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A
festa do Dois
Patriotismo e de Julho:
conflito de classe As comemorações
na Independência da públicas da
Bahia (1822-23) independência
nacional
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Jaques Wagner
Apresentação
Jaques Wagner
Governador da Bahia
A guerra da Bahia
Ubiratan Castro de Araújo
deveriam agora demonstrar fraternidade com levante de escravos, como a insurreição negra
os irmãos europeus fornecendo os recursos em São Domingos–Haiti. Era, pois, necessá-
para o progresso de Portugal. rio enviar mais tropas para a Bahia, porque o
Finalmente, sobre a imigração, o autor rea- exército português seria a única instituição ca-
firmava o direito prioritário dos portugueses paz de assegurar a ordem pública. Os senhores
virem para o Brasil, mas nunca como colonos de engenho e seus representantes afirmavam
porque esta era “a sua alto e de bom som que não havia nenhum pe-
terra”, a terra da fortu- rigo de insurreição geral de escravos no Brasil.
“Era um novo racismo na, do enriquecimento, Os deputados brasileiros nas Cortes chegaram
europeu, filho do e nunca terra de traba- mesmo a subavaliar a população escrava no
Iluminismo, que lho. O duro labor era Brasil, como o deputado Costa Aguiar, que citou
considerava estas para os colonos estran- a Bahia como a capitania em que registrava-se
populações inferiores, geiros, que deveriam uma maior concentração de escravos e, mesmo
incapazes de se ser enviados para os lu-
aí, havia uma proporção de um escravo para
integrarem em um três homens livres. (CARVALHO, 1979). Fazer
gares mais longínquos
modelo de civilização da escravidão uma questão pública, uma ques-
e insalubres do país.
europeia e, portanto, tão de estado, era tudo o que não queriam os
Um outro tema cen-
de exercerem plena senhores da Bahia. Já tinham firmado a sua po-
tral dividia brasileiros e
e corretamente os sição em um manifesto publicado na Bahia em
direitos de cidadania.” portugueses nos deba- que afirmavam o caráter privado da escravidão,
tes das Cortes: a nova
descrita como uma escravidão doméstica que
gestão da escravidão
só incidia sobre africanos (AMARAL, 1957).
no Brasil. Os praístas
Para os donos de escravos, era um equívo-
mais exaltados, na Bahia e em Lisboa, susten-
co atribuir aos levantes, incidentes ordinários
tavam que era iminente o perigo de um grande
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de Lisboa para a Bahia. Aconteceram, então, os Até então, as divergências entre portugueses e
primeiros afrontamentos entre soldados brasi- baianos eram creditadas a bairrismos e invejas
leiros e soldados portugueses. Segundo despa- locais. O que mais impressionou a Assembleia
cho consular francês de 12 de julho: foi que este ato de rebeldia foi cometido exclu-
sivamente por brasileiros cultivados e ricos, o
Não fira a firmeza do coronel comandante que mostrava a verdadeira complexidade e gra-
do batalhão 12, composto por 400 portugueses, vidade do problema. A questão foi remetida à
soldados da Europa, uma nova revolução teria comissão de redação da Constituição, que reco-
eclodido, o governo teria sido parcialmente reno- nheceu a legitimidade das divergências sobre
vado e a República proclamada pelos brasileiros. as relações comerciais entre o lado europeu e
(MAE/CCC. Consulat cie Bahia, fl. 137) o lado americano do império. Por isso a comis-
são sugeriu iniciar imediatamente a discussão,
No dia 3 de novembro de 1821, os oficiais dando a ocasião aos deputados de todas as ca-
brasileiros de mais alta patente tentaram um pitanias brasileiras para propor a revogação de
pronunciamiento para derrubar a Junta Gover- alguns impostos que pesavam sobre províncias
nativa. Este grupo era composto pelos seguin- de ultramar.
tes militares: tenentes coro- Se em Lisboa os resultados
néis José Egídio Gordilho de foram favoráveis aos baianos,
Barbuda e Felisberto Gomes “No dia 2 de março, obtendo a absolvição a todos os
Caldeira; majores José Maria a desmoralizada manifestantes, na Bahia os pra-
da Silva Torres, José Gabriel junta governativa e ístas aproveitaram para desen-
Daltro, Francisco da Costa a câmara municipal cadear hostilidades públicas
Brandão e Eloi Pessoa da ouviram o juramento contra os soldados brasileiros,
Silva; capitães José Antonio do general Madeira mesmo quando estavam dentro
Fonseca Machado e João An- e deram-lhe posse dos quartéis. Os afrontamentos
tonio Maria; cadete João Pri- no governo da nas ruas foram tão violentos
mo; bacharéis José Avelino província. ” que provocaram o primeiro
Barbosa e Felipe Costa Fer- grande êxodo de habitantes de
reira. Este grupo, sem trazer Salvador para o Recôncavo. Os
consigo as tropas sob seu comando, invadiu o planos golpistas do partido português eram
palácio da Câmara e tentou depor o governo. evidentes. A junta, desmoralizada, organizou a
Davam vivas à revolução portuguesa e exigiam eleição de uma nova junta de governo, na qual
a substituição da junta de governo. Era uma os portugueses recusaram-se a participar. Os
manifestação mais política do que militar. As membros recém eleitos eram todos brasileiros.
tropas portuguesas rapidamente cercaram o Os praístas concentraram seus esforços junto
palácio e prenderam os manifestantes. Foram às Cortes para obterem o controle militar da
todos embarcados na fragata Príncipe D. Pedro cidade e, pela força das baionetas, poderem do-
e enviados a Lisboa com a acusação de tenta- brar a vontade dos baianos, de modo a operar a
rem separar o Brasil de Portugal. recolonização.
A apresentação dos acusados diante do ple-
nário das Cortes provocou viva emoção. Pela A CIDADE CATIVA
primeira vez a assembleia foi obrigada a dis- No dia 15 de fevereiro, chegou ao porto da
cutir o descontentamento dos brasileiros con- Bahia o Correio Leopoldina, trazendo o de-
tra as medidas de restrições econômicas e co- creto real de nomeação do general Luis lgna-
merciais e contra o projeto de recolonização. cio Madeira de Mello para o posto de coman-
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dante das armas da província da Bahia. Com fundamente indignada com a incapacidade
a carta de ditador à mão, o general português das tropas brasileiras.
pôs, imediatamente, as suas tropas em alerta. Afinal, eram tropas treinadas para lutar
Em seguida, procurou fazer reconhecer sua contra piratas e para reprimir revoltas es-
nomeação pela Câmara de Salvador. A reação cravas e não para o combate entre exércitos
do partido brasileiro foi imediata. As tropas regulares, como os portugueses. No dia 2 de
locais aclamaram o brigadeiro Manoel Pedro março, a desmoralizada junta governativa
que, por sua vez, recusou-se a passar o co- e a câmara municipal ouviram o juramen-
mando militar para o general português. Es- to do general Madeira e deram-lhe posse no
tava armado o conflito. O afrontamento que governo da província. A república autônoma
os militares portugueses tanto procuraram da Bahia estava completamente submissa
tinha finalmente se tornado inevitável. Era à ditadura do general português, ao partido
o momento de demonstrar a inutilidade das português e à sua facção mais radical, o Clube
tropas compostas por cabras. Era também a da Água Branca. Todas as tropas da 1ª Linha
oportunidade de acabar com qualquer velei- e de Milícias, compostas por brasileiros, ti-
dade de autonomia política da elite baiana, nham sido dissolvidas e os poucos fugitivos
organizada em torno de uma junta governa- que retornaram à cidade foram enquadrados
tiva e de uma câmara municipal tradicional- em regimentos comandados por oficiais por-
mente prestigiosa. tugueses. Receberam todos as suas rações e o
O afrontamento militar ocorreu no dia 19 pagamento dos seus soldos. Uma anistia geral
de fevereiro de 1822. E, no dia seguinte, as foi proclamada. Era a paz lusitana.
tropas brasileiras tinham sido desbaratadas, Seguros de sua vitória, o general Madei-
deixando a elite local, como a senhora de en- ra e seus partidários nem suspeitavam que
genho Maria Bárbara Pinto da França, pro- tinham desastradamente destampado a Cai-
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A Guerra da Bahia
xa de Pandora. O resultado da sua peque- Antes mesmo das jornadas do 18 ao 20, acon-
na revolução portuguesa nesta província de teceram várias concentrações de negros nas vá-
ultramar tinha sido o forte abalo em toda a rias paróquias vizinhas. Estas reuniões foram
ordem social: as elites locais humilhadas re- muito numerosas. Os negros estavam armados
colhiam-se em orgulhoso silêncio ou fugiam e se abasteceram todos com armas do Trem de
para as vilas do Recôncavo; o poder político Guerra. (MAE/CCC. Consulat de Bahia, fl. 196)
desmoralizado pregava no deserto; a força Logo depois da derrota, estas tropas bate-
armada, adaptada ao controle daquela socie- ram em retirada para os arrabaldes da cida-
dade escravista, estava dissolvida; pobres, de, em total desordem, fora do controle e da
negros livres e escravos confundiam-se em autoridade dos seus oficiais. Esta era a guerra
uma multidão sem controle. O grande desa- deles, feita do seu jeito, não somente contra os
fio para estes portugueses, impregnados por soldados portugueses, mas também, contra os
ideias e práticas das revoluções europeias e, europeus e todos os brancos que apareciam
principalmente, fascinados pelo exemplo do pela frente. Em carta ao seu marido, deputa-
autoritarismo à La Bonaparte, era como reor- do baiano às Corres, Maria Bárbara Pinto da
ganizar uma sociedade escravista a golpes de França relatou que no dia dos combates teve
baioneta! que se refugiar em um navio holandês anco-
Batidas em plena rua, as tropas brasileiras rado no porto e viu os soldados negros e mu-
foram o rastilho de pólvora que espalhou o latos, que se retiravam pela área do Comércio
fogo da rebelião por toda a sociedade. No dia e de Água de Meninos, massacrarem várias
anterior aos combates, grande quantidade famílias de brancos, aos gritos de: “Morte aos
de armas e munições fora retirada do Trem europeus!” (França, 1980, p. 20). Um único
de Guerra, o arsenal, e ar- destacamento conseguiu re-
mazenada nos quartéis dos tirar-se ordenadamente para
dois principais batalhões o norte, na direção do Açu da
brasileiros, o de artilharia, Torre, bastião da legendária
comandado pelo brigadeiro família Pires de Carvalho e
Manoel Pedro, e o batalhão Albuquerque. Ainda assim,
de Caçadores. Para esses estas tropas cometeram vá-
quartéis convergiram os vo- rios atos de violência contra
luntários do 3° e 4° regimen- todos os que se pareciam
tos de milícias, compostos com portugueses, o que pro-
por negros e mulatos, aos vocou reclamações de um se-
quais se juntaram os milicia- nhor de engenho aliado dos
nos do 2° regimento, com- seus oficiais no comando.
posto por brancos pobres e A maioria das tropas em
os soldados do corpo de Or- desordem transformou-se
denanças, além de inúmeros em vários grupos de guer-
civis. Receberam todos ar- rilha, aos quais se juntaram
mas e munições.
desertores e escravos fugi-
dos, que desde já fustigavam
O cônsul francês Guinebau
os conquistadores da cida-
assim registrou a distribui-
de. Foram registradas várias
ção de armas entre popula-
concentrações desses rebel-
res: Maria Quitéria
a cidade para se instalarem nos engenhos e vi- poder do absolutismo real. Qualquer que fos-
las do Recôncavo baiano. Deixavam para trás, se o destino do Império Português, esta elite
na capital da província, os portugueses da Praia tentava a qualquer custo evitar a sua exclusão
e seus soldados, sós frente a frente, com a popu-dos postos e cargos de comando do regime
lação mais pobre, negra e em franca insurreição que viesse a se instalar. Esboçou um gesto ino-
contra os ocupantes europeus. Esta população perante às vésperas do conflito do dia 18, ao
pobre, por sua vez, não tinha muitas alternati- encarregar o tenente coronel comandante das
vas. Para estes, sem laços de amizade ou de fa- Ordenanças, a tropa de polícia, da retomada
mília com os habitantes das abarrotadas vilas do controle da cidade. Nem o comandante ti-
do Recôncavo, ou bem abandonavam os seus nha mais controle sobre os seus soldados que
ofícios e suas casas para se aglomerarem nas aderiam em massa aos militares brasileiros,
matas insalubres em volta da cidade, ou bem nem tinha qualquer autoridade sobre as tro-
suportavam na cidade a progressiva falta de gê- pas portuguesas!
neros alimentícios e os mata-cabras praticado Um mês depois, a Junta experimentou outro
pelos portugueses. gesto de resistência, ainda que tímido, contra
Assim, antes que a elite baiana tivesse esbo-a ditadura do Madeira. Em razão de uma es-
çado qualquer ação política ou militar, o generalcala forçada, arribou no porto de Salvador o
Madeira e seus partidários da Praia já estavam navio São José Americano que transportava
derrotados politicamente. Em pouco mais de um destacamento de 300 soldados sob o co-
um mês tinham demonstrado total incapacida- mando do general Francisco Joaquim Carreti.
de de assegurar um mínimo de ordem, mesmo Imediatamente, o general Madeira ordenou
entre os seus próprios soldados, ainda que ti- o desembarque deste destacamento para co-
vessem concentrado todo o poder político e mi- brir os claros deixados em seu contingente
litar na capitania da Bahia. No dia 31 de março, pelos combates noturnos na capital, ao que se
o governo militar lançou uma proclamação à opôs firmemente o general Carreti, apoiando-
população da cidade condenando e êxodo para -se em dois fortíssimos argumentos: inicial-
o interior. No dia seguinte, a desmoralizada jun-mente, ele tinha recebido ordem expressa do
ta civil fez o mesmo. Assim, um grupo de revo- príncipe regente do Rio para conduzir este
lucionários portugueses, que pretendia regene- destacamento a Lisboa; em seguida, segundo
rar o império, não conseguiu sequer organizar os critérios da hierarquia militar, não estava
a vida cotidiana em uma cidade ocupada. ele, general brigadeiro mais antigo, obrigado
a aceitar ordens de um general mais novo no
posto do que ele. A Junta alegou, inicialmente,
A REAÇÃO DOS que não havia recursos para cobrir as despe-
HOMENS BONS sas com a manutenção e pagamento dos sol-
Nos primeiros dias que se seguiram ao gol- dos para esta tropa. Os comerciantes da rua
pe militar do Madeira, a elite política da capi- da Praia responderam prontamente com uma
tania, representada na junta Provisória de Go- subscrição em dinheiro que ultrapassava lar-
verno e na Câmara Municipal, reagiu com uma gamente a soma requerida pela Junta. Esta
timidez e pusilanimidade à toda prova. Na ver- contra-argumentou que a tropa não deveria
dade, eles tentavam manter um pé na cidade e desembarcar porque tinham recebido ordens
o outro no fundo do Recôncavo; lançavam seus do príncipe regente do Rio, cuja autoridade
olhares para Lisboa, de onde emanava o po- deveria ser reconhecida.
der revolucionário das Cortes, prestando bem O general Madeira reagiu através de corres-
atenção ao Rio de janeiro, de onde emanava o pondência datada de 25 de março, na qual
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Praça da Lapinha
tra Madeira. Francisco Brandão era membro dois governos não se fariam por esperar. Os
da Câmara Municipal de Salvador e redator doportugueses tomaram a iniciativa de ataque
contra a vila da Cachoeira, logo no dia 25 de
jornal Constitucional de onde sustentou a pro-
paganda antiportuguesa, até ser obrigado a fu-
junho, em que se aclamava a autoridade do
príncipe regente Pedro. Uma goeleta bombar-
gir para Santo Amaro que o elegeu para a nova
deou a Cachoeira, mas foi repelida pelos seus
junta governativa. Sua adesão marca a partici-
pação no governo dos brasileiros dos setoreshabitantes. No dia 10 de julho, canhoneiras
populares. Brandão era um homem de cor, um portuguesas fizeram uma incursão na ilha de
mulato, recém-chegado de Coimbra, onde haviaItaparica, mas bateram em retirada rapida-
concluído o curso jurídico. Era um dos mais ou-
mente.
