumento, enquanto houve a diminuição nos
engenhos com moendas de pau, demonstrando a expansão e modernização da agricultura.
Provavelmente em resposta ao crescimento e desenvolvimento que São José de
Mipibu vinha demonstrando desde fins dos anos 40 daquele período, o presidente Antonio
Marcellino Nunes Gonçalves em 1859 nos apresenta grandes indícios sobre o papel que esta
cidade tinha dentro da província do Rio Grande do Norte. Assim como seus antecessores e
sucessores, Nunes Gonçalves começa a quarta parte do relatório destinada a discussão sobre
a agricultura e o comércio demonstrando que a “agricultura tem tido um espantoso
desenvolvimento”92. No ano de 1845 só eram conhecidos cinco engenhos de açúcar, tendo
em cerca de quatorze anos este número crescido exponencialmente para o estabelecimento
de 156 propriedades, naquele ano. O rendimento anual desses engenhos para aquela época
excedia de 350.000 arrobas de açúcar, o que demonstrava a "admirável uberdade do solo"

92
RELATÓRIO, 1859, p. 15.
63

nas regiões rurais. Todavia o comércio da capital, segundo Nunes Gonçalves, não
apresentava o mesmo crescimento e desenvolvimento da agricultura na província. Diferente
de todas as outras capitais do Império, as quais se constituíam como centro da vida, do
movimento, das atividades de importação e exportação, e influência da ação governativa,
Natal era o inverso. Segundo o presidente:

a frouxidão em todas as relações, e desanimo em todas as emprezas, e o mais


completo isolamento dão á Cidade do Natal esse triste e sombrio aspecto, que tanto
a desconsidera aos olhos dos que a visitão. Cercado pelo lado de Leste e do Sul por
uma cordilheira de morros de arêa de dificil accesso, que se prolongão na extensão
de muitas legoas em incultas e estereis chapadas, tendo em frente pelo Oeste o Rio
Potengi com 265 braças de largura, e ao Norte o occeano na distancia de duas
milhas, emprehende-se facilmente quam penosa deve ser a communicação com
qualquer ponto do interior da provincia. Assim é que privada pelo rio de todas as
relações com as comarcas do Assú, Seridó e Maioridade e com uma grande parte
da mesma comarca da Capital que abrange os Municipios de São Gonçalo,
Extremoz e Touros, são os generos alimenticios e todos os mais productos que se
destinão á exportação, levados para os portos do Aracati na provincia do Ceará, de
Macáo e outros nesta provincia. Por outro lado segregada pelos morros de arêa da
importantissima e extensa comarca de São José, são também desviados para os
mercados da Parahiba e Pernambuco todo o assucar nella produzido, o gado,
algodão e mais generos da comarca do Seridó, que deixão de ser enviados para o
Aracati. É por este modo que se explica o facto anomalo, que aqui se observa, isto
é, a pobreza e decadencia da capital na razão inversa da riqueza e engramdecimento
dos demais povoados da provincia93.

A dificuldade de acesso à cidade era o primeiro obstáculo para a comunicação e


comercialização entre a capital e o interior. Natal era cercada por dunas e pelo mar, o que
dificultava o seu acesso por terra, criando uma barreira física entre ela e as outras cidades da
Província, principalmente os municípios interioranos de grande influência econômica e
política: Assú, Seridó, Maioridade, São Gonçalo, Extremoz, Touros e São José de Mipibu. A
capital, portanto, acabou perdendo o posto de escoadora da produção para as províncias
vizinhas: Ceará, Paraíba e Pernambuco. A própria produção de açúcar, rapadura e cachaça
produzida em São José de Mipibu, que estamos investigando, era exportada pelo porto de
Aracati no Ceará94. Assim, a capital do Rio Grande do Norte mostrava-se cada vez mais
decadente, não exercendo a função econômica, política e por vezes também social que uma
capital deveria exercer dentro de sua província.

93
RELATÓRIO, 1859, p. 16.
94
Ibid.
64

Apesar de Nunes Gonçalves propor a construção de uma ponte sobre o rio Potengi
e o rompimento dos morros por uma estrada plana a fim de tornar o acesso à Natal mais fácil,
para ele o crescimento e desenvolvimento da província só seria possível plenamente se
houvesse a mudança da capital. Desta forma, no relatório apresentado à Assembleia
Legislativa Provincial, Antonio Nunes Gonçalves em 1859 propõe a transferência da capital
da província do Rio Grande do Norte para a cidade de São José de Mipibu. Para o presidente
esta cidade reunia:

as precisas condições de salubridade e fertilidade do terreno, pode brevemente


constituir-se um ponto commercial intermediario desta Cidade a todo o interior da
provincia, e em uma epocha talvez não muito remota ser para ali transferida a séde
da capital, visto ainda o grande favor que lhe assiste de um ancoradouro quasi tão
extenso e profundo, como o que aqui se offerece aos navios de maior lotação95.

É importante refletirmos sobre o papel que uma capital tinha dentro de uma província, afinal
o fato da cidade de São José de Mipibu ter sido cogitada pelo presidente para ocupar tal
posição foi um fato de distinção. Nunes Gonçalves parecia acreditar que ela reunia
características econômicas, comerciais e geográficas tão relevantes as quais lhe
proporcionaria um grande desenvolvimento econômico e portuário – importantes para a
construção de relações comerciais com outras cidades e províncias.
Neste mesmo ano com o intuito de desenvolver ainda mais o comércio da região,
houve a fundação de uma feira neste local pelo Major Fabricio Gomes Pedrosa “transferindo
para ali os seus crescidos fundos commerciaes e os de alguns de seus amigos”96. As feiras no
século XIX eram locais de compra e venda da produção do campo, que movimentavam o
comércio e a economia das cidades. Acreditamos que a fundação da mesma nesta cidade não
tenha sido mera generosidade como quis apresentar Nunes Gonçalves em seu relatório. Estes
homens de negócios eram movidos por interesses monetários, provavelmente observando um
potencial econômico na região, devido à localização, fertilidade do solo e desenvolvimento
comercial, que os fizeram querer investir neste local.
Apesar dos fortes argumentos do presidente Nunes Gonçalves sobre a necessidade
de mudança da capital da província do Rio Grande do Norte, observamos que esta discussão

95
Ibid, p. 17.
96
Ibid.
65

nos relatórios não se estendeu para além do ano de 1859. Em junho do mesmo ano, Antonio
Marcelino Nunes Gonçalves foi indicado pelo Governo Imperial para assumir o governo da
província do Ceará, tendo exercido na província do Rio Grande do Norte o mandato por 15
meses e 16 dias. Ele foi citado em jornais do período como um “hábil e circunspecto
administrador”, tendo sido acompanhado até o porto no dia de seu embarque “por um
numeroso concurso de cidadãos dos mais grados da capital”. Um dos articulistas fecha uma
das matérias ressaltando ainda que “o seu nome [nesta província] será nela sempre lembrada
com respeito e com saudade por todos os norte riograndenses, que sabem apreciar o
merecimento”97. Apesar das intenções legítimas de Nunes Gonçalves, existem processos
políticos, administrativos e econômicos muito mais complexos que envolvem mudanças
significativas como essas, as quais este presidente não pode manter-se na província para lutar
por elas.
Na década de 60, São José de Mipibu continua aparecendo em posição de destaque
nos documentos oficiais. De acordo com o presidente do ano de 1862, Pedro Leão Velloso,
era esta a cidade com a maior quantidade de escravos da província. Ele apresentou em sua
fala os dados populacionais colhidos sete anos antes, em 1855, pelo delegado de polícia da
época, Herculano Antônio Pereira da Cunha.

97
NOTICIÁRIO. O Rio Grandense do Norte. Natal, 05 de setembro de 1859, ano II, nº 56, p. 4.
NOTICIÁRIO. O Rio Grandense do Norte. Natal, 13 de outubro de 1859, ano II, nº 60, p. 2.
Tabela 2 – Dados populacionais da província do Rio Grande do Norte em 1855

% DE
FREGUESIA LIVRES CAPTIVOS
CATIVOS
CASADOS SOLTEIROS VIÚVOS TOTAL CASADOS SOLTEIROS VIÚVOS TOTAL
Natal 1.641 3.962 331 5.934 5 515 0 520 2,6
São Gonçalo 2.556 4.896 253 7.705 159 536 80 775 3,8
Extremoz 7.662 7.593 369 15.624 416 607 103 1.126 5,6
Touros 2.102 1.607 101 3.810 16 338 8 362 1,8
Goianinha 6.710 12.014 815 19.539 250 1.279 71 1.600 7,9
Angicos 1.869 1.157 209 3.235 520 435 145 1.100 5,4
Macau 2.098 2.854 212 5.164 93 467 4 564 2,8
Mossoró 737 1.695 61 2.493 4 149 0 153 0,8
Principe 2.025 4.819 202 7.046 86 1.116 8 1.210 6,0
Acari 2.105 4.458 233 6.796 138 809 22 969 4,8
Imperatriz 1.478 3.438 180 5.096 16 728 2 746 3,7
Portalegre 2.221 4.488 212 6.921 28 685 1 714 3,5
Apodi 1.548 2.497 436 4.481 155 346 88 589 2,9
São José 7.691 9.211 1.216 18.118 4.013 5.160 643 9.816 48,5
TOTAL 42.443 64.689 4.830 111.962 5.899 13.170 1.175 20.244 100,0
Fonte: Tabela produzida pela autora a partir da apropriação dos dados disponíveis no Relatório do Presidente de Província do ano de 1862 (RELATÓRIO,
1862, p. 6).
67

Gráfico 1 – Porcentagem de escravos por Freguesia (1855)

Porcentagem de escravos por Freguesia


3% 4%
6% Natal
2% São
Gonçalo
8%
Extremoz
Touros
48
% Goianinha
5%
Angicos
Macau
Mossoró
3% Príncipe
Acari
Imperatriz
5% Portalegre
4%
Apodi
3% 2%

Fonte: Gráfico produzido por Clara Maria da Silva a partir da apropriação dos dados disponível no Relatório
do Presidente de Província do ano de 1862 (RELATÓRIO, 1862, p. 6). Universo amostral: 20.244 escravos.

O município de São José de Mipibu detinha praticamente metade do total de


escravos da província do Rio Grande do Norte no ano de 1855, 48,5% (9.816 cativos) em
dados percentuais. Este número impressiona, demonstrando o desenvolvimento econômico
da região nos anos 50 do século XIX, e consequentemente a necessidade do uso da mão de
obra escrava. Para estabelecermos um comparativo, a segunda cidade na mesma província
com a maior quantidade de escravos era Goianinha com 7,9% (1.600 cativos), número sete
vezes menor que o primeiro colocado.
Nos anos de 1860 e 1861 os presidentes continuam reafirmando a importância da
economia do açúcar. Segundo o presidente João José de Oliveira Junqueira, era a agricultura
que gozava de maiores riquezas e capitais, mais do que a criação de gado que tinha sido até
1845 a principal atividade econômica da província. Para o ano de 1860, indicou a existência
de 166 engenhos de ferro, 12 de madeira e 20 engenhocas para o fabrico da rapadura, havendo
o desenvolvimento pleno da cana-de-açúcar principalmente nos férteis vales do Ceará Mirim
68

e do Capió98. No ano seguinte, o presidente José Bento da Cunha Figueiredo Júnior, detalha
o aumento da quantidade de engenhos, para 173 engenhos de ferro e 14 engenhos de madeira,
mostrando o crescimento ano após ano da indústria açucareira99. Anteriormente a 1860, os
presidentes da província apenas chegavam a detalhar a quantidade de arrobas de açúcar as
quais eram exportadas para fora da província, o que é interessante para termos um panorama
da produção, mas não demonstravam quanto era produzido ao todo na província. Foram nos
anos 1860 e 1861 que primeiramente apontaram os valores da produção anual de açúcar,
chegando aos valores de 372.480 arrobas e 417.480 arrobas, respectivamente (ver Anexo
C).
Todo o esforço dos presidentes de província para reunir dados populacionais a cerca
da população, da agricultura e do comércio não eram à toa. De acordo com Ilmar de Mattos,
em O tempo saquarema (1987)100, os censos eram ferramentas vitais para o conhecimento e
a organização administrativa do Império. Deter informações sobre a sociedade significava
conhecê-la e também controlá-la. Os censos reuniam “os elementos necessários para um
estudo comparativo das fontes de riqueza e impostos, e para o equacionamento das medidas
necessárias ao incentivo das atividades econômicas”101. Faziam parte da política do Império
que precisava conhecer melhor sua população, sua distribuição, o número de escravos, de
homens e mulheres livres, enfim, necessitava de um estudo amplo, o qual pudesse compor
um quadro sobre a mão de obra da Nação. Afinal, só se podia dominar aquilo que se conhecia.
Havia a previsão da realização de um Censo Geral do Império e o Registro Civil dos
Nascimentos e Óbitos no ano de 1852, mas conforme apontou Sidney Chalhoub em A força
da escravidão (2012)102, o referido decreto publicado no ano anterior que previa o
levantamento oficial dos dados da população acabou gerando suspeitas entre os homens
pobres livres. A necessidade da declaração da cor da população em tais registros oficiais fez
com que homens e mulheres livres e libertos, principalmente os de cor, acreditassem que na
realidade os dados obtidos para os censos seriam utilizados pelo Estado no recrutamento para
o serviço militar, ou ainda pior, para (re)escravizar os pretos e partos, fossem eles livres ou

98
RELATÓRIO, 1860, p. 11.
99
RELATÓRIO, 1861, p. 35.
100
MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo Saquarema. São Paulo: HUCITEC; Brasília: INL, 1987.
101
Ibid, p. 268.
102
CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil Oitocentista. São Paulo:
Companhia das Letras, 2012.
69

forros. Por esse motivo, esta lei ficou conhecida pela massa da população como “lei do
cativeiro”103.
A precariedade da liberdade era uma realidade para livres e alforriados de cor no
Império brasileiro, o medo da escravização ou reescravização era um sentimento constante e
concreto, por isso havia uma luta diária desta parcela da população pela manutenção da
liberdade e por melhor qualidade de vida.
O fracasso do censo de 1852 pode ser creditado a problemas estruturais – as grandes
dimensões do Império, a falta de pessoas competentes para o arrolamento dos dados, a
desorganização das paróquias, lugar em que se recolhiam muitas das informações que
entravam para o censo –, mas também em virtude dos protestos e ações populares que
reagiram contra as disposições legais impostas pelo governo imperial.
No caso da província do Rio Grande do Norte, antes do Censo Geral de 1872 – o
único ocorrido em todo o período do Império brasileiro – observamos que os presidentes de
província, juntamente com os chefes de polícia, chegaram a fazer três levantamentos
populacionais parciais, a fim de conhecer mais dados sobre a população, assim como sobre
a situação da mão de obra nesta província.

Tabela 3 - Dados populacionais sobre o número de livres e escravos na província do


Rio Grande do Norte (1844- 1872)

%
ANO LIVRES ESCRAVOS TOTAL POPULAÇÃO
ESCRAVA
1844 130.919 18.153 149.072 12%
1855 111.962 20.244 132.206 15%
1870 237.981 24.326 262.307 9%
1872 205.939 12.052 217.991 5%
Fonte: Relatórios dos Presidentes de Província do Rio Grande do Norte – 1844, 1862, 1870, 1873. Tabela
produzida por Clara Maria da Silva a partir dos dados contidos nos relatórios.

Os presidentes de província demonstraram, nos seus relatórios, um crescimento da


quantidade de cativos da década de 40 à década de 70 do Oitocentos, enquanto o tráfico, as
secas e a guerra deveriam ter diminuído estes números. Desde a publicação da primeira lei
proibindo o tráfico transatlântico de escravos em 1831, já havia debates acerca da

103
Ibid, p. 19-27.
70

preocupação com a mão de obra nas grandes lavouras. Nos jornais, Assembleias provinciais,
Câmaras municipais e relatórios dos presidentes de província os debates eram intensos.
Apesar da promulgação da Lei Feijó (1831) e da Lei Eusébio de Queirós (1850) – proibindo
o tráfico de escravos –, da Lei do Ventre Livre (1871) – responsável por libertar as crianças
nascidas de mães escravas –, as duas grandes secas em 1845 e 1877 pelas quais o Rio Grande
do Norte enfrentou, - e a Guerra do Paraguai104 de 1864 a 1870 – responsável por enviar
escravos à guerra –, os dados populacionais até 1872 demonstram o crescimento do número
de escravos na província.
Devemos ter em mente, por exemplo, que para o ano de 1855 os números coletados
pelo chefe de polícia Herculano Antônio Pereira da Cunha poderiam ter o interesse de
minimizar a quantidade de escravos da província, intencionando desfavorecer as políticas de
tráfico interprovincial, bem como a importância do trabalho escravo na província. Outra
questão era o fato de haver falta de dados completos nos relatórios, pois os párocos não
enviavam os dados requisitados pelos chefes de polícia no tempo estimado, o que leva a
alterar os dados reais sobre a quantidade não apenas de escravos, mas também de livres.
Somados a isto, não podemos deixar de valorizar os interesses da classe agrária, que
pretendia, através de indenizações – principalmente a partir da década de 80 –, a paulatina
transição da escravidão para o trabalho livre105.
O presidente João Capistrano Bandeira de Mello Filho, no relatório publicado em
1873 com os dados do primeiro censo geral para o Rio Grande do Norte faz uma denúncia
acerca da veracidade dos dados coletados, tanto pelos chefes de polícia quanto pelos próprios
recenseadores do Império. Quanto ao censo realizado dois anos antes, Mello Filho afirma
que o próprio magistrado, Aurelio Ferreira Espinheira, responsável pela coleta de dados no
período, julgava que os algarismos não eram a expressão da verdade, e que calculava a
população da província em 300.000 habitantes. As mesmas dúvidas surgem por parte do
presidente da província quanto aos censos parciais de 1844 e 1855, os quais estariam com os

104
Para saber mais sobre o recrutamento de escravos no Rio Grande do Norte para a Guerra do Paraguai,
consultar: ALVES, Francisco Ubaldo. “Valentes Rio-Grandenses! Às Armas!”: A questão do recrutamento
militar na província do Rio Grande do Norte durante a Guerra do Paraguai (1864-1870). Programa de Pós-
Graduação em História (Mestrado). João Pessoa, 2014.
105
ALVES, Francisco Ubaldo. “Valentes Rio-Grandenses! Às Armas!”. 2014, p. 123-124.
71

dados defasados106. Quanto ao censo encomendado pelo governo imperial realizado no ano
de 1872, Mello Filho demonstra estranhamento sobre seus dados:

Será possível que de 1844 a 1872 não tenha duplicado a população desta parte do
império, quando a sua receita tem quintuplicado, e novas povoações se têm
fundado, quase na mesma proporção do accrescimo de sua renda? [...] Das
demonstrações que acabo de fazer, resulta que o recenseamento de 1872 está muito
longe da realidade, e que a estatística de 1870 organisada pela policia exprime
maior exactidão. A inferioridade dos trabalhos censitários a que se procedeu em
1872, é devida principalmente ao pouco zelo dos agentes recenseadores 107.

Esta crítica por parte do presidente da província é interessante, pois insere-se nesta
tática de desmerecimento e silenciamento do trabalho e da experiência escrava na província.
Devemos, portanto, analisar os dados contidos nos relatórios oficiais com cautela,
compreendendo que apesar dos dados terem sua discrepância com a realidade, o significado,
e até mesmo os silenciamentos, são muito mais importantes para a compreensão do contexto
do período.
O primeiro censo geral realizado no Brasil foi concluído apenas em 1872, antes disto
desde o início do século XIX, ocorriam apenas censos parciais geralmente realizados pelos
chefes de polícia de cada província, que com o auxílio dos párocos – detentores dos registros
de batismo, casamento e óbitos das freguesias que cobriam toda a província –, conseguiam
realizar estes levantamentos populacionais, em que se discriminavam os habitantes por
distrito. Tratando- se de uma sociedade predominantemente cristã, em que os sacramentos
católicos eram sagrados e faziam parte da moral e dos bons costumes, todos os habitantes,
independente de classe e hierarquia social em sua maioria os realizava. Inicialmente os
censos reuniam apenas as informações sobre a quantidade e a condição social dos habitantes,
mas com o passar dos anos estas listas foram se tornando mais complexas contendo
informações como cor, sexo, estado civil, nacionalidade, naturalidade, que tinham o objetivo
de ajudar na orientação das políticas imperiais.
Desta forma, mostra-se necessário para a construção de uma história da escravidão
do Rio Grande do Norte o aprofundamento sobre a história da cidade de São José de Mipibu.
Como a maioria dos escravos, africanos, mestiços e crioulos, não sabiam ler e/ou escrever,

106
RELATÓRIO, 1873, p. 26-28.
107
RELATÓRIO, 1873, p. 28.
72

normalmente eles apareceram na História sendo citados nestes documentos oficiais. Visto
que a população da cidade e freguesia eram bastante diversas, residindo a maior parte na zona
rural, tendo como base econômica a agricultura canavieira, algumas inquietações surgem,
dentre elas: como os escravos, principal fonte de mão de obra utilizada nessas atividades
rurais, chegaram a este território?

2.3 Presença negra no território de Mipibu


Quanto à chegada dos negros no Rio Grande do Norte, tem-se notícia de que já em
9 de janeiro de 1600, a primeira sesmaria era concedida a João Rodrigues Colaço e este
começava os trabalhos de roçaria empregando escravos vindos da Guiné. Os documentos que
falam da construção do Forte dos Reis Magos registram a presença do negro nesse trabalho
de edificação. Significa dizer que, já em 1598, o negro escravo iniciava como força de
trabalho na construção da economia da Capitania108. Vê-se assim que a presença do negro foi
uma constante no processo produtivo, desde a colonização até fins do Império, constituindo
uma das alavancas para impulsionar as bases econômicas norte-riograndenses.
De acordo com Paulo Santos (1994)109, a partir do século XIX com a maior
necessidade de mão de obra negra escrava na Província, foram comprados em grande escala
negros “africanos” vindos do Maranhão. Eles eram desembarcados em Mossoró, Areia
Branca e Macau, cidades da província do Rio Grande do Norte. Segundo o autor, “a
quantidade de negros procedentes do Maranhão era superior a dos negros vindos de
Pernambuco. Para se ter uma ideia, em 1854, a exportação [de açúcar] chegava a ordem de
80.749 arrobas. Em 1859, subia para 350.000”110. O autor ainda acrescenta que com o fim
do tráfico transatlântico de escravos em 1850111 alguns cativos eram comprados ilegalmente
de outras províncias e chegavam até as fazendas de São José de Mipibu a pé por terra,
geralmente à noite, ou em pequenos navios por meio da navegação de cabotagem. O número
de escravos crescia à medida que crescia a produção e a exportação. De qualquer forma, estes

108
SANTOS, Paulo Pereira dos. A economia na Província (1822-1889). In:_______. Evolução econômica do
Rio Grande do Norte: séculos XVI ao XX. Natal: Clima, 1994. p. 81.
109
Ibid.
110
Ibid, p. 82.
111
A lei 581 de 4 de setembro de 1850 extingue o tráfico africano de escravos fomentando o tráfico interno de
escravos no Império, principalmente da região norte para a região sul. Devido as graves secas de 1877, 1878 e
1879; do decréscimo do cultivo da cana-de-açúcar nas regiões litorâneas e o aumento das plantações de café no
eixo Rio- São Paulo-Minas, muitos escravos do norte foram vendidos para as lavouras cafeeiras destas regiões.
73

homens e mulheres chegavam neste território contra suas vontades, retirados de seus espaços
de origem, sendo desterritorializados112.
Com a elevação da Missão do Mipibu à Vila de São José do Rio Grande, tem-se a
incorporação de famílias brancas ao espaço anteriormente apenas de missão indígena.
Questionemo-nos, pois, como os escravos chegaram a este território? Fátima Lopes (2011)113
fornece indícios sobre essa questão. Em capítulo intitulado As mazelas do Diretório dos
Índios: exploração e violência no início do século XIX a autora nos apresenta o caso de Luiza
da Rocha de Carvalho, viúva do ex-diretor dos índios da Vila de São José, o capitão-mor
João de Oliveira Freire. De acordo com a mesma, “é conveniente lembrar que tais diretores
receberam parte do gado das antigas missões no momento da criação das vilas, e que alguns
ganharam porções de terra no termo das vilas administradas”114. Em pedição feita por Luiza
Carvalho ao então governador de Pernambuco em 1774, entendemos que esse é o caso do
seu marido, na época falecido, o ex-diretor Oliveira Freire da Vila de São José do Rio Grande
que no período em que exerceu o cargo administrativo montou um engenho nas terras que
recebeu, construindo casa de morada e senzala, demonstrando, assim, investimento em
benfeitorias na terra e na compra de escravos115. A partir da análise de documentos oficiais
produzidos no Oitocentos, como o que foi deixado pela viúva, podemos compreender que o
negro foi sendo incorporado ao território da Vila de São José do Rio Grande a partir de uma
demanda econômica por mão de obra nos engenhos e lavouras. Não obstante, a tabela 4,
elaborada a partir de nossas pesquisas, também mostra a presença de pessoas negras na
freguesia de Sant’Ana ao longo do século XIX.
Estes homens e mulheres, entretanto, não faziam parte a priori deste território, foram
desterritorializados, retirados de seus espaços originais, trazidos forçosamente da África e
vendidos como escravos no Brasil. A análise dos registros eclesiásticos nos possibilita
justamente compreender o perfil das famílias escravas constituídas neste território e as
estratégias de reterritorializar o espaço que foram obrigados a ocupar. A nossa principal

112
SANTOS, Paulo Pereira dos. A economia na Província (1822-1889). 1994.
113
LOPES, Fátima Martins. As mazelas do Diretório dos índios: exploração e violência no início do século
XIX. In: OLIVEIRA, João Pacheco de (org.). A presença indígena no Nordeste: processos de territorialização,
modos de reconhecimento e regimes de memória. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011, p. 241-265.
114
Ibid, p. 254.
115
Petição de Luiza da Rocha de Carvalho, viúva do capitão-mor João de Oliveira e Freire, ao governador de
Pernambuco, ant. a 25/6/1774. IHGRN, LCPCSJM, fls. 113v-115 apud LOPES, Fátima Martins. As mazelas
do Diretório dos índios: exploração e violência no início do século XIX. 2011, p. 254.
74

hipótese pauta-se no poder de escolha dos padrinhos que a Constituição Primeira do


Arcebispado da Bahia assegurava aos pais das crianças escravas que estavam para ser
batizadas. A autonomia de escolha sob os padrinhos (padrinho e/ou madrinha) de seus filhos
fazia com que eles conseguissem construir redes de solidariedade com atores de diferentes
status, os quais poderiam lhes oferecer futuramente algum tipo de apoio e/ou auxílio em
conflitos político-sociais ou jurisdicionais e até mesmo na luta pela liberdade do cativeiro.
Quanto a isso a Constituição Primeira é clara ao afirmar que o “parentesco
conforme a disposição do Sagrado Concilio Tridentino, se contrahe sómente entre os
padrinhos, e o baptizado, e seu pai, e mãe; e entre o que baptiza, e o baptizado, e seu pai e
mãe”116. Ou seja, ocorria a aliança entre duas famílias, com o compromisso de proteção e
respeito entre pessoas do mesmo status ou de diferentes condições jurídicas, gerando o que
a historiadora Solange Rocha (2009) chama de parentesco espiritual.
Inclusive esta mesma Constituição dedica um capítulo exclusivamente para o
sacramento do matrimônio dos escravos. No título 71 é assegurado aos cativos o casamento
com outras pessoas cativas ou livres,

e seus senhores lhe não podem impedir o Matrimonio, nem o uso dele em tempo,
e lugar conveniente, nem por esse respeito os podem tratar peior, nem vender para
outros lugares remotos, para onde o outro por ser captivo, ou por ter outro justo
impedimento o não possa seguir, e fazendo o contrario peccão mortalmente, e
tomão sobre suas consciências as culpas de seus escravos, que por este temor se
deixão muitas vezes estar, e permanecer em estado de condemnação. Pelo que lhe
mandamos, e encarregamos muito, que não ponhão impedimentos a seus escravos
para se casarem, nem com ameaços [sic], e máo tratamento lhes encontrem o uso
do Matrimonio em tempo, e lugar conveniente, nem depois de casados os vendão
para partes remotas de fora, para onde suas mulheres por serem escravas, ou terem
outro impedimento legitimo, os não possão seguir. E declaramos, que posto que
casem, ficão escravos como de antes erão, e obrigados a todo o serviço de seu
senhor117.

A Igreja, portanto, procurou assegurar a união das famílias escravas, fossem os nubentes da
mesma unidade produtiva ou não, impedindo a venda de qualquer um dos membros como
estratégia de abuso dos senhores. Por motivos como esse que tais atos religiosos poderiam
ser utilizados como formas de estratégia dos escravos para manterem-se unidos dentro de um

116
VIDE, D. Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. 1853 [1720], p. 26-
27.
117
Ibid, p. 125.
75

sistema que os tratava como objetos. A formação de famílias interessava aos escravos como
parte de uma estratégia de sobrevivência dentro do cativeiro, sendo reforçada pelas leis
eclesiásticas. A partir disso também, os escravos passaram a resignificar os atos católicos
para conseguirem manter suas famílias e construir e/ou fortalecer suas redes de parentesco.
Procuramos compreender, portanto, o território da freguesia de Sant'Ana como um
espaço transformado historicamente pelas ações dos homens, individual e coletivamente. De
acordo com Claude Raffestin (2009)118 o território é produzido por atores sociais através da
efetivação dos mesmos no espaço, da formação de redes de comunicação e circulação, das
relações de poder, das atividades produtivas e das representações simbólicas. Foi exatamente
isso que os índios, missionários, brancos e negros fizeram no que era antes apenas o espaço
da Vila de São José do Rio Grande e da freguesia de Sant’Ana: ressignificaram o espaço
transformando-o em território a partir das ações empreendidas nesse lugar e nas relações de
poder. O espaço foi transformado através das ações individuais e coletivas dos diferentes
atores sociais presentes neste espaço, as interações sociais, econômicas e políticas entre o
grupo social e com grupos sociais distintos, foram capazes de construir redes e fluxos sociais
produzindo o território.
O que antes era apenas um espaço vazio ganhou significado, sentido e delimitações
pela sociedade, administração governamental e Igreja Católica, sendo então instituída a
Freguesia de Sant’Ana. Como complementa Haesbaert (2003)119 o território envolve
simultaneamente uma dimensão simbólica e cultural, atribuída pelos grupos sociais, como
forma de controle simbólico sobre o espaço onde vivem e uma dimensão mais concreta de
caráter político-disciplinador: há uma apropriação e ordenação do espaço como forma de
domínio e disciplinarização dos indivíduos.
Apesar de um dos principais objetivos da Igreja Católica desde o século XVIII ser
o de controlar os indivíduos da sociedade através dos sacramentos católicos, compreendemos
que havia uma preocupação especial sob à conversão dos cativos. Entretanto estes homens e
mulheres escravas, agentes de suas próprias ações e desejos, atribuíram sob o território

118
RAFFESTIN, Claude. A produção das estruturas territoriais e sua representação. In: SAQUET, Marcos
Aurélio; SPOSITO, Eliseu Savério. Territórios e territorialidades: Teorias, processos e conflitos. São Paulo:
Expressão Popular, 2009. p.17-35.
119
HAESBAERT, Rogério. Da Desterritorialização à Multiterritorialidade. Anais do X Encontro de
Geógrafos da América Latina, São Paulo, Universidade de São Paulo, 20 a 26 de março de 2005.
76

sagrado outro significado. Houve, portanto, uma reterritorialização, a produção de um novo


território sobre outro pré-existente.
Para compreendermos como se deu a apropriação e produção deste novo território
pelos escravos, faz-se necessário esclarecermos os conceitos de territorialidade,
territorialização, desterritorialização e reterritorialização a partir dos geógrafos Marcos
Aurelio Saquet (2009)120 e Rogério Haesbaert (2003)121. Podemos considerar como
territorialidade todas as ações diárias que os cativos realizavam na tentativa de modificarem
e melhorarem suas condições de vida, aderindo ao território ou buscando saírem do mesmo,
buscando através de suas ações transformar a realidade onde estavam inseridos de maneira
tal que conseguiam melhorias na qualidade de vida122. Já o conceito de territorialização
refere-se ao processo de dominação e apropriação do espaço, para então, através do exercício
de relação de poder, ser construído o território, este a partir de instrumentos materiais,
culturais, econômicos, religiosos, em conjunto, ou por vezes, separados e dicotômicos123.
Tanto no processo de territorialização quanto no de desterritorialização ocorrem
perdas e reconstruções de identidades, havendo mudanças nas relações de poder, novas
relações sociais e elementos culturais, que de certa forma são reterritorializados. Os negros
africanos retirados forçosamente da África e escravos, perderam seu território, sua origem,
sua cultura, forma de organização político, social e econômica, foram desterritorializados.
Mas, a partir do momento que são inseridos neste novo território, sob nova organização
político-econômica completamente marginalizados da sociedade, estes homens e mulheres
escravos estabelecem novas relações sociais e constroem nova identidade. Ou seja, na medida
que os sujeitos cativos foram forçados a deixarem determinados territórios, como processos
de desterritorialização, não naturais, aconteceram novos processos de territorialização, pois
esses mesmos grupos passaram a ocupar novos recortes territoriais, ocorrendo assim um
processo de reterritorialização. Com isso, os escravos construíram novos elos com o local
onde foram inseridos, configurando novas territorialidades.

