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REVISTA DO CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE

VOLUME 46, NÚMERO ESPECIAL 2


RIO DE JANEIRO, JUN 2022
ISSN 0103-1104

Saúde,
agrotóxicos e
agroecologia
SAÚDE EM DEBATE
A revista Saúde em Debate é uma publicação do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde Luiz Augusto Facchini – Universidade Federal de Pelotas, Pelotas (RS), Brasil (https://
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VOLUME 46, NÚMERO ESPECIAL 2
RIO DE JANEIRO, JUN 2022

ÓRGÃO OFICIAL DO CEBES


Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
ISSN 0103-1104
REVISTA DO CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE
VOLUME 46, NÚMERO ESPECIAL 2
RIO DE JANEIRO, JUN 2022

APRESENTAÇÃO | PRESENTATION 45 Exposição aos agrotóxicos, condições de


saúde autorreferidas e Vigilância Popular em
7 Contribuições para um debate estratégico Saúde de municípios mato-grossenses
na saúde coletiva: da luta contra os Exposure to pesticides, health conditions, and
agrotóxicos à necessidade de maior popular surveillance of municipalities of Mato
envolvimento no campo agroecológico Grosso
Contributions to a strategic debate on
Wanderlei Antonio Pignati, Mariana Rosa Soares,
collective health: from the fight against
Stephanie Sommerfeld de Lara, Francco Antonio Neri
pesticides to the need for greater involvement
de Souza e Lima, Nara Regina Fava, Jackson Rogério
in the agroecological field
Barbosa, Marcia Leopoldina Montanari Corrêa
Guilherme Franco Netto, Aline do Monte Gurgel,
André Campos Burigo 62 Entre denunciar y aguantar. Sojización,
plaguicidas y participación en salud
ambiental en Uruguay
ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE Between denouncing and enduring. Soybean
13 Territórios tradicionais de vida e as zonas expansion, pesticides and environmental health
de sacrifício do agronegócio no Cerrado participation in Uruguay
Traditional life territories and the agribusiness Victoria Evia
sacrifice zone in the Cerrado
75 Consumo e impactos de los agrotóxicos en
Raquel Maria Rigotto, Valéria Pereira Santos,
Colombia: comunidades envenenadas
André Monteiro Costa
Consumption and impacts of agrochemicals in
28 Territórios indígenas e determinação Colombia: poisoned communities
socioambiental da saúde: discutindo Lina Marcela Meneses Cabrera
exposições por agrotóxicos
Indigenous territories and socio-environmental 89 As mulheres lavradoras e os agrotóxicos no
determination of health: discussing exposure by cotidiano da agricultura familiar
pesticides Women farmers and pesticides in daily family
farming
Francco Antonio Neri de Souza e Lima, Marcia
Leopoldina Montanari Corrêa, Silvia Angela Amália Oliveira Carvalho, Herling Gregorio Aguilar
Gugelmin Alonzo

102 Uso de agrotóxicos e saúde de trabalhadores


rurais em municípios de Pernambuco
Use of pesticides and the health of rural workers in
municipalities in Pernambuco
Glaucia da Silva Pessoa, Pedro Costa Cavalcanti de
Albuquerque, Geiziane Silva Cotrim, Aline do Monte
Gurgel, Paulo Victor Rodrigues de Azevedo Lira, Idê
Gomes Dantas Gurgel, Adriana Guerra Campos
SUMÁRIO | CONTENTS

122 Empoderamento e construção coletiva de 175 Desigualdade espacial na compra de


estratégias ante vulnerabilidades e situações alimentos da agricultura familiar para
de risco no uso de agrotóxicos alimentação escolar no Brasil
Empowerment and collective elaboration of Spatial inequality in the purchase of food from
strategies based on the vulnerabilities and risk family agriculture for school feeding in Brazil
situations in the use of pesticides Genykléa Silva de Oliveira, Ana Emília Galvão e Silva
Cheila Nataly Galindo Bedor, Cristiano Almeida Holanda, Maria Arlete Duarte de Araújo, Javier Jerez-
Bastos, Monize da Silva Cavalache, Rosimeire Morais Roig, Maria Angela Fernandes Ferreira
Cardeal Simão
190 Exposição infantil aos agrotóxicos: avaliação
133 Investigando os olhares da saúde coletiva de alimentos representativos da dieta de
sobre a agroecologia crianças do município do Rio de Janeiro
Investigating the views of collective health on Children’s exposure to pesticides: evaluation of
agroecology food representatives of children’s diets in the city
Lorena Portela Soares, Rosely Magalhães de Oliveira, of Rio de Janeiro
Danielle Ribeiro de Moraes Angélica Castanheira de Oliveira, Lucia Helena Pinto
Bastos, Maria Helena Wohlers Morelli Cardoso, Armi
149 Cultivo Biodinâmico de Plantas Medicinais Wanderley da Nóbrega
em Agroflorestas na Promoção de Territórios
Saudáveis e Sustentáveis: uma proposta 210 A comercialização de agrotóxicos e o modelo
pedagógica de formação-ação químico-dependente da agricultura do Brasil
Biodynamic Cultivation of Medicinal Plants in The commercialization of pesticides and the
Agroforests to Promote Healthy and Sustainable chemical-dependent model of agriculture in Brazil
Territories: a pedagogical proposal for training- Suellen Dayse de Moura Ribeiro, Marília Teixeira de
action Siqueira, Idê Gomes Dantas Gurgel, George Tadeu
Gislei Siqueira Knierim, Virginia da Silva Corrêa, Nunes Diniz
Nelson Filice de Barros, Marcos Antonio Trajano
Ferreira, Ximena Soledad Moreno Sepúlveda, Ana 224 Impactos da pulverização aérea de
Paula Andrade Silva Milhomem, André Luiz Dutra agrotóxicos em uma comunidade rural em
Fenner contexto de conflito
Impacts of aerial spraying of pesticides in a rural
163 Compra de alimentos da agricultura familiar community in a context of conflict
para a alimentação escolar: a situação do Rio Lucinéia Miranda de Freitas, Renato Bonfatti, Luiz
Grande do Norte Carlos Fadel de Vasconcellos
Purchase of food from family farming for school
feeding: the situation in Rio Grande do Norte
Leticia Gabriella Souza da Silva, Genykléa Silva de
Oliveira, Clélia de Oliveira Lyra, Liana Galvão Bacurau
Pinheiro, Renata Alexandra Moreira das Neves, Maria
Angela Fernandes Ferreira
SUMÁRIO | CONTENTS