sados defensores de uma nova nacionalidade A junta de Cachoeira conseguiu reunir ini-
brasileira, diferente da portuguesa. Como si-
cialmente uma força de 1.500 homens. O prin-
nal de ruptura com os europeus, acrescentou a
cipal deste contingente era formado por mi-
seu nome, de origem portuguesa, sobrenomes licianos do Recôncavo, aos quais se juntaram
americanos. Primeiro adotou o sobrenome de centenas de soldados errantes que tinham in-
Gê-Acaiaba, em homenagem aos índios do Bra- tegrado os batalhões derrotados recentemen-
sil; em seguida, Montezuma, em memória do te em Salvador. Não formavam um exército re-
último imperador asteca, chamando-se pois degular, mas bloqueavam com sucesso as vias de
Francisco Gê-Acaiaba Montezuma. acesso para a cidade e tinham plantado balu-
A presença destes dois destacados líderes
artes em outras ilhas da baía, assegurando as-
da província simbolizava a aliança entre os sim uma rede defensiva que opunha obstáculo
grandes proprietários rurais e os nacionais eficaz a possíveis incursões navais contra vilas
urbanos. A eles se juntaram outros repre- e engenhos situados no fundo da baía. Na ver-
sentantes das vilas insurretas. De agora pordade, os baianos retomaram a mesma estraté-
diante haveriam dois governos constituídos gia adotada no século XVII contra os invasores
na Bahia: o do general Madeira, sediado na holandeses. O duplo objetivo, ofensivo e de-
cidade do Salvador, apoiado pelos negocian- fensivo, era impor o bloqueio ao fornecimento
tes, pela tropa e pelos marinheiros, obediente
de gêneros alimentícios e, ao mesmo tempo,
às Cortes de Lisboa; o da Junta de Cachoeira,
impedir as ações dos bandos de desertores e
sediado no fundo da baía de Todos os Santos,quilombolas, espremidos nas matas do entor-
apoiado por senhores de engenho, proprietá- no da cidade, contra as vilas e propriedades do
rios rurais e representantes do povo descon-Recôncavo.
tente de Salvador. Os portugueses contavam com uma tropa
de 3.000 soldados do exército regular e mais
A CIDADE SITIADA os marinheiros portugueses dos navios que
Os primeiros combates entre as forças dos passavam por Salvador e os da esquadra de
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os soldados para este novo exército. de 327 escravos mulatos claros. Além destes
Veterano da guerra de independência da contingentes, é muito difícil estimar o contin-
Colômbia, sob o comando de Simon Bolívar, gente negro em batalhões onde se misturaram
Labatut tinha ainda vivas em sua memória soldados negros, com recrutas escravos ne-
as práticas usuais dos exércitos libertadores gros, mestiços e sertanejos no exército de La-
hispano-americanos, pelas quais os escravos batut. No entanto, a partir do depoimento do
eram recrutados maciçamente em troca da sua botanista Antonio Muniz de Souza, voluntário
alforria. Uma ampla proclamação foi lançada recusado por Labatut para o cargo de enfer-
aos escravos da Bahia. Pedidos formais foram meiro, podemos crer que eram muitos os ne-
dirigidos às câmaras das vilas confederadas de gros naquela tropa.
Santo Amaro e São Francisco à também junta Segundo ele, o maior flagelo do exército
de Cachoeira. Labatut pedia que os senhores eram as infecções e gangrenas provocadas
liberassem parte de seus escravos para a for- pelos bichos-de-pé (tunga penetrans). Ora, os
mação de um corpo de primeira linha a ser co- soldados ex-escravos, habituados a andarem
mandado pelo capitão José Gomes Moncorvo. descalços por força da interdição costumeira
Este pedido caiu como uma bomba nos meios dos calçados aos cativos, eram naturalmen-
senhoriais. Tem-se notícia de que apenas em te os prováveis pacientes deste mal. Também
Santo Amaro alguns senho- a tradição oral consagra esta
res liberaram escravos par- imagem do exército de Labatut
dos e mulatos claros para “Os revolucionários como tropa negra:
formarem dois batalhões. mais radicais já
(ACCIOLI, 1937). A negati- estavam divididos Fecha a porta
va formal dos senhores de sobre a presença Lá vem Labatut,
escravos não tardou. Foi ar- militar portuguesa Com tropa de negro
gumentado que ainda havia no Brasil.” Parece urubu. (DP)
muitos trabalhadores livres
na província e que o recruta- A libertação de escravos
mento deveria incidir prioritariamente e mais para o serviço do exército, ou mesmo a liber-
rigorosamente sobre estes. Argumentou-se, tação de escravos por uma autoridade pública,
ainda, que a convivência na tropa de membros sem indenização do seu valor ao antigo se-
de famílias de pequenos proprietários, com nhor, era um fato político novo e revolucioná-
ex-escravos que tinham sofrido castigos cor- rio na Bahia. Mais revolucionário ainda o fato
porais, podia ensejar atos de vingança e rebe- de homens de todas as cores, de todas as con-
liões. (PINHO, p.258) dições civis, estarem sendo chamados para a
O que foi negado, foi tomado ou veio por constituição de um exército novo, instrumento
si só. Em tempo de guerra, os militares costu- da vontade política de uma nação que se es-
mam requisitar o que necessitam pela força tava constituindo naquele momento. Outros-
das próprias armas. Labatut não foi diferente. sim, os comandantes e oficiais de milícias ne-
Em muitos engenhos ele os apropriou de bens, gras e mulatas acabavam de ser incorporados
víveres e escravos que foram incorporados no no exército de Labatut como oficiais de linha,
exército. Muitos outros fugiram de seus senho- com o mesmo privilégio de patentes e postos
res e alistaram-se no exército para ganhar a li- que gozavam os oficiais brancos, filhos das
berdade. Além do destacamento vindo do Rio, famílias proprietárias da Bahia. De fato, La-
os Libertos do Imperador, certamente formou- batut estava fazendo no Recôncavo mudanças
-se um outro Batalhão de Libertos, com cerca tão estonteantes para a sociedade escravista
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Brasil manu militari, até por considerarem que progressão anterior e podia esperar que a
os seus custos seriam muito elevados para Por- sua tropa ainda pudesse ser de alguma ser-
tugal. Acreditavam que era preferível nego- ventia para a defesa do regime constitucio-
ciar com um Brasil independente um bom nal.
tratado comercial, como fizera a Inglaterra Um fato novo, produzido pelo governo
com Portugal em 1810, assegurando vanta- do Rio de janeiro, acelerou a decisão por-
gens e privilégios para o comércio e imigra- tuguesa pela retirada da Bahia. Em março
ção portuguesas. de 1823, chegou à Bahia uma divisão naval
Da parte dos conservadores portugueses, composta por 9 navios, comandada pelo
o evidente desastre político dos jacobinos Lord Cochrane, um almirante inglês, jaco-
na Bahia justificava as providências para a bino expatriado como Labatut, a serviço do
substituição do general Madeira de Mello imperador Pedro I. Não era uma esquadra
pelo general José Carlos de Saldanha Olivei- numerosa como a portuguesa comandada
ra e Duan, cujo decreto de nomeação chegou por João Félix. Sua tripulação ainda era mal
a ser assinado pelo rei, no dia 13 de feverei- treinada, mais parecidos a piratas do que
ro de 1823. O general substituto renunciou aos marinheiros da Royal Navy. No entanto,
a nomeação por considerar insuficientes os nos primeiros combates não deixou nenhu-
meios para fazer a guerra aos brasileiros na ma dúvida sobre a sua capacidade de provo-
Bahia. (AMARAL, 1957, p.306). Pior ainda car perdas crescentes à marinha portugue-
para os seguidores do partido da Praia na sa. Para os praístas da Bahia, a sua marinha
Bahia era a progressão, em Portugal, da re- era a espinha dorsal para a regeneração do
belião contra o regime das Cortes, liderada império marítimo português. Na sua lógica
pelo conde de Amarante, contando com o de marotos, defenderam o porto até o últi-
apoio da Santa Aliança. Em razão do tem- mo momento. Era preciso agora salvar os
po de travessia atlântica, o general Madeira navios. E assim eles fizeram vela!
não podia estar informado no dia 1° de ju- Para os sitiantes também, estava na hora
lho que as tropas da restauração absolutista de levantar o cerco. A desorganização pro-
alcançaram as ruas de Lisboa no dia 24 de vocada pela guerra produzira estragos ir-
junho, mas certamente estava a par de sua reparáveis no Recôncavo açucareiro. Os
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REFERÊNCIAS
FONTE MANUSCRITA
MAE/CCC Consular de Bahia - Arquivos do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Fança. Quay D’Orsay - Correspondance
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A Bahia na
independência nacional
A história da emancipação dos povos é a para levar a efeito a nossa aspiração de nos se-
parte mais importante da existência deles, pararmos do reino europeu.
porque exprime o pensamento mais nobre O governo, ao contrário do que se deu no
que pôde animar os seres, o da sua própria Sul, era adverso ao sentimento do povo baiano,
liberdade, visto ser ela a mais justa aspira- desprezava a nossa gente, se apoiava em força
ção dos homens. É também a independência armada, excelente pelo seu espírito de corpo
das nações o que mais as envaidece e exalta e seu valor, provado na campanha peninsular,
o sentimento pátrio pelo exemplo que re- assim como na parte mais rica e poderosa da
presentam os sacrifícios feitos para obtê-la. burguesia, isto é, na classe comercial.
Entre os povos dos quais a emancipação Esta classe conservadora se tinha tornado
não custou dispêndios de coragem, perseve- política, e, como os seus interesses se ligavam
rança e valor, desmerece e se oblitera com à metrópole, fortemente se opôs à nossa inde-
facilidade o patriotismo, por não terem pre- pendência.
sentes na vida os mais nobilitantes incenti- Em 10 de Fevereiro de 1821 rebentou aqui
vos das suas capacidades e energias. uma revolução que era destinada a secundar a
Dá-se na historia do Brasil a circunstân- grande reforma da monarquia, iniciada na ci-
cia curiosa de se haverem passado na Bahia dade do Porto no ano anterior, quando a nação
os fatos mais notáveis e dignos de citação portuguesa havia reagido contra os seus longos
da sua independência, justamente aqueles sofrimentos, repelindo os princípios do regime
em que foi preciso empregar esforço e bravu- caduco do absolutismo real.
ra, pois foi aqui a cena dos seus lances trágicos, Aqui, em 10 de Fevereiro, as tropas da guar-
dos acontecimentos de celebridade e refevo, nição, os portugueses e os brasileiros natos
daqueles que se consideram como mais nobi- confraternizaram todos no mesmo pensamen-
litantes entre as nações cultas. to, derrubaram o governo e constituíram uma
A independência foi levada a efeito no sul do junta governativa, de modo que o Conde da
Brasil com facilidade e sem trabalho por par- Palma, o qual fora investido da autoridade pela
te do povo, visto que foi realizada pelo próprio monarquia absoluta, não quis fazer parte da
governo. administração revolucionária e se retirou para
Contra tudo o que razoavelmente era lícito o Rio de Janeiro no navio de guerra inglês Ica-
esperar, foi o príncipe regente D. Pedro, o qual rus. Assumiu o poder a Junta Provisional, nome
havia recebido do governo, português a mais que havia tomado a nova forma da autoridade
alta investidura que podia existir no país, após executiva.
a retirada da corte e do soberano, quem se pro- Seguiu-se a esta revolução da Bahia a que
nunciou pela separação da metrópole, desobe- rebentou no Rio de Janeiro, no fim do mes-
decendo ao seu governo e depois declarando mo mês de Fevereiro, e da qual resultou a
preferir a morte á ficar dependente da autori- volta da corte portuguesa e do rei D. João VI
dade que tinha desfeito os seus atos e o havia para a Europa.
desautorado e repreendido severamente. O príncipe D. Pedro, ambicioso, ardente,
Aqui não tivemos um tão precioso elemento inculto, pouco ponderado, mas valente, re-
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
1
313
Braz do Amaral
Cabocla - Acervo Fundação Pedro Calmon - Nelson Araújo
soluto e impressionável, se deixou levar pela pelo militar; Paulo José de Mello Azevedo e
bela obra de ser o fundador de um Estado Brito pela lavoura; Francisco Antônio Filguei-
novo na America, o qual, mais tarde, outra ras pelo comércio; Luiz Manoel de Moura Ca-
vez se juntaria à coroa portuguesa, quando bral, pela cidade; José Caetano de Paiva Perei-
lhe chegasse a ocasião de ocupar o trono de ra e José Lino Coutinho, secretários.
seus avós, como era de lei na monarquia he- A Junta Governativa eleita foi constituída
reditária de Portugal. por Francisco Vicente Vianna, presidente,
A Junta Provisional foi substituída por Francisco Carneiro de Campos, secretário,
outra eleita, mas, tanto uma como a outra Manoel Ignacio da Cunha Menezes, José
obedeciam ao governo da metrópole, em Cardoso Pereira de Mello e Antônio da Silva
Lisboa. Telles.
A Junta Provisional se compôs dos seguin- O instinto popular levava os baianos para
tes representantes das classes da sociedade: o governo do Rio de Janeiro, mas este era
Francisco José Pereira, Francisco de Paula e o sentimento dos que liam e da massa dos
Oliveira e Manoel Pedro de Freitas Guimarães cidadãos.
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
32
Braz do Amaral
Camara de Sao Francisco do Conde - Acervo Fundação Pedro Calmon
Braz do Amaral
da Silva Coimbra, por Santo tuna dada como acontece
Amaro o coronel Francisco “As vilas aos bens herdados, tendo
Elesbão Pires de Carvalho e sublevadas foram bastado para alcançá-la
Albuquerque, por Inhambupe concentrando os seduzir a ambição de um
Simão Gomes Ferreira Vello- seus contingentes príncipe.
so. na base da Aqui, não foi assim, feliz-
Entraram depois para o península, em mente para nossa honra! Se
mesmo Conselho os repre- forma de ângulo, o que enobrece os homens
sentantes que foram chegan- na qual está é o que resulta do trabalho
do: Miguel Calmon du Pin e situada a cidade da e é conquistado pelo valor,
Almeida, Manoel da Silva Ca- Bahia e além disto podemos nos gloriar do
rahy, Manoel Dendê Bus, Teo- armaram alguns grande feito que é produto
dorio Dias de Castro, Manoel barcos, com os da nossa vontade e da nos-
dos Santos Silva e Francisco quais organizaram sa constância e que alcan-
Ayres de Almeida Freitas.Ten- uma flotilha que çamos pagando a pátria o
do o governo constituído con- muito mal fez aos pesado tributo da guerra e
tra elas, as vilas sublevadas portugueses.” do sangue.
sustentam uma guerra contra Ganhamos a indepen-
o governo. dência sem traição, nem
Este tem o seu apoio na po- conchavos, em batalhas da-
pulação portuguesa quase toda, na classe das à luz do sol, como os povos considera-
comercial que é poderosa pelos recursos de dos os mais nobres da terra tem realizado
que dispõe e na guarnição que é numerosa as suas aspirações liberais.
e aguerrida. Já as vilas da Bahia se haviam ligado e
Elas, porém, não se intimidam com isto, constituído um governo nacional, em Agosto
pegam nas armas os cidadãos, formam cor- de 1822, quando* o príncipe regente pro-
pos de voluntários, distribuem-se pelos nunciou a resolução do Ypiranga, em Setem-
postos ameaçados, constroem fortificações bro, o que demonstra não ter a revolução
e vem cercar a capital. baiana orientação vinda do Sul, nem depen-
Aqui se percebe o sentimento de uma na- der do que lá se fazia. Pelo contrário, prece-
cionalidade que já não é a portuguesa e se deu as resoluções do príncipe e começou a
nota um vigor que debalde se procura nos guerra contra a metrópole à sua revelia.
acontecimentos do sul. As vilas sublevadas foram concentrando
Aqui aparece a raça brasileira que é um os seus contingentes na base da península,
povo novo, reagindo, sabendo querer uma em forma de ângulo, na qual está situada a
cousa, trabalhando para a conseguir e ob- cidade da Bahia e além disto armaram al-
tendo-a, através das dificuldades, porque guns barcos, com os quais organizaram uma
isto não foi fácil. flotilha que muito mal fez aos portugueses.
Orgulhamos-nos justamente da nossa A cidade começou a sentir falta de víveres
emancipação, porque ele não foi levada a frescos. O terror afastou primeiro os condu-
efeito na Bahia pelo governo, como no Rio tores das embarcações abastecedoras, pela
de Janeiro e nas províncias do Sul, onde pressão que as tropas lusitanas exerciam
não custou sacrifícios aos brasileiros, pois sobre os nacionais, de todas as classes e
teve todas as características de um presen- condições.