120
SAQUET, Marco Aurélio. Por uma abordagem territorial. In: SAQUET, Marcos Aurélio; SPOSITO, Eliseu
Savério. Territórios e territorialidades: Teorias, processos e conflitos. São Paulo: Expressão Popular, 2009.
p.69-90.
121
HAESBAERT, Rogério. Da Desterritorialização à Multiterritorialidade. Boletim Gaúcho de Geografia,
Porto Alegre, v. 29, n. 1, p. 11-24, jan./jun. 2003.
122
SAQUET, Marco Aurélio. Por uma abordagem territorial. 2009.
123
HAESBAERT, Rogério. Da Desterritorialização à Multiterritorialidade. 2003; SAQUET, Marco Aurélio.
Por uma abordagem territorial. 2009.
77

A efetivação do território religioso, o qual estamos nos debruçando neste trabalho,


ocorria “em distintas escalas espaciais” (religiosas, sociais, políticas, econômicas) e variava
no tempo “através das relações de poder, das redes de circulação e comunicação”124,
territorializando o espaço. Esforçamo-nos para compreender como os escravos
resignificaram os sacramentos católicos, criando e/ou ampliando suas redes de
relacionamento, gerando um novo sentido e significado ao território da Freguesia de
Sant’Ana, o qual não lhes era próprio, o reterritorializando. Esta era uma tentativa de
sobreviver em um local que não era deles, onde eram explorados, e assim, batalhar por
melhores condições de vida, inclusive a liberdade, deles mesmos ou de seus familiares.
Ao escolherem pessoas da freguesia de Sant’Ana ou das proximidades como
padrinhos de seus filhos e de seus casamentos, os escravos estavam demarcando este
território, demarcando um espaço de poder. É interessante destacar que não estamos tratando
apenas de uma territorialidade, mas sim de territorialidades superpostas, pois “a vida humana
é um eterno devir de territórios de longa e curta duração, que se superpõem e se entretecem
ao sabor das relações sociais, das práticas e representações”125.
É fundamental também compreendermos que os cativos são sujeitos de suas próprias
ações, as traçando de maneira a conquistar, por vezes, não somente a liberdade física, mas
também a autonomia dentro do sistema escravista. Sidney Chalhoub trata sobre esta questão
em seu livro Visões da liberdade. Apesar de estar analisando processos criminais das últimas
décadas da escravidão no Rio de Janeiro – capital da Corte no período, um dos espaços com
a maior quantidade de escravos do Império – em que os escravos apareciam como réus dos
processos por cometerem atos contra seus senhores e tutores, o historiador trata dos eventos
corriqueiros que são transformados por estes personagens sociais. Chalhoub (1990)126 nos
mostra que os cativos agiam “de acordo com lógicas ou racionalidades próprias, e seus
movimentos estiveram sempre firmemente vinculados a experiências e tradições históricas
particulares e originais”127. Isto ocorria mesmo quando escolhiam buscar a liberdade dentro

124
SAQUET, Marco Aurélio. Por uma abordagem territorial. 2009, p. 83.
125
BARROS, José D’Assunção. Espaço, território, região – pressupostos metodológicos. Texto apresentado
no Colóquio Baiano Tempos, espaços e representações: abordagens geográficas e históricas (2013).
Disponível em:
<http://periodicos.uesb.br/index.php/coloquiobaiano/article/view/2923>, p. 15.
126
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma historia das últimas décadas da escravidão na Corte. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990.
127
Ibid, p. 252.
78

do campo de possibilidades existentes na instituição da escravidão, e lutavam para alargar,


quiçá transformar, este campo de possibilidades.
O trabalho de João José Reis (1993)128 nos apresenta outra possibilidade de
alargamento do sistema escravista. Apesar de também estar tratando de um espaço urbano,
como Chalhoub, a greve negra na Bahia em 1857 nos apresenta o território simbólico como
espaço de disputa e de pertencimento para os escravos. Como uma forma de organização
coletiva, os ganhadores (escravos e libertos) entoavam cânticos ao trabalhar, os quais falavam
sobre o cotidiano das relações escravistas. Isto se apresenta como uma brecha do trabalho
pesado, uma autonomia e ressignificação dos atos de exploração. Espaço simbólico
semelhante aquele construído pelos escravos nas cerimônias de batismo e casamento, em que
havia a ressignificação dos atos católicos, formas de controle da Igreja e do Estado sob os
cativos.
Seja na ressignificação e territorialização dos escravos na freguesia de Sant’Ana, na
luta pela liberdade no Rio de Janeiro ou na greve negra na Bahia, observamos que os escravos
e escravas do Império no século XIX executaram diferentes atos simbólicos, ou até mesmo
físicos, na tentativa de melhorar suas condições cotidianas de vida ou de buscarem a
liberdade. Compreender o perfil das famílias cativas e as prioridades nas escolhas dos
padrinhos espirituais poderá nos oferecer indícios sobre as articulações cotidianas destes
personagens para sobreviver.
Observamos, portanto, neste estudo, uma coexistência de territórios na cidade de
São José de Mipibu (como um espaço político e econômico) e na freguesia de Sant’Ana
(como um espaço religioso e social). As territorialidades dos índios Potiguara e Pega, dos
homens brancos e dos negros escravos efetivaram-se neste espaço “em distintas escalas
espaciais” variando “no tempo através das relações de poder, das redes de circulação e
comunicação, da dominação, das identidades, entre outras relações sociais realizadas entre
sujeitos e estes com seu lugar de vida”129. Foram múltiplos territórios, desconstruídos e
reconstruídos neste espaço, estabelecendo redes e identidades.
Compreendendo que estamos estudando uma sociedade baseada no catolicismo, em
que as provisões de fé davam um sentido, uma existência para o espaço social e a construção

128
REIS, João José. A greve negra de 1857 na Bahia. Revista USP, n. 18, p. 6-29, 1993.
129
SAQUET, Marco Aurélio. Por uma abordagem territorial. 2009, p. 83.
79

de relações, a escolha dos padrinhos pelos escravos nas cerimônias de batismo e casamento
assemelha-se aquilo que Schwartz (2001)130 chama a atenção quando trata da brecha
camponesa em seu livro. Apesar de Schwartz trabalhar com o espaço da Bahia colonial, tanto
esse local quanto a freguesia de Sant’Ana no século XIX tinham como atividade econômica
principal a produção canavieira. Ambos os espaços, portanto, utilizavam largamente da mão
de obra escrava em suas indústrias. A autonomia proporcionada aos escravos na brecha
camponesa ou na escolha dos parentes espirituais, “representava sua vitória contra um regime
brutal de trabalhos forçados e uma possível ruptura do sistema escravista”131, resignificando
as ações dos senhores e da Igreja. Estudar as cerimônias católicas como atos de resistência
da família escrava apresentam-se como mais uma possibilidade de observarmos as ações dos
escravos neste espaço como protagonistas de suas vidas, e não apenas como objetos. É
analisar as fontes atentas aos detalhes aparentemente marginais e irrelevantes, os quais
poderão ser a chave de acesso para as redes de significados sociais mais profundos desta
sociedade escravista. Interpretar as ações dos cativos como atos de resistência, lutando
cotidianamente, de diferentes formas, por autonomia, mobilidade, poder de escolha e
liberdade.
Mesmo vivendo nesse sistema excludente e diante das circunstâncias nas quais
sobreviviam, os escravos da freguesia de Sant’Ana procuraram agenciar sua história por meio
de negociações, concessões e da construção de famílias negras, fossem elas monoparentais,
nucleares ou extensas, formadas por meio das relações de compadrio, que, na maioria das
vezes, ocorriam no espaço religioso. Tais temas serão abordados no capítulo a seguir.

130
SCHWARTZ, Stuart B. Trabalho e cultura: vida nos engenhos e vida dos escravos. 2001.
131
Ibid, p. 99.
80

3 DEMOGRAFIA ESCRAVA EM SÃO JOSÉ DE MIPIBU: CONSTRUÇÃO DO


PERFIL DAS FAMÍLIAS ESCRAVAS A PARTIR DA ANÁLISE DOS REGISTROS
DE BATISMO

Neste capítulo nos basearemos na dimensão da Demografia Histórica, utilizando as


metodologias da História Serial e Quantitativa para analisar os registros de batismo da
freguesia de Sant’Ana de São José de Mipibu realizados na Matriz e capelas deste território
entre os anos de 1841 e 1862. Esta é uma disciplina que se caracteriza pelo desenvolvimento
de técnicas de análise para descrever quantitativamente como as populações se transformam
ao longo do tempo. Para isso, os registros paroquiais (nascimentos, casamentos e óbitos) vêm
se mostrando fundamentais para observar o ciclo vital dos seres humanos. Neste trabalho,
devido ao estado de conservação das fontes, o alto número de dados contidos nos mesmos e
o tempo limitado de análise, debruçar-nos-emos apenas nos 4 primeiros livros de batismo da
referida freguesia, a qual consegue nos oferecer um panorama de 21 anos sobre a existência
de famílias escravas no território, o perfil das mesmas e suas respectivas escolhas sobre os
padrinhos espirituais de seus filhos, também escravos.

3.1 As (re)configurações da família escrava na historiografia brasileira


Estudos sobre famílias cativas já se tornaram algo consolidado na historiografia
brasileira. Principalmente, porque se conferiu lugar de agentes da história e não de simples
mercadorias inanimadas aos escravizados, buscando compreender suas lógicas e autonomias,
mesmo que relativas, nas ações cotidianas. As pesquisas mais recentes têm se realizado a
partir da premissa, de que mulheres e homens escravos e não-escravos são considerados
agentes históricos, marcando assim, o deslocamento de foco da concepção de uma escravidão
na qual o indivíduo escravo era totalmente passivo em relação à dominação do sistema
senhorial e na ideia da ênfase excessiva na violência do sistema, que transformava o escravo
81

em objeto. Houve a superação das imagens de “escravo-passivo”132 e “escravo-rebelde”133


forjadas nas historiografias da década de 1930 e nas de 1960-70, respectivamente134. Tais
conceitos foram elaborados por duas tendências historiográficas que, em seus tempos, foram
exaustivamente discutidas e tiveram importâncias ímpares para as pesquisas nestes períodos.
Entretanto, numerosas investigações empíricas, realizadas com variadas fontes e a utilização
de novas metodologias de análise, buscaram superar as duas visões acerca dos cativos,
analisando suas ações a partir da lógica, dos espaços e períodos em que eles viveram135.
Antes de expor a experiência da gente negra na Freguesia de Sant’Ana neste
capítulo, realizo uma sistematização da discussão conhecida sobretudo por estudiosos da
escravidão, visando à organização de alguns aspectos do debate, imprescindíveis ao
desenvolvimento desta pesquisa e para situá-lo no campo historiográfico. Sendo os estudos
sobre a escravidão amplos, optei por considerar parte da produção do século XX com o
objetivo de observar as contribuições do primeiro intelectual a tratar sobre o tema, Gilberto
Freyre, as correntes historiográficas das décadas seguintes – como a Escola Sociológica
Paulista –, a recente história social da escravidão no Brasil e no Rio Grande do Norte.
Os primeiros estudos sobre as relações entre escravos no Brasil defendiam a ideia
de que a devassidão predominava nas senzalas. A formação de famílias entre os escravos não

132
A teoria do escravo-passivo ou escravo-coisa tornou-se tão forte quanto o mito da democracia racial e da
amenidade nas relações escravistas. Nessa perspectiva, o escravo era visto apenas como um objeto, ser
inanimado, uma coisa, que reagia “passivamente aos significados sociais impostos pelos senhores” (MORELLI,
2002, p. 15), mero receptor dos valores e normas senhoriais. A teoria do escravo-passivo ou escravo-coisa foi
explicitado, também, por Fernando Henrique Cardoso: “(...) o reconhecimento social da condição de pessoa
humana era negado aos escravos, objetiva e subjetivamente, pelos homens livres. Além disso, graças aos
mecanismos socializadores da ordem escravocrata, às condições materiais de vida do escravo e às formas pelas
quais os escravos se inseriam no processo de produção, as representações mantidas pelos senhores sobre a
inferioridade objetiva dos escravos e sobre a impossibilidade natural de o escravo reagir à sua condição, eram
aceitos, em condições normais de funcionamento do sistema, pelos próprios escravos” (CARDOSO, 1977, p.
152). Caio Prado Júnior, historiador integrante da Escola Sociológica Paulista, também persistiu em defender
esta ideia, pois para ele o escravo foi vítima do cativeiro que roubou-lhe toda a positividade, situação que afetou
toda a sociedade brasileira (PRADO JÚNIOR, 1986).
133
Aquele escravo que reage a sua condição de coisa através da revolta e do desespero. Jacob Gorender apontou
que “o primeiro ato humano do escravo é o crime, desde o atentado contra seu senhor à fuga do cativeiro”
(GORENDER, 1978, p. 65). Fernando Henrique Cardoso colocou que ao escravo restava “apenas a negação
subjetiva da condição de coisa, que se exprimia através de gestos de desespero e revolta e pela ânsia indefinida
e genérica de liberdade” (CARDOSO, 1977, p. 152). A coerção e a repressão, como formas de controle social,
geravam um círculo vicioso em que a violência gerava a rebeldia do escravo, punida com mais violência. As
punições, por sua vez, conduziam a maior rebeldia.
134
GOMES, Flávio dos S. Experiências atlânticas. Ensaios e pesquisas sobre a escravidão e a pós-
emancipação no Brasil. Passo Fundo: Ed. UPF, 2003. p. 20.
135
SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor. 2011.; GOMES, Flávio dos S. Experiências atlânticas. 2003.
82

tinha lugar e a promiscuidade era generalizada. Tais interpretações foram baseadas em ideias
como a inferioridade racial do negro e a impossibilidade de organização familiar dos
escravos, devido à falta de incentivo dos senhores ou entre os próprios cativos. O alto índice
de masculinidade nas senzalas, devido a preferência dos senhores por homens para os
trabalhos nas lavouras, e o tráfico interno a partir de 1850 gerou um desequilíbrio de gênero
neste espaço que justificaria a inviabilidade da estabilidade familiar entre os escravos. A
maioria destes estudos atribuiu à escravidão a responsabilidade pela destruição da família
escrava que impôs ao cativo a condição de “anomia social”.
Embora reconheçamos as inovações metodológicas e interpretativas de Gilberto
Freyre no conhecimento das ciências humanas, lançando mão de fontes como documentos
oficiais, testamentos, relatos de viajantes, cantigas e relatos orais para compor sua pesquisa,
o tema da família escrava em seus estudos é praticamente invisível, pois na sua perspectiva
o sistema havia desenraizado o “negro do seu meio social e de família, soltando-o entre gente
estranha e muitas vezes hostil”136. Além disso, considerava os escravos parte da família
patriarcal, entendida como uma relação de poder, na qual o senhor detinha toda a autoridade
e domínio. Nesse tipo de família, os integrantes (esposa, filhos e netos, além dos agregados
e escravos, dividiam o mesmo espaço físico) estavam todos sob a proteção do pai-senhor. As
mulheres e os homens escravos não tinham nenhuma autonomia; eram considerados uma
extensão dos segmentos “superiores”.
Na década de 1950, Florestan Fernandes e Roger Bastide foram incumbidos pela
UNESCO para coordenar um estudo que pretendia compreender como havia se dado a
“integração racial” postulada por Freyre na tentativa de superar a realidade caótica em que
se encontravam as relações raciais no contexto pós-guerra – período de efervescência política
e emergência da Guerra Fria. O grupo era ainda formado por Emilia Viotti da Costa, Octávio
Ianni e Fernando Henrique Cardoso. Os historiadores do grupo procuravam identificar e
analisar o caráter violento da instituição escravista, enquanto os sociólogos investigavam
vestígio acerca da manutenção da intolerância racial e da discriminação no Brasil. Oriundos
da escola sociológica da USP procuraram, sobretudo, demonstrar a face cruel da escravidão
e incorporar o conflito social na análise das relações escravistas. As conclusões a que

136
FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime de economia
patriarcal. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002. p. 315.
83

chegaram os intelectuais da USP não convergiram com a proposta inicial, de tal modo que
se constituíram como os principais críticos à teoria freyreana137.
Para estes intelectuais da Escola Sociológica Paulista, o desequilíbrio entre sexos e
o próprio sistema foram responsáveis pela “ação destruidora do lar” escravo. Alguns autores
chegaram a afirmar que a própria instituição escravista contribuiu para a formação e
manutenção da devassidão entre os escravos. Afirmavam que as relações eram efêmeras, sem
nenhuma estabilidade e com a predominância da promiscuidade entre as poucas mulheres e
os muitos homens que residiam nas propriedades rurais.
Entretanto, as novas pesquisas desenvolvidas a partir da década de 1980 utilizando
fontes paroquiais e cartoriais vieram para desconstruir esta visão preconceituosa sobre a
promiscuidade escrava, permitindo avanços nos estudos sobre o parentesco dos escravizados.
Através da tabulação e análise destes documentos pôde-se recuperar as informações sobre a
capacidade das pessoas escravas explorarem as mínimas possibilidades de realizar mudanças
em suas vidas ou de seus descendentes, agindo nos interstícios da sociedade, estabelecendo
casamentos formais, consensuais e parentescos espirituais, ampliando suas relações sociais.
Assim, nesse novo contexto da historiografia da escravidão brasileira, inaugurado
na década de 1980, as vivências e lutas de mulheres e homens escravizados ganharam
centralidade, sua historicidade e suas experiências foram recuperadas. Temas diversos foram
abordados e novas dimensões e metodologias de pesquisa utilizadas nas investigações, entre
elas a Demografia Histórica e a Micro-história, respectivamente. No que concerne ao tema
da vida em família, os vínculos são ampliados para além da família conjugal, sacramentada
pela Igreja, valorizando as relações consensuais e o parentesco espiritual. Esta última relação
envolve, no mínimo, o estabelecimento de alianças entre duas famílias com o compromisso
de proteção e respeito entre pessoas de mesmo status ou de diferentes condições jurídico-
sociais, e ganham espaço também o grupo familiar composto pela criança e um membro (mãe
ou pai), as denominadas famílias monoparentais. Enfatizam-se também os casamentos que
vão além dos sacramentados pelo catolicismo, pois as relações consensuais e o parentesco
espiritual (compadrio) passaram a ser valorizados. Além disso, são considerados os impactos

137
Sobre a produção do grupo, ver: FERNANDES, Florestan e BASTIDE, Roger. Brancos e Negros em São
Paulo. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959; FERNANDES, Florestan. A integração do negro à
sociedade de classes. Rio de Janeiro: M.E.C., 1964; CARDOSO, 1977; IANNI, Octávio. Escravidão e
racismo. São Paulo: HUCITEC, 1978; COSTA, 1982.
84

e as limitações impostas pelo sistema – o tráfico externo e interno, as pressões senhoriais, as


diversidades étnicas – e a capacidade de mulheres e homens escravizados reelaborarem os
laços familiares no contexto do cativeiro.
O foco de análise das relações entre senhores e escravos na recente historiografia
social da escravidão passou a ser caracterizado tanto por valorizar as relações conflituosas de
resistência direta contra o sistema quanto às formas de oposição à escravidão que passavam
pela negociação cotidiana, contribuindo para a formação de uma relativa autonomia dos
cativos nas relações de trabalho e na vida pessoal. Entretanto, como destaca Rocha (2009),
esta nova maneira de pesquisar o tema da escravidão não é um consenso na comunidade
acadêmica. Alguns estudiosos ainda negam as novas imagens de mulheres e homens
escravizados, nas quais se destacam seus vínculos parentais e/ou acreditam que tal paradigma
interpretativo “reabilita a visão patriarcal de Gilberto Freyre”138.
A proposição que entende a escravidão como um sistema no qual, em sua estrutura,
prevalece um “acordo” entre desiguais, gerou intensos debates entre os estudiosos.
Atualmente a perspectiva do total controle dos senhores sobre os escravizados vem sendo
relativizada. Tem-se uma compreensão de que tal relação era conflituosa, marcada por
tensões, embates, acomodações, em que cada parte buscou convencer a outra nas relações
cotidianas de poder, mesmo havendo um claro desequilíbrio. Estudiosos como Reis e Silva
(1989)139, Lara (1988)140, Slenes (2011)141, Chalhoub (1990)142 e Gomes (1995)143 não
negam a luta de classes e a violência do sistema, indo além, com pesquisas empíricas, e
tentando apreender as práticas e especificidades do “ser escravo no Brasil”.

138
MAESTRI, Mário. O escravo gaúcho: resistência e trabalho. São Paulo: Brasiliense, 1894.; MAESTRI,
Mário. Apresentação de Brasil, Maria do Carmo. In:_______. Fronteira Negra: dominação, violência e
resistência negra em Mato Grosso, 1718-1888. Passo Fundo: Ed. UPF, 2002.; QUEIRÓZ, Suely R. R.
Escravidão negra em debate. In: FREITAS, Marcos C. (Org.) Historiografia brasileira em perspectiva. 4 ed.
São Paulo: Contexto, 2001, p. 103-117.
139
REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista, Rio de
Janeiro, Companhia das Letras, 1989.
140
LARA, Silvia Hunold. Campos da violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro, 1750-
1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
141
SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor – Esperanças e recordações na formação da família escrava:
Brasil, sudeste, século XIX. 2ª ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2011.
142
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990.
143
GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de
Janeiro - século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.
85

Entre o final da década de 1970 e o início da seguinte, a visão freyreana e da “escola


paulista” passaram a ser revisadas por historiadores. Segundo Lara (1988), foram Slenes e
Mello144, em 1980, que propuseram a superação das interpretações antagônicas e definiram
o paternalismo como uma forma especial de clientelismo, ou seja, uma relação do tipo patrão-
cliente que, apesar de envolver relacionamento entre pessoas com poder desigual, se baseava
em mútuo entendimento de obrigações recíprocas; e além de ser uma ideologia da classe
dominante, possibilitava a mediação das relações sociais no sistema escravista, não excluindo
os conflitos e contradições dos vínculos entre senhor e escravo. Duas décadas depois, Robert
Slenes ao comentar as relações escravistas declarou novamente que na “política de domínio
senhorial” não se descartava o embate entre as partes envolvidas e usava o termo negociar
“como [um] processo conflituoso em que ambas as partes procuram ‘persuadir’ o outro”, não
desconsiderando o enfrentamento145. Tudo dependia da situação das mulheres e homens
escravos na luta contra a opressão do sistema.
Observamos, portanto, que ao longo do tempo houveram mudanças nas
interpretações e que novas imagens sobre os escravizados foram construídas, admitindo-se
os vínculos parentais como estratégias de sobrevivência e de resistência. Os novos estudos
iniciados por Robert Slenes (2011) na década de 1970 que tinham por objetivo demonstrar a
ação dos escravos, os quais constituíam um sistema construído por agentes sociais múltiplos,
foi precursor nesta nova maneira de observar o ser escravo. Com um olhar crítico não apenas
sobre as fontes do século XIX – relatos de estrangeiros sobre as famílias escravas –, mas
também o investimento crítico na análise de fontes demográficas – censos, registros
paroquiais e inventários – o autor apresentou dados para desconstruir os argumentos de
autores como Caio Prado Júnior (1942)146 e Florestan Fernandes (1965)147 os quais
acreditavam que a promiscuidade nas senzalas e a destruição da família impôs aos escravos
“condições anômicas de existência”, perdurando muito além da Abolição.

144
MELLO, Pedro Carvalho de; SLENES, Robert W. Análise econômica da escravidão no Brasil. In:
NEUHAUS, Paulo (Coord.). Economia brasileira: uma visão histórica. Rio de Janeiro: Editora Campus,
1980, p.89-122.
145
SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor. 2011, p. 17.
146
PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. 18ª ed. São Paulo: Brasiliense,
1983 [1942].
147
FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. 2 vols. São Paulo: Dominus,
Edusp, 1965.
86

Em seu livro, Na senzala uma flor, o autor considerou as famílias escravas como
elemento decisivo para a criação de uma comunidade cativa que compartilhavam
experiências, valores e memórias. As famílias eram resultado das ligações criadas a partir
das esperanças e recordações dos escravos, cruciais para a formação de identidade no
cativeiro. Para o historiador norte-americano a ancestralidade africana era um elo emocional
e cultural que ia muito além das estratégias de domínio escravistas e enfraquecimento das
resistências dos escravos em relação aos senhores.
Enquanto isso, Manolo Florentino e José Roberto Góes (2017)148, em A paz das
senzalas, por meio da análise das novas fontes utilizadas pelos historiadores observaram que
os cativos eram capazes de criar e viver sobre normas e que o cativeiro não havia abortado a
família escrava. Significando que “para além das presumíveis ordenações de classe, jurídicas,
de sexo ou de cor, todos se sabiam coletivamente cientes da importância das relações de
parentesco”149. Apesar de comprovarem a existência das famílias escravas através da análise
de inventários post morten e registros paroquiais, os autores acreditavam que os laços
parentais criavam uma sólida base para o relacionamento pacífico entre senhores e escravos
nas senzalas. A pacificação e a organização parental eram importantes também para o
sistema. Sem se constituir em instrumento direto de controle senhorial, a família escrava, de
acordo com a análise de Florentino e Góes, funcionava como elemento de estabilização
social, ao permitir ao senhor auferir uma renda política. Por fim, defendem o argumento
central de que não apenas o tráfico, mas também as famílias, eram responsáveis pela
manutenção do sistema escravista.
Entretanto, é importante deixar claro que tanto Slenes (2011), quanto Florentino e
Góes (2017) utilizam em seus trabalhos uma abordagem política da escravidão, investindo
na centralidade dos processos de “luta de classes” na constituição do sistema escravista,
vendo os escravos como agentes históricos que frustraram a tentativa dos senhores de impor
um cativeiro “perfeito”. Estes autores em seus livros, apesar de utilizarem abordagens
diferentes, tentam recuperar as estratégias cotidianas dos escravos para lidar com a opressão,
inclusive sua disposição de “negociar” com os senhores.

148
FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico,
Rio de Janeiro, c.1790-1850. São Paulo: Editora Unesp, 2017.
149
Ibid, p. 20-21.
87

Embora a família escrava significasse a estabilidade do plantel, ou funcionasse


como uma espécie de instrumento pacificador da senzala, como estabelece Florentino e Goés
(2017), sua existência, por si só, não pressupunha o término de todas as tensões e possíveis
discordâncias adensadas no âmbito do cativeiro. A própria estabilidade das famílias escravas
segundo Slenes (2011) e Schwartz (1998) dependia em grande medida de fatores exteriores
à senzala. As negociações com os senhores, as vicissitudes econômicas e a partilha de
herança são apontados por esses autores como expressivos obstáculos à estabilidade familiar
dos escravos.
Entretanto, as pesquisas que renovaram os estudos sobre a escravidão têm
focalizado regiões de plantation do Sudeste, áreas que perdiam relativamente poucos
escravos por venda. Slenes (2011) aponta a necessidade de se ampliarem os estudos sobre os
atuais Nordeste e Sul, espaços com propriedades escravistas menos estáveis. O estudo dessas
regiões se faz importante para compreendermos as estratégias de controle senhorial e as
táticas dos escravos para criarem comunidades unidas em torno de experiências, valores e
memórias, em situações distintas, e possivelmente menos favoráveis. As conclusões desses
estudos sobre as chamadas províncias do Sul não podem ser estendidas para o Rio Grande
do Norte, por exemplo, pois as novas abordagens sobre a família escrava no Brasil têm
destacado como o processo de produção e a apropriação do espaço influi de forma decisiva
na constituição da família escrava. Este trabalho pretende justamente preencher a lacuna nos
estudos articulando a constituição das propriedades dedicadas à lavoura açucareira, a
organização das atividades econômicas e padrões de posse da mão de obra escrava com as
experiências das famílias cativas.
Os primeiros estudos sobre a escravidão no Rio Grande do Norte também
apresentavam um quadro de negação e desconfiança acerca da existência da família escrava.
Para os autores da historiografia clássica norte riograndense esta não era uma questão e
apenas recentemente houve o investimento de um estudo dedicado solidamente à temática
produzido por Danielle Neves (2020) intitulado Cristianização espacial e estratégias
matrimoniais de escravos na Capitania do Rio Grande do Norte: território, escravidão e
mestiçagens na freguesia de Nossa Senhora da Apresentação (1727-1760), o qual abriu
portas para o estudo da família escrava e mestiça no Rio Grande do Norte e ampliação da
88

discussão dentro do mesmo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade


Federal do Rio Grande do Norte.
A dissertação de mestrado defendida por Michele Lopes no ano de 2011, intitulada
Escravidão na Vila do Príncipe: província do Rio Grande do Norte (1850-1888), já dava
indícios da existência de famílias escravas na região do Seridó. Debruçando-se sobre fontes
cartoriais, paroquiais e Relatórios dos Presidentes de Província, o objetivo principal da autora
foi de compreender como se dava a reprodução do escravismo em uma região de colonização
pecuarística, principalmente após a proibição do tráfico transatlântico de escravos. Lopes
reserva o seu terceiro capítulo justamente para estudar a instituição da família escrava no
sertão do Seridó. A partir de então, a historiadora aponta para a existência de famílias
escravas negras na região, mesmo com uma média baixa de apenas dois escravos por
propriedade. Observa também um expressivo processo de crioulização dos plantéis desta
região, com altos índices de ilegitimidade de crianças escravas, em torno dos 61% para o
período de 1856 a 1888150. Quanto a preferência de condição no parentesco espiritual, os pais
escravos das crianças negras escravas recém-nascidas demonstraram a tendência de
estabelecerem relações com pessoas livres ou libertas151.
Aldinízia Souza (2013), apesar de estudar o sistema escravista no termo da Vila de
Arez na dissertação Liberdades possíveis em espaços periféricos: escravidão e alforria no
termo da vila de Arez (séculos XVIII e XIX), a autora não se debruça sobre a instituição da
família escrava, mas identifica o perfil dos escravos e as possibilidades de alforria em uma
região periférica, compreendendo a utilização das famílias, por parte dos escravos, como uma
das múltiplas espacialidades para empreender a liberdade possível através da organização
dos núcleos familiares consanguíneos e espirituais para a compra das alforrias pagas. Para
tanto, a autora realizou seus estudos com base em inventários dos séculos XVIII e primeiras
décadas do século XIX; mapas de população e ofícios referentes ao início do século XIX; e
cartas de alforria registradas no tabelionato da vila de Arez entre 1774 e 1827.
No ano seguinte, Ariane Pereira (2014) estudou sobre as ações escravas na Comarca
do Príncipe, na província do Rio Grande do Norte, entre 1870 e 1888. Investigando como
ocorreram as negociações sobre as condições do cativeiro e liberdade nesta jurisdição por

150
LOPES, Michele Soares. Escravidão na vila do Príncipe. 2011, p. 122.
151
Ibid.
89

meio da análise, principalmente, de processos cíveis e criminais, a autora na dissertação


