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A Bahia na O papel da Cachoeira


independência nas lutas da
nacional independência

A guerra As lutas pela


da Bahia independência nos
mares da Bahia

8 38
78 98
A
festa do Dois
Patriotismo e de Julho:
conflito de classe As comemorações
na Independência da públicas da
Bahia (1822-23) independência
nacional

Os combates de Entrada do exército


Pirajá e Itaparica pacificador na Bahia

58 93
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Jaques Wagner
Apresentação

Glória a ti neste dia de glória,


Glória a ti Redentor que há cem anos,
Nossos pais conduzistes à vitória
Pelos mares e campos baianos!

Assim cantam os baianos em louvor ao Senhor do Bonfim, agradecen-


do-lhe pela vitória na guerra que consolidou a Independência do Brasil, no
dia 2 de julho de 1823. Após a ocupação da Cidade do Salvador pelas tro-
pas portuguesas, em 19 de fevereiro de 1822, coube aos municípios baia-
nos, liderados por Cachoeira, organizar a luta pela libertação da capital.
No dia 25 de junho de 1822, a Câmara e o povo de Cachoeira aclamaram o
Príncipe regente D. Pedro, conclamaram os demais municípios da Bahia à
luta pela Independência do Brasil, organizaram o governo provisório in-
dependente e conduziram as forças brasileiras até a vitória final no dia 2
de julho. Em homenagem a este heróico protagonismo, a Lei Estadual nº.
10.695/07 decidiu pela transferência da sede do governo estadual para a
cidade de Cachoeira a cada 25 de junho. E por compreender a importância
de tais feitos para a história da Bahia e do Brasil, sancionei o Decreto-Lei nº
2457, de 20 de abril de 2010, que torna o Hino ao 2 de julho o hino Oficial
do Estado da Bahia.

Através desta coletânea, o Governo do Estado da Bahia apresenta al-


gumas evidências históricas do grande esforço que foi empreendido pelo
povo baiano, para formar um exército e uma força naval capazes de vencer
um poderoso inimigo, que dispunha de tropas profissionais, treinadas nas
guerras europeias contra os exércitos de Napoleão. Vidas, inteligências,
recursos econômicos, tudo foi mobilizado em favor da Independência do
Brasil. Estes feitos gloriosos devem ser relembrados, a cada 2 de Julho,
pela Bahia de todos nós.

Jaques Wagner
Governador da Bahia

Caboclo - Nelson Araújo


CRONOLOGIA DO PROCESSO DE INDEPENDÊNCIA DA BAHIA
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A Guerra da Bahia

2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL


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Ubiratan Castro de Araújo


Introdução

Para esta coletânea foram selecionados textos de historiadores


que traçam o contexto da Guerra de Independência do Brasil na
Bahia. No texto de abertura A guerra da Bahia apresento aspectos
sócio-políticos do cotidiano da cidade de Salvador durante os me-
ses de conflito. Em seguida, Sérgio Armando Diniz Guerra Filho
apresenta o perfil dos adeptos da causa brasileira no texto Patrio-
tismo e conflito de classe na Independência da Bahia (1822-23).
Um panorama geral do processo político da Independência da
Bahia foi delineado pelo historiador Braz do Amaral, em artigo
intitulado A Bahia na Independência Nacional, publicado pela
Imprensa Oficial do Estado, na edição Comemorativa ao Cente-
nário da Independência da Bahia, em 1923. Da mesma publica-
ção, selecionamos trechos relativos aos acontecimentos do 25 de
Junho, em Cachoeira, do artigo intitulado O papel de Cachoeira
nas lutas da Independência, da autoria de Alberto Rabello. Para
estes textos foi atualizada a grafia da publicação original. Para a
análise dos aspectos militares da campanha das forças terrestres,
organizadas por Labatut como Exército Pacificador, recorremos
ao artigo do historiador militar Sérgio Roberto D. Morgado, intitu-
lado Os Combates de Pirajá e Itaparica e, para a guerra nos mares,
reproduzimos o artigo do historiador Jorge Calmon, As Lutas pela
Independência nos Mares da Bahia, ambos publicados pela Revis-
ta da Bahia, V.32, nº. 36. Egba, 2002. Além destes, reproduzimos
a descrição da entrada do Exército Pacificador na Bahia, no dia 2
de Julho de 1823, feito pelo botânico e viajante baiano Antonio
Moniz de Souza, que tudo viu e relatou no seu livro Viagens e Ob-
servações de um Brasileiro, publicado pelo Instituto Geográfico
e Histórico da Bahia, em 2000. A conclusão ficou a cargo de um
texto sobre comemorações em torno do 2 de julho, de Wlamyra
Albuquerque intitulado A festa do dois de julho.
Para ilustrar esta edição, utilizamos fotos cedidas pela Asses-
soria Geral de Comunicação – Agecom e pelo Centro de Memória
da Bahia.

Ubiratan Castro de Araújo


Diretor-geral da Fundação Pedro Calmon /SECULT

Cabocla - Nelson Araújo

2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL


Martírio da Sóror Joana Angélica - Acervo Fundação Pedro Calmon
A guerra da Bahia
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A Guerra da Bahia

A guerra da Bahia
Ubiratan Castro de Araújo

• Os portos de saída para os produtos


A CIDADE DA DISCÓRDIA
brasileiros deviam ser obrigatoriamen-
Os mesmos ventos alísios que trouxeram
te os de Portugal.
para a Bahia a revolução liberal e suas Cortes
começaram a trazer as más notícias, que fo-
Um debate público trouxe à tona essa di-
ram alimentando as desconfianças, semeando
vergência irreconciliável. Começou a circular
a discórdia entre os aliados e, por fim, provo-
na Bahia um opúsculo anônimo, redigido em
cando a guerra civil. O pomo da discórdia era
francês, sob o título Le Roi et Ia Famille Royale
exatamente a profunda divergência entre os li-
de Bragance doivent-íls, dans les circonstances
berais portugueses e os liberais baianos sobre
présentes, retourner au Portugal, ou bien rester
as características da união econômica entre
au Brésil? (Biblioteca Nacional, 1923). A pri-
europeus e americanos no que seria o rege-
meira ideia que escandalizava era a afirmação
nerado império português. Os boatos vindos
de que Portugal, no seu estado atual, não podia
de Lisboa davam conta dos debates e sobre
absolutamente viver sem o Brasil, enquanto
medidas que começavam a ser implementa-
que o Brasil, ao contrário, não tirava a mínima
das contra a liberdade comercial da capitania.
vantagem de sua união com Portugal. O autor,
O cônsul francês relatou ao seu governo que,
identificado pelo ministro Thomaz Antonio
já no 1º de maio de 1821, em razão de boatos
como um certo português de nome Caille, de-
que davam conta de medidas restritivas ao co-
monstrava a sua tese através de três ordens de
mércio exterior, começou a haver mobilização
consideração:
militar na cidade. Para os baianos a abertura
dos portos ao livre comércio exterior, obtida • A inexistência de indústrias em Portu-
em 1808 e estendida em 1814, era irrevogável. gal fazia deste país um intermediário a
Esta era apenas a ponta do iceberg. A verda- mais, desnecessário, entre o Brasil e os
deira questão dos revolucionários portugue- países europeus exportadores de pro-
ses era: como libertar Portugal da tutela ingle- dutos manufaturados. O vinho, o sal e o
sa e como fazer de Portugal um país moderno vinagre, únicos produtos portugueses
e industrializado como a Inglaterra? Quem pa- de exportação, somente mantinham
garia os custos desta revolução econômica? - O posição no mercado brasileiro graças a
Brasil. Começou a se configurar um novo “pac- medidas protecionistas;
to colonial”, logo chamado de “Recolonização”. • O Brasil poderia ter acesso a mercados
As grandes linhas da recolonização eram: mais interessantes formado por países
• Toda navegação entre o Brasil e Portu- fornecedores de produtos manufatu-
gal seria considerada como navegação rados, que não dispunham de colônias
de cabotagem e todo transporte transa- e, portanto, não dispunham de uma
tlântico seria feito em navios de pavi- oferta protegida de produtos tropicais.
lhão português; Eram eles os Estados Unidos da Améri-
• O Brasil seria obrigado a consumir o vi- ca, a Alemanha, a Suécia, a França;
nho, o vinagre e o sal de Portugal; • O único produto interessante que os
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Ubiratan Castro de Araújo


Convento N. Sra. da Conceição da Lapa - Acervo Fundação Pedro Calmon

portugueses tinham a oferecer ao Bra- comercial portuguesa, terminariam fatalmen-


sil era o imigrante português e, mesmo te por se submeter aos estrangeiros.
assim, seria desejável substituí-los por Pela virulência xenófoba contra os estran-
colonos alemães, suíços, ingleses, irlan- geiros, e especialmente contra os ingleses que
deses, dinamarqueses, suecos e france- se estavam aliando com os maus portugueses
para tomar o Brasil, a “nossa terra”, sustenta-
ses.
va que havia um só povo, um só reino, uma só
O partido da Praia reagiu violentamente
família. Por isso, o Atlântico não passava de
através do jornal Idade d’Ouro, sendo assim
um mar interior pelo qual se fazia, na verda-
forçado a revelar o seu projeto econômico para
de, uma navegação de cabotagem, entre por-
a Bahia. O autor, igualmente anônimo, defen-
tugueses.
deu inicialmente a corporação comercial da
No terceiro parágrafo, o praísta reconhecia
Bahia, terrivelmente prejudicada pela liberda-
a inexistência de uma indústria portuguesa,
de de comércio experimentada pela América
cuja responsabilidade recaía sobre a incompe-
Portuguesa desde 1808. Segundo ele, o único
tência do governo, e sobre a ação nefasta dos
grande resultado da abertura dos portos bra-
estrangeiros.
sileiros tinha sido a destruição da navegação
O restabelecimento do monopólio portu-
mercante transatlântica portuguesa e a séria
guês sobre o comércio brasileiro resultaria,
ameaça que pesava sobre a
em fim de contas, no desen-
navegação mercante de ca- “Como libertar Portugal volvimento das indústrias
botagem. Entre impropérios da tutela inglesa e em Portugal. Os brasileiros,
e ofensas dirigidas contra como fazer de Portugal inclusive os baianos, agora
os traidores e estrangeiros, um país moderno e cidadãos do novo império
emergia a afirmação de que industrializado como constitucional, irmãos dos
os “filhos da terra” eram in- a Inglaterra? Quem portugueses, que tanto se
capazes de exercer todas as pagaria os custos haviam beneficiado com a
operações e ofícios da inter- desta revolução transmigração da família
mediação comercial e finan- econômica? - O Brasil. “ real para o Rio de Janeiro,
ceira e, sem a corporação
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A Guerra da Bahia

Casa da Torre de Garcia d'Avila, Bahia, Brasil. - Wikipedia.

deveriam agora demonstrar fraternidade com levante de escravos, como a insurreição negra
os irmãos europeus fornecendo os recursos em São Domingos–Haiti. Era, pois, necessá-
para o progresso de Portugal. rio enviar mais tropas para a Bahia, porque o
Finalmente, sobre a imigração, o autor rea- exército português seria a única instituição ca-
firmava o direito prioritário dos portugueses paz de assegurar a ordem pública. Os senhores
virem para o Brasil, mas nunca como colonos de engenho e seus representantes afirmavam
porque esta era “a sua alto e de bom som que não havia nenhum pe-
terra”, a terra da fortu- rigo de insurreição geral de escravos no Brasil.
“Era um novo racismo na, do enriquecimento, Os deputados brasileiros nas Cortes chegaram
europeu, filho do e nunca terra de traba- mesmo a subavaliar a população escrava no
Iluminismo, que lho. O duro labor era Brasil, como o deputado Costa Aguiar, que citou
considerava estas para os colonos estran- a Bahia como a capitania em que registrava-se
populações inferiores, geiros, que deveriam uma maior concentração de escravos e, mesmo
incapazes de se ser enviados para os lu-
aí, havia uma proporção de um escravo para
integrarem em um três homens livres. (CARVALHO, 1979). Fazer
gares mais longínquos
modelo de civilização da escravidão uma questão pública, uma ques-
e insalubres do país.
europeia e, portanto, tão de estado, era tudo o que não queriam os
Um outro tema cen-
de exercerem plena senhores da Bahia. Já tinham firmado a sua po-
tral dividia brasileiros e
e corretamente os sição em um manifesto publicado na Bahia em
direitos de cidadania.” portugueses nos deba- que afirmavam o caráter privado da escravidão,
tes das Cortes: a nova
descrita como uma escravidão doméstica que
gestão da escravidão
só incidia sobre africanos (AMARAL, 1957).
no Brasil. Os praístas
Para os donos de escravos, era um equívo-
mais exaltados, na Bahia e em Lisboa, susten-
co atribuir aos levantes, incidentes ordinários
tavam que era iminente o perigo de um grande
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Ubiratan Castro de Araújo


regimento que veio subjugá-los matou sumaria-
mente 25 negros e prendeu 18. Coitado! (FRAN-
ÇA,1980, p. 60)

Um terceiro ponto de discórdia que desen-


cadeou a revolta aberta dos baianos foi o proje-
to praísta de lusitanizar a administração local,
principalmente a força armada. A rivalidade
entre as tropas brasileiras e portuguesas era
antiga. Os militares portugueses tinham vivido
as guerras napoleônicas e as guerras peninsu-
lares, nas quais afirmou-se um novo modelo de
exército nacional, politizado, filho da revolução
francesa.
Construía-se, nesta época, o paradigma do
soldado-cidadão. Para eles, as tropas brasilei-
ras eram incapazes de se ajustarem a esse novo
modelo de exército europeu. Também traziam
do intenso convívio com outros contingentes
europeus um profundo desprezo pelas popula-
Sóror Joana Angélica - Wikipedia
ções negras, mestiças e de cor dos demais con-
e próprios da escravidão, o estatuto de insur- tinentes. Era um novo racismo europeu, filho do
reição. Isso equivaleria a aceitar o estado como Iluminismo, que considerava estas populações
juiz, colocado entre senhor e escravo, como na inferiores, incapazes de se integrarem em um
América Espanhola, abrindo caminho para as modelo de civilização europeia e, portanto, de
negociações diretas de políticos, militares e exercerem plena e corretamente os direitos de
funcionários com escravos rebeldes. Conside- cidadania. Para estes recém chegados da Euro-
ravam também que a tropa de linha europeia pa, as tropas formadas por homens inferiores,
era inadaptada para repressão dos levantes es- de cor, deveriam ser simplesmente desmobili-
cravos. Na lógica dos militares de carreira eu- zadas e substituídas pelo verdadeiro exército
ropeus, um escravo sublevado era um inimigo moderno, o português.
perigoso a ser abatido. Na lógica dos senhores Apesar do devotamento das tropas e dos
de engenho e das tropas locais, um escravo era comandantes brasileiros à causa da revolução
uma peça valiosa que pertencia a um proprie- portuguesa, os militares portugueses desen-
tário e que devia ser subjugado para o cativei- cadearam uma operação sistemática, cujas
ro. Maria Bárbara Pinto da França, senhora de linhas principais eram a desmoralização dos
engenho, assim contou para o seu marido Luís contingentes formados pelos filhos da terra e
Paulino a ação desastrada dos militares portu- o afastamento dos oficiais brasileiros. Desde
gueses que reprimiram um levante escravo em junho de 1821, começou a manifestar-se um
Itaparica: forte descontentamento entre os soldados bra-
Pobre Acciavoli, aconteceu-lhe uma grande sileiros por causa do modo como se fizeram as
desgraça: o administrador e o feitor do seu enge- promoções, preterindo e prejudicando oficiais
nho fòram mortos por alguns negros de sua pro- brasileiros em detrimento dos portugueses. A
priedade, o que não é nenhuma novidade neste tensão aumentou em junho, com a notícia da
país. No entanto, em troca destes dois mortos, o partida de um contingente de 1.100 homens
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A Guerra da Bahia

de Lisboa para a Bahia. Aconteceram, então, os Até então, as divergências entre portugueses e
primeiros afrontamentos entre soldados brasi- baianos eram creditadas a bairrismos e invejas
leiros e soldados portugueses. Segundo despa- locais. O que mais impressionou a Assembleia
cho consular francês de 12 de julho: foi que este ato de rebeldia foi cometido exclu-
sivamente por brasileiros cultivados e ricos, o
Não fira a firmeza do coronel comandante que mostrava a verdadeira complexidade e gra-
do batalhão 12, composto por 400 portugueses, vidade do problema. A questão foi remetida à
soldados da Europa, uma nova revolução teria comissão de redação da Constituição, que reco-
eclodido, o governo teria sido parcialmente reno- nheceu a legitimidade das divergências sobre
vado e a República proclamada pelos brasileiros. as relações comerciais entre o lado europeu e
(MAE/CCC. Consulat cie Bahia, fl. 137) o lado americano do império. Por isso a comis-
são sugeriu iniciar imediatamente a discussão,
No dia 3 de novembro de 1821, os oficiais dando a ocasião aos deputados de todas as ca-
brasileiros de mais alta patente tentaram um pitanias brasileiras para propor a revogação de
pronunciamiento para derrubar a Junta Gover- alguns impostos que pesavam sobre províncias
nativa. Este grupo era composto pelos seguin- de ultramar.
tes militares: tenentes coro- Se em Lisboa os resultados
néis José Egídio Gordilho de foram favoráveis aos baianos,
Barbuda e Felisberto Gomes “No dia 2 de março, obtendo a absolvição a todos os
Caldeira; majores José Maria a desmoralizada manifestantes, na Bahia os pra-
da Silva Torres, José Gabriel junta governativa e ístas aproveitaram para desen-
Daltro, Francisco da Costa a câmara municipal cadear hostilidades públicas
Brandão e Eloi Pessoa da ouviram o juramento contra os soldados brasileiros,
Silva; capitães José Antonio do general Madeira mesmo quando estavam dentro
Fonseca Machado e João An- e deram-lhe posse dos quartéis. Os afrontamentos
tonio Maria; cadete João Pri- no governo da nas ruas foram tão violentos
mo; bacharéis José Avelino província. ” que provocaram o primeiro
Barbosa e Felipe Costa Fer- grande êxodo de habitantes de
reira. Este grupo, sem trazer Salvador para o Recôncavo. Os
consigo as tropas sob seu comando, invadiu o planos golpistas do partido português eram
palácio da Câmara e tentou depor o governo. evidentes. A junta, desmoralizada, organizou a
Davam vivas à revolução portuguesa e exigiam eleição de uma nova junta de governo, na qual
a substituição da junta de governo. Era uma os portugueses recusaram-se a participar. Os
manifestação mais política do que militar. As membros recém eleitos eram todos brasileiros.
tropas portuguesas rapidamente cercaram o Os praístas concentraram seus esforços junto
palácio e prenderam os manifestantes. Foram às Cortes para obterem o controle militar da
todos embarcados na fragata Príncipe D. Pedro cidade e, pela força das baionetas, poderem do-
e enviados a Lisboa com a acusação de tenta- brar a vontade dos baianos, de modo a operar a
rem separar o Brasil de Portugal. recolonização.
A apresentação dos acusados diante do ple-
nário das Cortes provocou viva emoção. Pela A CIDADE CATIVA
primeira vez a assembleia foi obrigada a dis- No dia 15 de fevereiro, chegou ao porto da
cutir o descontentamento dos brasileiros con- Bahia o Correio Leopoldina, trazendo o de-
tra as medidas de restrições econômicas e co- creto real de nomeação do general Luis lgna-
merciais e contra o projeto de recolonização. cio Madeira de Mello para o posto de coman-
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Ubiratan Castro de Araújo


Praça 2 de Julho - Campo Grande

dante das armas da província da Bahia. Com fundamente indignada com a incapacidade
a carta de ditador à mão, o general português das tropas brasileiras.
pôs, imediatamente, as suas tropas em alerta. Afinal, eram tropas treinadas para lutar
Em seguida, procurou fazer reconhecer sua contra piratas e para reprimir revoltas es-
nomeação pela Câmara de Salvador. A reação cravas e não para o combate entre exércitos
do partido brasileiro foi imediata. As tropas regulares, como os portugueses. No dia 2 de
locais aclamaram o brigadeiro Manoel Pedro março, a desmoralizada junta governativa
que, por sua vez, recusou-se a passar o co- e a câmara municipal ouviram o juramen-
mando militar para o general português. Es- to do general Madeira e deram-lhe posse no
tava armado o conflito. O afrontamento que governo da província. A república autônoma
os militares portugueses tanto procuraram da Bahia estava completamente submissa
tinha finalmente se tornado inevitável. Era à ditadura do general português, ao partido
o momento de demonstrar a inutilidade das português e à sua facção mais radical, o Clube
tropas compostas por cabras. Era também a da Água Branca. Todas as tropas da 1ª Linha
oportunidade de acabar com qualquer velei- e de Milícias, compostas por brasileiros, ti-
dade de autonomia política da elite baiana, nham sido dissolvidas e os poucos fugitivos
organizada em torno de uma junta governa- que retornaram à cidade foram enquadrados
tiva e de uma câmara municipal tradicional- em regimentos comandados por oficiais por-
mente prestigiosa. tugueses. Receberam todos as suas rações e o
O afrontamento militar ocorreu no dia 19 pagamento dos seus soldos. Uma anistia geral
de fevereiro de 1822. E, no dia seguinte, as foi proclamada. Era a paz lusitana.
tropas brasileiras tinham sido desbaratadas, Seguros de sua vitória, o general Madei-
deixando a elite local, como a senhora de en- ra e seus partidários nem suspeitavam que
genho Maria Bárbara Pinto da França, pro- tinham desastradamente destampado a Cai-
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A Guerra da Bahia

xa de Pandora. O resultado da sua peque- Antes mesmo das jornadas do 18 ao 20, acon-
na revolução portuguesa nesta província de teceram várias concentrações de negros nas vá-
ultramar tinha sido o forte abalo em toda a rias paróquias vizinhas. Estas reuniões foram
ordem social: as elites locais humilhadas re- muito numerosas. Os negros estavam armados
colhiam-se em orgulhoso silêncio ou fugiam e se abasteceram todos com armas do Trem de
para as vilas do Recôncavo; o poder político Guerra. (MAE/CCC. Consulat de Bahia, fl. 196)
desmoralizado pregava no deserto; a força Logo depois da derrota, estas tropas bate-
armada, adaptada ao controle daquela socie- ram em retirada para os arrabaldes da cida-
dade escravista, estava dissolvida; pobres, de, em total desordem, fora do controle e da
negros livres e escravos confundiam-se em autoridade dos seus oficiais. Esta era a guerra
uma multidão sem controle. O grande desa- deles, feita do seu jeito, não somente contra os
fio para estes portugueses, impregnados por soldados portugueses, mas também, contra os
ideias e práticas das revoluções europeias e, europeus e todos os brancos que apareciam
principalmente, fascinados pelo exemplo do pela frente. Em carta ao seu marido, deputa-
autoritarismo à La Bonaparte, era como reor- do baiano às Corres, Maria Bárbara Pinto da
ganizar uma sociedade escravista a golpes de França relatou que no dia dos combates teve
baioneta! que se refugiar em um navio holandês anco-
Batidas em plena rua, as tropas brasileiras rado no porto e viu os soldados negros e mu-
foram o rastilho de pólvora que espalhou o latos, que se retiravam pela área do Comércio
fogo da rebelião por toda a sociedade. No dia e de Água de Meninos, massacrarem várias
anterior aos combates, grande quantidade famílias de brancos, aos gritos de: “Morte aos
de armas e munições fora retirada do Trem europeus!” (França, 1980, p. 20). Um único
de Guerra, o arsenal, e ar- destacamento conseguiu re-
mazenada nos quartéis dos tirar-se ordenadamente para
dois principais batalhões o norte, na direção do Açu da
brasileiros, o de artilharia, Torre, bastião da legendária
comandado pelo brigadeiro família Pires de Carvalho e
Manoel Pedro, e o batalhão Albuquerque. Ainda assim,
de Caçadores. Para esses estas tropas cometeram vá-
quartéis convergiram os vo- rios atos de violência contra
luntários do 3° e 4° regimen- todos os que se pareciam
tos de milícias, compostos com portugueses, o que pro-
por negros e mulatos, aos vocou reclamações de um se-
quais se juntaram os milicia- nhor de engenho aliado dos
nos do 2° regimento, com- seus oficiais no comando.
posto por brancos pobres e A maioria das tropas em
os soldados do corpo de Or- desordem transformou-se
denanças, além de inúmeros em vários grupos de guer-
civis. Receberam todos ar- rilha, aos quais se juntaram
mas e munições.
desertores e escravos fugi-
dos, que desde já fustigavam
O cônsul francês Guinebau
os conquistadores da cida-
assim registrou a distribui-
de. Foram registradas várias
ção de armas entre popula-
concentrações desses rebel-
res: Maria Quitéria

2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL


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Ubiratan Castro de Araújo


des nas densas matas que cercavam a cidade, pulação não portuguesa da cidade, atingindo
qual um cinturão, que ia de Pirajá a Itapuã. A inclusive, os membros das ricas famílias de
existência desses ajuntamentos de mocambos proprietários de terras. Uma rica senhora não
em torno da cidade era, aliás, um fenômeno crô- escondeu a sua indignação:
nico. Quatro dias após os combates, em nome O partido dos comerciantes está cada dia
de senhores de engenho e de comerciantes, a mais insolente e perigoso. Da Praia, fonte de
Junta governativa encaminhava ao todo pode- todo o mal, vem nossas desgraças. Que espécie
roso general Madeira a seguinte petição: de gente! Eles são ratos do porto que se apro-
A junta provisória de governo desta Provín- priaram do poder. Ninguém está ao abrigo de
cia transmite em anexo a V. Ex. uma cópia da suas ofensas. (FRANÇA, 1980, p.67)
representação feita pelos habitantes do Cabula, Essa hostilidade popular incluía até as
São Bento, Barreiras, Pedrinhas, Pirajá e Bate crianças. Por ocasião da procissão de São José,
Folha, a propósito dos contínuos e numerosos no dia 19 de março, ficou evidente tanto o iso-
agrupamentos de negros armados que tem lamento dos comerciantes portugueses da rua
acontecido, e das mulheres que da Praia, quanto o enfraque-
a eles se juntam, com propósi- cimento do moral das tro-
“Maria Bárbara Pinto
tos extremamente perigosos. pas portuguesas. Durante
da França relatou que
(MAE/CCC. Consulat de Bahia, a procissão da irmandade
no dia dos combates
fl. 196) de São José, um grupo de
teve que se refugiar
O comando português en-
em um navio holandês garotos negros apedrejou
viou várias expedições com o os participantes do cortejo
ancorado no porto
objetivo de desarmar e disper- formado por militares por-
e viu os soldados
sar esses bandos. A cavalaria negros e mulatos, tugueses, comerciantes e
deu várias cargas a algumas que se retiravam pela caixeiros. Os militares por-
léguas pelo interior, engajou área do Comércio e tugueses consideraram esta
muitos combates com perdas de Água de Meninos, ofensa como sendo obra dos
significativas, sem qualquer massacrarem várias adversários brasileiros que
sucesso real em razão da ex- famílias de brancos, teriam pago os moleques
trema mobilidade desses gru- aos gritos de: ‘Morte de rua. O general Madeira
pos armados. aos europeus!’ ” fez um escândalo deste inci-
Dentro da cidade ocupada, a dente de grande importân-
tropa europeia não conseguia cia, chegando a enviar cor-
impedir o vaievém destes soldados e desses respondência detalhada à Cortes no dia 23.
quilombolas que armavam a população negra Os testemunhos da época atestam, no en-
contra ela. Segundo o cônsul Guinebaud, todas tanto, que nada foi preparado e que a reação
as noites se produziam cenas violentas que dos portugueses foi desmesurada e ridícula
acabavam sempre em assassinatos dos dois e atestou tão somente o absoluto isolamento
lados. Surgiram, então, os mata-cabras, expe- social deles. (AMARAL, 1957; FRANÇA, 1980).
dições noturnas de soldados e marinheiros Os homens bons da cidade, ao verem dimi-
portugueses, fora de qualquer enquadramen- nuir progressivamente o contingente militar
to militar, que espancavam e matavam toda por causa desses assassinatos cotidianos, ao
pessoa de cor encontrada nas ruas. Esta guer- verem instalar-se a anarquia pela debilidade de
ra surda terminou por quebrar a disciplina do todos os meios de controle de uma população
exército do Madeira que passou a reprimir de urbana, cuja grande parte era composta por es-
uma maneira descontrolada e cega toda a po- cravos, começaram a abandonar maciçamente
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A Guerra da Bahia

a cidade para se instalarem nos engenhos e vi- poder do absolutismo real. Qualquer que fos-
las do Recôncavo baiano. Deixavam para trás, se o destino do Império Português, esta elite
na capital da província, os portugueses da Praia tentava a qualquer custo evitar a sua exclusão
e seus soldados, sós frente a frente, com a popu-dos postos e cargos de comando do regime
lação mais pobre, negra e em franca insurreição que viesse a se instalar. Esboçou um gesto ino-
contra os ocupantes europeus. Esta população perante às vésperas do conflito do dia 18, ao
pobre, por sua vez, não tinha muitas alternati- encarregar o tenente coronel comandante das
vas. Para estes, sem laços de amizade ou de fa- Ordenanças, a tropa de polícia, da retomada
mília com os habitantes das abarrotadas vilas do controle da cidade. Nem o comandante ti-
do Recôncavo, ou bem abandonavam os seus nha mais controle sobre os seus soldados que
ofícios e suas casas para se aglomerarem nas aderiam em massa aos militares brasileiros,
matas insalubres em volta da cidade, ou bem nem tinha qualquer autoridade sobre as tro-
suportavam na cidade a progressiva falta de gê- pas portuguesas!
neros alimentícios e os mata-cabras praticado Um mês depois, a Junta experimentou outro
pelos portugueses. gesto de resistência, ainda que tímido, contra
Assim, antes que a elite baiana tivesse esbo-a ditadura do Madeira. Em razão de uma es-
çado qualquer ação política ou militar, o generalcala forçada, arribou no porto de Salvador o
Madeira e seus partidários da Praia já estavam navio São José Americano que transportava
derrotados politicamente. Em pouco mais de um destacamento de 300 soldados sob o co-
um mês tinham demonstrado total incapacida- mando do general Francisco Joaquim Carreti.
de de assegurar um mínimo de ordem, mesmo Imediatamente, o general Madeira ordenou
entre os seus próprios soldados, ainda que ti- o desembarque deste destacamento para co-
vessem concentrado todo o poder político e mi- brir os claros deixados em seu contingente
litar na capitania da Bahia. No dia 31 de março, pelos combates noturnos na capital, ao que se
o governo militar lançou uma proclamação à opôs firmemente o general Carreti, apoiando-
população da cidade condenando e êxodo para -se em dois fortíssimos argumentos: inicial-
o interior. No dia seguinte, a desmoralizada jun-mente, ele tinha recebido ordem expressa do
ta civil fez o mesmo. Assim, um grupo de revo- príncipe regente do Rio para conduzir este
lucionários portugueses, que pretendia regene- destacamento a Lisboa; em seguida, segundo
rar o império, não conseguiu sequer organizar os critérios da hierarquia militar, não estava
a vida cotidiana em uma cidade ocupada. ele, general brigadeiro mais antigo, obrigado
a aceitar ordens de um general mais novo no
posto do que ele. A Junta alegou, inicialmente,
A REAÇÃO DOS que não havia recursos para cobrir as despe-
HOMENS BONS sas com a manutenção e pagamento dos sol-
Nos primeiros dias que se seguiram ao gol- dos para esta tropa. Os comerciantes da rua
pe militar do Madeira, a elite política da capi- da Praia responderam prontamente com uma
tania, representada na junta Provisória de Go- subscrição em dinheiro que ultrapassava lar-
verno e na Câmara Municipal, reagiu com uma gamente a soma requerida pela Junta. Esta
timidez e pusilanimidade à toda prova. Na ver- contra-argumentou que a tropa não deveria
dade, eles tentavam manter um pé na cidade e desembarcar porque tinham recebido ordens
o outro no fundo do Recôncavo; lançavam seus do príncipe regente do Rio, cuja autoridade
olhares para Lisboa, de onde emanava o po- deveria ser reconhecida.
der revolucionário das Cortes, prestando bem O general Madeira reagiu através de corres-
atenção ao Rio de janeiro, de onde emanava o pondência datada de 25 de março, na qual
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Ubiratan Castro de Araújo


afirmava que não estava submetido à auto-
ridade do governo do Rio e, sim, à autori-
dade das Cortes de Lisboa, poder superior
ao Rei. O desembarque deste destacamento
suscitou uma manifestação púbica dos co-
merciantes e aderentes ao partido da Praia
contra os brasileiros, o que marcou o fim de
qualquer autoridade da junta Governativa.
(FRANÇA, 1980, p.72)
A Câmara Municipal teve uma atitude mais
enérgica em oposição à ditadura do Madeira,
mas igualmente inócua. Endereçou uma repre-
sentação formal ao Rei, e não às Cortes, exigin-
do a partida imediata das tropas portuguesas
estacionadas na Bahia, responsabilizando-as
e só elas, por todos os trágicos combates dos
dias 18 e 19 de fevereiro. O começo de reação
organizada dos homens-bons da capitania só
veio à tona 4 meses mais tarde, no dia 14 de
junho, quando o povo e câmara municipal da
vila de Santo Amaro proclamaram a sua ade-
Miguel Calmon, futuro Marquês de Abrantes, primeiro gover-
são ao governo do príncipe Pedro, sediado no nador da Bahia “livre”
Rio de Janeiro. Este ato é o resultado da ação
de Miguel Calmon du Pin e Almeida, recém autoridade civil a se rebelar contra a ditadura
graduado em Coimbra, que trouxe consigo do do general Madeira. Esta adesão tem um valor
Rio de Janeiro, a proposta política de união político muito grande que impressiona o obser-
de todas as capitanias da América Portugue- vador estrangeiro.
sa sob a autoridade do príncipe Pedro, para
a formação de um Império do Brasil (MOR- Um dos chefes dos insurretos é membro da
TON,1974, p.250). Junta e irmão do coronel senhor da Torre, des-
Este ato desencadeou uma série de procla- cendente do famoso português Caramuru que
mações idênticas nas vilas mais importantes casou com a filha de um chefe índio e a conduziu
do Recôncavo. Em seguida a Santo Amaro, à França, à corte de Henrique segundo, onde ela
pronunciaram-se a vilas de Cachoeira e de São recebeu o batismo da mão de Catarina de Mé-
Francisco. Juntaram-se a elas as vilas de Ma- dicis. É o maior proprietário da província. Seu
ragogipe, de Valença, de Jaguaripe e de Pedra irmão é também muito rico, e tem o habito de
Branca. Até o 29 de junho, todas as vilas que fazer-negócios. Ele era secretário geral do go-
constituíam o sistema da baía de Todos os San- verno e capitão-mor (governador) hereditário
tos estavam associadas em torno de um go- da Bahia no regime do Rei. Nos últimos dias ele
verno autônomo, brasileiro, com sede em Ca- lançou uma proclamação muito enérgica contra
choeira. Para assegurar a coordenação desta Madeira e contra os portugueses, que ele trata
federação fiel ao príncipe do Rio, criou-se uma como desordeiros e vândalos. Seu nome é Eles-
outra junta provisória, encabeçada pelo secre- bão Pires e seu apelido é Santinho. (MAE/CCC
tário da junta de Salvador, Elesbão Pires de Car- Consulat de Bahia 1822, fl.239)
valho e Albuquerque, que foi assim a primeira Outro importante líder civil levantou-se con-
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A Guerra da Bahia

“Todos estes reunidos aos


1.500 baianos não formavam
um contingente suficiente para
as tarefas de cerco e assalto
à cidade do Salvador.”