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
36
Mais tarde, após os nefastos aconteci- Este ataque, conduzido com vigor pelo co-
A Bahia na independência nacional
mentos de Fevereiro, tendo muita gente que ronel João de Gouveia Osório, comandante
possuía bens e recursos se retirado da cida- da legião constitucional lusitana, foi repeli-
de, encontraram os produtores quem com- do com perdas consideráveis. Estiveram os
prasse os seus gêneros, sem a precisão de portugueses à ponto de triunfar e já tinha o
chegar até aqui, e, quando a flotilha dos bar- tenente-coronel Barros Falcão, que dirigiu o
cos armados em canhoneiras, dominou as combate nas alturas de Pirajá, dado a ordem
bocas dos rios que desembocam na Bahia, de retirada, quando um engano do cometa
as suas enseadas e estreitos, a capital ficou que o acompanhava produziu toque diver-
privada quase completamente de frutos e so e se mudou a sorte da batalha, porque as
legumes. tropas europeias recuaram.
Tentou o general português destruir a re- Pensaram os comandantes portugueses,
sistência dos independentes da ilha de Ita- de acordo com os negociantes da capital,
parica, abrindo o transito para o distrito fér- sempre muito adversos à independência, fa-
til de Nazareth e Jaguaripe, mas o combate zer sair a esquadra para bloquear o porto do
do Funil lhe foi fatal, porque as canhoneiras Rio de Janeiro e dar a mão aos defensores da
portuguesas encalharam na maré vazante e praça de Montevidéu, o que nunca puderam
sofreram fogo muito vivo dos defensores da fazer, perdendo para esta operação o me-
posição que eram, à principio, em muito pe- lhor tempo, do que lhes resultou um prejuí-
queno numero, mas que foram depois consi- zo irreparável.
deravelmente reforçados. Já tinha, então, vindo do Rio de Janeiro
O capitão Taborda, que tinha comanda- um oficial superior para comandar as tro-
do o ataque, teve de retirar com perdas, ao pas que os independentes organizavam em
passo que os combatentes independentes Pirajá e que era preciso transformar em um
do Funil tiveram poucas baixas porque ati- exército regular.
ravam á coberto dos arbustos da praia e ou- Tal comandante foi o general francês Pe-
tros abrigos naturais. dro Labatut, o qual trouxe um pequeno so-
A esquadra portuguesa destacou os seus corro em homens e mais considerável em
cruzadores mais ligeiros para perseguir os armamento, cuja falta era muito sensível em
barcos armados em guerra dos independen- toda a parte, para uns independentes, assim
tes, mas estes sempre escapavam, algumas como a de munições.
vezes com grande custo, mas correndo con- O governo provisório, entretanto, institu-
siderável perigo, e arrostavam com o maior ído na Cachoeira, multiplicava os seus esfor-
arrojo os inimigos. ços e a tudo provia.
Conhecendo o comando português, o Os pontos fortificados do litoral recebiam
erro de haver abandonado Itaparica, pois ali pólvora fabricada no interior da província e
haviam os revoltosos se estabelecido com assentavam-se peças tiradas dos engenhos
vantagem muito evidente, mandou atacar a de cana.
ilha e inutilizar a sua fortaleza, Que os por- A vontade de querer centuplicava as
tugueses, só em parte, conseguiram, não se energias e transformava tudo, operando mi-
mantendo aliás ali. lagres.
Recebeu reforços o general Madeira e Foi nestas condições que o governo por-
resolveu atacar o exército nacional que se tuguês pretendeu investir do comando geral
organizava na base da península, em que se na Bahia, ao general Saldanha.
acha a capital, conforme já foi dito acima. Este oficial superior, porém, não aceitou
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
7
373
Braz do Amaral
Câmara Municipal de Salvador - Gilberto Ferrez
a incumbência, pelo que o general Madeira de Campos, que comandava a armada por-
continuou a sua difícil missão. tuguesa.
Em 7 de Janeiro, a esquadra portugue- Os negociantes viam que a inação da es-
sa levou um ataque a Itaparica, a fim de se quadra acabaria comprometendo a causa.
apossar da ilha e limpá-la de patriotas. Alguns reforços chegados de Portugal ti-
A operação devia agir como uma tenaz nham agravado a penúria de viveres, pois a
que, tendo o seu vértice na ponta norte, cidade só os recebia quase exclusivamente
onde está a fortaleza de S. Lourenço, se fe- por mar, do exterior, ou da vila de S. Ma-
chasse com os dois braços sobre a povoação. theus e do Rio da Prata.
Os patriotas lutaram um dia inteiro, dia Pensaram, então, pessoas importantes do
de perigo e de dor. partido português em destituir o chefe de
Antônio de Souza Lima, que tinha a res- divisão Felix Campos, assumindo o coman-
ponsabilidade do comando da ilha, e João do da esquadra o imediato Manoel Vascon-
das Bottas se cobriram de glória e o bravo celos Pereira de Mello.
Galvão a escreveu com o seu sangue, per- Houve, porém, um pronunciamento na
dendo a mão esquerda levada pela metralha marujada da nau D. João VI e Félix Campos
inimiga. continuou a comandar a frota. Foi preciso
A esquadrilha portuguesa foi repelida e pensar em reserva de mantimentos para a
os nocionais se mantiveram firmemente em tropa.
Itaparica, chave das comunicações com a As pessoas pobres que já sofriam muito
barra da Bahia, isto é, com o mar largo para não puderam mais encontrar alimentação.
o lado do sul. Havia os portugueses proibido a saída do
A situação na cidade se tornou cada dia povo para ocultar a miséria que reinava na
mais seria, por causa das divergências entre cidade.
o general Madeira, comandante das forças Quando, porém, a falta dos gêneros de
de terra e o chefe de divisão Felix Pereira primeira necessidade se tornou tão aguda
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
38
que não havia meio de disfarçá-la mais, foi dá notícia deste esplêndido espetáculo ao
A Bahia na independência nacional
permitida a saída das bocas inúteis. governo em um ofício que foi expedido do
O estado da questão alimentar não era, mar, no mesmo dia, por um navio de aviso
porém, menos grave entre os sitiantes do para o Rio de Janeiro.
que entre os sitiados. Assim expirou o poder português no Brasil!
O exército atacante sofria também muito Se a guarnição portuguesa se tivesse
por insuficiência de víveres e era atormen- mantido aqui, quão só todo o norte do Brasil
tadíssimo pelas moléstias, especialmente o teria ficado sujeito a Portugal, como é bem
impaludismo. provável que mesmo no Sul a independên-
Estas circunstâncias tornaram atroz o cia houvesse desaparecido, pois pouco tem-
sofrimento dos Joaquim Moniz Barretto de po depois, quando faleceu D. João VI, todos
Aragão, Antônio Augusto da Silva, Manoel os que conhecem a história do Brasil e de
Gonçalves Maia Bittencourt e coronel Felis- Portugal bem sabem que, tendo se dado a
berto Gomes Caldeira. circunstância de caber a coroa lusitana ao
A Junta portuguesa, reduzida a dois úni- mesmo imperador do Brasil, não é difícil
cos membros, rea- conjecturar o que poderia ter acontecido, se
lizou a sua ultima a independência só existisse na parte deste
“A independência sessão no dia 1°. de país onde ela havia sido feita pelo príncipe,
na Bahia foi uma Julho, resolvendo le- e onde não havia o espírito de energia pa-
conquista nobilitante, var o arquivo da sua triótica e revolucionaria que tanto agitou
cuja glória guerreira, repartição e o retra- aquele período da nossa vida política.
diamantina e pura, to do rei D. João VI, Mesmo que tais circunstâncias não vies-
isenta de traições e para Lisboa que es- sem a ocorrer, a campanha da Bahia é o fato
de conchavos, tem tava no salão do pa- mais notável da independência, não somen-
luz bastante para dar lácio, embarcando te por ter sido o lugar em que ela foi levada
fulgor a independência com tais objetos na a efeito pelo povo com intenso sacrifício e
de todo o Brasil.” galera Mercúrio. muita glória, como pelo lado moral da ques-
Às 4 horas da ma- tão onde não havia o espírito de energia pa-
drugada, ao sinal triótica e revolucionaria que tanto agitou
convencionado de um tiro de peça dispa- aquele período da nossa vida política.
rado do forte Santo Alberto, as tropas por- Estamos há cem anos e podemos falar
tuguesas embarcaram nas lanchas que as com verdade.
esperavam e foram distribuídas as praças O general Madeira não era um oficial ca-
pelos navios para isso destinados. paz de grandes operações estratégicas, mas
O general Madeira embarcou na fragata resistiu nove meses com poucas tropas, em
Constituição. Havia sido numerosas as so- condições cada vez mais precárias, porque a
licitações de comerciantes e indivíduos ri- esquadra não o ajudou como devia.
cos para seguirem com suas famílias, mas Fiel ao seu juramento militar e ao seu
os transportes que foram 86, não chegaram país, ele resistiu a todas as tentativas de
para todos os pretendentes. suborno com serena e nobre calma, não ha-
O deão, julgando extinta a sua autorida- vendo dinheiro que o comprasse nem inte-
de, também seguiu para Portugal. Pela ma- resse de postos e aumentos que o dobrasse
nhã inteira, até cerca de duas horas após o a uma falsidade que era contrária ao seu ca-
meio dia, saíram os navios do porto, carre- ráter de homem honesto.
gados de gente e objetos valiosos. Cochrane Nem todos fizeram a mesma coisa!
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
9
393
Braz do Amaral
Compare-se o seu procedimento ao de ou-
tros mais graduados do que ele, e é fora de
dúvida, que foi Madeira quem revelou a tem-
pera sisuda e firme dos antigos portugueses.
Se não venceu, também não traiu, nem ca-
pitulou!
Quanto a Bahia, também ela lavou o Bra-
sil todo desta observação pouco airosa que
resulta do que instintivamente sentiam os
escritores que, há poucos meses, no sul do
país, por ocasião das festas de 7 de Setem- Forte São Pedro
bro, diziam que a independência se havia
feito por um conchavo, combinação ou acor- ada a nossa de revezes e de triunfos, vitória
do, sem ter custado sacrifícios de sangue. conquistada a ponta da espada, com o sofri-
Felizmente aqui não foi assim, para honra mento, o altruísmo, a coragem, a abnegação
da nossa nação! levada ao sacrifício de todos os bens, do san-
Tão tenaz e firme foi a resistência dos gue e da vida.
portugueses, como impetuoso e bravo foi o A independência na Bahia foi uma con-
ataque feito por nós, no entusiasmo de uma quista nobilitante, cuja glória guerreira, dia-
revolução popular, com um exército feito à mantina e pura, isenta de traições e de con-
pressa, saído da leva dos cidadãos, com os chavos, tem luz bastante para dar fulgor a
transes heróicos das lutas nobres, entreme- independência de todo o Brasil.
Braz do Amaral, Imprensa oicial do Estado, na Edição Comemorativa ao Centenário da Independência da Bahia, em 1823.
Jorge Calmon
Mapa: A Independência da Bahia - Luiz Henrique Dias Tavares
da repressão somente serviu para decidir os que nativa insatisfatória, pois este pequeno porto
ainda não tinham tomado partido; para reduzir tornava-se impraticável para o escoamento de
a luta ao significado de uma ação de defesa obri- um volume maior de mercadorias, dado que
gatória dos interesses mais caros a qualquer um. demandava difícil o acesso por terra. O expe-
Um exemplo disso deram, semanas mais tarde, diente atendia às urgências da comunicação;
os habitantes da Povoação de Maré, também não às solicitações do transporte, organizado
brutalmente bombardeada. segundo as facilidades da via fluvial.
aquela parte, mas também para o desvio dos gio. Instalado o Conselho Interino de Governo
As lutas pela independência nos mares da Bahia
mantimentos em favor dos independentes. saiu a decisão: Itaparica devia ser evacuada.
Madeira de Melo dispunha de expeditos in- O despropósito teria se efetivado, apesar dos
formantes. Logo soube do que faziam Souza protestos dos itaparicanos, se a estes não se
Lima e sua gente, ajuntando míseras canoas juntassem os líderes de Jaguaripe e Nazaré,
para obstruírem a passagem. Julgou que uma obrigando, afinal, o Conselho Interino a ceder.
mera operação de limpeza destruiria a ameaça Cedeu, mas se manteve relutante, sem boa
pueril. E lá se foram da cidade da Bahia três vontade no fornecer os mantimentos.
barcos com algo mais de duas centenas de sol-
dados para dispersar as canoas e ir buscar a
ENTRE A ORDEM E A
Nazaré o gado e a farinha de que a capital pre-
cisava. CONVENIÊNCIA
O Funil é um trecho do canal que separa a Cachoeira era a Meca dos que desejavam
Ilha de Itaparica do continente. pegar em armas pela independência. Para ali
As margens do estreito ali se aproximam, também se dirigia, após os acontecimentos de
tendo de permeio duas ilhotas, entre as quais 10 de julho, o rico português Antônio de Souza
a água corre profunda. É um lugar ideal para Lima, que na Bahia chegara ainda criança; ele
a defesa. E apenas 12 homens o defendiam e diversos outros da melhor gente de Itapari-
quando, a 29 de julho, surgiram, tentando a ca. Trataram, estes emigrados, de organizar
passagem, os três barcos portugueses. Inicia- uma força armada para a defesa da ilha e re-
do com tão poucos defensores, breve o comba- conquista dos seus lares. Alistaram-se assim,
te convocou maior números de patriotas, que no Batalhão Cachoeirense, que a 13 de agosto
acorreram das proximidades e sustentaram a partiu da capital provisória para o desempe-
luta, até verem retroceder o inimigo. Tudo era nho de sua missão.
contra a expedição. A furiosa defesa dos invi- Desembarcando em S. Roque e seguindo,
síveis atiradores, e também o vento, soprando por terra, para Encarnação, traçaram, ali, os
do sul, de proa. seus planos.
Repelidas uma vez, as embarcações tenta- As instruções que o batalhão trazia era no
ram de novo a passagem, e ainda dessa feita, fe-sentido de garantir aqueles lugares, para me-
rido seu comandante, foram obrigadas a recuar. lhor proteção da Cachoeira. Mas os oficiais
Retiraram-se, então, para a capital, deixan- chegaram a conclusão diferente. Afinal, eles é
do entre os itaparicanos uma enorme euforia. que entendiam do ofício. Pareceu-lhes que o
A vitória do Funil garantia a posse da ria do certo seria fortificar a Ponta do Garcês, sobre a
Jaguaripe. Mas, apenas isto. Os portugueses barra falsa (caminho interior para o Morro de S.
ainda dominavam amplamente a Baía de To- Paulo, onde Cochrane estabeleceria sua base), e
dos os Santos. guarnecer de verdade o Canal do Funil, cuja pas-
sagem o inimigo queria de novo forçar.
A ILHA INDEFENSÁVEL Todas estas precauções, no entanto, seriam
Por singular coincidência, do lado dos in- incompletas sem a medida principal: a ocupa-
dependentes havia quem pensasse do mesmo ção militar de Itaparica. Luiz dos Santos Vilhena,
modo que o Brigadeiro Madeira, em relação duas décadas antes, já aconselhara isto aos por-
a Itaparica. Na Cachoeira, entendiam figuras tugueses.
influentes que também os brasileiros não ti- Decidida a ocupação, Souza Lima e parte do
nham condições de conservar a ilha. Montezu- batalhão atravessam o passo do Funil (19 de
ma era uma delas; a principal, pelo seu prestí- agosto). Alguns dias depois, preparam a primei-
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
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454
Alberto Rabello
A 1º de setembro, as canhoneiras, que tinham Ponta da Ilha dos Frades, situada em frente, de
As lutas pela independência nos mares da Bahia
sob a mira a desarmada Fortaleza de S. Louren- modo a expor ao fogo cruzado as embarcações
ço, levantam âncora. Tomam o destino da Bahia. inimigas que desde então se aventurem a pene-
É uma sensação que há muito não sentem os trar no Recôncavo.
itaparicanos, a ausência de inimigos. Eis, contu- Até então os itaparicanos tinham enfrentado
do, que cinco dias depois outras embarcações os ataques do adversário com uma peça de ca-
armadas se aproximam, ameaçadoramente. São libre 3, desprezada pelos portugueses, quando
canhoneiras, barcos e lanchões, cheios de solda- destruíram o armamento da povoação, em 10
dos. Querem desembarcar na povoação, onde já de julho, tão velha e estragada que estava.
está Barros Galvão. A luta irrompe às 6 da tarde O primeiro canhão desencravado por Barros
e prossegue até 8 da noite. Afastam-se, então, Galvão tem imediata serventia: montado sobre
as embarcações inimigas. Ao amanhecer do dia uma carreta feita de pedaços das que os portu-
seguinte, algumas se retiram, velejando para a gueses haviam desmantelado, desaloja os ocu-
Bahia, e cinco são as que permanecem defronte pantes da Ponta de Manguinho, não sem antes
da localidade, a modo de bloqueio. inutilizar uma grande barca que os protegia e
Madeira compreendera, por fim, o valor es-
tratégico da ilha, e insiste em ocupá-la. Ordena
nova investida no dia 23 de setembro, desta
feita na direção da Ponta de Manguinho, uma
saliência de terra, a uma légua da povoação.