236 Fim dos benefícios fiscais aos agrotóxicos, 293 Toxicologia crítica aplicada aos
sustentabilidade da agricultura e a saúde agrotóxicos – perspectivas em defesa da
no Brasil vida
End of tax benefits for pesticides, agricultural Critical toxicology applied to pesticides –
sustainability and health in Brazil perspectives in the defense for life
Wagner Lopes Soares, Lucas Cunha, Marcelo Karen Friedrich, Aline do Monte Gurgel, Marcia
Firpo Porto Sarpa, Cheila Nataly Galindo Bedor, Marília
Teixeira de Siqueira, Idê Gomes Dantas Gurgel, Lia
249 Territórios Saudáveis e Sustentáveis Giraldo da Silva Augusto
(TSS) no Distrito Federal: agroecologia e
impacto dos agrotóxicos 316 Soberanía Alimentaria, una estrategia
Healthy and Sustainable Territories (TSS) terapéutica para recuperar la salud ante el
in the Federal District: agroecology and the avance del extractivismo agroindustrial
impact of pesticides Food Sovereignty, a therapeutic strategy
André Luiz Dutra Fenner, Vicente Eduardo Soares for reclaiming health in the face of the
de Almeida, Karen Friedrich, Ana Paula Andrade agroindustrial extractivism thrust
Silva Milhomem Damián Verzeñassi, Lucía Enríquez, Alejandro
Vallini, Gabriel Keppl

ENSAIO | ESSAY 327 Saúde mental, direitos humanos e justiça


ambiental: a ‘quimicalização da vida’
262 Saúde coletiva e agroecologia: necessárias como uma questão de violação de direitos
conexões para materializar sistemas humanos decorrente da intoxicação
alimentares sustentáveis e saudáveis institucionalizada
Collective health and agroecology: necessary Mental health, human rights and
connections to build healthy and sustainable environmental justice: the chemicalization of
food systems life as a matter of violation of human rights
Natália Ferreira de Paula, Islandia Bezerra, Nilson due to institutionalized intoxication
Maciel Paula
Eduardo Torre, Paulo Amarante

277 Vozes e fazeres do semiárido: convites à 345 Bases teóricas para promoção da saúde e
descolonização do campo científico, rumo resistência camponesa: um novo horizonte
a outras práxis metodológico
Voices and actions in the semi-arid region: Theoretical bases for peasant health promotion
invitations to decolonize science, towards other and resistance: a new methodological horizon
praxis
Pedro Henrique Barbosa de Abreu, Herling
Raquel Maria Rigotto, Mayara Melo Rocha,
Gregorio Aguilar Alonzo
Saulo da Silva Diógenes, Rafaela Lopes de Sousa,
Andrezza Graziella Veríssimo Pontes, Luana
Carolina Braz de Lima, Andréa Machado Camurça,
Maiana Maia Teixeira
SUMÁRIO | CONTENTS

363 Agroecologia e saúde coletiva na 426 Covid-19 e a fome: reflexões sobre um


construção dos agrotóxicos como futuro agroecológico
problema de saúde pública no Brasil Covid-19 and hunger: reflections about an
Agroecology and Collective Health in the agroecological future
construction of pesticides as a public health Letiane de Souza Machado, Edna Linhares Garcia
problem in Brazil
Bráulio Silva Chaves, Lucas Araújo Dutra 438 Os agrotóxicos no contexto da Saúde
Rodrigues, Denise Nacif Pimenta Única
Pesticides in the context of One Health
377 Da pandemia à agroecologia: redes de Edaciano Leandro Losch, Caroline Bedin Zanatta,
solidariedade na construção de um novo Giuliano Pereira de Barros, Marília Carla de Mello
paradigma socioecológico Gaia, Patrizia Ana Bricarello
From the pandemic to agroecology: building a
new socio-ecological paradigm 455 Tão perto e tão longe: trajetória da
Carolina Burle de Niemeyer, Vicente Carvalho agroecologia na agenda brasileira de
Azevedo da Silveira políticas públicas
So close and so far: trajectory of agroecology
391 Contrapontos e inconsistências do on the Brazilian public policy agenda
discurso da produtividade do agronegócio João Mendes da Rocha Neto
e suas externalidades sob a ótica do
biopoder 467 O caráter pandêmico dos desastres
Counterpoints and inconsistencies in the socioambientais e sanitários do
discourse of agribusiness productivity and its agronegócio
externalities from the perspective of biopower The pandemic nature of agribusiness’ socio-
Rafaela Corrêa Pereira, Paula Bernardes Machado, environmental and sanitary disasters
Michel Cardoso de Angelis-Pereira Wanderlei Antonio Pignati, Mariana Rosa Soares,
Marcia Leopoldina Montanari Corrêa, Luís
407 Exposição a agrotóxicos e Henrique da Costa Leão
desenvolvimento de câncer no contexto
da saúde coletiva: o papel da agroecologia
como suporte às políticas públicas de
prevenção do câncer
Exposure to pesticides and cancer development
in the context of public health: the role of
agroecology as a support for public cancer
prevention policies
Marcia Sarpa, Karen Friedrich
SUMÁRIO | CONTENTS

REVISÃO | REVIEW 527 Vigilância em saúde de populações


expostas a agrotóxicos: agroecologia e
482 Agrotóxicos, desfechos em saúde e participação social
agroecologia no Brasil: uma revisão de Health surveillance of populations exposed to
escopo pesticides: agroecology and social participation
Pesticides, health outcomes and agroecology in
Pedro Costa Cavalcanti de Albuquerque, Paulo
Brazil: a scope review
Victor Rodrigues de Azevedo Lira, Idê Gomes
Vanessa Daufenback, Adriana Adell, Milena Dantas Gurgel, Giselle Azevedo da Rocha
Regina Mussoi, Adriella Camila Fedyna Furtado,
Shirleyde Alves dos Santos, Denise Piccirillo 542 Feiras Orgânicas enquanto política de
Barbosa da Veiga abastecimento alimentar e promoção da
saúde: um estudo de caso
501 Caracterização da saúde e saneamento de Organic Markets as a policy of food supply and
uma comunidade quilombola no entorno health promotion: a case study
da capital do Brasil: um scoping review
Soraia Martins de Carvalho, Islandia Bezerra, Silvia
Characterization of health and sanitation in a
do Amaral Rigon, Julian Perez Cassarino
quilombola community in the surroundings of
the capital of Brazil: a scoping review
Aurélio Matos Andrade, Diogo Caiafa Moreira RESENHA | CRITICAL REVIEW
Lopes de Faria, Fellipe Manoel de Sousa Franca,
Fernanda Reis Ribeiro, Marcelo Fernandes Barbosa 555 Direitos dos agricultores: o legado de
de Oliveira, Marcos André de Matos Juliana Santilli na interface entre as
relações jurídicas e a agrobiodiversidade
brasileira
RELATO DE EXPERIÊNCIA | CASE STUDY Naiara Andreoli Bittencourt

518 Chácara Bindu, uma experiência de


558 Porto MF, Rocha DF, Fasanello MT. Saúde,
agroecologia, conservação produtiva,
ecologias e emancipação: conhecimentos
educação e saúde
alternativos em tempos de crise(s)
Chácara Bindu, an experience in agroecology,
productive conservation, education, and health Guilherme Franco Netto, Mariano Andrade da
Silva, Aline do Monte Gurgel
Ximena Soledad Moreno Sepúlveda, Marcos
Antonio Trajano Ferreira, Ana Paula Andrade Silva
Milhomem, André Fenner, Virginia da Silva Corrêa,
Gislei Siqueira Knierim, Nelson Filice de Barros
APRESENTAÇÃO 7

