Alexandre Hecker, professor aposentado de História Contemporânea da
UNESP.
As conjecturas sobre o passado, sobre pessoas ou instituições, como partidos
políticos, só têm sentido se apontarem para o futuro, isto é, se considerarem que os tempos não estão nunca concluídos. O conhecimento histórico seria definitivo apenas se a humanidade tivesse perdido completamente a sua capacidade de criar ideias e fatos, se a humanidade chegasse ao seu fim. É por isso que sempre serão feitas novas propostas de socialismo, e nenhuma delas, por sua vez, será definitiva. O que é, então, fundamental, é o respeito ao devir. Daí a atualidade do lema “socialismo e liberdade”, tão resguardado pelos antigos intelectuais militantes brasileiros do socialismo democrático. Para respeitar esta relação aberta entre passado e presente, cabe perguntar: “- O que é ser de esquerda, ser socialista, hoje?”. Como resta evidente, não há resposta única para tal questão, tão geral e tão candente não apenas para o Brasil, mas para as atuais sociedades. De toda a forma, três princípios éticos serão sempre irrevogáveis para o candidato a militante da causa: substituir competição por solidariedade, ganância por repartição, consumismo por satisfação humana. Diante da transformação civilizatória pela qual estamos passando fica difícil traçar perspectivas fechadas para o futuro das relações políticas entre os cidadãos. Vivemos uma tempestade que abarca tanto a cultura material como a espiritual. A então denominada “revolução tecnológica”, caracterizada pela automatização e robotização, está produzindo mudanças de tal forma profundas na esfera da produção e dos serviços que todos os setores da vida social serão alterados, e, em pouco tempo, o funcionamento das sociedades ficará irreconhecível do ponto de vista de um intérprete arraigado aos preceitos teóricos do século XX. Esta revolução caminhará concomitantemente com o desenvolvimento da denominada “nova era econômica”, que deverá saber aproveitar processos tecnológicos dotados de dinâmica própria: redes sociais eletrônicas, robôs, drones, impressoras 3D, internet das coisas etc. quebrarão restrições capitalistas aos produtos e vão exigir novas formas de pensar o trabalho. Uma nova distribuição do produto social se imporá, pois sem ela será impossível obter recursos necessários para controlar as sociedades: o trabalho assalariado, em processo de substituição, talvez seja transformado em ocupação de utilidade social. Advirá uma nova formação sócio-política para dar conta de tal desenvolvimento. Do ponto de vista das teorias, o que precisamos entender é que o mundo já mudou e as propostas políticas elaboradas no século XIX, experimentadas no XX, chegam ao XXI dentro de situações sócio-políticas e culturais completamente diversas. Por exemplo, mudou significativamente a relação espaço-tempo: houve uma significativa compressão nesta relação; o que ocorre num lugar é rapidamente conhecido em outro, as medidas econômicas de um país se refletem no espaço econômico global e provocam mudanças que reequilibram os poderes; há novos atores sociais, que ocupam posições distintas em relação aos conteúdos da vida em comunidade. Isto é, a simplificação representada no conceito de luta entre “proletários e burgueses” não explica as relações distintas entre os grupos sociais nos tempos atuais. O que se tem hoje é o temor de que nem a democracia sobreviva ao mundo novo das comunicações instantâneas pela internet. A questão dramática de que a cidadania contemporânea se exerce em parte pelo consumo, deve ser encarada: o pensamento político tem de cuidar dessa deturpação. É preciso entender as novas expressões do capitalismo para poder encaminhar projetos favoráveis às pessoas e, ao mesmo tempo, cercear a ganância própria da busca pelo lucro desenfreado. Como fazer para aumentar o poder das pessoas sobre os mercados? Como reagir a sistemas de comunicação que se sobrepõem às relações primárias? Neste aspecto o capital como hoje exerce seu poder é, principalmente, conhecimento: ou se busca uma democratização da tecnologia e do conhecimento ou métodos de exploração vencerão sobre a solidariedade. Na prática, na administração pública, e pensando no curto prazo, uma ação política que se assume como de esquerda deve estimular a relação mercado/estado, isto é, insistir na posição política do Estado como instância inibidora da plena liberdade de mercado, que em sua forma descontrolada tende constantemente a constituir oligopólios. Numa visão panorâmica, percebe-se esta tendência “natural” do mercado, de engolfar os serviços necessários à sociedade, quando se observa que são justamente os estados capitalistas mais desenvolvidos aqueles em que o planejamento da ação estatal em favor dos cidadãos