Escravos em ação na Comarca do Príncipe – Província do Rio Grande do Norte (1870-
1888), procura em certo momento problematizar como a lei de 1871 contribuiu para o
desmoronamento do sistema escravista do ponto de vista da família escrava. Pereira, após a
análise da sua documentação, chega a conclusão de que a família escrava neste espaço não
era apenas um meio pelo qual o senhor utilizava para dominar e controlar seus escravos, mas
também um ambiente que possibilitava a resistência, lugar onde seus membros poderiam
lutar para conseguir sua liberdade fosse por meio da justiça ou até mesmo pela ação criminal.
Portanto, no Príncipe, a família escrava significava a estabilidade, mas também a tensão e a
resistência152.
Observamos, então, que através da análise de diferentes fontes documentais
(registros paroquiais, cartoriais, criminais, legislativos) as pesquisadoras já vinham
apresentando indícios em seus trabalhos sobre a importância da família escrava em diferentes
espaços, desde o século XVIII, na província do Rio Grande do Norte. Em 2020, Danielle
Neves, propõe então, pela primeira vez no Programa de Pós-graduação da UFRN, um
trabalho inteiramente dedicado ao estudo da instituição familiar e do casamento escravo de
africanos e mestiços na capitania do Rio Grande. Analisando os registros de casamento e
batismo da freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, entre os anos de 1727 e 1760, a
qual compreendia a Igreja Matriz na cidade do Natal e suas 9 (nove) capelas e 3 (três)
aldeamentos indígenas que se estendiam pelas ribeiras dos rios Jundiaí, Ceará-Mirim,
Mipibú, Potengi e Cajupiranga, nas localidade que, atualmente, são municípios da região
metropolitana de Natal (Macaíba, Extremoz, São Gonçalo do Amarante, Parnamirim, São
José de Mipibu e Nísia Floresta), Neves identificou que os registros apresentavam um
número expressivo de casamentos de cativos de origens diferentes.
A Matriz de Nossa Senhora da Apresentação registrou o maior número de
casamentos e batismos de escravos, provavelmente por ser o único centro urbano da paróquia,
com uma alta concentração de moradores, se comparada com as demais localidades da
freguesia, espaço de poder e de convergência de pessoas deste território. As capelas da
Missão de Nossa Senhora do Ó de Mipibú (correspondente atualmente aos territórios das
cidades de Nísia Floresta e São José de Mipibu), Nossa Senhora da Conceição de Jundiaí

152
PEREIRA, Ariane de Medeiros. Escravos em ação. 2014, p. 104.
90

(correspondente atualmente ao território da cidade de Macaíba) e de Nossa Senhora dos


Remédios de Cajupiranga (correspondente atualmente ao território da cidade de
Parnamirim), foram, após a Matriz, os espaços eclesiásticos de maior dinamicidade do litoral
leste da capitania do Rio Grande. Assim, a capela da Missão de Nossa Senhora do Ó de
Mipibu - no século seguinte, freguesia de Sant’Ana de São José de Mipibu – já é apontado
no trabalho de Neves como espaço de destaque econômico, social e religioso dentro da
freguesia de Nossa Senhora da Apresentação. Nos registros paroquiais estudados pela autora,
pôde-se perceber o alto índice de casamentos entre cativos de qualidades diferentes, atestando
as mesclas biológicas ocorridas entre escravos africanos, indígenas e mestiços; a endogamia
africana, representada por casamentos entre indivíduos do mesmo “grupo de procedência”; e
o uso do matrimônio, por parte dos cativos, como forma de alcançar um status diferenciado,
até mesmo ligado à obtenção da liberdade. Danielle Neves, portanto, abre portas para uma
compreensão mais densa do papel da instituição familiar dentro do sistema escravista.
Compreendendo, então: a importância da família cativa como estratégia de
construção de uma territorialidade escrava; do fortalecimento das relações cotidianas dentro
de um sistema em que o escravo era a principal mão de obra, fruto de violências físicas e
psicológicas constantes considerados um ser inferior devido a sua cor e condição social;
objeto de propriedade de outros; retrataremos os escravizados como agentes históricos,
procurando adentrar o universo da gente negra da freguesia de Sant’Ana de São José de
Mipibu, notadamente de mulheres e homens cativos, examinando o batismo e as relações
parentais (consanguíneas e espirituais) estabelecidas entre os anos de 1841 e 1862.
Observando as diferentes conjunturas político-sociais e econômicas do período, procuramos
analisar o crescimento da formação de famílias matrifocais e nucleares e suas estratégias para
o estabelecimento de vínculos parentais, principalmente os vínculos espirituais, pois a
escolha de padrinhos livres ou escravos, em determinadas situações, poderia ser mais
interessante para a sobrevivência de seus entes, para a mobilidade social e/ou para contar
com apoio no cativeiro.
91

3.2 Filiação de pessoas negras: as informações dos registros de batismo


As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, promulgadas em 1707, e
publicadas em 1719, como resultado de um sínodo da Igreja Católica realizado sob direção
do arcebispo Dom Sebastião Monteiro da Vide, constituem um documento essencial da
história colonial e imperial – tendo sido regido no Brasil até 1889. Chegando ao Brasil, em
1702, Dom Sebastião Vide, como 5º Arcebispo da Bahia, visitou todas as suas paróquias,
identificando as qualidades e deficiências. Concluiu, em especial, que as Constituições de
Lisboa, regentes no território de toda América portuguesa no período, não condiziam com
um território tão diverso, o que poderia resultar em abusos no culto Divino, na administração
da justiça, na vida e costumes dos súditos. Para evitar tais danos, ordenou então que se
fizessem as novas Constituições e o Regimento do Auditório e dos Oficiais da Justiça153.
De fato, Dom Sebastião encontrou neste território, não apenas raças diferentes,
como costumes diversos. Buscou, portanto, conhecer os índios da América, e a forma de
tratá-los, fazendo consulta à Política Indiana, de Juan de Solórzano Pereira (1719, 1853),
herdeiro dos ensinamentos de Salamanca. Quanto aos escravos, recorreu aos escritos do
jesuíta Joseph Benci (1705), que escreveu sobre a sua educação. Quanto à população geral,
procurou explicar cada cânone, desdobrando-se em minúcias, para o seu conteúdo chegar aos
mais incultos. Para se ter uma ideia, quanto as Constituições lusas tinham entre 30 e 90
páginas, a baiana alcançou 526 páginas.
Obrigava-se que fossem lidas publicamente, em especial nas missas, para que os
fiéis tivessem conhecimento de seu conteúdo, o que, de um lado, deu instrumentos legais à
Inquisição quanto, do outro, uniformizou os procedimentos lusos, nas instituições religiosas
portuguesas, tanto no Reino, quanto em suas conquistas, no Ocidente e no Oriente. As
Constituições tratavam praticamente de todos os aspectos da vida social através de uma visão
da Igreja sobre o ideal de sociedade, construído sobre uma concepção evidentemente cristã
do mundo. Compostas de cinco tomos, estabeleciam as mais diversas normas de controle
social.
Um dos principais preceitos das ideias e práticas do catolicismo era a administração
do sacramento do batismo, visando a “salvação” de almas, dos pequenos cristãos aos gentios,

153
FLEXOR, Maria Helena Ochi. O Concílio de Trento e as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia:
“Programa” de arquitetura e arte sacras na Bahia. Revista Imagem Brasileira, 09, 2018, p. 40.
92

pagãos ou infiéis das “novas terras”, aos quais tal sacramento foi veementemente aplicado
como justificação da ocupação dos territórios das populações conquistadas e escravizadas na
América portuguesa.
Constavam nas Constituições Primeiras as normas cristãs, com o objetivo de
organizar e orientar a prática do catolicismo. Na concepção católica, o indivíduo conseguia
com o batismo o perdão de todos os pecados, inclusive o “pecado original”, imputado a todos
os descendentes de Adão e Eva, que nasciam em estado de culpa; adquiria-se a condição de
ser adotado como “filho de Deus”; e, aqueles que recebessem o sacramento do batismo antes
do falecimento, ganhavam a salvação eterna. Entre os sacramentos,

o batismo era o primeiro e o mais importante, pois permitia que as pessoas


adentrassem o universo cristão e criassem as condições para o recebimento dos
outros. Para a realização do batismo havia uma estrutura eclesiástica organizada
em todas as capitanias e províncias. Praticamente não havia empecilhos
burocráticos, não se exigia que os pais fossem casados e nem se proibia o acesso
de filhos naturais e de escravizados ao ritual154.

Uma das funções do pároco era celebrar este sacramento, porém não se tratava de uma
exclusividade sua, pois em casos extremos de perículos mortis, por exemplo, leigos que
“tivesse[m] as coisas necessárias e a intenção de fazê-lo”155 poderiam realizar a cerimônia
batismal em um momento como esse de necessidade. O mais importante era a salvação
eterna.
Na freguesia de Sant’Ana de São José de Mipibu, durante todo o nosso período de
análise, encontramos apenas um único vigário responsável por este território eclesiástico: o
Cônego Gregório Ferreira Lustosa. Paraibano, natural de Patos, nasceu no ano de 1818.
Ordenado sacerdote a 18 de fevereiro de 1842 e a 24 do mesmo mês e ano, foi nomeado
vigário encomendado156, em São José de Mipibu, pelo bispo diocesano Dom João da
Purificação Marques Perdigão. Em 1844 fez concurso, quando então foi aprovado e recebeu

154
ROCHA, Solange Pereira. Gente negra na Paraíba oitocentista. 2009, p. 218.
155
VIDE, D. Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. 1853 [1720], p. 17.
156
O vigário encomendado era aquele indicado provisoriamente para determinada comunidade. NEUMANN,
Hendersen. A mesa da Consciência e Ordens no Brasil (1808-1828). Volume 1. Mestrado em Ciências Jurídico-
Históricas – Universidade de Coimbra, 2019, p. 122.
93

o diploma de vigário colado157 de São José, a começar de 1845, e nessa paróquia ficou até o
fim de sua vida.
Um dos maiores trabalhos que enfrentou na paróquia, de acordo com Monsenhor
Severino Bezerra158, foi no ano de 1853 quando a igreja primitiva servindo de Matriz teve
quase todo o seu edifício demolido para construção de uma igreja de maior proporção, para
melhor acondicionamento dos fiéis. Todo o trabalho foi dirigido pelo vigário que contou com
o auxílio do governo da Província e as esmolas do povo. O governo da Província fez doação
para as obras da Matriz na quantia de 1:300$000 (um conto e trezentos mil réis); as esmolas
dos fiéis subiram a 3:216$990 (três contos duzentos e dezesseis mil e novecentos e noventa
réis); sendo o total das despesas de 4:516$990 (quatro contos quinhentos e dezesseis mil
novecentos e noventa réis). A Matriz de São José de Mipibu se tornou assim uma das mais
amplas igrejas católicas da Província do Rio Grande do Norte159.

157
O vigário colado era aquele indicado para assumir um determinado benefício eclesiástico. A colação
significava que o sacerdote não poderia ser removido do benefício, exceto voluntariamente, e funcionava como
uma garantia para que o religioso exercesse as suas funções de forma independente (NEUMANN, 2019, p.
111).
158
BEZERRA, Monsenhor Severiano. Levitas do Senhor. Natal: Fundação José Augusto, 1985. p. 65.
159
Ibid, p. 66.
94

Imagem 1 - Igreja Matriz de Sant’Ana e São Joaquim de São José de Mipibu

Fonte: Fotografia tirada por Clara Maria da Silva em fevereiro de 2021.


95

Necessitando o Cônego Gregório de um auxiliar devido à extensão do território da


freguesia e aumento da população, lhe foi designado um padre para coadjutor160 na pessoa
de Antonio Xavier de Paiva, que firmou residência no povoado de Vera Cruz, sua terra natal,
e lá permaneceu até a morte do Cônego Gregório, quando sucedeu na administração da
paróquia em 1894. Lustosa também exerceu cargos políticos na Província, ocupando o cargo
de Deputado da Assembleia Provincial no biênio de 1868 e 1869. Por duas vezes esteve
encarregado da regência da paróquia de Papari, nos anos de 1842 a 1843 e de 1847 a 1849,
com o título de Pró-Pároco e em São José de Mipibu fora vigário por 52 anos. Observaremos
nas fontes paroquiais que justamente pelos territórios das freguesias de Papari (atual cidade
de Nísia Floresta) e São José de Mipibu serem muito próximas, seus limites paroquiais por
vezes se confundiam havendo a sacralização do batismo de fregueses em no território vizinho
e não naquele em que residia.

Imagem 2 - Igreja Matriz de Nossa Senhora do Ó de Nísia Floresta (antiga cidade de


Papari)

Fonte: Fotografia tirada por Clara Maria da Silva em fevereiro de 2021.

160
Sacerdote nomeado para ajudar ou substituir um prior ou prelado no exercício de suas funções.
96

Lustosa foi agraciado com a nomeação de “Cavaleiro da Ordem de Cristo e o de


Cônego Honorário da Capela Imperial”. Faleceu em São José de Mipibu a 11 de agosto de
1894, com a idade de 76 anos e 52 de sacerdote, tendo sido sepultado no cemitério local. Por
ocasião de seu falecimento o jornal A República publicou nota de óbito, detalhando
brevemente um pouco sobre a figura do religioso sobre os seus fiéis. Mostrava-se ser bastante
“Respeitado por suas qualidades não se poupando em levar o conforto aos infelizes, era sua
abnegação a causa que abraçara, o seu trato íntimo era finalmente ser Pároco de uma freguesia
populosa pelo longo espaço de 52 anos e não ter deixado um só desafeto”161. O fato de termos
um mesmo padre ao longo dos 21 anos de análise sendo o responsável por realizar os
batismos na Igreja Matriz; registrar no livro de batismo da freguesia todos os batizados de
livres, libertos e escravos; e também ser responsável pelos coadjutores e padres que
realizavam esta cerimônia nas capelas, fazendas, lugares e engenhos espalhados pela
freguesia; nos faz acreditar que, possivelmente, teremos uma análise e registro de certa forma
mais padrão e homogênea quanto a qualidade dos pequenos fregueses recém-nascidos
batizados.
Apesar de termos um mesmo vigário responsável pela freguesia ao longo do período
de análise, outros religiosos, como padres, coadjutores e reverendos auxiliaram o Cônego
Gregório Ferreira Lustosa nas celebrações católicas neste espaço eclesiástico. Encontramos
nos registros os nomes dos seguintes religiosos como celebrantes de batizados entre o período
de 1841 e 1862: Coadjutor João Leite de Pinho, Reverendo João Carlos de Sousa Cardoso,
Reverendo José Damasceno Xavier Dantas, Reverendo José Paulino de Borba Grilo,
Reverendo João Paulino Pinto d’Aguiar, Reverendo Joaquim Severiano Ribeiro Dantas,
Padre Bernardino de Sena Ferreira Lustosa, Reverendo Vigário José Gabriel Pinheiro e
Reverendo Targino Paulino de Carvalho.
A freguesia necessitava de um número de religiosos suficiente para tentar dar conta
de todo o território eclesiástico e realizar os sacramentos estabelecidos pela Igreja Católica.
No caso do batismo, por exemplo, de acordo com as Constituições Primeiras, as crianças
deveriam ser batizadas até oito dias depois de nascidas nas pias batismais das paróquias
(Matriz ou capelas) de onde fossem fregueses. Aqueles que residiam longe da igreja
paroquial também eram batizados nos oratórios privados de engenhos, como veremos em

161
BEZERRA, Monsenhor Severiano. Levitas do Senhor. Natal: Fundação José Augusto, 1985. p. 66.
97

alguns casos neste trabalho. Porém, poderia acontecer desta cerimônia ser realizada em
residências, por pessoa instruída na doutrina cristã. Ao analisarmos a documentação
paroquial observamos que situações como essas ocorriam, geralmente, em três casos: quando
a criança nascida em perigo de vida (batizadas em periculos mortis); em caso de doença do
vigário da freguesia162; ou quando no distrito de moradia do batizando não havia nenhuma
igreja ou capela as celebrações aconteciam na casa de alguém importante da região.
Posteriormente os responsáveis pelas crianças deveriam procurar o pároco e fornecer os
dados e o motivo da realização do batismo fora do templo católico, bem como seria feita a
aplicação dos Santos Óleos e do exorcismo. O primeiro consistia numa oração com um óleo
benzido na Semana Santa pelo bispo, e o segundo, um ritual no qual o sacerdote esconjurava
os maus espíritos. Ambas as práticas só poderiam ser realizadas exclusivamente pelo pároco.
Justamente pela grande extensão das freguesias, alguns distando quinze, vinte e mais
léguas, eram edificadas as capelas, e nelas eram administrados os santos sacramentos, pela
dificuldade que havia em irem à Igreja Matriz. Por isso, as mesmas dispunham de pia
batismal para realizar os sacramentos do batismo. Com licença dos párocos, os capelães
batizavam nas capelas sendo obrigados a levar até o pároco, todo mês, as informações dos
batizados para serem inseridas nos assentos do livro de batismo da freguesia sob pena de
cinco tostões por cada mês que faltassem163.
A validação do batismo só podia ser feita pelo pároco, em livro encadernado,
numerado e assinado no alto de cada folha por um provisor, vigário-geral ou visitador e, no
final de cada página, assinaria o pároco ou sacerdote que fizesse o batismo, sob pena de
punição. Neste livro, custeado pela fábrica da Igreja, deveria constar os nomes dos
batizandos, pais, mães e dos padrinhos; fechado na arca ou caixões da Igreja debaixo de
chave, os assentos dos batizados haveriam de ser registrados da seguinte forma:

Aos tantos de tal mez, e de tal anno baptizei, ou baptizou de minha licença o Padre
N. nesta, ou em tal Igreja, a N. filho de N. e de sua mulher N. e lhe puz os Santos
Oleos: forão padrinhos N. e N. casados, viuvos, ou solteiros, freguezes de tal Igreja
e moradores em tal parte164.

162
No ano de 1861, entre os meses de Agosto e Outubro, o vigário da freguesia, Cônego Gregório Ferreira
Lustosa adoece e realiza em sua residência, localizada na lateral da igreja, os batismos que deveriam ocorrer na
Igreja Matriz da cidade (RUBENILSON, 2009, p. 219). Por esta razão, registramos no banco de dados estes
assentos também como “batizados na Igreja Matriz”.
163
VIDE, D. Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. 1853 [1720], p. 15.
164
Ibid, p. 29.
98

Na freguesia de Sant’Ana de São José de Mipibu o vigário, padre Gregório Ferreira Lustosa,
segue, na maioria dos registros, o modelo de registro exigido pela constituição eclesiástica.
O que observamos é que por vezes não há, entretanto, a indicação do estado civil dos
padrinhos, o que, ao longo de nosso trabalho, dificultou, por exemplo, a análise e
quantificação de padrinhos casados ou não entre si. Esta informação mostra-se importante
principalmente quando um dos padrinhos espirituais era escravos ou ambos eram cativos,
pois esta informação seria interessante para observarmos se havia uma preferência na escolha
de padrinhos escravos casados por filhos naturais ou legítimos.
A escravidão na sociedade brasileira, entre os séculos XVI e XIX, promoveu
adequações sociais e culturais em todos os níveis. Na legislação, não foi diferente: seja
eclesiástica ou civil, existem títulos dedicados exclusivamente aos filhos do cativeiro. No
caso do batismo para os cativos, as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia
previam logo em seu Título II a obrigação de pais, mestres, amos e senhores de ensinar ou
fazer ensinar a doutrina cristãos aos filhos, discípulos, criados e escravos. Determinava,
portanto que

todas as pessoas, assim Ecclesiasticas, como seculares, ensinem, ou fação


ensinar a Doutrina Christã á sua familia, e especialmente a seus escravos, que
são os mais necessitados desta instrução pela sua rudeza, mandando-os á Igreja,
para que o Parocho lhes ensine os Artigos da Fé, para saberem bem crer; o Padre
Nosso, e Ave Maria, para saberem bem pedir; os Mandamentos da Lei de Deos, e
da Santa Madre Igreja, e os peccados mortaes, para saberem bem obrar; as
virtudes para que as sigão; e os sete Sacramentos, para que dignamente os
recebão, e com elles a graça que dão, e as mais orações da Doutrina Christã, para
que sejão instruidos em tudo, o que importa a sua salvação. E encarregamos
gravemente as consciencias das sobreditas pessoas, para que assim o fação,
attendendo á conta, que de tudo daráõ á Deos nosso Senhor165.

Era, portanto, uma obrigação do proprietário de escravos o batismo e a inserção dos cativos
no seio da cristandade, porque, de acordo com a própria Constituição, os cativos seriam mais
necessitados de conhecer a religião devido a sua “rudeza”. Porém, o batismo seria apenas o
primeiro passo para a salvação destas almas, eles deveriam aprender também sobre a fé
católica para aprender a crer; rezar o Pai Nosso e a Ave Maria; aprender os mandamentos da

165
Ibid, p. 2-3, grifo nosso.
99

Igreja, os pecados mortais e os sete sacramentos, este último principalmente para que possam
dignamente os praticar. E todos estes atos levariam a salvação de suas almas. Tal pressuposto,
segundo Mariza Soares, traria os cativos de várias nações de um lugar anterior em que só
existia gentilismo, para outro no qual só chegariam com a doutrina e o batismo166.
O título seguinte reforça a preocupação da Igreja Católica em ensinar a doutrina
cristã aos seus fregueses e escravos. Dedica uma parte deste título exclusivamente para
justificar a necessidade de catequização dos cativos como o grupo mais necessitado de
conversão no Brasil. Por serem descendentes de tantas nações e falantes de diversas línguas,
foram educados na cultura do gentilismo167, e como agora estão neste Império Católico, os
párocos e fregueses devem buscar todos os meios para ensinar a doutrina cristã a estes povos
pagãos e instruí-los na fé. Somente assim serão libertados da rudeza e da barbaridade. Tal
discurso salvacionista presente nas Constituições reforça o que durante séculos foi pregado
pela Igreja Católica e por alguns cristãos de que a escravidão de povos africanos e a venda
deles para os Impérios católicos, como o Império brasileiro, seria algo benéfico para os povos
pretos, pois aqui eles aprenderiam sobre a doutrina cristã e teriam a oportunidade de salvação
de suas almas através da fé. Acrescentamos ainda que essa interpretação, quando aliada ao
ideário salvacionista e missionário de levar a fé aos povos, ganha o sentido de purificação e
de afastar o pecado da terra, um pensamento que refletiu durante vários séculos de
colonização, inclusive como justificativa para os atos da Igreja Católica168.

166
SOARES, Mariza de Carvalho. “A conversão dos escravos africanos e a questão do gentilismo nas
Constituições Primeiras da Bahia”. In: FEITLER, Bruno; SOUZA, Evergton Sales. A Igreja no Brasil. Normas
e práticas durante a vigência das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo, Unifesp. 2011,
p. 303 - 321.
167
De acordo com o dicionário Raphael Bluteau (1728, p. 57) o gentilismo seria uma “religião ou doutrina da
gentilidade [...] os costumes desaprovados”’. Quando observamos o verbete gentilidade, vemos que esta era a
“falsa religião dos gentios”. Já o gentio seria um sinônimo de pagão ou de gente “baixa, popular”. O dicionário
de Luiz Maria da Silva Pinto (1832, p. 70), publicado no século seguinte, complementa tal definição de gentio,
considerando-o como “idolatra, que não tem conhecimento do verdadeiro Deus”. Existe, portanto, uma
associação direta com a religião católica, neste caso a ausência do batismo, sacramento este que tira o homem
do paganismo e o insere na cristandade. O homem gentil seria bárbaro, pagão na visão da cristandade, sem fé.
168
Uma das possíveis origens do estigma dos negros como pecadores, a qual justificava, na visão cristã, a
escravização e conversão dos negros africanos, estaria ligada à ideia da maldição de Cam, derivada da narrativa
bíblica, contida no Gênesis, na qual esse filho de Noé, após descobrir a nudez do pai, teria sido amaldiçoado
com a servidão perpétua de toda sua descendência. Entre as inúmeras variações e leituras do texto bíblico, a
tendência dominante, de acordo com sugestões já contidas na Bíblia, era a de reservar a Europa aos filhos de
Jafé, a Ásia aos descendentes de Sem, e a África aos filhos de Cam; as genealogias bíblicas, portanto, indicavam
que os descendentes de Cam, o filho amaldiçoado, povoaram a área do Norte da África e Crescente Fértil,
particularmente o Egito, a Líbia e a Etiópia. A maldição de Cam, portanto, tinha vínculos com as noções de
pureza e perigo, uma maldição original lançada sobre os africanos e seus descendentes. VIANA, Larissa. O
100

O batismo, era, portanto, o primeiro de todos os sacramentos e a porta de entrada


na Igreja Católica. Por este motivo desde o século XVI os batismos coletivos dos negros
africanos vendidos como escravos para os colonizadores cristãos ainda em África eram
comuns169. O sacramento do batismo era extremamente importante, porque era apenas
através dele que todos os pecados, do original ao mais atual, mesmo que muito graves, eram
perdoados e a salvação alcançada. Por este sacramento, também, o batizando professava a fé
católica, e assim, “se abre o ceo aos baptizandos, que se depois do Baptismo recebido
morrerem, certamente se salvão, não tendo antes da morte algum peccado mortal”170.
Como através do batismo o homem passava do estado de culpa ao estado da graça,
e caso viesse a morrer sem ter realizado ele não teria a salvação eterna, as crianças que
nascessem nesta sociedade católica deveriam ser batizadas, de acordo com as normas
eclesiásticas, até oito dias após o nascimento nas pias batismais das paróquias de onde eram
fregueses. Caso não se cumprissem o prazo determinado pela lei canônica, a multa era de dez
tostões para a Igreja Paroquial, e nos oito dias seguintes ainda não tendo realizado o batismo,
pagar-se-ia a mesma pena em dobro. Acreditamos que o curto prazo entre o nascimento da
criança e a obrigatoriedade do batismo era devido à alta taxa de mortalidade dos recém-
nascidos no período de vigência da referida Constituição – séculos XVIII e XIX – em razão
das precárias condições sanitárias e médicas, ainda mais quando se tratava das regiões rurais
e mais afastadas das capitais das províncias. Por este motivo também e pela grandiosidade
territorial das freguesias, a fim de garantir que todas as crianças fossem batizadas, as mesmas
Constituições também garantiam a edificação de Capelas dentro das Freguesias, permitido a
administração dos santos sacramentos nestes locais.
Nesta sociedade escravista, principalmente os sacramentos do batismo e do
casamento para os negros escravizados poderiam ter um significado além do que o espiritual,
mas social também. Assim, batizar um filho trazia para o escravo, fosse africano ou nascido
no Brasil, uma série de vantagens nos campos religioso, moral e social, permitindo que
circulasse e fosse aceito, dentro dos limites permitidos devido à sua condição cativa.

idioma da mestiçagem: as irmandades de pardos na América Portuguesa. Campinas, SP: Editora da


UNICAMP, 2007, p. 55-56.
169
OGOT, Bethwell Allan (Ed.). História Geral da África: África do século XIX à Década de 1880. v. 5.
Brasília: Editora Unesco, 2010. p. 859.
170
VIDE, D. Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. 1853 [1720], p. 13.
101

De acordo com Florentino e Góes a sanção legal-religiosa protegia mais os parentes


escravos171, o que reafirma a importância dos sacramentos católicos no cotidiano escravista
das famílias cativas. Mesmo que não cultuassem a religião católica mostrava-se importante
socialmente a realização dos sacramentos como uma forma de oficialização das famílias
perante a Igreja e o Estado imperial, além de ser também uma resistência cotidiana, uma
ressignificação dos ritos católicos. A presença dos filhos se constituía como um fator
agregador das famílias escravas, com a consanguinidade dando maior estabilidade aos grupos
parentais172.

3.3 Um perfil das famílias escravas na Freguesia de Sant’Ana de São José de Mipibu
Foi na década de 1960 que o demógrafo Louis Henry e o historiador Michel Fleury,
interessados nos estudos de população em perspectiva histórica, apresentaram a primeira vez
em um congresso científico a um grupo de historiadores a metodologia da “Reconstituição
de Famílias”, que talvez seja a marca mais conhecida da Demografia Histórica. No Brasil, o
interesse pela história da população remonta aos meados do século XIX quando houve a
fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), com o objetivo de
compreender o processo de formação do “povo brasileiro”, inserindo-a numa tradição de
civilização e progresso, ideias tão caras ao iluminismo173. Neste período, tal instituição
idealizou a figura do “indígena” como fundador da verdadeira identidade brasileira, baseada
no mito das “três raças” e das relações étnicas harmoniosas e pacíficas no Brasil, dando as
bases para a construção da ideia que viria a se chamar, a partir do século XX, “democracia
racial brasileira”174.
A mudança substancial nessa interpretação clássica ocorreu apenas a partir das
décadas de 1960 e 1970, com a introdução da Demografia Histórica no Brasil, quando novas
formas de se abordar a temática da “população” e da “família”, influenciados pelos estudos
de Henry e Freyre, foram se consolidando no país. O marco de entrada da disciplina no Brasil

171
FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto. A paz das senzalas. 2017, p. 100.
172
Ibid, p. 102.
173
GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. Nação e Civilização nos Trópicos: o Instituto Histórico Geográfico
Brasileiro e o projeto de uma história nacional. Revista Estudos Históricos, vol. 1, n. 1, 1988.
174
SCHWAECZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil –
1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
102

foi a tese de doutorado de Maria Luiza Marcílio apresentada na Sorbonne no ano de 1967175,
e a partir de então o processo de constituição da Demografia Histórica Brasileira está
entrelaçada a trajetória acadêmica desta historiadora. Obras organizadas e publicadas pela
autora, como Demografia História: orientações técnicas e metodológicas (1977)176 e
População e sociedade: evolução das sociedades pré-industriais (1984)177, reuniram os
principais autores da disciplina e foram responsável por introduzir e desenvolver estudos no
país sobre a relação entre a Demografia Histórica e a História Social, o tema da mortalidade
e das epidemias, a família e o casamento, e as discussões demográficas que teriam
caracterizado o Brasil desde o século XIX.
Assim, passou-se a investir no uso da Demografia Histórica e análise de fontes
paroquiais e censitárias a fim de compreender o perfil da população brasileira desde o século
XVIII. O grau de complexidade, lacunas e incertezas fazem parte do métier dos
pesquisadores da Demografia Histórica, especialmente quando são analisadas as sociedades
do Novo Mundo. O demógrafo italiano, Massimo Livi Bacci, chega em seus estudos a
apontar o interesse em se estudar a demografia brasileira, em perspectiva histórica:

Para os estudiosos das Ciências Humanas e da Demografia o Brasil apresenta-se


como um laboratório de extraordinário interesse. População autóctone, tênue em
números e dispersa no enorme território, após o contato com os europeus, chegou
a estar próxima da extinção. Os conquistadores e os colonos dessa terra que ocupa
a metade do continente sul-americano vinham de Portugal, um pequeno país com
uma população modesta, mas que não obstante conseguiu imprimir sua marca
cultural e demográfica no país. O tráfico de escravos, que alimentou a força de
trabalho na Colônia durante três séculos, introduziu no Brasil dois quintos dos dez
milhões de africanos trazidos à América pelos navios negreiros. […] A emigração
europeia, na segunda metade do século XIX e primeiros 30 anos do século XX,
enriqueceu ainda mais a já complexa sociedade brasileira. Por cinco séculos, os
processos de mestiçagem entre etnias foram seguramente os mais intensos já vistos
em um grande país na época moderna178.