Contribuições para um debate estratégico na


saúde coletiva: da luta contra os agrotóxicos
à necessidade de maior envolvimento no
campo agroecológico
Guilherme Franco Netto1,2, Aline do Monte Gurgel3, André Campos Burigo1,4

DOI: 10.1590/0103-11042022E200

BEM-VINDOS E BEM-VINDAS A ESTE NÚMERO ESPECIAL DA ‘SAÚDE EM DEBATE’ que tem como
tema ‘Saúde, Agrotóxicos e Agroecologia’ e que foi construído para contribuir com um debate
estratégico, direcionado para aprofundar a compreensão de abordagens teóricas, práticas e
epistemológicas mais críticas voltadas para o fortalecimento da agroecologia e a redução das
nocividades dos agrotóxicos para a saúde, o ambiente e a sociedade. Buscou-se refletir sobre
a relação entre esses elementos e o campo da saúde coletiva, na perspectiva de promover uma
transição em direção a sistemas alimentares que propiciem justiça socioambiental, segurança
e soberania alimentar e nutricional, territórios sustentáveis e a saúde.
O aprofundamento da crise estrutural do capital revela uma ‘crise civilizatória e planetária’,
que se materializa na ampliação das iniquidades sociais, com concentração de renda, aumento
da miséria e da fome; e na destruição dos ecossistemas, deteriorando a saúde das populações.
No centro dessa crise, está o modo de produção hegemônico do agronegócio, dependente do uso
de insumos químicos, da exploração ambiental e da força de trabalho, reprodutor de sementes
transgênicas e que pressiona para o enfraquecimento de normativas voltadas à proteção do
ambiente e da saúde humana.
Como consequência, o Brasil tem vivenciado um período de retrocessos, com redução dos di-
reitos sociais e de proteção ambiental, conquistados por meio de lutas históricas, que culminaram
1 Fundação Oswaldo Cruz
com a Constituição de 1988. A profunda crise econômica, social, ambiental, sanitária e ética na
(Fiocruz), Vice-Presidência
qual o País está inserido ameaça a democracia e é agravada, a partir de 2020, com a pandemia de de Ambiente, Atenção
Covid-19, que foi utilizada como uma ‘oportunidade para passar a boiada’ para reduzir ainda mais e Promoção da Saúde
(VPAAPS) – Rio de Janeiro
a atuação do Estado na proteção social, do meio ambiente e da saúde humana. (RJ), Brasil.
Como resultados imediatos, observam-se o desmonte do sistema de regulação de agrotóxicos guilherme.franco.netto@
gmail.com
e a liberação acelerada dessas substâncias, incluindo produtos obsoletos no mercado nacional;
2 Associação Brasileira de
a fragilização dos sistemas de monitoramento e fiscalização1; o desmantelo de políticas públicas
Saúde Coletiva (Abrasco),
de incentivo à agroecologia e à produção orgânica; a desestruturação dos canais de participação Grupo Temático Saúde e
da sociedade civil nas políticas públicas; o aumento exponencial do desmatamento e das quei- Ambiente (GT Saúde e
Ambiente) – Rio de Janeiro
madas; a deslegitimação do conhecimento científico e a perseguição de pesquisadores; o corte do (RJ), Brasil.
financiamento do Sistema Único de Saúde; e a militarização do Ministério da Saúde. 3 Fundação Oswaldo Cruz,
Os impactos desse modelo de produção não se distribuem de forma equânime nos territórios, Instituto Aggeu Magalhães
afetando de forma mais severa os camponeses e os povos e comunidades tradicionais, que estão (IAM) – Recife (PE), Brasil.

sobre forte ataque pela contaminação das águas, solos e ar, perda da biodiversidade, tentativas 4 Associação Brasileira
de legalizar a grilagem de terras e adoecimentos e mortes relacionadas com a exposição aos de Agroecologia (ABA),
Grupos de Trabalho (GT) –
agrotóxicos. Os biomas brasileiros estão em acelerado processo de devastação. Rio de Janeiro (RJ), Brasil.

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 7-12, JUN 2022
8 Corrêa Netto
Franco Filho HR
G, Gurgel AM, Burigo AC

Destacamos, a título de exemplo, sistematizações e análises de dados que apontam para o


ecocídio dos cerrados2, bioma central de nosso País, e a inédita recomendação que o Conselho de
Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) recebeu – em períodos considerados
democráticos – de abrir investigação sobre o governo brasileiro sobre violação de direitos humanos
e crimes ambientais. O informe apresentado, sobre visita oficial ao Brasil, em dezembro de 2019,
do relator especial da ONU para direitos humanos, conclui que o País se afasta da solidariedade
internacional, apresenta um conjunto de retrocessos referentes aos direitos humanos que requerem
atenção urgente e que se a situação não for controlada, a possível catástrofe nacional poderá avançar
para uma tragédia regional e global fenomenal, com a destruição do clima3.
Os custos do ataque às garantias de proteção social, ambiental e da saúde, à ordem jurídica
e ao Estado Social são elevados, tanto para a saúde quanto para o ambiente; e a busca de outros
modos de produção e de relações com a natureza que reduzam o impacto desse modelo se
coloca como urgente e necessária na sociedade contemporânea.
Parte-se da premissa de que não é possível conceber a precarização de direitos conquistados,
materializados em legislações mais protetivas para a saúde e para o ambiente, considerando-
-se o princípio da proibição do retrocesso social, pressuposto básico para a existência de um
Estado Democrático de Direito.
Isso revela a importância atual do conjunto de experiências da agrobiodiversidade, que
crescentemente se articula em redes em torno do movimento agroecológico para a saúde da
população e do planeta, mas que também ensina sobre formas diversas de estar no mundo, de
se relacionar com a natureza, solidárias e inclusivas, alternativas concretas para superação dos
paradigmas enfrentados pela humanidade.
No momento que esta revista é publicada, passaram-se dois anos e seis meses desde o início
da pandemia de Covid-19, que atinge a humanidade no contexto de reconhecimento de uma
sindemia global de fome, de sobrepeso e obesidade e das mudanças climáticas4 por guardarem
relação de causa com o sistema alimentar neoliberal, que expressam as consequências da
referida crise estrutural e são intensificadas pela pandemia causada pelo Sars-CoV-2. Não há
vacina contra a fome ou para as mudanças climáticas, a superação dessas graves crises passa,
necessariamente, por uma transição radical e rápida de sistemas (agro)alimentares. É isso o
que concluem relatórios internacionais produzidos por dezenas ou centenas de especialistas
do mundo sobre segurança alimentar e nutricional, mudanças climáticas, biodiversidade e
serviços ecossistêmicos publicados nos últimos anos5. O enfoque agroecológico vem ganhando
destaque em alguns desses relatórios, graças ao avanço da produção de conhecimentos, para a
qual o campo da saúde tem muito a contribuir6.
É nesse cenário de ameaças e resistências que este número especial sobre ‘Saúde, Agrotóxicos
e Agroecologia’ está inserido, buscando estimular a produção e a disseminação de conhecimentos
sobre o papel da saúde coletiva na luta contra os agrotóxicos e contra um modelo de agricultura
adoecedor. Busca também pensar como o campo da saúde coletiva pode contribuir para a construção
da agroecologia enquanto um enfoque técnico-científico coerente com um conjunto de práticas em
resistência, em um movimento político civilizatório para enfrentar os desafios atuais.
Os trabalhos presentes neste número especial abrangem tanto reflexões e abordagens críticas
às categorias, epistemologias e práticas que conformam a atividade científica quanto ao envolvi-
mento do campo da saúde coletiva nessas temáticas. Estas têm se dedicado a analisar os aspectos
conjunturais que impulsionam esse modelo de produção, bem como a revelar os impactos dos
agrotóxicos para a saúde e para o ambiente, envidando esforços crescentes voltados à formulação
de políticas públicas mais protetivas, bem como de experiências territoriais promotoras do direito
humano à alimentação adequada e voltadas à promoção emancipatória da saúde.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 7-12, JUN 2022