Está construída, ali, uma das trincheiras man-
dadas fazer por Souza Lima. Na luta, os por-
tugueses perdem uma canhoneira, mas con-
seguem firmar pé no ponto desejado, donde
pretendem capturar as embarcações que vêm
do Recôncavo. Conquanto a povoação de Ita-
Flotilha de Itaparica
parica continue sitiada pelas suas barcas, seu
domínio da Baía já não é completo. afugentar as demais na direção de Salvador. É
isto a 12 de outubro de 1822.
OS CANHÕES DA FORTALEZA
Um fato vem, a esta altura dos acontecimen- NOVO ATAQUE
tos, concorrer para a mudança substancial no 14 de outubro de 1822 traz mais um ataque
quadro da luta: a aquisição, pelos itaparicanos, a Itaparica.
de material de artilharia. Com isto certamente As luzes festivas da noite de 12, suspenden-
não contavam os portugueses, quando tão ca- do sobre a povoação, no céu escuro, um claro
prichosamente encravaram as peças existentes diadema, puderam ser vistas da capital. Eram
na Fortaleza de São Lourenço. A disposição e a os Itaparicanos em expansões pelo aniversário
pertinácia do Capitão Barros Galvão, ajudadas de D. Pedro, o seu Príncipe. Naquele mesmo dia,
pelo engenho de um modesto ferreiro, o soldado tinham-no aclamado Defensor Perpétuo do Bra-
Eustáquio, conseguem o prodígio, graças ao qual sil. E erguido vivas à independência – que igno-
os defensores da ilha veem-se de posse de doze ravam já proclamada.
canhões e logo de mais dois outros, que estavam Mais que o desafio, entretanto, irrita e inquie-
abandonados e que a necessidade faz aprovei- ta Madeira de Melo a firme ocupação de Itapa-
tar. Estes canhões tornam possível guarnecer rica pelos independentes. E não só a ocupação,
de novo a Fortaleza de S. Lourenço, e artilhar a mas a expansão do seu poderio, com a artilha-
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
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Jorge Calmon
ria montada até na ilha situada defronte. Prova à face de Itaparica. Não escapam à ameaça os re-
isto o número de embarcações de guerra em- dutos brasileiros, ao norte da capital, que Laba-
pregadas neste novo ataque. São utilizados nele tut começara a sitiar.
1 brigue, 1 grande barca com 14 peças de 24, e Não é mais aflitivo esse bloqueio porque as
mais 15 canhoneiras pequenas. Mas, debalde. O embarcações do Recôncavo, manobradas pelos
objetivo dos portugueses é retomar a Ponta do que conhecem todos os meandros da Baía, sem-
Manguinho. O duelo de fogo raiva de 6 às 11 da pre conseguem iludir a vigilância do inimigo.
manhã. Afinal, a esquadrilha atacante retrocede, Os itaparicanos não se mostram menos ousa-
aproando para a Bahia. dos, nessa conjuntura; em suas canoas, põem-se
Por esse tempo, os portugueses, afastados, a apreender as embarcações em que portugue-
embora do sudoeste do Recôncavo, dominam ses fogem do Recôncavo para a companhia dos
ainda o restante do golfo. A comunicação entre o compatriotas, na cidade.
Recôncavo e o Morro de S. Paulo tem de ser feita Pretendem fazer mais, com a tentativa de
através da barra falsa, entre a contra costa sul de abordagem de uma canhoneira que é vista na-
Itaparica e o continente. vegando para a Costa da Margarida, perto da foz
do Paraguaçu. Sessenta homens armados, num
barco provido de um pequeno morteiro, devem
executar a operação. A proeza, contudo, não se
consuma. Na verdade, quase resulta num desas-
tre para os itaparicanos. Dispondo de três peças
de grosso calibre, a canhoneira leva imediata
vantagem, no combate, e afundaria, decerto, o
barco insulano se este não procurasse a prote-
ção da bateria instalada na barra do Paraguaçu.
ganizar força que se lhe possa opor. entre as ilhas dos Frades e de Maré, reteve as
As lutas pela independência nos mares da Bahia
Jorge Calmon
Mapa de Salvador - Jerônimo de Athaide - Atlas do Brasil
está pronto para a ação, provido de 5 peças de estava pronta e disposta para receber o mesmo
calibre 12. Portugual inteiro...”.
A 7 de janeiro de 1823, dá-se o maciço as- Quando o assalto se desata, por mar e por
salto português a Itaparica. Madeira de Melo e terra, os itaparicanos o repelem com extrema
João Felix decidiram acabar de uma vez por to- bravura, não permitindo aos inimigos consoli-
das com a ameaça dos insolentes itaparicanos, dar qualquer vantagem momentânea. No mar,
ocupar-lhes a ilha, desalojá-los, destruí-los. Re- os barcos da ilha, “Pedro lº” e “D. Leopoldina”,
solveram, também, restabelecer, pela força das enfrentam 10 embarcações, de igual para igual.
armas, os itinerários interrompidos até às fontes Atingido por uma bala a carreta da peça do “D.
de abastecimentos, nas bacias do Paraguaçu e do Pedro 1º”, João Botas em meia hora a conserta. E
Jaguaripe. E, talvez, se possível, levar o castigo às volta à luta. Para ajudar a derrota dos inimigos.
Vilas coligadas contra as Cortes e o Rei. Com acertados tiros, afunda duas barcas, cujos
O ataque dirige suas duas pinças contra as comandantes morrem.
praias de Amoreiras e Mocambo - a povoação No dia 8 de janeiro, pela noite, tentam os por-
principal inicialmente poupada, para ser acome- tugueses novo assalto. E mais uma vez são repe-
tida depois, por terra, pelas forças convergentes. lidos. A 9, arrastam para Bahia, melancolicamen-
No assalto, os portugueses empregam 42 embar- te, as embarcações derrotadas.
cações de guerra, afora muitas outras, utilizadas Labatut promoveu João Botas a 1º Tenente.
no transporte de tropa e outros fins. O insucesso português na invasão de Itapa-
João Botas não dormira na noite de 6 para 7, rica tem efeito dissuasório sobre os planos de
ocupado no aprontamento dos barcos que ha- Madeira e João Felix. Depois dele, a força lusa no
viam de barrar a penetração do inimigo no canal mar retrai-se, como que temerosa de novos con-
que dá acesso a Jaguaripe. frontos, limitada ao policiamento do golfo, que
Soubera-se em Itaparica que o ataque esta- também não pode manter por muito tempo.
va iminente. Com o aviso os defensores da ilha Entre os brasileiros, ao contrário, ganha in-
correram às armas. “Que viessem os marotos”! tensidade a organização da Flotilha Itaparicana.
A crescente confiança em suas forças, ante as pe- Armam-se dois novos barcos – “D. Januária” e
quenas vitórias seguidas, conferia-lhes a sensa- “Vinte e Cinco de Junho” –, cada um deles rece-
ção de invencibilidade. “... a Magestosa Itaparica bendo duas peças calibre 12 por banda (logo, 4
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
50
peças) e uma calibre 18 em rodízio à proa. Mais dores a suspendê-lo. “... sem a menor lesão”, os
As lutas pela independência nos mares da Bahia
um chega, pela mesma época, mandado da Vila barcos dos patriotas regressam a Itaparica. O fim
de S. Francisco pelo Coronel Bento Lopes Villas principal foi atingido: terminou aquele bloqueio.
Boas, que o equipa e artilha às suas custas. E um A segunda operação é empreendida dois dias de-
barco pequeno, no qual se coloca uma peça 18 pois. Seu objetivo: o aprisionamento de duas ca-
em rodízio à proa. Sua incorporação à nascente nhoneiras inimigas que foram vistas navegando
flotilha ocorre a 15 de janeiro. Confia-se o seu ar- isoladas do restante da respectiva esquadrilha.
tilhamento ao mestre Cláudio de Santa Rita. Pertencem à força encarregada de interceptar a
Para comandá-lo, o General Labatut apresen- navegação nas proximidades da Ilha dos Frades.
ta um oficial. Mas o governo de Cachoeira, cioso Participam da operação cinco barcos armados
de sua autoridade, reclama que dele devia partir brasileiros: “Vinte e Cinco de Junho”, comanda-
a nomeação. do por João Botas que tirara do comando João da
Os homens abastados Silveira Villas Boas, “Pedro 1º”,
dos lugares próximos pro- “D. Leopoldina”, “ D. Januária” e
curam contribuir para o “Vila de São Francisco”. Trava-
“Sentindo-se fortes,
equipamento do barco. Um -se o combate às 9 da manhã.
os itaparicanos já não
deles é o proprietário da Não são bem sucedidos os
admitem barcos inimigos
cordoaria existente na Ilha patriotas, na execução do seu
nas cercanias de sua
dos Frades. Doa toda a cor- plano. As canhoneiras inimigas
ilha. Resolvem, assim,
doalha requerida pelas em- conseguem evitar a abordagem
expulsar um grupo deles
barcações. e enquanto isso ocorre chega
fundeados defronte do
Também da antiga fábri- ao local da ação o restante da
Cabo de Manguinho.”
ca de pólvora do Cabrito, esquadrilha a que pertencem.
transformada em arsenal, Acossados por 13 barcos
vêm peças de artilharia e inimigos, os 5 itaparicanos têm
balas no calibre desejado. Da Cachoeira, o Con- de retirar-se. E na retirada corre sério perigo o
selho Interino de Governo manda, igualmente, barco de João Botas, quase vítima de sua temeri-
um brigue, mas ignoramos se este chega a ser dade. Acerca-se demasiadamente do brigue “Au-
incorporado. Peças de artilharia seguem tam- daz” e quando procura afastar-se, encalha nos
bém da Cachoeira. bancos de areia próximos da Ilha dos Frades.
Aumentada, assim, a esquadrilha indepen- Impedidas as outras embarcações indepen-
dente, pode ser assegurada proteção aos barcos dentes de prestarem ajuda, porque acossadas
de transporte e às comunicações pelas vilas do- pelo inimigo, o “Vinte e Cinco de Junho” tem de
minadas pelos independentes.Resta expulsar os defender-se sozinho, como um leão acorrenta-
barcos inimigos que ainda mantêm sob bloqueio do. O brigue não pôde apresá-lo; uma tripula-
alguns pontos. ção de mais de setenta marujos e uma força
A primeira destas operações efetua-se no dia de cinqüenta fuzileiros venderiam caro suas
28 de janeiro. É dirigida contra as canhoneiras vidas, numa abordagem. Pretende, pois, des-
colocadas na foz do Paraguaçu. Com os três bar- truí-lo, sob as balas de sua artilharia. Afinal o
cos artilhados - “Pedro 1º”, “D. Leopoldina” e “D. “Vinte e Cinco de Junho” desencalha e, mesmo
Januária” – João Botas investe as canhoneiras ad- tendo perdido o leme, passa entre os inimigos,
versas. Persegue-as e afinal as alcança, já às 10 indo reunir-se às demais embarcações. Mas,
horas da noite. As unidades inimigas são nove. ainda que danificado, volta ao combate, para
Raiva o combate durante três horas. O vento, a infligir novos estragos à flotilha portuguesa.
chuva e a cerração obrigam ambos os conten- Maior maravilha é que, terminada a luta, não
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
1
515
Jorge Calmon
se conta, entre os itaparicanos, nenhum morto comboio que leva para junção ao Exército Pacifi-
ou ferido. cador uma tropa chegada a Itaparica na véspera,
O resultado destas ações é infundir confiança vinda de Valença e Boipeba. Ao avistarem o com-
ao comércio entre as localidades do Recôncavo, boio, nove embarcações de guerra lusas levan-
tanto quanto obrigar a maiores cautelas as em- tam âncora para dispersá-lo. Não o conseguem.
barcações lusas. Desembarcada a tropa nas margens do Rio Co-
Entre janeiro e fevereiro de 1823, cresce ain- tegipe, Botas volta para enfrentar a esquadrilha
da mais a Flotilha Itaparicana. Incorporam-se o dos portugueses. De 1 da tarde às 8 da noite,
barco artilhado “D. Paula” e a escuna que os ca- estende-se o combate. Duas barcas lusitanas são
choeiranos tinham tomado aos portugueses em postas a pique. Por falta de pólvora as embarca-
28 de junho do ano anterior. O Conselho Interino ções dos patriotas se retiram, recolhendo-se a
atende à solicitação de Souza Lima, no sentido Itaparica.
de aproveitar a referida escuna e, assim, a envia Em fins de abril, ou princípios de maio, ganha
para Itaparica, onde é restaurada e provida de a Flotilha mais uma unidade, com a incorpora-
artilharia. ção do barco “Maria da Glória”, cujo comando é
Sentindo-se fortes, os itaparicanos já não dado ao 1º piloto Manoel Pereira da Silva.
admitem barcos inimigos nas cercanias de sua
ilha. Resolvem, assim, expulsar um grupo deles COCHRANE
fundeados defronte do Cabo de Manguinho. São, Todos estes fatos já tinham ocorrido quando,
agora, oito unidades artilhadas, as que compõem a 24 de abril de 1823, uma quarta-feira, surgem
a Flotilha Itaparicana. O inimigo alinha treze. à vista da Bahia as velas da esquadra do Rio de
Fere-se o combate às 8 horas da manhã de 8 Janeiro, tendo por comandante Lord Cochrane.
de março. Prolonga-se por quatro horas. Acaba A chegada da esquadra brasileira dissuade
sem vantagem para qualquer dos contendores. Madeira de Melo de uma nova tentativa de inva-
No dia seguinte, 9 a luta é retomada. Dura de 4 são de Itaparica. Seria o seu golpe de mão.
da tarde às 8 da noite. Ainda sem vantagem para Inteirado da atuação da Flotilha Itaparicana,
uma parte e outra. No dia 10, porém, a claridade Cochrane, a pedido de Souza Lima, fornece aos
do sol não mostra mais velas inimigas à vista. Ti- defensores da ilha balas para peças de grosso ca-
nham voltado à sua base, na cidade. libre, e também peças destinadas a substituir as
até então em uso.
INIMIGO ACUADO O almirante daria outras provas de sua admi-
Varridos do golfo, pela Flotilha Itaparicana, ração pelo valor da esquadrilha brasileira e seus
os barcos adversos de menor calado estão ago- comandantes, em que pese ter, a 31 de maio,
ra fundeados no Poço, defronte de Itapagipe, do substituído João Botas nas chefias das opera-
outro lado da Baía. Contentam-se com os frutos ções, talvez porque não o conhecia e já se tinha
de uma pilhagem esporádica em S. Tome, Itaca- entrosado com outro oficial. Isto ocorrerá de-
ranha, Ilha de Maré e circunvizinhanças. pois da última ação que a Flotilha realiza sob o
É uma pobre colheita, mas para eles a única comando direto de Botas.
possível, pois do Recôncavo nada sai para a sitia- Esta ação pertence ao conjunto de aconteci-
da cidade da Bahia. mentos que se seguiram à deposição do General
Já agora, os itaparicanos não temem arrostar Labatut, quando foi confiada à Flotilha a devolu-
até mesmo a reação do inimigo em seus pró- ção de um dos principais personagens do episó-
prios domínios. Dão testemunho disto no dia 30 dio, o Coronel Felisberto Gomes Caldeira.
de março quando, em quatro barcos armados, Felisberto Caldeira esteve preso na Fortaleza
sempre sob o comando de João Botas, escoltam o de S. Lourenço, por ordem de Labatut. Destituído
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
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este do comando, três oficiais dirigiram-se a Ita- Correspondências de Souza Lima e João Bo-
As lutas pela independência nos mares da Bahia
parica, no dia 22 de maio, a fim de buscar aquele tas colocam Lord Cochrane a par destes suces-
militar. Entregue por Souza Lima, foi João Botas sos. Ele promove João Botas a Capitão Tenente
incumbido de levá-lo até o Engenho Olaria, para da Armada Imperial, “ad referendum” do Impe-
os lados de Paripe, para reunir-se ao Exército. rador, e manda três mil pesos duros para serem
Três barcos foram escolhidos para a missão: o divididos pelas tripulações das barcas que parti-
“Vinte e Cinco de Junho”, o “Vila de S. Francisco” ciparam da ação.
e o “D. Januária”.