Certamente o Brasil contar com populações profundamente heterogêneas, ter sua histórica
marcada pela escravidão e tráfico atlântico, e caracterizado por um intenso processo de

175
MARCÍLIO, Maria Luiza. A Cidade de São Paulo: Povoamento e População. São Paulo: EDUSP, 2014.
176
MARCÍLIO, Maria Luiza. Demografia Histórica. Orientações Técnicas e Metodológicas. São Paulo:
Pioneira, 1977.
177
MARCÍLIO, Maria Luiza. Sistemas Demográficos no Brasil do Século XIX. In:____. População e
Sociedade. Evolução das Sociedades Pré-Industriais. Rio de Janeiro: Vozes, 1984.
178
BACCI, Massimo Livi. 500 anos de demografia brasileira: uma resenha. Revista Brasileira De Estudos De
População, v. 19, n.1, jan./jun., 2002, p. 141.
103

mestiçagem abriu para a Demografia Histórica, ao longo dos últimos anos, a possibilidade
de dar uma significativa contribuição para o estudo da população brasileira, oferecendo
também aportes para o estudo e a análise da família, sua estrutura, composição e organização.
Os trabalhos nesta área deram não apenas mais visibilidade às diferenças, como também
problematizaram a grande heterogeneidade e complexidade dos vários segmentos
populacionais e dos múltiplos arranjos familiares que estavam disseminados no imenso
território, sobretudo a partir do século XVIII, quando as fontes se tornam mais regulares e
numerosas.
Para o Brasil, os estudos sobre a temática vêm revelando a incidência e relevância
das uniões não consagradas pela Igreja Católica e as formas alternativas de relacionamento
entre os sexos, muitas delas baseadas em uniões consensuais estáveis e duradouras; a elevada
taxa de fecundidade ilegítima entre a população livre; e um percentual significativo de
domicílios chefiados por mulheres179. Tais resultados foram possíveis graças a análise de
fontes paroquiais e censitárias, produzidas em maior quantidade entre os anos de 1760 e
1872, período em que os dados de base (censo e séries estatísticas) são relativamente
abundantes, mas ainda com valor e qualidade desigual.
A introdução da Demografia Histórica no Brasil ajudou na mudança de perspectiva
da corrente historiográfica da Escola Sociológica Paulista, que tem em Florestan Fernandes
um dos principais intelectuais, o qual acreditava na anomia da população escrava. Esta nova
dimensão contribuiu para questionar os postulados vigentes até poucas décadas atrás, sobre
a vida sexual e familiar dos escravizados, tida como promíscua e sem qualquer possibilidade
de contar com a existência da família.
A historiografia brasileira, munida de novas fontes e metodologias, vem, portanto,
mostrando a inserção dos escravizados em contexto de vida familiar, que pode ser estável e
duradoura, construída não apenas em função dos vínculos de consanguinidade, como também
através do parentesco espiritual, baseado nos laços de compadrio. Através das fontes
eclesiásticas e jurídicas, houve o redimensionamento da visão sobre o cotidiano do cativeiro,
antes tido apenas como um resultado direto da atuação e vontade senhorial.

179
SCOTT, Dario. Livres e escravos: população e mortalidade na Madre de Deus de Porto Alegre (1772-1872).
2020. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Campinas, SP, p. 222-223.
104

Mas como se configurava essa população escrava? Quem eram as mulheres,


crianças e os homens escravos desta freguesia? Qual o perfil destas famílias cativas? Quais
suas escolhas preferenciais por padrinhos e madrinhas no momento do batismo? Em que
locais aconteciam as cerimônias? Para tentar responder tais questões, fizemos uso das fontes
paroquiais da freguesia de Sant’Ana de São José de Mipibu, pois permitem um conhecimento
mais detalhado da população da freguesia ao longo do Oitocentos.
Com base nos dados de batismo, importante indicador dos nascimentos nas
paróquias, e munido da metodologia da História Serial e Quantitativa, pudemos obter dados
para conhecer a população negra desta freguesia. É importante ressaltar que os limites da
freguesia de Sant’Ana ultrapassavam os limites da atual cidade de São José de Mipibu.
Apesar da Igreja Matriz de Sant’Ana estar localizada nesta cidade, os limites da freguesia
englobavam capelas, lugares e engenhos localizados não apenas em São José de Mipibu, mas
também da vila de Papari. A partir do cruzamento dos nomes dos locais de batismo das
crianças escravizadas identificados nos registros de batismo; e dos mapas da Companhia de
Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM), empresa governamental brasileira vinculada ao
Ministério de Minas e Energia, a qual produziu no ano de 2005 Atlas Digitais dos Recursos
Hídricos Subterrâneos, detalhados de todos os municípios dos estados brasileiros, seus
distritos e recursos hídricos; conseguimos identificar, mesmo que trabalhando com fontes
diferentes e de séculos distantes, a existência de certos lugares ainda com os mesmos
atribuídos a eles no século XIX, o que nos levou a construção de um mapa aproximado da
extensão da freguesia de Sant’Ana de São José de Mipibu entre os anos de 1841 e 1862.
105

Mapa 5 – Território, aproximado, da freguesia de Sant’Ana de São José de Mipibu,


1841-1862

Fonte: No centro do mapa, a igreja em vermelho representa a Matriz de Sant’Ana, localizada na cidade de São
José de Mipibu, e as demais cruzes vermelhas espalhadas pelo território, identificam as capelas, fazendas,
lugares e/ou engenhos nomeados nos registros de batismo desta freguesia. A mancha vermelha presente no
mapa, identifica, de forma aproximada, a extensão do território da freguesia de Sant’Ana de São José de Mipibu
controlada, religiosamente, pelo vigário e seus padres. Mapa produzido por Clara Maria da Silva a partir da
coleta de informações disponíveis no livro de batismo da Freguesia de Sant’Ana de São José de Mipibu (1841-
1862) e dos Atlas Digitais dos Recursos Hídricos Subterrâneos dos municípios de São José de Mipibu, Nísia
Flores, Vera Cruz e Monte Alegre, disponíveis em < http://www.cprm.gov.br/publique/Hidrologia/Mapas-e-
Publicacoes/Rio-Grande-do-Norte---Atlas-Digital-dos-Recursos-Hidricos-Subterraneos-3130.html>. Com
adaptação técnica da publicitária Renata de Andrade Alves.

É importante destacarmos também que apesar de termos trabalhado com uma fonte
cartográfica produzida no século XXI a fim de representar um espaço eclesiástico do século
XIX, com o passar do tempo alguns lugares que identificamos nos registos paroquiais
mudaram de nome, não sendo possível, portanto, determinar com exatidão a extensão da
nossa freguesia de análise. Atualmente os territórios que compunham a freguesia de Sant’Ana
de São José de Mipibu corresponde, completa ou parcialmente, ao espaço de quatro cidades:
São José de Mipibu, Nísia Floresta (antiga Papari), Vera Cruz e Monte Alegre180.
De acordo com a análise feita nos assentos batismais, 70% dos batismos eram
realizados na Igreja Matriz. Os demais, 28%, aconteciam nas capelas, fazendas, lugares e/ou

180
Para uma análise detalhada das capelas, fazendas, lugares e/ou engenhos localizada em cada um dos
municípios, consultar os apêndices A, B, C e D, no final deste trabalho.
106

engenhos – como eram designados nos registros – espalhados pela freguesia de Sant’Ana.
Apenas 2% do total de registros não possui identificação dos locais onde as crianças foram
batizadas. Tal dado pode nos ajudar a levantar algumas hipóteses: ou os senhores
aproveitavam a necessidade de ir à cidade de São José de Mipibu para resolver alguma
situação e levavam seus escravos para batizar na Igreja Matriz; ou estas famílias moravam
nos arredores, talvez até mesmo possíveis escravos urbanos, e também por questão de fé,
preferiam batizar seus filhos na Matriz da paróquia; ou nos distritos e/ou fazendas em que os
escravos moravam não haviam capelas para realização de cerimônias de batismo.
Infelizmente as fontes aqui analisadas não nos fornecem o nível de detalhamento, como local
de moradia ou profissão dos cativos, para confirmar nossas hipóteses.

Gráfico 2 – Porcentagem dos locais de batismo dos escravos na freguesia de Sant’Ana


(1841-1862)

Fonte: Gráfico produzido por Clara Maria da Silva a partir da coleta de informações disponíveis no livro de
batismo da Freguesia de Sant’Ana de São José de Mipibu, 1841-1862. Universo amostral: 504 registros.

Desta freguesia formamos um banco de dados com as informações de 504 registros


de crianças escravizadas, abarcando o período de 21 anos, sendo que a maioria das
cerimônias aconteceu após o ano de 1850. Na primeira metade, nos anos de 1841 a 1848,
foram 25% (126 batismos) crianças cativas batizadas e 75% (378 batismos) na segunda
107

metade, entre 1851 e 1862181. Estamos trabalhando com um universo amostral


correspondente a 7.547 registros, sendo este um valor aproximado, pois na década de 1840
os registros ainda não eram numerados pelo vigário. Compreendemos, entretanto, as
limitações de nosso trabalho e acreditamos que seja necessária uma análise mais profunda e
minuciosa nestes registros a fim de ter-se uma análise mais exata sobre a quantidade de
crianças pretas e pardas livres e/ou libertas batizadas nesta freguesia, para compreendermos
o universo complexo da gente negra, assim como Solange Rocha (2009) fez para a Paraíba182.
Foi uma escolha nossa estarmos, neste momento, nos debruçando apenas sobre os
registros de batismos de crianças escravas, com o objetivo de compreender o perfil dos
sujeitos escravizados deste espaço, uma necessidade advinda também das lacunas sobre a
falta de estudos e ao mesmo tempo a negação da escravidão na província do Rio Grande do
Norte. As dificuldades de leitura e transcrição das fontes certamente também auxiliaram na
subnotificação destes dados, podendo ter acontecido de alguns registros não terem entrado
em nossa análise.
As crianças pretas/pardas escravizadas nascidas entre 1841 e 1862 correspondem,
portanto, a 6,6% (504 registros) do total de registros realizados ao longo destes vinte e um

181
Dos vinte e um anos analisados, sete encontram-se incompletos, são eles: 1841 (consta os meses de Outubro
à Dezembro), 1842 (consta os meses de Fevereiro à Abril), 1843 (consta os meses de Abril, Julho e Agosto),
1848 (consta até 15 de Outubro), 1851 (consta apenas o mês de Dezembro), 1852 (consta os meses de Março à
Dezembro) e 1857 (consta até 12 de Novembro). Não consta no Arquivo da Arquidiocese de Natal os livros
dos anos de 1849 e 1850.
182
Apesar de não termos conseguido aprofundar os estudos para outras regiões, indicamos trabalhos importantes
sobre o estudo da escravidão e família escrava para outros espaços da região Norte (o que hoje conhecemos
como Nordeste): para Pernambuco, ver: COSTA, Valéria Gomes. 251f. Trajetórias negras: os libertos da
Costa d’África no Recife (1846-1890). Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas – UFBA, Salvador, 2013; COSTA, Valéria Gomes. O Recife nas rotas do Atlântico negro: tráfico,
escravidão e identidades no Oitocentos. Revista de História Comparada (UFRJ), v. 7, p. 186-217, 2013;
COSTA, Lenira Lima da. A Lei do Ventre Livre e os caminhos da liberdade em Pernambuco, 1871-1888.
Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Pernambuco,
Recife, 2007; SILVA, Gian Carlo de Melo. Na cor da pele, o negro: conceitos, regras, compadrio e sociedade
escravista na Vila do Recife (1790-1810). Tese (Doutorado em História). Recife: UFPE, 2014;
SILVA, Gian Carlo de Melo. Um só corpo, uma só carne: casamento, cotidiano e mestiçagem no Recife
colonial 1790 - 1800. Dissertação (Programa de Pós-Graduação em História) - Universidade Federal Rural de
Pernambuco, Recife, 2008; para Alagoas, ver: ARAÚJO, Marília Lima de. Família e relações de parentesco
de escravizados: Água Branca / Alto Sertão da província de Alagoas (1850-1888). Dissertação (Mestrado em
História) - Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e Artes, Programa de Pós-Graduação em História,
Universidade Federal de Alagoas, Maceió, 2018; para Bahia, ver:
REIS, Isabel Cristina Ferreira dos. A família negra no tempo da escravidão: Bahia, 1850-1888. Tese
(doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, SP,
2007; REIS, Isabel Cristina Ferreira dos. Histórias de vida familiar e afetiva de escravos na Bahia do século
XIX. Salvador: Centro de Estudos Baianos, 2001.
108

anos na freguesia. Observamos um aumento no número de registros, como mencionamos


acima, a partir de 1853, provavelmente devido a aprovação da lei Eusébio de Queirós, a qual
proibiu o tráfico transatlântico de escravos da África para o Brasil a partir de 4 de Setembro
de 1850.

Tabela 4 - Número de batismos de cativos por ano na freguesia de Sant’Ana (1841-1862)


ANO DO ASSENTO DE NÚMERO TOTAL DE QUANTIDADE DE CATIVOS
BATISMO REGISTROS POR ANO183 BATIZADOS
1841 87 4
1842 300 3
1843 184 9
1844 408 29
1845 272 22
1846 344 22
1847 366 25
1848 264 12
1851 52 5
1852 349 13
1853 435 36
1854 413 43
1855 405 26
1856 398 22
1857 475 39
1858 472 35
1859 473 43
1860 512 38
1861 404 35
1862 524 43
Total 7.547 504
Fonte: Livro de batismo da Freguesia de Sant’Ana de São José de Mipibu, 1841-1862.

Com a proibição definitiva do tráfico transatlântico ao mesmo tempo que o preço


dos cativos sofria um aumento generalizado, os senhores brasileiros buscariam prolongar a
vida útil dos seus escravos. Tais mudanças se traduziriam, portanto, na maior incidência de
famílias escravas após esta data. É o que observamos na tabela acima a qual detalha a
quantidade de batismos de cativos por ano. Apesar de não constar os livros dos anos de 1849
e 1850 no Arquivo Metropolitano da Arquidiocese de Natal, há um aumento a partir de 1853

183
Para os registros da década de 1840 (1841-1848) foi feita uma média do total de batismos realizado por ano,
pois neste período os assentos não eram numerados. Esta média foi feita pela autora a partir da quantidade de
folhas e registros por folha. A partir de 1851 temos um número exato da quantidade de batismos realizado por
ano, já que eles começam a ser numerados pelo vigário da freguesia.
109

no número de nascimentos de crianças escravas, provável resultado do incentivo dos senhores


à formação de famílias escravas no cativeiro.
Foi possível observar a alta frequência de nascimento de crianças no interior das
unidades produtivas e das residências dessa freguesia184. Esses números indicam que o
arranjo familiar mais comum era o composto pela mãe e pela criança, a família monoparental.
Quanto aos anos 40 do século XIX, como não há indicação nas notas de averbação laterais
sobre o status social das crianças, a qual só começa a ser indicado a partir do ano de 1851,
partimos do pressuposto de que até o ano da aprovação da lei do ventre livre, publicada em
28 de Setembro de 1871, toda criança nascida de ventre escravo também era escrava, e como
não há indicação de libertação destas crianças na pia batismal, partimos do pressuposto de
que elas também são escravas. Por isso, observamos que entre os anos de 1841 e 1862 o
número de crianças escravas registradas é praticamente igual ao número de mães escravas,
como veremos adiante no gráfico 2.
Encontramos apenas 4 (quatro) casos de crianças alforriadas na pia batismal, sendo
elas: Francisca em 1830, com três meses de idade, quando seus pais, na época pai livre e mãe
escrava, pagaram ao seu senhor 30$000 réis185, tendo este registro sido inserido no livro da
freguesia apenas no ano de 1847, quando sua mãe também já havia sido liberta; Albino em
1853, com 1 ano e 4 meses de idade, alforriado após o pagamento de 1:30$000 réis 186 pago
ao seu senhor pelo pai livre/liberto, apesar de ser registrado como filho natural; Aprígio, com
21 dias de vida, em 1854 por 97$000 réis187 pago ao proprietário também por seu pai
livre/liberto, mesmo sendo registrado como filho natural; e Diogo, com 9 dias de vida, em
1857 alforriado na pia após a compra da sua liberdade por 50$000 réis 188 pago pelo seu
padrinho livre/liberto. Há, portanto, uma tendência da compra da alforria destas crianças
sempre por algum parente consanguíneo ou espiritual do mundo dos livres e/ou libertos, mas
que mesmo após a libertação continuam convivendo com a escravidão de perto, geralmente
por ainda possuírem progenitoras escravas.

184
BOTELHO, Tarcísio R. População e nação no Brasil do século XIX. São Paulo, 1998. Tese (Doutorado
em História) – FFLCH/USP, 1998.
185
FREGUESIA..., 1843-1848, f. 180.
186
FREGUESIA..., 1851-1857, f. 44.
187
FREGUESIA..., 1851-1857, f. 75.
188
FREGUESIA..., 1857-1862, f. 6.
110

A partir da análise dos registros de batismo pudemos demonstrar, seguindo o rastro


de Slenes (2011) e Rocha (2009), que a “Escola Paulista” ao afirmar que as relações parentais
dos escravos eram frágeis, desorganizadas e sem privacidade em sua vida conjugal, estavam
equivocados. Ao longo dos mais de 20 anos analisados nesta pesquisa, conseguimos
demonstrar que as crianças conviviam com pelo menos um membro da família (a mãe), quase
sempre presente no momento do registro da criança na Igreja, além da convivência com os
padrinhos espirituais e outros membros da família consanguínea e extensa que não aparecem
explicitados nos registros paroquiais, como avós, tios e primos.
O caso do liberto Aprígio é bastante elucidativo da hipótese que procuramos
comprovar aqui. No dia 10 de setembro de 1854 na Igreja Matriz de Sant’Ana da Freguesia
de São José de Mipibu, Aprígio com apenas 21 dias de nascido é batizado por sua mãe, Joana,
escrava de Cipriano José Ramiro, tendo recebido como seus padrinhos os livres e/ou libertos
Luís Gregório Ramiro e Libânia Freire d’Amorim, irmãos, ambos solteiros e moradores nesta
mesma Cidade. Pelo senhor de Joanna e padrinho da criança terem o mesmo sobrenome,
acreditamos que poderiam ser parentes em algum grau, o que também justificaria a escolha
de Joanna de optar por Luis Gregório e Libânia como padrinhos de seu filho, pois os irmãos
possivelmente frequentavam a casa de Cipriano Ramiro e assim eram conhecidos da escrava
Joanna. Entretanto, o ponto interessante de análise deste registro é o fato de apesar de Aprígio
ser registrado como filho natural, o mesmo foi liberto na pia batismal pelo seu pai, o livre
e/ou liberto José Paiva da Silva, que pagou a quantia de 90 mil réis ao padrinho Luis Gregório
Ramiro que libertou a criança “por ser querida e ter recebido o pagamento da alforria pelo
seu pai”. Este fato demonstra, portanto, que mesmo a criança sendo batizada apenas pela mãe
escrava ela convivia e mantinha e mantém relações afetivas com o pai livre e/ou liberto, tanto
que o mesmo acaba comprando a alforria do filho. Assim, o fato dos pais não serem casados
na Igreja Católica e possuírem condições jurídicas diferentes em nenhum momento
demonstrou ser uma barreira para conseguir a liberdade do párvulo Aprígio189.
De acordo com Robert Slenes, os laços familiares não apenas criavam maiores
possibilidades para o acúmulo de poupança, mas também potencializavam esse esforço de
acumulação. Especificamente, a poupança da família conjugal ou da família extensa poderia
ser coordenada com a finalidade de resgatar um de seus membros, ou mais de um,

189
FREGUESIA..., 1851-1857, f. 75.
111

sucessivamente, de acordo com os critérios do grupo190. O que provavelmente aconteceu no


caso de Francisca e sua mãe, Custodia Maria da Conceição, que no ano de registro do
batizado, em 1847, também já havia adquirido a liberdade, tendo então mãe e filha se juntado
ao pai no mundo dos livres/libertos.
O caso de Francisca, porém, de conseguir a liberdade ainda na pia batismal e formar
uma família legítima livre apresenta-se como um caso isolado. Após a análise dos 504
registros de crianças escravas analisados entre os anos de 1841 e 1862, observamos que 75%
(378 cativos) dos párvulos eram ilegítimos, ou seja, filhos de mães solteiras, que não tiveram
casamentos reconhecidos pela Igreja Católica. Já os filhos legítimos, registrados por pai e
mãe, reconhecidamente casados na Igreja, representavam 25% (122 cativos) do total de
batismo. Entretanto estes dados não podem afirmar que estes núcleos familiares não
convivessem com outros membros da família consanguínea e extensa, como os padrinhos, e
até mesmo para os casos das crianças ilegítimas, ou naturais, não podemos afirmar que elas
não tivessem conhecimento e/ou convívio com a figura paterna no seu dia a dia.

190
SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor. 2011, p. 201.
112

Gráfico 3 - Porcentagem de legitimidade de crianças escravas batizadas na freguesia de


Sant'Ana (1841-1862)

Fonte: Gráfico produzido por Clara Maria da Silva a partir da coleta de informações disponíveis no livro de
batismo da Freguesia de Sant’Ana de São José de Mipibu, 1841-1862. Universo amostral: 504 cativos.

O número de crianças naturais no segmento cativo é uma marca, revelando que


grande parte das crianças era gerada e nascia fora do matrimônio legitimado pela Igreja,
embora pudesse conviver dentro de variados arranjos familiares. De acordo com Ana Silvia
Scott (2020) a variação em relação à legitimidade ou ilegitimidade das crianças cativas estava
condicionada, por exemplo, ao tamanho de cada escravaria: para propriedades com menos
de dez escravos, a ilegitimidade poderia elevar-se a 30% ou mais, assim como, em escravarias
com mais de dez cativos, a legitimidade poderia chegar a até 80%. Como podemos observar
na tabela anexada ao Relatório do Presidente de Província do Rio Grande do Norte, Dr.
Antonio Bernardo de Passos, o qual enviou à Assembleia Legislativa Provincial no dia 04 de
julho de 1854, o número de escravos nos engenhos da cidade de São José de Mipibu e Vila
de Papari, as quais faziam parte do território da freguesia de Sant’Ana, poderiam variar entre
01 (um) e 105 (cento e cinco) escravos:
113

Tabela 5 - Mapa dos engenhos de moendas de ferro e engenhocas da Comarca de São José
de Mipibu e o respectivo número de escravos
SÃO JOSÉ
NOMES DOS MOENDA DE MOENDA DE Nº DE

ENGENHOS FERRO PAO ESCRAVOS
1 Olho d’Agua 1 10
2 Camoropim 1 6
3 Mataquiri 1 14
4 Massimbu 1 3
5 Canadá 1 32
6 Porteiras 1 46
7 São João 1
8 Larangeira 1 12
9 Alagoa do Fumo 1 24
10 Larangeira 1 40
11 Saubé 1 10
12 Mipibú 1
13 Boa Esperança 1
14 Bica 1 6
15 Pirituba 1 8
16 Idem 1 6
17 Curral Novo 1 2
18 Urucutuba 1 3
19 Idem 1 1
20 Defuntos 1 8
21 Urucurá 1
22 Jardim 1 8
23 Bananeira 1 8
24 Idem 1
25 Mendes 1
26 Idem 1
27 Idem 1
28 Bananeiras 1 4
29 Japicanga 1
30 Retiro 1 5
31 Idem 1 4
32 Idem 1 5
VILLA DE PAPARI
NOMES DOS MOENDA DE MOENDA DE Nº DE

ENGENHOS FERRO PAO ESCRAVOS
33 Papari 1 5
34 Pavilhão do Sul 1 29
35 Conceição 1 4
36 Viração 1 7
37 Bellem 1 105
38 Sapé 1 19
39 Jacaré 1 25
40 Zumbi 1 1
41 Sertãosinho 1 2
42 Papari 1 1
43 Idem 1 5
114

NOMES DOS MOENDA DE MOENDA DE Nº DE



ENGENHOS FERRO PAO ESCRAVOS
44 Dendê 1 2
45 Idem 1 1
46 Tororomba 1 1
47 Idem 1 5
48 Mipibú 1 8
49 Golandim 1
50 Curraes 1 8
51 Idem 1 5
TOTAL 18 33 498
Fonte: Tabela produzida por Clara Maria da Silva a partir da apropriação dos dados disponíveis no Relatório
do Presidente de Província do ano de 1854 (RELATÓRIO, 1854, mapa nº 37).

Como indicado na tabela acima, dos 48 engenhos na região que possuíam escravos,
31 deles tinham em sua propriedade até 10 escravos, o que acaba por confirmar a hipótese de
Scott sobre o expressivo número de crianças ilegítimas nos pequenos e médios engenhos.
Apesar do vale do Capió possuir alguns engenhos e engenhocas com números expressivos
de cativos, como os Engenho Belém, Porteiras e Laranjeiras, a maioria contava com números
menores de escravos, o que consequentemente reduzia a diversidade de cativos dentro de
uma mesma propriedade, aumentando as relações entre indivíduos de espaços e status
diferentes, o que pode ser uma das razões para o expressivo número de 75% de crianças
ilegítimas nesta freguesia. Esta era uma sociedade escravista e o reconhecimento de qualquer
tipo de relação entre uma mulher escrava e um homem de mesmo status ou de um status
jurídico diferente poderia ser complicado e complexo.
Para a Paraíba, Solange Rocha (2009) encontra números muito semelhantes aos
nossos: 71,6% de crianças escravas naturais, contra 28,4% de ilegítimos na freguesia de
Livramento; 71% de filhos escravos naturais e 29% de escravos ilegítimos na freguesia de
Santa Rita; e para a capital, na freguesia de Nossa Senhora das Neves, 90,9% de crianças
escravas naturais e 9,1% de filhos escravos ilegítimos191. Estes dados parecidos são fruto de
economias também semelhantes entre as regiões estudados por Rocha na Paraíba,
principalmente as duas primeiras localizadas em regiões rurais, e por nós para São José de
Mipibu: pequenas e médias propriedades de lavoura canavieira onde os escravos produziam
cana-de-açúcar, matéria prima da produção de açúcar, rapadura e aguardente192.

191
ROCHA, Solange Pereira. Gente negra na Paraíba oitocentista. 2009, p. 227, 239 e 249.
192
Ibid, p. 92.
115

Através da análise dos assentos de batizado desta freguesia pudemos observar o


limitado ingresso dos escravizados no universo do casamento formal, que era visível através
dos altos índices de ilegitimidade, mas não podemos negar a presença do casamento entre a
população cativa, em sua maioria de mesmo status social, a qual gerou 25% de crianças
legítimas neste espaço. Apesar de defendermos neste trabalho que o acesso ao casamento
pelos escravizados partia de uma ação destes como sujeitos de suas histórias, atores sociais
de suas vidas, escolha está garantida nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia,
as quais permitiam que os escravos casassem com outras pessoas cativas, livres ou libertas e
seus senhores não poderiam impedir; acreditamos também que esta era uma ação resultado
da somatória de negociações e vontades também dos senhores, que teriam papel importante
na realização ou não do casamento consagrado na igreja. Afinal de contas estamos tratando
de uma sociedade escravista em que os sujeitos escravizados eram propriedade de um senhor.
Slenes corrobora esta afirmativa quando diz que:

Não há dúvida de que a família cativa forjada nesse embate teve uma certa utilidade
para os senhores (...) No mínimo, a formação de uma família transformava o cativo
e seus parentes em ‘reféns’. Deixava-os mais vulneráveis às medidas disciplinares
do senhor (por exemplo, à venda como punição) e elevava-lhes o custo da fuga,
que afastava o fugitivo de seus entes queridos e levantava para estes o espectro de
possíveis represálias senhoriais (...) Ao contrário, ao abrir um espaço para o escravo
criar uma ‘vida’ dentro do cativeiro, a estabilidade torna mais terrível ainda a
ameaça de uma eventual separação de parentes por venda193.

A instituição da família escrava era, portanto, ao mesmo tempo estratégica para os senhores
e espaço de autonomia para os escravizados. Constante ambiente de dicotomia, como todas
as relações das sociedades escravistas.
As famílias escravas eram fundamentais para a constituição da comunidade escrava,
mas apesar de apoiar-se fortemente no parentesco, não se restringia apenas ao laço sanguíneo,
indo além dos limites jurídicos e espaciais das fazendas, lugares e engenhos – o que pode ser
provado pela grande presença de padrinhos e madrinhas oriundos de lugares distintos
daqueles dos batizandos e insinuado pelos altos índices de ilegitimidade da escravaria.
A ilegitimidade não era uma característica majoritária da comunidade escrava.
Embora ainda não tenha sido possível uma mensuração exata de um padrão colonial e
imperial de ilegitimidade, é cada vez maior a convicção, entre os especialistas, da sua

193
SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor. 2011, p. 124.
116

significativa recorrência entre a população livre194. Apesar dos esforços da Igreja Católica
em pregar o Evangelho e incentivar os sacramentos, principalmente o batismo e o
matrimônio, esta instituição não conseguia concorrer com os costumes sociais das relações
ilegítimas dos casais, fossem eles livres e/ou escravos.
Até a publicação da Lei nº 2.040 de 28 de setembro de 1871, conhecida como “Lei
do Ventre Livre”, a qual declarava em seu primeiro artigo que todos os filhos de mulheres
escravas que nascessem no Império a partir da data desta lei seriam considerados de condição
livre, o ventre determinava a condição da criança, a não ser no caso das crianças escravizadas
que fossem alforriados na pia batismal, gratuitamente, condicionalmente ou por venda.
Assim, no momento da análise dos registros de batismo das crianças cativas da freguesia de
Sant’Ana neste trabalho, levamos em consideração não apenas a indicação da condição
escrava nas notas de averbação presentes ao lado dos registros nos livros de batismo, as quais
aparecem escritos como “P. Cap”, abreviação de “preto e/ou pardo cativo”; “P. Escr.”,
abreviação de “preto e/ou pardo escravo”; e “P. P.”, indicadores diretos da condição da
criança. Mas também, notaremos nas análises que o número de batismos é igual ao número
de mães escravas, pois a condição jurídica da criança seguia a da mãe.

194
FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto. A paz das senzalas. 2017, p.122.
117

Gráfico 4 – Porcentagem da condição jurídica da mãe das crianças escravas na freguesia de


Sant’Ana (1841-1862)

Fonte: Gráfico produzido por Clara Maria da Silva a partir da coleta de informações disponíveis no livro de
batismo da Freguesia de Sant’Ana de São José de Mipibu, 1841-1862. Universo amostral: 504 registros.

De todos os registros analisados apenas em 3 casos as crianças são consideradas escravas,


mas as mães são “livres”. Quase a totalidade das mães presentes nos registros são escravas,
98% (495 mães), dado anteriormente previsto por nós, visto que até 1871 toda criança que
nascia de ventre escravo também escravo era.
Principalmente nos registros que contém a indicação “P.P.” tal posicionamento foi
fundamental, porque não há abreviação direta da condição, mas sim apenas da qualidade da
criança. Encontramos, no entanto, casos em que o pai é escravo e a mãe é livre/liberta. Neste
caso as crianças como provinham de ventre livre também nasciam com tal condição, mas não
significava que a escravidão era algo muito distante de sua realidade. Este foi o caso de Jozé
e Joaquim, ambos filhos legítimos batizados no ano de 1855, como demonstram os seus
registros:

Aos vinte dois de Julho de mil oitocentos cincoenta e cinco, nesta Matris de
Sant’Anna baptisei e pus os Santos Oleos a Jozé nascido a seis de Julho e filho
legitimo de Vericimo, escravo de Luiz José da Costa Arantes, e de Anna Joaquina
de Souza, liberta, naturaes desta Freguesia, e moradores nesta Cidade. Forão
padrinhos João Luis Pereira, casado, e Jeronima Ferreira Lustoza, viúva. Do que
118

mandei fazer este assento que assigno. Gregorio Ferreira Lustosa, Parocho
Collado195.

Aos vinte seis de Agosto de mil oitocentos cincoenta e cinco, nesta Matris de
Sant’Ana baptisei e pus os Santos Oleos a Joaquim, nascido a dez deste mês, e filho
legitimo de Antonio, escravo do Capitão João Duarte da Silva, com sua mulher
Rita Anna Joaquina, naturaes nesta Freguesia, onde morão. Forão padrinhos o
Professor José Ribeiro Dantas, e sua filha Maria Carolina de Aguiar Dantas. Do
que mandei fazer este assento, que assigno. Gregorio Ferreira Lustosa, Parocho
Collado196.