Praça da Lapinha

tra Madeira. Francisco Brandão era membro dois governos não se fariam por esperar. Os
da Câmara Municipal de Salvador e redator doportugueses tomaram a iniciativa de ataque
contra a vila da Cachoeira, logo no dia 25 de
jornal Constitucional de onde sustentou a pro-
paganda antiportuguesa, até ser obrigado a fu-
junho, em que se aclamava a autoridade do
príncipe regente Pedro. Uma goeleta bombar-
gir para Santo Amaro que o elegeu para a nova
deou a Cachoeira, mas foi repelida pelos seus
junta governativa. Sua adesão marca a partici-
pação no governo dos brasileiros dos setoreshabitantes. No dia 10 de julho, canhoneiras
populares. Brandão era um homem de cor, um portuguesas fizeram uma incursão na ilha de
mulato, recém-chegado de Coimbra, onde haviaItaparica, mas bateram em retirada rapida-
concluído o curso jurídico. Era um dos mais ou-
mente.
sados defensores de uma nova nacionalidade A junta de Cachoeira conseguiu reunir ini-
brasileira, diferente da portuguesa. Como si-
cialmente uma força de 1.500 homens. O prin-
nal de ruptura com os europeus, acrescentou a
cipal deste contingente era formado por mi-
seu nome, de origem portuguesa, sobrenomes licianos do Recôncavo, aos quais se juntaram
americanos. Primeiro adotou o sobrenome de centenas de soldados errantes que tinham in-
Gê-Acaiaba, em homenagem aos índios do Bra- tegrado os batalhões derrotados recentemen-
sil; em seguida, Montezuma, em memória do te em Salvador. Não formavam um exército re-
último imperador asteca, chamando-se pois degular, mas bloqueavam com sucesso as vias de
Francisco Gê-Acaiaba Montezuma. acesso para a cidade e tinham plantado balu-
A presença destes dois destacados líderes
artes em outras ilhas da baía, assegurando as-
da província simbolizava a aliança entre os sim uma rede defensiva que opunha obstáculo
grandes proprietários rurais e os nacionais eficaz a possíveis incursões navais contra vilas
urbanos. A eles se juntaram outros repre- e engenhos situados no fundo da baía. Na ver-
sentantes das vilas insurretas. De agora pordade, os baianos retomaram a mesma estraté-
diante haveriam dois governos constituídos gia adotada no século XVII contra os invasores
na Bahia: o do general Madeira, sediado na holandeses. O duplo objetivo, ofensivo e de-
cidade do Salvador, apoiado pelos negocian- fensivo, era impor o bloqueio ao fornecimento
tes, pela tropa e pelos marinheiros, obediente
de gêneros alimentícios e, ao mesmo tempo,
às Cortes de Lisboa; o da Junta de Cachoeira,
impedir as ações dos bandos de desertores e
sediado no fundo da baía de Todos os Santos,quilombolas, espremidos nas matas do entor-
apoiado por senhores de engenho, proprietá- no da cidade, contra as vilas e propriedades do
rios rurais e representantes do povo descon-Recôncavo.
tente de Salvador. Os portugueses contavam com uma tropa
de 3.000 soldados do exército regular e mais
A CIDADE SITIADA os marinheiros portugueses dos navios que
Os primeiros combates entre as forças dos passavam por Salvador e os da esquadra de
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João Félix. Na sua concepção estratégica, acre- ponto de insuflar um motim no navio que tra-
ditavam que o bloqueio ao Recôncavo, impe- zia Labatut do Rio. A manutenção do general
dindo os insurretos a exportarem açúcar, sua francês na chefia desta missão correspondia
principal fonte de recursos para pagar as des- ao desejo da corte do Rio em demonstrar a sua
pesas da guerra, era a principal ação que obri- determinação de impor sua autoridade em re-
garia a capitulação do oponente. lação à liderança baiana, concorrente e rebel-
Para completar a guerra de bloqueios, no de até bem pouco tempo atrás.
dia 12 de novembro o governo do Rio decidiu A chegada de Labatut mudou todo o curso
que todo produto estrangeiro entrado pelo da guerra da Bahia. Trazia um ultimato para o
porto da Bahia e reexportado para qualquer general Madeira evacuar imediatamente a pra-
outro porto brasileiro seria gravado mais uma ça da Bahia. Trazia também ordens expressas
vez pelo imposto de importação. Este era um de transformar aqueles grupos armados sob
sério golpe no grande comércio português da comando de civis em um exército disciplinado,
Bahia. leal ao novo império do Brasil, em condições
O bloqueio como estratégia não rendeu os operacionais de vencer o exército do Madeira.
frutos esperados para ambos os lados. O blo- Trazia 5.000 fuzis, peças de artilharia, mu-
queio aos gêneros de boca só atingia realmen- nição e grande quantidade de armas ligeiras.
te a população pobre da cidade sitiada. Os por- Trazia consigo 200 soldados negros, os Liber-
tugueses e seus soldados podiam abastecer-se tos do Imperador. No entanto, um general que
de carnes salgadas, farinhas e bacalhau por via devia formar um exército para ganhar uma
marítima, a partir da Colônia do Sacramento. guerra precisava recrutar para suas fileiras
Também o bloqueio às exportações de açúcar homens em quantidade suficiente. Antes de
se mostrou ineficaz. chegar à Bahia, desembarcou em Sergipe e
Aquela era uma guerra imóvel, em que os passou por Pernambuco e Alagoas, onde re-
oponentes esperavam mais um desfecho polí- crutou cerca de 700 homens. Da Paraíba re-
tico do que uma definição militar. cebeu mais 200 soldados e, posteriormente,
do Rio 800 homens que compunham o bata-
LÁ VEM LABATUT lhão do Imperador. Todos estes reunidos aos
O governo do Rio de janeiro, ao romper com 1.500 baianos não formavam um contingente
as Cortes pela proclamação da Independência suficiente para as tarefas de cerco e assalto à
do Brasil, tinha urgência em estabelecer sua cidade do Salvador.
soberania sobre todo o território americano Para completar as suas fileiras, nada mais
do Império português. O jovem imperador lógico para um militar profissional como La-
Pedro I não tinha tempo nem paciência para batut do que proceder a um recrutamento ma-
uma longa negociação com o Madeira ou com ciço junto à população local, o que reavivava
as Cortes sobre a cidade do Salvador. Era che- todos os traumatismos do recrutamento de li-
gado o momento de uma solução militar para vres e brancos pelas Ordenanças no tempo da
aquele impasse. Para tal fim, o governo do Rio colônia. Por isso também, a partir de sua che-
contratou o general Pierre Labatut, desenga- gada, passa a ser objeto de todo tipo de res-
jado do exército de Napoleão, com experiên- trições por parte das lideranças do Recôncavo.
cia militar na América espanhola. A nomeação Irritado, o general chegou a enviar um relató-
de um general estrangeiro para o comando do rio ao Rio, no qual pedia reforços e, no caso
exército, que deveria libertar a Bahia, provo- negativo, ameaçava retirar-se com suas tropas
cou intensa reação da elite baiana. O brigadei- e deixar baianos e portugueses com suas que-
ro baiano Domingos Alves Branco chegou ao relas. A solução seria buscar entre os escravos,
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A Guerra da Bahia

os soldados para este novo exército. de 327 escravos mulatos claros. Além destes
Veterano da guerra de independência da contingentes, é muito difícil estimar o contin-
Colômbia, sob o comando de Simon Bolívar, gente negro em batalhões onde se misturaram
Labatut tinha ainda vivas em sua memória soldados negros, com recrutas escravos ne-
as práticas usuais dos exércitos libertadores gros, mestiços e sertanejos no exército de La-
hispano-americanos, pelas quais os escravos batut. No entanto, a partir do depoimento do
eram recrutados maciçamente em troca da sua botanista Antonio Muniz de Souza, voluntário
alforria. Uma ampla proclamação foi lançada recusado por Labatut para o cargo de enfer-
aos escravos da Bahia. Pedidos formais foram meiro, podemos crer que eram muitos os ne-
dirigidos às câmaras das vilas confederadas de gros naquela tropa.
Santo Amaro e São Francisco à também junta Segundo ele, o maior flagelo do exército
de Cachoeira. Labatut pedia que os senhores eram as infecções e gangrenas provocadas
liberassem parte de seus escravos para a for- pelos bichos-de-pé (tunga penetrans). Ora, os
mação de um corpo de primeira linha a ser co- soldados ex-escravos, habituados a andarem
mandado pelo capitão José Gomes Moncorvo. descalços por força da interdição costumeira
Este pedido caiu como uma bomba nos meios dos calçados aos cativos, eram naturalmen-
senhoriais. Tem-se notícia de que apenas em te os prováveis pacientes deste mal. Também
Santo Amaro alguns senho- a tradição oral consagra esta
res liberaram escravos par- imagem do exército de Labatut
dos e mulatos claros para “Os revolucionários como tropa negra:
formarem dois batalhões. mais radicais já
(ACCIOLI, 1937). A negati- estavam divididos Fecha a porta
va formal dos senhores de sobre a presença Lá vem Labatut,
escravos não tardou. Foi ar- militar portuguesa Com tropa de negro
gumentado que ainda havia no Brasil.” Parece urubu. (DP)
muitos trabalhadores livres
na província e que o recruta- A libertação de escravos
mento deveria incidir prioritariamente e mais para o serviço do exército, ou mesmo a liber-
rigorosamente sobre estes. Argumentou-se, tação de escravos por uma autoridade pública,
ainda, que a convivência na tropa de membros sem indenização do seu valor ao antigo se-
de famílias de pequenos proprietários, com nhor, era um fato político novo e revolucioná-
ex-escravos que tinham sofrido castigos cor- rio na Bahia. Mais revolucionário ainda o fato
porais, podia ensejar atos de vingança e rebe- de homens de todas as cores, de todas as con-
liões. (PINHO, p.258) dições civis, estarem sendo chamados para a
O que foi negado, foi tomado ou veio por constituição de um exército novo, instrumento
si só. Em tempo de guerra, os militares costu- da vontade política de uma nação que se es-
mam requisitar o que necessitam pela força tava constituindo naquele momento. Outros-
das próprias armas. Labatut não foi diferente. sim, os comandantes e oficiais de milícias ne-
Em muitos engenhos ele os apropriou de bens, gras e mulatas acabavam de ser incorporados
víveres e escravos que foram incorporados no no exército de Labatut como oficiais de linha,
exército. Muitos outros fugiram de seus senho- com o mesmo privilégio de patentes e postos
res e alistaram-se no exército para ganhar a li- que gozavam os oficiais brancos, filhos das
berdade. Além do destacamento vindo do Rio, famílias proprietárias da Bahia. De fato, La-
os Libertos do Imperador, certamente formou- batut estava fazendo no Recôncavo mudanças
-se um outro Batalhão de Libertos, com cerca tão estonteantes para a sociedade escravista
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baiana, quanto havia feito na cidade sitiada o O turista que chegar à cidade do Salvador,
português Madeira. Se este havia lusitanizado no dia 2 de julho, certamente participará de
o exército, expulsando de suas fileiras todos uma grande festa popular, durante a qual um
os oficiais e soldados filhos da terra, Labatut desfile cívico reconstitui o trajeto do Exército
terminou constituindo um primeiro exército Pacificador que expulsou os tiranos portugue-
nacional brasileiro, formado por homens que ses em 1823. As duas partes festejam mui jus-
aderiam a uma causa - o ideal da Independên- tamente suas vitórias, porque o fim do sítio de
cia comandado por oficiais vindos do Rio, de Salvador foi, naquele momento, a melhor solu-
Pernambuco e por homens de cor da Bahia, ção para sitiantes e sitiados.
e tendo no comando supremo um general es- Para o sitiado general Madeira, a situação
trangeiro que fazia questão de impor pela vio- era militarmente estável. Incapaz de furar o
lência a sua autoridade por cima das hierar- cerco, mantinha-se bem defendido dentro
quias sociais tradicionais. Era uma espécie de da cidade e ainda dispunha de uma superio-
pequeno Bonaparte baiano. ridade numérica de cerca de 12 mil homens,
Assim, mais do que uma tropa libertadora, contados os soldados e marinheiros. Sua frota
o exército de Labatut foi uma força desorgani- dispunha de 438 canhões. No entanto, a dita-
zadora da sociedade e da economia açucarei- dura militar que ele havia imposto em nome
ra no Recôncavo. As relações entre o general do regime revolucionário das Cortes de Lisboa
e a junta de Cachoeira foram piorando de tal estava política e socialmente derrotada. Na
forma que os próprios comandantes do seu sua praça forte não dispunha mais de nenhu-
exército conspiraram abertamente contra ele ma instituição para o exercício do poder civil.
e terminaram por depô-lo do comando e por Isolado com o seu grupo de portugueses radi-
prendê-lo no dia 24 de maio de 1823, apesar cais, só podia contar com as suas tropas para
do sucesso militar da sua tropa. Foi acusado conter uma população pobre, faminta e arma-
de cometer violência contra senhores de en- da que contra atacava toda noite pelos becos e
genho, apropriar-se do tesouro de prata do ladeiras escuras de uma cidade desesperada.
engenho Passagem, de propriedade de portu- Também em Lisboa enfraquecia-se a posi-
gueses, e de haver fuzilado quilombolas nos ção política do Madeira. Os revolucionários
arredores de Salvador. Labatut, diferente de mais radicais já estavam divididos sobre a
César, veio, venceu, mas não viu. Na liberação presença militar portuguesa no Brasil. Nas
da cidade, no 2 de Julho, estava preso. Foi en- cartas publicadas em Paris por um jacobi-
viado para o Rio em setembro, submetido ao no italiano, Joseph Pechio, que esteve em
conselho de guerra e absolvido em fevereiro Lisboa em 1822, encontra-se o relato do
de 1824. estado de espírito dos jacobinos portugue-
ses sobre a independência do Brasil. Alguns
A CIDADE LIBERADA mantinham-se aferrados ao propósito de re-
O visitante que chegar ao Museu do Exérci- generação do Império marítimo português e
to, em Lisboa, encontrará em um dos mostruá- de sua marinha de guerra e mercante, pela
rios, ao pé das bandeiras e insígnias da Legião manutenção a qualquer preço do Brasil. (PEC-
Constitucional Lusitana, o diploma que atesta CHIO, 1822, p. 51/55) Outros, já majoritários,
o grande feito militar do general Ignacio Ma- acreditavam que a regeneração de Portugal
deira de Mello, comandante da praça da Bahia, passava mais pela reaproximação com a Euro-
que conseguiu com perfeição, sem capitulação, pa e especialmente com a Espanha. Para estes,
a retirada de toda a sua tropa com todo o seu a revolução liberal era europeia. Estes não mais
material militar de uma praça sitiada. acreditavam na manutenção na união com o
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
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A Guerra da Bahia

“O comando formal cabia ao Lima


e Silva, comandante do Batalhão
do Imperador, com apenas 800
homens, sem condição de impor
sua autoridade sobre o baiano
Felisberto Gomes Caldeira e
sobre o pernambucano Barros
Falcão, que disputavam entre
si a liderança política sobre
a tropa e o lugar de caudilho
deixado por Labatut. ”

Brasil manu militari, até por considerarem que progressão anterior e podia esperar que a
os seus custos seriam muito elevados para Por- sua tropa ainda pudesse ser de alguma ser-
tugal. Acreditavam que era preferível nego- ventia para a defesa do regime constitucio-
ciar com um Brasil independente um bom nal.
tratado comercial, como fizera a Inglaterra Um fato novo, produzido pelo governo
com Portugal em 1810, assegurando vanta- do Rio de janeiro, acelerou a decisão por-
gens e privilégios para o comércio e imigra- tuguesa pela retirada da Bahia. Em março
ção portuguesas. de 1823, chegou à Bahia uma divisão naval
Da parte dos conservadores portugueses, composta por 9 navios, comandada pelo
o evidente desastre político dos jacobinos Lord Cochrane, um almirante inglês, jaco-
na Bahia justificava as providências para a bino expatriado como Labatut, a serviço do
substituição do general Madeira de Mello imperador Pedro I. Não era uma esquadra
pelo general José Carlos de Saldanha Olivei- numerosa como a portuguesa comandada
ra e Duan, cujo decreto de nomeação chegou por João Félix. Sua tripulação ainda era mal
a ser assinado pelo rei, no dia 13 de feverei- treinada, mais parecidos a piratas do que
ro de 1823. O general substituto renunciou aos marinheiros da Royal Navy. No entanto,
a nomeação por considerar insuficientes os nos primeiros combates não deixou nenhu-
meios para fazer a guerra aos brasileiros na ma dúvida sobre a sua capacidade de provo-
Bahia. (AMARAL, 1957, p.306). Pior ainda car perdas crescentes à marinha portugue-
para os seguidores do partido da Praia na sa. Para os praístas da Bahia, a sua marinha
Bahia era a progressão, em Portugal, da re- era a espinha dorsal para a regeneração do
belião contra o regime das Cortes, liderada império marítimo português. Na sua lógica
pelo conde de Amarante, contando com o de marotos, defenderam o porto até o últi-
apoio da Santa Aliança. Em razão do tem- mo momento. Era preciso agora salvar os
po de travessia atlântica, o general Madeira navios. E assim eles fizeram vela!
não podia estar informado no dia 1° de ju- Para os sitiantes também, estava na hora
lho que as tropas da restauração absolutista de levantar o cerco. A desorganização pro-
alcançaram as ruas de Lisboa no dia 24 de vocada pela guerra produzira estragos ir-
junho, mas certamente estava a par de sua reparáveis no Recôncavo açucareiro. Os
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engenhos não moeram a safra naquele ano. va, comandante do Batalhão do Imperador,
Muitos engenhos de portugueses foram de- com apenas 800 homens, sem condição de
predados ou abandonados pelos seus pro- impor sua autoridade sobre o baiano Felis-
prietários. As fugas de escravos para a guer- berto Gomes Caldeira e sobre o pernambu-
ra ou por ocasião da guerra tinham deixado cano Barros Falcão, que disputavam entre si
muitos engenhos desertos. Os engenhos me- a liderança política sobre a tropa e o lugar
nores sofreram bastante o peso das requisi- de caudilho deixado por Labatut. A discipli-
ções e contribuições em dinheiro, em víveres na dissolvia-se. Aumentavam as deserções.
e em homens para o exército. Mesmo os enge- As tropas estavam acantonadas nas matas
nhos mais protegidos sofriam com a desorga- em volta da cidade, em condições precárias,
nização da economia açucareira. Fazia falta a sem medicamentos, sem fardamento e abri-
articulação com o porto, de onde vinham as go que as protegessem das chuvas.
importações de produtos indispensáveis ao A taxa de doentes atingiu a proporção
funcionamento dos engenhos, o cobre por de 10%. A moral da tropa estava tão baixa
exemplo, e onde se fazia o financiamento da que já se havia acostumado à idéia de sua
produção. (FRANÇA, 1980, p. 83/84). O porto incapacidade de tomar a cidade por assal-
continuava bloqueado para as exportações. A to. Restava, pois, manter o front imobilizado
maior parte da população pobre, que havia até o esgotamento dos gêneros de boca na
abandonado a cidade sitiada, estava agora cidade sitiada. Era a guerra da doença con-
imprensada entre as linhas dos dois exérci- tra a fome.
tos, dizimada pela doença e pela fome. Que alívio, quando nasceu o sol ao 2 de
A situação militar dos brasileiros não Julho! As tropas brasileiras perceberam,
era nada brilhante. A deposição do general como que por encanto, que não havia mais
Labatut tinha transformado o Exército Pa- um só soldado português na cidade de São
cificador em uma confederação de destaca- Salvador na Bahia de Todos os Santos. Que
mentos militares que se conflitavam entre mais fazer senão entrar em triunfo na cida-
si. O comando formal cabia ao Lima e Sil- de já desocupada?

REFERÊNCIAS
FONTE MANUSCRITA
MAE/CCC Consular de Bahia - Arquivos do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Fança. Quay D’Orsay - Correspondance
Commerciale et Consulaire. Consular de Bahia. v. 1 (1673-1824). Consul Jacques Guinebaud.
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2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL


A Bahia na
independência
nacional

Moumento ao 2 de julho - Gilberto Ferrez


30
A Bahia na independência nacional

A Bahia na
independência nacional
A história da emancipação dos povos é a para levar a efeito a nossa aspiração de nos se-
parte mais importante da existência deles, pararmos do reino europeu.
porque exprime o pensamento mais nobre O governo, ao contrário do que se deu no
que pôde animar os seres, o da sua própria Sul, era adverso ao sentimento do povo baiano,
liberdade, visto ser ela a mais justa aspira- desprezava a nossa gente, se apoiava em força
ção dos homens. É também a independência armada, excelente pelo seu espírito de corpo
das nações o que mais as envaidece e exalta e seu valor, provado na campanha peninsular,
o sentimento pátrio pelo exemplo que re- assim como na parte mais rica e poderosa da
presentam os sacrifícios feitos para obtê-la. burguesia, isto é, na classe comercial.
Entre os povos dos quais a emancipação Esta classe conservadora se tinha tornado
não custou dispêndios de coragem, perseve- política, e, como os seus interesses se ligavam
rança e valor, desmerece e se oblitera com à metrópole, fortemente se opôs à nossa inde-
facilidade o patriotismo, por não terem pre- pendência.
sentes na vida os mais nobilitantes incenti- Em 10 de Fevereiro de 1821 rebentou aqui
vos das suas capacidades e energias. uma revolução que era destinada a secundar a
Dá-se na historia do Brasil a circunstân- grande reforma da monarquia, iniciada na ci-
cia curiosa de se haverem passado na Bahia dade do Porto no ano anterior, quando a nação
os fatos mais notáveis e dignos de citação portuguesa havia reagido contra os seus longos
da sua independência, justamente aqueles sofrimentos, repelindo os princípios do regime
em que foi preciso empregar esforço e bravu- caduco do absolutismo real.
ra, pois foi aqui a cena dos seus lances trágicos, Aqui, em 10 de Fevereiro, as tropas da guar-
dos acontecimentos de celebridade e refevo, nição, os portugueses e os brasileiros natos
daqueles que se consideram como mais nobi- confraternizaram todos no mesmo pensamen-
litantes entre as nações cultas. to, derrubaram o governo e constituíram uma
A independência foi levada a efeito no sul do junta governativa, de modo que o Conde da
Brasil com facilidade e sem trabalho por par- Palma, o qual fora investido da autoridade pela
te do povo, visto que foi realizada pelo próprio monarquia absoluta, não quis fazer parte da
governo. administração revolucionária e se retirou para
Contra tudo o que razoavelmente era lícito o Rio de Janeiro no navio de guerra inglês Ica-
esperar, foi o príncipe regente D. Pedro, o qual rus. Assumiu o poder a Junta Provisional, nome
havia recebido do governo, português a mais que havia tomado a nova forma da autoridade
alta investidura que podia existir no país, após executiva.
a retirada da corte e do soberano, quem se pro- Seguiu-se a esta revolução da Bahia a que
nunciou pela separação da metrópole, desobe- rebentou no Rio de Janeiro, no fim do mes-
decendo ao seu governo e depois declarando mo mês de Fevereiro, e da qual resultou a
preferir a morte á ficar dependente da autori- volta da corte portuguesa e do rei D. João VI
dade que tinha desfeito os seus atos e o havia para a Europa.
desautorado e repreendido severamente. O príncipe D. Pedro, ambicioso, ardente,
Aqui não tivemos um tão precioso elemento inculto, pouco ponderado, mas valente, re-
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
1
313

Braz do Amaral
Cabocla - Acervo Fundação Pedro Calmon - Nelson Araújo

soluto e impressionável, se deixou levar pela pelo militar; Paulo José de Mello Azevedo e
bela obra de ser o fundador de um Estado Brito pela lavoura; Francisco Antônio Filguei-
novo na America, o qual, mais tarde, outra ras pelo comércio; Luiz Manoel de Moura Ca-
vez se juntaria à coroa portuguesa, quando bral, pela cidade; José Caetano de Paiva Perei-
lhe chegasse a ocasião de ocupar o trono de ra e José Lino Coutinho, secretários.
seus avós, como era de lei na monarquia he- A Junta Governativa eleita foi constituída
reditária de Portugal. por Francisco Vicente Vianna, presidente,
A Junta Provisional foi substituída por Francisco Carneiro de Campos, secretário,
outra eleita, mas, tanto uma como a outra Manoel Ignacio da Cunha Menezes, José
obedeciam ao governo da metrópole, em Cardoso Pereira de Mello e Antônio da Silva
Lisboa. Telles.
A Junta Provisional se compôs dos seguin- O instinto popular levava os baianos para
tes representantes das classes da sociedade: o governo do Rio de Janeiro, mas este era
Francisco José Pereira, Francisco de Paula e o sentimento dos que liam e da massa dos
Oliveira e Manoel Pedro de Freitas Guimarães cidadãos.
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
32

Câmara Municipal, para que não fosse regis-


A Bahia na independência nacional

A guarnição portuguesa e os comercian-


tes só queriam o domínio das cortes de Lis- trada a carta régia da nomeação e a Junta
boa e da autoridade real. de Governo, olhando para o perigo, diante
Havia um outro partido que aspirava á in- da violência das paixões políticas que leva-
dependência, sob a forma de uma republica. vam de vencida todas as considerações que
Os portugueses tratavam os filhos do país até ali tanto preponderavam tudo, procurou
com arrogância e desprezo, e, quando che- pôr-se de permeio entre os partidos, pedin-
gou aqui, em princípios de 1822, a nomea- do á Câmara que nada resolvesse sobre o
ção do brigadeiro Ignacio Luiz Madeira de registro, ou insinuação do titulo e obtendo
Mello para governador das armas, rompeu dos dois brigadeiros a promessa de mante-
a luta. rem estrita disciplina nas duas forças que se
Desde a revolução constitucionalista de ameaçavam mutuamente.
10 de fevereiro, era este cargo exercido por Os portugueses, mais fortes pela discipli-
Manoel Pedro de Freitas Guimarães, que ti- na e pelo habito da guerra, desejavam um
nha sido um dos poderosos elementos da- choque e desafiavam os adversários.
quele acontecimento político e que era bra- Promoveu a Junta uma reunião em palá-
sileiro nato. cio e nela foi resolvida a urbanização de uma
Depois da organização da Junta Provisional, junta militar para o governo das armas, da
imediatamente, havia o povo reclamado que qual teria o general Madeira a presidência
fosse Manoel Pedro incluído entre os membros e indicaria dois vogais, junta da qual faria
dela, o que se fez pelo que ficou este oficial na também parte o brigadeiro Manoel Pedro,
qualidade de governador das armas. que também indicaria dois vogais, entrando
Elevado a tal comando, procurou ele reu- um sétimo militar para a Junta, pelo acaso
nir preparativos para o caso de um rompi- da sorte. Esta solução paliativa e inexequí-
mento com a metrópole, e tratou de prover vel, atendendo á necessidade intuitiva da
à defesa do porto e da província. unidade na direção de todas as coisas mar-
O partido português, alarmado com estas ciais, a nenhuma das parcialidades satisfez.
medidas que tendiam a uma separação com- Madeira declarou não a impedir aberta-
pleta, instou pela sua substituição e pela mente só para evitar a efusão de sangue,
entrega daquele posto a um homem de sua mas protestou assumir a plenitude da juris-
confiança e português de nascimento. dição do cargo, logo que houvesse qualquer
Foi escolhido o general Madeira, cujas perturbação da ordem constitucional.
opiniões eram conhecidas como absolutas Quando ao partido nacionalista, tão mal
e dedicados e completamente à metrópole. foi julgado por ele o resolvido que, ao ter-
As duas trações do partido nacionalista minar a sessão da Junta mediadora, pela
sentiram o golpe e trataram de impedir a madrugada do dia 18 de Fevereiro, reben-
posse do brigadeiro. tou o pronunciamento receado no forte de S.
Serviu-lhes de pretexto uma velha praxe, Pedro, onde se haviam concentrado os ele-
em virtude da qual eram as cartas de nome- mentos do partido brasileiro.
ação dos governadores das armas registra- Rompeu a luta e as tropas portuguesas
das na Câmara Municipal; e como contavam atacaram os quartéis dos batalhões nacio-
com este corpo popular, foi alegado que fal- nais e tomaram-os à viva força.
tavam ao título algumas formalidades, entre Espalharam-se depois pela cidade, maru-
as quais uma inscrição na Contadoria. jos e soldados e cometeram inúmeros aten-
Os nacionalistas enviaram uma petição, à tados e tropelias, chegando a matar e a ferir
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL Monumento ao 2 de Julho - detalhe
3
333

Braz do Amaral
Camara de Sao Francisco do Conde - Acervo Fundação Pedro Calmon

inocentes e inermes, em grande número. Ao mesmo tempo, se passavam graves fatos


Passaram depois a preparar o bombardeio da em Lisboa, onde, nas Cortes, os brasileiros luta-
fortaleza, sem atender aos pedidos da Junta Go- vam pelas prerrogativas que deviam conservar o
vernativa. seu país, igual em direito ás duas outras porções
Os defensores do forte, achando-se fartos de da monarquia.
viveres para resistir a um cerco e conhecendo Fo, então, que os deputados baianos dali en-
impossível a manutenção do posto, retiraram- viaram à Câmara desta cidade e às Câmaras da
-se pelas encostas do lado da ribanceira que dá província a célebre consulta sobre o sistema de
para a Gamboa, dirigindo-se uns por mar para governo que preferiam.
o Recôncavo, e outros tomando por diversos ca- O voto das Câmaras foi claramente pelo esta-
minhos a estrada das Boiadas, por onde procu- belecimento de um governo autônomo, tendo a
raram se abrigar em varias regiões do Norte da sua sede no país.
província. E logo, passando das questões abstratas ou
A vitória da facção portuguesa foi efêmera e teóricas á ação, as câmaras se entenderam e tra-
precipitou os acontecimentos, tornando irrecon- taram como entidades políticas, conscientes da
ciliáveis os brasileiros com os portugueses que sua força e direitos.
insultavam a estes, impune e quotidianamente. A Câmara de Santo Amaro se reuniu e se pro-
Cresceu por isto a irritação do povo, cujo vi- nunciou em 14 de Junho e a da Cachoeira em 24
gor era considerável naquele tempo, e, quando do mesmo mês, rompeu abertamente com a me-
chegaram notícias do Rio de Janeiro que denota- trópole, aclamando a sua adesão ao governo do
vam como o príncipe regente se punha à frente príncipe regente que tendia a se rebelar contra o
do partido nacional contra os próprios interes- governo português.
ses de sua pátria, aparente ou sinceramente, se A da vila de S. Francisco se pronunciou em 29
tornou grande a alegria e animação dos naciona- e as de Maragogipe, Valença e Pedra Branca se-
listas baianos. guiram o movimento.
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
34
A Bahia na independência nacional