Já perto de terra e do final da travessia, sete OS PLANOS DO ALMIRANTE
embarcações inimigas procuraram opor-se às O emprego da valente Flotilha figura nos pla-
Itaparicanas. Eram 2 horas da tarde. Empenha- nos estratégicos do Almirante Cochrane. Quer
ram-se inicialmente no combate o “Vinte e Cinco usá-la, em combinação com suas forças, para as-
de Junho” e o “D. Januária”. Felisberto Caldeira saltar a esquadra portuguesa surta nas águas do
não consentiu que o “Vila de S. Francisco”, em porto. Manda o Capitão-de-Mar-e-Guerra Tristão
que viajava, com os três oficiais, participasse da Pio dos Santos “para dirigir e aumentar as forças
luta, exigindo que o deixasse primeiro em terra. navais de Itaparica”. O novo comandante, velho
O comandante, Felipe Álvares dos Santos, assim conhecido de João Botas, leva o material de que
fez. E, desembarcados os passageiros, mano- vai necessitar, e também engenheiros e mestres
brou, rápido, na direção do combate. de construção naval. O seu primeiro trabalho é
No decorrer deste, um barco inimigo apro- armar mais uma embarcação com um morteiro,
ximou-se do “D. Januária” possivelmente numa “que arremessasse bombas em qualquer lugar,
tentativa de abordagem. Mas, se tal pretendeu, que se pretendesse”. Feito isso, cuida de apare-
aconteceu o oposto. Uma bala partida da em- lhar doze lanchas baleeiras para operação de
barcação Itaparicana derrubou o mastro grande abordagem, para o que deveriam navegar à reta-
do comandante do “D. Januária”, tentou abordá- guarda dos navios armados. Completada assim a
-lo, mas não conseguiu, por se achar em posição Flotilha, transfere sua base para a Ponta do Man-
desfavorável à manobra. Essa presa coube a João guinho, onde é mais fácil a observação do trecho
Botas, que “vira sobre ele, ganha-lhe barlavento de Baía entre Itaparica e a cidade.
e em breve consegue abordá-lo e aprisioná-lo”. A missão atribuída ao Capitão Tristão Pio era
Era o melhor barco inimigo. Tinha uma peça de atacar, durante a noite, os grupos de embarca-
calibre 12, duas de 9, duas de 3 e 25 espingardas, ções dispersos entre a Ponta de Santo Antônio,
além de farta munição. Sua guarnição era de 28 na saída da Barra e a Fortaleza de Monserrate,
homens. também do lado da cidade
O combate terminou com “Livre o golfo de naves duas léguas para dentro. Inci-
a perseguição, pelo “Vinte e inimigas, João Botas tando-os a se juntarem, para
Cinco de Junho” e “D. Januá- dirigiu-se para a melhor responderem ao ata-
ria”, das demais canhoneiras Fortaleza do Mar, já então que, deixá-los-ia expostos à
inimigas, bastante maltrata- vazia de portugueses, investida da esquadra de Co-
das pelas balas dos itaparica- e com gente do seu chrane, que irromperia então
nos, até se refugiarem junto barco guarneceu o velho na Baía, pronta para lançar os
às grandes belonaves lusas baluarte. Sobre este seus brulotes.
fundeadas no porto da Bahia. logo surgiu, colorindo Sob a proteção das som-
Tiveram os patriotas a manhã diáfana, a bras da noite, Tristão Pio rea-
apenas quatros soldados fe- Bandeira do Brasil. ” lizou duas tentativas com este
ridos. propósito, mas em ambas as
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
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Jorge Calmon
Combate de 4 de maio de 1823
ocasiões os ventos não ajudaram. Mudou, então, pital, transportando portugueses que buscavam
a Flotilha de ancoradouro, indo para a Enseada refúgio em lugares do Recôncavo. Os itaparica-
das Mercês, bem em frente a Salvador. Aí, podia nos poupavam-lhes a vida. Um ano antes tinham
mais facilmente comunicar-se, fora da Barra, sido os adeptos da independência que haviam
com Lord Cochrane e também melhor obser- abandonado Salvador, também às escondidas,
var os movimentos da esquadra inimiga. Veria a 17para se engajar na luta em perspectiva. Agora,
ocasião mais propicia para executar o novo pla- estavam prestes a voltar.Voltaram no 2 de julho.
no, consistente em dirigir a própria Flotilha pe- Os marujos e soldados da Flotilha Itaparicana
quenos brulotes contra os navios lusos, a fim de não estiveram, porém, entre os gloriosos e esta-
incendiá-los. fados contingentes que desfilaram pela cidade en-
Cientificados disto, os comandantes dos na- galanada, no dia da vitória. Estavam ainda no mar,
vios estrangeiros surtos no porto da Bahia cui- últimos a darem por finda a demorada peleja.
daram de levar seus barcos para os lados de A caça à esquadra portuguesa, na sua retirada
Monserrate. Reuniu-se à Flotilha, por estes dias, para a ex-metrópole, operação que tanto cele-
outra bombardeira. brizou Cochrane e Taylor, foi iniciada ainda em
águas da Baía de Todos os Santos pela Flotilha
EPÍLOGO Itaparicana. Seus barcos perseguiram o inimigo
Mas, a guerra estava chegando ao seu fim. até à Barra, sob nutrido fogo de artilharia.
Bernardino Ferreira da Nóbrega comenta: Livre o golfo de naves inimigas, João Botas
“Todos estes trabalhos forão em vão; porque dirigiu-se para a Fortaleza do Mar, já então vazia
o inimigo já não cuidava se não de desocupar de portugueses, e com gente do seu barco guar-
o terreno, que ocupava na capital, e o fez em neceu o velho baluarte. Sobre este logo surgiu,
pouco tempo”. colorindo a manhã diáfana, a Bandeira do Brasil.
Pelos últimos dias de junho de 1823, muitas A epopéia concluía-se em alegoria. Era a sua
embarcações pequenas passaram a deixar a ca- merecida coroa.
Alberto Rabello
Cachoeira São Félix
Lançando mão de todos os recursos, diz pulares brancos que Iutavam, pois tinham
Aristides Milton que os patriotas cachoeiranos o rosto inteiramente enegrecido pela pólvo-
com o fim de darem proveitoso ensinamento à ra dos cartuchos que rompiam nos dentes,
guarnição da barca portuguesa, que continu- parecendo endiabradas figuras, no dizer de
ava a insultar os brios do nosso povo, manda- um dos nossos historiadores, não me recor-
ram buscar aos engenhos de açúcar uns vai- do, precisamente, se Accioly ou Rebouças.
vens que brocaram, montando-os depois nuns À frente da tropa do povo, incitando-a à
reparos improvisados para servirem de peças. resistência, foi Frei José de S. Jacintho um
Colocados, pois os vaivens tanto aqui como em dos mais denodados colaboradores desse
S. Félix, conseguiu-se com eles dar tiros contra grande feito.
o navio, causando-lhe assim bem serias ava- No termo de vereação que se transcreveu
rias. Durante o dia não cessou o fogo da barca acima está seu nome com os altos títulos
para terra, secundado por certeira fuzilaria de que possuía, de pregador régio e examina-
que se encarregava a gente acastelada nas ca- dor das três ordens militares.
sas dos portugueses Antônio Pinto de Lemos Por fim, a 28 de Junho, diz nas suas Ephe-
Bastos e Manoel Machado Nunes”. mérides Cachoeiranas um dos mais brilhan-
Eram os vaivéns antigas máquinas de guer- tes filhos da mesma Cachoeira, Aristides
ra com que se arrombavam as portas e os mu- Milton, cujo nome ainda uma vez evoco res-
ros das fortalezas. Consistiam numa grande peitoso, rendendo-lhe um preito na divul-
trave apoiada sobre uma espécie de forquilha gação do seu trabalho sobre a luta final e
e que impelida por um movimento de balanço abordagem da barca, com a vitória das ar-
lhes batia repetidas vezes. mas cachoeiranas:
Já então organizara-se uma “Junta Conci- ...Já por tarde, o comandante da barca
liatória e de Defasa” eleita em reunião, na portuguesa, que desde o dia 25, fazia fogo
casa do Padre Navarro sita à mesma praça contra o povo cachoeirano, ameaçou por
e na vizinhança da do Major Arnizau, tendo meio de um ofício insolente, endereçado
como presidente o depois Barão de Itapa- às autoridades locais, arrasar a vila, se esta
rica, Antônio Teixeira de Freitas Barboza e por acaso não se lhe submetesse logo.
que se comunicou com a Junta Provisória do E, antes de receber a merecida resposta,
Governo da Bahia, tendo antes declarado ao redobrou suas hostilidades, atirando até
povo a necessidade de resistir. sobre as canoas que, cheias de passageiros,
O dia e a noite de 26 e 27 foram sem tré- navegavam pelo rio Paraguaçu.
guas, sem repouso de luta recrudescida. Muito de indústria, os adversários da
Era impossível identificar a muitos po- causa brasileira tinham feito correr insis-
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
58
O papel da Cachoeira nas lutas da independência
tentemente o boato de que estava a chegar poucos dias, para a cadeia de Inhampube, por
outra canhoneira para auxiliar a primeira, uma escolta de que foi comandante o sargen-
ao mesmo tempo que esta se movia para to- to Manoel Lino Pereira.
mar posição, onde ficasse fora do alcance da Nessa campanha, que terminou por tão
fuzilaria, bloqueando, portanto, o porto. notável triunfo para os Cachoeiranos, distin-
Importa não esquecer que um troço da guiram-se por atos de patriotismo e valor,
maruja portuguesa havia descido à terra, a além dos cidadãos que já tinha mencionado,
noite do dia 25 e apagara as luminárias pos- mais estes:
tas à casa em que o Dr. Juiz de fora morava. O Capitão-mor Joaquim Ignacio de Cer-
Entrementes, a Junta Conciliatória, pre- queira Bulcão, João Pereira Gallo, João Pe-
sidida pelo Capitão Freitas Barbosa, não dreira do Couto Ferraz, José Antônio da Silva
tendo conseguido que o comandante da Ca- Castro, Domingos Cravador, Joaquim Antônio
nhoneira, a quem responderam moderada, Moutinho, Ignacio Joaquim Ferreira Lisboa,
se bem que dignamente, desistisse do seu Viríssimo Macário, Cassiano Macário, Ro-
propósito, proclamou ao povo, e assentou berto Barbosa Saldanha, José Joaquim Souza
preparar cuidadosamente Leite, o padre Villabom, o
a desistência. capitão de cavalaria Anto-
Com tamanha felicidade “O estabelecimento nio de Castro Lima, Ignacio
o fez, que, tendo começado de um telégrafo entre Joaquim Pitombo, capitão
um vigoroso fogo de fuzila- esta cidade, então José Gomes Moncorvo, Ma-
ria às oito e meia da noite, vila, e a barra do noel Ferras da Motta Pe-
antes das doze, a canho- Paraguaçu, por meio dreira, Dr. João Martiniano
neira se havia rendido com de sinais; incumbindo- Barata, Tenente Francisco
26 pessoas da guarnição se do respectivo Gomes Moncorvo, Tenente
feridas, inclusive o próprio serviço ao capitão João Borges Ferraz, Pedro
comandante, tendo ficado José Felix da Silva. ” Jacome, os irmãos Lesbios
mortos 12 praças; outros do Funil, José Pinto da Silva,
fugiram a nado. José Venâncio Tupinambá,
A rendição realizou-se depois de ter feito os irmãos Rocha Galvão, (Lourenço, Manoel e
o navio calar a sua artilheria, que começara José), Cardoso de Magalhães, Manoel Maurí-
com frequência, mas pouco a pouco se foi cio Rebouças, Victor José Topasio, Pedro José
tornando mais espaçada, e terminou por Marcellino de Carvalho, José Marcelino dos
emudecer de todo, quando içou uma ban- Santos, Major José Antônio da Silva Castro,
deira branca. Miguel Barbosa Cabral, alferes José Garcia
A barca, tendo sofrido dois tiros ao lume da Cavalcante, sem falar em muitos outros, que
água, não pode continuar o combate. Antes, seria longo enumerar.
algumas balas tinham já crivado o costado do Dentre as diversas providencias, que fo-
navio, e cortado a cordagem de suas velas. ram tomadas para repelir o inimigo, assinala-
Então, nossos valentes conterrâneos, to- rei como mais importantes as que menciono
mando canoas, abordaram a barca e passa- abaixo:
ram a prender o comandante e a tripulação O estabelecimento de um telégrafo entre
dela. esta cidade, então vila, e a barra do Paragua-
Ainda encontraram duas peças carregadas. çu, por meio de sinais; incumbindo-se do
Presas as vinte e sete pessoas que se acha- respectivo serviço ao capitão José Felix da
vam a bordo, foram todas enviadas, dentro de Silva.
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
9
595
Alberto Rabello
A criação de uma posta para uso dos dois
pontos indicados, tendo sido nomeado ins-
petor dela o capitão Manoel Pereira de Ma-
cedo.
A organização de duas companhias de vo-
luntários a que denominaram de Marte e de
Bellona.
A esse tempo, existiam, no rio Paraguaçu,
duas fortalezas que podiam cruzar os seus
fogos: uma na Ponta da Saubara, e a outra na
ponta da Barra: afora a célebre fortaleza do
Paraguaçu, construída pelos holandeses.
Das peças tomadas ao vaso português,
umas foram remetidas, debaixo do coman-
do de Victor Topazio, para o engenho de To-
roró, onde hoje existe a fábrica de tecidos
denominada S. Carlos, a fim de fortificá-lo;
as melhores tiveram destino para a referi-
da fortaleza do Paraguaçu de que era então
comandante o 2º tenente A. G. da Rocha de
Queiroz Marinho Jaboticaba, e as outras fo-
ram aproveitadas, alguns nas obras de defesa
de nosso porto e o resto na vila de S. Francis-
co a fim de proteger-lhe o porto. Mártir da Independência - Tambor Soledade
Alberto Rabello. Imprensa Oicial do Estado, na Edição Comemorativa ao Centenário da Independência da Bahia, em 1923.
Os combates de
Pirajá e Itaparica
Sérgio Roberto Dentino Morgado
O conhecimento dos aspectos militares, sença do estado português na colônia, até en-
componentes da história da formação das na- tão meio abandonada, em função do interesse
cionalidades, permite que se compreenda me- maior pelas Índias. Atitude interessante, pois
lhor a importância do testamento militar como o sistema militar português era baseado nas
fator imprescindível para sua existência e con- Ordenanças, que obrigavam a população a
solidação. É por essa razão que estamos aqui pegar em armas para sustentar o patrimônio
para refletirmos sobre os combates de Pirajá da Coroa. Quais eram, então, as tropas que se
e Itaparica, no concerto da Guerra de Liberta- confrontaram nesta guerra? Quem eram os
ção do jugo português na Bahia, no conjunto homens que as conduziram, ou lideraram?
de episódios que caracterizam e conformam o Que motivações os levaram a dispor de suas
processo de Independência no Brasil. O tema vidas nesses embates sangrentos? Que “pug-
enseja uma abordagem mais ampla, talvez mais na imensa” teria sido essa, que “se travara nos
holística, pois integra duas áreas de operações cerros da Bahia enquanto o anjo da morte,
distintas e interligadas, representativas, ambas, pálido, cosia uma vasta mortalha em Pirajá”?
de interesses convergentes, e cuja conquista, O que vamos relatar, realizando uma breve
pelas partes, caracterizariam pontos de apoio análise, é a história de um cerco, suas circuns-
que as pudessem levar à vitória. tâncias, sua execução e suas consequências,
Se vamos analisar um processo, devemos bem como a da tentativa lusitana de preser-
buscar alguns aspectos que permitam estabe- var sua colônia na América.
lecer as referências com as quais possamos O Brasil do começo do século XIX já vive-
fundamentar nossas apreciações sobre esse ra uma experiência de trezentos anos lutan-
fato histórico. Elas são muitas e estão distan- do contra a cobiça alheia, muito rica na sua
ciadas no tempo e no espaço, podendo ser multiplicidade e abrangência. Franceses, ho-
observadas desde as origens de nossos povos landeses, ingleses, espanhóis e portugueses
formadores, sejam os portugueses com suas são partícipes de fatos históricos acontecidos
raízes celtas, sejam nossos caboclos, com na nossa imensidão, ao longo desse tempo, e
suas raízes negras ou indígenas. Ao apontar terçaram suas armas e suas capacidades com
para essas referências, desejamos apenas os nossos caboclos, nossos índios, nossos
ressaltar a riqueza do tema e a sua vastidão, negros e nossos brancos, em defesa de seus
de vez que o tempo que nos foi concedido li- interesses, pessoais ou estatais, sejam políti-
mita qualquer anseio maior. cos, econômicos ou sociais.