Contribuições para um debate estratégico na saúde coletiva: da luta contra os agrotóxicos à necessidade
A utopiade
domaior
debateenvolvimento
democráticono
nacampo
Vigilância
agroecológico
em Saúde 9

Consideramos que os objetivos propostos para esta edição da ‘Saúde em Debate’ foram alcan-
çados. Com a composição de 38 textos, que envolvem o esforço de dezenas de pesquisadores/as
de diversas instituições, esta revista contribui para compreender o lugar do Brasil e da América
Latina no sistema alimentar global e seus diferentes efeitos sobre a saúde, em diferentes escalas.
Outrossim, contribui também por causa de conceitos e métodos utilizados. Amplia-se significa-
tivamente o acesso a artigos que refletem sobre temas pouco tratados ou até inéditos em revistas
da saúde coletiva. Ressalta-se a relevância de estabelecimento de pontes e convergências entre
a saúde coletiva e a agroecologia, compreendida nas suas dimensões epistemológicas, teóricas,
conceituais, metodológicas e práticas. Desejamos que, de diferentes formas, este trabalho fortaleça
as aproximações entre os campos da saúde e da agroecologia.

Colaboradores
Franco Netto G (0000-0002-8861-8897)*, Gurgel AM (0000-0002-5981-3597)* e Burigo AC
(0000-0002-1640-6289)* contribuíram igualmente para a elaboração do manuscrito. s

Referências

1. Gurgel AM, Guedes CA, Friedrich K. Flexibilização org/EN/Issues/Environment/ToxicWastes/Pages/


da regulação de agrotóxicos enquanto oportunidade Visits.aspx.
para a (necro)política brasileira: avanços do agrone-
gócio e retrocessos para a saúde e o ambiente. Desenv. 4. Burigo AC, Porto MF. Agenda 2030, saúde e siste-
Meio Amb. 2021 [acesso em 2022 jun 2]; 57(esp):135- mas alimentares em tempos de sindemia: da vul-
159. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/made/ar- nerabilização à transformação necessária. Ciênc.
ticle/view/79158. Saúde Colet. 2021 [acesso em 2022 jun 2]; 26(10):4411-
24. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/
2. Egger DS, Rigotto RM, Lima FANS, et al. Ecocídio nos p36TMkBKMZqnkxD7WXcfbxx/abstract/?lang=pt.
Cerrados: agronegócio, espoliação das águas e con-
taminação por agrotóxicos. Desenv. Meio Amb. 2021 5. Swinburn BA, Kraak VI, Allender S, et al. The Glo-
[acesso em 2022 jun 2]; 57(esp):16-54. Disponível em: bal Syndemic of Obesity, Undernutrition, and Cli-
https://revistas.ufpr.br/made/article/view/76212. mate Change: The Lancet Commission report. The
Lancet. 2019; 393(10173):791-846.
3. Organização das Nações Unidas. Conselho de Direi-
tos Humanos. Visit to Brazil. Report of the Special 6. O’Rourke ME, DeLonge MS, Salvador R. Insights
Rapporteur on the implications for human rights of from agroecology and a critical next step: integra-
the environmentally sound management and dispo- ting human health. Agroecol. Sust. Food Syst. 2017
sal of hazardous substances and wastes, Mr Baskut [acesso em 2020 fev 21]; 41(7):880-884. Disponível
Tuncak, on his mission to Brazil. 2020. [acesso em em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080 *Orcid (Open Researcher
2022 maio 31]. Disponível em: https://www.ohchr. /21683565.2017.1326073. and Contributor ID).

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 7-12, JUN 2022


10 PRESENTATION

Contributions to a strategic debate on


collective health: from the fight against
pesticides to the need for greater
involvement in the agroecological field
Guilherme Franco Netto1,2, Aline do Monte Gurgel3, André Campos Burigo1,4

DOI: 10.1590/0103-11042022E200I

WELCOME TO THIS SPECIAL ISSUE OF ‘SAÚDE EM DEBATE’, whose theme is ‘Health, Pesticides,
and Agroecology’ and which was built to contribute to a strategic debate, seeking to deepening
the understanding of more critical theoretical, practical, and epistemological approaches aimed
at strengthening agroecology and reducing the harmful effects of pesticides on health, the
environment, and society. We sought to reflect on the relationship between these elements and
the field of collective health, with a view to promoting a transition towards food systems that
provide socio-environmental justice, food and nutrition security and sovereignty, sustainable
territories, and health.
The deepening of the structural crisis of capital reveals a ‘civilization and planetary crisis’,
which materializes in the expansion of social inequities, with concentration of income, increase
in extreme poverty and hunger; and in the destruction of ecosystems, deteriorating the health
of populations. At the center of this crisis is the hegemonic mode of production of agribusiness,
which depends on the use of chemical inputs, environmental and workforce exploitation,
breeding of transgenic seeds and which pushes for the weakening of regulations aimed at
protecting the environment and human health.
As a result, Brazil has been experiencing a period of setbacks, with a reduction in social and
environmental protection rights, conquered through historical struggles, which culminated in
1 Fundação Oswaldo Cruz the 1988 Constitution. The deep economic, social, environmental, sanitary, and ethical crisis
(Fiocruz), Vice-Presidência
de Ambiente, Atenção in which the country is inserted threatens democracy and is aggravated, as of 2020, with the
e Promoção da Saúde COVID-19 pandemic, which was used as an ‘opportunity to pass the herd’ to further reduce
(VPAAPS) – Rio de Janeiro
(RJ), Brasil. the State’s role in social, environmental, and human health protection
guilherme.franco.netto@ As immediate results, we can observe the dismantling of the pesticide regulation system
gmail.com
and the accelerated release of those substances, including obsolete products in the national
2 Associação Brasileira de
market; the weakening of monitoring and inspection systems1; the dismantling of public po-
Saúde Coletiva (Abrasco),
Grupo Temático Saúde e licies to encourage agroecology and organic production; the disruption of channels for civil
Ambiente (GT Saúde e society participation in public policies; the exponential increase in deforestation and fires; the
Ambiente) – Rio de Janeiro
(RJ), Brasil. delegitimization of scientific knowledge and the persecution of researchers; cutting funding
3 Fundação
for the Unified Health System; and the militarization of the Ministry of Health.
Oswaldo Cruz,
Instituto Aggeu Magalhães The impacts of this production model are not evenly distributed in the territories, affecting
(IAM) – Recife (PE), Brasil. more severely peasants and traditional peoples and communities, who are under strong attack
4 Associação Brasileira by the contamination of water, soil and air, loss of biodiversity, attempts to legalize land fraud
de Agroecologia (ABA), and illnesses and deaths related to exposure to pesticides. Brazilian biomes are in an accelerated
Grupos de Trabalho (GT) –
Rio de Janeiro (RJ), Brasil. process of devastation.