Camara de Cachoeira - Acervo Fundação Pedro Calmon

Assim travou-se a luta e começou a campa- O movimento insurrecional e separatista vem


nha. do povo.
Esta ação das vilas da Bahia é o fato mais im- Aqui ele não foi a massa passiva que recebe
portante e mais honroso para nós na indepen- tão grande presente sem nada ter feito para o
dência e o que mais enobrece o país, porque no obter.
Sul, no Rio de Janeiro, em S. Paulo, etc., tendo Aqui se sente a nação.
sido os atos da separação realizados pelo gover- São as Câmaras municipais que resolvem
no, a figura do príncipe D. Pedro foi primordial, e querer a separação da metrópole, preferindo um
a sua intervenção miraculosa. governo autônomo, com sede no país, como já foi
O povo, as municipalidades entram em alguns dito aderem por isto ao governo do príncipe re-
poucos quadros do drama como solicitantes. gente, e revelam capacidade política por grandes
O príncipe é quem tudo faz. atos, pois que se entendem umas com as outras,
À sua ação, aos seus decretos se deve tudo. formam uma liga, ou confederação, constituem
Ele foi a pars magna, a iniciativa e a resolução um governo que é denominado Conselho In-
para o grande feito. terino de Governo e empreendem a liberta-
O povo brasileiro ali foi inteiramente passivo. ção da província.
No acontecimento que se tem celebrado ou O Conselho Interino de Governo da Bahia
considerado como o mais importante da inde- foi organizado com os seguintes cidadãos,
pendência da nação brasileira nenhuma parte em Cachoeira:
ele tomou. Por Cachoeira, Francisco Gomes Brandão
Foi o príncipe, sponte sua, quem se pôs resolu- Montezuma, pela vila de S. Francisco o de-
tamente na situação de rebelde ao seu país, que sembargador Antônio José Duarte de Araú-
era a metrópole. jo Gondim, por Jaguaripe o capitão Manoel
Aqui na Bahia, não! Gonçalves Maia Bittencourt, por Marago-
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
5
353

gipe o capitão-mor Manoel te principesco, de uma for-

Braz do Amaral
da Silva Coimbra, por Santo tuna dada como acontece
Amaro o coronel Francisco “As vilas aos bens herdados, tendo
Elesbão Pires de Carvalho e sublevadas foram bastado para alcançá-la
Albuquerque, por Inhambupe concentrando os seduzir a ambição de um
Simão Gomes Ferreira Vello- seus contingentes príncipe.
so. na base da Aqui, não foi assim, feliz-
Entraram depois para o península, em mente para nossa honra! Se
mesmo Conselho os repre- forma de ângulo, o que enobrece os homens
sentantes que foram chegan- na qual está é o que resulta do trabalho
do: Miguel Calmon du Pin e situada a cidade da e é conquistado pelo valor,
Almeida, Manoel da Silva Ca- Bahia e além disto podemos nos gloriar do
rahy, Manoel Dendê Bus, Teo- armaram alguns grande feito que é produto
dorio Dias de Castro, Manoel barcos, com os da nossa vontade e da nos-
dos Santos Silva e Francisco quais organizaram sa constância e que alcan-
Ayres de Almeida Freitas.Ten- uma flotilha que çamos pagando a pátria o
do o governo constituído con- muito mal fez aos pesado tributo da guerra e
tra elas, as vilas sublevadas portugueses.” do sangue.
sustentam uma guerra contra Ganhamos a indepen-
o governo. dência sem traição, nem
Este tem o seu apoio na po- conchavos, em batalhas da-
pulação portuguesa quase toda, na classe das à luz do sol, como os povos considera-
comercial que é poderosa pelos recursos de dos os mais nobres da terra tem realizado
que dispõe e na guarnição que é numerosa as suas aspirações liberais.
e aguerrida. Já as vilas da Bahia se haviam ligado e
Elas, porém, não se intimidam com isto, constituído um governo nacional, em Agosto
pegam nas armas os cidadãos, formam cor- de 1822, quando* o príncipe regente pro-
pos de voluntários, distribuem-se pelos nunciou a resolução do Ypiranga, em Setem-
postos ameaçados, constroem fortificações bro, o que demonstra não ter a revolução
e vem cercar a capital. baiana orientação vinda do Sul, nem depen-
Aqui se percebe o sentimento de uma na- der do que lá se fazia. Pelo contrário, prece-
cionalidade que já não é a portuguesa e se deu as resoluções do príncipe e começou a
nota um vigor que debalde se procura nos guerra contra a metrópole à sua revelia.
acontecimentos do sul. As vilas sublevadas foram concentrando
Aqui aparece a raça brasileira que é um os seus contingentes na base da península,
povo novo, reagindo, sabendo querer uma em forma de ângulo, na qual está situada a
cousa, trabalhando para a conseguir e ob- cidade da Bahia e além disto armaram al-
tendo-a, através das dificuldades, porque guns barcos, com os quais organizaram uma
isto não foi fácil. flotilha que muito mal fez aos portugueses.
Orgulhamos-nos justamente da nossa A cidade começou a sentir falta de víveres
emancipação, porque ele não foi levada a frescos. O terror afastou primeiro os condu-
efeito na Bahia pelo governo, como no Rio tores das embarcações abastecedoras, pela
de Janeiro e nas províncias do Sul, onde pressão que as tropas lusitanas exerciam
não custou sacrifícios aos brasileiros, pois sobre os nacionais, de todas as classes e
teve todas as características de um presen- condições.
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
36

Mais tarde, após os nefastos aconteci- Este ataque, conduzido com vigor pelo co-
A Bahia na independência nacional

mentos de Fevereiro, tendo muita gente que ronel João de Gouveia Osório, comandante
possuía bens e recursos se retirado da cida- da legião constitucional lusitana, foi repeli-
de, encontraram os produtores quem com- do com perdas consideráveis. Estiveram os
prasse os seus gêneros, sem a precisão de portugueses à ponto de triunfar e já tinha o
chegar até aqui, e, quando a flotilha dos bar- tenente-coronel Barros Falcão, que dirigiu o
cos armados em canhoneiras, dominou as combate nas alturas de Pirajá, dado a ordem
bocas dos rios que desembocam na Bahia, de retirada, quando um engano do cometa
as suas enseadas e estreitos, a capital ficou que o acompanhava produziu toque diver-
privada quase completamente de frutos e so e se mudou a sorte da batalha, porque as
legumes. tropas europeias recuaram.
Tentou o general português destruir a re- Pensaram os comandantes portugueses,
sistência dos independentes da ilha de Ita- de acordo com os negociantes da capital,
parica, abrindo o transito para o distrito fér- sempre muito adversos à independência, fa-
til de Nazareth e Jaguaripe, mas o combate zer sair a esquadra para bloquear o porto do
do Funil lhe foi fatal, porque as canhoneiras Rio de Janeiro e dar a mão aos defensores da
portuguesas encalharam na maré vazante e praça de Montevidéu, o que nunca puderam
sofreram fogo muito vivo dos defensores da fazer, perdendo para esta operação o me-
posição que eram, à principio, em muito pe- lhor tempo, do que lhes resultou um prejuí-
queno numero, mas que foram depois consi- zo irreparável.
deravelmente reforçados. Já tinha, então, vindo do Rio de Janeiro
O capitão Taborda, que tinha comanda- um oficial superior para comandar as tro-
do o ataque, teve de retirar com perdas, ao pas que os independentes organizavam em
passo que os combatentes independentes Pirajá e que era preciso transformar em um
do Funil tiveram poucas baixas porque ati- exército regular.
ravam á coberto dos arbustos da praia e ou- Tal comandante foi o general francês Pe-
tros abrigos naturais. dro Labatut, o qual trouxe um pequeno so-
A esquadra portuguesa destacou os seus corro em homens e mais considerável em
cruzadores mais ligeiros para perseguir os armamento, cuja falta era muito sensível em
barcos armados em guerra dos independen- toda a parte, para uns independentes, assim
tes, mas estes sempre escapavam, algumas como a de munições.
vezes com grande custo, mas correndo con- O governo provisório, entretanto, institu-
siderável perigo, e arrostavam com o maior ído na Cachoeira, multiplicava os seus esfor-
arrojo os inimigos. ços e a tudo provia.
Conhecendo o comando português, o Os pontos fortificados do litoral recebiam
erro de haver abandonado Itaparica, pois ali pólvora fabricada no interior da província e
haviam os revoltosos se estabelecido com assentavam-se peças tiradas dos engenhos
vantagem muito evidente, mandou atacar a de cana.
ilha e inutilizar a sua fortaleza, Que os por- A vontade de querer centuplicava as
tugueses, só em parte, conseguiram, não se energias e transformava tudo, operando mi-
mantendo aliás ali. lagres.
Recebeu reforços o general Madeira e Foi nestas condições que o governo por-
resolveu atacar o exército nacional que se tuguês pretendeu investir do comando geral
organizava na base da península, em que se na Bahia, ao general Saldanha.
acha a capital, conforme já foi dito acima. Este oficial superior, porém, não aceitou
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
7
373

Braz do Amaral
Câmara Municipal de Salvador - Gilberto Ferrez

a incumbência, pelo que o general Madeira de Campos, que comandava a armada por-
continuou a sua difícil missão. tuguesa.
Em 7 de Janeiro, a esquadra portugue- Os negociantes viam que a inação da es-
sa levou um ataque a Itaparica, a fim de se quadra acabaria comprometendo a causa.
apossar da ilha e limpá-la de patriotas. Alguns reforços chegados de Portugal ti-
A operação devia agir como uma tenaz nham agravado a penúria de viveres, pois a
que, tendo o seu vértice na ponta norte, cidade só os recebia quase exclusivamente
onde está a fortaleza de S. Lourenço, se fe- por mar, do exterior, ou da vila de S. Ma-
chasse com os dois braços sobre a povoação. theus e do Rio da Prata.
Os patriotas lutaram um dia inteiro, dia Pensaram, então, pessoas importantes do
de perigo e de dor. partido português em destituir o chefe de
Antônio de Souza Lima, que tinha a res- divisão Felix Campos, assumindo o coman-
ponsabilidade do comando da ilha, e João do da esquadra o imediato Manoel Vascon-
das Bottas se cobriram de glória e o bravo celos Pereira de Mello.
Galvão a escreveu com o seu sangue, per- Houve, porém, um pronunciamento na
dendo a mão esquerda levada pela metralha marujada da nau D. João VI e Félix Campos
inimiga. continuou a comandar a frota. Foi preciso
A esquadrilha portuguesa foi repelida e pensar em reserva de mantimentos para a
os nocionais se mantiveram firmemente em tropa.
Itaparica, chave das comunicações com a As pessoas pobres que já sofriam muito
barra da Bahia, isto é, com o mar largo para não puderam mais encontrar alimentação.
o lado do sul. Havia os portugueses proibido a saída do
A situação na cidade se tornou cada dia povo para ocultar a miséria que reinava na
mais seria, por causa das divergências entre cidade.
o general Madeira, comandante das forças Quando, porém, a falta dos gêneros de
de terra e o chefe de divisão Felix Pereira primeira necessidade se tornou tão aguda
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
38

que não havia meio de disfarçá-la mais, foi dá notícia deste esplêndido espetáculo ao
A Bahia na independência nacional

permitida a saída das bocas inúteis. governo em um ofício que foi expedido do
O estado da questão alimentar não era, mar, no mesmo dia, por um navio de aviso
porém, menos grave entre os sitiantes do para o Rio de Janeiro.
que entre os sitiados. Assim expirou o poder português no Brasil!
O exército atacante sofria também muito Se a guarnição portuguesa se tivesse
por insuficiência de víveres e era atormen- mantido aqui, quão só todo o norte do Brasil
tadíssimo pelas moléstias, especialmente o teria ficado sujeito a Portugal, como é bem
impaludismo. provável que mesmo no Sul a independên-
Estas circunstâncias tornaram atroz o cia houvesse desaparecido, pois pouco tem-
sofrimento dos Joaquim Moniz Barretto de po depois, quando faleceu D. João VI, todos
Aragão, Antônio Augusto da Silva, Manoel os que conhecem a história do Brasil e de
Gonçalves Maia Bittencourt e coronel Felis- Portugal bem sabem que, tendo se dado a
berto Gomes Caldeira. circunstância de caber a coroa lusitana ao
A Junta portuguesa, reduzida a dois úni- mesmo imperador do Brasil, não é difícil
cos membros, rea- conjecturar o que poderia ter acontecido, se
lizou a sua ultima a independência só existisse na parte deste
“A independência sessão no dia 1°. de país onde ela havia sido feita pelo príncipe,
na Bahia foi uma Julho, resolvendo le- e onde não havia o espírito de energia pa-
conquista nobilitante, var o arquivo da sua triótica e revolucionaria que tanto agitou
cuja glória guerreira, repartição e o retra- aquele período da nossa vida política.
diamantina e pura, to do rei D. João VI, Mesmo que tais circunstâncias não vies-
isenta de traições e para Lisboa que es- sem a ocorrer, a campanha da Bahia é o fato
de conchavos, tem tava no salão do pa- mais notável da independência, não somen-
luz bastante para dar lácio, embarcando te por ter sido o lugar em que ela foi levada
fulgor a independência com tais objetos na a efeito pelo povo com intenso sacrifício e
de todo o Brasil.” galera Mercúrio. muita glória, como pelo lado moral da ques-
Às 4 horas da ma- tão onde não havia o espírito de energia pa-
drugada, ao sinal triótica e revolucionaria que tanto agitou
convencionado de um tiro de peça dispa- aquele período da nossa vida política.
rado do forte Santo Alberto, as tropas por- Estamos há cem anos e podemos falar
tuguesas embarcaram nas lanchas que as com verdade.
esperavam e foram distribuídas as praças O general Madeira não era um oficial ca-
pelos navios para isso destinados. paz de grandes operações estratégicas, mas
O general Madeira embarcou na fragata resistiu nove meses com poucas tropas, em
Constituição. Havia sido numerosas as so- condições cada vez mais precárias, porque a
licitações de comerciantes e indivíduos ri- esquadra não o ajudou como devia.
cos para seguirem com suas famílias, mas Fiel ao seu juramento militar e ao seu
os transportes que foram 86, não chegaram país, ele resistiu a todas as tentativas de
para todos os pretendentes. suborno com serena e nobre calma, não ha-
O deão, julgando extinta a sua autorida- vendo dinheiro que o comprasse nem inte-
de, também seguiu para Portugal. Pela ma- resse de postos e aumentos que o dobrasse
nhã inteira, até cerca de duas horas após o a uma falsidade que era contrária ao seu ca-
meio dia, saíram os navios do porto, carre- ráter de homem honesto.
gados de gente e objetos valiosos. Cochrane Nem todos fizeram a mesma coisa!
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
9
393

Braz do Amaral
Compare-se o seu procedimento ao de ou-
tros mais graduados do que ele, e é fora de
dúvida, que foi Madeira quem revelou a tem-
pera sisuda e firme dos antigos portugueses.
Se não venceu, também não traiu, nem ca-
pitulou!
Quanto a Bahia, também ela lavou o Bra-
sil todo desta observação pouco airosa que
resulta do que instintivamente sentiam os
escritores que, há poucos meses, no sul do
país, por ocasião das festas de 7 de Setem- Forte São Pedro
bro, diziam que a independência se havia
feito por um conchavo, combinação ou acor- ada a nossa de revezes e de triunfos, vitória
do, sem ter custado sacrifícios de sangue. conquistada a ponta da espada, com o sofri-
Felizmente aqui não foi assim, para honra mento, o altruísmo, a coragem, a abnegação
da nossa nação! levada ao sacrifício de todos os bens, do san-
Tão tenaz e firme foi a resistência dos gue e da vida.
portugueses, como impetuoso e bravo foi o A independência na Bahia foi uma con-
ataque feito por nós, no entusiasmo de uma quista nobilitante, cuja glória guerreira, dia-
revolução popular, com um exército feito à mantina e pura, isenta de traições e de con-
pressa, saído da leva dos cidadãos, com os chavos, tem luz bastante para dar fulgor a
transes heróicos das lutas nobres, entreme- independência de todo o Brasil.

Braz do Amaral, Imprensa oicial do Estado, na Edição Comemorativa ao Centenário da Independência da Bahia, em 1823.

2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL


Mapa Bahia de todo os santos
Fonte: http://sites.google.com/site/cenevivaricardowerneck/
As lutas pela
independência nos
mares da Bahia
42
As lutas pela independência nos mares da Bahia

As lutas pela independência


nos mares da Bahia
O Conselho Interino do Governo desejando talhões, busca mantimentos, armas, munições,
armar alguns barcos, para afugentar as conho- barcos.
neiras que ora infestão as nossas Costas, manda
participar... INTIMIDAR PARA DISSUADIR
Quando o Secretário do Conselho ditou, ou Cachoeira tivera, nos pródromos do conflito,
escreveu estas palavras, em 21 de novembro de uma demonstração bastante clara das disposi-
1822, já muita água tinha corrido sob a ponte, ções de Madeira de Melo. Vira o seu porto bloque-
na convulsionada província da Bahia. ado por uma escuna de guerra. E ante as simples
Distantes estavam, já, os dias de 1799, quan- demonstrações de regozijo, festejando a aclama-
do, também em novembro, foram enforcados e ção do Príncipe, seu povo fora alvo de estúpido
esquartejados e, como que por ironia, na Praça bombardeio. Não se atreveria, por certo, a tanto
da Piedade os inconfidentes acusados de ma- o preposto do brigadeiro, se já não tivesse tra-
quinarem coisas que a maioria do povo ainda zido ordem de agir como agiu. E a confirmação
não entendia. disso foi, alguns dias mais tarde, repetir-se o ato
Menos distantes, os dias em que os pelotões de intimidação contra a Povoação do Santíssimo
de fuzilamento tornaram mais vermelha a terra Sacramento, ou Ponta das Baleias, em Itaparica.
do Campo da Pólvora com o sangue dos men- Realmente, só o propósito de fornecer um
tores da Revolução Pernambucana de 1817, rude exemplo, capaz de dissuadir novas adesões
quando o povo passou a entender um pouco à insurreição, explica o exagero da repressão, em
mais porque morriam, no patíbulo, tantas pes- 10 de julho de 1822, da conspirata em Itaparica.
soas, que já não eram simples alfaiates e solda- Mera denúncia - levada pelo português João de
dos; eram “homens bons”, gente da elite. Campos - bastou para inspirar o canhoneio da
Mais próximos, ainda, os dias em que desa- povoação e a seguir os crimes e tropelias a que
bara, afinal, o temporal político que se viera ar- se entregaram os oitenta soldados da Legião Lu-
mando na própria Bahia, desde 1820. Revolta sitana, sob o comando do Capitão Joaquim José
nos quartéis. Tropa e povo na rua. Renúncia do Ferreira, portador do significativo cognome de
governador. Formação de uma Junta. Escolha de Trinta Diabos.
deputados às cortes. Madeira de Melo no gover- Verdade que, além da tarefa punitiva, a expe-
no das armas. Afastamento de Manuel Pedro. dição levou também o encargo de inutilizar os
Reação. Assassinato de Joana Angélica. Pânico. canhões da Fortaleza de São Lourenço, a fim de
Terror. Ódio. “Recolonização, nunca!”. não virem a cair em poder dos insurgentes. Foi
A 21 de novembro, quando aquela porta- este, por sinal, um dos grandes erros de Madeira
ria é firmada, a guerra já está em pleno curso. de Melo. Se houvesse compreendido, em tempo,
Na cidade da Bahia, o duro Madeira teima em a importância estratégica de Itaparica, cumpria-
opor-se à avalanche; acuado, recorre, crescen- -lhe reforçar, e não destruir a posição fortificada;
temente, à violência. Na Cachoeira, o conselho guarnecer a ilha, e não abandoná-la. Com as su-
interino articula-se com as Vilas do Recôncavo, cessivas derrotas, mais tarde, os portugueses pa-
do Sul, do Sertão, entende-se com o governo do garam caro a falta de visão do seu chefe militar.
Rio de Janeiro, levanta recursos, improvisa ba- Como aconteceu na Cachoeira, a brutalidade
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
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Jorge Calmon
Mapa: A Independência da Bahia - Luiz Henrique Dias Tavares

da repressão somente serviu para decidir os que nativa insatisfatória, pois este pequeno porto
ainda não tinham tomado partido; para reduzir tornava-se impraticável para o escoamento de
a luta ao significado de uma ação de defesa obri- um volume maior de mercadorias, dado que
gatória dos interesses mais caros a qualquer um. demandava difícil o acesso por terra. O expe-
Um exemplo disso deram, semanas mais tarde, diente atendia às urgências da comunicação;
os habitantes da Povoação de Maré, também não às solicitações do transporte, organizado
brutalmente bombardeada. segundo as facilidades da via fluvial.

BLOQUEIO CONTRA BLOQUEIO O FUNIL


A resposta de Madeira de Melo à apreensão Mas, se o esteiro do Paraguaçu estava veda-
de sua escuna em Cachoeira fora o fechamen- do aos patriotas, em contrapartida, logo tam-
to do Rio Paraguaçu, diante de cuja barra fez bém outro escoadouro, este ainda aberto aos
postar-se poderosa canhoneira. Impedia, as- portugueses, teve igual sorte, com sua inter-
sim, o fluxo de comunicações e fornecimentos cepção pelos itaparicanos.
provenientes daquele estuário, tradicional ca- A finalidade imediata do bloqueio do Rio Ja-
minho de saída de vasta porção do Recôncavo guaripe não era, aliás, cortar o abastecimento da
e do Sertão. capital. Visava à libertação dos chefes da conspi-
Com a colocação daquele obstáculo, leva- ração da independência na Vila de Nazaré, que
va um sério golpe a economia dos insurretos. se supunha estarem na iminência de prisão e
Para estes não restou outro recurso senão uti- envio para a cidade da Bahia. Contudo, se nisto
lizarem-se do porto de São Domingos da Sau- residia o seu objetivo primordial, serviu não só
bara, algumas léguas ao norte. Era uma alter- para fazer cessar o suprimento da capital, por
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
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aquela parte, mas também para o desvio dos gio. Instalado o Conselho Interino de Governo
As lutas pela independência nos mares da Bahia

mantimentos em favor dos independentes. saiu a decisão: Itaparica devia ser evacuada.
Madeira de Melo dispunha de expeditos in- O despropósito teria se efetivado, apesar dos
formantes. Logo soube do que faziam Souza protestos dos itaparicanos, se a estes não se
Lima e sua gente, ajuntando míseras canoas juntassem os líderes de Jaguaripe e Nazaré,
para obstruírem a passagem. Julgou que uma obrigando, afinal, o Conselho Interino a ceder.
mera operação de limpeza destruiria a ameaça Cedeu, mas se manteve relutante, sem boa
pueril. E lá se foram da cidade da Bahia três vontade no fornecer os mantimentos.
barcos com algo mais de duas centenas de sol-
dados para dispersar as canoas e ir buscar a
ENTRE A ORDEM E A
Nazaré o gado e a farinha de que a capital pre-
cisava. CONVENIÊNCIA
O Funil é um trecho do canal que separa a Cachoeira era a Meca dos que desejavam
Ilha de Itaparica do continente. pegar em armas pela independência. Para ali
As margens do estreito ali se aproximam, também se dirigia, após os acontecimentos de
tendo de permeio duas ilhotas, entre as quais 10 de julho, o rico português Antônio de Souza
a água corre profunda. É um lugar ideal para Lima, que na Bahia chegara ainda criança; ele
a defesa. E apenas 12 homens o defendiam e diversos outros da melhor gente de Itapari-
quando, a 29 de julho, surgiram, tentando a ca. Trataram, estes emigrados, de organizar
passagem, os três barcos portugueses. Inicia- uma força armada para a defesa da ilha e re-
do com tão poucos defensores, breve o comba- conquista dos seus lares. Alistaram-se assim,
te convocou maior números de patriotas, que no Batalhão Cachoeirense, que a 13 de agosto
acorreram das proximidades e sustentaram a partiu da capital provisória para o desempe-
luta, até verem retroceder o inimigo. Tudo era nho de sua missão.
contra a expedição. A furiosa defesa dos invi- Desembarcando em S. Roque e seguindo,
síveis atiradores, e também o vento, soprando por terra, para Encarnação, traçaram, ali, os
do sul, de proa. seus planos.
Repelidas uma vez, as embarcações tenta- As instruções que o batalhão trazia era no
ram de novo a passagem, e ainda dessa feita, fe-sentido de garantir aqueles lugares, para me-
rido seu comandante, foram obrigadas a recuar. lhor proteção da Cachoeira. Mas os oficiais
Retiraram-se, então, para a capital, deixan- chegaram a conclusão diferente. Afinal, eles é
do entre os itaparicanos uma enorme euforia. que entendiam do ofício. Pareceu-lhes que o
A vitória do Funil garantia a posse da ria do certo seria fortificar a Ponta do Garcês, sobre a
Jaguaripe. Mas, apenas isto. Os portugueses barra falsa (caminho interior para o Morro de S.
ainda dominavam amplamente a Baía de To- Paulo, onde Cochrane estabeleceria sua base), e
dos os Santos. guarnecer de verdade o Canal do Funil, cuja pas-
sagem o inimigo queria de novo forçar.
A ILHA INDEFENSÁVEL Todas estas precauções, no entanto, seriam
Por singular coincidência, do lado dos in- incompletas sem a medida principal: a ocupa-
dependentes havia quem pensasse do mesmo ção militar de Itaparica. Luiz dos Santos Vilhena,
modo que o Brigadeiro Madeira, em relação duas décadas antes, já aconselhara isto aos por-
a Itaparica. Na Cachoeira, entendiam figuras tugueses.
influentes que também os brasileiros não ti- Decidida a ocupação, Souza Lima e parte do
nham condições de conservar a ilha. Montezu- batalhão atravessam o passo do Funil (19 de
ma era uma delas; a principal, pelo seu prestí- agosto). Alguns dias depois, preparam a primei-
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
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454

Alberto Rabello

Lord Cochrane - Wikipedia

ra trincheira, na praia das Mercês, do outro lado


trincheira das Mercês, tenta, em vão, por duas
da ilha, defronte de Salvador. A esta trincheira
vezes, destruí-la, com canhoneiras e tropa de
foram seguindo-se outras, ao redor da ilha, cons-
desembarque. Já não é fácil descer na ilha. Nem
truídas segundo iam permitindo os recursos bé-
mesmo de bordo das canhoneiras que continu-
licos, a custo conseguidos. am postadas defronte da povoação. Os que a isto
se aventuram, passam a ser escorraçados na ter-
TRINCHEIRAS ra e até mesmo no mar, onde os praieiros têm ca-
Madeira de Melo preocupa-se. No dia 25 de noas sempre prontas para se lançarem sobre os
agosto, apenas armada, pelos itaparicanos, a batéis inimigos.
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
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A 1º de setembro, as canhoneiras, que tinham Ponta da Ilha dos Frades, situada em frente, de
As lutas pela independência nos mares da Bahia

sob a mira a desarmada Fortaleza de S. Louren- modo a expor ao fogo cruzado as embarcações
ço, levantam âncora. Tomam o destino da Bahia. inimigas que desde então se aventurem a pene-
É uma sensação que há muito não sentem os trar no Recôncavo.
itaparicanos, a ausência de inimigos. Eis, contu- Até então os itaparicanos tinham enfrentado
do, que cinco dias depois outras embarcações os ataques do adversário com uma peça de ca-
armadas se aproximam, ameaçadoramente. São libre 3, desprezada pelos portugueses, quando
canhoneiras, barcos e lanchões, cheios de solda- destruíram o armamento da povoação, em 10
dos. Querem desembarcar na povoação, onde já de julho, tão velha e estragada que estava.
está Barros Galvão. A luta irrompe às 6 da tarde O primeiro canhão desencravado por Barros
e prossegue até 8 da noite. Afastam-se, então, Galvão tem imediata serventia: montado sobre
as embarcações inimigas. Ao amanhecer do dia uma carreta feita de pedaços das que os portu-
seguinte, algumas se retiram, velejando para a gueses haviam desmantelado, desaloja os ocu-
Bahia, e cinco são as que permanecem defronte pantes da Ponta de Manguinho, não sem antes
da localidade, a modo de bloqueio. inutilizar uma grande barca que os protegia e
Madeira compreendera, por fim, o valor es-
tratégico da ilha, e insiste em ocupá-la. Ordena
nova investida no dia 23 de setembro, desta
feita na direção da Ponta de Manguinho, uma
saliência de terra, a uma légua da povoação.
Está construída, ali, uma das trincheiras man-
dadas fazer por Souza Lima. Na luta, os por-
tugueses perdem uma canhoneira, mas con-
seguem firmar pé no ponto desejado, donde
pretendem capturar as embarcações que vêm
do Recôncavo. Conquanto a povoação de Ita-
Flotilha de Itaparica
parica continue sitiada pelas suas barcas, seu
domínio da Baía já não é completo. afugentar as demais na direção de Salvador. É
isto a 12 de outubro de 1822.
OS CANHÕES DA FORTALEZA
Um fato vem, a esta altura dos acontecimen- NOVO ATAQUE
tos, concorrer para a mudança substancial no 14 de outubro de 1822 traz mais um ataque
quadro da luta: a aquisição, pelos itaparicanos, a Itaparica.
de material de artilharia. Com isto certamente As luzes festivas da noite de 12, suspenden-
não contavam os portugueses, quando tão ca- do sobre a povoação, no céu escuro, um claro
prichosamente encravaram as peças existentes diadema, puderam ser vistas da capital. Eram
na Fortaleza de São Lourenço. A disposição e a os Itaparicanos em expansões pelo aniversário
pertinácia do Capitão Barros Galvão, ajudadas de D. Pedro, o seu Príncipe. Naquele mesmo dia,
pelo engenho de um modesto ferreiro, o soldado tinham-no aclamado Defensor Perpétuo do Bra-
Eustáquio, conseguem o prodígio, graças ao qual sil. E erguido vivas à independência – que igno-
os defensores da ilha veem-se de posse de doze ravam já proclamada.
canhões e logo de mais dois outros, que estavam Mais que o desafio, entretanto, irrita e inquie-
abandonados e que a necessidade faz aprovei- ta Madeira de Melo a firme ocupação de Itapa-
tar. Estes canhões tornam possível guarnecer rica pelos independentes. E não só a ocupação,
de novo a Fortaleza de S. Lourenço, e artilhar a mas a expansão do seu poderio, com a artilha-
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
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474

Jorge Calmon
ria montada até na ilha situada defronte. Prova à face de Itaparica. Não escapam à ameaça os re-
isto o número de embarcações de guerra em- dutos brasileiros, ao norte da capital, que Laba-
pregadas neste novo ataque. São utilizados nele tut começara a sitiar.
1 brigue, 1 grande barca com 14 peças de 24, e Não é mais aflitivo esse bloqueio porque as
mais 15 canhoneiras pequenas. Mas, debalde. O embarcações do Recôncavo, manobradas pelos
objetivo dos portugueses é retomar a Ponta do que conhecem todos os meandros da Baía, sem-
Manguinho. O duelo de fogo raiva de 6 às 11 da pre conseguem iludir a vigilância do inimigo.
manhã. Afinal, a esquadrilha atacante retrocede, Os itaparicanos não se mostram menos ousa-
aproando para a Bahia. dos, nessa conjuntura; em suas canoas, põem-se
Por esse tempo, os portugueses, afastados, a apreender as embarcações em que portugue-
embora do sudoeste do Recôncavo, dominam ses fogem do Recôncavo para a companhia dos
ainda o restante do golfo. A comunicação entre o compatriotas, na cidade.
Recôncavo e o Morro de S. Paulo tem de ser feita Pretendem fazer mais, com a tentativa de
através da barra falsa, entre a contra costa sul de abordagem de uma canhoneira que é vista na-
Itaparica e o continente. vegando para a Costa da Margarida, perto da foz
do Paraguaçu. Sessenta homens armados, num
barco provido de um pequeno morteiro, devem
executar a operação. A proeza, contudo, não se
consuma. Na verdade, quase resulta num desas-
tre para os itaparicanos. Dispondo de três peças
de grosso calibre, a canhoneira leva imediata
vantagem, no combate, e afundaria, decerto, o
barco insulano se este não procurasse a prote-
ção da bateria instalada na barra do Paraguaçu.