é mais eficiente, ou seja, aqueles em que a proteção estatal funciona melhor. Assim, para realizar uma cidadania plena é preciso a decidida ação do Estado. Entretanto, é a liberdade controlada de mercado que promove o crescimento e a distribuição de bens, condições necessárias à ampliação da igualdade. De uma maneira palmar, pode-se dizer que, se por um lado o capital sabe produzir, é o Estado conspícuo que sabe distribuir. O encaminhamento, a discussão sobre estes temas, tornou-se fundamental para a marcha ao socialismo: “o mundo marcha para o socialismo”, diziam os antigos militantes, nos anos 1950, e podemos de maneira otimista reiterar esta consigna para nossos dias, desde que não nos aferremos a velhas acepções. Uma aproximação com a prática é necessária: como, então, sair da generalidade desta discussão sobre o futuro do socialismo para caminhar em um terreno menos abstrato? A resposta é: considerar as relações de poder no processo de trabalho. A forma do trabalho é a tábua de salvação neste encapelado mar de conceitos, porque de certa forma, genericamente, no nível do discurso “todo mundo” tem um pouco de socialista, de irmandade abstrata entre seres humanos. A questão se explicita, e se complica, quando se tem de atribuir a uns o esforço de produzir bens e serviços, e a outros o direito de usufruí-los. Em outras palavras, é a luta pela distribuição uniforme do esforço de trabalho no mundo globalizado que poderá abreviar a passagem por estágios no caminho para uma nova síntese global equilibrada. Às várias formas que esta luta poderá tomar chamam-se socialismo: a construção de um destino comum para a humanidade que tenha como parâmetro a justiça nas relações de trabalho, local, nacional e globalmente. É importante lembrar que foram as passadas lutas socialistas de diversos movimentos de trabalhadores, fossem operários, classes-médias, mulheres, que construíram o capitalismo democrático como ele se apresenta hoje em tantos lugares. O passo adiante nesta tarefa democrática contemporânea será aprofundar o caráter social da relação capital, Estado, trabalhadores. A prática nociva denominada neoliberalismo, apoiada numa política de enfraquecimento do Estado, constitui o projeto adversário a ser combatido, no desenvolvimento da justiça social, na estrada para um socialismo. Para o desenvolvimento desta trajetória será obrigatório considerar que muitas vezes ao longo da vida das sociedades o que prevalece são os efeitos não- intencionais das ações que as pessoas adotam intencionalmente. Portanto, o que é próprio da conduta humana é lidar com uma racionalidade limitada. Sobre o que parece absolutamente objetivo predomina sempre o caráter errático das ações humanas, daí que o caminho mais eficiente para atingir intenções políticas de tipo democráticas seja fugir da ingênua e perniciosa aposta em utopias impermeáveis. Por outro lado, vale lançar esperanças em projetos sociais abertos como a tentativa de realização de sistemas radicalmente imbuídos de finalidades igualitárias e libertárias. De todo o modo, para a consecução de planos semelhantes serão sempre imprescindíveis amplas conjecturas sobre as certamente muitas e diversas maneiras de buscar concretizá-los. Em nosso país, na conjuntura dramática em que nos vemos colocados, como proposição preliminar nesta interminável procura, neste desafio de construir opções que se contraponham à lógica concentradora e excludente tão comum em desenfreados sistemas capitalistas, as lutas específicas podem ser difusamente definidas como as que se seguem: - por uma economia que, aberta às mudanças mundiais, à competição, incentive o trabalho solidário; - que garanta uma renda mínima aos cidadãos trabalhadores e promova paulatinamente a redução das jornadas de trabalho; - que distribua a arrecadação de impostos de maneira a compensar as diferenças socioeconômicas; - no plano social, tem-se de lutar por uma relação harmônica entre os grupos da sociedade que impeça a formação de privilégios e de corporativismos diante do Estado; - no plano político estrito senso, os desafios começam com a reunião de agentes comprometidos com a honestidade no trato dos assuntos públicos e a montagem de regras suficientes para a existência de partidos políticos que representem fidedignos interesses socioideológicos, impedindo o abuso destas associações por verdadeiros “caciques”. A consulta ao passado das manifestações socialistas no Brasil, o estudo de sua tão rica história, é certamente um facho a iluminar o caminho para alguma forma de socialismo futuro... contando com toda a sua inescapável imprevisibilidade. O socialista não tem direito à certeza, mas justamente por isso tem direito à esperança! Tendo sempre a história como base e o futuro como objeto.