This article is published in Open Access under the Creative Commons Attribution
license, which allows use, distribution, and reproduction in any medium, without
SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 7-12, JUN 2022 restrictions, as long as the original work is correctly cited.
Contributions to a strategic debate on collective health: from the fight against pesticides to theAneed
utopia
fordo
greater
debateinvolvement
democrático
in na
theVigilância
agroecological
em Saúde
field 11

We highlight, for instance, systematization and data analysis that point to the ecocide of the
cerrados2, the central biome of our country, and the unprecedented recommendation that the
Human Rights Council for the United Nations (UN) received – in periods considered demo-
cratic – to open an investigation into the Brazilian government on human rights violations and
environmental crimes. The report presented, on an official visit to Brazil, in December 2019, by
the UN special rapporteur for human rights, concludes that the country is moving away from
international solidarity, presents a set of setbacks related to human rights that require urgent
attention and if the situation is not controlled, the possible national catastrophe could progress
to a phenomenal regional and global tragedy, with the destruction of the climate3.
The costs of attacking the guarantees of social, environmental, and health protection, the
legal order, and the Welfare State are high, both for health and for the environment; and the
search for other modes of production and relationships with nature that reduce the impact of
this model is urgent and necessary in contemporary society.
We start from the premise that it is not possible to conceive the precariousness of conquered
rights, materialized in more protective legislation for health and the environment, considering the
principle of prohibiting social regression, a basic assumption for the existence of a Democratic State.
This reveals the current importance of the set of agrobiodiversity experiences, which are
increasingly articulated in networks around the agroecological movement for the health of the
population and the planet, but which also teaches about different ways of being in the world,
of relating to nature, ways that are solidary and inclusive, concrete alternatives to overcome
the paradigms faced by humanity.
At the time this journal is published, two years and six months have passed since the be-
ginning of the COVID-19 pandemic, which hits humanity in the context of the recognition of
a global syndemic of hunger, overweight and obesity, and climate change4 due to the causal
relationship maintained with the neoliberal food system, which express the consequences of the
aforementioned structural crisis and are intensified by the pandemic caused by SARS-CoV-2.
There is no vaccine against hunger or climate change, overcoming these serious crises necessarily
involves a radical and rapid transition of (agri)food systems. That is what international reports
produced by dozens or hundreds of experts around the world conclude on food and nutrition
security, climate change, biodiversity, and ecosystem services published in recent years5. The
agroecological approach has been gaining prominence in some of these reports, thanks to the
advancement of knowledge production, to which the health field has much to contribute6.
It is in this scenario of threats and resistance that this special issue on ‘Health, Pesticides, and
Agroecology’ is inserted, seeking to stimulate the production and dissemination of knowledge
about the role of collective health in the fight against pesticides and against a sickening model
of agriculture. It also seeks to think about how the field of public health can contribute to the
construction of agroecology as a technical-scientific approach consistent with a set of practices
in resistance, in a civilizing political movement to face current challenges.
The studies present in this special issue cover both reflections and critical approaches to the
categories, epistemologies, and practices that shape scientific activity and the involvement of the
field of public health in such themes. These have been dedicating to analyzing the conjunctural
aspects that drive this production model, as well as revealing the impacts of pesticides on health
and the environment, making increasing efforts aimed at formulating more protective public
policies, as well as territorial experiences for the promotion of the human right to adequate
food and aimed at the emancipatory promotion of health.
We believe that the objectives proposed for this issue of ‘Saúde em Debate’ have been
achieved. With the composition of 38 texts, which involve the efforts of dozens of researchers

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 7-12, JUN 2022


12 Corrêa Netto
Franco Filho HR
G, Gurgel AM, Burigo AC

from different institutions, this journal contributes to understanding the place of Brazil and
Latin America in the global food system and its different effects on health, at different scales.
Furthermore, it also contributes because of the concepts and methods used. Access to articles
that reflect on topics that are little addressed or even unpublished in public health journals is
significantly expanded. We emphasize the importance of establishing bridges and convergen-
ces between collective health and agroecology, understood in its epistemological, theoretical,
conceptual, methodological, and practical dimensions. We hope that, in different ways, this
work strengthens the approximations between the fields of health and agroecology.

Collaborators
Franco Netto G (0000-0002-8861-8897)*, Gurgel AM (0000-0002-5981-3597)*, and Burigo
AC (0000-0002-1640-6289)* have equally contributed to the elaboration of the manuscript. s

References

1. Gurgel AM, Guedes CA, Friedrich K. Flexibilização org/EN/Issues/Environment/ToxicWastes/Pages/


da regulação de agrotóxicos enquanto oportunidade Visits.aspx.
para a (necro)política brasileira: avanços do agrone-
gócio e retrocessos para a saúde e o ambiente. Desenv. 4. Burigo AC, Porto MF. Agenda 2030, saúde e siste-
Meio Amb. 2021 [acesso em 2022 jun 2]; 57(esp):135- mas alimentares em tempos de sindemia: da vul-
159. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/made/ar- nerabilização à transformação necessária. Ciênc.
ticle/view/79158. Saúde Colet. 2021 [acesso em 2022 jun 2]; 26(10):4411-
24. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/
2. Egger DS, Rigotto RM, Lima FANS, et al. Ecocídio nos p36TMkBKMZqnkxD7WXcfbxx/abstract/?lang=pt.
Cerrados: agronegócio, espoliação das águas e con-
taminação por agrotóxicos. Desenv. Meio Amb. 2021 5. Swinburn BA, Kraak VI, Allender S, et al. The Glo-
[acesso em 2022 jun 2]; 57(esp):16-54. Disponível em: bal Syndemic of Obesity, Undernutrition, and Cli-
https://revistas.ufpr.br/made/article/view/76212. mate Change: The Lancet Commission report. The
Lancet. 2019; 393(10173):791-846.
3. Organização das Nações Unidas. Conselho de Direi-
tos Humanos. Visit to Brazil. Report of the Special 6. O’Rourke ME, DeLonge MS, Salvador R. Insights
Rapporteur on the implications for human rights of from agroecology and a critical next step: integra-
the environmentally sound management and dispo- ting human health. Agroecol. Sust. Food Syst. 2017
sal of hazardous substances and wastes, Mr Baskut [acesso em 2020 fev 21]; 41(7):880-884. Disponível