No caso de José, o seu pai, Vericimo, era escravo de Luiz José da Costa Arantes, e sua mãe
era liberta, aparecendo com nome e sobrenome, Anna Joaquina de Souza, ambos naturais da
Freguesia de Sant’Ana. A partir apenas desta fonte não podemos determinar como a mãe de
Jozé conseguiu a liberdade, porém compreendemos que conquistar a alforria era um dos
objetivos máximos dos escravizados, e talvez por este motivo tenham escolhido padrinhos
livres para o seu filho recém-nascido, a fim de poder estabelecer laços com o mundo dos
livres. Joaquim, batizado na mesma Matriz pouco mais de um mês depois também possuía
uma situação parecida com a de José, era filho de Antônio, escravo do Capitão João Duarte
da Silva com a livre/liberta, a condição não é determinada no registro, Rita Anna Joaquina,
ambos desta mesma Freguesia. Escolhem como padrinhos da criança figuras de renome da
sociedade de São José de Mipibu, o Professor José Ribeiro Dantas e sua filha Maria Carolina
de Aguiar Dantas.
Infelizmente não pudemos analisar a diferença da classificação das crianças entre
pardas e pretas, procurando compreender qual o padrão utilizado pelos padres no momento
do registro para determinar a qualidade das crianças. Isto porque, ao longo dos registros
analisados, o vigário geral, padre Gregório Ferreira Lustosa, utiliza apenas das abreviações
“P. P.”; “P. Cap.”; e “P. Escr.”, nas notas de averbações laterais para identificar a cor e
condição da criança escravizada batizada, em nossa análise como abreviação para: “preto
preto”, “pardo pardo”, “preto pardo” ou “pardo preto”; “preto captivo” ou “pardo captivo”;
e “preto escravo” ou “pardo escravo”, respectivamente. Pela abreviação “P.” não podemos,
portanto, concluir se ele está classificando o ingênuo como “preto” ou “pardo”, e ao longo
de todo o período de análise dos livros de batismo não encontramos a descriminação da cor
das crianças pretas e/ou pardas sem ser por abreviação em nenhum momento. Para classificar

195
FREGUESIA..., 1851-1857, f. 97.
196
FREGUESIA..., 1851-1857, f. 99.
119

as demais crianças batizadas como brancas, pretas/pardas (livres ou libertas) ou índias o


eclesiástico utiliza também as abreviações “B.”, “P.” e “I.”, por vezes escrevendo por extenso
em um ou outro registro o nome “Índio” na nota de averbação ao lado do registro.
Este padrão de abreviação quanto a cor dos párvulos acabou diminuindo nosso
material de análise quanto ao número de crianças pretas e pardas nascidas na freguesia.
Porém, por outro lado, nos fez constatar que de acordo com o mesmo eclesiástico todas as
crianças escravas nascidas na região eram pretas ou pardas, ou seja, pelo menos uma das
pessoas presente no registro era preta ou parda. Esta hipótese é reforçada principalmente
quando observamos a classificação “P. P.” adotada para algumas crianças escravas. Não há
um padrão recorrente para aqueles que receberam tal denominação nas notas de averbação
lateral, havendo casos de crianças naturais e legítimas (um dos pais podendo ser escravo,
livre ou liberto) sendo registradas de tal maneira. Acreditamos, portanto, que tal abreviação
pode estar se referindo a mais de uma pessoa no registro ser preta ou parda, seja, filho e mãe,
pai e mãe ou pai e filho, como observamos nos seguintes registros:

354 Manoel P. e P. - Aos vinte e nove de Outubro de mil oitocentos cincoenta e


cinco em Desobriga no Senhá baptisei solenemente a Manoel nascido a quatorze
de Maio deste anno, e filho legitimo de Manoel Antonio de Jezus, liberto e Monica
Maria de Jezuz, moradores desta Freguesia, onde morão na Varzea Redonda. Forão
padrinhos Miguel Ribeiro Dantas Junior e sua mulher Dona Maria Argelina
Ribeiro. Do que mandei fazer este assento que assigno. Gregorio Ferreira Lustosa,
Parocho Collado.

89 Manoel P. e P. - Aos trinta de Março de mil oitocentos cincoenta e seis nesta


Matriz de S. Anna baptisei solemnimente a Manoel nascido a vinte de Fevereiro
deste anno, e filho legitimo de Luiz, escravo de Bernardo Ferreira da Silva e de
Maria Luiza da Conceição, liberta, naturaes desta Freguesia, onde morão na Pituba:
Forão padrinhos Antonio Ferreira da Silva, solteiro, e Josefa Germana da Silva,
casada. Do que mandei fazer este assento que assigno. Gregorio Ferreira Lustosa,
Parocho Collado.

261 Maria P. e P. - Aos vinte e dois de Setembro de mil oitocentos cincoenta e sete
nesta Matriz de S. Anna o Reverendo Joaquim Severiano Ribeiro Dantas, de minha
licença baptisou solemnimente a Maria, nascida a tantos de Março deste anno, e
filha natural de Isabel escrava de Antonio Ribeiro de Paiva, natural desta Freguesia,
onde mora em S. Cruz: forão padrinhos Ignacio Platino de Goes Lira, casado e
Candida Maria da Conceição, solteira. Do que mandei o presente, que assigno.
Gregorio Ferreira Lustosa, Parocho Collado.

Nos registros pelo menos um dos pais pertenceu ou pertence ao mundo dos escravos (pai
liberto; pai escravo e mãe liberta; e mãe escrava, respectivamente), que poderiam possuir a
120

cor preta e/ou parda. Mesmo no caso dos dois Manoeis, não sendo escravos, pois a mãe do
primeiro é livre e do segundo, liberta, os meninos foram classificados como “P. P.”,
provavelmente por terem carregado do pai a cor preta/parda.
De acordo com Larissa Viana (2007)197, havia uma pluralidade de significados em
torno do termo “pardo”. Enquanto o termo “preto”, segundo o dicionário compilado em 1832
por Luiz Maria da Silva Pinto198, significava claramente o homem negro, o termo “pardo”
remetia aquele “de côr entre branco e preto”, era o chamado “mulato”. Ainda para o século
XVIII, a historiadora Sheila Faria (1998)199 propôs que já nesta época o termo “pardo”
poderia possuir uma dupla significação, tanto indicando a miscigenação quanto se referindo
a filhos ou descendentes de crioulos. Além de descrever os mestiços, portanto, o termo
“pardo” poderia sinalizar para um arranjo social no qual os descendentes de africanos,
especialmente quando vivendo em liberdade, tendiam a ser classificados nos registros
paroquiais como pardos ou pardas, mesmo que não fossem mestiços.
A escolha, portanto, pela classificação dos negros cativos desta freguesia como
“pardos” poderia significar que estes indivíduos eram descendentes de africanos e/ou de
negros já nascidos no Brasil. Isto também explicaria a ausência de africanos nos registros
paroquiais, o que pode fundamentar a nossa hipótese, assim como Solange Rocha observou
para a Paraíba, que haveria um incentivo dos senhores de engenho para a reprodução dos
negros em suas propriedades como uma estratégia de reposição de mão de obra escrava,
beneficiando-se desses nascimentos para manter o sistema escravista, assim como minimizar
a alegada falta de mão de obra200. Tanto que observamos que após a aprovação da lei Eusébio
de Queirós em 1850 há um crescimento no número de batismo, e, portanto, de nascimento,
de crianças na freguesia de Sant’Ana, resultado provavelmente desta estratégia de
manutenção da mão de obra negra escrava na região. Como o Rio Grande do Norte não
possuía uma economia de exportação significativa economicamente em âmbito imperial, a
reprodução natural nas propriedades escravistas seria uma maneira de suprir a necessidade
de mão de obra escrava, até porque tais proprietários, talvez não teriam recursos financeiros

197
VIANA, Larissa. O idioma da mestiçagem. 2007.
198
PINTO, Luiz Maria da Silva. Diccionario da Lingua Brasileira por Luiz Maria da Silva Pinto, natural
da Provincia de Goyaz. Na Typographia de Silva, 1832.
199
FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento. 1998.
200
ROCHA, Solange Pereira. Gente negra na Paraíba oitocentista. 2009, p. 136.
121

suficientes para comprar africanos, principalmente após a lei anti tráfico que aumentou
significativamente o valor do negro no mercado. Desta forma, estamos nos debruçando sobre
a análise de uma região que escravizou mulheres e homens pretos e pardos nascidos no Brasil,
descendentes dos negros forçosamente trazidos da África para este território e tornados
escravos nestas terras. São os filhos, netos e bisnetos dos negros africanos.
O trabalho de Neves (2020) corrobora esta nossa hipótese, tendo em vista que no
século XVIII a autora, ao analisar a qualidade e a condição jurídica dos nubentes nos
casamentos de escravos da freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, entre 1727 e 1760,
indica para a presença de escravos de qualidades africanas como: preto, gentio da Guiné,
gentio da Costa da Mina, gentio da Angola e gentio Courana, casando-se na capela da missão
de Nossa Senhora do Ó de Mipibú; e gentio da Guiné, pretos e gentio de Benguela, casando-
se na capela da missão de Santa Ana201. Possivelmente as pretas matriarcas das famílias
escravas de pretos/pardos que encontramos no século seguinte e estamos analisando neste
trabalho.
Quanto a condição jurídica do pai das crianças escravizadas o quadro é bem
diferente ao comparado com a condição das mães. Primeiramente, como observamos
anteriormente, o fato de haver uma significativa ilegitimidade de crianças na freguesia, 75%,
já nos indica que não há a indicação da paternidade nos assentos de batismo. Isto reflete no
número de 76% de registros (382 registros) em que não constam o nome do pai.

201
A autora sinaliza para a presença de nubentes escravos de outras qualidades também se casando na capela
da missão de Nossa Senhora do Ó de Mipibu, como: tapuias, crioulos, nação Janduí e pardos; e gentio da Terra
e cabras, casando-se na capela da missão de Santa Ana. O total de noivos escravos que realizaram matrimônio
no período estudado nesta primeira capela foi de 25 (vinte e cinco), sendo 16 (desesseis) indivíduos escravos
africanos; enquanto que na segunda, os valores foram de 20 (vinte) indivíduos escravos e 12 (doze) escravos
africanos. NEVES, Danielle Bruna Alves. Cristianização espacial e estratégias matrimoniais de escravos
na capitania do Rio Grande do Norte. 2020, p. 141.
122

Gráfico 5 – Porcentagem da condição jurídica do pai das crianças escravas na freguesia de


Sant’Ana (1841-1862)

Fonte: Gráfico produzido por Clara Maria da Silva a partir da coleta de informações disponíveis no livro de
batismo da Freguesia de Sant’Ana de São José de Mipibu, 1841-1862. Universo amostral: 504 registros.

Porém, se analisarmos apenas os registros em que as crianças são consideradas


legítimas, ou seja, filhos de pais casados na Igreja Católica, em 89% dos registros (109
registros) a figura paterna possui a mesma condição social da mãe: são escravos. Este dado
revela-nos, portanto, que quando as mulheres escravas se casavam diante da Igreja havia uma
predominância pela escolha de parceiros de mesmo status social que o seu e provavelmente
moradores se não na mesma propriedade que a sua, mas pelo menos da mesma freguesia.
123

Gráfico 6 – Porcentagem da condição social do pai das crianças legítimas escravas na


freguesia de Sant’Ana (1841-1862)

Fonte: Gráfico produzido por Clara Maria da Silva a partir da coleta de informações disponíveis no livro de
batismo da Freguesia de Sant’Ana de São José de Mipibu, 1841-1862. Universo amostral: 122 registros.

Este é o caso do preto Francisco nascido a 27 de abril de 1844, filho legítimo de


Francisco e Thereza, escravos do Tenente Estevão José Dantas morador no Olho d’Água. A
criança, filha de pais cativos, foi batizada no dia 25 de agosto do mesmo ano na Igreja Matriz
da cidade e teve como padrinhos o livre/liberto Florencio Francisco, casado, e Custódia,
escrava do mesmo Tenente Estevão José Dantas202. Temos, então, batizando, pais e madrinha
com a mesma condição social escrava e de propriedade do mesmo senhor. Talvez a escolha
por um padrinho livre e/ou liberto neste caso fosse uma forma de aproximar esta criança do
mundo dos livres, tendo neste outro espaço social um protetor. Quatro anos depois, em 15 de
dezembro de 1848, Francisco e Thereza batizam mais um de seus filhos: a preta Sebastiana.
Novamente, eles optam pela escolha de um padrinho livre/liberto, Manoel Rodrigues da
Costa, representado no ato do batismo por seu procurador Francisco Ferreira de Meneses, e
por uma madrinha escrava, Romana, de propriedade do mesmo senhor, o Tenente Estevão

202
FREGUESIA..., 1843-1848, f. 51.
124

José Dantas203. Observamos, portanto, o exemplo da existência e estabilidade da família de


Francisco e Thereza, que provavelmente procuram no poder de escolha dos padrinhos de seus
filhos ampliarem seus laços sociais, tanto com o mundo dos escravos quanto com o mundo
dos “livres”.
Encontramos casos também de pais escravos de donos diferentes, indicando a
circularidade dos escravos dentro da freguesia, desconstruindo a ideia de que os cativos
viviam trancados em senzalas sem possibilidade de comunicação e circulação com o mundo
exterior. Era tão possível tal circulação, que no dia 4 de outubro de 1859 no distrito de
Coqueiros o vigário da freguesia batiza Claudino, nascido a 26 de fevereiro do mesmo ano,
filho legítimo de Joaquim, escravo de Joaquim Francisco de Vasconcellos, e Antonia, escrava
de Bernardino José da Rocha, ambos senhores com propriedades na dita freguesia. Na
ocasião, são escolhidos pelos pais do menino como seus padrinhos o casal Manoel Gomes da
Cruz e sua mulher Maria Francisca de Jesus, “livres” 204.
Apesar de termos encontrado apenas 3 casos de crianças escravas que possuíam
mães livres, como indicado no gráfico 3 neste capítulo, trazemos como elucidação neste
momento, um destes casos encontrados em um registro do ano de 1846, em que a mãe é
“livre” e o pai escravo. Foi este o caso da preta Francelina, nascida a 4de março de 1846 e
batizada em desobriga em 26 de setembro pelo pároco Gregório Ferreira Lustosa. Filha
legítima de Francisco de Tal, escravo de Dona Anna Francisca de Sales, e de Vicência Maria
da Conceição, tem como seus padrinhos Manoel Ignacio Rabelo e sua filha Josefina Maria
Veniciana205. Ainda que este seja um caso quase que inusitado, observamos nos registros
paroquiais que quando os pais eram casados na Igreja, havia uma predominância pela escolha
de mulheres de mesma condição social. Reafirmamos, porém, mais uma vez, que a
inexistência do nome paterno no registro das crianças escravas não significava
necessariamente que as mesmas não convivessem com o pai, pois, de acordo com as
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, apenas quando homem e mulher fossem
casados na Igreja Católica, considerados casamentos legítimos, o nome do pai poderia
aparecer no registro de batismo. Então devemos considerar que muitas destas crianças
ilegítimas presentes em nossos dados são frutos de relações consensuais entre mulheres

203
FREGUESIA..., 1843-1848, f. 237.
204
FREGUESIA..., 1857-1862, f. 63.
205
FREGUESIA..., 1843-1848, f. 142.
125

escravas e homens de diferentes posições sociais, porém relações não reconhecidas,


abençoadas e legitimadas pela Igreja. Tanto sabemos que as crianças poderiam conviver com
o pai mesmo sendo filho natural que nos casos indicados mais acima neste capítulo de alforria
de crianças na pia batismal, em sua maioria as alforrias foram pagas pela figura paterna.
Esta pesquisa assume a linha de abordagem na qual se procura evidenciar a ação dos
indivíduos comuns no processo das mudanças sociais, procurando ir além da perspectiva
senhorial. Buscamos entender a lógica dos escravos como seres complexos que criaram
estratégias para sobreviverem num mundo demarcado por mecanismos de dominação e
exploração, manifestando suas vontades e tentando interferir no rumo de suas vidas. As
transgressões não passavam só pela rebeldia coletiva de ataque ao sistema; foram
desenvolvidas também na vida cotidiana, no interior e nas frestas do sistema, passando tanto
pela resistência individual quanto pela “acomodação” para criarem novas práticas e condutas
nas relações com seus senhores e os outros grupos sociais com os quais conviviam. Portanto,
procuramos recuperar histórias de mulheres e homens escravizados como seres humanos,
dotados de subjetividades, que lutaram de variadas maneiras contra a coisificação social e a
desumanização.
Como analisamos neste capítulo e aprofundaremos no próximo também, a
mobilidade espacial, a família nuclear e a rede de relações pessoais e familiares a ela ligada
permanecem essenciais na experiência, tanto dos homens livres quanto dos homens escravos,
desde o período colonial. A obtenção de maiores níveis de autonomia dentro do cativeiro
parece ter dependido, em grande parte, das relações familiares e comunitárias que
estabeleciam com os outros escravos e homens livres da região206. As relações verticais,
principalmente em se tratando de uma sociedade altamente hierarquizada como a escravista,
eram fundamentais, e a instituição familiar era importante para a construção de tais laços:

Mesmo para o estabelecimento de laços de solidariedade vertical mais


permanentes, a formação de uma família ou o pertencimento a uma já existente era
precondição, na medida em que as relações de solidariedade vertical culturalmente
sólidas e não simplesmente táticas eram em geral estabelecidas entre famílias e não
entre indivíduos207.

206
MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista (Brasil, século
XIX). 3 ed rev. Campinas: Editora da Unicamp, 2013. p. 75.
207
Ibid.
126

Por isso, a seguir, investigaremos as relações entre as famílias escravas e os padrinhos


espirituais, em geral pertencentes ao mundo dos “livres”, compreendendo a escolha destas
figuras como uma estratégia fundamental dos cativos na construção e fortalecimento de suas
relações sociais.
No terceiro capítulo debruçaremos nossos estudos sobre o perfil dos padrinhos
espirituais escolhidos pelas famílias cativas nos atos de batismo. A fim de compreender tal
escolha como uma estratégia de sobrevivência e territorialidade dos escravos dentro do
sistema escravista, analisaremos os perfis das famílias de duas propriedades importantes do
território da freguesia: o engenho Porteiras e o engenho Olho d'água.
127

4 FAMÍLIAS ESCRAVAS E O COMPADRIO COMO ESTRATÉGIA DE


CONSTRUÇÃO DA TERRITORIALIDADE NEGRA: ESTUDO DE CASO DOS
ENGENHOS PORTEIRAS E OLHO D’ÁGUA

Neste capítulo, procuraremos combinar as metodologias quantitativas e os estudos


de trajetórias de indivíduos e famílias. Buscamos rastrear através do nome, nos registros de
batismo da freguesia de Sant’Ana, famílias cativas que viveram neste espaço entre os anos
de 1841 e 1862, buscando compreender o perfil das mesmas e os padrões de escolha dos
padrinhos. Debruçamo-nos, portanto, em duas propriedades da região do vale do Capió: o
Engenho Porteiras, de propriedade do Capitão João Duarte da Silva e o Engenho Olho
d’Água, de propriedade do Capitão Miguel Antônio Ribeiro Dantas.
Além da dimensão de análise da história demográfica, utilizaremos também neste
capítulo, uma metodologia de análise das fontes paroquiais que se inspira na abordagem da
Micro História italiana, pois ela nos auxiliará a analisar as trajetórias familiares e das redes
que entrelaçaram os distintos indivíduos na sociedade. Essa proposta de redução da escala de
abordagem procura fazer sobressair o comportamento social dos atores históricos. É a
tentativa de dar um rosto aos números coletados e analisados no capítulo anterior,
demonstrando que as mulheres e homens escravizados que viviam na freguesia de Sant’Ana
de São José de Mipibu eram sujeitos de ação, com nomes, famílias, ligações afetivas
espirituais e de amizade; que estes indivíduos circulavam pelos mais diferentes espaços além
da senzala, muito mais do que meras propriedades materiais.
De acordo com Ana Silvia Scott (2014)208 a Micro História possibilita através dos
jogos de escala avançar nas discussões relativas às estratégias familiares e às redes sociais
para as sociedades do passado. Esta perspectiva metodológica apresenta-se como um campo
rico de investigação, especialmente se admitirmos que toda a ação social é o resultado de
escolhas, de decisões do indivíduo e do grupo familiar, por isso mesmo implicando numa
constante negociação e, porque não dizer, manipulação, diante de uma realidade normativa
que oferece muitas possibilidades de interpretações e liberdades pessoais.

208
SCOTT, Ana Silvia Volpi. “Descobrindo” as famílias no passado brasileiro: uma reflexão sobre a produção
historiográfica recente. 2014.
128

Ao admitirmos que a negociação e a manipulação faziam parte do cotidiano social


e familiar, um tema de relevo passa a ser justamente a análise das escolhas e das estratégias
de manobra que são utilizadas pelos indivíduos e famílias para lidar com os sistemas
normativos existentes na sociedade oitocentista, aproveitando-se de suas brechas e/ou
contradições. Debruçar-nos-emos, neste capítulo, na análise das escolhas dos padrinhos de
batismo pelos pais cativos no ato do sacramento do batismo como uma estratégia de
construção da territorialidade negra no espaço da freguesia de Sant’Ana de São José de
Mipibu.

4.1 A figura da família e dos padrinhos na sociedade Oitocentista


No século XIX os batismos propiciavam a união entre famílias e indivíduos.
Compadre, de acordo com o Dicionário da Língua Brasileira publicado no Oitocentos, era
“o padrinho do filho, o qual referindo-se aos pais, é compadre do pai e da mãe”, era “estar
em boa amizade” com alguém”209. É interessante o dicionarista fazer esta associação de
amizade entre o compadre e os pais e/ou responsáveis de uma criança, pois demonstra que
esta era uma relação, diferente dos laços consanguíneos, de escolha feita no ato do batismo
pelos pais e/ou responsáveis ao escolher o padrinho e a madrinha de seu filho, seus
compadres. Por significar um “renascimento espiritual”, os batizandos tinham com os
padrinhos um novo vínculo filial. O batismo implicava, portanto, na constituição de laços
com uma nova família espiritual que influenciava diretamente a carnal. O compadrio era
construído e produzido dentro da Igreja Católica entre indivíduos, mas era levado para fora
dessa instituição formal e ultrapassava os limites das relações espirituais e eclesiásticas,
sendo diretamente projetada e praticada no ambiente social.
De acordo com Venâncio (2009)210 o compadrio era a solução teológica para as
amizades e relações sociais receberem o crivo normativo da Igreja Católica. O laço selado na
pia batismal permitia a criação da amizade ritualizada, um tipo de relação teologicamente
sacralizada, sujeita a várias formas de controle e condenação. Nesta sociedade patriarcal e

209
PINTO, Luiz Maria da Silva. Diccionario da Lingua Brasileira por Luiz Maria da Silva Pinto, natural
da Provincia de Goyaz. 1832, p. 254.
210
VENÂNCIO, Renato Pinto. Redes de compadrio em Vila Rica: um estudo de caso. In: OLIVEIRA, Mônica
Ribeiro de; ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de. Exercícios de micro-história. Rio de Janeiro: Editora FGV,
2009.
129

hierarquizada isso permitia que homens e mulheres estabelecessem convívio e relações sem
que tal gesto fosse estigmatizado socialmente.
Além deste sentido espiritual pautado nas constituições católicas, os batismos eram
práticas adotadas com fins específicos, nos séculos XVIII e XIX, pelas elites e por populares
(livres, libertos e escravos). Era a porta de entrada da Igreja Católica e uma sociedade que
não cuidasse de batizar suas crianças nem poderia ser considerada cristã. Por isso havia um
grande cuidado das autoridades eclesiásticas em garantir que este sacramento acontecesse.
Esta é uma das razões também que levam a que os registros de batismo sejam fontes
importantes para se estudar a sociedade oitocentista.
Distintos motivos e sentimentos poderiam estar envolvidos na escolha dos padrinhos
e na aceitação de ser compadre de outrem, mas também os batismos poderiam ser usados
estrategicamente por escravos na freguesia de Sant’Ana de São José de Mipibu. Estamos
entendendo aqui como estratégia a seleção ou a aceitação de uma pessoa e não outra para ser
compadre/comadre, esta relacionada a uma racionalidade empregada para atingir um ou
vários objetivos previamente traçados, que poderiam ser imediatos, a médio ou longo prazos.
O compadrio, como um efeito do sacramento do batismo, é aqui entendido como elemento
importante na constituição e/ou no reforço de laços de sociabilidade na sociedade escravista.
Os assentos de batismo são o objeto privilegiado de nosso estudo, pois nos informam
sobre o comportamento de pessoas escravizadas em uma área distante dos centros de
governos imperial, tendo uma produção econômica de pequeno e médio porte, diferente dos
locais de grandes plantations que exportavam açúcar para outras localidades. Os registros
também ilustram sobre as atitudes desse grupo social perante um sacramento católico, bem
como as estratégias que escravizados buscaram para (sobre)viver ou atingir determinados
objetivos no regime escravocrata. Ainda mais que estamos retratando uma parcela da
população, descendente de africanos, que não tem no catolicismo as suas bases sociais, e,
portanto, não tem o Cristianismo como algo completamente natural, precisando, muitas
vezes, aderir a esta religião muito mais como requisito de reconhecimento e alavanca social,
do que bem estar espiritual.
As formas de sociabilidade são também possíveis de ser compreendidas, pois os
escravizados se relacionam com pessoas de diferentes segmentos sociais que integram uma
130

freguesia que tem/teve uma expressiva população nativa211, já que no século XVIII foi um
aldeamento indígena, mas também com a presença de brancos e negros.
Acreditamos que a maioria da escravaria teve seus filhos levados a receber o
sacramento do batismo, o que garantia a inserção no batizando no reino do céu e na sociedade
da freguesia. Deixar de ser pagão traria benefícios celestiais e terrenos, dentre os quais a
utilização estratégica do sacramento para fins que visassem à aproximação ou à
intensificação de relações entre indivíduos de uma mesma ou de distinta parcela social.
O viajante inglês Henry Koster publicou em meados do ano de 1816 os relatos da
viagem que fez alguns anos antes pelo norte do Brasil – atualmente correspondente a região
Nordeste – detalhando em Viagem ao Nordeste do Brasil os costumes, lugares e cultura dos
locais em que passou, inclusive sobre os escravizados. Segundo o autor, que chegou depois
a morar em Pernambuco, as cerimônias de batismo eram fundamentais para os escravizados
e os recém-chegados serem aceitos e conseguirem se inserir na sociedade da época:

O próprio escravo deseja ser cristão porque seus companheiros em cada rixa ou
pequenina discussão com ele, terminam seus insultos com oprobriosos epítetos,
com o nome de pagão! O negro não batizado sente que é um ser inferior e mesmo
não podendo calcular o valor que os brancos dão ao batismo, deseja que o estigma
que o mancha seja lavado, ancioso de ser igual aos camaradas. (...) Os escravos não
são convidados para o batismo. Seu ingresso na Igreja Catolica é tratado como uma
cousa em curso. Não são considerados como membros da sociedade mas como
animais brutos, até que sejam levados em massa a confessar seus pecados e receber
os sacramentos212.

Receber o sacramento do batismo, seja para as crianças ou adultos africanos recém-chegados


ao Brasil, era a forma de conseguir serem observados não apenas como objeto ou animais
brutos, mas também como seres cristãos membros da sociedade.
Redigia o título XVIII das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia acerca
de quantos e quais devem ser os padrinhos do batismo e do parentesco espiritual que
contraem com os batizandos e suas famílias. No batismo não deveria haver mais que um só

211
Ao longo de nossa análise nos registros de batismo da freguesia de Sant’Ana de São José de Mipibu, no
período entre 1841 e 1862, foi pouco expressivo o número de crianças identificadas como indígenas que
apareceram nos assentos batismais. Esta mostra-se, portanto, como uma importante possibilidade de pesquisa
futura, a fim de compreender o apagamento/silenciamento dos povos originários desta região, que no século
XVIII apresentam-se de forma tão expressiva na região que houve a criação da Missão do Mipibu, e em 1736
a elevação para Aldeamento, como analisamos no primeiro capítulo desta dissertação.
212
KOSTER, Henry. Viagem ao Nordeste do Brasil. 1942, p. 499.
131

padrinho e uma só madrinha, não se admitindo dois padrinhos ou duas madrinhas; os quais
devem ser nomeados pelo pai, mãe ou pessoa responsável pela criança. Reafirmam, ainda,
que os párocos da freguesia não deveriam tomar por outros padrinhos se não aqueles que os
responsáveis escolhessem, devem estes já serem batizados, o padrinho não ser menor de
quatorze anos e a madrinha de doze anos. Não poderia ser padrinho o pai ou mãe do
batizando, nem também infiéis, hereges, pessoas excomungadas, os interditos213, os surdos
ou mudos, e os que ignoram os princípios da Santa Fé; nem Frade, Freira, Conego Regente
ou outro qualquer religioso professo de religião aprovada (exceto o das Ordens Militares) por
si, nem por procurador214.
O que observamos nos assentos, entretanto, era a possibilidade de escolha de apenas
um padrinho para o batizando, o que apesar de não estar previsto nas Constituições acontecia
na prática. Casos como o do escravo Severino, batizado aos 2 de outubro de 1845 na Igreja
Matriz de São José de Mipibu, com 3 meses de vida, filho natural de Manoela, escrava de
Isabel Maria da Conceição, viúva, moradora no Cobé. A mãe, nesta ocasião, escolheu apenas
como padrinho de seu filho o “livre” Manoel Timotheo Ferreira Lustoza215, e assim como
neste caso e em outros que encontramos ao longo dos anos analisados, não há nenhum tipo
de impedimento por parte do vigário da freguesia na escolha de apenas um padrinho para a
criança.
Assim que declarados os padrinhos no ato do batismo, eles passam a ser

fiadores para com Deus pela perseverança do batizando na Fé, e como por serem
seus pais espirituais, tem obrigação de lhes ensinar a Doutrina Cristã e bons
costumes. Também lhes declare o parentesco espiritual, que contrairão, do qual
nasce impedimento, que não só impede, mas dirime o Matrimônio: o qual
parentesco conforme a disposição do Sagrado Concilio Tridentino, se contrai
somente entre os padrinhos, e o batizando, e seu pai, e mãe; e entre o que batiza e
o batizando, e seu pai, e mãe; e o não contrai os padrinhos entre si, nem o que batiza
com eles, nem se estende a outra alguma pessoa além das sobreditas 216.

213
“Censura da Igreja, pela qual é proibido o exercício das funções públicas eclesiásticas” (PINTO, 1832,
p.620), sendo este interdito “geral para todos os lugares; ou local, para um só lugar; ou pessoal, sendo contra
uma, ou mais pessoas” (SILVA, 1789, p. 981).
214
VIDE, D. Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. 1853 [1720], p. 26.
215
FREGUESIA..., 1843-184, f. 101.
216
VIDE, D. Sebastião Monteiro da. Op. Cit., p. 26-27.
132

Os padrinhos, ou compadres, passam a ser, portanto, protetores e pais espirituais dos seus
batizandos, devendo guiá-los no caminho do catolicismo e na perseverança da fé. Havia a
contração de parentesco não apenas com a criança que estava sendo apadrinhada, mas
também com o pai e mãe do párvulo, não podendo haver, no futuro, por exemplo, laços
matrimoniais entre padrinhos, batizandos e seus pais. Porém, não se contraía parentesco entre
padrinho e madrinha. Estavam, então, ligados por laços espirituais para sempre, perante a
Igreja Católica e a sociedade cristã, padrinhos, criança e seus pais.
Deste modo, acreditamos que as escolhas dos padrinhos pelos pais dos batizandos
não eram à toa, sem critérios. Aqueles que seriam os segundos pais de seus filhos deveriam
ser capazes de cuidar dos pequenos, caso algo lhes acontecesse. Embora submetidos a
estratégias de controle dos senhores, determinadas preferências de escolha de suas vidas,
como eleger os padrinhos de seus filhos e criar/manter laços parentais e sociais, poderiam ser
decisões tomadas por estas mulheres e homens negros escravizados. Partindo desse princípio,
consideramos que os senhores não designavam os padrinhos aos filhos dos escravos, mas que
essa era uma opção deles, apesar de não descartar também a possibilidade de influência da
opinião dos senhores sobre a escolha dos compadres dos seus cativos. Cremos que era uma
decisão dos pais cativos, como previam as Constituições Primeiras, mas não necessariamente
os senhores estariam isentos de certa parcela de influência nesta decisão.
É importante compreender também que os laços conectavam não apenas padrinhos
e afilhados, mas as famílias de ambas as partes. Eleger padrinhos livres (abastados ou pobres)
seria estratégico para alguns escravos estreitarem ou construírem laços de amizades, quando
não, para obter algum benefício/proteção. Esse laço “significava privilégios e deveres de
ambas as partes, os quais eram reconhecidos através da obediência, fidelidade e reverência
do afilhado, em contrapartida às múltiplas responsabilidades dos padrinhos”217.
Como destaca Venâncio (2009)218, o compadrio permitia a criação de um capital
relacional de enorme importância. Para compreender o funcionamento deste capital é
necessário recorrer aos conceitos de biografia moral, desenvolvido por Giovanni Levi

217
VENÂNCIO, Renato Pinto; SOUSA, Maria José Ferro de; PEREIRA, Maria Teresa Gonçalves. O compadre
governador: redes de compadrio em Vila Rica de fins do século XVIII. Revista Brasileira de História, São
Paulo, v. 26, n. 52, p. 273-294, 2006. p. 276.
218
VENÂNCIO, Renato Pinto. Redes de compadrio em Vila Rica: um estudo de caso. 2009.
133

(1989)219, e o de rede social. Este primeiro volta-se para a análise de indivíduos que
expressam as características do grupo social a que pertencem, indicando, na prática, o
funcionamento das normas e regras estruturais existentes na sociedade. Neste caso
analisaremos as biografias de famílias escravas que viveram em dois engenhos de destacada
importância econômica no espaço da freguesia de São José de Mipibu, a fim de compreender
como tais relações eram estabelecidas neste micro espaço dos engenhos, já que neste
momento não temos documentação suficiente (como inventários post-mortem, listas de
matrículas, processos civis e criminais) e tempo para cruzar diferentes fontes, fazer uma
análise nominativa, e entender detalhadamente as redes de compadrio de cada família escrava
desta freguesia que encontramos nos registros paroquiais.
O segundo conceito a ser salientado é o de rede social. Neste caso, todos os
indivíduos componentes têm relações uns com os outros. Assim, o conjunto de afilhados e
compadres de um indivíduo formam uma rede social com conectividades mais ou menos
intensas e que podem ser acionadas em momentos de situações diversas. A principal hipótese
que desenvolvemos neste trabalho é justamente que estas famílias de negros escravizados
escolhiam seus padrinhos de maneira estratégica, a fim de formar redes sociais com
indivíduos que tivessem certa influência na sociedade, fossem eles de status igual ou
diferente do seu. Assim, ao apreendermos sobre a biografia moral destas famílias, e as redes
sociais que estabeleciam com os padrinhos de batismo de seus filhos, podemos ter um
panorama acerca do capital relacional que as famílias cativas dos Engenhos Porteiras e Olho
d’Água estabeleciam na sociedade escravista da freguesia de Sant’Ana de São José de
Mipibu. É uma maneira de compreender como estas relações se davam neste micro espaço
rural dos engenhos, um pequeno espectro das relações da sociedade escravista do Rio Grande
do Norte no século XIX.