E como falamos de origens, comecemos A epopeia napoleônica na Europa obrigara
por estabelecer as bases da presença militar a Corte Portuguesa a transmigrar para o Bra-
portuguesa no Brasil e, em especial, na Bahia. sil, única maneira, naquele instante, de pre-
Foi aqui, neste promontório, que desembar- servar o estado luso e a dinastia dos Bragan-
caram, com Thomé de Souza, as primeiras ça. Com isso, o Brasil Nação transmudou-se
tropas de linha que pisaram no território bra- em Estado do Brasil. A abertura dos portos
sileiro, com a finalidade de caracterizar a pre- às Nações amigas e a nossa transformação
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
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663
em Reino Unido a Portugal e a Algarve, com ciar o início das dissensões entre brasileiros
a sede da monarquia estabelecida no Rio de e portugueses na sua luta pela posse do po-
Janeiro, transformara os lusos em vassalos der. Dez de fevereiro marca, ainda, a posse de
do Brasil, fato que Portugal e os portugueses um oficial brasileiro, o coronel Manoel Pedro
não podiam admitir, pois como iriam abrir de Freitas Guimarães, oficial do Regimento de
mão do cofre, da cornucópia, da burrinha, da Artilharia aquartelado no Forte de São Pedro,
galinha dos ovos de ouro? No fundo, a Revolu- transformado em brigadeiro e aclamado como
ção Constitucionalista do Porto, realizada em comandante das Armas da Bahia. Manoel Pe-
fevereiro de 1820, era a resposta a esse “sta- dro tratou de fortalecer as tropas brasileiras
tuo quo” e tinha como motivação revertê-lo, na capital e os comerciantes de Salvador vi-
trazendo o poder de volta a Lisboa e transfor- ram aí a perda da posse do poder e obraram
mando o Brasil novamente em colônia. Se as- para que um até então obscuro tenente- coro-
sim era, por que os patriotas baianos a apoia- nel, Inácio Luiz Bandeira de Melo, comandan-
ram e deram início aos embates militares te do Batalhão de Infantaria 12, o substituísse
aqui, nesta cidade, entre tropas locais e tro- no cargo. O Batalhão 12 fazia parte da Divisão
pas lusas, como os que ocorreram em 10 de Auxiliadora, estacionada no Rio de Janeiro e
fevereiro de 1821, a partir da revolta do Forte comandada pelo general Jorge de Avilez. Ti-
de São Pedro? “Uma revolução para obedecer nha vindo para o Brasil em consequência da
a uma Constituição que ainda não havia sido Revolução de 1817, no Recife.
elaborada”, nos diz Braz do Amaral. Segundo A atuação do brigadeiro Manoel Pedro
ele, o governo absolutista do Rio não queria também motivou a vinda de Lisboa da Legião
que o Reino Luso da América tivesse igualda- Constitucional Lusitana, chegada aqui em 23
de de condições com o Reino Luso da Europa de agosto de 1821, para fortalecer o partido
e pretendia, aqui, restringir as liberdades, as lusitano. Veio a seu pedido. Eram 1.184 ho-
franquias e os benefícios prometidos ao povo mens, compondo dois batalhões de infanta-
de lá. A revolução na Bahia foi uma reação ria e uma companhia de artilharia. É preciso
contra a distinção que se pretendia estabele- lembrar que, nessa época, o poder central do
cer entre os portugueses que estavam na Eu- Império luso já havia retornado a Lisboa, com
ropa e os que estavam aqui. a volta de D. João VI, em 26 de abril.
Mas esse fato serve, também, para referen- Essa disputa de poder originou os san-
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
64
Os combates de Pirajá e Itaparica
Ocorre que, em 19 de março, uma procis- volta. O corregedor de Santo Amaro, Antônio
são em homenagem a São José, conduzida por José Duarte de Albuquerque, chefe político de
uma guarda da Legião Lusitana, foi apedreja- prestígio e membro da Casa da Torre, e mais o
da pelos brasileiros e isso motivou a ordem capitão-mor Joaquim Inácio de Siqueira Bul-
de Madeira para que a tropa desembarcasse cão e outros patriotas, organizaram um plano
e fosse acolhida nos quartéis da cidade, en- para libertar a Bahia do jugo português.
grossando seus efetivos. Ela desembarcou na O movimento teve início na noite de 24 de
noite de 27 de março e foi recebida à luz de junho, quando os coronéis de Milícias Rodri-
archotes, pelos portugueses, com vivas e in- go Antônio Falcão Brandão e José Garcia Pa-
sultos aos brasileiros. Tal era o clima reinante checo, à testa de 100 homens do Corpo de Ca-
na cidade. valaria da Milícia de Cachoeira, se reuniram
No Rio de Janeiro, quando soube das atro- num lugar chamado Belém e juntos entraram
cidades dos dias 18 e 19, D. Pedro mandou naquela vila para aclamar D. Pedro. A eles se
celebrar exéquias, a que compareceu de luto. juntaram mais quatrocentos homens. Em Ca-
Durante a cerimônia, ocorrida no dia 17 de choeira estava estacionada uma escuna por-
junho, intimou Madeira a deixar o Brasil e tuguesa, por ordem de Madeira, para vigiar a
proclamou aos baianos a que reagissem e lu- vila.
tassem contra aquela tirania. As populações de Cachoeira e de São Fé-
A proclamação do Regente ecoou no Re- lix, esta situada na outra margem do Rio Pa-
côncavo e transformou-se no estopim da re- raguassú, aderiram ao movimento. A Câmara
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
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Os combates de Pirajá e Itaparica
de Cachoeira lavrou um Ato de Adesão, onde repetir o grito regenerador dos mais felizes
reconheciam e aceitavam a autoridade de D. fluminenses, paulistas, mineiros, continentis-
Pedro. Após a cerimônia, todos se dirigiram tas e pernambucanos; almejava, para apagar
à Igreja Matriz onde foi realizada uma missa a feia nódoa do cisma que a seu bel prazer,
em ação de graças à aclamação. sete homens levantaram entre esta e as mais
Terminado o ato religioso, a multidão ini- províncias brasileiras”.
ciou um desfile pelas ruas da vila e foi então Essa afirmação caracterizava, antes de
alvejada por disparos, provenientes da casa de tudo, o sentimento de união, a noção de bra-
um português ali residente e por tiros de me- silidade que, mesmo no interior, já predomi-
tralha, vindos da escuna de onde desceu uma nava na nossa gente. Não havia hostilidade
patrulha de marujos para conter o regozijo e ao luso, do qual muitos descendiam, mas não
apagar as luminárias que o povo colocara, em se abria mão da Nação, que trezentos anos
júbilo, nas portas das casas. A escuna conti- de luta e labor já tinham forjado no coração
nuou a atirar sobre Cachoeira e São Félix. No dos brasileiros. Essa crença é que os animou
dia 26, continuaram os bombardeios. e sustentou todas as vicissitudes que, a partir,
A população, ante a tibieza do juiz de fora daí iriam passar para preservar a integridade
e do capitão-mor, e o direito de se constituírem em uma socie-
nomeou uma Junta dade livre e soberana.
“Também, em Itaparica, Conciliatória e de Com esse ato, ao qual aderiram Santo
Antônio de Souza Lima, Defesa para dirigir e Amaro e São Francisco, começou efetivamen-
português, retirou governar o Recônca- te o movimento. Foram criadas Caixas Milita-
pólvora e armamento vo. Criaram uma Cai- res que possibilitassem dar organização sé-
da ilha do Morro de xa militar e intima- ria e eficaz às milícias que iam se formando.
São Paulo e levou para ram o Comandante Não havia armamento e as velhas peças de
Cachoeira, organizando da Escuna para que artilharia, que os engenhos eram obrigados
ainda um batalhão cessasse as hosti- a manter, não possuíam mais carretas, nem
com 300 homens. ” lidades. A resposta pólvora, nem balas, nem artilheiros. Faltava
veio com ameaça de tudo, menos boa vontade. Desde logo foram
arrasar a vila. A po- construídas trincheiras nos rios que levavam
pulação, então, atacou a escuna usando cano- a Cachoeira e a Santo Amaro, para evitar a su-
as, aprisionou a guarnição e o comandante. bida das esquadrilhas portuguesas.
Foram três horas de combate e era o dia 28 O pronunciamento das vilas do Recôncavo
de junho. estimulou e aumentou o êxodo dos brasileiros
De uma nota enviada pela Junta de Cacho- da capital. Itaparica também aderiu. Madeira
eira ao Príncipe Regente, destacamos dois reagiu e mandou uma expedição de 80 praças
trechos. No primeiro, afirma que “o leal e da Legião Lusitana, comandada pelo capitão
brioso povo do Distrito de Cachoeira acaba Joaquim José Teixeira, alcunhado de Trinta
de proclamar e reconhecer Vossa Alteza Real Diabos, tomar o Forte de São Lourenço, situ-
como Regente Constitucional e Defensor Per- ado na extremidade noroeste da ilha e impor-
pétuo do Brasil”. Nota-se aí, ainda, o respeito tante ponto de controle de acesso ao interior
a D. João VI, e, pela primeira vez, a outorga da Baía de Todos os Santos. Impossibilitado de
do título de Defensor Perpétuo do Brasil. O permanecer, inutilizou os canhões e danificou
outro trecho proclama que “Altamente pene- as carretas das peças. Era o 10 de julho.
trado da mais viva gratidão para com Vossa No Recôncavo continuavam os preparati-
Alteza Real, este brioso povo almejava por vos para retomar a capital. A primeira pro-
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
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vidência era estabelecer uma linha de cerco. arquipélago, onde se havia posto uma guar-
Lusitana com os seus dois batalhões, trouxe- Torre, para ir segurando o avanço adversário.
ram também outros dois batalhões de Infan- Fala da ação do tenente-ajudante Alexandre
taria, o 4º. e o 12º., além de um contingente de Argolo Ferrão, que com o Batalhão da Vila
Artilharia.Durante mais de cinco horas pele- de São Francisco impediu o acesso à posição,
jaram os soldados. O terreno ajudava a conter distribuindo fogos em toda a frente e possi-
aquela tropa mais experiente e melhor arma- bilitando que as ordens fossem dadas e os
da. Atacar encosta acima, no meio do mato, é dispositivos defensivos estabelecidos. Fala
tarefa penosa e difícil. Num último esforço, os do reconhecimento de Labatut pelo valor de
portugueses impeliram a linha brasileira. Se Argolo, tendo-o promovido ao posto de ma-
isso ocorresse, a tropa que se batia e defen- jor pela importância da sua ação. Descreve
dia estoicamente o Cabrito ficaria em grande uma ação de ala da Legião sobre a posição de
risco. Cabrito, de onde desaloja um destacamen-
Barros Falcão decide, então, retrair para to baiano e o obriga a recolher-se à linha de
proteger o dispositivo e evitar ser envolvido. Campina, sugerindo uma junção com as for-
Manda tocar retirada. O corneteiro, Luiz Lo- ças que atacavam pela praia e avaliando a sua
pes, ao invés, toca - “Cavalaria avançar!”, e em importância como fundamental para ajudar a
seguida - “Cavalaria degolar!”. Os lusos, que ação sobre o centro do dispositivo brasileiro.
conheciam os toques, pararam, recuaram e Explica, então, que o terreno comandava
se precipitaram encosta abaixo, perseguidos as ações, pois a defesa não cedia, realizan-
até as praias, onde embarcaram e fugiram. Os do ações de guerrilha pelo terreno matoso e
atacantes do Cabrito também se retiraram. ondulado, atirando nos atacantes de frente e
Estava concluída a batalha. de lado, batendo-se, inclusive, a arma bran-
Mas Miguel Calmon, citando Titara, nos dá ca. Diz que o ímpeto do ataque diminuiu e o
uma versão diferente, porque descreve que o avanço logo parou.
principal esforço português foi realizado pela Descreve que, então, neste momento, che-
estrada das Boiadas, com a Legião Lusitana, gou forte reforço de Salvador, composto pela
e atribui o ataque pelas encostas da enseada força que viera recentemente de Lisboa e que
de Itapagipe a um contingente de apenas 300 isto fez com que o ataque fosse retomado,
soldados de linha reforçados por 100 mari- conseguindo ultrapassar a linha de defesa,
nheiros. Relata a existência de três peças co- sendo contidos à frente do largo do Cruzei-
locadas face a esse reduto de Itapagipe, que, ro pelos pernambucanos e pelos soldados do
rompendo fogo contra o inimigo, alertou as Rio de Janeiro. Que enquanto isso, na contra-
tropas do Exército Pacificador, fez com que -encosta, à esquerda, os lusos tentam, com
os milicianos de Cachoeira e de Vila de São um ardil, um desbordamento por Itacaranha,
Francisco, que estavam na orla da montanha, para cortar as ligações com o Quartel Gene-
acorressem para conter a investida. Conta ral, mas que foram impedidos pelos Henri-
que as avançadas em Bate-Folhas alertaram ques, que os desviam e protegem os acessos
a vanguarda do Exército contra a arremetida ao Arraial. Que, no centro, os lusos consegui-
da Legião. ram chegar junto da velha Igreja das Missões,
Descreve a participação dos flecheiros ta- mas foram rechaçados por um pesado ataque
puias dos Batalhões da Torre, que retarda- de arma branca e pesado fogo pelos pernam-
ram o avanço luso, mas, impotentes, cederam bucanos.
terreno até a planura da Campina, quando Reporta a ação heróica dos poucos cava-
foram acolhidos pelas companhias do 4º. de leiros de Pojuca e São Francisco, comandados
Milícias da Bahia e pelos remanescentes da por Pedro Ribeiro, dificultando os movimen-
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rado abrigos onde a infantaria podia atirar, a cidade pelo Cabula, com o Batalhão de Caça-
salvo do fogo inimigo. Por essas razões deci- dores a Pé da Bahia e com os milicianos da
diram adiar o ataque. Paraíba, pela estrada das Boiadas. Na Concei-
Desembarcando em Jaraguá, chega ao ce- ção, o Batalhão do Imperador atacou e tomou
nário da luta o Batalhão do Imperador. Eram algumas trincheiras. Teria sido neste dia e
800 homens, escolhidos pessoalmente por neste local que se dera o batismo de fogo do
D. Pedro, em uma formatura no Campo de Patrono do Exército, o Duque de Caxias, ainda
Santana. Seu comandante, o coronel José Joa- então um valoroso, mas inexperiente tenente.
quim de Lima e Silva, e seu porta-bandeira, o Com os batalhões da Torre, o Cel. Felisberto
tenente Luiz Alves de Lima e Silva. Labatut re- Caldeira atacou Brotas.
organiza o seu dispositivo e cria a Brigada do No dia seguinte, Cochrane atacou a Es-
Centro, com base no Batalhão do Imperador, quadra lusitana dentro da baía. Embora infe-
e entrega o comando a Lima e Silva. Transfere riorizado, lançou-se sobre a linha de navios
também seu Quartel-Gene- inimigos e só não teve su-
ral para Cangurungu, mais cesso porque as demais em-
próximo do acampamento “Na enseada do Morro barcações não correspon-
de Pirajá. de São Paulo, ele deram, havendo indícios
Os portugueses, por sua abandona cinco dos de traição dos marinheiros
vez, também são reforça- seus navios e equipa portugueses incorporados
dos. No dia 1º de abril, che- as duas fragatas à sua equipagem. Cochrane
gam mais dois batalhões de mais velozes com foi obrigado a abandonar o
infantaria e três de caçado- gente escolhida e de combate e o fez sem ser mo-
res. Ao todo 2.500 homens, confiança e, apenas lestado pelo inimigo, que
que teriam que ser alimen- com elas, auxiliado deixou escapar mais uma
tados. O partido luso tam- pelas embarcações boa ocasião de afirmar sua
bém tem seu plano. Conven- de João das Botas, supremacia no mar.