*Orcid (Open Researcher


Tuncak, on his mission to Brazil. 2020. [acesso em em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080
and Contributor ID). 2022 maio 31]. Disponível em: https://www.ohchr. /21683565.2017.1326073.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 7-12, JUN 2022


ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE 13

Territórios tradicionais de vida e as zonas de


sacrifício do agronegócio no Cerrado
Traditional life territories and the agribusiness sacrifice zone in the
Cerrado

Raquel Maria Rigotto1, Valéria Pereira Santos2, André Monteiro Costa3

DOI: 10.1590/0103-11042022E201

RESUMO A imensa sociobiodiversidade do Cerrado brasileiro pode ser compreendida a partir dos modos
de vida construídos pelo amplo leque de povos e comunidades tradicionais em suas relações com o bioma,
do qual são guardiãs. Nas últimas décadas, projetos de desenvolvimento promovem ali acelerado avanço
do agronegócio, expropriando terras, privatizando águas, contaminando o ambiente e ameaçando ou
inviabilizando modos de vida tradicionais. Neste artigo, parte-se da percepção de mulheres de Campos
Lindos/TO, sobre as consequências trazidas às suas vidas e saúde por empresas produtoras de soja. Em
seguida, questiona-se a constituição do Cerrado como zona de sacrifício do desenvolvimento brasileiro,
ao concentrar terras para a produção de 75% de quatro commodities agrícolas, desmatar mais de 50% da
vegetação nativa, exaurir aquíferos e levar rios à morte, contaminar o ambiente com 73,5% dos agrotóxicos
consumidos no País, trazendo implicações para o processo saúde-doença (como intoxicações agudas,
malformações, cânceres, desnutrição, adoecimento mental) e para outros biomas do Brasil e países da
América do Sul. Conclui-se perscrutando alternativas na perspectiva dos comuns, do decrescimento,
dos direitos da natureza e do bem viver, instigando reflexões da saúde coletiva e da agroecologia sobre a
contribuição dos saberes e fazeres tradicionais à saúde e à emancipação humana.

PALAVRAS-CHAVE Pradaria. Agricultura industrial. Comunidades rurais. Saúde.

ABSTRACT The immense socio-biodiversity of the Brazilian Cerrado can be understood from the ways of life
built by the wide range of traditional peoples and communities in their relations with the biome, of which they
are guardians. In the last decades, development projects have promoted an accelerated advance in agribusi-
ness, expropriating land, privatizing water, contaminating the environment and threatening or preventing
traditional ways of life. In this essay, we start from the perception of women from Campos Lindos/TO, about
the consequences brought to their lives and health by companies producing soybeans. Then we questioned
the constitution of the Cerrado as a sacrifice zone for Brazilian development, by concentrating land for the
production of 75% of four agricultural commodities, deforesting more than 50% of native vegetation, deplet-
ing aquifers and causing rivers to die, contaminating the environment with 73.5% of pesticides consumed in
Brazil, with implications for the health-disease process (such as acute intoxications, malformations, cancers,
1 UniversidadeFederal do malnutrition, mental illness) and for other biomes in Brazil and South American countries. We conclude by
Ceará (UFC) – Fortaleza
(CE), Brasil. examining alternatives in the perspective of the common, of degrowth, of the rights of nature and of good
living, instigating reflections from the Collective Health and Agroecology on the contribution of traditional
2 Comissão Pastoral da
knowledge and practices to health and human emancipation.
Terra Tocantins (CPT) –
Palmas (TO), Brasil.
KEYWORDS Grassland. Agribusiness. Rural population. Health.
3 Fundação Oswaldo Cruz
(Fiocruz), Instituto Aggeu
Magalhães (IAM) – Recife
(PE), Brasil.
andre.monteiro@fiocruz.br

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 13-27, JUN 2022
14 Rigotto RM, Santos VP, Costa AM

Introdução de hectares do Cerrado concentrando a pecuá-


ria e a produção de 75% da soja, cana-de-açúcar,
Há pelos menos 13 mil anos, o Cerrado brasilei- milho e algodão cultivados no Brasil3,4, que, em
ro é habitado por povos originários, presentes sua maioria, não se destinam à alimentação
contemporaneamente em cerca de 80 etnias humana, mas, sim, à exportação como commo-
indígenas, aos quais se somam às pessoas pretas dities. As águas superficiais e subterrâneas estão
sequestradas em África e escravizadas no Brasil sendo exauridas para abastecer os pivôs centrais
no período colonial, às vezes organizadas em dessa agricultura irrigada, repercutindo, por
quilombos. Ao longo da história, esses povos exemplo, na redução de 49,2% na alimentação
foram constituindo jeitos de viver em íntima do Rio São Francisco pelo Sistema Aquífero
relação com as características da porção do Urucuia5. Ademais, derramam sobre a terra
biodiverso bioma que ocupavam – em geral, a – muitas vezes grilada – mais de 600 milhões
criação de gado, a caça e a extração de frutos de litros de venenos por ano, concentrando
e de ervas medicinais em terras comuns das 73,5% do total de agrotóxicos consumidos no
chapadas, e a moradia em terras públicas nos País em 20183,6.
baixões, onde a água possibilita a pesca e a agri- Os povos e as comunidades tradicionais do
cultura de mandioca, arroz, milho, feijão, além Cerrado, por seu turno, vêm-se organizando
da criação de galinhas e porcos1. para defender seus territórios e modos de
No ciclo movente das águas e no desenho vida, assim como seus direitos, por meio de
do relevo, foram se conformando comunidades associações comunitárias, fóruns municipais,
tradicionais como os geraizeiros, retireiros, movimentos sociais, campanhas, redes e arti-
ribeirinhos, vazanteiros, quebradeiras de culações com grupos acadêmicos. Destacamos
coco-babaçu, comunidades de fundo e fecho a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado,
de pasto, entre muitas outras, que compõem que surgiu com o objetivo de alertar a socie-
o diversificado leque de camponeses e cam- dade para os impactos que a destruição do
ponesas do Cerrado, legítimas guardiãs da Cerrado causam no Brasil, buscando valorizar
biodiversidade e criadoras de um importante a biodiversidade e as culturas dos povos e co-
patrimônio ecológico e cultural, a despeito munidades desse bioma, lutando por sua pre-
da imagem de ‘vazio demográfico’ e de ‘solo servação. É promovida por Pastorais Sociais,
pobre’ muitas vezes atribuída ao bioma2. entidades sindicais, organizações indígenas
Se, por séculos, esses povos e comunidades e quilombolas, coletivos agroecológicos, or-
tiveram que se defender de sesmeiros, ban- ganizações não governamentais nacionais e
deirantes, missões religiosas e latifundiários, internacionais; movimentos de mulheres, de
a partir da metade do século XX, é o próprio sem-terra, de atingidos por barragens, de pes-
Estado brasileiro que, sob a influência de cadores, de direitos humanos; além de grupos
grandes atores econômicos mundializados e acadêmicos.
norteado pela ideologia do desenvolvimento, A Teoria da Determinação Social da Saúde
acelera e acirra o processo de expropriação nos convida a analisar as formas de relação
dos territórios construídos pelos povos do entre as sociedades humanas e a natureza,
Cerrado. É que, ao agronegócio, interessam mediadas por processos de produção, suas
as grandes extensões de terras semiplanas tecnologias e as relações sociais e de poder
das chapadas, que facilitam a mecanização que estabelecem7. Evidentemente, o processo
dos cultivos e, sobretudo, interessam as fartas saúde-doença de camponesas e camponeses,
águas subterrâneas do Cerrado, a exemplo dos assim como dos moradores nas cidades do
aquíferos Guarani, Bambuí e Urucuia. Cerrado, está sendo afetado por esse modelo
Nesse processo, chegamos às primeiras de desenvolvimento em expansão no bioma,
décadas do século XXI com cerca de 120 milhões na medida em que compromete as bases de