4.2 Os padrinhos preferenciais: padrões e regularidades


Devido ao fato desses senhores incentivarem/desenvolverem o hábito de batizar as
crianças escravas de suas propriedades, tivemos condições de reconstruir aspectos das

219
LEVI, Giovanni. Les usages de la biographi. Annales ESC, n. 6, p. 325-336, 1989 apud VENÂNCIO,
Renato Pinto. Redes de compadrio em Vila Rica: um estudo de caso. 2009.
134

famílias escravas formadas nas suas propriedades, resultante sobretudo da reprodução natural
das mulheres escravas que lhe pertenciam.
O parentesco, tanto o contraído no casamento quanto o contraído no batismo,
permitia a produção de trocas culturais com pessoas de outros segmentos sociais. Estes
vínculos poderiam ser formados dos laços de amizade e afetividade, ou mesmo pelo desejo
de proteção futura, extrapolando frequentemente os limites da fazenda.
Os laços criados pelo compadrio estendiam seu significado ao campo social. Por
meio dele, os pais de uma criança escrava não só poderiam reforçar as relações parentais já
existentes, como também, estabeleciam novos contatos interpessoais com cativos os quais
eles, até então, não tinham ligação:

O parentesco com pessoas livres significou para os escravos criação de laços


verticais, das quais eles, certamente, esperavam auferir algum tipo de ganho, como
proteção ou a possibilidade da liberdade. Já a escolha de libertos poderia indicar
tanto a busca dessas vantagens quanto a manutenção de amizades entre os
escravos220.

Como podemos ver, dentre os arranjos familiares possíveis de serem estabelecidos dentro do
cativeiro, o compadrio permitia aos escravos a construção de laços verticais, ou seja, o
contato com pessoas abastadas, com as quais poderiam vir a ter alguma espécie de benefício
material e proteção social. Um exemplo deste é o caso do menino Diogo221, que analisamos
no capítulo anterior, alforriado na pia batismal no dia 8 de novembro de 1857 após a compra
de sua liberdade pelo seu padrinho livre/liberto, Delfino José de Mendonça, o qual pagou o
valor de 50$000 (cinquenta mil réis) para a sua proprietária, Dona Felippa Rodrigues de
Vasconcellos.
É claro que nem todos os escravos viam o parentesco como uma relação de ganhos
materiais. Existiam aqueles que escolhiam para compadres pessoas mais próximas, amigos
de cativeiro de longa convivência, pois tinham como preocupação no momento da escolha
dos padrinhos de seus filhos, a manutenção e fortalecimento de antigas relações.
Acreditamos que os senhores não se tornavam compadres dos seus próprios
escravos, pois em termos disciplinares e hierárquicos não seria interessante para a

220
ROCHA, Solange Pereira. Gente negra na Paraíba oitocentista. 2009, p. 124.
221
FREGUESIA..., 1857-1862, f. 6.
135

manutenção da relação de obediência e punição entre senhores e escravos. Dos mais de 500
registros analisados, somente no ano de 1857, encontramos o caso do senhor Miguel Paulino
Seabra de Mello que apadrinha o seu escravo Francisco, com um mês de vida, filho de Maria,
escrava deste mesmo senhor222. Esta pode ter sido, inclusive, uma situação emergencial, por
questões de saúde do pequeno, apressando o momento do batismo, tendo, talvez, naquele
momento apenas o próprio senhor de mãe e filho além do pároco que realizou o batismo no
momento do sacramento.
Observamos que na freguesia de Sant’Ana de São José de Mipibu havia uma clara
preferência dos pais pela escolha de compadres com condições sociais diferentes das suas,
geralmente homens e mulheres “livres”. Dentro do universo amostral de 504 registros de
crianças escravas analisadas, entre os anos de 1841 e 1862, 93% (471 padrinhos) dos
padrinhos escolhidos nos registros eram considerados “livres”, enquanto 77% (384
madrinhas) das madrinhas também possuíam a mesma condição de “livres”. Há uma
discrepância entre o número de padrinhos e madrinhas, pois como indicam os dados, havia
uma certa tendência na escolha apenas de um padrinho, de figura masculina, para batizar a
criança recém-nascida, apesar de as Constituições Primeiras, em seu título XVIII,
determinarem que houvesse um padrinho e uma madrinha, nomeados pelo pai, mãe ou a
quem fosse responsável pela criança223. Assim encontramos 19% (93 registros) em que não
constam o nome da madrinha, em oposição a 2% (10 registros) dos registros sem a nomeação
de um padrinho.

222
FREGUESIA..., 1857-1862, f. 5.
223
VIDE, D. Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. 1853 [1720], p. 26.
136

Gráfico 7 – Porcentagem da condição jurídica do padrinho na freguesia de Sant’Ana (1841-


1862)

Fonte: Gráfico produzido pela autora a partir da coleta de informações disponíveis no livro de batismo da
Freguesia de Sant’Ana de São José de Mipibu, 1841-1862. Universo amostral: 504 registros.

Gráfico 8 – Porcentagem da condição jurídica das madrinhas da freguesia de Sant’Ana


(1841-1862)

Fonte: Gráfico produzido pela autora a partir da coleta de informações disponíveis no livro de batismo da
Freguesia de Sant’Ana de São José de Mipibu, 1841-1862. Universo amostral: 504 registros.
137

Estes gráficos nos fornecem dados interessantes sobre as escolhas dos padrinhos
escravos, ou seja, de mesma condição dos pais das crianças. Em 4% dos registros, sendo 19
padrinhos escravos e 20 madrinhas escravas, houve a escolha de compadres com o mesmo
status jurídico dos pais e das crianças. Surgiu então o questionamento: estes padrinhos e
madrinhas escravos aparecem juntos batizando estas crianças escravas? Estes adultos eram
casados entre si? Em caso afirmativo para ambos os questionamentos, poderia se evidenciar
uma preferência de algumas famílias escravas pelo fortalecimento de laços com casais
escravos de mesma condição social, provavelmente laços de amizade formados a algum
tempo, e uma forma de assegurar a proteção de seus filhos dentro do próprio sistema.
Infelizmente não poderemos afirmar com certeza que os casais de escravos eram casados,
nem solteiros, pois nos registros não consta este tipo de informação. Porém, como em sua
maioria as mulheres e homens escravizados padrinhos destas crianças apadrinhavam juntos
os pequenos, acreditamos que havia sim uma grande probabilidade destes casais serem
casados.
Para o caso da Vila do Príncipe, no sertão do Rio Grande do Norte, para o período
de 1850 a 1888, Michele Lopes (2011)224 observou um cenário bastante parecido com o que
encontramos na freguesia de Sant’Ana de São José de Mipibu sobre as preferências dos pais
quanto a condição social dos padrinhos e madrinhas escravas. Do total das 558 fichas de
batismo de escravos analisados, 19% (106 pais) optaram por ter um ou o casal de padrinhos
escravos225. Deste universo, 43% dos casais eram escravos do mesmo plantel, porém seus
afilhados eram de propriedades diferentes; enquanto 27% dos demais casais moravam em
unidades diferentes.
Ana Rios identificou que, em Paraíba do Sul, nas escravarias maiores, a busca era
principalmente por padrinhos escravos; nas demais, predominava a predileção por livres226.
José Roberto Góes, estudando a espacialidade do Rio de Janeiro da primeira metade do século
XIX, explicitou que, nesses casos, o compadrio era uma maneira de inserir os africanos
recém-chegados e de propiciar modos de socialização para formar uma comunidade

224
LOPES, Michele Soares. Escravidão na vila do Príncipe: província do Rio Grande do Norte (1850- 1888).
Dissertação (Mestrado em História) – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do
Rio Grande do Norte. Natal, 2011.
225
LOPES, Michele Soares. Escravidão na vila do Príncipe. 2011, p. 119.
226
RIOS, Ana Maria Lugões. Família e transição. Famílias negras em Paraíba do Sul, 1872-1920. Revista
Brasileira De Estudos De População, v. 7 (2), 1990, p.243–247.
138

escrava227. Entretanto, para Slenes, essa inserção não estava ausente de um aspecto
hierárquico que existia no compadrio entre cativos, no qual os escravos com mão de obra
especializada ou doméstica apadrinhavam mais que os de lavoura228.
Renato Venâncio caminhou na mesma linha de reflexão. Para ele, o estudo do
compadrio desvela relações complexas, pois algumas pesquisas indicam que, em regiões
periféricas ao sistema escravista, que recebiam poucos africanos e com produção voltada à
subsistência e mercado interno, a maioria dos compadres de cativos era de pessoas livres. Em
compensação, áreas com expansão econômica e com grande entrada de escravos africanos
teriam intenso compadrio entre escravos229.
Para o nosso período de análise, a cidade de São José de Mipibu possuía uma maioria
da população de condição livre, como observamos na Tabela 3, no primeiro capítulo. Sendo
assim, proporcionalmente, é compreensível que os escravos tivessem mais padrinhos livres
que de igual condição, dada a maior opção de pessoas não cativas na sociedade, para
escolherem seus compadres. Somado a isto, o batismo foi empregado por escravos para se
aproximarem ou intensificarem vínculos com livres, fossem eles pobres ou de posições mais
elevadas, visando alcançar distintas vantagens materiais, relacionais e/ou simbólicas.
Após a análise dos dados contidos nos registros de batismo da freguesia de Sant’Ana
de São José de Mipibu, munidos da metodologia da Micro História, nos debruçaremos na
análise de duas propriedades escravistas desta freguesia, a fim de compreender mais
detalhadamente o perfil dos proprietários, das famílias cativas e padrinhos escolhidos pelos
escravizados para apadrinharem seus filhos. Desse modo, será possível perceber e reforçar a
ideia de que o nascimento de crianças foi importante para a sobrevivência do sistema
escravista nessa região. Alguns casos foram escolhidos para exemplificar essa situação, na
qual constam famílias escravas que mostraram a importância do crescimento endógeno na
freguesia.

227
GÓES, José Roberto. O cativeiro imperfeito. Vitória: Lineart, 1993.
228
SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor. 2011.
229
VENÂNCIO, 2003, p. 598-607.
139

4.3 Engenho Porteiras


A escolha por trabalhar com apenas dois espaços de produção agrícola canavieira e
produção de cachaça e rapadura, que tinham como mão de obra principal os negros
escravizados, veio através da análise dos registros de batismo do livro da freguesia de
Sant’Ana de São José de Mipibu e a significativa recorrência do batismo de crianças
escravizadas por mães e pais escravos dos proprietários do Engenho Porteiras e Olho d’Água.
Começamos, portanto, a observar a existência de famílias monoparentais e legítimas dentro
destas propriedades açucareiras, as quais, ao longo dos 21 anos de análise de nosso objeto de
estudo permaneceram neste espaço e escolheram como padrinhos de seus filhos indivíduos
dos mais diferentes status sociais. Sendo assim, o espaço da freguesia de Sant’Ana e a cidade
de São José de Mipibu contavam, sim, com famílias cativas em seus espaços, as quais
estavam constantemente (sobre)vivendo, criando estratégias e resistindo, mas também
negociando com os seus senhores, a fim de melhorar as condições do cativeiro, conseguir
preservar seus familiares em um mesmo espaço, ou, até mesmo, adquirir a liberdade.
Estamos, portanto, tratando de duas propriedades que são ligadas entre si por laços
familiares. O que de acordo com nossas investigações sobre a formação da sociedade de São
José de Mipibu e de sua elite econômica e agrícola está diretamente ligada ao patriarca dos
Ribeiro Dantas que chegara nesta região ainda no século XVIII. Justamente para
compreendermos a extensão das ligações familiares entre os proprietários de terra e algumas
figuras de destaque que apadrinharam crianças escravas cruzamos as informações de
historiadores eruditos como Paulo Brazil (2002)230, Olavo de Medeiros Filho (2005)231 e
Carlos Alberto Dantas Moura (2010)232 para compreender estas conexões.
A família Ribeiro Dantas era uma das mais importantes e influentes da cidade de
São José de Mipibu. Desde o século XVIII os membros desta família conquistaram prestígio
social e cargos de destaque não apenas neste espaço como também na província do Rio
Grande do Norte. Este ramo dos Dantas chegou ao Brasil com a figura do patriarca português,
Miguel Ribeiro Dantas, natural de Lisboa, nascido por volta de 1740 e falecido em novembro

230
BRAZIL, Paulo M. Assis. Bravos Sertanejos do Seridó: famílias de Portugal e do Brasil. Os Dantas Corrêa
e os Ribeiro Dantas. Natal: Sebo Vermelho Edições, 2002.
231
MEDEIROS FILHO, Olavo de. Os Barões do Ceará-Mirim e Mipibu. Mossoró: Fundação Guimarães
Duque, 2005.
232
MOURA, Carlos Alberto Dantas. Família Ribeiro Dantas de São José de Mipibu. Rio de Janeiro: Segunda
Edição, 2010.
140

de 1795 em São José de Mipibu. Miguel Ribeiro requereu terras em São José no ano de 1773
e nesta época já era casado com Antônia Xavier de Barros, nascida por volta de 1755. Da
união do casal, foram gerados 7 (sete) filhos: Ana Maria Dantas, Antônia Xavier de Barros,
Estevão José Dantas, Maria Joaquina Ribeiro Dantas, Joana Belmira Dantas, Josefa Maria
Dantas e Francisca Dantas233. Os seus filhos permaneceram nestas terras e ali criaram raízes,
construindo relações sociais, comprando terras e construindo engenhos, desenvolvendo
atividades comerciais e políticas.
Como podemos observar no Geneagrama 1 os dois proprietários dos engenhos que
serão estudados neste capítulo, João Duarte da Silva, proprietário do Engenho Porteiras, e
Miguel Antônio Ribeiro Dantas, proprietário do Engenho Olho d’Água, estão diretamente
ligados ao ramo desta família. João Duarte, apesar de não descender diretamente dos Ribeiro
Dantas, tem uma de suas filhas, Joana Evangelista dos Prazeres, casada com o neto do
patriarca dos Ribeiro Dantas, o também proprietário de terras e escravos Miguel Antônio
Ribeiro Dantas, estudado neste capítulo. Ao analisarmos os registros de batismo da freguesia
de Sant’Ana de São José de Mipibu a recorrência de crianças escravas batizadas de
propriedade destes dois senhores nos levou a investigar mais a fundo tanto estas famílias
escravas quanto as propriedades e estes senhores, a fim também de compreender a formação
da elite agrária da região estudada.
Estamos, portanto, tratando de proprietários que possuíam provavelmente não
apenas ligações econômicas, mas também sociais e familiares e poderiam se ajudar
mutuamente nos negócios. É apenas mais um exemplo de como as terras agrícolas e os
escravizados, na sociedade escravista do Oitocentos, estavam concentrados, geralmente, nas
mãos de poucas famílias influentes e de significativo cabedal da sociedade. O
apadrinhamento de crianças escravas de propriedade do Capitão João Duarte da Silva pelo
Capitão Miguel Antônio Ribeiro Dantas e sua esposa Joana Evangelista dos Prazeres, como
ocorre no ano de 1862 com o párvulo Alexandre234, é mais um indicativo de que estes
senhores, e possivelmente seus escravos também, circulavam entre estes engenhos
estabelecendo conexões com indivíduos de diferentes status sociais, inclusive o próprio
Miguel Antônio Ribeiro Dantas, senhor de terras e escravos. Tais ligações atingiam diversos

233
BRAZIL, Paulo M. Assis. Bravos Sertanejos do Seridó. 2002, p.92.
234
FREGUESIA..., 1857-1862, f. 153.
141

membros familiares, como é o caso do professor José Ribeiro Dantas, irmão do mesmo
Miguel Antônio Ribeiro Dantas, que juntamente com sua filha, Maria Carolina de Aguiar
Dantas, no ano de 1855, apadrinharam o pequeno Joaquim, filho do escravo Antônio, de
propriedade de João Duarte da Silva, e sua mulher, Rita Anna Joaquina235.
São relações sociais complexas envolvendo mulheres e homens de condições sociais
diversas, consagradas, sacramentadas e reconhecidas pela Igreja Católica e sociedade cristã.
Esta é uma das poucas situações em que os escravizados poderiam ter suas vozes e vontades
ouvidas oficialmente, tendo o direito perante a constituição canônica e a sociedade de
escolher os padrinhos de seus filhos. Não descartamos, entretanto, que em alguns casos
poderia sim acontecer de a escolha destes indivíduos serem feitas pelos seus proprietários
levando em consideração as escolhas e estratégias político-sociais dos senhores de escravos.

235
FREGUESIA..., 1851-1857, f. 99.
Geneagrama 1 – Família Ribeiro Dantas de São José de Mipibu

Fonte: Elaboração de Clara Maria da Silva com base nos livros de Brazil (2002), Medeiros Filho (2005) e Moura (2010). Diagramação feita com Genopro 2011.
143

O Engenho Porteiras, localizado na zona rural da cidade de São José de Mipibu, era de propriedade
do Capitão João Duarte da Silva Filho (1775-1867). Filho de pai português, João Duarte da Silva
e de mãe brasileira, Maria Egípcia das Candeias, perdeu seu pai quando tinha apenas 20 anos e seu
irmão, Manoel da Silva, 8 anos de idade. Foi então que junto a sua mãe tomou a frente da
administração dos negócios da família. Casa-se com Joana Filgueira dos Prazeres, com quem teve
5 filhas: Victória Egípcia das Candeias, Joana Evangelista dos Prazeres 236, Joaquina Claudina da
Silva, Ana Joaquina da Silva e Josefa237. Os primeiros registros de batismos de crianças
escravizadas de propriedade deste senhor datam do ano de 1843 e vão até o ano de 1862, e como
observamos na Tabela 5 do capítulo anterior, ainda em 1854, o Engenho Porteiras, que continha
moendas de ferro, era o engenho com a maior quantidade de escravos da cidade de São José de
Mipibu: 46.

236
Casou-se com o Capitão Miguel Antonio Ribeiro Dantas, proprietário do Engenho Olho d’Água analisado neste
capítulo. Pelo fato do seu marido ser um homem de importante destaque social, detentor de grandes propriedades,
Joana Evangelista também alcançou tal destaque dentro da sociedade de São José de Mipibu. Nasceu dia 27 de
dezembro de 1827 (dia de São João Evangelista, sendo seu nome uma homenagem a tal santo), e faleceu a 4 de julho
de 1919, com “61 netos e 72 bisnetos”, o que demonstra a grande fertilidade e descendência do casal (MOURA, 2010,
p.465).
237
MOURA, Carlos Alberto Dantas. Família Ribeiro Dantas de São José de Mipibu. 2010, p. 605-611.
144

Mapa 6 – Localização aproximada do Engenho Porteiras, de propriedade do Capitão João Duarte


da Silva (1841-1862)

Fonte: Através do cruzamento de informações presentes na lei nº 712 de 3 de setembro de 1874 e da Mensagem a
Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte do ano de 1894 chegamos à conclusão que provavelmente este
engenho estaria localizado na área de abrangência indicada em amarelo no mapa. Produzido por Clara Maria da Silva
com base no Atlas Digital dos Recursos Hídricos Subterrâneos do município de São José de Mipibu, disponível em <
http://www.cprm.gov.br/publique/Hidrologia/Mapas-e-Publicacoes/Rio-Grande-do-Norte---Atlas-Digital-dos-
Recursos-Hidricos-Subterraneos-3130.html>. Com adaptação técnica da publicitária Renata de Andrade Alves.
145

Encontramos 10 famílias cativas que viviam nesta propriedade entre os anos de 1841 e
1862. A primeira delas formada pelo casal de escravos Alexandre e Antônia. Pais de Maria, nascida
em 15 de agosto de 1843238, e de Izabel, nascida em abril de 1847239, escolheram como padrinhos
de suas filhas apenas pessoas “livres”, respectivamente, o casal Joaquim Manoel de Jesus e
Alexandrina Monteiro de Souza, e Tarquínio de Vasconcelos e Maria das Candeias, mãe e filho.
O caso da escrava Damiana mostra-se interessante. Mãe do párvulo Vicente, nascido em
06 de agosto de 1845240, neste primeiro batismo, como mãe solteira, escolhe os irmãos “livres”
João Ferreira da Silva e Maria Ferreira da Piedade, ambos solteiros, para apadrinhar seu filho. Sete
ano depois esta escrava, morando no mesmo engenho e ainda de propriedade do Capitão João
Duarte da Silva, aparece na documentação casada com o escravo Vital, também morador no
Engenho Porteiras de propriedade do mesmo senhor, com quem tem mais cinco filhos: Julião,
nascido em 15 de dezembro de 1852241; Ildefino, nascido em 31 de janeiro de 1858242; Laurinda,
nascida em 15 de junho de 1859243; Romana, nascida em 08 de setembro de 1860244 e Joaquim,
nascido em 01 de setembro de 1862245. Porém agora casada perante a Igreja Católica, no ato do
batismo dos seus filhos Damiana e Vital escolhem pessoas de diferentes condições, de livres – com
títulos – à escravos para serem seus compadres.
Os apadrinhamentos de Ildefino, Laurinda e Joaquim são significativos. No caso dos
meninos, os pais escolheram padrinhos com a mesma condição social escrava para apadrinharem
seus filhos, respectivamente: Clemente, escravo do mesmo senhor, e Adriano e Ignacia, escravos
do Tenente Inácio de Albuquerque Maranhão; fato este que já demonstra a circulação dos escravos
na freguesia e interação com pessoas de diferentes condições sociais, inclusive escravos de outras
propriedades. O argumento sobre a interação entre cativos e pessoas de diversas condições sociais,
inclusive livres com altas patentes sociais, torna-se mais forte quando observamos o caso de
Laurinda, que recebe como seus padrinhos no ato do batismo o Tenente Coronel Urbano Egyde da

238
FREGUESIA..., 1841-1843, f. 38.
239
FREGUESIA..., 1843-1848, f. 181.
240
FREGUESIA..., 1843-1848, f. 101.
241
FREGUESIA..., 1851-1857, f. 34.
242
FREGUESIA..., 1857-1862, f. 15.
243
FREGUESIA..., 1857-1862, f. 55.
244
FREGUESIA..., 1857-1862, f. 92.
245
FREGUESIA..., 1857-1862, f. 100.
146

Silva Costa Gondim de Albuquerque e sua esposa Isabel de Olinda de Melo de Albuquerque
Gondim.

Geneagrama 2 – Relações de compadrio na família de Damiana e Vital, escravos do Capitão João


Duarte da Silva

Fonte: Elaboração de Clara Maria da Silva com base nos registros de batismo da Freguesia de Sant’Ana de São José
de Mipibu (1841-1862). Diagramação feita com Genopro 2011.

No ano de 1862, último do recorte desta nossa pesquisa, ao somarmos a quantidade de


indivíduos que formavam a família de Damiana e Vital (parentesco consanguíneo e espiritual) há
um crescimento de mais do dobro de pessoas, marcado principalmente pela diversidade de pessoas
com os mais diferentes status sociais e econômicos. Para nós é um exemplo possível do poder de
escolha que os escravizados tinham no ato do batismo, assim como da circulação deles dentro da
sociedade, estabelecendo relações, ligações e laços não apenas com escravizados de seu cativeiro.
147

A terceira família identificada na documentação de moradores do Engenho Porteiras era


chefiada pelos escravos Inácio e Maria, pais de Catarina, nascida em 24 de dezembro de 1851246,
Sebastiana, nascida em 28 de novembro de 1853247 e Adriana, nascida em 18 de dezembro de
1856248. No caso desta família houve uma preferência completa pela escolha da figura do padrinho
e da madrinha, fossem eles casados entre si ou não, além de todos serem “livres”. Para Catarina foi
escolhido o casal Vicente Ferreira Bernardo e sua mulher Ângela do Amor Divino; para Sebastiana,
Miguel Ferreira da Rocha e Isabel Maria; e para Adriana, José Pedro de Almeida, casado, e
Esmeraldina Aguida da Esperança, solteira. Para alguns pais parecia ser importante a escolha de
um casal para apadrinhar seus filhos como uma forma de maior amparo para a criança, uma espécie
de segundos pais, assim mesmo como previa as Constituições Primeiras.
Os escravos Clemente e Luisa, pais de Guestina, nascida em 20 de março de 1852249 e
Inocência, nascida em 01 de novembro de 1856250, assim como Inácio e Maria, também optaram
pela escolha de casais no momento do apadrinhamento. No caso de sua primeira filha, foram
escolhidos Targino de Vasconcelos e Maria Joana como padrinhos da criança, entretanto para a
segunda filha que nasceu cerca de quatro anos depois, foram escolhidos como padrinho José,
escravo de Antonio Basílio Ribeiro Dantas, e como madrinha Benedita, escrava do mesmo senhor
da família, o Capitão João Duarte da Silva. O engenho não representava o limite da sociabilidade
escrava, ultrapassava a senzala e o engenho de origem das famílias escravas, chegando inclusive a
outras propriedades, assim como também a indivíduos de outras condições sociais.
A família dos escravos José e Benedita são mais um exemplo da estabilidade e fixação
das famílias escravas no território da freguesia. Semelhante a família de Damiana e Vital, estes
pais, entre os anos de 1853 e 1862, também tiveram seis filhos: Fabricio, nascido em 05 de março
de 1853251; Luciano, nascido em 07 de junho de 1854252; Delfina, nascida em 24 de dezembro de
1856253; Luciana, nascida em 07 de junho de 1858254; Firmino, nascido em 27 de setembro de

246
FREGUESIA..., 1851-1857, f. 5.
247
FREGUESIA..., 1851-1857, f. 60.
248
FREGUESIA..., 1851-1857, f. 115.
249
FREGUESIA..., 1851-1857, f. 8.
250
FREGUESIA..., 1851-1857, f. 114.
251
FREGUESIA..., 1851-1857, f. 41.
252
FREGUESIA..., 1851-1857, f. 68.
253
FREGUESIA..., 1851-1857, f. 154.
254
FREGUESIA..., 1857-1862, f. 26.
148

1859255 e Lúcia, nascida em 31 de março de 1862256. Ou seja, não era raro neste engenho a formação
de grandes famílias legítimas, as quais se estabilizavam, reproduziam e criavam laços com
indivíduos da comunidade. Todos os padrinhos escolhidos pela família eram “livres” e em sua
maioria formado por casais (não necessariamente casados entre si, mas por dois indivíduos de sexos
diferentes, um homem, padrinho, e uma mulher, madrinha). Este foi um dos poucos casos em que
encontramos uma mesma pessoa apadrinhando duas crianças da mesma família em anos diferentes,
o que pode indicar a forte ligação de confiança que José e Benedito teriam com Francisco Antonio
Cordeiro, cujo homem foi padrinho de Fabricio em 1853 juntamente com Marcelina Pereira
Barbosa e menos de três anos depois apadrinhou sozinho a terceira filha do casal, Delfina. Como
destacamos no começo deste capítulo, muitas vezes as relações de compadrio serviam também para
reforçar laços de amizade e oficializar estas relações perante a sociedade. Assim, a partir do
apadrinhamento nos atos de batismo, reconhecido pela Igreja Católica, tais relações ganhavam uma
dimensão oficial, social e espiritual, passando a fazer parte daquela família.

255
FREGUESIA..., 1857-1862, f. 70.
256
FREGUESIA..., 1857-1862, f. 139.
149

Geneagrama 3 – Relações de compadrio na família de José e Benedita, escravos do Capitão João


Duarte da Silva

Fonte: Elaboração de Clara Maria da Silva com base nos registros de batismo da Freguesia de Sant’Ana de São José
de Mipibu (1841-1862). Diagramação feita com Genopro 2011.