cendo os comerciantes de bloqueia o porto O almirante inglês toma
Salvador a empregar mais de Salvador. Estava então uma decisão audacio-
recursos, pretendem ir bus- completado o cerco. ” sa, que só os grandes chefes
car a Divisão de Voluntários são capazes. Na enseada
Reais, que estava cercada do Morro de São Paulo, ele
em Montevidéu, aproveitando os transportes abandona cinco dos seus navios e equipa as
que trouxeram a tropa de reforço. Mas pre- duas fragatas mais velozes com gente esco-
cisavam bloquear o porto do Rio de Janei- lhida e de confiança e, apenas com elas, au-
ro, além de comboiar os transportes. Afinal, xiliado pelas embarcações de João das Botas,
contavam com uma boa esquadra em Salva- bloqueia o porto de Salvador. Estava comple-
dor. Mas João Félix não se mexeu, perdendo a tado o cerco.
oportunidade. No dia 9 de maio, o general Madeira de-
No final de abril chega na boca da Baía de clara Salvador em Estado de Sítio e expulsa
Todos os Santos a Esquadra Brasileira, de 7 cerca de 10.000 civis da cidade. Ele só tinha
navios, comandada por Lord Cochrane, al- víveres para no máximo 50 dias.
mirante inglês de renome internacional que Mas do lado brasileiro, a situação também
havia sido contratado para organizá-la e con- era preocupante. Descobrindo uma conspira-
duzi-la em combate. ção para depô-lo, Labatut prende o coronel
Em 3 de maio Labatut investe contra a Felisberto Caldeira. Em consequência, é pre-
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Sérgio Roberto Dentino Morgado - Revista da Bahia, V.32, nº 36. EGBA, 2002
Patriotismo e conflito de
classe na Independência
da Bahia (1822-23)
Sérgio Armando Diniz Guerra Filho
siderava ser o lado “brasileiro”, eram naturais pela expulsão das tropas do General Madeira
d’Além Mar, caso do Comandante João das Bo- de Melo ou se declararam favoráveis à “Causa”.
tas, que liderou as embarcações improvisadas Assim, mesmo os nascidos em Portugal pu-
que deram combate aos navios lusitanos na deram se integrar ao lado brasileiro. Por outro
Baía de Todos os Santos, assim como o polê- lado, os que na Bahia haviam nascido podiam
mico Corneta Lopes , só para citar alguns dos ser, durante a guerra, acusados de pertencer
que ficaram famosos dentre os que lutaram ao “partido europeu”. O baiano Luis Paulino
2 DE JULHO - A BAHIA NA INDEPENDÊNCIA NACIONAL
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d’Oliveira Pinto da França, da vila de Cachoei- Dois aspectos do patriotismo de elite me-
Patriotismo e conflito de class na independência da Bahia
ra e deputado pela Bahia às Cortes de Lisboa, recem aqui destaque: a “brasilização” dos
foi proibido, mesmo acabada a Guerra, de vol- nomes; e a elaboração das Listas Patrióticas,
tar ao solo baiano. Pagava o preço por suas po- imediatamente após a Guerra e enviadas de
sições políticas, consideradas demasiadamen- muitas vilas da Província para a sede do Go-
te moderadas pelos seus conterrâneos. Já sua verno, já novamente instalado em Salvador.
esposa, nascida em Portugal, além da tragédia
pessoal de ter sua família separada pela Guer- No calor das disputas político-militares que
ra, parece não ter sido importunada quanto a contrapuseram “brasileiros” e “portugueses”,
sua identidade nacional. um número significativo de pessoas abrasi-
Essas idas e vindas aumentavam a necessi- leirou seus nomes, retirando ou substituindo
dade e a urgência da consolidação do discurso os originais por outros, de temática nativista,
patriótico contra os portugueses por parte das renegando sobrenomes de família que pudes-
autoridades pró-independência. Era necessá- sem ligá-los a uma origem lusitana. Não foi
rio separar os lados em guerra. Quem estives- um fenômeno meramente local, mas aqui na
se contra a ruptura seria considerado inimigo Bahia, “no movimento contra o domínio por-
e estes eram, em sua grande maioria, portu- tuguês (...) o nome tomou para muitos acentu-
gueses de nascimento: mi- ada conotação patriótica”.
litares de altas patentes, Há registros de casos de
ocupante dos altos cargos “Mirandela, pequena vila portugueses de nascimen-
coloniais e o grosso do ca- do nordeste da Bahia, to que assim o fizeram,
pital comercial na Bahia enviou uma Lista com como sinal de adesão à
estava assentado nos por- os nomes dos quase 50 Causa Brasílica, e mesmo
tugueses d’além mar, e os soldados voluntários brasileiros também pro-
interesses políticos e eco- daquela localidade que cederam dessa maneira,
nômicos destes estariam foram para a guerra. como que para reafirmar
mais garantidos com o res- Consta nela, inclusive, sua opção política pela
tabelecimento do status os que morreram independência. Alguns
colonial. durante os conflitos. ” publicaram a mudança de
O projeto de ruptura seus nomes na imprensa
não era tão radical assim. da época, para que seus
Concluída a Guerra de Independência, o capi- negócios não fossem atrapalhados.
tal e o know-how portugueses no comércio de Frei Bastos, que era natural de Salvador,
exportação seriam necessários à elite baiana. fez questão de acrescentar ao seu nome mo-
É por isso que, muitas vezes, o discurso anti- nástico o sobrenome Baraúna, no calor dos
lusitano proferido pelo Conselho Interino de acontecimentos de 1823. O exemplo mais co-
Governo precisou ser por ele próprio freado. nhecido de mudança de nome é, sem dúvidas,
Temia-se a insubordinação, a “desordem” e a o de Francisco Gê Acayaba Montezuma, como
“anarquia”, no dizer dos documentos da épo- passou a chamar-se Francisco Gomes Bran-
ca. Podemos, para efeito de análise, distinguir dão. Não era um patriota qualquer: fora es-
dois tipos de patriotismo que, apesar de an- colhido para o Conselho Interino pela vila da
tagônicos, permeavam-se, dialogavam e con- Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cacho-
trapunham-se constantemente na fluidez que eira – principal vila da província e capital inte-
o momento propiciava: um, das elites; outro, rina durante a guerra – e lá exerceu o cargo de
popular. Secretário. Desta forma, Freitas, Araújos, de
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dantes de infantaria. Três dos enumerados na que doou também farinha e serviços pesso-
Patriotismo e conflito de class na independência da Bahia
lista em São Francisco do Conde pertenciam à ais, o Juiz Ordinário e membro da Caixa Mili-
abastada família Sá Barreto. Além de dinhei- tar, João José Tárcio, foi alvo de manifestações
ro, houve, em muitas vilas, doações de gado, populares – “pessoas insignificantes”, no di-
armas, munição, fardamento e até aguardente. zer dos que registraram o fato – que preten-
A lista da vila de Camamu se destaca por diam sua destituição da vara em que atuava,
contar com dados mais completos sobre gran- alegando para tanto o fato de Tárcio ser euro-
de parte dos cerca de quarenta “patriotas” da peu. Não deve ser uma mera coincidência. O
localidade. Constam ali, nome completo, do- europeu provavelmente se sentiu forçado a fa-
ação, profissão e até qualidades pessoais de zer doação de tamanho vulto para provar seu
caráter daqueles mencionados na lista. Entre patriotismo frente à população em geral. Sua
os arrolados, há cinco capitães (inclusive o doação correspondeu a quase metade do valor
capitão mor), três juízes, três vereadores e o registrado na Lista. Homem da Lei, provavel-
procurador da Câmara. Dos vinte relaciona- mente imaginara ter com isso um argumento
dos, cuja ocupação não está registrada, dois de sua, digamos, conversão à Causa para esca-
emprestaram escravos e dezesseis fizeram do- par à sanha patriótica da justiça popular.
ação em dinheiro, variando entre 10 e 600 mil Seus pares foram em sua defesa. Não acha-
réis (no total foram 21 doações em dinheiro); vam que fosse “merecedor de semelhante in-
quatro deles não tiveram sua ocupação regis- sulto, pois tem servido nesta [terra] a todos os
trada, mas doaram farinha (do total de nove) cargos públicos com toda a honra e zelo (...) e
e dois, gado. Eram, portanto, proprietários tem dado todas as provas de [ser] um fiel Vas-
de razoável cabedal. Apenas cinco dos lista- salo de Sua Majestade Imperial e amante da
dos cederam unicamente “serviços pessoais”: Santa Causa”. Proprietários e brancos como o
eram dois vereadores, um tenente, um juiz Juiz Tárcio, as autoridades temiam que a re-
ordinário e os outros dois eram membros da volta contra portugueses logo se generalizasse
Caixa Militar. Em tais funções, deviam ter certa contra eles próprios: “porque Semelhante ab-
posição social, como os patriotas de Jacobina surdo não deixa de Ser despotismo ou ousadia
e do Conde. feita aos Magistrados, e ficando isto sem exem-
Na Lista Patriótica de Camamu, como em plo passarão a fazer o mesmo insulto, a nós, ou
quase todas as outras, as maiores doações a outra qualquer Autoridade”.
ou feitos em favor da Causa foram elencados Neste trecho por mim grifado, evidencia-
primeiro, as menores, mais para o fim, sinali- -se a percepção, por parte das autoridades, de
zando que os organizadores da Lista deviam que a fúria antilusitana podia se aproximar pe-
acreditar que o grau de patriotismo podia ser rigosamente de um conflito de classe. Os bra-
medido pela capacidade de desprender-se de sileiros brancos e proprietários podiam ser
parte do seu patrimônio. As doações, que fo- identificados pela plebe com os portugueses,
ram em dinheiro, serviço dos seus escravos, também brancos e proprietários, apesar de
mantimentos – a região onde se encontra a vila todo o esforço daqueles para estabelecer a di-
era grande produtora de farinha, como pode ferença. Se o nascimento não bastava, a riqueza
ser visto pelo número de pessoas que doaram e a cor os aproximavam aos olhos das classes
o gênero – ou serviços pessoais, consistiam em populares. Era necessário, para as autoridades
diferencial entre ser ou não patriota. E mais: brasileiras, demarcar campos, estabelecendo
o tamanho da doação poderia indicar qual o um limite entre o que acreditavam ser patrio-
grau deste patriotismo. tismo, quando o povo agisse em sintonia com
O maior doador de uma soma em dinheiro, os seus interesses, e o que classificariam como
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Pavilhão Dois de Julho, onde se encontra a imagem do Caboclo, símbolo da independência da Bahia - Wikipedia
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anarquia ou desordem, quando, ultrapassan- mínimo, 10$000, ou dispor seu tempo em prol
Patriotismo e conflito de class na independência da Bahia
-se em outros motivos: mais do que “metralhar disse-lhe “que não lhe importava disso”. O fato
pretos”, medida extrema e inapropriada aos tornou-se mais intrigante a partir da interven-
olhos dos baianos de posses, Labatut contri- ção do Vigário Francisco José de Miranda, De-
buía, segundo os membros do Conselho, “com a putado pela Vila de Água Fria, que presenciou
organização de um Brasil (...) de negros cativos, o acontecido. Houve bate-boca e a solução en-
crioulos, e africanos, que o general tem forma- contrada, dado o exaltar de ânimos, foi solici-
do, e está disciplinando, com a mais crassa im- tar o parecer do Conselho.
política, em notório dano a esta Província”. A decisão do Conselho não poderia ser ou-
A libertação de escravos para a sua incor- tra: ordenou “que, procedendo Vossa Mercê
poração às fileiras do Exército aparecia para [o Juiz de Fora da Vila da Cachoeira] as preci-
as elites como uma ameaça não só de desor- sas averiguações, castigue nos termos da Lei
ganização produtiva, mas, principalmente, de ao Cabo de Polícia de que se trata”. Apesar da
desarrumação da ordem social. Junte-se a isto sugestão de que o Juiz de Paz procedesse “ave-
que o rigor disciplinar sem a contrapartida da riguações”, o veredicto já estava dado, posto
complacência e do perdão – elementos funda- o imperativo subsequente: “castigue”! O por-
mentais da relação paternalista que os gran- tador do passaporte era, para o Conselho, um
des proprietários com- “amigo da Causa”, pois ti-
partilhavam com o povo nha em mãos tal documen-
– esgarçavam o já prejudi- “Lobo foi preso em to. Não portar tal licença
cado tecido social baiano. novembro de 1822, e levaria Machado à sorte de
A guerra terminaria como assim ficou até pelo menos muitos outros lusitanos,
quiseram os grandes pro- janeiro de 1823, quando foi considerados inimigos,
prietários do Recôncavo transferido para a cadeia durante a guerra: prisão,
baiano, com um brasileiro de Cachoeira – ironia do transferência para outras
ao comando do Exército destino, o lugar para onde províncias onde fossem
Libertador que adentrou tinha enviado, meses antes, menos perigosos, e mes-
a cidade do Salvador, aos seu desafeto português.” mo o sequestro de seus
dois de julho de 1823: o bens. O português pesou
Marechal Lima e Silva. mais frente ao Conselho
Aliado à nacionalidade, é possível que tenha do que o brio antilusitano do Cabo Joaquim,
pesado a seu favor o fato de possuir uma visão cujo patriotismo não estava equalizado com as
mais apropriada das relações sociais vigentes. intenções daquele órgão.
Fora as questões internas, as autoridades Os atos que encerram o caso represen-
ainda precisavam evitar o surgimento de li- tam mais que um mero desconhecimento dos
deranças intermediárias que polarizassem procedimentos técnicos sobre o trânsito de
os anseios políticos populares, prejudicando portugueses de nascimento pela província. A
as novas-velhas configurações políticas. Foi desautorização da licença e do Deputado e a
o que aconteceu com o Cabo de Polícia do interferência de todos que apoiaram ou foram
Arraial da Purificação, Joaquim de Souza, ao contra a prisão do Cabo Joaquim indicam a
realizar a prisão do europeu Antonio Maga- falta de unanimidade em torno do Conselho e
lhães de Aquino Machado. Mesmo tendo este da sua interpretação do que era ser patriota.
lhe apresentado um passaporte expedido pelo O Cabo, seus seguidores e defensores, ao não
Conselho Interino – necessário ao trânsito dos reconhecer a legitimidade dos atos das auto-
europeus, em especial os portugueses, na par- ridades demonstraram que não compartilha-
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autoridades temiam prendê-lo “por não haver sível controle por parte dos portugueses de
Patriotismo e conflito de class na independência da Bahia
algum levante entre Povo, em que estão todos vilas do oeste baiano como Carinhanha, e ten-
os parentes deste rebelde Revolucionário”. Pa- tando resolver o alto número de deserções e
rece que João Tavares de Mello havia conse- desordens com que tinha que lidar, propunha
guido para si um grande poder de influenciar “que não se trate de prisão contra os deser-
o povo de Camamu, reconfigurando as redes tores, antes convocados por meio de perdão”.
locais de dependência. As autoridades solici- E concluía: “Se a Vossas Excelências parecer
taram ao Conselho “punição deste absurdo, conveniente esta medida se dignem por sua
sendo prestes no pronto remédio a tão gran- Portaria haver por declarado o perdão para
des males, para exemplo dos tumultuosos”. Li- estes Soldados”. Não era uma reflexão isolada
deranças desse tipo, era melhor que não esti- sua: havia discutido o assunto “com alguns ho-
vessem à solta. mens cordatos”.