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 13-27, JUN 2022


Territórios tradicionais de vida e as zonas de sacrifício do agronegócio no Cerrado 15

seus modos de vida – terra, água, biodiver- emergentes que se têm mostrado fecundas
sidade –, ameaça a soberania e a segurança para o delineamento de pistas de futuro, tais
alimentar, difunde o sofrimento psicossocial como os comuns, os direitos da natureza, o
e introduz ampla gama de riscos à saúde, decrescimento e o bem viver, e que podem
como a contaminação por agroquímicos ou aportar elementos para o necessário diálogo
as diferentes violências. entre a saúde coletiva e a agroecologia, rumo
Neste artigo, com base nas experiências à emancipação humana.
de territórios e organizações em defesa do
Cerrado e seus povos, propomo-nos a trazer
elementos para contribuir para a reflexão Serra do Centro, mulheres e
sobre o papel da saúde coletiva e de seu diálogo saúde
com a agroecologia nestes contextos contem-
porâneos do modelo neoextrativista imposto A Serra do Centro é um território tradicional
à América Latina, os quais se sobrepõem ao ocupado no final do século XIX por grandes
cenário global de crise civilizatória, marcada famílias camponesas. São povos negros ma-
pelo colapso socioambiental do planeta e pelo ranhenses e piauienses que, com o passar
não cumprimento das promessas de bem-estar dos anos, formaram as comunidades Vereda
social difundidas pela modernidade. Bonita e Sítio (família Miranda), Raposa/
Iniciamos a trajetória reflexiva fincando os Ribeirão D’anta (família Alves da Silva), Gado
pés no território de comunidades tradicionais Velhaco (família Caboclo Carro), Passagem de
da Serra do Centro, no município de Campos Areia (Horozino), Primavera (família Noleto)
Lindos, em Tocantins, tomando como base e Taboca (família Marcelo). Essas famílias
pesquisa realizada por Santos8. Fundamentada camponesas, desde a origem da ocupação, de-
na pesquisa participante, a autora utilizou- senvolveram suas atividades de produção de
-se da técnica de história de vida para ouvir alimentos de forma tradicional, tendo os modus
as vozes de 8 mulheres, além de oficinas de vivendi de uso comum da terra baseados no
cartografia social realizadas com 17 mulheres, manejo dos bens naturais para subsistência,
para compreender como elas percebem as con- bem como as relações sociais caracterizadas
sequências trazidas às suas vidas e saúde por pelas famílias extensas, por casamentos en-
esses fluxos internacionais, que chegam a elas dogâmicos, pelas formas particulares de or-
por meio do agronegócio da soja. Seus depoi- ganização dos espaços comunitários, tendo os
mentos, interpretados com apoio da análise de festejos do Divino Pai Eterno, Reisados e rezas
conteúdo, são citados neste artigo com nomes de pagamento de promessas como espaços de
fictícios. Em seguida, reconhecendo ao mesmo fortalecimento da vida comunitária8.
tempo a singularidade desse território e seus O território tradicional da Serra do Centro
pontos em comum com outras comunidades faz parte de Campos Lindos, município criado
atingidas pelas políticas de desenvolvimento em 1993, localizado na região nordeste do
em curso no Cerrado, ampliamos o olhar para estado do Tocantins, na divisa com os muni-
o contexto mais geral do modelo de desenvol- cípios de Balsas e Riachão/MA. O território
vimento brasileiro, com foco na expansão do geográfico de Campos Lindos era formado
agronegócio sobre o bioma, no intuito de acres- por duas grandes áreas de títulos paroquiais,
centar escalaridade à análise de sua relação Data Santo Antônio e Data Santa Catarina. A
com o processo saúde-doença, em contraste Data Santa Catarina, onde está localizado o
com as práticas da agricultura camponesa que território Serra do Centro, era território dos
com ele disputam os caminhos do presente povos indígenas timbiras, que foram expulsos
e do futuro. Finalizamos com apontamentos por criadores de gado; e a terra foi titulada em
sobre perspectivas epistemológicas e teóricas 1858 com 44 mil hectares em nome de dois

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V.V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 13-27, JUN 2022
16 Rigotto RM, Santos VP, Costa AM