A sexta família cativa identificada no Engenho Porteiras foi a de Vicente e Teresa, os


quais tiveram dois filhos: um primeiro, cujo nome não pudemos identificar com clareza pois o
registro encontrava-se danificado, nascido em 31 de maio de 1855257 e tendo como padrinho João
Benedito; e uma segunda filha, Albina, nascida em 26 de dezembro de 1860258, tendo como
padrinhos o casal Emygdio Henrique de Paiva e Francelina Ribeiro de Paiva, casados.
A última família legítima que encontramos era formada por Antonio, escravo do Capitão
João Duarte da Silva e sua esposa Rita Anna Joaquina, “livre”. No único registro de batismo que
encontramos do seu filho, Joaquim, nascido em 10 de agosto de 1855259 não havia uma indicação

257
FREGUESIA..., 1851-1857, f. 94.
258
FREGUESIA..., 1857-1862, f. 104.
259
FREGUESIA..., 1851-1857, f. 99.
150

específica de que a família morava nas terras do Engenho Porteiras, apenas que eram “naturais
desta freguesia, onde moram”. Havia, portanto, a possibilidade de a família viver no Engenho,
sendo Antonio escravo nas plantações e produções de cachaça e rapadura, ou o mesmo ser um
escravo de ganho na cidade de São José de Mipibu. Não poderemos ter a certeza da ocupação deste
escravo, nem mesmo se Rita Ana, sua esposa, era uma mulher livre ou liberta, a qual também no
passado poderia ter sido escrava do mesmo Capitão João Duarte da Silva. Apenas fontes como o
inventário deste senhor ou o registro de matrícula dos escravos da cidade de São José de Mipibu
poderiam nos fornecer dados mais concretos, documentação que infelizmente não dispomos para
a região, nem mesmo para o período.
Antonio e Rita fizeram uma escolha de renome como seus compadres: o professor José
Ribeiro Dantas e sua filha Maria Carolina de Aguiar Dantas. Como podemos observar no
Geneagrama 1, este professor era neto do patriarca português, Miguel Ribeiro Dantas e sobrinho
Antônio Basílio Ribeiro Dantas, político influente da província do Rio Grande do Norte que
exerceu o cargo de Presidente da Província nos anos de 1867, 1868, 1883, 1884, 1885 e 1889. Além
de ser professor nesta cidade, possuía terras e escravos tanto em São José de Mipibu quanto em
Ceará-Mirim260, o que demonstra que era um intelectual e homem de posses. Portanto, a escolha
dele e de sua filha como padrinhos do pequeno Joaquim era bastante significativa.
Entretanto, também conseguimos rastrear nesta propriedade, de posse do Capitão João
Duarte da Silva, três famílias cativas naturais de sua posse, que provavelmente também viviam
neste engenho. A escrava Felipa deu à luz a dois meninos: Bernardo, em 31 de outubro de 1856261
e Cesário, em 1º de novembro de 1858262. Sua mãe escolheu para ambos os filhos casais263 de
padrinhos, sendo eles respectivamente: Joaquim Lopes da Rocha e Josefa Fortunata de Sousa
Divino; e Manoel Lopes da Rocha e Ângela Custodia do Amor Divino. A não indicação do nome
do pai no registro de Bernardo e Cesário não indica que os meninos não tinham contato com o pai
biológico ou outros parentes sanguíneos, como tios, tias, avós, avôs ou primos. A única
comprovação é que os seus pais não eram casados perante a Igreja Católica, e por isso haveria
apenas a indicação do nome da mãe nos registros de batismo. Porém, poderia ser realmente que as

260
SANTOS, 2001, p. 48.
261
FREGUESIA..., 1851-1857, f. 143.
262
FREGUESIA..., 1857-1862, f. 46.
263
Não há indicação na documentação destes casais terem o matrimônio reconhecido perante a Igreja Católica.
151

crianças não tivessem a presença da figura paterna em seu cotidiano e por procurar maior amparo
e proteção Felipa escolheu casais de padrinhos para apadrinharem seus meninos. São suposições
que podemos conjecturar com as fontes paroquiais, mas, que precisaríamos de cruzar com outras
tipologias documentais para avançar em respostas concretas.
A escrava Maria também deu à luz a dois meninos: Dionízio, nascido dia 9 de outubro de
1857264 e Aleixo, nascido dia 17 de julho de 1861265. Diferente de Felipa que escolheu apenas
casais como padrinhos de seus filhos, Maria opta no batismo de Dionízio pela escolha do Capitão
Manoel Duarte da Silva como padrinho de seu primeiro filho. Foi uma escolha significativa, pois
a patente militar de capitão era de importante hierarquia social, patente igual ao do seu dono, o
Capitão João Duarte da Silva. Quanto a Aleixo, esta escrava escolhe Antonio Gomes da Silva
Júnior e Inácia Maria da Silva Bastos para serem padrinhos do seu segundo filho.
Por fim, a última família que conseguimos rastrear de propriedade do Capitão João Duarte
da Silva foi a da escrava Ignacia, que apesar de ter tido apenas um filho, Alexandre, nascido no dia
1º de outubro de 1862266 escolheu o Capitão Miguel Antonio Ribeiro Dantas e sua mulher Dona
Joana Evangelista dos Prazeres como padrinhos do seu primogênito. Portador de alta patente militar
e muitas propriedades na cidade de São José de Mipibu, este Ribeiro Dantas era também o
proprietário do Engenho Olho d’Água que analisaremos a seguir neste mesmo capítulo. O poder
de escolha da escrava Ignacia, assim como o fato de o casal ter aceitado o convite para o
apadrinhamento da criança escrava, reforça a ideia que procuramos defender neste capítulo da
circulação dos cativos na sociedade. Somado a isto, o compadrio servia também como forma de
criar laços com pessoas influentes naquele espaço, como o capitão Miguel Antonio Ribeiro Dantas
o qual poderia ajudar futuramente na compra da alforria do seu afilhado ou em algum outro tipo de
proteção.
Inácia, assim como todas as outras famílias do Engenho Porteiras, não escolheram os
padrinhos e madrinhas de seus filhos sem nenhum tipo de critério. Além de reforçar um vínculo
que já tivessem com alguns destes indivíduos, poderia também ser o momento de criar um laço
social e religioso com outras pessoas influentes no círculo social, uma forma de estratégia das

264
FREGUESIA..., 1857-1862, f. 7.
265
FREGUESIA..., 1857-1862, f. 113.
266
FREGUESIA..., 1857-1862, f. 153.
152

famílias escravas na busca de manutenção, fixação e estabilidade de seus laços familiares. Como
destaca Slenes (2011)267, esta era uma estratégia que interessava aos escravos como forma de
sobrevivência dentro do cativeiro. Entretanto não podemos deixar de enfatizar que o fato destes
padrinhos, dos mais variados status sociais, também aceitarem o apadrinhamento como uma forma
de controle social, reforçava o paternalismo.
Contando entre crianças, mulheres e homens escravizados de propriedade do Capitão João
Duarte da Silva e prováveis268 moradores no Engenho Porteiras somam-se 43 indivíduos que
constituíam as 10 famílias cativas, entre naturais e legítimas. De acordo com o Relatório do
Presidente de Província do Rio Grande do Norte, Antônio Bernardo de Passos, o Engenho Porteiras
contava no ano de 1854 com 46 escravos em sua propriedade, número que, após análise dos
registros acima identificados, acreditamos ser maior, tendo em vista que poderia haver de alguns
escravos não terem sido registrados quando crianças, ou escravos chegarem já adultos na
propriedade e por isso não estarem nos registros de batismo (ver Tabela 5). Ou seja, há uma
probabilidade de o número de escravos neste engenho ser maior do que os dados indicados pelo
Presidente da Província no ano de 1854.
Um aspecto importante a ser destacado sobre as famílias cativas analisadas que viviam no
Engenho Porteiras, é que a maioria delas, sete das dez, eram legítimas, ou seja, formadas por
mulheres e homens escravizados casados perante a Igreja Católica; e apenas três eram
monoparentais, tinham a figura materna como chefe da família. Diferente do que encontramos para
o quadro geral da freguesia de Sant’Ana de São José de Mipibu, analisado no capítulo anterior,
encontramos neste engenho um maior índice de famílias legítimas, em sua maioria, mulheres e
homens escravos do mesmo proprietário que viviam no mesmo lugar. Mas há suas exceções, como
o caso do escravo Antônio, casado com a livre e/ou liberta Rita Ana Joaquina.
Analisando os 49 (quarenta e nove) apadrinhamentos realizados no Engenho Porteiras,
observamos uma tendência das famílias cativas em optarem por padrinhos que tivessem a condição
de “livres”. Apenas 11% (5 padrinhos cativos) dos padrinhos eram de condição escrava, o que pode

267
SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor – Esperanças e recordações na formação da família escrava: Brasil,
sudeste, século XIX. 2ª ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2011.
268
Estamos utilizando aqui o termo “prováveis”, pois alguns registros de batismo não indicam com certeza o local de
moradia dos pais e crianças escravizadas, por vezes apenas assinalando que estes moram no termo na freguesia de
Sant’Ana de São José de Mipibu.
153

representar que a condição social dos padrinhos espirituais seria um fator relevante no momento
da escolha desta figura. Como estamos tratando de uma sociedade escravista altamente
hierarquizada, certamente ser livre e/ou liberto dava acesso a certos espaços que os escravizados
não teriam. Como cremos que as escolhas dos padrinhos e madrinhas pelos pais cativos seriam uma
forma de estratégia social de construção do território escravo na freguesia, sinônimo de proteção,
criação de laços sociais e políticos, estes dados comprovam tal cuidado das famílias nas escolhas
dos padrinhos de seus filhos, os quais seriam também futuros membros de suas próprias instituições
familiares.

4.4 Engenho Olho d’Água


Neto de Miguel Ribeiro Dantas, o português, patriarca da família Ribeiro Dantas em São
José de Mipibu, o Capitão Miguel Antônio Ribeiro Dantas era senhor de um dos mais importantes
engenhos da região do Vale do Capió: o Engenho Olho d’Água, ainda hoje em funcionamento.
Nasceu, neste mesmo engenho, no dia 24 de fevereiro de 1819, local onde residia com toda a
família na sede da fazenda construída por volta de 1773 e do qual tornou-se proprietário por
herança269. Em 18 de abril de 1849 casou-se com Joana Evangelista dos Prazeres, filha do Capitão
João Duarte da Silva e Joana Filgueira dos Prazeres, senhores do Engenho Porteiras que também
analisamos neste capítulo270.

269
As terras onde hoje se localizam o Engenho Olho d’Água eram a princípio de propriedade do pai de Miguel Antônio
Ribeiro Dantas, Estevão José Dantas, e anteriormente chamado de Sítio Sapé (MEDEIROS FILHO, 2005, p. 112-113).
Após o falecimento do seu pai, Miguel Antônio Ribeiro Dantas herdou as terras do engenho e passou a nomeá-lo de
Engenho Olho d’Água, nome que permanece até hoje.
270
MOURA, Carlos Alberto Dantas. Família Ribeiro Dantas de São José de Mipibu. 2010, p. 465.
154

Mapa 7 – Localização aproximada do Engenho Olho d’Água, de propriedade do Capitão Miguel


Antônio Ribeiro Dantas (1841-1862)

Fonte: Este engenho estaria localizado na área de abrangência indicada em verde no mapa. Produzido por Clara Maria
da Silva com base no Atlas Digital dos Recursos Hídricos Subterrâneos do município de São José de Mipibu, disponível
em <http://www.cprm.gov.br/publique/Hidrologia/Mapas-e-Publicacoes/Rio-Grande-do-Norte---Atlas-Digital-dos-
Recursos-Hidricos-Subterraneos-3130.html>. Com adaptação técnica da publicitária Renata de Andrade Alves.
155

No caso do Engenho Olho d’Água, apesar de termos feito a análise dos registros de
batismo da freguesia de Sant’Ana de São José de Mipibu entre os anos de 1841 e 1862, a existência
de famílias escravas de propriedade do Capitão Miguel Antônio Ribeiro Dantas e prováveis
moradores do Engenho Olho d’Água, só começaram a aparecer na documentação a partir do ano
de 1854 até o ano de 1862. Como este engenho foi herdado de seu pai, Estevão José Dantas,
provavelmente no ano de 1852 após o falecimento do mesmo, acreditamos que Miguel Antônio
Ribeiro Dantas tenha levado cerca de dois anos para organizar o engenho e suas finanças, inclusive
a propriedade, antes chamada de Sítio Sapé, é renomeada como Engenho Olho d’Água, tendo sido
provavelmente reestruturada para se tornar um engenho.
Sobre o patrimônio de Miguel Antônio Ribeiro Dantas o historiador Pedro Freire, autor
de Histórias dos Engenhos – V – Engenho Olho d’Água271 fala que

Seu incalculável patrimônio era constituído de engenhos, fazendas e terras espalhadas


pelos vales do Capió, Trairi e Ararai. Nelas desenvolvia a indústria açucareira, a pecuária
e a agricultura, amealhando considerável fortuna, sendo considerado na época um dos
mais abastados senhor de engenho e fazendeiro da região agreste. Deixou todos os bens
como herança para sua esposa, Joana Evangelista, que passou a administrar todo o acervo
patrimonial e negócios da família com a ajuda de seu filho, Joaquim Silvino, na época
com apenas 15 anos272.

Faleceu no dia 27 de maio de 1870, tendo sido sepultado na Matriz de São José de Mipibu, onde
possui uma lápide273,274. Tal fato, portanto, reforça a importância da figura política e social que era
a do Capitão Miguel Antônio Ribeiro Dantas.
No ano de 1882, acompanhando o constante crescimento da indústria açucareira nos vales
férteis do município, os proprietários deste engenho importaram da Europa um moderno
maquinário e acessórios e montaram na casa de engenho a recém adquirida moenda impulsionada
a vapor de caldeira, em substituição à primitiva engenhoca movida à tração animal. Com esta

271
Apud MOURA, Carlos Alberto Dantas. Família Ribeiro Dantas de São José de Mipibu. 2010, p. 465-466.
272
Ibid.
273
Op. Cit, p. 122-123.
274
Devido a pandemia da COVID-19 não foi possível visitar o interior da Igreja Matriz de Sant’Ana e São Joaquim de
São José de Mipibu, pois os templos católicos no momento da escrita desta dissertação, entre março/2020 e maio/2021,
estavam fechados devido a decretos municipais e estaduais a fim de evitar o aglomeramento de pessoas e a possível
propagação do coronavírus. Assim, não foi possível visitar nem mesmo fotografar a lápide do Capitão Miguel Antônio
Ribeiro Dantas localizado no interior desta Igreja.
156

providência o engenho dobrou a produção de açúcar mascavo e seus derivados. Tendo sido passado
de geração para geração por herança, em 1918 João Berckmans Dantas assumiu a direção do
engenho tornando-se também o único proprietário das terras por meio da compra deles dos outros
herdeiros. Em 1921 adquiriu e montou uma destilaria e deu início à fabricação e engarrafamento
da aguardente de cana Olho d’Água, a qual existe até os dias atuais no mercado, agora nomeada de
cachaça Mipibu (MOURA, 2010, p. 466).

Imagem 3 - Casa grande do Engenho Olho d’Água275

Fonte: Fotografia retirada por Clara Maria da Silva em fevereiro de 2021.

275
Localizada na Fazendo Olho d’Água, na cidade de São José de Mipibu. CEP: 59162-000. Para mais informações,
acesse: https://www.cachacamipibu.com.br/. Acesso em 15 de maio de 2021.
157

Imagem 4 - Chaminé do Engenho Olho d’Água

Fonte: Fotografia retirada por Clara Maria da Silva em fevereiro de 2021.

Encontramos 7 famílias cativas que viveram nesta propriedade entre os anos de 1841 e
1862. Diferente do cenário que encontramos no Engenho Porteiras, a maioria das famílias cativas
do Engenho Olho d’Água identificadas nos registros de batismo da freguesia de Sant’Ana eram
famílias naturais. Apenas duas eram legítimas, ou seja, tinham o casamento reconhecido pela Igreja
Católica e por isso no registro de batismo das crianças constava o nome do pai e da mãe.
158

A primeira família encontrada nos registros de propriedade do Capitão Miguel Antônio


Ribeiro Dantas foi a da escrava Firmina, mãe de Leonarda, nascida no dia 6 de março de 1849276,
que teve como seu padrinho Tarquinio Urbano de Vasconcellos, homem “livre” e solteiro.
Entretanto, diferente do que estabelecia as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, a
criança não foi batizada oito dias após o nascimento, mas sim quatro anos depois, no dia 6 de março
de 1853. Como analisamos no capítulo anterior, a teoria e a prática entre os prazos estabelecidos
pelas Constituições e o dia a dia eram muito diferentes. A demora em batizar e registrar os recém-
nascidos era principalmente devido as grandes distâncias entre os locais de moradia e as igrejas
e/ou capelas mais próximas. Entretanto, acreditamos que este não tenha sido o motivo principal da
demora de Firmina em registrar sua filha, pois o seu senhor, o capitão Miguel Antônio Ribeiro
Dantas era um homem de posses e influências que certamente possuía condições de levar seus
escravos até a Igreja Matriz da cidade.
Portanto, os motivos que justificariam a demora no registro de Leonarda superam os
limites de informações que os registros de batismo podem nos fornecer, ficando apenas no campo
das hipóteses o real motivo da demora no registro da pequena: algum tipo de doença que acometeu
a criança nos primeiros anos de vida impossibilitando-a a viajar até a igreja mais próxima;
problemas financeiros do senhor que o impediram de levar seus escravos para se batizar; ou até
mesmo a conversão tardia de sua mãe ao catolicismo, talvez apenas quando se viu socialmente
precisando criar laços sociais reconhecidos oficialmente procurou realizar o sacramento do batismo
em sua filha.
A segunda família que encontramos nos registros paroquiais foi a da escrava Eugênia,
mãe de quatro filhos: Luiza, nascida no dia 13 de abril de 1854 277; Fideliz, nascido no dia 29 de
abril de 1855278; Cosma, nascida no dia 29 de setembro de 1857279; e Felipe, nascido no dia 1º de
maio de 1861280. Como observamos no geneagrama abaixo, esta mãe, nos atos de batismo, optou
por escolher padrinhos das mais diferentes condições sociais para os seus filhos, não apresentando
um padrão no momento das escolhas.

276
FREGUESIA..., 1851-1857, f. 37.
277
FREGUESIA..., 1851-1857, f. 65.
278
FREGUESIA..., 1851-1857, f. 92.
279
FREGUESIA..., 1851-1857, f. 166.
280
FREGUESIA..., 1857-1862, f. 109.
159

Geneagrama 4 – Relações de compadrio na família de Eugenia, escrava do Capitão Miguel


Antônio Ribeiro Dantas

Fonte: Elaboração de Clara Maria da Silva com base nos registros de batismo da Freguesia de Sant’Ana de São José
de Mipibu (1841-1862). Diagramação feita com Genopro 2011.

O perfil dos quatro apadrinhamentos foram bem diversos uns dos outros. Para a pequena Luisa,
foram escolhidos o casal de escravos Felix e Ana, de propriedade do mesmo senhor de mãe e filha,
o Capitão Miguel Antônio Ribeiro Dantas. No ano seguinte, no entanto, para padrinhos do recém-
nascido Fideliz, Eugêenia escolheu os irmãos João Soares Raposo da Câmara e Josefina Paulina.
O fato interessante deste apadrinhamento é que acreditamos que este João Soares Raposo da
Câmara que aparece como padrinho do pequeno Fedeliz seja o mesmo juiz 2º suplente na comarca
de São José de Mipibu281, ou seja, um homem de influência e poder na região.

281
Acervo de Ações Criminais – São José de Mipibu/RN. Caixa 10, Volume 12, 1878-1882. Disponível em:
<http://edufrn.ufrn.br/handle/123456789/11>. Acesso em 16 maio 2021.
160

A terceira família de propriedade do capitão Miguel Antônio Ribeiro Dantas era a da


escrava Romana. O seu primogênito, Francisco, nasceu no dia 10 de maio de 1855282 e recebeu
como seus padrinhos o liberto Damião José da Silva e a escrava Damiana, que apesar de não indicar
no registro de batismo, acreditamos que também fosse de propriedade do mesmo capitão Miguel
Antônio Ribeiro Dantas. O padrinho de Francisco conseguiu a liberdade, talvez por meio da compra
de sua própria alforria ou por vontade própria do seu ex-senhor, não temos como definir aqui ao
certo. O segundo filho de Romana, Barnabé, nasceu no dia 11 de novembro de 1857283 e recebeu
como seus padrinhos José Graciano de Góes Lira Júnior e Carolina Filomena de Sales. No ano
seguinte, a última filha desta escrava, Juliana, nasceu no dia 16 de dezembro de 1858 284 e, assim
como o seu irmão Barnabé, recebeu como padrinhos pessoas “livres”, José Joaquim de Sousa e
Gertrudes Ferreira de Sousa.
A escrava Tomásia, mãe de Albino – nascido no dia 28 de fevereiro de 1856285 –, Gregório
– nascido no dia 4 de junho de 1858286 – e Marcos – nascido no dia 13 de abril de 1862287 – assim
como as escravas Eugênia e Romana, também escolheu como padrinhos do seu primogênito um
casal de escravos, Cipriano, escravo do Padre João Damasceno, e Francelina, escrava do capitão
Miguel Antônio Ribeiro Dantas. Acreditamos que tal coincidência de escolha entre escravos e
libertos como seus primeiros compadres possa ter haver com o fato de estas escravas estarem
começando a fazer ligações sociais, inicialmente dentro do cativo, e depois expandindo tais
relações para outros espaços sociais. Para os seus outros dois filhos, Tomásia escolhe mulheres e
homens “livres” para apadrinhar Gregório e Marcos: Pedro d’Monteiro Barbalho; e o casal
Clemente Ferreira de Paula e Maria Ferreira de Paula, respectivamente.
As duas únicas famílias legítimas que aparecem como de propriedade do capitão Miguel
Antônio Ribeiro Dantas foram as de Torquato e Vicência; e a de Thomas e Maria. Este primeiro
casal deu à luz a três filhos, com um intervalo de cerca de dois anos entre cada criança: Jacinto em

282
FREGUESIA..., 1851-1857, f. 95.
283
FREGUESIA..., 1851-1857, f. 164.
284
FREGUESIA..., 1857-1862, f. 44.
285
FREGUESIA..., 1851-1857, f. 116.
286
FREGUESIA..., 1857-1862, f. 25.
287
FREGUESIA..., 1857-1862, f. 138.
161

24 de dezembro de 1857288; Antônio em 13 de abril de 1859289; e Luiz em 1º de setembro de


1861290. Difere de suas companheiras de cativeiro, Eugênia, Romana e Tomásia, o casal escolhe
os “livres” Damião José da Costa e Catarina Maria da Conceição para apadrinharem o seu primeiro
filho. Somente no nascimento do segundo filho do casal, o párvulo Antônio, que Torquatro e
Vicência optam pela escolha de padrinhos escravos, Manoel e Antônia, também de propriedade do
capitão Miguel Antônio Ribeiro Dantas. Quanto ao seu último filho, Luiz, foram escolhidos os
irmãos “livres” Luiz da Fonseca Coelho e Maria Luiza dos Prazeres, podendo inclusive o nome da
criança ser uma homenagem ao próprio padrinho, o que pretenderia fortalecer ainda mais as
relações que estavam sendo criadas naquele ato de batismo.

Geneagrama 5 – Relações de compadrio na família de Torquato e Vicência, escravos do Capitão


Miguel Antônio Ribeiro Dantas

Fonte: Elaboração de Clara Maria da Silva com base nos registros de batismo da Freguesia de Sant’Ana de São José
de Mipibu (1841-1862). Diagramação feita com Genopro 2011.

288
FREGUESIA..., 1857-1862, f. 11.
289
FREGUESIA..., 1857-1862, f. 52.
290
FREGUESIA..., 1857-1862, f. 118.
162

A família dos escravos Tomas e Maria foi a penúltima a ser identificada na documentação.
Pais de Justa, nascida em 19 de julho de 1858291, e de Inácio, nascido em 07 de agosto de 1860292,
o casal escolhe como padrinhos e madrinhas de seus filhos indivíduos “livres”: Ignacio Garcia da
Trindade e Anna Joaquina da Silva; e o casal Francisco Vasconcelos e Ana Joaquina da Câmara,
respectivamente. Coincidência, ou não, a última família que encontramos de propriedade do
capitão Miguel Antônio Ribeiro Dantas foi a da escrava Maria que tem um único filho, André,
nascido no dia 4 de fevereiro de 1862293, o qual recebe como seu padrinho Antônio Francisco da
Silva, homem “livre”. Apesar de saber que na sociedade oitocentista os homônimos eram
recorrentes, não pudemos deixar de levantar a hipótese de que estaríamos tratando da mesma
escrava Maria. Há uma possibilidade de Thomas seu marido ter falecido ou ter sido vendido após
o nascimento do seu último filho, Inácio, no ano de 1860, e dois anos depois sua esposa ter tido um
outro relacionamento que gerou o pequeno André. Porém, não estamos descartando a possibilidade
de serem mulheres escravizadas diferentes que apenas possuíam o mesmo nome e moravam no
mesmo engenho. A falta de fontes como inventários post mortem e registros de matrícula para a
região analisada nos faz ter respostas incompletas para questionamentos mais complexos. São
pontas soltas que acreditamos que o avançar do estudo sobre famílias escravas na freguesia de
Sant’Ana pelos historiadores futuramente poderão uni-las.
Entre crianças, mulheres e homens escravizados de propriedade do Capitão João Duarte
da Silva e prováveis294 moradores no Engenho Olho d’Água somam-se 26 (vinte e seis) indivíduos
que constituíam as 7 (sete) famílias cativas, entre naturais e legítimas. De acordo com o Relatório
do Presidente de Província do Rio Grande do Norte, Antônio Bernardo de Passos, o Engenho Olho
d’Água contava no ano de 1854 com 10 escravos em sua propriedade, número que, após análise
dos registros acima identificados, acreditamos que fosse maior, tendo o fato de alguns escravos
podem não ter sido registrados quando crianças, ou escravos chegarem já adultos na propriedade e
por isso não estarem nos registros de batismo (ver tabela 5). Ou seja, há uma probabilidade de o
número de escravos neste engenho ser maior do que os dados indicados pelo Presidente da

291
FREGUESIA..., 1857-1862, f. 26.
292
FREGUESIA..., 1857-1862, f. 91.
293
FREGUESIA..., 1857-1862, f. 129.
294
Estamos utilizando aqui o termo “prováveis”, pois alguns registros de batismo não indicam com certeza o local de
moradia dos pais e crianças escravizadas, por vezes apenas assinalando que estes moram no termo na freguesia de
Sant’Ana de São José de Mipibu.
163

Província no ano de 1854, a mesma situação do Engenho Porteiras analisado também neste
capítulo.
Ao contrário do Engenho do capitão João Duarte da Silva, neste engenho de propriedade
do capitão Miguel Antônio Ribeiro Dantas o quadro da situação familiar cativa é outra. Das 7 (sete)
famílias cativas, 5 (cinco) eram naturais e apenas duas legítimas. Analisando os 30 (trinta)
apadrinhamentos realizados no Engenho Olho d’Água, observamos uma tendência das famílias
cativas em optarem por padrinhos que tivessem a condição de “livres”. As madrinhas livres/libertas
representavam 69% (9 madrinhas) versus os 31% (4 madrinhas) de condição escrava. Porém,
quando analisamos os números dos padrinhos, 77% (13 padrinhos) deles eram livre/libertos em
oposição a 23% (4 padrinhos) de condição escrava. Assim, mais uma vez há uma certa preferência
das famílias cativas pela escolha de padrinhos “livres”, representada pelos 73% (22 padrinhos) de
padrinhos livres e/ou libertos que apadrinharam crianças escravas de propriedade do capitão
Miguel Antônio Ribeiro Dantas, dono do Engenho Olho d’Água.
A complexidade de arranjos possíveis, as composições e dimensões distintas de cada
escravaria, as relações diferenciadas de cada senhor com seus cativos, as redes e os conflitos
variáveis em cada caso, tudo contribui para as tomadas de decisão no momento do apadrinhamento.
Temos que considerar também, em ambas as propriedades analisadas, as alterações na composição
da senzala ao longo do tempo, seu ciclo de vida, que influenciava de maneira inevitável as
estratégias do compadrio: aumento e diminuição dos contingentes, juventude e fracasso do próprio
empreendimento dos negócios e dos relacionamentos de seu senhor (BACELLAR, 2011, p.5).
Ao analisarmos os registros de batismo dos escravos do Engenho Olho d’Água, um fato
que nos chamou atenção foi a recorrência de cerimônias, mesmo na Igreja Matriz, realizadas pelo
Reverendo Joaquim Severiano Ribeiro Dantas. Como destacamos no capítulo anterior, apesar do
vigário geral da freguesia durante todo o nosso período de análise ter sido o Vigário Colado Cônego
Gregório Ferreira Lustosa, vários outros padres também passaram pela freguesia atuando
principalmente nas capelas deste território religioso, auxiliando o vigário nas atividades religiosas.
Entretanto o sobrenome Ribeiro Dantas dos padres Joaquim Severiano Ribeiro Dantas e João
Damasceno Xavier Dantas nos chamou atenção.
De acordo com o Monsenhor Severino Bezerra (1985) os padres João Damasceno e
Joaquim Severiano eram irmãos, filhos de Estevão José Ribeiro Dantas e Maria Joaquina de Souza
164

Oliveira, como indicado no Geneagrama 1. Eram irmãos também do Capitão Miguel Antônio
Ribeiro Dantas, proprietário do Engenho Olho d’Água, e principalmente o padre Joaquim
Severiano Ribeiro Dantas por vezes realizou o batismo de crianças escravas de propriedade deste
seu irmão, inclusive na Igreja Matriz de São José de Mipibu, local de atuação preferencialmente
do vigário geral da freguesia. Foi o caso do batismo das crianças escravas: Leonarda, no ano de
1849295; Fideliz, no ano de 1855296; Francisco, no ano de 1855297; e Cosma, no ano de 1857298.
O padre João Damasceno Xavier Dantas, também conhecido como João Damasceno
Xavier Ribeiro Dantas nasceu no ano de 1805. O local e o ano de sua ordenação não são certos,
porém julga-se ter sido entre os anos de 1835 e 1839, porque em dezembro de 1834 ainda não era
ordenado. Em 1839 o seu nome aparece no serviço paroquial em Ceará-Mirim, local que atuou até
o ano seguinte. Entre 1843 e 1847, o encontramos atuando em São José de Mipibu. Tornou a Ceará-
Mirim onde esteve servindo de 1847 a 1866 como Capelão de Taipu, que era da paróquia do Ceará-
Mirim. Depois de tantos anos de serviço paroquial em Taipu retornou para São José de Mipibu já
doente, vindo a falecer em 1867299. Complementa ainda Monsenhor Severino Bezerra sobre a
figura do padre João Damasceno e a família Ribeiro Dantas:

O padre João Damasceno Xavier Dantas, foi membro ilustre da família Ribeiro Dantas,
de São José de Mipibu, em cuja família se distingue, além do padre Joaquim Severiano,
Antonio Basílio Ribeiro Dantas, que por quatro vezes governou a província do Rio G. do
Norte, professor José Ribeiro Dantas, dr. Francisco Ribeiro Dantas e Estevão Ribeiro
Dantas, todos irmãos do padre Damasceno300.

Como mencionado por Bezerra (1985), o padre Joaquim Severiano Ribeiro Dantas foi um
homem importante da família Ribeiro Dantas de São José de Mipibu. Natural desta cidade, não são
conhecidas ao certo as datas de seu nascimento, nem de sua ordenação sacerdotal. O primeiro cargo
que ocupou foi o de Coadjutor na paróquia de São José de Mipibu, em 1847, no paroquiato do
Vigário Colado Cônego Gregório Ferreira Lustosa, inclusive possível ano de sua ordenação. Nos
meses de julho e agosto de 1852 voltou a exercer o ministério em São José, como pró-pároco, como

295
FREGUESIA..., 1851-1857, f. 37.
296
FREGUESIA..., 1851-1857, f. 92.
297
FREGUESIA..., 1851-1857, f. 95
298
FREGUESIA..., 1851-1857, f. 166.
299
BEZERRA, Monsenhor Severiano. Levitas do Senhor. Natal: Fundação José Augusto, 1985, p. 74.
300
Ibid.
165

também, na paróquia de Extremoz nos anos de 1857 a 1859. Era professor de francês e latim, em
Natal, no Ateneu Norte-Rio-Grandense, até que em julho de 1870 conseguiu a sua transferência
para São José de Mipibu, continuando no ensino de francês e latim.
O padre Joaquim Severiano possuía residência fixa em São José de Mipibu, de modo que
teve ocasião de presidir a Câmara Municipal desta cidade entre os anos de 1857 e 1861. Exerceu
também o cargo de Deputado Provincial no biênio de 1856 e 1857. Estava em São José de Mipibu
quando rompeu a Guerra do Paraguai com o Brasil, em dezembro de 1864, entusiasmando-se a
participar da luta. Em pouco tempo conseguiu formar uma companhia de voluntários, contribuição
de São José e municípios vizinhos, que serviu no 55º Voluntários do Piauí. A 1º de julho de 1865
recebeu a nomeação oficial em comissão no cargo de Capelão Alferes. Por motivo de doença da
malária, foi dispensado do serviço militar a 31 de janeiro de 1867. De volta ao Rio Grande do
Norte, procurou a praia de Tibau do Sul para tratamento de saúde, porém os remédios e cuidados
médicos não foram suficientes, vindo a falecer a 20 de junho de 1874301.
Como procuramos destacar neste capítulo, a família Ribeiro Dantas possuiu familiares
que ocuparam cargos nos mais diversos postos sociais: políticos, religiosos e econômicos. Somado
a isto, os membros desta família eram detentores de grandes posses de terra, comércio e
escravizados na cidade de São José de Mipibu, o que pudemos constatar ao longo de nossas
análises. Debruçamo-nos aqui, no entanto, apenas sob uma das famílias abastadas desta região,
porém acreditamos que as futuras pesquisas podem nos ajudar a compreender ainda mais o perfil
dos proprietários escravistas desta freguesia, bem como a figura de alguns padrinhos e madrinhas.
A estabilidade das famílias nas escravarias, como identificamos nos Engenhos Porteiras e
Olho d’Água, poderia também ser uma forma de garantir aos senhores fator reprodutivo da força
de trabalho. Era uma via de mão dupla: para os escravizados, a existência da família amenizava o
cotidiano árduo do trabalho escravo, auxiliava no acúmulo de pecúlio, ajudava na construção de
relações sociais com os apadrinhamentos no batismo; para os senhores, seria uma forma a mais de
controle da mão de obra escrava, que poderia vir a pensar mais antes de se rebelar, com receio de
ser separado dos seus membros familiares, além de garantir a renovação da mão de obra escrava

301
Op. Cit., p. 89.
166

em seu território, pois de tempos em tempos nasciam crianças escravas. Os senhores beneficiavam-
se, portanto, da chamada reprodução endógena para obter parte desses infantes.
O escravismo não dependia exclusivamente do tráfico transatlântico de africanos, e
principalmente após a publicação da lei anti-tráfico em 1850 a continuidade da escravidão
dependeu também da reprodução endógena de escravos no território brasileiro. Os senhores de
escravos, temerosos com o fim do tráfico, procuraram o batismo católico como forma de regularizar
sua propriedade, incentivando o batismo de cativos recém-nascidos também como uma maneira
oficial de reconhecer sua propriedade.
Por seu turno, a dependência em relação à reprodução endógena tinha implicações outras
para a vida de escravos e senhores. Como destaca Cacilda Machado302, ao estudar a região de São
José dos Pinhais na passagem do século XVIII para o XIX, “num ambiente em que a reprodução
da população escrava era basicamente endógena, a própria manutenção do status senhorial tinha
que ser negociada”. Em outras palavras, a existência da escravidão, nessas circunstâncias, dependia
“das vontades cativas” e da “lógica senhorial” existentes em regiões onde predominavam
proprietários “com poucos recursos para adquirir escravos no mercado”. A autora continua:

Dito de outro modo: fosse qual fosse o tipo de união levada a efeito por suas cativas, delas
resultariam rebentos também de sua propriedade. Já das uniões conjugais efetivadas pelos
escravos do sexo masculino, caso houvesse controle, poderiam resultar rebentos livres (se
o cativo se unisse a uma mulher livre) ou cativos, porém de propriedade de outros (se o
escravo se unisse a uma cativa de outro plantel). Desta maneira, para aproveitar todo o
potencial reprodutivo de sua escravaria, seria mais interessante a esses pequenos
proprietários, a união (sacramentada ou não) de seus escravos com cativas de seu próprio
plantel (ou do plantel de um filho ou genro), e a união das escravas restantes com homens
livres ou com cativos de outras escravarias303 .