Estabelecer um novo arranjo político e con- As imagens são fortes, a simbologia, bastan-
seguir o apoio popular para a independência te corrente. Piedade, amor paternal, coração...
passava, de alguma forma, pela consolidação tudo remetia a uma representação de uma
da ideia de que os representantes do novo re- relação elite-povo que se pensava harmôni-
gime seriam competentes na chefia das rela- ca, complementar e terna. Mas a explicitação
ções elite-povo. Em destas engrenagens também remetem a uma
outubro de 1822, o preocupação, só confidenciada entre os seus
“O patriotismo das elites Conselho Interino, pares, de uma ruptura destas relações pela
não se estabeleceu de escrevendo para o via da revolta. A situação era delicada para o
forma harmoniosa e Major Comandan- arcabouço paternalista e exigia um maior cui-
nem foi aceito pelas te do Batalhão de dado no manejo dos instrumentos de domina-
camadas populares Caçadores Volun- ção deste tipo. As diferenças e perspectivas de
tranquila e pacificamente. tários sobre solda- classe precisavam ser entendidas e operadas
A ele se contrapôs um dos amotinados, para a recomposição do poder, para que tudo
patriotismo popular, propunha ao mes- voltasse ao seu devido lugar.
radical, antilusitano mo “dar um exem- O patriotismo popular diferia do de elite e
e, mesmo, antielitista, plo que sirva de ameaçava estourar em forma de rebeldia. As
identificado e combatido manter a discipli- atitudes populares antilusitanas em 1822-23
pelas autoridades baianas na nos corpos, tão (e que depois da guerra se desdobrariam, pelo
via Conselho Interino necessário quanto menos por mais uma década, em eventos de
de Governo, formulador dela só é que pode violência de rua – os mata-marotos) foram
do patriotismo oficial.” resultar o públi- além dos alvos pessoais, atingindo politica-
co repouso, sem, mente o Conselho Interino de Governo. O pa-
todavia, deixar de triotismo popular expôs à luz, durante a guer-
muito atender aos sentimentos de piedade, ra de independência na Bahia, um conflito de
que amam os governos Paternais”. Tinham, classe, ao qual os membros do Conselho e os
portanto as autoridades, uma equação difícil comandantes do Exército Libertador estive-
de resolver: castigar para manter o controle ram atentos, às vezes assustados, mas sempre
social, mas nunca ultrapassar os limites que le- agindo no intuito de debelá-lo.
variam a uma ruptura das relações paternais. A preocupação do Conselho Interino com
O comandante do Quartel da Vila de Jacobi- arroubos deste “outro” e indesejado patriotis-
na, José Baptista Camargo, em 16 de março de mo levou os seus membros a esboçarem uma
1823, foi mais explícito. Assustado com o pos- proposta política de “educação patriótica”
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Exército brasileiro adentrando Salvador após a rendição das forças portuguesas, 1823. Presciliano Silva.
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Entrada do Exército Pacificador na Bahia
Entrada do exército
1
pacificador na Bahia
Antonio Moniz de Souza
O dia 2 de Julho, dia eternamente memorá- ram os corpos a voz do chefe, que inteirado da
vel nos Anais do Império Brasílico, amanheceu desesperada intenção dos sitiados, tinha tra-
puro e brilhante, como destinado para o glo- çado antecipadamente o plano da entrada. Já
rioso triunfo da Bahia. Pelas 4 horas da manhã, cada um sabia das obrigações que lhe tocava
a retaguarda dos lusitanos se embarcou fugiti- cumprir. Principia-se a marcha: saúda-se para
va, e precipitadamente a bordo dos seus trans- sempre aquela posição de Pirajá, testemunha
portes; e a cidade, purgada dos tiranos, que a de tanta constância, de tanto patriotismo. Um
oprimiram, não gozava ainda da presença dos Corpo de Exploradores precede o Exército, vi-
seus libertadores. Esta situação singular, esta sita e ocupa os pontos e trincheiras abandona-
suspensão total de todo o governo prolongou- das. O quartel-mestre general, coronel Antero,
-se até a uma hora da tarde, porque seriam natural da província do Rio Grande do Sul, os
mais de oito, quando chegou a Pirajá um de- comanda com o mesmo semblante sereno, e
sertor lusitano, e pouco depois um Oficial que satisfeito, com que os havia capitaneado no dia
foi de propósito participar ao comandante em 3 de junho, debaixo de vivíssimo fogo inimigo.
chefe, coronel Lima, o embarque clandestino O comandante em chefe acompanhado do
do inimigo. Tal notícia se comunicou à manei- Estado-Maior seguia imediatamente os ex-
ra de uma comoção elétrica, a todo o exército; ploradores. Aquele jovem militar, esperança
que rapidamente pegou em armas e se forma- do Brasil, passando repentinamente de um
comandante subalterno ao primeiro grau de
poder, desenvolveu, como por encanto, todas
as qualidades de grande general, não achando
em sua elevação, senão novos motivos de ser
modesto e prudente. Sua alma nobre se en-
tregava às mais lisonjeiras ideias; como as de
libertar e restaurar uma cidade importantíssi-
ma, de completar a obra da Independência da
sua pátria e de tomar assento na lembrança da
posteridade.
O ajudante general, tenente-coronel Torres
se fazia, naquela brilhante comitiva, credor da
atenção pública, pelos seus talentos, desde o
princípio, consagrados à santa causa: e que ví-
tima do dia 3 de novembro, nos padecimentos
da prisão, achou novos motivos de se dedicar
Praça do Riachuelo - Gilberto Ferrez
ao serviço deste Império. Ao lado do coman-
dante em chefe do Exército, distinguia-se o co-
1 Antonio Moniz de Souza. Viagens e Observações de um Brasileiro, Instituto Geográico e Histórico da Bahia, em 2000.
Quadro Entrada do Exército Libertador, de Presciliano Silva.
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A ilustração é de uma peça musical composta (entre 1894 e 1896) para homenagear a data por um português, José Barreto Aviz,
e faz parte da história musical do período, recuperado no pioneiro trabalho do professor e maestro Manuel Veiga, da Escola de
Música da Universidade Federal da Bahia. Fonte: http://bp1.blogger.com
Festa do Dois de Julho em Salvador (século XIX). Acervo da Fundação Pedro Calmon
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A festa do Dois de Julho
Walmyra R. de Albuquerque
Caboclo - Festa do Dois de Julho em Salvador. Acervo da Fundação Pedro Calmon
zembro de 1821 foi nomeado pela metrópole, setembro de 1822, a situação se agravou, pois
governador das Armas, importante cargo mili- a existência de um governo central e indepen-
tar, o brigadeiro português Inácio Luís Madei- dente de Portugal não era mais só uma aspira-
ra de Melo, em substituição ao brasileiro Ma- ção, tornou-se real. Como era de se esperar, os
nuel Pedro de Freitas Guimarães. A nomeação portugueses não aceitaram de pronto a eman-
de Madeira de Melo não foi reconhecida pelos cipação política do Brasil, afinal não estavam
militares brasileiros na Bahia. Desde então, dispostos a abrir mão de um território rico e
uma série de conflitos entre tropas de uns e de próspero.
outros foram compondo, ao longo de meses, o Com a iminência da guerra, quem tinha re-
clima de guerra. Com a notícia do ato de D. Pe- cursos suficientes para afastar-se de Salvador
dro às margens do rio Ipiranga no dia sete de o fez. Muitos se abrigaram em suas proprieda-
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A festa do Dois de Julho
de do Recôncavo, área recuada dentro da baía nhores de engenho, que trataram de criar e
de Todos os Santos e sob o controle dos gran- financiar batalhões patrióticos e garantir ali-
des senhores de escravos, engenhos de açúcar mentos e armas para as tropas nacionais. Para
e plantações de fumo. Mas a grande maioria estes senhores, negociantes e comerciantes
da população permaneceu em Salvador e ex- nacionais, a independência do Brasil tornava
perimentou os horrores de uma cidade sitia- possível a administração de seus negócios sem
da pelas tropas portuguesas que chegavam a interferência da Coroa portuguesa, mais pre-
de Lisboa para garantir o governo militar de ocupada em atender aos interesses das suas
Madeira de Melo. Os brasileiros, por sua vez, elites.
eram chefiados pelo general Labatut, enviado Ao lado deles, a gente pobre, urbana e li-
do Rio de Janeiro para comandar o Exército vre incomodada com os privilégios reservados
Pacificador e expulsar os portugueses das ter- aos portugueses, a exemplo do monopólio no
ras brasileiras. comércio de produtos básicos na época, como
É o fato de ter sido cenário para batalhas a farinha de mandioca. Para esta gente era na
decisivas, cercos, mortes e, é óbvio, da vitória vida cotidiana das feiras e bodegas que a sub-
sobre os portugueses que tornou as comemo- jugação aos portugueses ganhava nitidez. A
rações do Dois de Julho tão representativas. carestia e a escassez de alimentos penaliza-
Quando, enfim, a guerra eclodiu em junho vam os mais pobres, que estavam à mercê do
de 1823, quem de fato reinava na Bahia era monopólio dos comerciantes lusitanos.
a instabilidade política. Isto porque, embora Não por acaso, nos primeiros anos que se
pareça que existiam dois campos rivais bem seguiram à independência, durante as come-
demarcados, portugueses versus brasileiros, morações do Dois de Julho aconteciam protes-
a situação era bem mais complexa e mesmo tos e ataques da população contra comercian-
caótica. Entre os portugueses via-se mais he- tes portugueses. Conta o cronista Melo Moraes
gemonia. Eles estavam dispostos a lutar pelo que
controle político e comercial de Portugal sob o
Brasil, mantendo-o como colônia devidamente “Ao começar da véspera [dia 1º de julho], o
subordinada a D. João VI. comércio português fechava as portas, em ra-
Já entre os brasileiros havia planos diferen- zão dos ataques e violências das turbas, onde a
tes. Alguns proprietários de terras e escravos capadoçada ínfreme embriagava-se, zomban-
desejavam gerir seus negócios sem a inter- do dos direitos do taverneiro amedrontado,
ferência da Coroa portuguesa, mas a guerra que tudo franqueava, contanto que os deixas-
certamente comprometeria a atividade co- sem vivos”.
mercial, além do risco de o movimento se ex-
pandir para as senzalas, dando vazão a rebel- Eram os chamados “mata-marotos”, confli-
dia escrava. Por isso empenhavam-se por uma tos que envolviam a população local e os por-
conciliação capaz de manter o Brasil unido a tugueses que permaneceram na Bahia depois
Portugal, mesmo através de laços coloniais. da expulsão das tropas lusitanas chefiadas por
Dentre os partidários da radicalização da Madeira de Melo.
rebeldia brasileira estavam militares, profis- Em cena, ainda havia os escravos atentos às
sionais liberais e outros proprietários de es- divergências entre os senhores brancos, fos-
cravos que viam no controle metropolitano sem eles brasileiros ou portugueses. E meio à
o principal empecilho para sua prosperidade guerra, arrefeceu-se a vigilância sobre os cati-
econômica e ascensão social. A ideia da auto- vos e quem pretendia fugir tinha a seu favor a
nomia política mobilizou principalmente se- confusão e o desespero dos senhores. Deste
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Walmyra R. de Albuquerque
Campo Grande - Festa do Dois de Julho em Salvador (século XIX). Acervo da Fundação Pedro Calmon
modo, a disputa pelo controle do país criou tos para Salvador foram artimanhas de guerra
uma atmosfera de instabilidade social que be- que garantiram a expulsão dos portugueses
neficiava os escravos rebeldes. Além disso, a na madrugada do Dois de Julho. Mas os prin-
guerra ainda abria-lhes outra porta para fora cipais protagonistas desta vitória estavam nos
do cativeiro, o exército libertador. pelotões patrióticos vindos do Recôncavo, do
Na Bahia, atentos aos rumos dos aconte- sertão e Chapada Diamantina para enfrenta-
cimentos, escravos incorporaram-se ao lado ram, além dos portugueses, a fome, a sede e
brasileiro nos campos de batalha. É verdade o cansaço na longa jornada até os campos de
que muitos o fizeram compulsoriamente, uma batalha nos arredores de Salvador. Eram mui-
vez que os seus senhores os “alistavam” para tos negros libertos, escravos e alguns brancos
as tropas patrióticas. Outros eram escravos pobres. A vitória contra os portugueses só foi
fugidos que apresentavam para o recrutamen- possível com o recrutamento desta gente.
to nas fileiras patrióticas. Era uma forma um Deve ser por isso que o fim do domínio por-
tanto extrema de escapar da escravidão: caso tuguês foi, desde o princípio, uma festa popu-
sobrevivessem à guerra poderiam pleitear a lar, que em Salvador tem nos Caboclos seus
principais símbolos.
alforria com o nobre argumento de que ha-
viam servido a pátria. De fato, alguns escravos
assim conquistaram a liberdade. A FESTA QUE RECRIA
Não há dúvida de que sem a organização A HISTÓRIA
das autoridades políticas e militares e dos se- No período imperial, os festejos começa-
nhores de engenho do Recôncavo baiano a re- vam no dia 27 de junho, quando uma guarda
sistência às tropas portuguesas na Bahia seria de honra do exército percorria as ruas de Sal-
inviável. A articulação política, a organização vador anunciando a programação e fixando
das tropas e o bloqueio de envio de alimen- panfletos da Câmara, em exaltação ao patrio-
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A festa do Dois de Julho
tismo dos baianos. Nas noites seguintes, acon- tar poesias em comemoração ao Dois de Julho.
teciam bailes públicos a disputarem com os Embora tal descrição possa nos levar a ima-
tantos outros oferecidos pelas famílias mais ginar uma festa exclusiva aos bem vestidos e
tradicionais e importantes da cidade. bem nascidos, a festa do Dois de Julho sempre
contou com significativa e ruidosa participa-
A noite de primeiro de julho era reservada ção popular. Em 1867, por exemplo, um via-
ao bando anunciador. Eram grupos mascara- jante francês, ao participar das comemorações
dos “usando ricos disfarces” ou elegantemen- ao Dois de Julho, notou “grupos de rapazes e
te vestidos de branco que seguiam as bandas de pretos caminhando pelas ruas, seguindo
marciais e, vez por outra, paravam para reci- orquestras com bandeiras e tochas. Os cantos,
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ou melhor, os gritos patrióticos, o ruído das tarina Paraguaçu, a índia que, nos primórdios do
bombas, de flautas e de tambores, os foguetes Brasil, teria encantado Caramuru, o aventureiro
que cruzam os céus, todo este alvoroço se pro- e náufrago português que viveu entre os tupi-
longará até tarde da noite.” nambás, na região de Porto Seguro.
Mas tudo isto era apenas a véspera. Ambos são conduzidos em duas carroças
O auge das comemorações era, como con- adornadas com diversos símbolos nacionais,
tinua a ser, o desfile do dia dois de Julho. Este como brasões e nomes de batalhas e heróis da
cortejo cívico teria surgido logo depois que guerra, chamadas de carros emblemáticos. Na
os portugueses foram vencidos na decisiva Lapinha, no bairro da Liberdade, foi constru-
batalha de Pirajá, área suburbana de Salva- ído, em 1860, o pavilhão patriótico, a fim de
dor. Conta-se que as tropas brasileiras, com abrigar os caboclos enquanto o dia dois de ju-
o contingente de 9.515 homens, ao adentra- lho não chega. De lá, eles só saem para o cor-
ram a cidade entusiasmadas com a vitória, tejo cívico levados pelos populares até a praça
apropriaram-se de uma carroça abandonada do Campo Grande, onde foi inaugurado, em
pelos lusitanos, a enfeitaram com folhas ver- 1895, o majestoso monumento ao dois de ju-
des e amarelas e colocaram sobre ela um índio. lho que, como não poderia deixar de ser, tem
Inaugurava-se, assim, a festa da independência, como principal destaque a escultura de índio
que ainda tem início no bairro da Liberdade, lo- armado de arco e flecha, o qual, da altura de
cal de chegada das tropas vitoriosas. vinte cinco metros, impõe-se sobre os demais
Em 1826, o velho índio foi substituído por símbolos nacionais e os milhares de transeun-
uma escultura de madeira. O caboclo passou en- tes que diariamente passam pelo lugar.
tão a ser uma figura atlética, guerreira e altiva, No principal dia da festa, logo pela manhã,
ornada de penas. Numa das mãos ele segura bem cedo, os batalhões patrióticos começa-
uma lança apontada para uma serpente, repre- vam a tomar os seus lugares, enfileirando-se
sentação da tirania portuguesa e, na outra, em- segundo a lógica social da época: autoridades,
punha a bandeira nacional. Já a cabocla foi criada acadêmicos, militares, jornalistas, estudan-
em 1840 com o intuito de substituir a imagem tes e caixeiros vinham à frente. Em seguida,
do caboclo, visto naquele momento como hostil surgiam os batalhões representando os ser-
à presença portuguesa e mesmo incitadora de tanejos que se engajaram nas lutas de 1822-
conflitos, os já citados mata-marotos. Graças à 23. Trajavam roupa, chapéu e gibão de couro.
força simbólica do caboclo, em vez de substituí- Fechando o cortejo, o “populacho”, como a
-lo, a cabocla foi incorporada ao cortejo ao lado imprensa se referia, na época, àqueles que se
dele. A cabocla é a representação da lendária Ca- colocavam próximos aos carros emblemáticos
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A Guerra da Bahia
Referências Bibliográicas:
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Secretário de Cultura
Márcio Meirelles
Colaboração
Daniele Santos de Souza
Luís Henrique Silva Sant’Ana
Projeto gráfico
Carlos Vilmar
Impressão
Empresa Gráfica da Bahia – EGBA