Primeira esquadra brasileira


DEFESA NO MAR
A fuga deste seu barco mostra aos itaparica-
nos que pouco poderiam esperar, no tocante à
JOÃO FELIX luta no mar, se não contassem também com for-
No dia 30 de outubro de 1822, entra na Baía ças ofensivas. A testemunha de todos estes fatos,
de Todos os Santos a esquadra sob o comando do Bernardino Ferreira Nóbrega, acrescenta que “Já
Chefe de Divisão João Felix Pereira de Campos. muito d’antes Lima (Souza Lima) havia exposto
Vai começar uma nova fase no curso da guer- ao Conselho Interino do Governo aquela mesma
ra. necessidade, fazendo ver ao mesmo Conselho,
Livres do bloqueio desde 14 de outubro, as que ele não prestava o seu barco, que já esta-
ilhas e o Recôncavo voltaram, após a chegada de va no serviço de condução das peças do Morro,
João Felix, a ter suas comunicações interrompi- mais ainda tudo mais que se fizesse mister para
das pelas embarcações armadas portuguesas. A sua armação; e que na mesma Ilha se achava um
finalidade do novo cerco é impedir a chegada de Capitão Tenente (José Carlos), que bem que Por-
mantimentos e munição ao Exército Pacificador, tuguês se havia dedicado à defesa da Causa Bra-
e secundariamente, sustar a navegação entre os sileira, e que não havia ali, em que fosse empre-
pontos do Recôncavo. Torna a ser colocado um gado a não ser nos trabalhos marítimos”.
barco artilhado na barra do Paraguaçu, enquan- Não aceita, todavia, o Conselho Interino a pro-
to outras embarcações de guerra policiam as posta de Souza Lima. A esquadrilha portuguesa
águas de um lado e do outro da Ilha dos Frades, é sobremodo poderosa. Faltam recursos para or-
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
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ganizar força que se lhe possa opor. entre as ilhas dos Frades e de Maré, reteve as
As lutas pela independência nos mares da Bahia

Ante as novas instâncias do Comandante de embarcações na povoação de Itaparica, ao abri-


Itaparica, o governo instalado na Cachoeira afi- go dos canhões da Fortaleza.
nal acede. Não em fornecer meios para armar Com vento a feição, o comboio, escoltado pelo
toda uma esquadrilha. Mas, por enquanto, e ape- barco “Pedro 1º”, parte no dia 8 de dezembro. A
nas, em colaborar com Souza Lima, oficializan- esquadrilha inimiga acomete-o, logo o avista. É
do-lhe a iniciativa. E é assim que o 2o Tenente formada de um brigue, dois grandes barcos arti-
da Armada Nacional Imperial João Francisco de lhados e oito canhoneiras. Onze contra um, vale
Oliveira Botas, que havia pouco chegara a Cacho- a atenção do inimigo, enquanto as embarcações
eira, emigrado da capital, tem ordem de seguir com os mantimentos se põem a salvo, chegando
para Itaparica, a fim de cuidar do armamento finalmente, ao destino. Também o “Pedro 1o” al-
daquele barco. cança, depois de muita luta, o esteiro de Cotegi-
Nasce, assim, a Flotilha Itaparicana. pe, onde o inimigo não pode penetrar. E, na mes-
Surge num momento extremamente impor- ma noite no dia 8, torna a Itaparica, mais uma
tante, porque é agora do mar que depende a vez burlando a vigilância dos portugueses.
sorte da guerra, uma vez que a estratégia dos Parece sina dos itaparicanos terem de con-
independentes consiste em vencer pela fome a vencer, à custa de sacrifícios, o governo de Ca-
tropa de Madeira. A batalha de Pirajá (8 de no- choeira, antes de dele obterem maior ajuda. Isto
vembro de 1822) retirou ao comandante portu- se cumpre novamente. A proeza de 8 de dezem-
guês qualquer possibilidade de obter provisões bro - e não menos a admiração manifestada pelo
nos lugares ao norte da cidade. Resta-lhe o mar, General Labatut - move o Conselho Interino a
onde os brasileiros carecem de qualquer força. facultar a Souza Lima o aproveitamento de bar-
cos existentes em Valença e que serviam para o
O PRIMEIRO BARCO transporte de madeira. Coloca também à dispo-
Em Itaparica, o Tenente Botas consagra-se, sição da flotilha outras peças de artilharia das
desde logo, à sua tarefa. fortificações do Morro de S. Paulo.
Para aparelhar o barco de Souza Lima, usa o Os heróis são temerários. Não seriam heróis,
estaleiro de mestre Joaquim de Brito. Utilizando se não o fossem.
uma carreta de vaivém conseguida num enge- O bom êxito da aventura do dia 8 ilude, por
nho próximo, assenta uma peça de 12 em rodí- um momento, o Tenente Botas. Leva-o a acre-
zio à proa. Recruta a tripulação e faz organizar ditar que, apenas com o seu “Pedro 1º”, poderá
a tropa, às ordens do Alferes Francisco Alvellos afugentar a flotilha inimiga que ronda as águas
Espínola. Comandará ele a embarcação, batizada próximas, força composta de 14 embarcações
como “Pedro 1º”. artilhadas.
No dia 6 de dezembro, é lançada ao mar.A pri- Empreende a aventura no dia 23 de dezem-
meira ação do barco artilhado dá a medida do bro. O fogo concentrado do inimigo força-o a
que virá a fazer a esquadrilha brasileira. retirar-se, até se colocar ao amparo da artilharia
Consiste essa primeira missão em proteger do Porto das Amoreiras.
um comboio de 19 barcos e lanchas que vieram
de Nazaré carregados de víveres, e se destinam 7 DE JANEIRO
ao Rio Cotegipe, fronteiro à Ilha de Maré, donde A lição é proveitosa. Torna evidente serem
chegariam ao Exército Pacificador. Labatut tem precisas outras embarcações armadas para en-
seu quartel general no Engenho Novo, em Água frentar o adversário. Retido, assim, no ancora-
Comprida, a meia légua de distância da saída da- douro, o “Pedro 1º”, trata-se de armar outro bar-
quele rio. A presença de canhoneiras inimigas, co. É este o “D. Leopoldina”. Antes de 7 de janeiro
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
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Jorge Calmon
Mapa de Salvador - Jerônimo de Athaide - Atlas do Brasil

está pronto para a ação, provido de 5 peças de estava pronta e disposta para receber o mesmo
calibre 12. Portugual inteiro...”.
A 7 de janeiro de 1823, dá-se o maciço as- Quando o assalto se desata, por mar e por
salto português a Itaparica. Madeira de Melo e terra, os itaparicanos o repelem com extrema
João Felix decidiram acabar de uma vez por to- bravura, não permitindo aos inimigos consoli-
das com a ameaça dos insolentes itaparicanos, dar qualquer vantagem momentânea. No mar,
ocupar-lhes a ilha, desalojá-los, destruí-los. Re- os barcos da ilha, “Pedro lº” e “D. Leopoldina”,
solveram, também, restabelecer, pela força das enfrentam 10 embarcações, de igual para igual.
armas, os itinerários interrompidos até às fontes Atingido por uma bala a carreta da peça do “D.
de abastecimentos, nas bacias do Paraguaçu e do Pedro 1º”, João Botas em meia hora a conserta. E
Jaguaripe. E, talvez, se possível, levar o castigo às volta à luta. Para ajudar a derrota dos inimigos.
Vilas coligadas contra as Cortes e o Rei. Com acertados tiros, afunda duas barcas, cujos
O ataque dirige suas duas pinças contra as comandantes morrem.
praias de Amoreiras e Mocambo - a povoação No dia 8 de janeiro, pela noite, tentam os por-
principal inicialmente poupada, para ser acome- tugueses novo assalto. E mais uma vez são repe-
tida depois, por terra, pelas forças convergentes. lidos. A 9, arrastam para Bahia, melancolicamen-
No assalto, os portugueses empregam 42 embar- te, as embarcações derrotadas.
cações de guerra, afora muitas outras, utilizadas Labatut promoveu João Botas a 1º Tenente.
no transporte de tropa e outros fins. O insucesso português na invasão de Itapa-
João Botas não dormira na noite de 6 para 7, rica tem efeito dissuasório sobre os planos de
ocupado no aprontamento dos barcos que ha- Madeira e João Felix. Depois dele, a força lusa no
viam de barrar a penetração do inimigo no canal mar retrai-se, como que temerosa de novos con-
que dá acesso a Jaguaripe. frontos, limitada ao policiamento do golfo, que
Soubera-se em Itaparica que o ataque esta- também não pode manter por muito tempo.
va iminente. Com o aviso os defensores da ilha Entre os brasileiros, ao contrário, ganha in-
correram às armas. “Que viessem os marotos”! tensidade a organização da Flotilha Itaparicana.
A crescente confiança em suas forças, ante as pe- Armam-se dois novos barcos – “D. Januária” e
quenas vitórias seguidas, conferia-lhes a sensa- “Vinte e Cinco de Junho” –, cada um deles rece-
ção de invencibilidade. “... a Magestosa Itaparica bendo duas peças calibre 12 por banda (logo, 4
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
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peças) e uma calibre 18 em rodízio à proa. Mais dores a suspendê-lo. “... sem a menor lesão”, os
As lutas pela independência nos mares da Bahia

um chega, pela mesma época, mandado da Vila barcos dos patriotas regressam a Itaparica. O fim
de S. Francisco pelo Coronel Bento Lopes Villas principal foi atingido: terminou aquele bloqueio.
Boas, que o equipa e artilha às suas custas. E um A segunda operação é empreendida dois dias de-
barco pequeno, no qual se coloca uma peça 18 pois. Seu objetivo: o aprisionamento de duas ca-
em rodízio à proa. Sua incorporação à nascente nhoneiras inimigas que foram vistas navegando
flotilha ocorre a 15 de janeiro. Confia-se o seu ar- isoladas do restante da respectiva esquadrilha.
tilhamento ao mestre Cláudio de Santa Rita. Pertencem à força encarregada de interceptar a
Para comandá-lo, o General Labatut apresen- navegação nas proximidades da Ilha dos Frades.
ta um oficial. Mas o governo de Cachoeira, cioso Participam da operação cinco barcos armados
de sua autoridade, reclama que dele devia partir brasileiros: “Vinte e Cinco de Junho”, comanda-
a nomeação. do por João Botas que tirara do comando João da
Os homens abastados Silveira Villas Boas, “Pedro 1º”,
dos lugares próximos pro- “D. Leopoldina”, “ D. Januária” e
curam contribuir para o “Vila de São Francisco”. Trava-
“Sentindo-se fortes,
equipamento do barco. Um -se o combate às 9 da manhã.
os itaparicanos já não
deles é o proprietário da Não são bem sucedidos os
admitem barcos inimigos
cordoaria existente na Ilha patriotas, na execução do seu
nas cercanias de sua
dos Frades. Doa toda a cor- plano. As canhoneiras inimigas
ilha. Resolvem, assim,
doalha requerida pelas em- conseguem evitar a abordagem
expulsar um grupo deles
barcações. e enquanto isso ocorre chega
fundeados defronte do
Também da antiga fábri- ao local da ação o restante da
Cabo de Manguinho.”
ca de pólvora do Cabrito, esquadrilha a que pertencem.
transformada em arsenal, Acossados por 13 barcos
vêm peças de artilharia e inimigos, os 5 itaparicanos têm
balas no calibre desejado. Da Cachoeira, o Con- de retirar-se. E na retirada corre sério perigo o
selho Interino de Governo manda, igualmente, barco de João Botas, quase vítima de sua temeri-
um brigue, mas ignoramos se este chega a ser dade. Acerca-se demasiadamente do brigue “Au-
incorporado. Peças de artilharia seguem tam- daz” e quando procura afastar-se, encalha nos
bém da Cachoeira. bancos de areia próximos da Ilha dos Frades.
Aumentada, assim, a esquadrilha indepen- Impedidas as outras embarcações indepen-
dente, pode ser assegurada proteção aos barcos dentes de prestarem ajuda, porque acossadas
de transporte e às comunicações pelas vilas do- pelo inimigo, o “Vinte e Cinco de Junho” tem de
minadas pelos independentes.Resta expulsar os defender-se sozinho, como um leão acorrenta-
barcos inimigos que ainda mantêm sob bloqueio do. O brigue não pôde apresá-lo; uma tripula-
alguns pontos. ção de mais de setenta marujos e uma força
A primeira destas operações efetua-se no dia de cinqüenta fuzileiros venderiam caro suas
28 de janeiro. É dirigida contra as canhoneiras vidas, numa abordagem. Pretende, pois, des-
colocadas na foz do Paraguaçu. Com os três bar- truí-lo, sob as balas de sua artilharia. Afinal o
cos artilhados - “Pedro 1º”, “D. Leopoldina” e “D. “Vinte e Cinco de Junho” desencalha e, mesmo
Januária” – João Botas investe as canhoneiras ad- tendo perdido o leme, passa entre os inimigos,
versas. Persegue-as e afinal as alcança, já às 10 indo reunir-se às demais embarcações. Mas,
horas da noite. As unidades inimigas são nove. ainda que danificado, volta ao combate, para
Raiva o combate durante três horas. O vento, a infligir novos estragos à flotilha portuguesa.
chuva e a cerração obrigam ambos os conten- Maior maravilha é que, terminada a luta, não
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
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Jorge Calmon
se conta, entre os itaparicanos, nenhum morto comboio que leva para junção ao Exército Pacifi-
ou ferido. cador uma tropa chegada a Itaparica na véspera,
O resultado destas ações é infundir confiança vinda de Valença e Boipeba. Ao avistarem o com-
ao comércio entre as localidades do Recôncavo, boio, nove embarcações de guerra lusas levan-
tanto quanto obrigar a maiores cautelas as em- tam âncora para dispersá-lo. Não o conseguem.
barcações lusas. Desembarcada a tropa nas margens do Rio Co-
Entre janeiro e fevereiro de 1823, cresce ain- tegipe, Botas volta para enfrentar a esquadrilha
da mais a Flotilha Itaparicana. Incorporam-se o dos portugueses. De 1 da tarde às 8 da noite,
barco artilhado “D. Paula” e a escuna que os ca- estende-se o combate. Duas barcas lusitanas são
choeiranos tinham tomado aos portugueses em postas a pique. Por falta de pólvora as embarca-
28 de junho do ano anterior. O Conselho Interino ções dos patriotas se retiram, recolhendo-se a
atende à solicitação de Souza Lima, no sentido Itaparica.
de aproveitar a referida escuna e, assim, a envia Em fins de abril, ou princípios de maio, ganha
para Itaparica, onde é restaurada e provida de a Flotilha mais uma unidade, com a incorpora-
artilharia. ção do barco “Maria da Glória”, cujo comando é
Sentindo-se fortes, os itaparicanos já não dado ao 1º piloto Manoel Pereira da Silva.
admitem barcos inimigos nas cercanias de sua
ilha. Resolvem, assim, expulsar um grupo deles COCHRANE
fundeados defronte do Cabo de Manguinho. São, Todos estes fatos já tinham ocorrido quando,
agora, oito unidades artilhadas, as que compõem a 24 de abril de 1823, uma quarta-feira, surgem
a Flotilha Itaparicana. O inimigo alinha treze. à vista da Bahia as velas da esquadra do Rio de
Fere-se o combate às 8 horas da manhã de 8 Janeiro, tendo por comandante Lord Cochrane.
de março. Prolonga-se por quatro horas. Acaba A chegada da esquadra brasileira dissuade
sem vantagem para qualquer dos contendores. Madeira de Melo de uma nova tentativa de inva-
No dia seguinte, 9 a luta é retomada. Dura de 4 são de Itaparica. Seria o seu golpe de mão.
da tarde às 8 da noite. Ainda sem vantagem para Inteirado da atuação da Flotilha Itaparicana,
uma parte e outra. No dia 10, porém, a claridade Cochrane, a pedido de Souza Lima, fornece aos
do sol não mostra mais velas inimigas à vista. Ti- defensores da ilha balas para peças de grosso ca-
nham voltado à sua base, na cidade. libre, e também peças destinadas a substituir as
até então em uso.
INIMIGO ACUADO O almirante daria outras provas de sua admi-
Varridos do golfo, pela Flotilha Itaparicana, ração pelo valor da esquadrilha brasileira e seus
os barcos adversos de menor calado estão ago- comandantes, em que pese ter, a 31 de maio,
ra fundeados no Poço, defronte de Itapagipe, do substituído João Botas nas chefias das opera-
outro lado da Baía. Contentam-se com os frutos ções, talvez porque não o conhecia e já se tinha
de uma pilhagem esporádica em S. Tome, Itaca- entrosado com outro oficial. Isto ocorrerá de-
ranha, Ilha de Maré e circunvizinhanças. pois da última ação que a Flotilha realiza sob o
É uma pobre colheita, mas para eles a única comando direto de Botas.
possível, pois do Recôncavo nada sai para a sitia- Esta ação pertence ao conjunto de aconteci-
da cidade da Bahia. mentos que se seguiram à deposição do General
Já agora, os itaparicanos não temem arrostar Labatut, quando foi confiada à Flotilha a devolu-
até mesmo a reação do inimigo em seus pró- ção de um dos principais personagens do episó-
prios domínios. Dão testemunho disto no dia 30 dio, o Coronel Felisberto Gomes Caldeira.
de março quando, em quatro barcos armados, Felisberto Caldeira esteve preso na Fortaleza
sempre sob o comando de João Botas, escoltam o de S. Lourenço, por ordem de Labatut. Destituído
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
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este do comando, três oficiais dirigiram-se a Ita- Correspondências de Souza Lima e João Bo-
As lutas pela independência nos mares da Bahia

parica, no dia 22 de maio, a fim de buscar aquele tas colocam Lord Cochrane a par destes suces-
militar. Entregue por Souza Lima, foi João Botas sos. Ele promove João Botas a Capitão Tenente
incumbido de levá-lo até o Engenho Olaria, para da Armada Imperial, “ad referendum” do Impe-
os lados de Paripe, para reunir-se ao Exército. rador, e manda três mil pesos duros para serem
Três barcos foram escolhidos para a missão: o divididos pelas tripulações das barcas que parti-
“Vinte e Cinco de Junho”, o “Vila de S. Francisco” ciparam da ação.
e o “D. Januária”.
Já perto de terra e do final da travessia, sete OS PLANOS DO ALMIRANTE
embarcações inimigas procuraram opor-se às O emprego da valente Flotilha figura nos pla-
Itaparicanas. Eram 2 horas da tarde. Empenha- nos estratégicos do Almirante Cochrane. Quer
ram-se inicialmente no combate o “Vinte e Cinco usá-la, em combinação com suas forças, para as-
de Junho” e o “D. Januária”. Felisberto Caldeira saltar a esquadra portuguesa surta nas águas do
não consentiu que o “Vila de S. Francisco”, em porto. Manda o Capitão-de-Mar-e-Guerra Tristão
que viajava, com os três oficiais, participasse da Pio dos Santos “para dirigir e aumentar as forças
luta, exigindo que o deixasse primeiro em terra. navais de Itaparica”. O novo comandante, velho
O comandante, Felipe Álvares dos Santos, assim conhecido de João Botas, leva o material de que
fez. E, desembarcados os passageiros, mano- vai necessitar, e também engenheiros e mestres
brou, rápido, na direção do combate. de construção naval. O seu primeiro trabalho é
No decorrer deste, um barco inimigo apro- armar mais uma embarcação com um morteiro,
ximou-se do “D. Januária” possivelmente numa “que arremessasse bombas em qualquer lugar,
tentativa de abordagem. Mas, se tal pretendeu, que se pretendesse”. Feito isso, cuida de apare-
aconteceu o oposto. Uma bala partida da em- lhar doze lanchas baleeiras para operação de
barcação Itaparicana derrubou o mastro grande abordagem, para o que deveriam navegar à reta-
do comandante do “D. Januária”, tentou abordá- guarda dos navios armados. Completada assim a
-lo, mas não conseguiu, por se achar em posição Flotilha, transfere sua base para a Ponta do Man-
desfavorável à manobra. Essa presa coube a João guinho, onde é mais fácil a observação do trecho
Botas, que “vira sobre ele, ganha-lhe barlavento de Baía entre Itaparica e a cidade.
e em breve consegue abordá-lo e aprisioná-lo”. A missão atribuída ao Capitão Tristão Pio era
Era o melhor barco inimigo. Tinha uma peça de atacar, durante a noite, os grupos de embarca-
calibre 12, duas de 9, duas de 3 e 25 espingardas, ções dispersos entre a Ponta de Santo Antônio,
além de farta munição. Sua guarnição era de 28 na saída da Barra e a Fortaleza de Monserrate,
homens. também do lado da cidade
O combate terminou com “Livre o golfo de naves duas léguas para dentro. Inci-
a perseguição, pelo “Vinte e inimigas, João Botas tando-os a se juntarem, para
Cinco de Junho” e “D. Januá- dirigiu-se para a melhor responderem ao ata-
ria”, das demais canhoneiras Fortaleza do Mar, já então que, deixá-los-ia expostos à
inimigas, bastante maltrata- vazia de portugueses, investida da esquadra de Co-
das pelas balas dos itaparica- e com gente do seu chrane, que irromperia então
nos, até se refugiarem junto barco guarneceu o velho na Baía, pronta para lançar os
às grandes belonaves lusas baluarte. Sobre este seus brulotes.
fundeadas no porto da Bahia. logo surgiu, colorindo Sob a proteção das som-
Tiveram os patriotas a manhã diáfana, a bras da noite, Tristão Pio rea-
apenas quatros soldados fe- Bandeira do Brasil. ” lizou duas tentativas com este
ridos. propósito, mas em ambas as
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
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535

Jorge Calmon
Combate de 4 de maio de 1823

ocasiões os ventos não ajudaram. Mudou, então, pital, transportando portugueses que buscavam
a Flotilha de ancoradouro, indo para a Enseada refúgio em lugares do Recôncavo. Os itaparica-
das Mercês, bem em frente a Salvador. Aí, podia nos poupavam-lhes a vida. Um ano antes tinham
mais facilmente comunicar-se, fora da Barra, sido os adeptos da independência que haviam
com Lord Cochrane e também melhor obser- abandonado Salvador, também às escondidas,
var os movimentos da esquadra inimiga. Veria a 17para se engajar na luta em perspectiva. Agora,
ocasião mais propicia para executar o novo pla- estavam prestes a voltar.Voltaram no 2 de julho.
no, consistente em dirigir a própria Flotilha pe- Os marujos e soldados da Flotilha Itaparicana
quenos brulotes contra os navios lusos, a fim de não estiveram, porém, entre os gloriosos e esta-
incendiá-los. fados contingentes que desfilaram pela cidade en-
Cientificados disto, os comandantes dos na- galanada, no dia da vitória. Estavam ainda no mar,
vios estrangeiros surtos no porto da Bahia cui- últimos a darem por finda a demorada peleja.
daram de levar seus barcos para os lados de A caça à esquadra portuguesa, na sua retirada
Monserrate. Reuniu-se à Flotilha, por estes dias, para a ex-metrópole, operação que tanto cele-
outra bombardeira. brizou Cochrane e Taylor, foi iniciada ainda em
águas da Baía de Todos os Santos pela Flotilha
EPÍLOGO Itaparicana. Seus barcos perseguiram o inimigo
Mas, a guerra estava chegando ao seu fim. até à Barra, sob nutrido fogo de artilharia.
Bernardino Ferreira da Nóbrega comenta: Livre o golfo de naves inimigas, João Botas
“Todos estes trabalhos forão em vão; porque dirigiu-se para a Fortaleza do Mar, já então vazia
o inimigo já não cuidava se não de desocupar de portugueses, e com gente do seu barco guar-
o terreno, que ocupava na capital, e o fez em neceu o velho baluarte. Sobre este logo surgiu,
pouco tempo”. colorindo a manhã diáfana, a Bandeira do Brasil.
Pelos últimos dias de junho de 1823, muitas A epopéia concluía-se em alegoria. Era a sua
embarcações pequenas passaram a deixar a ca- merecida coroa.

JORGE CALMON Revista da Bahia, V.32, nº36. –Egba, 2002

2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL


Cachoeira - Acervo Fundação Pedro Calmon
O papel da Cachoeira nas
lutas da independência
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O papel da Cachoeira nas lutas da independência

O papel da Cachoeira nas


lutas da independência
Alberto Rabello
Amanheceu, pois, o dia 25 de Junho do mação pela tropa que em honra disparara
1822 e conforme o acertado na reunião da seus fuzis, logo, partiram, de bordo da bar-
madrugada de 24, em casa do Capitão Ar- ca, muitos tiros de metralha e fuzilaria con-
nizau, a vila assistiu, tomada de emoção e tra terra, onde a curiosidade do extraordi-
júbilo, o desfilar garboso do contingente nário e inédito espetáculo trouxera grande
do Coronel Rodrigo Antônio Falcão Bran- acúmulo de gente.
dão, que tendo levantado acampamento das É fácil ajuizar-se o que teria, então, suce-
margens do Pitanga, entrara pela rua dos dido, e quais os sentimentos despertados na
Currais Velhos e, passando pelo largo do alma ardente da tropa ali postada!
Hospital, descera com o grosso das tropas A reação foi imediata e sem calcular a que
do bravo comandante Coronel José Garcia extremos poderia chegar, a defesa foi rapi-
Pacheco de Moura Pimentel e Aragão, para damente montada, se bem que a ela se opu-
formar em continência, na Praça da Cadeia. sessem, pela mão armada, alguns elementos
Foi-me difícil, senão impossível, verificar portugueses de terra, logo subjugados.
o trajeto exato dos patriotas comandados
pelo Coronel Rodrigo Antônio, se eles des-
ceram pela rua das Flores, atravessando a
Ponte Velha para chegar logo ao largo do
Hospital ou se vieram pela Pitanga de Cima,
pois em aquele tempo era um pântano que
negava passagem a atual praça Maciel.
Nos paços do Conselho, reunia-se aquela
hora, a câmara, em sessão solene, assistida
pelos comandantes dos diversos corpos já
aderidos à nobre causa, muitas autorida-
des, inclusive o Juiz de fora, e grande núme-
Aclamação em Cachoeira 25 de junho de 1822
ro de homens bons, que dali saíram para a
igreja Matriz, onde foi cantado um Te-Deum, Sem distinção de classe e idades, o povo
lançando-se a benção às tropas em seguida. correu para onde lhe chamava o dever; e ao
Tornados os assistentes aos Paços do longo dos cães e nos barrancos do rio, des-
Conselho, apareceu numa das janelas o pre- cobertos os peitos ante a fuzilaria da barca,
sidente da Câmara que, depois de consultar naquele encontro desigual, sustentou essa
ao povo e à tropa, desfraldou a bandeira e luta de quatro dias e quatro noites, batizan-
aclamou em nome de sua corporação, D. Pe- do com o sangue generoso de seus heróis o
dro, Príncipe Regente e Perpétuo Defensor. torrão querido da pátria, que dava, pela mão
Não quis a guarnição da canhoneira as- armada, o primeiro passo para a Liberdade!
sistir impassível aquela demonstração do E todo esse dia 25, e a noite toda, foi de
patriotismo cachoeirano, e saudada a Acla- nutrido fogo e incessante batalhar.

2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL


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575

Alberto Rabello
Cachoeira São Félix

Lançando mão de todos os recursos, diz pulares brancos que Iutavam, pois tinham
Aristides Milton que os patriotas cachoeiranos o rosto inteiramente enegrecido pela pólvo-
com o fim de darem proveitoso ensinamento à ra dos cartuchos que rompiam nos dentes,
guarnição da barca portuguesa, que continu- parecendo endiabradas figuras, no dizer de
ava a insultar os brios do nosso povo, manda- um dos nossos historiadores, não me recor-
ram buscar aos engenhos de açúcar uns vai- do, precisamente, se Accioly ou Rebouças.
vens que brocaram, montando-os depois nuns À frente da tropa do povo, incitando-a à
reparos improvisados para servirem de peças. resistência, foi Frei José de S. Jacintho um
Colocados, pois os vaivens tanto aqui como em dos mais denodados colaboradores desse
S. Félix, conseguiu-se com eles dar tiros contra grande feito.
o navio, causando-lhe assim bem serias ava- No termo de vereação que se transcreveu
rias. Durante o dia não cessou o fogo da barca acima está seu nome com os altos títulos
para terra, secundado por certeira fuzilaria de que possuía, de pregador régio e examina-
que se encarregava a gente acastelada nas ca- dor das três ordens militares.
sas dos portugueses Antônio Pinto de Lemos Por fim, a 28 de Junho, diz nas suas Ephe-
Bastos e Manoel Machado Nunes”. mérides Cachoeiranas um dos mais brilhan-
Eram os vaivéns antigas máquinas de guer- tes filhos da mesma Cachoeira, Aristides
ra com que se arrombavam as portas e os mu- Milton, cujo nome ainda uma vez evoco res-
ros das fortalezas. Consistiam numa grande peitoso, rendendo-lhe um preito na divul-
trave apoiada sobre uma espécie de forquilha gação do seu trabalho sobre a luta final e
e que impelida por um movimento de balanço abordagem da barca, com a vitória das ar-
lhes batia repetidas vezes. mas cachoeiranas:
Já então organizara-se uma “Junta Conci- ...Já por tarde, o comandante da barca
liatória e de Defasa” eleita em reunião, na portuguesa, que desde o dia 25, fazia fogo
casa do Padre Navarro sita à mesma praça contra o povo cachoeirano, ameaçou por
e na vizinhança da do Major Arnizau, tendo meio de um ofício insolente, endereçado
como presidente o depois Barão de Itapa- às autoridades locais, arrasar a vila, se esta
rica, Antônio Teixeira de Freitas Barboza e por acaso não se lhe submetesse logo.
que se comunicou com a Junta Provisória do E, antes de receber a merecida resposta,
Governo da Bahia, tendo antes declarado ao redobrou suas hostilidades, atirando até
povo a necessidade de resistir. sobre as canoas que, cheias de passageiros,
O dia e a noite de 26 e 27 foram sem tré- navegavam pelo rio Paraguaçu.
guas, sem repouso de luta recrudescida. Muito de indústria, os adversários da
Era impossível identificar a muitos po- causa brasileira tinham feito correr insis-
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
58
O papel da Cachoeira nas lutas da independência

tentemente o boato de que estava a chegar poucos dias, para a cadeia de Inhampube, por
outra canhoneira para auxiliar a primeira, uma escolta de que foi comandante o sargen-
ao mesmo tempo que esta se movia para to- to Manoel Lino Pereira.
mar posição, onde ficasse fora do alcance da Nessa campanha, que terminou por tão
fuzilaria, bloqueando, portanto, o porto. notável triunfo para os Cachoeiranos, distin-
Importa não esquecer que um troço da guiram-se por atos de patriotismo e valor,
maruja portuguesa havia descido à terra, a além dos cidadãos que já tinha mencionado,
noite do dia 25 e apagara as luminárias pos- mais estes:
tas à casa em que o Dr. Juiz de fora morava. O Capitão-mor Joaquim Ignacio de Cer-
Entrementes, a Junta Conciliatória, pre- queira Bulcão, João Pereira Gallo, João Pe-
sidida pelo Capitão Freitas Barbosa, não dreira do Couto Ferraz, José Antônio da Silva
tendo conseguido que o comandante da Ca- Castro, Domingos Cravador, Joaquim Antônio
nhoneira, a quem responderam moderada, Moutinho, Ignacio Joaquim Ferreira Lisboa,
se bem que dignamente, desistisse do seu Viríssimo Macário, Cassiano Macário, Ro-
propósito, proclamou ao povo, e assentou berto Barbosa Saldanha, José Joaquim Souza
preparar cuidadosamente Leite, o padre Villabom, o
a desistência. capitão de cavalaria Anto-
Com tamanha felicidade “O estabelecimento nio de Castro Lima, Ignacio
o fez, que, tendo começado de um telégrafo entre Joaquim Pitombo, capitão
um vigoroso fogo de fuzila- esta cidade, então José Gomes Moncorvo, Ma-
ria às oito e meia da noite, vila, e a barra do noel Ferras da Motta Pe-
antes das doze, a canho- Paraguaçu, por meio dreira, Dr. João Martiniano
neira se havia rendido com de sinais; incumbindo- Barata, Tenente Francisco
26 pessoas da guarnição se do respectivo Gomes Moncorvo, Tenente
feridas, inclusive o próprio serviço ao capitão João Borges Ferraz, Pedro
comandante, tendo ficado José Felix da Silva. ” Jacome, os irmãos Lesbios
mortos 12 praças; outros do Funil, José Pinto da Silva,
fugiram a nado. José Venâncio Tupinambá,
A rendição realizou-se depois de ter feito os irmãos Rocha Galvão, (Lourenço, Manoel e
o navio calar a sua artilheria, que começara José), Cardoso de Magalhães, Manoel Maurí-
com frequência, mas pouco a pouco se foi cio Rebouças, Victor José Topasio, Pedro José
tornando mais espaçada, e terminou por Marcellino de Carvalho, José Marcelino dos
emudecer de todo, quando içou uma ban- Santos, Major José Antônio da Silva Castro,
deira branca. Miguel Barbosa Cabral, alferes José Garcia
A barca, tendo sofrido dois tiros ao lume da Cavalcante, sem falar em muitos outros, que
água, não pode continuar o combate. Antes, seria longo enumerar.
algumas balas tinham já crivado o costado do Dentre as diversas providencias, que fo-
navio, e cortado a cordagem de suas velas. ram tomadas para repelir o inimigo, assinala-
Então, nossos valentes conterrâneos, to- rei como mais importantes as que menciono
mando canoas, abordaram a barca e passa- abaixo:
ram a prender o comandante e a tripulação O estabelecimento de um telégrafo entre
dela. esta cidade, então vila, e a barra do Paragua-
Ainda encontraram duas peças carregadas. çu, por meio de sinais; incumbindo-se do
Presas as vinte e sete pessoas que se acha- respectivo serviço ao capitão José Felix da
vam a bordo, foram todas enviadas, dentro de Silva.
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
9
595

Alberto Rabello
A criação de uma posta para uso dos dois
pontos indicados, tendo sido nomeado ins-
petor dela o capitão Manoel Pereira de Ma-
cedo.
A organização de duas companhias de vo-
luntários a que denominaram de Marte e de
Bellona.
A esse tempo, existiam, no rio Paraguaçu,
duas fortalezas que podiam cruzar os seus
fogos: uma na Ponta da Saubara, e a outra na
ponta da Barra: afora a célebre fortaleza do
Paraguaçu, construída pelos holandeses.
Das peças tomadas ao vaso português,
umas foram remetidas, debaixo do coman-
do de Victor Topazio, para o engenho de To-
roró, onde hoje existe a fábrica de tecidos
denominada S. Carlos, a fim de fortificá-lo;
as melhores tiveram destino para a referi-
da fortaleza do Paraguaçu de que era então
comandante o 2º tenente A. G. da Rocha de
Queiroz Marinho Jaboticaba, e as outras fo-
ram aproveitadas, alguns nas obras de defesa
de nosso porto e o resto na vila de S. Francis-
co a fim de proteger-lhe o porto. Mártir da Independência - Tambor Soledade

A Junta não se esqueceu de providenciar não reconhecê-la e não prestar-se, portanto,


sobre o fornecimento das tropas, e para acau- a entreter correspondência com ela, cujos
telá-lo convenientemente fez sair o capitão atos considerava tão precipitados quan-
comissário Francisco Manoel de Castro.En- to ilegais, incompatíveis além de tudo com
tretanto, quando correu a notícia da toma- a obediência imediata, em que se achava a
da da barca, espontânea iluminação surgiu província para com as cortes d’El-Rei.
prontamente em todos os edifícios públicos e Os coronéis José Garcia Pacheco de Moura
na maior parte das casas particulares. Ás 11 Pimentel e Rodrigo Antônio Falcão Brandão,
horas da noite, [ilegível] um aspecto brilhan- fizeram ao mesmo governo comunicação
te e jubiloso. igual à que a Junta Provisória havia dirigido.”
No mesmo dia, a Junta provisória do go- É, de fato, essa concisa descrição, feita
verno da Bahia, composta dos cidadãos Fran- sem falsos adornos de estilo, mas singela e
cisco Vicente Vianna, Francisco Carneiro de verdadeira, uma das mais belas páginas do
Campos, Manoel Ignacio da Cunha Menezes, heroísmo cachoeirano, que encerrou a fa-
José Cardoso Pereira de Mello e Antonio da çanha com a abordagem, feita em canoas,
Silva Telles, dirigiu-se ao general Madeira, metendo a ferros toda a tripulação, desar-
comunicando-Ihe a aclamação do príncipe mando e dividindo por novas fortificações,
regente e a instalação da Junta de Defesa que ao longo do rio e nos pontos em que se fazia
aqui tinham tido lugar, mas protestando-lhe mister, toda a artilharia da canhoneira.