Por isto mesmo acreditamos que a necessidade de realizar o sacramento do batismo e a escolha dos
compadres não seriam uma imposição do senhor, mas sim uma concessão entre ambas as partes.
Concessão essa não necessariamente acordada verbal e diretamente entre as partes, mas algo no
campo do simbólico e hierárquico, assim como todas as relações da sociedade escravista.

302
MACHADO, Cacilda. A trama das vontades: negros, pardos e brancos na produção da hierarquia social do Brasil
escravista. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008. p. 19.
303
Ibid, p. 19 e 105.
167

Para alguns senhores a reprodução endógena da comunidade escrava era importante, pela
perspectiva de aumento ou reposição de mão de obra, pois a compra de cativos nos mercados
externos à freguesia era pequena por boa parte dos proprietários. O reduzido número de escravos
por propriedade foi uma característica em áreas voltadas à subsistência ou ao abastecimento
interno, em que a capacidade de compra de cativos em idade produtiva era menor304.
Se grandes escravarias dependiam, em grande medida da reprodução endógena, algumas
médias e pequenas eram totalmente dependentes de tal recurso. Para o caso do Engenho Olho
d’Água, em que a maioria das famílias cativas eram naturais, somente as cinco mães solteiras,
referidas nesse capítulo, foram responsáveis por fornecer doze novas crianças escravas em um
período de treze anos para o seu senhor. Quando somadas as crianças fruto das relações legítimas,
de pais cativos casados na Igreja, tem-se um aumento de mais cinco pequenos a esta propriedade,
somando-se ao todo dezessete recém-nascidos. Observando os números do Engenho Porteiras,
onde há a predominância de famílias legítimas, ao longo de dezenove anos de análise dos registros
paroquiais, temos o nascimento de vinte e sete crianças escravas nesta propriedade. Lopes (2011)
encontra um quadro parecido para a Freguesia do Seridó também no Oitocentos. A historiadora
afirma que a presença de cativos e mestiços era o que engrossava as fazendas da Vila do Príncipe,
tendo a maioria dos fazendeiros poucos escravos, e pela economia, ou falta de melhores condições
financeiras, preferiam as facilidades da reprodução endógena dos seus escravos à renovação da
mão de obra através da compra constante de novos elementos. É provável, portanto, que esta seria
uma estratégia dos senhores da província do Rio Grande do Norte para a manutenção da escravidão
em suas propriedades, independente da região.
É fundamental deixar claro um aspecto: por mais que a escravidão nesta região pudesse
depender também da reprodução endógena, todo esse processo teve a mesma origem: a migração
formada de africanos. Como destaca Danielle Neves (2020), e reiteramos no segundo capítulo, os
escravos crioulos, pretos e pardos (P. P.) eram descendentes de africanos. Nos registros de batismo
da freguesia de Sant’Ana de São José de Mipibu não encontramos batismos de africanos. Embora
tal fenômeno chame atenção, sua excepcionalidade estaria na falta de registros dos mesmos no
século XIX, porque para a mesma localidade, no século XVIII, Neves (2020) apresentou registros

304
MACHADO, 2006, p. 49-77.
168

de negros africanos escravizados para esta região. Na verdade, posta esta questão, ela se torna mais
um problema de pesquisa que merece ser investigado por futuras pesquisas. Houve uma diminuição
no comércio de africanos para o Rio Grande do Norte no século XIX? Ou os que aqui chegaram já
estavam batizados? Por outro lado, acreditamos que esta freguesia dependeu menos do contato com
o tráfico transatlântico de negros africanos do que regiões (mais) abastecidas por este comércio,
como as plantations das províncias de Pernambuco, Bahia, São Paulo e Rio de Janeiro. Isto não
quer dizer que dependeram menos do mercado, pois este também fornecia crioulos a senhores com
recursos para adquiri-los.
As relações de compadrio se apresentaram para os cativos, portanto, como uma
inquietação teológica, no sentido de sacralizar as relações sociais para além da família
consanguínea, criando laços de parentesco espiritual regidos pela doutrina cristã, e, ao mesmo
tempo, serviam para incorporar ou ordenar interesses laicos de natureza diversa305. Apresentavam-
se como uma situação variável de acordo com circunstâncias e conjunturas específicas, porém, não
quer dizer que tenha tido caráter aleatório e que o casuísmo seria uma boa descrição para essas
práticas. Não há dúvidas de que se tratava de uma oportunidade importante para o estabelecimento
ou ritualização de relações significativas para os escravos e para seus senhores306.
Nesse sentido, como tudo que era importante para os cativos, o momento de batizar os
filhos se constituía em um espaço para negociações com os senhores. A presença senhorial
certamente se fazia sentir, mesmo nos casos de escolhas mais autônomas, aparecendo como um
limitante. De acordo com Sidney Chalhoub307, a subordinação não significava necessariamente
passividade, então não devemos examinar as iniciativas dos escravos sem desconsiderar a opressão,
de explorar a criação de sistemas alternativos de crenças e valores no contexto da tentativa de
dominação ideológica, de aprender a reconhecer a comunidade escrava mesmo constatando o
esforço contínuo de repressão a algumas de suas características essenciais.
Não podemos esquecer que estamos estudando um contexto anterior a publicação da
conhecida “Lei do Ventre Livre” outorgada em 28 de setembro de 1871, e até este momento a

305
VENÂNCIO, Renato Pinto. Redes de compadrio em Vila Rica VENÂNCIO, Renato Pinto. Redes de compadrio
em Vila Rica. 2009, p. 246.
306
FARINATTI, 2011, p. 15.
307
CHALHOUB, Sidney. Paternalismo e escravidão em Helena. In: CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis:
historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 47.
169

alforria dos escravos dependia diretamente da aprovação do senhor – a alforria oficial, porque não
podemos descartar as fugas de cativos também como formas de alcançar a liberdade, mesmo que
de forma ilegal. Até a publicação desta lei e seu artigo 4º, parágrafo 2º, o qual garantia que o
escravo, por meio de seu pecúlio, obtivesse meios para indenizar seu valor, teria o direito a alforria,
e caso ela não fosse fixada em acordo com o seu senhor, o seria por arbitramento judicial308; um
dos aspectos centrais da política de domínio na escravidão era o fato de que o ato de alforriar
consistia em prerrogativa exclusiva dos senhores. Portanto, as chances de alforria dos escravos
passavam necessariamente pela obediência e fidelidade em relação aos proprietários, sendo que
sua esperança de liberdade dependia do tipo de relacionamento que mantivesse com seu senhor
particular. Somado a isto, a concentração do poder de alforriar exclusivamente nas mãos dos
senhores fazia parte de uma ampla estratégia de produção de dependentes, de transformação de ex-
escravos em negros libertos ainda fiéis e submissos a seus antigos proprietários309.
Até este momento, portanto, o senhor poderia revogar a alforria por motivo de
ingratidão310. Fato que realça a subordinação e a incerteza contidas nessa “liberdade” conferida aos
libertos. Em suma, havia condições intermediárias entre a escravidão e a liberdade que, ao mesmo
tempo em que matizam a visão tradicional de uma sociedade rigidamente dividida em senhores e
escravos, sugerem o tanto de precariedade iminente à condição desses dependentes. As relações de
compadrio apresentam-se neste contexto, então, como uma forma de estabelecer laços sociais a fim
de proteção e, quem sabe, auxílio no diálogo ou na compra da alforria.
A escolha dos padrinhos espirituais, eram, portanto, para as famílias escravas, estratégias
sociais de criação de laços dentro e fora do espaço do cativeiro. A metodologia de análise aqui
adotada, inspirada na Micro História, nos auxiliou a compreender as realidades dos perfis das
famílias cativas da freguesia de Sant’Ana de São José de Mipibu no Oitocentos a partir da análise
de duas propriedades produtoras de cana-de-açúcar, rapadura e cachaça, principalmente para
consumo interno da província do Rio Grande do Norte, propriedades de pequeno e médio porte.
Assim, percebemos uma maior busca por compadres livres fora do espaço do cativeiro, onde teriam
mais opções de escolha, e o que significou também a circulação dos escravizados por todo o espaço

308
BRASIL, 1871.
309
CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil Oitocentista. São Paulo: Companhia
das Letras, 2012. p. 51.
310
No mesmo artigo 4º, parágrafo 9º, ficam revogadas as alforrias por ingratidão (BRASIL, 1871).
170

da freguesia. Em uma sociedade em que os processos de desenraizamento e as relações pessoais


exerciam papéis estruturais, não podemos considerar o acesso às relações familiares como um dado
natural, nem a mobilidade, como indicador de anomia. Ambos os processos só encontram
significação quando pensados em conjunto, como faces de uma mesma moeda311.

311
MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista (Brasil, século XIX). 3
ed rev. Campinas: Editora da Unicamp, 2013. p. 66.
171

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Procuramos explorar, neste trabalho, o mundo dos escravizados na Freguesia de Sant’Ana


de São José de Mipibu, a qual fazia parte da Província do Rio Grande do Norte. Nosso objetivo foi
dar destaque a mulheres, homens e crianças os quais foram escravizados, exercendo trabalhos
exaustivos e degradantes, mas que encontraram nas relações familiares, de natureza consanguínea
e espiritual, uma forma de (sobre)viver e (re)existir dentro de um sistema que tinha como base
econômica, justamente, a mão de obra escrava.

São inúmeras as possibilidades de arranjos familiares que, por sua vez, também variavam
no tempo, no espaço e de acordo com os distintos grupos sociais. Neste trabalho, identificamos que
o perfil das famílias cativas que viveram na Freguesia de Sant’Ana de São José de Mipibu no
Oitocentos, entre 1841 e 1862, era em sua maioria de famílias monoparentais, os quais só
continham o nome da mãe em seu registro de nascimento. Porém, como procuramos destacar ao
longo de toda a dissertação, isso não significava que estas crianças não tivessem contato com a
figura paterna, pois a Igreja Católica apenas informava no registro o nome de pai e mãe caso
tivessem adquirido matrimônio na Igreja.

Os pais desses filhos naturais eram fruto de encontros sociais, ou seja, do encontro entre
escravas e homens cativos, livres ou forros. É importante esclarecer que quando mencionamos
encontros sociais, nos referimos a relações que partiam da escolha dessas escravas, porém não
descartamos que, por vezes, esses encontros eram também fruto de violência das intervenções do
mundo senhorial. Defendemos a noção de que esses sujeitos escravizados eram protagonistas de
suas próprias histórias, sujeitos de vontade, ação, sentimento, experiências. Assim, acreditamos
que tanto as mulheres solteiras quanto as casadas, eram também responsáveis pela escolha de seus
parceiros, pais de seus filhos, e, também, dos padrinhos de batismo de suas crianças, com exceção
dos casos de violência e imposição senhorial, como destacamos anteriormente. Embora não seja o
foco deste trabalho, resta que outras pesquisas indaguem o quanto estes encontros fortuitos
geraram, ou não, vínculos duradouros. Do mesmo modo, cumpre questionar o quanto os pais
biológicos, ao lado dos senhores e dos padrinhos responsabilizaram-se pela sobrevivência dessas
172

crianças. Resposta essa que apenas o cruzamento dos assentos de batismo com inventários,
testamentos, processos cíveis e/ou criminais – fontes que dispõem de informações que podem
indicar ligações sociais – poderá apresentar.

Conseguir comprovar a existência e permanência de famílias cativas nesse território foi


de grande relevânicia, tendo em vista que a historiografia clássica produzida por intelectuais
potiguares na primeira metade do século XX por diversas vezes minimizou e até mesmo apagou a
importância da cultura negra para a formação deste Estado, chegando a afirmar que a escravidão
aqui havia sido pouca, branda e que a existência de famílias negras escravizadas não teria sido uma
possibilidade. A análise das famílias monoparentais e legítimas moradoras nos Engenhos Porteiras
e Olho d’Água nos apresentou uma perspectiva não apenas da presença das instituições familiares
escravas no território da freguesia de Sant’Ana de São José de Mipibu, mas também que estes
sujeitos conseguiam se manter unidos neste mesmo espaço por longos períodos, possivelmente
maior até mesmo que os vinte e um anos de nossa pesquisa em que conseguimos rastreá-los.

Observamos ao longo do trabalho, uma coexistência de territórios na cidade de São José


de Mipibu (como um espaço político e econômico) e na freguesia de Sant’Ana (como um espaço
religioso e social). As territorialidades dos índios Potiguara e Pega, dos homens brancos e dos
negros escravos efetivaram-se neste espaço em diferentes escalas e tempos, produzindo múltiplos
territórios, desconstruídos e reconstruídos neste espaço, estabelecendo redes e identidades.

Mesmo vivendo em um sistema excludente e diante das circunstâncias violentas e


exploratórias nas quais sobreviviam, os escravos da freguesia de Sant’Ana procuraram agenciar
sua história por meio de negociações, concessões e da construção de famílias negras, fossem elas
monoparentais, nucleares ou extensas, formadas por meio das relações de compadrio, que, na
maioria das vezes, ocorriam no espaço religioso.

A busca por alianças com pessoas dentro e fora das propriedades era resultado de uma
tentativa de alargar as relações sociais dos escravizados, buscando, por vezes, a proteção de pessoas
mais bem situadas econômica e socialmente. Tal fato reflete na predominância da escolha de
padrinhos “livres” pelas famílias cativas, mas não deixando de aparecer também padrinhos de
mesma condição jurídica dos pais e das crianças. Só conseguimos traçar um perfil e compreender
173

os padrões de escolha dos sujeitos escravos por termos nos apropriado da metodologia da História
Serial e Quantitativa, abordagens que nos forneceram oportunidade de analisar as grandes
quantidades de informação e dados que os mais de quinhentos registros de crianças escravas nos
forneceram. Entretanto, esperamos que trabalhos futuros, utilizando da mesma metodologia,
possam dar conta de períodos posteriores aos analisados neste trabalho, e quem sabe também para
outros espaços, a fim de compreender a luta e resistência dos negros escravizados neste e em outras
freguesias, para no futuro termos uma análise mais homogênea da gente negra escravizada na
província do Rio Grande do Norte.

Procuramos, também, entender como a lei que proibiu o tráfico transatlântico de negros
escravizados da África para o Brasil no ano de 1850 – data que abarca nosso período de análise
neste trabalho – refletiu de alguma forma no número de nascimentos de crianças escravas. Visto
que, com o fim do tráfico os senhores de terra e escravos procuraram alternativas para prolongar o
sistema. Concordamos com Florentino e Góes (2017) de que o incentivo dos senhores e a existência
de famílias cativas auferia ao senhor uma renda política que prolongou o sistema escravista.
Entretanto, vemos que esta era uma via de mão dupla, a qual contava com o interesse político-
econômico dos senhores, mas também resultado da luta e resistência dos cativos para constituírem
famílias, escolherem os membros de sua família espiritual e procurarem estratégias para sobreviver
ao cotidiano degradante do trabalho escravo.

Ressignificando o sacramento católico do batismo, as famílias escravas apresentaram um


outro sentido, não apenas religioso, mas principalmente social para esta cerimônia. Sujeitos
históricos, imbuídos de vontade e ação, tinham autonomia no momento da escolha dos padrinhos
de seus filhos, optando por sujeitos das mais diversas condições jurídicas, o que demonstra a
circulação destes sujeitos pelos mais diversos espaços da freguesia, quebrando mais uma vez a
ideia de que os escravos viviam presos dentro de senzalas sem contato direto com outras pessoas,
principalmente de status social diferente do seu. Corroboramos, portanto, com a tese de Slenes
(2011) de que as famílias escravas foram um elemento decisivo para a criação de laços entre os
homens de cor e condição cativa, os quais compartilhavam os mesmos valores, memórias e
experiências.
174

Conseguimos ao longo da pesquisa determinar o espaço aproximado referente a freguesia


de Sant’Ana de São José de Mipibu no século XIX em que estes escravizados circulavam.
Cruzando as fontes cartográficas do período e os nomes dos locais em que ocorreram os
sacramentos de batismo, determinamos que os territórios que compunham esta freguesia
correspondem, completa ou parcialmente, ao espaço de quatro cidades atualmente: São José de
Mipibu, Nísia Floresta (antiga Papari), Vera Cruz e Monte Alegre. É interessante destacar que o
espaço da freguesia ultrapassava os limites da cidade de São José de Mipibu, local em que se
encontrava a Matriz, sendo um espaço bem mais abrangente do que a princípio imaginávamos que
os negros escravizados circulavam e construíam relações sociais. Entretanto, compreendemos
também que é necessário um estudo mais detalhado dos registros paroquiais de São José de Mipibu
no século XIX, principalmente analisando não apenas os registros dos negros escravizados, mas
também das crianças livres e libertas, a fim de entendermos o universo da gente negra neste espaço.

A maioria dos registros de batismo analisados foram de crianças escravizadas ilegítimas


(75%), ou seja, filhos de mães solteiras que não tiveram casamentos reconhecidos pela Igreja
Católica. Quase a totalidade das mães presentes nos registros são escravas (98%), dado previsível,
tendo em vista que até a promulgação da chamada Lei do Ventre Livre em 1871 toda criança que
nascia de ventre escravo também seria escrava, o ventre prescrevia a condição. Como a maioria
das crianças nesta freguesia era ilegítima, 75% dos registros não contêm o nome da figura paterna,
porém, quando analisamos apenas o universo dos registros em que consta o nome do pai, os dados
são parecidos com os obtidos na análise da condição materna: em 89% dos registros a figura paterna
também é escrava.

O compadrio, portanto, neste cenário, para as famílias escravas apareceu como uma
estratégia social de criação de laços dentro e fora do cativeiro. Houve nesta freguesia uma clara
preferência dos pais pela escolha de compadres com condições diferentes das suas. Entre os anos
de 1841 e 1862, 93% dos padrinhos escolhidos eram “livres” e 77% das madrinhas também. Apesar
de levantarmos a hipótese de que a preferência por padrinhos de condições sociais diferentes dos
pais escravos das crianças mostrava-se na sociedade como uma possibilidade de construção de
laços sociais, ascensão social e possível proteção, apenas pesquisas futuras cruzando estes registros
175

paroquiais com fontes cartoriais e inventários poderão demonstrar estas redes sociais agindo e
comprovar efetivamente este tipo de estratégia social.

O estudo dos engenhos Porteiras e Olho d’Água foi uma tentativa inicial de compreender
o perfil destas famílias escravas e como elas se estruturaram em engenhos de pequeno e médio
porte no Rio Grande do Norte, principalmente em uma cidade que tinha como base econômica a
cana de açúcar – atividade que demandava uma maior quantidade de mão de obra escrava.
Trabalhos futuros colocando em contraposição diferentes espaços de análise certamente nos
apresentaram um panorama ainda mais consistente sobre o universo da gente negra nesta província.

Esta dissertação apresenta-se como uma tentativa de comprovar a existência de famílias


escravas no Rio Grande do Norte Oitocentista, principalmente em uma das principais cidades de
produção açucareira. Ao utilizarmos a metodologia da história serial e quantitativa pudemos
compreender o perfil das famílias negras escravizadas que vivam no espaço da freguesia de
Sant’Ana de São José de Mipibu, além do perfil dos padrinhos espirituais. Esperamos que este
trabalho ajude outros pesquisadores a se debruçarem sobre o estudo da história da escravidão no
Rio Grande do Norte, das relações étnico-raciais e da história do povo preto.
176

6 FONTES

MANUSCRITAS
ARQUIVO METROPOLITANO DA ARQUIDIOCESE DE NATAL
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Livro de Batismos nº 3, 1843-1848.
Livro de Batismos nº 4, 1851-1857.
Livro de Casamentos nº 1, 1853-1856.
Livro de Batismos nº 5, 1857-1862.
Livro de Casamentos nº 2, 1861-1874.

CENTER FOR RESEARCH LIBRARIES DIGITAL DELIVERY SYSTEM Relatórios dos


Presidentes de Província do Rio Grande do Norte

Relatorio apresentado á Assembléa Legislativa da provincia do Rio Grande do Norte na abertura


da ultima sessão ordinaria da 2. legislatura provincial, no dia 7 de setembro de 1839: pelo ex.mo
presidente da provincia d. Manoel de Assis Mascarenhas. Pernambuco: Typografia de Santos &
Companhia, 1839.

Discurso com que o illustrissimo e excellentissimo senhor dr. Casimiro José de Moraes Sarmento,
presidente desta provincia do Rio Grande do Norte, abriu a 1.a sessão da 6.a legislatura da
Assembléa Legislativa Provincial, anno de 1846. Pernambuco: Typografia M. F. de Faria, 1846.

Discurso apresentado pelo illustrissimo e excellentissimo senhor doutor Cazimiro José de Moraes
Sarmento, presidente da provincia do Rio Grande do Norte, na abertura da segunda sessão da sexta
legislatura da Assemblea Legislativa Provincial, no dia 7 de setembro de 1847. Pernambuco:
Typografia M. F. de Faria, 1847.

Falla dirigida á Assembléa Legislativa da provincia do Rio Grande do Norte, na installação da


[illegible] sessão ordinaria no dia 3 de maio de 1849 pelo presidente da provincia. Pernambuco:
Typografia M. F. de Faria, 1849.

Relatorio apresentado á Assembléa Legislativa Provincial do Rio Grande do Norte, pelo exm.o
primeiro vice-presidente da provincia, João Carlos Wanderley, no dia 3 de maio de 1850.
Pernambuco: Typografia M. F. de Faria, 1850.

Falla dirigida á Assemblea Legislativa Provincial do Rio Grande do Norte na sessão ordinaria do
anno de 1852 pelo illm. e. exm. sr. presidente da provincia, o doutor Joze Joaquim da Cunha. Rio
Grande do Norte: Typografia J. M. de Navarro, 1852.
177

Falla dirigida á Assembléa Legislativa Provincial do Rio Grande do Norte na sessão ordinaria que
teve lugar no dia 17 de fevereiro do anno de 1853, pelo illm. e exm. sr. presidente da provincia, o
dr. Antonio Francisco Pereira de Carvalho. Pernambuco: Typografia M. F. de Faria, 1853.

Falla que o illm. e exm. snr. doutor Antonio Bernardo de Passos, presidente da provincia do Rio
Grande do Norte, dirigio á Assembléa Legislativa Provincial, no acto da abertura de sua sessão
ordinaria em 4 de julho de 1854. Pernambuco: Typografia M. F. de Faria, 1854.

Relatorio que á Assembléa Legislativa Provincial do Rio Grande do Norte apresentou no dia 14 de
fevereiro de 1859, por occasião de sua installação o exm. sr. presidente da provincia, doutor
Antonio M.N. Gonçalves. Maranhão: Typografia Commercial - de Antonio Pereira Ramos
d’Almeida, 1859.

Relatorio 1859. Recife: Typografia Universal, 1859.

Relatorio com que o exm. sr. dr. José de Oliveira Junqueira abrio a sessão da Assembléa Legislativa
Provincial do Rio Grande do Norte em 1860. Pernambuco: Typografia M. F. de Faria, 1860.

Relatorio que o exm. sr. dr. José Bento da Cunha Figueiredo Junior, presidente da provincia do Rio
Grande do Norte, apresentou á respectiva Assembléa Legislativa Provincial na sessão ordinaria de
1861. Ouro Preto: Typografia Provincial, 1861.

Relatorio apresentado á Assembléa Legislativa do Rio Grande do Norte na sessão ordinaria do


anno de 1862 pelo presidente da provincia, o commendador Pedro Leão Velloso. Maceió:
Typografia do Diario do Commercio, 1862.

S/Titulo 1862. Natal: Typografia Dous de Dezembro, 1862.

Relatorio apresentado á Assemblea Legislativa do Rio Grande do Norte pelo exm. sr. doutor
Silvino Elvidio Carneiro da Cunha em 5 de outubro de 1870. Recife: Typografia do Jornal do
Recife, 1870.

Relatorio com que abrio a 1a sessão ordinaria da Assembléa Legislativa Provincial do Rio Grande
do Norte, o exm. sr. commendador dr. Henrique Pereira de Lucena, no dia 5 de outubro de 1872.
Rio de Janeiro: Typografia Americana, 1872.

Relatorios com que installou a Assembléa Legislativa Provincial do Rio Grande do Norte no dia
11 de junho de 1873 o 2.o vice-presidente exm. sr. coronel Bonifacio Francisco Pinheiro de
Camara, e passou a administração da mesma provincia ao exm. sr. dr. João Capistrano Bandeira de
Mello Filho no dia 17 do mesmo mez. Rio de Janeiro: Typografia Americana, 1873.
178

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187

VIANA, Larissa. O idioma da mestiçagem: as irmandades de pardos na América Portuguesa.


Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2007.
188

8 ANEXOS

ANEXO A - Falla Dirigida á Assemblea Legislativa Provincial do Rio Grande do Norte na sessão
ordinaria que teve lugar no dia 17 de Fevereiro do anno de 1853 pelo Illm. e Exm. Sr. Presidente
da Provincia o Dr. Antonio Francisco Pereira de Carvalho. Pernambuco, Typ. de M. F. de Faria,
1853, mapa nº 5.
189

ANEXO B – Falla que o Illm. e Exm. Snr. Doutor Antonio Bernardo de Passos, presidente da
província do Rio Grande do Norte, dirigio à Assembléa Legislativa Provincial, no acto da
abertura de sua sessão ordinária em 4 de julho de 1854. Pernambuco, Typografia de M. F. de
Faria, 1854, mapa nº 37.
190

ANEXO C - Relatorio com que o Exm. Sr. Dr. João José de Oliveira Junqueira abrio a sessão da
Assembléa Legislativa Provincial do Rio Grande do Norte em 1860. Pernambuco, Typ. de M. F.
de Faria, 1860, mapa L.
191

ANEXO D - Relatório apresentado à Assembléa Legislativa do Rio Grande do Norte na sessão


ordinária do anno de 1862 pelo presidente da província, o comendador Pedro Leão Velloso.
Maceió, Typografia do Diario do Commercio, 1862, p. 6.
192

9 APÊNDICES

Apêndice A – Mapa do município atual de São José de Mipibu com a identificação da Igreja
Matriz, capelas, fazendas, lugares e/ou engenhos da antiga Freguesia de Sant’Ana, 1841-1862

Fonte: No centro do mapa, a igreja em vermelho representa a Matriz de Sant’Ana e as demais cruzes vermelhas
espalhadas pelo território, identificam as capelas, fazendas, lugares e/ou engenhos da freguesia localizados no
território atual da cidade de São José de Mipibu. Mapa produzido por Clara Maria da Silva a partir da coleta de
informações disponíveis no livro de batismo da Freguesia de Sant’Ana de São José de Mipibu (1841-1862) e dos
Atlas Digitais dos Recursos Hídricos Subterrâneos dos municípios de São José de Mipibu, Nísia Flores, Vera Cruz
e Monte Alegre, disponíveis em <http://www.cprm.gov.br/publique/Hidrologia/Mapas-e-Publicacoes/Rio-Grande-
do-Norte---Atlas-Digital-dos-Recursos-Hidricos-Subterraneos-3130.html>. Com adaptação técnica de Renata de
Andrade Alves.
193

Apêndice B – Mapa do município atual de Nísia Floresta (antiga Papari) com a identificação da
Igreja Matriz, capelas, fazendas, lugares e/ou engenhos da antiga Freguesia de Sant’Ana, 1841-
1862

Fonte: A igreja em vermelho representa a Matriz de Sant’Ana e as cruzes vermelhas espalhadas pelo território,
identificam as capelas, fazendas, lugares e/ou engenhos localizados no território da cidade Nísia Floresta (antiga
Papari). Apesar de freguesia de Nossa Senhora do Ó de Papari ter sido criada em 1833, o desmembramento político
de Papari da cidade de São José de Mipibi só veio, mais tarde, no ano de 1852 (FERREIRA, 2011, p. 32). Como são
regiões muito próximas, os seus limites eclesiásticos e geográficos por vezes se confundem, e acabamos
encontrando, portanto, nos assentos de batismo locais crianças sendo batizadas em “Papari” 312 pelo vigário da
freguesia de Sant’Ana de São José de Mipibu e o batismo sendo registrado no livro de assentos desta freguesia.
Mapa produzido por Clara Maria da Silva a partir da coleta de informações disponíveis no livro de batismo da
Freguesia de Sant’Ana de São José de Mipibu (1841-1862) e dos Atlas Digitais dos Recursos Hídricos Subterrâneos
dos municípios de São José de Mipibu, Nísia Flores, Vera Cruz e Monte Alegre, disponíveis em
<http://www.cprm.gov.br/publique/Hidrologia/Mapas-e-Publicacoes/Rio-Grande-do-Norte---Atlas-Digital-dos-
Recursos-Hidricos-Subterraneos-3130.html>. Com adaptação técnica de Renata de Andrade Alves.

312
FREGUESIA..., 1843-1848, f. 64, f. 68; FREGUESIA..., 1851-1857, f. 70, f. 129; FREGUESIA..., 1857-1862,
f. 47, f. 52, f. 70, f. 79, f. 82, f. 85, f. 86, f. 111, f. 118, f. 119, f. 122.
194

Apêndice C – Mapa do município atual de Monte Alegre com a identificação da Igreja Matriz,
capelas, fazendas, lugares e/ou engenhos da antiga Freguesia de Sant’Ana, 1841-1862

Fonte: A igreja em vermelho representa a Matriz de Sant’Ana e as demais cruzes vermelhas espalhadas pelo
território, identificam as capelas, fazendas, lugares e/ou engenhos localizados no território da cidade de Monte
Alegre. Mapa produzido por Clara Maria da Silva a partir da coleta de informações disponíveis no livro de batismo
da Freguesia de Sant’Ana de São José de Mipibu (1841-1862) e dos Atlas Digitais dos Recursos Hídricos
Subterrâneos dos municípios de São José de Mipibu, Nísia Flores, Vera Cruz e Monte Alegre, disponíveis em <
http://www.cprm.gov.br/publique/Hidrologia/Mapas-e-Publicacoes/Rio-Grande-do-Norte---Atlas-Digital-dos-
Recursos-Hidricos-Subterraneos-3130.html>. Com adaptação técnica de Renata de Andrade Alves.
195

Apêndice D – Mapa do município atual de Vera Cruz com a identificação da Igreja Matriz,
capelas, fazendas, lugares e/ou engenhos da antiga Freguesia de Sant’Ana, 1841-1862

Fonte: A igreja em vermelho representa a Matriz de Sant’Ana e as demais cruzes vermelhas espalhadas pelo
território, identificam as capelas, fazendas, lugares e/ou engenhos localizados no território da cidade de Vera Cruz.
Mapa produzido por Clara Maria da Silva a partir da coleta de informações disponíveis no livro de batismo da
Freguesia de Sant’Ana de São José de Mipibu (1841-1862) e dos Atlas Digitais dos Recursos Hídricos Subterrâneos
dos municípios de São José de Mipibu, Nísia Flores, Vera Cruz e Monte Alegre, disponíveis em <
http://www.cprm.gov.br/publique/Hidrologia/Mapas-e-Publicacoes/Rio-Grande-do-Norte---Atlas-Digital-dos-
Recursos-Hidricos-Subterraneos-3130.html>. Com adaptação técnica de Renata de Andrade Alves.

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