Alberto Rabello. Imprensa Oicial do Estado, na Edição Comemorativa ao Centenário da Independência da Bahia, em 1923.

2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL


Pirajá - 2 de Julho - Acerevo Fundação Pedro Calmon
Os combates de
Pirajá e Itaparica
62
Os combates de Pirajá e Itaparica

Os combates de
Pirajá e Itaparica
Sérgio Roberto Dentino Morgado

O conhecimento dos aspectos militares, sença do estado português na colônia, até en-
componentes da história da formação das na- tão meio abandonada, em função do interesse
cionalidades, permite que se compreenda me- maior pelas Índias. Atitude interessante, pois
lhor a importância do testamento militar como o sistema militar português era baseado nas
fator imprescindível para sua existência e con- Ordenanças, que obrigavam a população a
solidação. É por essa razão que estamos aqui pegar em armas para sustentar o patrimônio
para refletirmos sobre os combates de Pirajá da Coroa. Quais eram, então, as tropas que se
e Itaparica, no concerto da Guerra de Liberta- confrontaram nesta guerra? Quem eram os
ção do jugo português na Bahia, no conjunto homens que as conduziram, ou lideraram?
de episódios que caracterizam e conformam o Que motivações os levaram a dispor de suas
processo de Independência no Brasil. O tema vidas nesses embates sangrentos? Que “pug-
enseja uma abordagem mais ampla, talvez mais na imensa” teria sido essa, que “se travara nos
holística, pois integra duas áreas de operações cerros da Bahia enquanto o anjo da morte,
distintas e interligadas, representativas, ambas, pálido, cosia uma vasta mortalha em Pirajá”?
de interesses convergentes, e cuja conquista, O que vamos relatar, realizando uma breve
pelas partes, caracterizariam pontos de apoio análise, é a história de um cerco, suas circuns-
que as pudessem levar à vitória. tâncias, sua execução e suas consequências,
Se vamos analisar um processo, devemos bem como a da tentativa lusitana de preser-
buscar alguns aspectos que permitam estabe- var sua colônia na América.
lecer as referências com as quais possamos O Brasil do começo do século XIX já vive-
fundamentar nossas apreciações sobre esse ra uma experiência de trezentos anos lutan-
fato histórico. Elas são muitas e estão distan- do contra a cobiça alheia, muito rica na sua
ciadas no tempo e no espaço, podendo ser multiplicidade e abrangência. Franceses, ho-
observadas desde as origens de nossos povos landeses, ingleses, espanhóis e portugueses
formadores, sejam os portugueses com suas são partícipes de fatos históricos acontecidos
raízes celtas, sejam nossos caboclos, com na nossa imensidão, ao longo desse tempo, e
suas raízes negras ou indígenas. Ao apontar terçaram suas armas e suas capacidades com
para essas referências, desejamos apenas os nossos caboclos, nossos índios, nossos
ressaltar a riqueza do tema e a sua vastidão, negros e nossos brancos, em defesa de seus
de vez que o tempo que nos foi concedido li- interesses, pessoais ou estatais, sejam políti-
mita qualquer anseio maior. cos, econômicos ou sociais.
E como falamos de origens, comecemos A epopeia napoleônica na Europa obrigara
por estabelecer as bases da presença militar a Corte Portuguesa a transmigrar para o Bra-
portuguesa no Brasil e, em especial, na Bahia. sil, única maneira, naquele instante, de pre-
Foi aqui, neste promontório, que desembar- servar o estado luso e a dinastia dos Bragan-
caram, com Thomé de Souza, as primeiras ça. Com isso, o Brasil Nação transmudou-se
tropas de linha que pisaram no território bra- em Estado do Brasil. A abertura dos portos
sileiro, com a finalidade de caracterizar a pre- às Nações amigas e a nossa transformação
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
3
663

Sérgio Roberto Dentino Morgado


Pirajá - Igreja e Panteon - Acervo Fundação Pedro Calomo

em Reino Unido a Portugal e a Algarve, com ciar o início das dissensões entre brasileiros
a sede da monarquia estabelecida no Rio de e portugueses na sua luta pela posse do po-
Janeiro, transformara os lusos em vassalos der. Dez de fevereiro marca, ainda, a posse de
do Brasil, fato que Portugal e os portugueses um oficial brasileiro, o coronel Manoel Pedro
não podiam admitir, pois como iriam abrir de Freitas Guimarães, oficial do Regimento de
mão do cofre, da cornucópia, da burrinha, da Artilharia aquartelado no Forte de São Pedro,
galinha dos ovos de ouro? No fundo, a Revolu- transformado em brigadeiro e aclamado como
ção Constitucionalista do Porto, realizada em comandante das Armas da Bahia. Manoel Pe-
fevereiro de 1820, era a resposta a esse “sta- dro tratou de fortalecer as tropas brasileiras
tuo quo” e tinha como motivação revertê-lo, na capital e os comerciantes de Salvador vi-
trazendo o poder de volta a Lisboa e transfor- ram aí a perda da posse do poder e obraram
mando o Brasil novamente em colônia. Se as- para que um até então obscuro tenente- coro-
sim era, por que os patriotas baianos a apoia- nel, Inácio Luiz Bandeira de Melo, comandan-
ram e deram início aos embates militares te do Batalhão de Infantaria 12, o substituísse
aqui, nesta cidade, entre tropas locais e tro- no cargo. O Batalhão 12 fazia parte da Divisão
pas lusas, como os que ocorreram em 10 de Auxiliadora, estacionada no Rio de Janeiro e
fevereiro de 1821, a partir da revolta do Forte comandada pelo general Jorge de Avilez. Ti-
de São Pedro? “Uma revolução para obedecer nha vindo para o Brasil em consequência da
a uma Constituição que ainda não havia sido Revolução de 1817, no Recife.
elaborada”, nos diz Braz do Amaral. Segundo A atuação do brigadeiro Manoel Pedro
ele, o governo absolutista do Rio não queria também motivou a vinda de Lisboa da Legião
que o Reino Luso da América tivesse igualda- Constitucional Lusitana, chegada aqui em 23
de de condições com o Reino Luso da Europa de agosto de 1821, para fortalecer o partido
e pretendia, aqui, restringir as liberdades, as lusitano. Veio a seu pedido. Eram 1.184 ho-
franquias e os benefícios prometidos ao povo mens, compondo dois batalhões de infanta-
de lá. A revolução na Bahia foi uma reação ria e uma companhia de artilharia. É preciso
contra a distinção que se pretendia estabele- lembrar que, nessa época, o poder central do
cer entre os portugueses que estavam na Eu- Império luso já havia retornado a Lisboa, com
ropa e os que estavam aqui. a volta de D. João VI, em 26 de abril.
Mas esse fato serve, também, para referen- Essa disputa de poder originou os san-
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
64
Os combates de Pirajá e Itaparica

grentos acontecimentos de 18 e 19 de feve- político, o empório, a urbe dos ricos comer-


reiro de 1822, que caracterizam o início da ciantes lusitanos. No interior, no Recôncavo,
guerra civil na Bahia. Os portugueses con- estava a riqueza, a comida, o braço trabalha-
tavam com o Batalhão de Infantaria 12, a dor. A Bahia era uma terra de cerca de 400
Legião Lusitana, uma tropa de cavalaria e a mil almas. Em Salvador viviam em torno de
marujada. Do lado brasileiro, o Regimento de 100 mil. Portugal era uma nação com 2 mi-
Infantaria 1, o Batalhão de Caçadores e o Re- lhões de habitantes. O Brasil, naquela época,
gimento de Artilharia. Tudo tropa de milícias, tinha cerca de 4 milhões, a maioria espalhada
embora considerada como tropa de linha. pelo litoral; exceção das Minas Gerais, viven-
Experiente apenas na rotina. A tropa portu- do ainda o rescaldo do ouro.
guesa, de uma maneira geral, tinha experiên- As Forças Armadas eram díspares. O Exér-
cia de combate. Tinha participado da guerra cito português tinha próximo de 24 mil ho-
napoleônica, na Europa. A Divisão de Volun- mens, a maior parte estacionada na Europa.
tários Reais, estacionada em Montevidéu e No Brasil, a tropa de 1ª linha era pouca, o
trazida para participar da Campanha Cispla- grosso era formado por milícias. As frações
tina, tinha sido escolhida a dedo em Lisboa. mais experientes estavam no sul, veteranas
Seus homens se destacaram na Campanha da das campanhas contra os espanhóis e seus
Península Ibérica, como membros do Exérci- descendentes. Na Corte, no Rio de Janeiro,
to de Lord Wellington, que expulsou dali as havia três Regimentos de Infantaria de 1ª
tropas napoleônicas. Da mesma forma eram Linha, o Primeiro Regimento de Cavalaria, o
os membros da Divisão Auxiliadora. A expe- Regimento de Artilharia da Corte e mais 15
riência de combate se traduz por ter passado Regimentos de Milícias.
as vicissitudes da guerra e ter embrutecido A diferença entre as Marinhas era ainda
os seus sentimentos com as suas perdas, seus maior. A lusitana, no início do século XIX, an-
sofrimentos, suas vibrações pelos momentos tes da invasão francesa, possuía 57 navios,
gloriosos. Eram vencedores no além-mar. dentre os quais 13 naus, 16 fragatas, 3 corve-
No dia 11 de fevereiro, o navio Danúbio tas, 17 brigues e 8 charruas. Após o retorno
chega a Salvador com a notícia de que Madei- de D. João VI, ficaram na Bahia 21 navios, a
ra de Melo havia sido promovido a general saber: 1 nau, 3 fragatas, 5 corvetas, 9 brigues,
e nomeado comandante das Armas, substi- 2 escunas e 1 sumaca. Os brasileiros dispu-
tuindo Manoel Pedro. A tentativa de impedir nham apenas de 7 navios, dentre os quais 2
a substituição levou a novo choque na região fragatas, 2 corvetas,1 brigue, 1 escuna e 1
do Forte de São Pedro. Ao romper do dia 19, charrua. A fragata era o navio mais impor-
as duas forças se enfrentaram. Fuzilaria, tiros tante da época, por ser mais rápida e melhor
de canhões, mortos e feridos, prevaleceram artilhada.
os portugueses. Madeira assumiu com mão- Os infaustos acontecimentos de fevereiro
-de-ferro. Soldados e marujos lusos depois se ocorreram entre dois fatos capitais para o
embebedaram e cometeram muitos excessos, processo de independência. O “Fico”, em 9 de
inclusive mataram a Madre Sóror Joana An- janeiro, e o embarque da Divisão Auxiliadora,
gélica e o Capelão do Convento da Lapa. Fato no Rio de Janeiro, em 14 de fevereiro, expul-
que ficou na História e serviu de emulação sa por D. Pedro. Provavelmente repercutiram
para a guerra. por aqui porque, em março, um de seus bata-
A partir da posse da cidade, começou o lhões, trazido por um dos navios que a trans-
êxodo para o interior. Primeiro de soldados, portava para Lisboa, se desgarrou do com-
depois das famílias. Salvador era o centro boio e aportou na baía.
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
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Sérgio Roberto Dentino Morgado


2 de Julho - Acerfo Fundação Pedro Calmon

Ocorre que, em 19 de março, uma procis- volta. O corregedor de Santo Amaro, Antônio
são em homenagem a São José, conduzida por José Duarte de Albuquerque, chefe político de
uma guarda da Legião Lusitana, foi apedreja- prestígio e membro da Casa da Torre, e mais o
da pelos brasileiros e isso motivou a ordem capitão-mor Joaquim Inácio de Siqueira Bul-
de Madeira para que a tropa desembarcasse cão e outros patriotas, organizaram um plano
e fosse acolhida nos quartéis da cidade, en- para libertar a Bahia do jugo português.
grossando seus efetivos. Ela desembarcou na O movimento teve início na noite de 24 de
noite de 27 de março e foi recebida à luz de junho, quando os coronéis de Milícias Rodri-
archotes, pelos portugueses, com vivas e in- go Antônio Falcão Brandão e José Garcia Pa-
sultos aos brasileiros. Tal era o clima reinante checo, à testa de 100 homens do Corpo de Ca-
na cidade. valaria da Milícia de Cachoeira, se reuniram
No Rio de Janeiro, quando soube das atro- num lugar chamado Belém e juntos entraram
cidades dos dias 18 e 19, D. Pedro mandou naquela vila para aclamar D. Pedro. A eles se
celebrar exéquias, a que compareceu de luto. juntaram mais quatrocentos homens. Em Ca-
Durante a cerimônia, ocorrida no dia 17 de choeira estava estacionada uma escuna por-
junho, intimou Madeira a deixar o Brasil e tuguesa, por ordem de Madeira, para vigiar a
proclamou aos baianos a que reagissem e lu- vila.
tassem contra aquela tirania. As populações de Cachoeira e de São Fé-
A proclamação do Regente ecoou no Re- lix, esta situada na outra margem do Rio Pa-
côncavo e transformou-se no estopim da re- raguassú, aderiram ao movimento. A Câmara
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
66
Os combates de Pirajá e Itaparica

de Cachoeira lavrou um Ato de Adesão, onde repetir o grito regenerador dos mais felizes
reconheciam e aceitavam a autoridade de D. fluminenses, paulistas, mineiros, continentis-
Pedro. Após a cerimônia, todos se dirigiram tas e pernambucanos; almejava, para apagar
à Igreja Matriz onde foi realizada uma missa a feia nódoa do cisma que a seu bel prazer,
em ação de graças à aclamação. sete homens levantaram entre esta e as mais
Terminado o ato religioso, a multidão ini- províncias brasileiras”.
ciou um desfile pelas ruas da vila e foi então Essa afirmação caracterizava, antes de
alvejada por disparos, provenientes da casa de tudo, o sentimento de união, a noção de bra-
um português ali residente e por tiros de me- silidade que, mesmo no interior, já predomi-
tralha, vindos da escuna de onde desceu uma nava na nossa gente. Não havia hostilidade
patrulha de marujos para conter o regozijo e ao luso, do qual muitos descendiam, mas não
apagar as luminárias que o povo colocara, em se abria mão da Nação, que trezentos anos
júbilo, nas portas das casas. A escuna conti- de luta e labor já tinham forjado no coração
nuou a atirar sobre Cachoeira e São Félix. No dos brasileiros. Essa crença é que os animou
dia 26, continuaram os bombardeios. e sustentou todas as vicissitudes que, a partir,
A população, ante a tibieza do juiz de fora daí iriam passar para preservar a integridade
e do capitão-mor, e o direito de se constituírem em uma socie-
nomeou uma Junta dade livre e soberana.
“Também, em Itaparica, Conciliatória e de Com esse ato, ao qual aderiram Santo
Antônio de Souza Lima, Defesa para dirigir e Amaro e São Francisco, começou efetivamen-
português, retirou governar o Recônca- te o movimento. Foram criadas Caixas Milita-
pólvora e armamento vo. Criaram uma Cai- res que possibilitassem dar organização sé-
da ilha do Morro de xa militar e intima- ria e eficaz às milícias que iam se formando.
São Paulo e levou para ram o Comandante Não havia armamento e as velhas peças de
Cachoeira, organizando da Escuna para que artilharia, que os engenhos eram obrigados
ainda um batalhão cessasse as hosti- a manter, não possuíam mais carretas, nem
com 300 homens. ” lidades. A resposta pólvora, nem balas, nem artilheiros. Faltava
veio com ameaça de tudo, menos boa vontade. Desde logo foram
arrasar a vila. A po- construídas trincheiras nos rios que levavam
pulação, então, atacou a escuna usando cano- a Cachoeira e a Santo Amaro, para evitar a su-
as, aprisionou a guarnição e o comandante. bida das esquadrilhas portuguesas.
Foram três horas de combate e era o dia 28 O pronunciamento das vilas do Recôncavo
de junho. estimulou e aumentou o êxodo dos brasileiros
De uma nota enviada pela Junta de Cacho- da capital. Itaparica também aderiu. Madeira
eira ao Príncipe Regente, destacamos dois reagiu e mandou uma expedição de 80 praças
trechos. No primeiro, afirma que “o leal e da Legião Lusitana, comandada pelo capitão
brioso povo do Distrito de Cachoeira acaba Joaquim José Teixeira, alcunhado de Trinta
de proclamar e reconhecer Vossa Alteza Real Diabos, tomar o Forte de São Lourenço, situ-
como Regente Constitucional e Defensor Per- ado na extremidade noroeste da ilha e impor-
pétuo do Brasil”. Nota-se aí, ainda, o respeito tante ponto de controle de acesso ao interior
a D. João VI, e, pela primeira vez, a outorga da Baía de Todos os Santos. Impossibilitado de
do título de Defensor Perpétuo do Brasil. O permanecer, inutilizou os canhões e danificou
outro trecho proclama que “Altamente pene- as carretas das peças. Era o 10 de julho.
trado da mais viva gratidão para com Vossa No Recôncavo continuavam os preparati-
Alteza Real, este brioso povo almejava por vos para retomar a capital. A primeira pro-
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vidência era estabelecer uma linha de cerco. arquipélago, onde se havia posto uma guar-

Sérgio Roberto Dentino Morgado


Salvador é uma cidade situada sobre um pro- nição, visando impedir o acesso às vilas con-
montório que a sabedoria de Thomé de Sou- federadas pelas esquadrilhas de canhoneiras
za escolheu com maestria. Ela está situada no portuguesas. Eram entrincheiramentos co-
lado ocidental de uma península que é banha- locados nas ilhas das Fontes, das Vacas, dos
da a leste pelo Oceano Atlântico, sem oferecer Frades, do Bom Jesus, da Madre de Deus e
bom porto ou lugar muito apropriado para de Santo Antônio, além dos sítios de Marapé,
desembarques. O outro lado, onde se situa a Mataripe, Paramirim, Saubara, Engenho do
urbe, a costa é banhada pelas águas mansas Conde e outros.
do interior da baía, cheia de reentrâncias e Chegou, também, uma Guarda de Caçado-
grotões, que tanto facilitam como dificultam res Henriques, tropa de homens negros que
o acesso. É local de trocas de mantimentos, se tornara tradicional desde Guararapes.
por seus pequenos portos de onde vem e vão No dia 18 de julho chegou Santinho, o
as embarcações provenientes de todos os apelido carinhoso pelo qual era tratado o
pontos de sua costa interior. tenente-coronel Joaquim Pires de Carvalho
A península também é caminho para o in- e Albuquerque; chegou com os Batalhões da
terior, através de uma antiga estrada, talvez Torre, corpos de milícias que traziam seus ín-
uma das mais antigas do Brasil, que é traçada Maria Quitéria, heroína da independência da Bahia
pela região alta das terras que a constituem.
Conhecida como Estrada das Boiadas, era dios com seus arcos e suas flechas. Mais uma
o único acesso terrestre para a grande área vez as raças formadoras da nacionalidade se
produtiva da Bahia. juntavam para, forjando o testamento militar,
Em julho foi que começou a se organizar a oferecer seu sangue pelo Brasil. Joaquim Pi-
resistência. Nos conta Braz do Amaral que foi res assumiu o comando do Arraial.
da Vila de São Francisco que partiu o alferes Também, em Itaparica, Antônio de Souza
Francisco de Faria Daltro com um contingente Lima, português, retirou pólvora e armamen-
do 1º Regimento de Linha e se instalou no lo- to da ilha do Morro de São Paulo e levou para
cal chamado Coqueiro, na região de Pirajá. De Cachoeira, organizando ainda um batalhão
Cachoeira marchou o coronel Falcão Brandão com 300 homens. Lá, ainda, João das Botas,
e uma força miliciana reforçada por soldados outro português, artilhou barcos com peças
que haviam fugido da capital e se instalou no de vaivém dos engenhos, formando uma flo-
Cabrito. A eles se juntou o tenente-ajudante tilha, e ainda cuidou de fortificar a Ponta de
Alexandre Gomes de Argolo Ferrão, que ali Nossa Senhora, a fim de fechar o caminho
acampou com um Batalhão de Caçadores. Ar- para o interior da baía.
golo fez carreira brilhante e chegou a general, No final de julho, Trinta Diabos volta a ata-
tendo se destacado na guerra contra o Para- car Itaparica, desta vez no Funil, um estreito
guai. canal entre a ilha e o continente, cuja posse
Pirajá começou a se tornar um grande ar- era fundamental para controlar o acesso à re-
raial, semelhante ao do Bom Jesus, estabeleci- gião de Nazaré, um dos distritos mais férteis
do no sertão de Pernambuco, na luta contra o do Recôncavo. Antônio de Souza Lima defen-
invasor holandês, cerca de dois séculos atrás. deu Itaparica, no Funil, com 12 homens. O
O tenente-coronel Felisberto Caldeira diri- ataque começou às 5 horas da manhã e durou
giu as primeiras obras de fortificação da Vila até a tarde. Escondidos nos matos próximos
de São Francisco de Sergipe do Conde. Forti- às praias, atrás das árvores, ele emboscava os
ficou também a Ilha de Capaíba, e as ilhas do atacantes. Os habitantes de Itaparica foram
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
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Os combates de Pirajá e Itaparica

se incorporando ao combate. No fim da tar-


de, os lusos se retiraram e o Combate do Funil
serviu como estímulo aos nacionais e causou
uma tremenda decepção aos portugueses, em
Salvador.
Em Pirajá continuava a chegar gente. Che-
gou o Batalhão de Periquitos, do qual fez par-
te Maria Quitéria. Chegou gente de Belona e
Mavorte, 400 e 300 homens, respectivamen-
te. A milícia de Santo Amaro reuniu e mandou
500 homens e Berenguer César chegou com
mais 300. Padre Zé Maria Brayner organizou
a Companhia de Couraças - vaqueiros vesti-
dos de couro, que passaram a fazer o serviço
de transporte pelas regiões inóspitas, pelos
alagadiços e carrascais.
A Torre e Camamu mandaram farinha em
abundância. No Engenho do Cobre começa-
ram a se fundir peças para a campanha. Capela de São Lourenço - Itaparica - Foto: Tito Garcez
De Pirajá começaram então a inquietar a
consta de 24.000, restam 4.000 para todo o
gente de Madeira, atuando até a Lapinha. A
serviço de Portugal. Como é possível que o
linha de cerco ia do Cabrito até Itapuã.
governo atual se mantenha com tão extrava-
gante sistema?
Nos primeiros dias de agosto, Madeira re-
Em verdade, se Portugal não conseguiu
cebe novos reforços. Chega o Batalhão de In-
mandar tropas capazes de transformar o Bra-
fantaria nº. 1, 600 soldados, reforçados por
sil novamente em colônia, isto se deve ao va-
100 homens de cavalaria e outros 50 de arti-
zio de seu Erário. Fato concebível, já que a sua
lharia. Era o esforço de Lisboa para ajudar a
riqueza provinha, na sua maior parte, daqui,
manter a colônia. A propósito, convém recor-
e não havia interesse da Inglaterra, a grande
rer a Hipólito da Costa, que de Londres acom-
potência da época, de, naquele momento, fa-
panhava todo o movimento em Lisboa.
vorecer a volta ao “status quo anti”.
Escrevia ele, na edição XXVII do Correio
Faltava então, para compor o quadro, a fi-
Brasiliense: “Notícias de Espanha referem
gura do chefe maior, Labatut. Afinal, a guerra
que a Corte de Madri fez um tratado com a
ultrapassara as cercas e os quintais da pro-
de Lisboa, para esta lhe enviar um auxílio de
víncia, era muito maior que a Bahia, pois en-
12.000 homens, e adiantam mais que, com
volvia o Brasil inteiro. O Batalhão de Algarve
efeito, um corpo de 2.000 homens de cava-
já tinha sido expulso do Recife. No norte, o
laria, comandado pelo general Bernardo Se-
major Fidié controlava o Piauí e o Ceará. Ma-
púlveda, e um belo parque de artilharia mar-
ranhão e Pará também mantinham fidelida-
chava já em duas divisões, uma por Segóvia e
de a Lisboa. Na Província Cisplatina e no Rio
outra por Valadolid.
Grande do Sul, a Divisão de Voluntários Reais,
Ora, o governo de Lisboa tinha resolvido
5.000 experientes soldados de primeira li-
mandar para o Brasil 8.000 homens, que com
nha eram mantidos reclusos em Montevidéu.
esses 12.000 da Espanha fazem 20.000, e
Entre outras razões porque seu comandante,
como todo o Exército de Portugal (em papel)
o general Carlos Frederico Lecor, aderira ao
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
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Sérgio Roberto Dentino Morgado


Forte de São Lourenço - Itaparica - Foto: Tito Garcez

processo de Independência do Brasil. vadamente lutou na Colômbia, nas guerras


Mas por que Labatut? Desde o começo, de independência daquele país. Foi indicado
ensina José Honório Rodrigues, quando se pelo general Dirck van Hogendorp, um fran-
começou a pensar em um Exército Nacional, co-holandês, este sim, ajudante-de-campo de
considerou-se que um experimentado gene- Napoleão. A questão Labatut está relaciona-
ral estrangeiro seria o mais apropriado para da com a luta interna na maçonaria, entre as
organizar uma força ainda dominada por duas correntes que buscavam seduzir o futu-
portugueses. O primeiro nome aventado foi o ro Imperador. De um lado, Gonçalves Ledo e
de Sir Robert Wilson, um inglês que se dis- sua gente, representantes do ideal republi-
tinguira comandando tropas lusas durante a cano, partidários da nomeação do general
campanha da Península, na guerra napoleô- Moniz Barreto, que a esta linha pertencia. Do
nica, que foi o responsável pela organização, outro, José Bonifácio, representante do grupo
na cidade do Porto, da Leal Legião Lusitana, mais moderado, partidário de uma monar-
tropa que integrou o Exército anglo-lusitano quia constitucional, facção frequentada por
de Lord Wellington e se destacou na expulsão Hogendorp.
das tropas de Junot do território português. Essa disputa se projetou no Campo de Ba-
Pensou-se também no marechal Xavier talha e, certamente, atrapalhou as operações,
Curado, brasileiro, que se destacara nas lu- concorrendo para que Labatut tivesse dificul-
tas no sul, mas este já era muito velho para o dades em exercer o seu comando.
serviço em campanha, pois estava com mais Pedro Labatut saiu do Rio de Janeiro, coin-
de setenta anos. Finalmente, outro brasileiro, cidentemente no dia 14 de julho, com uma
um baiano, o general Domingos Alves Branco força de 200 homens, recrutada entre os Re-
Moniz Barreto, que chegou a ser convidado gimentos de linha da capital brasileira, e foi
pelo ministro da Guerra e aceitou. Surge en- arribar em Maceió, em 21 de agosto, de onde
tão o nome de Pierre Labatut, oficial francês começou a marchar para o Recôncavo. Foi
de origem e passado duvidoso, que compro- primeiro ao Recife, onde arrebanhou um con-
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Os combates de Pirajá e Itaparica

tingente de 300 homens e alguma artilharia, português da época, 1 fragata, 4 corvetas, 2


comandados pelo major José de Barros Fal- brigues, 2 escunas e 10 barcas armadas, uma
cão de Lacerda, tendo, então se dirigido para esquadra que foi colocada ao comando de
a Área de Operações. Com ele veio, também, chefe-de-divisão João Félix Pereira de Cam-
um contingente da Paraíba. Como no passa- pos.
do, e como sempre, os brasileiros de todos os Tais meios devem tê-lo estimulado a res-
quadrantes se reuniam para defender o patri- ponder o ultimato de Labatut com fogo. Certa-
mônio nacional. mente, o ataque às posições de Pirajá, em 8 de
Foi em Feira do Capuame, hoje Dias D’Ávila, novembro, tem na proclamação de 29 de ou-
que no dia 25 de outubro o tenente-coronel tubro o seu estímulo maior. Madeira contava,
Joaquim Pires de Carvalho e Albuquerque lhe agora, com cerca de 4.000 homens disponíveis
passou o comando das tropas em operações. para o ataque, além dos navios de João Félix.
Naquela ocasião, D. Pedro, às margens do ria- A descrição que Braz do Amaral faz de
cho Ipiranga, em São Paulo, já havia separa- Pirajá fala por si. Diz não ser uma povoação,
do o Brasil de Portugal. Labatut inicia, então, mas uma posição estratégica, controlando os
a organização e o treinamento da sua tropa. acessos terrestres para as terras férteis do
Cria duas divisões, uma à direita do dispositi- Recôncavo. Nos lembramos, mais uma vez, do
vo do cerco, sobre a estrada das Boiadas, e dá Velho Arraial do Bom Jesus, controlando os
o comando a Barros Falcão de Lacerda, pro- acessos para as terras férteis do Vale do Capi-
movido a coronel. Do outro lado, as bandas beribe, na guerra do açúcar. Braz a descreve
de Itapuã são entregues ao pessoal da Torre como sendo um alto promontório, por onde
que, sob o Comando de Felisberto Caldeira, passa a estrada que conduz ao interior. Fala
assume o terreno mais inóspito. de seus arredores, das terras onduladas, co-
Em fins de outubro, Labatut intima Madei- bertas de matas e onde, nas baixas, entre co-
ra a render-se. No manifesto, datado de 29 de linas, não faltam brejos e alagadiços. Fala da
outubro, observa que “a lealdade e a obedi- encosta, íngreme, que leva ao mar e às praias
ência dos bons e leais portugueses evitarão de Itacaranha e Periperi. Diz que quem de-
derramar o precioso sangue de irmãos. Que sembarcar nesses pontos tem que subir sem-
não deveria ser pela força que seria evitada pre, a fim de galgar a estrada. Observa que
a escravidão que as Cortes preparavam para a tropa que a possuir fica em posição domi-
o Brasil, e que não haveria de ser pela força nante sobre a enseada de Itapagipe, como em
que Sua Alteza Real desejava que a tropa sob estado de garantir, ou de impedir, a entrada
seu comando se retirasse para Portugal, con- de víveres frescos e de gado, na cidade do Sal-
cluindo que um tiro de fuzil de vossa tropa vador. E conclui que esta é a razão pela qual,
contra qualquer brasileiro seria o sinal da em todas as campanhas militares que se tem
nossa eterna divisão, fato que levaria o Bra- feito em torno desta cidade, Pirajá tornou-se
sil nunca mais se unir a Portugal, pelo que o o ponto decisivo de convergência dos esfor-
tornava responsável, em nome do Príncipe de ços dos combatentes.
todo o Reino do Brasil”. O plano de Madeira era surpreender os na-
Naquele momento, o general Madeira aca- cionais. Fortalecido por homens e navios, ele
bava de receber um reforço de mais 1.400 ho- sentiu que aquele era o momento de reagir ao
mens, composto por 2 batalhões de infantaria cerco. Decidiu atacar a base de operações dos
e um corpo de artilharia. Tropa experien- brasileiros em Pirajá.
te, de primeira linha. Além disso, chegaram, Desconhecemos se existem partes de com-
também, a Nau D. João VI, o melhor navio bate ou relatórios sobre a batalha. Se houver,
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
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Sérgio Roberto Dentino Morgado


ajudará a enriquecer as análises sobre este
importante fato histórico e permitirá recupe-
rar melhor essa memória. Tivemos acesso a
algumas descrições da efeméride, todas fei-
tas por reconhecidos historiadores. Braz do
Amaral, na edição de 1957 da sua História da
Independência da Bahia, que, cremos, foi es-
crita lá pelos anos 20, como parte das come-
morações do Centenário do 2 de julho; Affon-
so Rui, da Academia de Letras da Bahia, com
o seu “Dossiê do Marechal Pedro Labatut”,
obra que recebeu menção honrosa do Prêmio
Tasso Fragoso de 1958 e publicada em 1960,
pela Biblioteca do Exército; José Honório Ro-
drigues, no 3º. volume da sua coletânea “In-
dependência: Revolução e Contra-Revolução
- As Forças Armadas”, publicada em 1975
pela Francisco Alves; Dr. Miguel Calmon du
Pin e Almeida, numa preleção publicada em
um tomo especial da Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, em home-
nagem ao Centenário da Independência, e de Maria Quitéria: detalhe no Monumento ao 2 de Julho, na Praça
do Campo Grande (Salvador, Bahia).
uma Conferência proferida em 2 de julho de
1942, pelo general José Joaquim de Carvalho Conduzia as operações o coronel João de
e Albuquerque, neto do Visconde da Torre Gouveia Osório, comandante da Legião Cons-
de Garcia D’Ávila e que me foi cedida por seu titucional Lusitana.
neto, o Dr. Cristóvão Dias de Ávila Pires Ju- As colunas se formaram e começaram a
nior, este, membro do Instituto Geográfico e escalar as alturas. Ao mesmo tempo, outras
Histórico da Bahia. tropas desembarcaram no Cabrito e ameaça-
É, pois, Braz do Amaral que primeiramente vam a retaguarda dos nacionais. Para conter
nos conduz na narrativa. Conta ele que os lu- essa ameaça, para ali acorreram as tropas de
sos embarcaram na noite de 7 de novembro, Argolo Ferrão, que dirigiu a resistência com
nas barcaças que tinham vindo com o chefe- arrojo e coragem, apoiando-se no Coqueiro,
-de-divisão João Félix, e rumaram para as en- em Bate-Folhas e em São Caetano.
seadas de Itapagipe e Praia Grande, onde, ao Nas encostas de Pirajá a luta assumiu gran-
romper do dia, a infantaria português assal- des proporções. As tropas pernambucanas de
tou em Itacaranha e Plataforma, nas mesmas Barros Falcão, que defendiam essa posição,
praias onde, a menos de dois séculos, as lan- se engajaram num quase corpo a corpo. Do
chas flamengas despejaram os soldados de lado brasileiro combatiam a Legião de Caça-
Nassau. dores da Bahia, o Batalhão de Pernambuco,
Abrimos um parêntese para meditar se os os milicianos do Rio de Janeiro, o Corpo de
portugueses tinham, então, qualquer referên- Caçadores Henrique, gente do 1º. Regimento
cia sobre este fato histórico. Seria algo gené- de Infantaria da Bahia e uma Bateria de Arti-
tico despreocupar-se com o passado e ficar lharia que tinha vindo do Rio de Janeiro. Os
fadado a repeti-lo? lusitanos trouxeram a Legião Constitucional
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
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Os combates de Pirajá e Itaparica

Lusitana com os seus dois batalhões, trouxe- Torre, para ir segurando o avanço adversário.
ram também outros dois batalhões de Infan- Fala da ação do tenente-ajudante Alexandre
taria, o 4º. e o 12º., além de um contingente de Argolo Ferrão, que com o Batalhão da Vila
Artilharia.Durante mais de cinco horas pele- de São Francisco impediu o acesso à posição,
jaram os soldados. O terreno ajudava a conter distribuindo fogos em toda a frente e possi-
aquela tropa mais experiente e melhor arma- bilitando que as ordens fossem dadas e os
da. Atacar encosta acima, no meio do mato, é dispositivos defensivos estabelecidos. Fala
tarefa penosa e difícil. Num último esforço, os do reconhecimento de Labatut pelo valor de
portugueses impeliram a linha brasileira. Se Argolo, tendo-o promovido ao posto de ma-
isso ocorresse, a tropa que se batia e defen- jor pela importância da sua ação. Descreve
dia estoicamente o Cabrito ficaria em grande uma ação de ala da Legião sobre a posição de
risco. Cabrito, de onde desaloja um destacamen-
Barros Falcão decide, então, retrair para to baiano e o obriga a recolher-se à linha de
proteger o dispositivo e evitar ser envolvido. Campina, sugerindo uma junção com as for-
Manda tocar retirada. O corneteiro, Luiz Lo- ças que atacavam pela praia e avaliando a sua
pes, ao invés, toca - “Cavalaria avançar!”, e em importância como fundamental para ajudar a
seguida - “Cavalaria degolar!”. Os lusos, que ação sobre o centro do dispositivo brasileiro.
conheciam os toques, pararam, recuaram e Explica, então, que o terreno comandava
se precipitaram encosta abaixo, perseguidos as ações, pois a defesa não cedia, realizan-
até as praias, onde embarcaram e fugiram. Os do ações de guerrilha pelo terreno matoso e
atacantes do Cabrito também se retiraram. ondulado, atirando nos atacantes de frente e
Estava concluída a batalha. de lado, batendo-se, inclusive, a arma bran-
Mas Miguel Calmon, citando Titara, nos dá ca. Diz que o ímpeto do ataque diminuiu e o
uma versão diferente, porque descreve que o avanço logo parou.
principal esforço português foi realizado pela Descreve que, então, neste momento, che-
estrada das Boiadas, com a Legião Lusitana, gou forte reforço de Salvador, composto pela
e atribui o ataque pelas encostas da enseada força que viera recentemente de Lisboa e que
de Itapagipe a um contingente de apenas 300 isto fez com que o ataque fosse retomado,
soldados de linha reforçados por 100 mari- conseguindo ultrapassar a linha de defesa,
nheiros. Relata a existência de três peças co- sendo contidos à frente do largo do Cruzei-
locadas face a esse reduto de Itapagipe, que, ro pelos pernambucanos e pelos soldados do
rompendo fogo contra o inimigo, alertou as Rio de Janeiro. Que enquanto isso, na contra-
tropas do Exército Pacificador, fez com que -encosta, à esquerda, os lusos tentam, com
os milicianos de Cachoeira e de Vila de São um ardil, um desbordamento por Itacaranha,
Francisco, que estavam na orla da montanha, para cortar as ligações com o Quartel Gene-
acorressem para conter a investida. Conta ral, mas que foram impedidos pelos Henri-
que as avançadas em Bate-Folhas alertaram ques, que os desviam e protegem os acessos
a vanguarda do Exército contra a arremetida ao Arraial. Que, no centro, os lusos consegui-
da Legião. ram chegar junto da velha Igreja das Missões,
Descreve a participação dos flecheiros ta- mas foram rechaçados por um pesado ataque
puias dos Batalhões da Torre, que retarda- de arma branca e pesado fogo pelos pernam-
ram o avanço luso, mas, impotentes, cederam bucanos.
terreno até a planura da Campina, quando Reporta a ação heróica dos poucos cava-
foram acolhidos pelas companhias do 4º. de leiros de Pojuca e São Francisco, comandados
Milícias da Bahia e pelos remanescentes da por Pedro Ribeiro, dificultando os movimen-
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tos dos portugueses com pequenas cargas a corneteiro, o português Luiz Lopes, toque
ponta de sabre, abrindo claros nas suas filei- retirar. O cabo tocou cavalaria avançar e de-
ras e dando a impressão de um efetivo mon- golar. O toque causou indecisão, motivada,
tado de maiores proporções. talvez, pela ação dos cavalarianos de Poju-
Afirma, então, que passadas já mais de 4 ca. Esta indecisão, acompanhada de um li-
horas de duro combate, a vitória bafejava os geiro recuo, foi habilmente aproveitada pe-
nossos, pois os lusos já não mais progrediam e los chefes brasileiros que comandaram uma
começavam uma contra-ofensiva brasileira. É carga de baioneta, cujo choque os lusos não
quando aparece um novo reforço vindo da ca- aguardaram, temendo ser jogados pela cava-
pital. Neste ponto, novamente citando Titara, laria montanha abaixo. Debandaram, então,
revela que o efetivo português em tumulto, os da encosta
lançado contra nossas forças, morro abaixo e o grosso da
calculadas em 1.500 homens, “A Batalha de Pirajá é tropa pelas quebradas, a
chegava a cerca de 5.000 ve- fundamental na guerra caminho da cidade.
teranos de duas campanhas, de Independência Os outros autores re-
bem guiados, bem alimenta- na Bahia, porque ela petem a versão de Miguel
dos e bem armados, possuin- definiu a incapacidade Calmon, alguns de forma
do munição para três dias de portuguesa de romper mais confusa, à exceção de
fogo, com retaguarda cober- o cerco e que só com José Honório Rodrigues,
ta, uma praça para homizio, o novos reforços, muito que não descreve o com-
moral ainda intacto, visto que mais vultosos, é que bate.
chegados havia pouco da Eu-
tal ação poderia ter Labatut atribui 200
ropa, não conheciam a exten-
êxito. Aumentava o mortos e inúmeros feridos
problema da fome, em aos portugueses, alguns
são do conflito.
face do aumento de periódicos da época, como
Arremata dizendo que fra-
efetivos e só por mar a gazeta “O Espelho”, fala-
quejaram as linhas e apareceu
é que havia solução va em 131 mortos e 221
um primeiro sinal de confu-
para este problema. feridos e Madeira decla-
são, com os lusos avançando
A manutenção das rou que perdera apenas
em ordem por todos os lados,
tropas e da cidade 64 homens. Na verdade,
cobrindo os claros com reser-
iria depender, então, cinco horas de combate,
vas inesgotáveis, que atape-
da Esquadra. ” envolvendo, talvez, 5.000
tavam de lã azul e metal novo
homens, terá produzido
as fraldas das montanhas
um número substancial de
próximas. Conta ele que o sa-
mortos e feridos.
crifício estava iminente e que todo o peso do A Batalha de Pirajá é fundamental na guer-
assalto de seis batalhões ia cair sobre os 400 ra de Independência na Bahia, porque ela de-
homens que mantinham o centro. Que nada finiu a incapacidade portuguesa de romper
mais se podia esperar da força empenhada o cerco e que só com novos reforços, muito
na proteção da retaguarda, que se dividira e mais vultosos, é que tal ação poderia ter êxi-
começara a realizar ações de guerrilha, mas to. Aumentava o problema da fome, em face
que era praticável a retirada sobre Canguru, do aumento de efetivos e só por mar é que
para compor uma nova linha de defesa no En- havia solução para este problema. A manu-
genho Novo. tenção das tropas e da cidade iria depender,
Nesse instante, Barros Falcão, que coman- então, da Esquadra.
dava aquela frente, determina que seu cabo A guerra agora seria no mar!
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
74
Os combates de Pirajá e Itaparica

Do lado brasileiro começaram a ter curso


as desinteligências entre a Junta de Cachoeira
e Labatut, seja por causa do serviço militar,
seja por causa da descoberta de grande quan-
tia em ouro e prata, achada nos Engenhos da
Passagem e Cachoeirinha, seja pelo uso de
escravos na guerra, essenciais para a lavoura,
que se desorganizara e paralisou pela falta de
homens.Mas retomemos a caminhada. O dia
29 de dezembro foi um dia especial. Ele foi
escolhido pelos lusitanos para realizar o ju-
ramento à nova Constituição. Mas também os
nacionais o escolheram para realizar um ata-
que surpresa às linhas portuguesas.
Enquanto as baterias do Forte do Mar, São
Pedro e Barbalho davam salvas de 21 tiros,
duas Brigadas brasileiras atacava mas linhas
de trincheiras. Na Estrada das Boiadas, os Igreja da Lapinha - Acervo Fundação Pedro Calmon

exploradores de Labatut chegaram até a La- o Exército entrou em Salvador, em julho de


pinha, onde foram contidos pela Cavalaria 1823, os vestuários estavam em farrapos e
lusa. Pelo lado de Brotas, Felisberto Caldei- os pés dos soldados estavam nus. O novo es-
ra conduziu o ataque, não tendo sucesso em tado do Brasil precisava criar, novamente, os
atravessar as linhas inimigas. Se esse ataque serviços que foram montados quando o reino
demonstrou a audácia e a perseverança dos se instalou na América e que foi quase todo
nacionais, demonstrou a capacidade, a expe- desmontado, quando do regresso das Cortes.
riência e o preparo do soldado português, e a Esse Exército Pacificador foi formado por ele-
solidez de seu sistema de trincheiras. mentos heterogêneos e despreparados, e em
Como em toda guerra, as endemias matam circunstâncias dificílimas. Prevaleceu a nossa
mais do que as balas. O Exército Pacificador capacidade de improvisação, o jeitinho, como
pagava um pesado tributo às moléstias, espe- sempre, aconteceu.
cialmente ao impaludismo, pois nos diversos A cidade, defendida por tropas regulares e
pontos onde estava acampado, ele era endê- de veteranos, oferecia uma resistência que o
mico. Dos seus 9.000 homens, cerca de mil Exército Pacificador não poderia romper. Mas
estavam doentes. a fome já se apresentava com sombrios aspec-
Por outro lado, desertava muita gente, ate- tos. Os lusos perceberam o quanto erraram
morizada pelo pesado serviço de cerco, pela em abandonar a Ilha de Itaparica. Imagina-
dureza da disciplina e pelo trabalho áspero ram que com as forças navais que possuíam,
de uma campanha em que havia falta de tudo. poderiam retomá-la quando o desejassem.
As tropas eram mal alimentadas, não existiam A necessidade de conseguir gêneros alimen-
hospitais e o medicamento e o equipamen- tícios os inspiraram a atacar Itaparica, e de
to eram escassos. Essa campanha se fez sem sua posse, investir contra o Recôncavo e suas
abrigos, sem abarrancamentos, sem qualquer ricas lavouras.
conforto ou cuidados. No decorrer da campa- No dia 14 de outubro do ano anterior, já
nha, os sofrimentos inerentes à todas as guer- tinham feito uma tentativa fracassada. Apoia-
ras desfizeram todos os uniformes, e quando dos por um brigue e quatorze canhoneiras,
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
5
775

tentaram um desembarque no Manguinho, as baterias de terra responderam ao fogo.

Sérgio Roberto Dentino Morgado


mas foram repelidos. Ao meio-dia a artilharia de terra diminuiu o
O povo de Itaparica, a partir de fogo. O chefe-de-divisão, João Félix, que co-
então,começou a reforçar as defesas da ilha. mandava o ataque, retirou-se para Salvador.
Cavaram trincheiras na costa leste, trouxe- Os portugueses iniciaram as operações de de-
ram artilharia do Morro de São Paulo e colo- sembarque. Quando entraram na distância de
caram 16 peças na Fortaleza de São Louren- tiro dos defensores da ilha, que estavam es-
ço, na Ponta Noroeste. Sua guarnição atingiu condidos nas matas próximas da praia, foram
3.257 homens, dos quais 2.357 eram ilhéus. dizimados por uma intensa fuzilaria. Ao cair
Comandava-os Antônio de Souza Lima, um da noite, não tendo tido sucesso em nenhuma
português. de suas tentativas, se retiraram amargando
Itaparica também tinha sua Marinha. João sérias perdas. A partir desse dia, renuncia-
Francisco de Oliveiras, o João das Botas, outro ram ao domínio do interior da baía.
português, artilhara seis navios, com peças Labatut ofereceu a primeira Bandeira Bra-
de Engenhos, e os equipara com 710 tripulan- sileira que foi hasteada na Ilha de Itaparica e
tes, escolhidos entre a marujada e os naturais Antônio de Souza Lima foi nomeado seu pri-
da ilha. Com eles fez guerrilha nas águas da meiro governador. No continente continuava
baía e dificultou, e às vezes impediu, o trânsi- o impasse.
to das embarcações lusitanas que buscavam A junta de Cachoeira pressionava para que
as vilas do Recôncavo, realizando façanhas um ataque geral fosse desfechado contra Sal-
memoráveis e dignas de se-
rem reproduzidas nas telas
“A junta de Cachoeira pressionava para que um ataque
ou transformadas em histó-
geral fosse desfechado contra Salvador. Corria a
rias de ficção nas páginas dos
notícia de que os lusos seriam reforçados por 5.000
nossos livros.
homens. Labatut convoca, então, no dia 9 de fevereiro,
Um novo ataque foi então
um Conselho de Guerra que decide pelo ataque. Mas
planejado. O interessante é este não se realiza. Não havia munição suficiente e a
observar a sua semelhança falta de material tornava grande o risco do insucesso.
com o ataque realizado pe- O número de doentes aumentava e o serviço ”
los patriotas brasileiros, 176
anos antes, contra os holan-
deses que aí estavam estabelecidos, também vador. Corria a notícia de que os lusos seriam
querendo a posse de Salvador. A Fortaleza de reforçados por 5.000 homens. Labatut convo-
São Lourenço, construída por eles, era o pivô ca, então, no dia 9 de fevereiro, um Conselho
da sua defesa. Tal como agora. de Guerra que decide pelo ataque. Mas este
Foi colocada artilharia em Boa Vista, nas não se realiza. Não havia munição suficiente
Amoreiras, em Mocambo, no Porto de Santos, e a falta de material tornava grande o risco do
Manguinho e na Fonte da Bica. insucesso. O número de doentes aumentava e
O plano de ataque português se asseme- o serviço de saúde em campanha era precá-
lhava a uma tenaz, convergindo para as duas rio. Além disso, do outro lado, os portugueses
costas e com o vértice dirigido para a Forta- estavam bem fortificados. Aproveitando as
leza. características do terreno, tinham melhorado
Às 7 horas da manhã, do dia 7 de janei- seu sistema de trincheiras, com fogo cruzado
ro, houve um reconhecimento. Às 9 horas e bem artilhadas. Seus engenheiros haviam
iniciou-se o ataque. Toda a flotilha atirou e disfarçado emboscadas nos matos e prepa-
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
76
Os combates de Pirajá e Itaparica

rado abrigos onde a infantaria podia atirar, a cidade pelo Cabula, com o Batalhão de Caça-
salvo do fogo inimigo. Por essas razões deci- dores a Pé da Bahia e com os milicianos da
diram adiar o ataque. Paraíba, pela estrada das Boiadas. Na Concei-
Desembarcando em Jaraguá, chega ao ce- ção, o Batalhão do Imperador atacou e tomou
nário da luta o Batalhão do Imperador. Eram algumas trincheiras. Teria sido neste dia e
800 homens, escolhidos pessoalmente por neste local que se dera o batismo de fogo do
D. Pedro, em uma formatura no Campo de Patrono do Exército, o Duque de Caxias, ainda
Santana. Seu comandante, o coronel José Joa- então um valoroso, mas inexperiente tenente.
quim de Lima e Silva, e seu porta-bandeira, o Com os batalhões da Torre, o Cel. Felisberto
tenente Luiz Alves de Lima e Silva. Labatut re- Caldeira atacou Brotas.
organiza o seu dispositivo e cria a Brigada do No dia seguinte, Cochrane atacou a Es-
Centro, com base no Batalhão do Imperador, quadra lusitana dentro da baía. Embora infe-
e entrega o comando a Lima e Silva. Transfere riorizado, lançou-se sobre a linha de navios
também seu Quartel-Gene- inimigos e só não teve su-
ral para Cangurungu, mais cesso porque as demais em-
próximo do acampamento “Na enseada do Morro barcações não correspon-
de Pirajá. de São Paulo, ele deram, havendo indícios
Os portugueses, por sua abandona cinco dos de traição dos marinheiros
vez, também são reforça- seus navios e equipa portugueses incorporados
dos. No dia 1º de abril, che- as duas fragatas à sua equipagem. Cochrane
gam mais dois batalhões de mais velozes com foi obrigado a abandonar o
infantaria e três de caçado- gente escolhida e de combate e o fez sem ser mo-
res. Ao todo 2.500 homens, confiança e, apenas lestado pelo inimigo, que
que teriam que ser alimen- com elas, auxiliado deixou escapar mais uma
tados. O partido luso tam- pelas embarcações boa ocasião de afirmar sua
bém tem seu plano. Conven- de João das Botas, supremacia no mar.
cendo os comerciantes de bloqueia o porto O almirante inglês toma
Salvador a empregar mais de Salvador. Estava então uma decisão audacio-
recursos, pretendem ir bus- completado o cerco. ” sa, que só os grandes chefes
car a Divisão de Voluntários são capazes. Na enseada
Reais, que estava cercada do Morro de São Paulo, ele
em Montevidéu, aproveitando os transportes abandona cinco dos seus navios e equipa as
que trouxeram a tropa de reforço. Mas pre- duas fragatas mais velozes com gente esco-
cisavam bloquear o porto do Rio de Janei- lhida e de confiança e, apenas com elas, au-
ro, além de comboiar os transportes. Afinal, xiliado pelas embarcações de João das Botas,
contavam com uma boa esquadra em Salva- bloqueia o porto de Salvador. Estava comple-
dor. Mas João Félix não se mexeu, perdendo a tado o cerco.
oportunidade. No dia 9 de maio, o general Madeira de-
No final de abril chega na boca da Baía de clara Salvador em Estado de Sítio e expulsa
Todos os Santos a Esquadra Brasileira, de 7 cerca de 10.000 civis da cidade. Ele só tinha
navios, comandada por Lord Cochrane, al- víveres para no máximo 50 dias.
mirante inglês de renome internacional que Mas do lado brasileiro, a situação também
havia sido contratado para organizá-la e con- era preocupante. Descobrindo uma conspira-
duzi-la em combate. ção para depô-lo, Labatut prende o coronel
Em 3 de maio Labatut investe contra a Felisberto Caldeira. Em consequência, é pre-
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
77

Sérgio Roberto Dentino Morgado


so e deposto do Comando do Exército Paci- Todos estavam convencidos da extrema
ficador, sendo substituído pelo coronel José dificuldade de tomar a cidade pela força. Si-
Joaquim de Lima e Silva. Era o dia 20 de maio tuada em magnífica posição estratégica, que
de 1823 e estes episódios não ilustram as pá- a natureza facilitava sua defesa pelas águas e
ginas de nossa história. também pelas trincheiras, que, guarnecidas
Em Salvador, Madeira quis destituir João por tropas experientes e habituadas à guerra,
Félix por incapacidade de comando, sendo tornavam o acesso terrestre muito caro; esta-
impedido pela marinhagem da Nau D. João va provado, depois de várias tentativas, que o
VI, a capitânia. Exército Pacificador, com os meios que dispu-

Igreja Matriz Itaparica - Acervo Fundação Pedro Calmon

2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL


78
Os combates de Pirajá e Itaparica

nha, não a podia conquistar. No dia 2 de julho de 1823, às 04:00 horas


Só restava, então, levá-la a capitular pela da manhã, o Fortim da Lagartixa deu um tiro
fome. O objetivo, pois, foi esfaimá-la. E o Exér-
de espingarda e as tropas portuguesas, já
cito seguiu essa diretriz, como dela não se prontas em ordem de marcha, embarcaram
descuidou Lord Cochrane. nas lanchas e nos navios e deixaram a cidade.
No dia 20 de junho, Madeira reuniu um Foi também o sinal para que o Exército Pacifi-
Conselho de Guerra, no qual foi decidido o cador iniciasse a sua marcha.
abandono da cidade. Foi mandado um emis- Ele entrou na cidade em colunas, desem-
sário ao coronel Lima e Silva, informando a bocando pela estrada das Boiadas, na seguin-
retirada e propondo que ela não fosse inquie- te ordem: na vanguarda vinha um corpo de
tada. exploradores, sob as ordens do coronel An-
A resposta de Lima e Silva continha o se- tero de Souza Brito, que ocupou as trinchei-
guinte: “Responde o Comandante do Exército ras abandonadas pela guarnição portuguesa;
Pacificador que tem todas as notícias da cida- entraram, então, o coronel Lima e Silva, co-
de marcadas até por horas, de todos os pas- mandante-em-chefe, com o seu Estado-Maior,
sos da tropa inimiga e que, logo que saiba que seguido pelo coronel Barros Falcão, pelo Ba-
esta principia a embarcar, pretende atacá-la, talhão do Imperador e pelo Batalhão de Per-
e, neste momento romperá o fogo no mar; nambuco. Depois vinham as tropas baianas,
demonstrando, pelo estado
“A Bahia e a cidade do Salvador guardam, até hoje, de nudez e pela completa fal-
marcos históricos dessa guerra. O Forte de São ta de equipamento, além do
Pedro, o Parque de São Bartolomeu, a estrada deplorável estado físico, os
das Boiadas, o alto de Pirajá, o Canal do Funil, horríveis sofrimentos causa-
os Fortes de Itaparica, a Torre de Garcia D’Ávila, dos pela guerra. Completava
a cidade histórica de Cachoeira e tantos outros o dispositivo um contingente
pontos que esperam ser recuperados para servirem do Batalhão dos Henriques,
de referência ao orgulho de ser brasileiro. ” cujo grosso do efetivo havia
ficado de guarda ao acampa-
mento.
que se o General inimigo deseja retirar-se A divisão da esquerda entrou por Brotas,
tranquilamente, proponha uma capitulação, com o Ia batalhão ocupando igualmente as
que será concertada entre os comandantes trincheiras vazias e com o batalhão nº 4 en-
de mar e terra, de uma e outra parte contra- trando na cauda da coluna.
tantes”. O pavilhão nacional foi içado, pela primei-
A operação de evacuação da cidade foi ra vez em Salvador, pelo alferes José Adrião,
muito bem realizada, a retirada não foi pres- na Fortaleza do Barbalho.
sentida e não ficou um único soldado em Sal- As tropas fizeram alto em frente ao templo
vador. construído, no início da construção da cida-
Madeira foi vencido pela fome, mas ao de, pelos portugueses, no Terreiro de Jesus.
Exército Pacificador, no final do cerco, tam- A partir daí dispersaram e se dirigiram aos
bém tudo faltou. As vilas do Recôncavo esta- quartéis. Estava consumada a Independência
vam igualmente esgotadas na sua capacidade do Brasil na Bahia.
de apoiá-lo. Os retirantes da cidade, em gran- A guerra envolvera efetivos consideráveis.
de parte, morreram de fome ou de doença, Segundo Varnhagen, as tropas brasileiras
perambulando pela terra de ninguém. chegaram a 13.500 homens e os portugueses
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
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Sérgio Roberto Dentino Morgado


Fote São Marcelo - http://ftp.setur.ba.gov.br

atingiram um efetivo de 10.500 soldados. A memória é reverenciada e relembrada pelos


campanha durara 1 ano, 5 meses e 13 dias, seus habitantes, as sociedades que formam
portanto mais do que a campanha da For- são matizadas, respeitadas e admiradas.
ça Expedicionária Brasileira na Itália. Sobre Quando aceitamos esse honroso convite
mortos, feridos e desaparecidos, os números de falar para os baianos sobre sua história,
são desencontrados, mas se contarmos os moveu-nos o desejo de cooperar para que
civis que foram envolvidos e considerarmos esta memória fosse preservada e sua divul-
os sofrimentos e as perdas de toda a sorte, gação despertasse orgulho.
incluindo as destruições e o desmonte de fa- Representamos aqui a Fundação Cultu-
zendas, engenhos e lavouras, o capital huma- ral Exército Brasileiro, que está presente na
no, social e financeiro empenhado e perdido cidade através de uma representação, cujo
foi muito elevado. objetivo é participar, com os baianos, do no-
A Bahia e a cidade do Salvador guardam, tável esforço que realizam na divulgação de
até hoje, marcos históricos dessa guerra. O sua história e de sua cultura.
Forte de São Pedro, o Parque de São Bartolo- Este ciclo de palestras, por si só, demons-
meu, a estrada das Boiadas, o alto de Pirajá, o tra o vigor da caminhada que baliza a busca
Canal do Funil, os Fortes de Itaparica, a Torre desses objetivos.
de Garcia D’Ávila, a cidade histórica de Cacho- Permitam que continue a participar con-
eira e tantos outros pontos que esperam ser vosco de tão ingente tarefa.Muito obrigado
recuperados para servirem de referência ao pela vossa atenção
orgulho de ser brasileiro. Nos países onde a

Sérgio Roberto Dentino Morgado - Revista da Bahia, V.32, nº 36. EGBA, 2002

2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL


Patriotismo e conflito de
classe na Independência
da Bahia (1822-23)

Monumento ao 2 de Julho - detalhe


82
Patriotismo e conflito de class na independência da Bahia

Patriotismo e conflito de
classe na Independência
da Bahia (1822-23)
Sérgio Armando Diniz Guerra Filho

Os estudos sobre a independência do Bra- disso, as definições de nacionalidade não po-


sil avançaram, na última década, em direção diam deixar de implicar em posições políticas,
à compreensão dos processos históricos que num momento de ebulição como este. Por isso,
levaram à formação da identidade nacional deve-se relativizar o que significava ser “por-
brasileira. A elite baiana construiu, em torno tuguês” ou “brasileiro”, no justo momento em
do nascente Estado, um discurso com conota- que se inauguram ou se reconfiguram muitos
ção patriótica que, apesar de estar em sintonia dos termos políticos relacionados às identida-
com os acontecimentos e atos emanados do des nacionais.
Rio de Janeiro, respondia e se adequava às es- As identidades coletivas, relacionadas com
pecificidades e acontecimentos locais. as idéias de pátria, país e nação, possuíam
O termo “patriótico” aparecerá neste texto caráter provisório, fluido e contraditório no
a partir do sentido em que se encontra nos do- cenário do começo da década de 1820. Eram
cumentos que aqui foram utilizados, em geral experiências políticas que exigiam novas for-
querendo indicar um referencial próindepen- mulações e imediatas aplicações práticas. De
dência, em oposição àqueles que se alinhavam bahiense, americano e português a brasileiro,
com interesses metropolitanos, como primei- tudo isso frente às tensões regionais, raciais
ro e provisório esboço identitário de afirma- e de classe, num processo que se foi consti-
ção/construção de uma nacionalidade “brasi- tuindo e teve seu devir acelerado diante das
leira” e negação de outra, “portuguesa”. Este transformações políticas ocorridas, no Brasil e
discurso patriótico se caracterizava pela ambi- em Portugal, no começo do século XIX. Portu-
guidade e sofria de um equilíbrio bastante de- gueses todos passariam, gradativamente, e no
licado, pois, por um lado, era necessário para decorrer da guerra, a serem europeus e portu-
a aglutinação das forças que atuariam contra gueses, uns; brasileiros, outros.
as tropas portuguesas; mas por outro não de- Naturalidade e nacionalidade não se con-
veria chegar ao extremo de ameaçar a ordem fundiram durante a Guerra. O fato de se ter nas-
social vigente, nem os negócios da Província. cido em Portugal ou no Brasil não necessaria-
Isso exigiu do Conselho Interino de Governo mente significava pertencimento automático a
– instância política maior da guerra contra os um dos lados do conflito. Os interesses – pa-
portugueses e nicho dos grandes proprietários trimoniais e de rendas para os proprietários, e
– manobras políticas tortuosas. Os nascidos de acesso à liberdade, à política, e ao trabalho
em Portugal estavam geralmente integrados para as camadas não proprietárias – falaram
com seus negócios à dinâmica sócioeconomi- alto no momento das definições (e auto-defi-
ca baiana. Ocupavam posições e papéis sociais nições) do que seria “nação” e das identidades
lado-a-lado com os proprietários nascidos na nacionais. Alguns dos personagens centrais da
Colônia, os chamados “brancos da terra”. Além Guerra, apesar de pertencerem ao que se con-
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
3
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Sérgio Armando Diniz Guerra Filho

Praça dos Aflitos - Monumento ao 2 de Julho - Wikipedia

siderava ser o lado “brasileiro”, eram naturais pela expulsão das tropas do General Madeira
d’Além Mar, caso do Comandante João das Bo- de Melo ou se declararam favoráveis à “Causa”.
tas, que liderou as embarcações improvisadas Assim, mesmo os nascidos em Portugal pu-
que deram combate aos navios lusitanos na deram se integrar ao lado brasileiro. Por outro
Baía de Todos os Santos, assim como o polê- lado, os que na Bahia haviam nascido podiam
mico Corneta Lopes , só para citar alguns dos ser, durante a guerra, acusados de pertencer
que ficaram famosos dentre os que lutaram ao “partido europeu”. O baiano Luis Paulino
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
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d’Oliveira Pinto da França, da vila de Cachoei- Dois aspectos do patriotismo de elite me-
Patriotismo e conflito de class na independência da Bahia

ra e deputado pela Bahia às Cortes de Lisboa, recem aqui destaque: a “brasilização” dos
foi proibido, mesmo acabada a Guerra, de vol- nomes; e a elaboração das Listas Patrióticas,
tar ao solo baiano. Pagava o preço por suas po- imediatamente após a Guerra e enviadas de
sições políticas, consideradas demasiadamen- muitas vilas da Província para a sede do Go-
te moderadas pelos seus conterrâneos. Já sua verno, já novamente instalado em Salvador.
esposa, nascida em Portugal, além da tragédia
pessoal de ter sua família separada pela Guer- No calor das disputas político-militares que
ra, parece não ter sido importunada quanto a contrapuseram “brasileiros” e “portugueses”,
sua identidade nacional. um número significativo de pessoas abrasi-
Essas idas e vindas aumentavam a necessi- leirou seus nomes, retirando ou substituindo
dade e a urgência da consolidação do discurso os originais por outros, de temática nativista,
patriótico contra os portugueses por parte das renegando sobrenomes de família que pudes-
autoridades pró-independência. Era necessá- sem ligá-los a uma origem lusitana. Não foi
rio separar os lados em guerra. Quem estives- um fenômeno meramente local, mas aqui na
se contra a ruptura seria considerado inimigo Bahia, “no movimento contra o domínio por-
e estes eram, em sua grande maioria, portu- tuguês (...) o nome tomou para muitos acentu-
gueses de nascimento: mi- ada conotação patriótica”.
litares de altas patentes, Há registros de casos de
ocupante dos altos cargos “Mirandela, pequena vila portugueses de nascimen-
coloniais e o grosso do ca- do nordeste da Bahia, to que assim o fizeram,
pital comercial na Bahia enviou uma Lista com como sinal de adesão à
estava assentado nos por- os nomes dos quase 50 Causa Brasílica, e mesmo
tugueses d’além mar, e os soldados voluntários brasileiros também pro-
interesses políticos e eco- daquela localidade que cederam dessa maneira,
nômicos destes estariam foram para a guerra. como que para reafirmar
mais garantidos com o res- Consta nela, inclusive, sua opção política pela
tabelecimento do status os que morreram independência. Alguns
colonial. durante os conflitos. ” publicaram a mudança de
O projeto de ruptura seus nomes na imprensa
não era tão radical assim. da época, para que seus
Concluída a Guerra de Independência, o capi- negócios não fossem atrapalhados.
tal e o know-how portugueses no comércio de Frei Bastos, que era natural de Salvador,
exportação seriam necessários à elite baiana. fez questão de acrescentar ao seu nome mo-
É por isso que, muitas vezes, o discurso anti- nástico o sobrenome Baraúna, no calor dos
lusitano proferido pelo Conselho Interino de acontecimentos de 1823. O exemplo mais co-
Governo precisou ser por ele próprio freado. nhecido de mudança de nome é, sem dúvidas,
Temia-se a insubordinação, a “desordem” e a o de Francisco Gê Acayaba Montezuma, como
“anarquia”, no dizer dos documentos da épo- passou a chamar-se Francisco Gomes Bran-
ca. Podemos, para efeito de análise, distinguir dão. Não era um patriota qualquer: fora es-
dois tipos de patriotismo que, apesar de an- colhido para o Conselho Interino pela vila da
tagônicos, permeavam-se, dialogavam e con- Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cacho-
trapunham-se constantemente na fluidez que eira – principal vila da província e capital inte-
o momento propiciava: um, das elites; outro, rina durante a guerra – e lá exerceu o cargo de
popular. Secretário. Desta forma, Freitas, Araújos, de
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
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858

Sérgio Armando Diniz Guerra Filho


Melos e Bragas tornaram-se Dendês, de Itapa- Mirandela, pequena vila do nordeste da
jipes, Borboremas e Brasileiros. Bahia, enviou uma Lista com os nomes dos
A mudança de nome pode ter sido apenas quase 50 soldados voluntários daquela loca-
uma operação de retórica, ou mesmo uma ma- lidade que foram para a guerra. Consta nela,
nobra para se livrar da desconfiança patrióti- inclusive, os que morreram durante os confli-
ca popular. É provável que mudar de sobreno- tos. Mas a lista de Mirandela, onde não se acha
me não tenha sido uma atitude exclusiva dos registrada nenhuma doação material, é uma
mais ricos dentre os habitantes da Bahia. No exceção. As vilas de Jacobina, na Chapada Dia-
entanto, não se pode negar que seus nomes mantina, e a de Conde, no litoral norte, tam-
– somados a sua condição de proprietários – bém não registraram doações materiais, mas
remetiam a uma origem portuguesa com mais os 8 nomes constantes na primeira lista e os 5
frequência, e foram substituídos como uma da seguinte eram todos de autoridades locais.
estratégia política de inserção na nova ordem. Todas as outras listas mais parecem um desfi-
Alguns destes novos nomes aparecem no le de feitos heróicos e de substanciais doações
segundo aspecto desta externalização nacio- dos proprietários locais, referidas como atos
nalista aqui analisado: as Listas Patrióticas. de patriotismo.
Finda a Guerra, o Governo da Província da “Serviços prestados à Causa”, feitos “he-
Bahia solicitou às Câmaras de todas as Vilas, róicos”, ou mesmo ações que demonstravam
por indicação de portaria imperial, que en- bravura e patriotismo, também eram utiliza-
viassem listas onde constassem os que mais dos para rechear as listas. Vitoriano Gomes da
se destacaram na luta pela “Causa da Inde- Costa foi referido na Lista Patriótica da vila de
pendência”. Dentre as listas elaboradas, anali- Barcellos porque, “Por amar a causa e defen-
saremos as que foram enviadas pelas vilas de der a aclamação de sua majestade imperial,
Inhambupe (contendo 32 nomes), Camamu foi atacado em seu cartório pelos Europeus
(40 nomes), Barcellos (22 nomes), Conde (5 Antonio José da Cruz, José da Silva Penixe e
nomes), Alcobaça (5 nomes), Mirandela (49 José Cardozo Pereira”. Em Inhambupe, o Ca-
nomes), São Francisco do Conde (42 nomes), pitão Francisco Xavier de Souza foi referido na
Jacobina (8 nomes), Maragogipe (18 nomes) e Lista daquela vila pois “Pagou os vencimentos
Viçosa. do capitão Pedro Gomes Leão Ferreira, seu fi-
Tais listas não seguem um padrão único, lho, para não exigirem da nação.” Na Lista de
mas geralmente consistem em nomes enume- Maragogipe, o Capitão-mor Manoel da Silva
rados, após um breve cabeçalho indicando o Carahy aparece como benfeitor da Causa em
objetivo da mesma. Em algumas delas, cons- várias oportunidades, sendo por isso “amado
tam os feitos e as doações de cada um dos pelo povo como patriota benemérito”.
arrolados em prol da Causa. Foram formula- Em São Francisco da Barra do Sergipe do
das em sua maioria pelas Câmaras das vilas, Conde, foram contabilizadas doações em di-
quando não, por autoridades como juízes de nheiro de dois contos, quatrocentos e sessenta
paz e capitães mores. Nestas listas, portanto, e cinco mil réis; e o empréstimo aos cofres pú-
encontramos a versão das autoridades sobre blicos de outros dois contos, cento e setenta e
o que significava ser patriota: um patriotismo quatro mil réis. Uma das mais prósperas vilas
informado por seus valores, visão de mundo do Recôncavo, dali saíram duas listas patrióti-
e, certamente, seu projeto de Estado e de Na- cas, a segunda aumentada em relação à ante-
ção. Por isso, não constitui nenhuma surpresa rior com os nomes das próprias autoridades
a ausência de nomes de mulheres, assim como que escreveram a primeira lista e de outros 17
de referências diretas a pessoas do povo. oficiais, entre alferes, tenentes, capitães e aju-
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dantes de infantaria. Três dos enumerados na que doou também farinha e serviços pesso-
Patriotismo e conflito de class na independência da Bahia

lista em São Francisco do Conde pertenciam à ais, o Juiz Ordinário e membro da Caixa Mili-
abastada família Sá Barreto. Além de dinhei- tar, João José Tárcio, foi alvo de manifestações
ro, houve, em muitas vilas, doações de gado, populares – “pessoas insignificantes”, no di-
armas, munição, fardamento e até aguardente. zer dos que registraram o fato – que preten-
A lista da vila de Camamu se destaca por diam sua destituição da vara em que atuava,
contar com dados mais completos sobre gran- alegando para tanto o fato de Tárcio ser euro-
de parte dos cerca de quarenta “patriotas” da peu. Não deve ser uma mera coincidência. O
localidade. Constam ali, nome completo, do- europeu provavelmente se sentiu forçado a fa-
ação, profissão e até qualidades pessoais de zer doação de tamanho vulto para provar seu
caráter daqueles mencionados na lista. Entre patriotismo frente à população em geral. Sua
os arrolados, há cinco capitães (inclusive o doação correspondeu a quase metade do valor
capitão mor), três juízes, três vereadores e o registrado na Lista. Homem da Lei, provavel-
procurador da Câmara. Dos vinte relaciona- mente imaginara ter com isso um argumento
dos, cuja ocupação não está registrada, dois de sua, digamos, conversão à Causa para esca-
emprestaram escravos e dezesseis fizeram do- par à sanha patriótica da justiça popular.
ação em dinheiro, variando entre 10 e 600 mil Seus pares foram em sua defesa. Não acha-
réis (no total foram 21 doações em dinheiro); vam que fosse “merecedor de semelhante in-
quatro deles não tiveram sua ocupação regis- sulto, pois tem servido nesta [terra] a todos os
trada, mas doaram farinha (do total de nove) cargos públicos com toda a honra e zelo (...) e
e dois, gado. Eram, portanto, proprietários tem dado todas as provas de [ser] um fiel Vas-
de razoável cabedal. Apenas cinco dos lista- salo de Sua Majestade Imperial e amante da
dos cederam unicamente “serviços pessoais”: Santa Causa”. Proprietários e brancos como o
eram dois vereadores, um tenente, um juiz Juiz Tárcio, as autoridades temiam que a re-
ordinário e os outros dois eram membros da volta contra portugueses logo se generalizasse
Caixa Militar. Em tais funções, deviam ter certa contra eles próprios: “porque Semelhante ab-
posição social, como os patriotas de Jacobina surdo não deixa de Ser despotismo ou ousadia
e do Conde. feita aos Magistrados, e ficando isto sem exem-
Na Lista Patriótica de Camamu, como em plo passarão a fazer o mesmo insulto, a nós, ou
quase todas as outras, as maiores doações a outra qualquer Autoridade”.
ou feitos em favor da Causa foram elencados Neste trecho por mim grifado, evidencia-
primeiro, as menores, mais para o fim, sinali- -se a percepção, por parte das autoridades, de
zando que os organizadores da Lista deviam que a fúria antilusitana podia se aproximar pe-
acreditar que o grau de patriotismo podia ser rigosamente de um conflito de classe. Os bra-
medido pela capacidade de desprender-se de sileiros brancos e proprietários podiam ser
parte do seu patrimônio. As doações, que fo- identificados pela plebe com os portugueses,
ram em dinheiro, serviço dos seus escravos, também brancos e proprietários, apesar de
mantimentos – a região onde se encontra a vila todo o esforço daqueles para estabelecer a di-
era grande produtora de farinha, como pode ferença. Se o nascimento não bastava, a riqueza
ser visto pelo número de pessoas que doaram e a cor os aproximavam aos olhos das classes
o gênero – ou serviços pessoais, consistiam em populares. Era necessário, para as autoridades
diferencial entre ser ou não patriota. E mais: brasileiras, demarcar campos, estabelecendo
o tamanho da doação poderia indicar qual o um limite entre o que acreditavam ser patrio-
grau deste patriotismo. tismo, quando o povo agisse em sintonia com
O maior doador de uma soma em dinheiro, os seus interesses, e o que classificariam como
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Sérgio Armando Diniz Guerra Filho

Pavilhão Dois de Julho, onde se encontra a imagem do Caboclo, símbolo da independência da Bahia - Wikipedia
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anarquia ou desordem, quando, ultrapassan- mínimo, 10$000, ou dispor seu tempo em prol
Patriotismo e conflito de class na independência da Bahia

do os limites previstos, a arquitetura de poder da “Causa”. A população pobre, não importan-


envolvendo a elite e a plebe fosse colocada em do os serviços que havia prestado em favor da
xeque. independência, foi, portanto, afastada da pos-
Protagonismo deveria ser virtude exclusi- sibilidade de ser considerada como patriota e
va do patriotismo dos proprietários. Entre os registrada nas Listas. Em Camamu, ser patrio-
pobres livres, agir por conta própria os leva- ta também tinha preço...
va, aos olhos das autoridades, para o nebuloso Já na lista de Viçosa, ao invés de citar no-
campo da desobediência. A não ser que tais mes, a “comissão” preferiu definir quem eram
ações pudessem ser creditadas na conta cor- os patriotas:
rente patriótica de algum proprietário. Isso “informamos que durante o choque dos ini-
valia não apenas para as ações político-milita- migos e opressores da Independência Brasi-
res, mas também para outras, digamos, mais leira todos os chefes dos Governos Militares,
inocentes, como as próprias doações. Civis e Eclesiásticos desta dita Vila não só em-
O vereador Antonio Feliciano Barbosa, elen- penharam particulares providências em de-
cado como patriota na fesa da Justa Causa, como
lista de Camamu por ser também sacrificaram seus
doador de farinha e ser- peitos armados em repeti-
“A guerra e os conflitos
viços de seus escravos, das ocasiões de desconfian-
envolvendo portugueses e
ficou responsável por ar-
brasileiros ocorreram num ça de invasão dos cruéis in-
recadar entre populares
momento de rearranjo nas surgentes, acompanhados
a quantia 800 réis para relações políticas locais. ” do Povo quase geral, que
o conserto de embarca- formaliza esta mencionada
ções durante a guerra. Vila dando todos visíveis
Sua ação foi relacionada demonstrações de verda-
como um feito “patriótico”. Interessante no- deira coragem, e Patriotismo.”
tar que aqueles que doaram tais quantias não
aparecem na lista de patriotas, posto que a Os “Patriotas” eram uma coisa – chefes dos
menor doação em dinheiro que mereceu regis- Governos Militares, Civis e Eclesiásticos –, o
tro foi de 9$000 – e, registre-se, este patriota “Povo quase geral”, outra. Esta dicotomia foi
não doou apenas dinheiro. As ditas doações identificada pelos representantes do Conselho
foram realizadas por pessoas do povo – prova- Interino de Governo, que buscaram incutir no
velmente pescadores, pequenos proprietários povo o seu patriotismo. Foi assim que o dito
ou trabalhadores livres pobres. Posicionar-se Conselho sugeriu, em 17 de setembro de 1822,
a favor da independência, e mais, dispor de ainda no começo da guerra, ao Capitão mor da
quantias em favor da Causa, não lhes bastou Vila de Maragogipe que fizesse:
para serem relacionados e considerados como “uma subscrição de serventes, escravos, ou
patriotas. livres, e Oficiais mecânicos, os quais se com-
Aliás, o trecho final da Lista Patriótica de prometam a servir gratuitamente nos diversos
Camamu é bastante ilustrativo: “Todos os mais misteres da Caixa Militar (...) por esta forma se
indivíduos desta Vila e Seu Termo se presta- vem a diminuir os gastos públicos, e ao mesmo
ram na defesa da mencionada Causa estando tempo aguçar o patriotismo em todas as clas-
prontos a qualquer Rebate”. No entanto, só ses, fazendo-os concorrer para a causa da Re-
aparecem nominalmente na lista, proprietá- generação da Pátria, que é geral não se fazen-
rios, fazendeiros, pessoas capazes de doar, no do preciso bulir nos dinheiros públicos que só
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Sérgio Armando Diniz Guerra Filho


devem servir nos últimos lances de cainhesa, autoridades e os grandes proprietários locais
e penúria.” a recuar ou a rever suas ações, fazendo com
que a legitimação do poder paternalista fosse,
Os voluntários de “todas as classes” deve- muitas vezes, vendida caro.
riam prestar serviços gratuitamente à Causa, São muitas as narrativas de episódios que
imbuídos da identidade nacional que ora se expressam o cuidado (e até o temor) das elites
formava e lhes era sugerida. No discurso que o com as desordens ocorridas durante a guerra,
Conselho Interino formulou, havia a explícita causadas pelas camadas populares. Estavam
identificação deste sentimento de patriotismo sempre prontas a desconfiar e a repelir tais
com os interesses das elites: a manutenção da ações de rebeldia e desobediência. Precisa-
guerra sem abalar a ordem social. Daí a apro- vam manter-se no controle e, para isso, deve-
ximação que fizeram, e encontra-se explici- riam tornar hegemônico o seu discurso que
tada no trecho acima, entre patriotismo, vo- definiria o que era ser patriota. Mesmo ações
luntarismo e ordem. Toda ação de obediência de autoridades que pudessem destoar a ponto
era, para o Conselho, uma atitude patriótica. O de comprometer o arranjo político das redes
que não quer dizer que soldados e populares, de patronagem-clientela foram atacadas.
oriundos das classes subalternas, ausentes Foi assim que, em determinado momento,
da roda política a que pertenciam o Conselho ocorreu o atrito envolvendo o Conselho Inte-
Interino, não interpretassem e praticassem, à rino e o General Pedro Labatut, comandante
sua maneira, o sentimento nacional-patriótico do Exército Libertador. Às vésperas do final da
durante a guerra, à revelia do tal Conselho. guerra, o General foi destituído do cargo e viu
A guerra e os conflitos envolvendo portu- a vitória brasileira da prisão. Fora ele, no en-
gueses e brasileiros ocorreram num momen- tanto, o responsável pela organização do Exér-
to de rearranjo nas relações políticas locais. A cito Libertador, e isso as próprias autoridades
crise que afastava portugueses dos lugares de reconheceram. Mas isto não impediu a crise.
poder propiciaria o acesso de outros – agora A disputa era, aparentemente, sobre a nacio-
brasileiros – a estas posições, gerando atritos nalidade do comandante e sobre seus métodos
e movimentações dos possíveis candidatos e militares e disciplinares. Investido na tarefa
seus “padrinhos”. Novas redes de clientela e de afastar Labatut do comando das tropas, o
dependência deveriam ser tecidas, ou, ao me- Conselho Interino disparou: “é um brasileiro
nos, as velhas redes poderiam ser repactua- quem deve salvar a Bahia, não um Estrangei-
das. No entanto, em momentos de crise como ro sem Pátria, sem outro laço social que não o
este, os termos destes acertos eram testados, interesse”.
negociados, reconstruídos, e “a luta de clas- Mas isso apenas, talvez houvesse passado
ses” aflorava. em brancas nuvens. Outras questões faziam
Isto pode ser confirmado pelo grande nú- as lideranças locais lembrar a nacionalida-
mero de desordens e deserções, constantes em de do comandante para detratá-lo. O General
todo o período da guerra da Bahia e também também foi atacado por seu rigor e violência.
nos anos imediatamente seguintes ao seu des- Em uma outra oportunidade, a reprovação era
fecho. Esta atividade rebelde – assim conside- porque andava “arcabuzando, sem nenhuma
rada pelas autoridades pelo desalinho em re- forma de processo, e somente ao seu arbítrio,
lação aos seus planos políticos – não pode ser a alguns paisanos: não esquecendo a barbari-
julgada, apressadamente, como espontânea dade com que mandou de mesmo modo me-
ou pré-política: era informada pelo horizonte tralhar aos cinquenta e uns pretos, depois de
político das classes populares e tencionava as presos”.
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A disputa mais grave, portanto, assentava- te da Província controlada pelos brasileiros –


Patriotismo e conflito de class na independência da Bahia

-se em outros motivos: mais do que “metralhar disse-lhe “que não lhe importava disso”. O fato
pretos”, medida extrema e inapropriada aos tornou-se mais intrigante a partir da interven-
olhos dos baianos de posses, Labatut contri- ção do Vigário Francisco José de Miranda, De-
buía, segundo os membros do Conselho, “com a putado pela Vila de Água Fria, que presenciou
organização de um Brasil (...) de negros cativos, o acontecido. Houve bate-boca e a solução en-
crioulos, e africanos, que o general tem forma- contrada, dado o exaltar de ânimos, foi solici-
do, e está disciplinando, com a mais crassa im- tar o parecer do Conselho.
política, em notório dano a esta Província”. A decisão do Conselho não poderia ser ou-
A libertação de escravos para a sua incor- tra: ordenou “que, procedendo Vossa Mercê
poração às fileiras do Exército aparecia para [o Juiz de Fora da Vila da Cachoeira] as preci-
as elites como uma ameaça não só de desor- sas averiguações, castigue nos termos da Lei
ganização produtiva, mas, principalmente, de ao Cabo de Polícia de que se trata”. Apesar da
desarrumação da ordem social. Junte-se a isto sugestão de que o Juiz de Paz procedesse “ave-
que o rigor disciplinar sem a contrapartida da riguações”, o veredicto já estava dado, posto
complacência e do perdão – elementos funda- o imperativo subsequente: “castigue”! O por-
mentais da relação paternalista que os gran- tador do passaporte era, para o Conselho, um
des proprietários com- “amigo da Causa”, pois ti-
partilhavam com o povo nha em mãos tal documen-
– esgarçavam o já prejudi- “Lobo foi preso em to. Não portar tal licença
cado tecido social baiano. novembro de 1822, e levaria Machado à sorte de
A guerra terminaria como assim ficou até pelo menos muitos outros lusitanos,
quiseram os grandes pro- janeiro de 1823, quando foi considerados inimigos,
prietários do Recôncavo transferido para a cadeia durante a guerra: prisão,
baiano, com um brasileiro de Cachoeira – ironia do transferência para outras
ao comando do Exército destino, o lugar para onde províncias onde fossem
Libertador que adentrou tinha enviado, meses antes, menos perigosos, e mes-
a cidade do Salvador, aos seu desafeto português.” mo o sequestro de seus
dois de julho de 1823: o bens. O português pesou
Marechal Lima e Silva. mais frente ao Conselho
Aliado à nacionalidade, é possível que tenha do que o brio antilusitano do Cabo Joaquim,
pesado a seu favor o fato de possuir uma visão cujo patriotismo não estava equalizado com as
mais apropriada das relações sociais vigentes. intenções daquele órgão.
Fora as questões internas, as autoridades Os atos que encerram o caso represen-
ainda precisavam evitar o surgimento de li- tam mais que um mero desconhecimento dos
deranças intermediárias que polarizassem procedimentos técnicos sobre o trânsito de
os anseios políticos populares, prejudicando portugueses de nascimento pela província. A
as novas-velhas configurações políticas. Foi desautorização da licença e do Deputado e a
o que aconteceu com o Cabo de Polícia do interferência de todos que apoiaram ou foram
Arraial da Purificação, Joaquim de Souza, ao contra a prisão do Cabo Joaquim indicam a
realizar a prisão do europeu Antonio Maga- falta de unanimidade em torno do Conselho e
lhães de Aquino Machado. Mesmo tendo este da sua interpretação do que era ser patriota.
lhe apresentado um passaporte expedido pelo O Cabo, seus seguidores e defensores, ao não
Conselho Interino – necessário ao trânsito dos reconhecer a legitimidade dos atos das auto-
europeus, em especial os portugueses, na par- ridades demonstraram que não compartilha-
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vam com o Conselho e seus representantes de vila o Príncipe Pedro, mas havia ultrapassado
uma mesma visão de patriotismo. suas prerrogativas. Ao prender o proprietário
Outros casos que mereceram a atenção e português, mexera nas hierarquias e desau-
os cuidados do Conselho Interino de Governo torizara as lideranças locais. O Alferes se de-
foram os que envolveram, nas vilas do baixo fendeu. Enviou correspondência ao Conselho
sul baiano, o Alferes José Clarque Lobo e João dando satisfações de suas tarefas e explicando
Tavares de Melo, que se autodenominava “ca- seus atos, sempre em nome da nação. Desfazia
pitão mandante”. Estes dois personagens se das acusações de opressor, dizendo-se afagado
sucederam em trajetórias muito parecidas: por um povo que lhe via como “restaurador”.
ocupando certa posição de liderança, entra- Como provas disso, narrou um episódio no
ram em choque com autoridades mais gradua- qual, incitada a pegar em armas contra ele, “a
das, não por acaso, envolvendo prisões de por- Tropa, sim, pegou, porém foi para me defen-
tugueses. Foram, por isso, penalizados com a der, e postou-se a meu lado, gritando ‘morra o
prisão. maroto, que estava comprado’, e as suas ações
O primeiro caso teve como pivô o Capitão assim o davam a entender”.
de Milícias José Gonçalves Régis, português e Não adiantou. O patriotismo de Lobo ul-
proprietário, que foi preso por Lobo na vila trapassava os limites do que os proprietários
de Valença. Os proprietários da região – “ru- baianos esperavam. Segundo eles, o alferes ha-
des lavradores”, como preferiram assinar – fo- via chegado ao cúmulo de amarrar ao tronco
ram em defesa do Capitão Régis. Para ser mais a quem possuísse dívidas, e apreender e ven-
exato, foram ao ataque, e o alvo era o Alferes der propriedades de portugueses. Acusado de
Clarque Lobo. Para os rudes lavradores, Lobo abusar de poder, Lobo foi preso em novembro
era, dentre outros adjetivos, ladrão, déspota, de 1822, e assim ficou até pelo menos janeiro
usurpador, opressor do povo e, num toque de de 1823, quando foi transferido para a cadeia
ironia, “lobo devorador” de “temidas ovelhas”. de Cachoeira – ironia do destino, o lugar para
O medo das indefesas presas era a incitação onde tinha enviado, meses antes, seu desafeto
que o dito lobo causava aos populares. português.
Régis, apesar de europeu, era bem quisto João Tavares de Mello, segundo escreveram
pelos proprietários locais, e seus pares deram as autoridades de Camamu ao Conselho Inte-
depoimento em seu favor, alegando que: rino de Governo, “não tendo em parte alguma
“ele é aqui bem conduzido, o primeiro Pro- do mundo nomeação, apenas não passa[va] de
prietário que anualmente paga maior pensão paisano”. No entanto, deu-se uma patente que
de uma de suas Propriedades, foi o primeiro ele próprio inventara para legitimar seu prota-
que formou nesta Vila nos diferentes Prédios, gonismo patriótico radical, e passou a identi-
que edificou: é Europeu e por isso talvez se lheficar-se como capitão-mandante. Ainda mais,
acumulem [crimes] que não cometeu, susten- agia como fosse um, o que quer que esta pa-
ta e anima a Agricultura deste País, Suprindo tente pudesse significar. Além de desautorizar
anualmente em Seu cabedal aos Lavradores os mais altos cargos da vila, soltando presos,
deste Continente” por exemplo, “repartiu pelo povo” as armas
arrecadadas naquela localidade para a guerra.
Não aceitavam – na verdade, condenaram Isso era “anarquia” e “despotismo”. As acu-
– o fato dele ter sido preso e “remetido a fer- sações sobraram de parte a parte. João Mello
ros na maior ignorância” para Cachoeira. Era acusara o seu detrator de ser “faccioso e in-
ousadia demais. A tarefa para a qual Lobo ti- confidente”. Mas a ameaça que o “capitão man-
nha sido mandado era a de proclamar a dita dante” representava ia além das palavras: as
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
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autoridades temiam prendê-lo “por não haver sível controle por parte dos portugueses de
Patriotismo e conflito de class na independência da Bahia

algum levante entre Povo, em que estão todos vilas do oeste baiano como Carinhanha, e ten-
os parentes deste rebelde Revolucionário”. Pa- tando resolver o alto número de deserções e
rece que João Tavares de Mello havia conse- desordens com que tinha que lidar, propunha
guido para si um grande poder de influenciar “que não se trate de prisão contra os deser-
o povo de Camamu, reconfigurando as redes tores, antes convocados por meio de perdão”.
locais de dependência. As autoridades solici- E concluía: “Se a Vossas Excelências parecer
taram ao Conselho “punição deste absurdo, conveniente esta medida se dignem por sua
sendo prestes no pronto remédio a tão gran- Portaria haver por declarado o perdão para
des males, para exemplo dos tumultuosos”. Li- estes Soldados”. Não era uma reflexão isolada
deranças desse tipo, era melhor que não esti- sua: havia discutido o assunto “com alguns ho-
vessem à solta. mens cordatos”.
Estabelecer um novo arranjo político e con- As imagens são fortes, a simbologia, bastan-
seguir o apoio popular para a independência te corrente. Piedade, amor paternal, coração...
passava, de alguma forma, pela consolidação tudo remetia a uma representação de uma
da ideia de que os representantes do novo re- relação elite-povo que se pensava harmôni-
gime seriam competentes na chefia das rela- ca, complementar e terna. Mas a explicitação
ções elite-povo. Em destas engrenagens também remetem a uma
outubro de 1822, o preocupação, só confidenciada entre os seus
“O patriotismo das elites Conselho Interino, pares, de uma ruptura destas relações pela
não se estabeleceu de escrevendo para o via da revolta. A situação era delicada para o
forma harmoniosa e Major Comandan- arcabouço paternalista e exigia um maior cui-
nem foi aceito pelas te do Batalhão de dado no manejo dos instrumentos de domina-
camadas populares Caçadores Volun- ção deste tipo. As diferenças e perspectivas de
tranquila e pacificamente. tários sobre solda- classe precisavam ser entendidas e operadas
A ele se contrapôs um dos amotinados, para a recomposição do poder, para que tudo
patriotismo popular, propunha ao mes- voltasse ao seu devido lugar.
radical, antilusitano mo “dar um exem- O patriotismo popular diferia do de elite e
e, mesmo, antielitista, plo que sirva de ameaçava estourar em forma de rebeldia. As
identificado e combatido manter a discipli- atitudes populares antilusitanas em 1822-23
pelas autoridades baianas na nos corpos, tão (e que depois da guerra se desdobrariam, pelo
via Conselho Interino necessário quanto menos por mais uma década, em eventos de
de Governo, formulador dela só é que pode violência de rua – os mata-marotos) foram
do patriotismo oficial.” resultar o públi- além dos alvos pessoais, atingindo politica-
co repouso, sem, mente o Conselho Interino de Governo. O pa-
todavia, deixar de triotismo popular expôs à luz, durante a guer-
muito atender aos sentimentos de piedade, ra de independência na Bahia, um conflito de
que amam os governos Paternais”. Tinham, classe, ao qual os membros do Conselho e os
portanto as autoridades, uma equação difícil comandantes do Exército Libertador estive-
de resolver: castigar para manter o controle ram atentos, às vezes assustados, mas sempre
social, mas nunca ultrapassar os limites que le- agindo no intuito de debelá-lo.
variam a uma ruptura das relações paternais. A preocupação do Conselho Interino com
O comandante do Quartel da Vila de Jacobi- arroubos deste “outro” e indesejado patriotis-
na, José Baptista Camargo, em 16 de março de mo levou os seus membros a esboçarem uma
1823, foi mais explícito. Assustado com o pos- proposta política de “educação patriótica”
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Sérgio Armando Diniz Guerra Filho


para a nação. Era necessário que as camadas elites, ou pelo menos aqueles homens livres
populares compartilhassem do patriotismo “ajustados ao sistema”, a proposta de educa-
pregado pelas autoridades, mas sem exageros, ção bastava. Para o Conselho Interino de Go-
para que a caminhada em direção à indepen- verno, estavam definidos os papéis que deve-
dência conservadora que almejavam não fosse riam ser ocupados por jovens de elite, de um
atrapalhada. Pretendia-se, com isso, diminuir lado, e “vadios e perturbadores” – uma alusão
o abismo entre as concepções patrióticas de explícita a elementos rebeldes oriundos das
proprietários e de pobres livres. classes populares –, e de outro, na nova nação.
A Pátria que as elites baianas se esmeraram
Tal proposta estabelecia princípios simbó- em construir apresentava-se paternalmente
licos, como a utilização massiva da imagem do para as camadas subalternas. Castigar e usar
Imperador D Pedro I , mas também aspectos a força contra seus filhos, assim como perdo-
pragmáticos para a construção do sentimento ar e amenizar conflitos, era uma prerrogativa
patriótico entre as classes populares. As armas sua, quando não fosse obedecido. Para os mais
e as fardas, com sua disciplina, ensinar-lhes- abastados, a pátria significava uma condição
-iam a amar ordeiramente sua terra-pátria. de virtude afirmativa, de ocupação dos negó-
“Nada importa tanto como cuidar da edu- cios que levariam o país ao progresso e à ri-
cação de jovens, que um dia devem fazer a queza.
grandeza, e opulência do Império, e por ou- Às demais classes, a pátria deveria signifi-
tro lado, cumpria extremar os que devem ser car uma condição de obediência e restrições.
entregues ao honroso exercício das armas na Seriam punidos, caso ultrapassassem os limi-
crise de tanto risco, e perigo, como a em que tes do script que lhes era relegado, restando-
nos colocou nossa boa fé mal jurada pela fra- -lhes uma sempre esperada, e às vezes alcan-
tricida ambição de Portugal: por isso ordenou çada, clemência paternal. Para pobres livres,
o Conselho que os Párocos dessem o alardo de libertos e escravos, ser patriota significava não
seus fregueses meninos e rapazes de cinco a se rebelar, trabalhar, obedecer, não contestar...,
vinte e cinco anos, declarando seus empregos, enfim, submeter-se aos desígnios um sistema
e misteres, se vadios, e perturbadores (...) Es- social, onde eram parte subordinada e onde o
pera o Conselho que desta forma mui fácil se acesso aos canais de representação política e
lhe torne o recrutamento forçado” de efetivo exercício de poder continuaria res-
trito ao rol dos grandes proprietários, os ge-
Se a utilização das armas por parte dos sol- nuínos patriotas.
dados não bastasse para despertar-lhes o es- O patriotismo das elites não se estabeleceu
pírito patriótico, não haveria nenhum escrú- de forma harmoniosa e nem foi aceito pelas ca-
pulo por parte das autoridades e comandantes madas populares tranquila e pacificamente. A
em usá-las contra eles, frente a uma situação ele se contrapôs um patriotismo popular, radi-
limite. Porém o mais importante no documen- cal, antilusitano e, mesmo, antielitista, identi-
to acima é a relação estabelecida entre alista- ficado e combatido pelas autoridades baianas
mento-recrutamento e patriotismo. “Vadios e via Conselho Interino de Governo, formulador
perturbadores” deveriam ser alvo do recru- do patriotismo oficial. A identidade coletiva de
tamento forçado; aos outros, “que um dia de- cunho nacional brasileira não se constituiria,
vem fazer a grandeza e opulência do Império”, na Bahia da Guerra, a não ser sob tensões de
provavelmente referindo-se a membros das classe.

2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL


Entrada do exército
pacificador na Bahia

Exército brasileiro adentrando Salvador após a rendição das forças portuguesas, 1823. Presciliano Silva.
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Entrada do Exército Pacificador na Bahia

Entrada do exército
1
pacificador na Bahia
Antonio Moniz de Souza

O dia 2 de Julho, dia eternamente memorá- ram os corpos a voz do chefe, que inteirado da
vel nos Anais do Império Brasílico, amanheceu desesperada intenção dos sitiados, tinha tra-
puro e brilhante, como destinado para o glo- çado antecipadamente o plano da entrada. Já
rioso triunfo da Bahia. Pelas 4 horas da manhã, cada um sabia das obrigações que lhe tocava
a retaguarda dos lusitanos se embarcou fugiti- cumprir. Principia-se a marcha: saúda-se para
va, e precipitadamente a bordo dos seus trans- sempre aquela posição de Pirajá, testemunha
portes; e a cidade, purgada dos tiranos, que a de tanta constância, de tanto patriotismo. Um
oprimiram, não gozava ainda da presença dos Corpo de Exploradores precede o Exército, vi-
seus libertadores. Esta situação singular, esta sita e ocupa os pontos e trincheiras abandona-
suspensão total de todo o governo prolongou- das. O quartel-mestre general, coronel Antero,
-se até a uma hora da tarde, porque seriam natural da província do Rio Grande do Sul, os
mais de oito, quando chegou a Pirajá um de- comanda com o mesmo semblante sereno, e
sertor lusitano, e pouco depois um Oficial que satisfeito, com que os havia capitaneado no dia
foi de propósito participar ao comandante em 3 de junho, debaixo de vivíssimo fogo inimigo.
chefe, coronel Lima, o embarque clandestino O comandante em chefe acompanhado do
do inimigo. Tal notícia se comunicou à manei- Estado-Maior seguia imediatamente os ex-
ra de uma comoção elétrica, a todo o exército; ploradores. Aquele jovem militar, esperança
que rapidamente pegou em armas e se forma- do Brasil, passando repentinamente de um
comandante subalterno ao primeiro grau de
poder, desenvolveu, como por encanto, todas
as qualidades de grande general, não achando
em sua elevação, senão novos motivos de ser
modesto e prudente. Sua alma nobre se en-
tregava às mais lisonjeiras ideias; como as de
libertar e restaurar uma cidade importantíssi-
ma, de completar a obra da Independência da
sua pátria e de tomar assento na lembrança da
posteridade.
O ajudante general, tenente-coronel Torres
se fazia, naquela brilhante comitiva, credor da
atenção pública, pelos seus talentos, desde o
princípio, consagrados à santa causa: e que ví-
tima do dia 3 de novembro, nos padecimentos
da prisão, achou novos motivos de se dedicar
Praça do Riachuelo - Gilberto Ferrez
ao serviço deste Império. Ao lado do coman-
dante em chefe do Exército, distinguia-se o co-

1 Antonio Moniz de Souza. Viagens e Observações de um Brasileiro, Instituto Geográico e Histórico da Bahia, em 2000.
Quadro Entrada do Exército Libertador, de Presciliano Silva.
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Antonio Moniz de Souza


Exército brasileiro adentrando Salvador após a rendição das forças portuguesas, 1823. Presciliano Silva.

mandante da Divisão da direita tenente-coro- quem deixaria de os contemplar com admira-


nel José de Barros Falcão, chefe leal e valoroso ção e enternecimento!
das tropas auxiliadoras de Pernambuco; ina- O novo Henrique Dias, tenente-coronel Ma-
balável na defesa da pátria, e cercado de seus noel Gonçalves, cujo valor iguala à perícia no
dignos filhos ele desfrutava o doce prêmio de serviço de tropas ligeiras capitaneava aquela
suas marciais fadigas. coluna, composta do Batalhão do seu coman-
O Estado-Maior precedia ao batalhão do do, e dos libertos, que conquistaram a própria
imperador, do qual cada soldado é um modelo liberdade pelo preço do seu sangue, dando
de disciplina, e valor; cada oficial merecia um nova prova de ser a cor um acidente, como a
elogio particular. O major Lima brilhava à fren- coragem uma virtude, que se acha em todas as
te (o nome de – Lima – é de bom agouro para condições.
a província da Bahia. Os três irmãos vindos do O resto das tropas daquela divisão conser-
Rio de Janeiro e o benemérito comandante das vou-se na guarda dos pontos e abarracamen-
forças de Itaparica, têm gravado, pelos seus tos, e fiéis às leis da disciplina, viram-se sem
feitos, aquele nome na memória dos baianos). murmurar, precedidos no triunfo por aqueles,
Após o Batalhão do imperador, vinham os que os não deixara, atrás no perigo dos ata-
valorosos pernambucanos, primogênitos do ques. Tal foi a ordem de marcha da divisão da
Brasil no amor da Liberdade, guiados pelo dig- direita. A divisão da esquerda sabia, ao mesmo
no major Tomás e seus beneméritos oficiais, tempo dos pontos, e se dirigia pelo caminho
chefes e soldados mostravam, em seus sem- do Rio Vermelho. Um corpo de explanadores
blantes, o entusiasmo do valor premiado, do a precedia e, à frente dela, o seu comandante
patriotismo triunfante. Estes dois corpos bem coronel Felisberto Gomes Caldeira era o alvo
fardados, e mui peritos no manejo e manobras da admiração pública. O patriota Felisberto
militares não invejam aos melhores da Euro- cujo gênio abrange o plano geral, e o menor
pa. As tropas que os seguiam, ofereciam um detalhe dos negócios; cuja incansável ativida-
espetáculo muito diferente; porém mais in- de não recusa trabalho que seja útil à pátria;
teressante, talvez aos corações patriotas. Elas Felisberto, enfim, cuja perda foi considerada
apresentavam o quadro das mais extremosas pelo Exército, como o sinal da perdição desta
privações; sem fardas, sem calçado; mas orna- causa, recebia a recompensa de uma dilatada
dos da sua nudez e ricos de seus sofrimentos, carreira de virtudes, de valor e de sofrimentos.
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Entrada do Exército Pacificador na Bahia

A ilustração é de uma peça musical composta (entre 1894 e 1896) para homenagear a data por um português, José Barreto Aviz,
e faz parte da história musical do período, recuperado no pioneiro trabalho do professor e maestro Manuel Veiga, da Escola de
Música da Universidade Federal da Bahia. Fonte: http://bp1.blogger.com

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Antonio Moniz de Souza


Após, ele veio ocupar a fortaleza de S. Pe- hinos da religião, as girândolas de fogo, o re-
dro, o Batalhão do capitão Pitanga, um daque- pique dos sinos, foram mil e mil vezes repe-
les valorosos e patriotas comandantes, que tidos. O comandante em chefe, continuando
mereceram o amor do corpo que comandavam a marcha, chegou à altura do forte do Barba-
e a estima do exército inteiro; digno Êmulo dos lho; e lembrando de que a bandeira Imperial
Leites, Argolos, Sátiros, Catetes, e de muitos, não tremulava ainda em nenhum dos Pontos
que a querer comemorar todos os beneméri- da Bahia restaurada, deu ordem para que ela
tos era preciso dar a lista de quase toda a ofi- fosse arvorada; desencravando-se duas peças
cialidade, e mesmo de um grande número de de artilharia do mesmo forte, cujo trovão sau-
soldados. dou as cores brasileiras, emblema das rique-
As tropas desta divisão não apresentavam zas, e das esperanças sem limites do Império
o brilhante aspecto das tropas da direita; pois Diamantino! O inimigo, que então silencioso e
todas elas pertenciam à província, e eram cheio de vergonha, e de raiva se fazia à vela,
compostas daqueles generosíssimos cidadãos, pode distinguir a vitoriosa bandeira, e ouvir o
que deixaram casas e famílias para acudir à som das mesmas peças, que ele não tinha sa-
salvação da pátria; e que acharam prazer em bido empregar, proclamando a sua desonra e o
não haver um só gênero de privações e de pe- nosso triunfo.
rigos, que não sofressem. Elas não tinham de Ao partir da Soledade, não tinham cessado
militar senão as boas espingardas, habilidade os vivas ao Imperador, à nação, ao exército. E
no manejo delas e garbo da marcha. nunca mais cessaram em todo o dia e toda a
Entretanto a divisão da direita se adianta- noite. De todas as janelas, os infelizes habitan-
va, já ela tinha passado as trincheiras; (obra tes pagos em um dia, de um ano de opressão
louca; inútil esperança do inimigo estúpido). e de padecimentos, não se podiam fartar de
Já tinha chegado ao Convento da Soledade. As contemplar, e de celebrar os seus Libertado-
freiras, dignas filhas do Brasil, tinham armado res. A bandeira nacional e imperial aparecia
espontaneamente um arco triunfal e cheias de por toda a parte.
alegria ornavam de coroas de flores, embal- Uma chuva de flores e de perfumes cobria
samavam com perfumes os seus libertadores. o exército. Na praça do terreiro, houve repen-
Aquelas tímidas e recatadas esposas de Deus, tino armamento das tropas e se fizeram as
tinham sem receio, aberto as portas do seu devidas continências. Logo depois, determina-
claustro, nenhuma barreira as separava da- ram-se as guardas; organizaram-se as rondas;
queles militares, que o insensato opressor da ocuparam-se os fortes e os edifícios públicos;
cidade representava com bárbaros, sequiosos e distribuíram-se quartéis com mais ordem
de sangue, e ruína, senão a invencível barreira e sossego do que quando uma guarnição, em
da honra. O espetáculo tocante, e admirável! tempo de paz, vem render outra; aconteci-
O valor patriótico coroado pela inocência! O mento inaudito, que encheu de admiração e de
entusiasmo até então comprimido rompeu arrependimento os corações dos alucinados
em inumeráveis vivas ao Imperador, ao chefe inimigos da causa, que, fiados nas promessas
livremente escolhido pela Nação que tantas do honrado comandante em chefe, preferiram
esperanças nele deposita. Estes vivas entre prudentes o perdão do crime, ou do erro, aos
as lágrimas do prazer, os gritos do júbilo, os riscos de um embarque desesperado.

2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL


A festa do Dois de Julho:
As comemorações públicas
da independência nacional

Festa do Dois de Julho em Salvador (século XIX). Acervo da Fundação Pedro Calmon
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A festa do Dois de Julho

A festa do Dois de Julho:


As comemorações públicas
da independência nacional
Wlamyra R. de Albuquerque
Na Bahia, desde 1824 que no dia dois de ju- diu em Portugal a revolução liberal do Porto.
lho repete-se uma entusiasmada e concorrida Uma das principais reivindicações dos revol-
comemoração cívica e popular. Com as ruas en- tosos era o retorno imediato de Dom João VI à
feitadas com adereços azuis, vermelhos e bran- Europa, de onde, em 1808, ele havia escapado
cos – as cores da bandeira da Bahia - e folhas de das investidas imperialistas de Napoleão Bo-
crótons verdes e amarelas – as cores da bandei- naparte. Embora tenha relutado a retornar, D.
ra brasileira – a população sai às ruas para re- João VI e a realeza embarcaram de volta para
contar a mesma saga: a conquista da indepen- Lisboa em 1821, deixando no Brasil seu filho
dência do domínio português, depois das lutas Pedro como príncipe regente.
ocorridas na Bahia entre 1821 e 1823. A volta de D. João VI a Portugal foi decisiva
Sendo uma festa que marca o fim da condi- para o processo de independência do Brasil.
ção de colônia do Brasil, o Dois de Julho reme- A partir daí uma série de atos metropolitanos
mora a fundação do império brasileiro e a li- visando reiterar a soberania lusitana aguçava
berdade nacional. Em todo o Brasil celebra-se dia a dia o desejo das elites brasileiras por au-
a independência nacional proclamada no Rio tonomia política e administrativa. Tornava-se
de Janeiro por D. Pedro, no dia 7 de setembro evidente o desconforto dos brasileiros com os
de 1822. Entretanto, o fim do domínio portu- limites que a condição colonial imprimia a um
guês só se efetivou depois das lutas ocorridas país continental e em franca ascensão econô-
na Bahia, que resultaram na retirada das tro- mica, graças aos lucros obtidos com a lavoura
pas portuguesas do solo brasileiro no dia 2 de açucareira, então concentrada no Recôncavo
julho de 1823. Daí porque esta data é tão im- baiano.
portante para os baianos. A ânsia brasileira por autonomia e liberda-
Desfeita a ordem Imperial e instituída a Re- de corroía a condição metropolitana de Portu-
pública, as comemorações pelo fim do domínio gal. Em reação, no dia 7 de setembro, D. Pedro,
colonial persistiram, atravessaram o século XX o príncipe-regente, foi informado de que seus
e continuam a ser uma das mais importantes decretos haviam sido revogados e que D. João
VI determinara seu retorno imediato para Por-
do calendário festivo da Bahia. A longevidade
tugal. Diante daquela situação nada lhe pare-
da festa é tão intrigante quanto as raízes histó-
ceu mais oportuno do que decretar a indepen-
ricas e culturais que a sustentam.
dência do Brasil. Mas nem de longe a atitude
do então imperador D. Pedro I amenizou o cli-
A HISTÓRIA QUE ma de instabilidade e os conflitos entre portu-
EXPLICA A FESTA gueses e brasileiros, que ocorriam em várias
Em 1820, enquanto D. João VI governava províncias.
seu império a partir do Rio de Janeiro, explo- Da Bahia vinham as piores notícias. Em de-
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Walmyra R. de Albuquerque
Caboclo - Festa do Dois de Julho em Salvador. Acervo da Fundação Pedro Calmon

zembro de 1821 foi nomeado pela metrópole, setembro de 1822, a situação se agravou, pois
governador das Armas, importante cargo mili- a existência de um governo central e indepen-
tar, o brigadeiro português Inácio Luís Madei- dente de Portugal não era mais só uma aspira-
ra de Melo, em substituição ao brasileiro Ma- ção, tornou-se real. Como era de se esperar, os
nuel Pedro de Freitas Guimarães. A nomeação portugueses não aceitaram de pronto a eman-
de Madeira de Melo não foi reconhecida pelos cipação política do Brasil, afinal não estavam
militares brasileiros na Bahia. Desde então, dispostos a abrir mão de um território rico e
uma série de conflitos entre tropas de uns e de próspero.
outros foram compondo, ao longo de meses, o Com a iminência da guerra, quem tinha re-
clima de guerra. Com a notícia do ato de D. Pe- cursos suficientes para afastar-se de Salvador
dro às margens do rio Ipiranga no dia sete de o fez. Muitos se abrigaram em suas proprieda-
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104
A festa do Dois de Julho

de do Recôncavo, área recuada dentro da baía nhores de engenho, que trataram de criar e
de Todos os Santos e sob o controle dos gran- financiar batalhões patrióticos e garantir ali-
des senhores de escravos, engenhos de açúcar mentos e armas para as tropas nacionais. Para
e plantações de fumo. Mas a grande maioria estes senhores, negociantes e comerciantes
da população permaneceu em Salvador e ex- nacionais, a independência do Brasil tornava
perimentou os horrores de uma cidade sitia- possível a administração de seus negócios sem
da pelas tropas portuguesas que chegavam a interferência da Coroa portuguesa, mais pre-
de Lisboa para garantir o governo militar de ocupada em atender aos interesses das suas
Madeira de Melo. Os brasileiros, por sua vez, elites.
eram chefiados pelo general Labatut, enviado Ao lado deles, a gente pobre, urbana e li-
do Rio de Janeiro para comandar o Exército vre incomodada com os privilégios reservados
Pacificador e expulsar os portugueses das ter- aos portugueses, a exemplo do monopólio no
ras brasileiras. comércio de produtos básicos na época, como
É o fato de ter sido cenário para batalhas a farinha de mandioca. Para esta gente era na
decisivas, cercos, mortes e, é óbvio, da vitória vida cotidiana das feiras e bodegas que a sub-
sobre os portugueses que tornou as comemo- jugação aos portugueses ganhava nitidez. A
rações do Dois de Julho tão representativas. carestia e a escassez de alimentos penaliza-
Quando, enfim, a guerra eclodiu em junho vam os mais pobres, que estavam à mercê do
de 1823, quem de fato reinava na Bahia era monopólio dos comerciantes lusitanos.
a instabilidade política. Isto porque, embora Não por acaso, nos primeiros anos que se
pareça que existiam dois campos rivais bem seguiram à independência, durante as come-
demarcados, portugueses versus brasileiros, morações do Dois de Julho aconteciam protes-
a situação era bem mais complexa e mesmo tos e ataques da população contra comercian-
caótica. Entre os portugueses via-se mais he- tes portugueses. Conta o cronista Melo Moraes
gemonia. Eles estavam dispostos a lutar pelo que
controle político e comercial de Portugal sob o
Brasil, mantendo-o como colônia devidamente “Ao começar da véspera [dia 1º de julho], o
subordinada a D. João VI. comércio português fechava as portas, em ra-
Já entre os brasileiros havia planos diferen- zão dos ataques e violências das turbas, onde a
tes. Alguns proprietários de terras e escravos capadoçada ínfreme embriagava-se, zomban-
desejavam gerir seus negócios sem a inter- do dos direitos do taverneiro amedrontado,
ferência da Coroa portuguesa, mas a guerra que tudo franqueava, contanto que os deixas-
certamente comprometeria a atividade co- sem vivos”.
mercial, além do risco de o movimento se ex-
pandir para as senzalas, dando vazão a rebel- Eram os chamados “mata-marotos”, confli-
dia escrava. Por isso empenhavam-se por uma tos que envolviam a população local e os por-
conciliação capaz de manter o Brasil unido a tugueses que permaneceram na Bahia depois
Portugal, mesmo através de laços coloniais. da expulsão das tropas lusitanas chefiadas por
Dentre os partidários da radicalização da Madeira de Melo.
rebeldia brasileira estavam militares, profis- Em cena, ainda havia os escravos atentos às
sionais liberais e outros proprietários de es- divergências entre os senhores brancos, fos-
cravos que viam no controle metropolitano sem eles brasileiros ou portugueses. E meio à
o principal empecilho para sua prosperidade guerra, arrefeceu-se a vigilância sobre os cati-
econômica e ascensão social. A ideia da auto- vos e quem pretendia fugir tinha a seu favor a
nomia política mobilizou principalmente se- confusão e o desespero dos senhores. Deste
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Walmyra R. de Albuquerque
Campo Grande - Festa do Dois de Julho em Salvador (século XIX). Acervo da Fundação Pedro Calmon

modo, a disputa pelo controle do país criou tos para Salvador foram artimanhas de guerra
uma atmosfera de instabilidade social que be- que garantiram a expulsão dos portugueses
neficiava os escravos rebeldes. Além disso, a na madrugada do Dois de Julho. Mas os prin-
guerra ainda abria-lhes outra porta para fora cipais protagonistas desta vitória estavam nos
do cativeiro, o exército libertador. pelotões patrióticos vindos do Recôncavo, do
Na Bahia, atentos aos rumos dos aconte- sertão e Chapada Diamantina para enfrenta-
cimentos, escravos incorporaram-se ao lado ram, além dos portugueses, a fome, a sede e
brasileiro nos campos de batalha. É verdade o cansaço na longa jornada até os campos de
que muitos o fizeram compulsoriamente, uma batalha nos arredores de Salvador. Eram mui-
vez que os seus senhores os “alistavam” para tos negros libertos, escravos e alguns brancos
as tropas patrióticas. Outros eram escravos pobres. A vitória contra os portugueses só foi
fugidos que apresentavam para o recrutamen- possível com o recrutamento desta gente.
to nas fileiras patrióticas. Era uma forma um Deve ser por isso que o fim do domínio por-
tanto extrema de escapar da escravidão: caso tuguês foi, desde o princípio, uma festa popu-
sobrevivessem à guerra poderiam pleitear a lar, que em Salvador tem nos Caboclos seus
principais símbolos.
alforria com o nobre argumento de que ha-
viam servido a pátria. De fato, alguns escravos
assim conquistaram a liberdade. A FESTA QUE RECRIA
Não há dúvida de que sem a organização A HISTÓRIA
das autoridades políticas e militares e dos se- No período imperial, os festejos começa-
nhores de engenho do Recôncavo baiano a re- vam no dia 27 de junho, quando uma guarda
sistência às tropas portuguesas na Bahia seria de honra do exército percorria as ruas de Sal-
inviável. A articulação política, a organização vador anunciando a programação e fixando
das tropas e o bloqueio de envio de alimen- panfletos da Câmara, em exaltação ao patrio-
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A festa do Dois de Julho

Festa do Dois de Julho em Salvador (século XIX). Acervo Osvaldo Gordilho

tismo dos baianos. Nas noites seguintes, acon- tar poesias em comemoração ao Dois de Julho.
teciam bailes públicos a disputarem com os Embora tal descrição possa nos levar a ima-
tantos outros oferecidos pelas famílias mais ginar uma festa exclusiva aos bem vestidos e
tradicionais e importantes da cidade. bem nascidos, a festa do Dois de Julho sempre
contou com significativa e ruidosa participa-
A noite de primeiro de julho era reservada ção popular. Em 1867, por exemplo, um via-
ao bando anunciador. Eram grupos mascara- jante francês, ao participar das comemorações
dos “usando ricos disfarces” ou elegantemen- ao Dois de Julho, notou “grupos de rapazes e
te vestidos de branco que seguiam as bandas de pretos caminhando pelas ruas, seguindo
marciais e, vez por outra, paravam para reci- orquestras com bandeiras e tochas. Os cantos,
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Ubiratan Castro de Araújo


Festa do Dois de Julho em Salvador (século XIX). Acervo Osvaldo Gordilho

ou melhor, os gritos patrióticos, o ruído das tarina Paraguaçu, a índia que, nos primórdios do
bombas, de flautas e de tambores, os foguetes Brasil, teria encantado Caramuru, o aventureiro
que cruzam os céus, todo este alvoroço se pro- e náufrago português que viveu entre os tupi-
longará até tarde da noite.” nambás, na região de Porto Seguro.
Mas tudo isto era apenas a véspera. Ambos são conduzidos em duas carroças
O auge das comemorações era, como con- adornadas com diversos símbolos nacionais,
tinua a ser, o desfile do dia dois de Julho. Este como brasões e nomes de batalhas e heróis da
cortejo cívico teria surgido logo depois que guerra, chamadas de carros emblemáticos. Na
os portugueses foram vencidos na decisiva Lapinha, no bairro da Liberdade, foi constru-
batalha de Pirajá, área suburbana de Salva- ído, em 1860, o pavilhão patriótico, a fim de
dor. Conta-se que as tropas brasileiras, com abrigar os caboclos enquanto o dia dois de ju-
o contingente de 9.515 homens, ao adentra- lho não chega. De lá, eles só saem para o cor-
ram a cidade entusiasmadas com a vitória, tejo cívico levados pelos populares até a praça
apropriaram-se de uma carroça abandonada do Campo Grande, onde foi inaugurado, em
pelos lusitanos, a enfeitaram com folhas ver- 1895, o majestoso monumento ao dois de ju-
des e amarelas e colocaram sobre ela um índio. lho que, como não poderia deixar de ser, tem
Inaugurava-se, assim, a festa da independência, como principal destaque a escultura de índio
que ainda tem início no bairro da Liberdade, lo- armado de arco e flecha, o qual, da altura de
cal de chegada das tropas vitoriosas. vinte cinco metros, impõe-se sobre os demais
Em 1826, o velho índio foi substituído por símbolos nacionais e os milhares de transeun-
uma escultura de madeira. O caboclo passou en- tes que diariamente passam pelo lugar.
tão a ser uma figura atlética, guerreira e altiva, No principal dia da festa, logo pela manhã,
ornada de penas. Numa das mãos ele segura bem cedo, os batalhões patrióticos começa-
uma lança apontada para uma serpente, repre- vam a tomar os seus lugares, enfileirando-se
sentação da tirania portuguesa e, na outra, em- segundo a lógica social da época: autoridades,
punha a bandeira nacional. Já a cabocla foi criada acadêmicos, militares, jornalistas, estudan-
em 1840 com o intuito de substituir a imagem tes e caixeiros vinham à frente. Em seguida,
do caboclo, visto naquele momento como hostil surgiam os batalhões representando os ser-
à presença portuguesa e mesmo incitadora de tanejos que se engajaram nas lutas de 1822-
conflitos, os já citados mata-marotos. Graças à 23. Trajavam roupa, chapéu e gibão de couro.
força simbólica do caboclo, em vez de substituí- Fechando o cortejo, o “populacho”, como a
-lo, a cabocla foi incorporada ao cortejo ao lado imprensa se referia, na época, àqueles que se
dele. A cabocla é a representação da lendária Ca- colocavam próximos aos carros emblemáticos
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
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A Guerra da Bahia

e os seguiam cantando, sambando e reveren-


ciando os caboclos.
Ainda hoje, a festa do Dois de Julho é palco
para manifestações desse civismo impregnado
de referências culturais afro-brasileiras, nas
quais cabem sambas, missas, batuques, jogos
de azar e, sobretudo, o desfile do caboclo e da
cabocla. A primazia das representações indí-
genas nas comemorações da independência na
Bahia só pode ser entendida se considerarmos
o movimento nativista do começo do século
XIX, que tinha na imagem do índio valente,
ágil e vencedor, como se saído das páginas do
romancista José de Alencar, a sua principal re-
ferência de nacionalidade. É por aí que pode-
mos entender porque vários daqueles que se
envolveram com as lutas pela independência
na Bahia, depois do dia 2 de julho, adotaram
sobrenomes indígenas, a exemplo do bacharel Festa do Dois de Julho em Salvador (século XIX).
Acervo Osvaldo Gordilho
Francisco Gomes Brandão, que passou a assi-
nar Francisco Gê Acaiaba de Montezuma. to e mesmo incorporando divindades de outras
Não se faz um Dois de Julho sem o desfile crenças ao seu universo religioso. Ainda deve-
cívico e popular com os caboclos. Eles não só mos considerar que o significado do termo
constituem o núcleo central do desfile como nação se tornou importante para os africanos
simbolizam o complexo sentido de pertenci- escravizados neste lado do Atlântico. Para o
mento que a festa recria a cada dia. Digo isto povo do candomblé, herdeiro de tradições
porque nas ruas festivas da cidade estas repre- africanas, dizer-se de uma determinada nação
sentações indígenas extrapolam a encarnação implica em assumir valores, princípios e ritu-
do mítico selvagem das matas brasileiras dos ais que os distinguem de outros.
românticos. Dentro do universo religioso afro- Neste sentido, há nos terreiros de candom-
-brasileiro, caboclos também são seres encan- blé uma ambivalência para o termo nacionali-
tados, os “donos da terra”, ou seja, entidades dade, ao tempo que significa pertencer a uma
que já habitavam o Brasil quando os africanos comunidade herdeira da história e de culturas
chegaram com os seus orixás. Para adeptos do africanas, também quer dizer fazer parte de
candomblé, reverenciar o nativo, reconhecendo um povo cujo ancestral é o índio, o dono origi-
figuras indígenas como encarnações do que se- nal da terra Brasilis. Por isto, na Bahia, os cabo-
ria genuinamente nacional, expressa um sentido clos também são entidades religiosas a serem
de pertencimento tanto à nação brasileira funda- reverenciadas enquanto se rememoram os fei-
da em 1822, quanto a tradições religiosas afro- tos dos patriotas de 1822-23. É deste modo
-brasileiras. que podemos compreender porque todos os
Temos, assim, na festa que celebra a indepen- anos, depois que os carros emblemáticos são
dência nacional, evidências da singularidade dos recolhidos ao pavilhão da Lapinha, são encon-
cruzamentos culturais no Brasil. Sob a escravi- trados sob os pés dos caboclos vários bilhetes
dão os diferentes povos africanos reinventaram e cartas agradecendo-os por graças alcança-
identidades, recriando formas de pertencimen- das ou renovando pedidos e promessas.
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Ubiratan Castro de Araújo


Antonio Viana conta um caso interessante a Deste modo, os caboclos representam, a um
este respeito em Casos e Coisas da Bahia. Disse só tempo, os heróis da guerra da independên-
ele sobre uma discussão entre um comerciante cia, a ânsia por liberdade e a fé religiosa dos
português e um caixeiro brasileiro que insistia descendentes daqueles que lutaram pela liber-
em abandonar o serviço para ver passar o “san- dade nacional. Por tudo isto, as comemorações
to Dois de Julho”, numa flagrante associação da independência demonstram o quanto festas
entre os símbolos da festa da independência e públicas são espaços de reconstrução da histó-
as imagens religiosas que desfilavam nas pro- ria que compõe a memória local. E comemorar
cissões católicas. O português, alheio ao jogo a independência é também uma das maneiras
simbólico do brasileiro, não entendeu o quanto de contar sobre as trocas sincréticas e a riqueza
aquele sincretismo era significativo para a po- simbólica que estruturam a nossa cultura.
pulação local.

Referências Bibliográicas:
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UERINO, Manuel. A Bahia de Outrora. Salvador: Livraria Progresso, 1946.
REIS, João José e SILVA, Eduardo . Negociação e conlito: resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
SANTOS, Jocélio Telles dos. O Caboclo nos candomblés da Bahia. Salvador: Sarah Letras, 1995.
VERGER, Pierre. Notícias da Bahia (1850). Salvador: Corrupio, 1988, p. 110.
VIANNA, Antônio. Casos e Coisas da Bahia. Salvador: Museu do Estado, 1950, p.12.

2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL


Governador
Jaques Wagner

Secretária da Casa Civil


Eva Maria Della Val Chiavon

Secretário de Cultura
Márcio Meirelles

Diretor geral da Fundação Pedro Calmon


Ubiratan Castro de Araújo

Diretor geral da Empresa


Gráfica da Bahia
Luiz Gonzaga Fraga

Diretor de Arquivos da Fundação


Pedro Calmon (DIARQ/FPC)
Paulo Cesar Oliveira de Jesus

Colaboração
Daniele Santos de Souza
Luís Henrique Silva Sant’Ana

Projeto gráfico
Carlos Vilmar

Impressão
Empresa Gráfica da Bahia – EGBA

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