fazendeiros, Soares Gil e Cruz, que migraram adquirida dos criadores de gado; na década de
da região sul do Maranhão para o antigo norte 1980, o Instituto de Terras de Goiás (Idago)
de Goiás, atual Tocantins8. fez a distribuição das terras da Fazenda Santa
Até as últimas décadas do século XX, essas Catarina para empresários e produtores de soja
comunidades tradicionais da Serra do Centro da região Sul e Sudeste, ignorando os campone-
viveram na invisibilidade dos planos governa- ses que ali viviam, por meio da venda de lotes
mentais, ocupando um território sem cercas de 2 mil e 3 mil hectares; e em 1997, o governo
nem propriedades privadas, mas mantendo do Tocantins decretou a desapropriação dessas
fortes relações intercomunitárias. Mantinham terras tituladas pelo Idago, transferindo-as
seus modos de vida com pequenos cultivos para amigos e aliados8.
de roças de toco, criação de animais e coletas O Decreto nº 436, de 8 de maio de 1997, pu-
de frutos nas chapadas do Cerrado. A restrita blicado no Diário Oficial do Estado nº 597/97,
relação com os centros urbanos, Goiatins/ desapropriou os primeiros produtores de soja
TO (na época município Piacá/GO) e princi- e criou o Projeto Agrícola Campos Lindos.
palmente Balsas/MA, só era possível a pé ou Com esse ato governamental, foram desa-
por intermédio de animais (cavalo e mula), propriados 105 mil hectares no município de
pois não existiam estradas pavimentadas, e Campos Lindos, incluindo os 44 mil hectares
o percurso das comunidades às cidades é em da Fazenda Santa Catarina, território da Serra
torno de 70 km. do Centro. Mais uma vez, a população local
Para suprir suas necessidades básicas, as co- foi ignorada; e, com os efeitos do decreto, o
munidades tinham no topo da Serra do Centro governo expulsou centenas de famílias cam-
o refrigério que, para a camponesa Maria, era ponesas. O escândalo da expropriação cam-
um lugar de muitas riquezas naturais, como ponesa repercutiu dentro e fora do Brasil. As
pequi, bacuri, murici, mangaba, bacaba, caças denúncias mobilizaram a opinião pública e
e pastagens naturais para os animais8. a mídia nacional por intermédio da matéria
Como não havia cercas, todos os moradores ‘Reforma agrária de luxo’, que beneficiou os
faziam uso comum da área e eram frequentes amigos e aliados do governo do Tocantins9.
as migrações nos limites do território. As famí- O ambicioso projeto teve incentivo finan-
lias tinham, nos baixões, a terra de uso indivi- ceiro de R$ 80 milhões do Senado Federal
dual com as roças e os sítios; e o uso comum brasileiro e de US$ 69 milhões do Programa
na chapada, em cima da serra. Na chapada de Cooperação Nipo-Brasileiro (Prodecer III),
da Serra do Centro, criavam animais soltos, destinado ao Polo Agrícola de Campos Lindos
praticavam extrativismo de frutas, semen- e Pedro Afonso. Logo, com a oficialização das
tes, cascas e raízes de árvores medicinais do doações das terras e com a garantia desses
Cerrado que serviam de alimentos e remédios financiamentos, a produção de soja e milho
para a cura das doenças. se expandiu nas chapadas da Serra do Centro.
Na década de 1980, esse modo de vida Com isso, o município, que outrora era ‘es-
narrado por Maria sofreu alterações com a quecido’, passou a ser o foco da especulação
chegada dos ‘aventureiros pioneiros da soja’, imobiliária por grandes produtores de soja
que se diziam donos das terras. Eram homens e empresas globais como Cargill e outras do
brancos, sulistas, que começaram a investir na ramo de maquinários e agroquímicos.
produção de soja na Serra do Centro. Desde Com o avanço do agronegócio em Campos
então, as comunidades que ali viviam de forma Lindos, as famílias camponesas ocupantes de
pacífica perceberam que seu território era posses tradicionais da Serra do Centro não
objeto de disputa por diversos atores: em 1972, regularizadas pelos órgãos estaduais (Idago,
a tabacaria Londres do Rio de Janeiro alegava em 1980, e Itertins em 1998) foram expulsas de
ser proprietária da Fazenda Santa Catarina, seus territórios de origem e empurradas pelas

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Territórios tradicionais de vida e as zonas de sacrifício do agronegócio no Cerrado 17

grandes plantações de soja para as áreas peri- modo de viver, saber e produzir camponês;
féricas ao projeto. A partir de então, mais de 60 de outro, a produção agrícola industrial con-
famílias de camponeses posseiros passaram a siderada progresso na região. As mulheres
viver sob constantes ameaças de reintegração denunciam a pressão psicológica que sofrem
de posse. A ação judicial sob autos nº 5000008- com as ameaças de despejo e a degradação da
77.2005.2720, movida por produtores de soja, biodiversidade do Cerrado, em razão de que,
organizados e representados pela Associação na lógica da produção agrícola industrial, não
de Plantadores do Alto Tocantins (Associação há lugar para seus saberes e fazeres, pois os
Planalto), alega ocupação indevida das comu- elementos que dão sustentação a seus modos
nidades tradicionais na área de reserva em de vida são empecilhos para a produtividade
condomínio que corresponde a 15.858,3975 das fazendas de soja.
hectares de terra, nos baixões8. Para as camponesas, o conflito é o ‘desas-
A sobreposição do território camponês pelo sossego’ que chegou com o ‘progresso’. Este
Projeto Agrícola Campos Lindos tem gerado encontra, no Estado, apoio para expulsar da
intensos conflitos socioambientais entre cam- terra mulheres e suas comunidades, como
poneses e sojicultores. As mudanças ocorridas ocorrido na reintegração de posse do dia 14
no novo ordenamento territorial implicaram de outubro de 2016. Elas traduzem o termo
a perda do território coletivo, de uso comum, ‘desassossego’ como o medo da polícia, a in-
nas chapadas, para dar lugar à soja, e disputam segurança da posse da terra, as ameaças, a
as terras nos baixões, para constituir as áreas perda do sustento da família e a degradação
de reserva legal, exigidas pela legislação – o ambiental. Ademais, por não conhecerem os
que, além de transformações nas paisagens termos jurídicos e as ações judiciais, mesmo
naturais, impacta os modos de vida daquelas as que têm as terras tituladas, não se sentem
famílias que viviam com maior disponibilidade seguras, angustiam-se e temem ser despejadas,
de terras e biodiversidade, fundamentais para expulsas juntamente com as famílias que não
sua reprodução social. têm títulos da terra.
Na configuração atual, o território está Por serem historicamente responsabilizadas
fragmentado. Nas chapadas da Serra do pelas tarefas de administração e cuidado da
Centro, estão os lotes destinados aos produ- família, as mulheres são as pessoas que mais
tores de soja, concentrando a maior parte das sofrem com os despejos10. A ameaça da perda
terras. Além disso, nos baixões, permanecem do lar e dos elementos que dão sustentação à
os núcleos das famílias descendentes dos vida se apresenta como um golpe duro para
Marcelos, Caboclos Carro, Miranda, Brito, elas; por isso, o termo desassossego é o mais
Horozino, Noleto e Alves da Silva, que tiveram apropriado para elucidar essas reflexões, como
suas terras nos baixões tituladas, e outras famí- é possível perceber na narrativa de Joana:
lias, parentes com algum vínculo familiar com
os núcleos anciãos, que foram expropriados, Eu sei que deu pânico, pânico no povo. O povo
mas que retornaram ao território8. não podia fazer nada. Aí eu sei que eles pediram
Para compreender a dimensão dos impac- reforço da polícia, porque diz que o povo do
tos das lavouras de soja nos modos de vida baixão era valente, mas o povo não é valente
e saúde das mulheres do território da Serra não, nosso valente é Deus. Eu sei que veio 60
do Centro, contamos com os depoimentos policiais, mas era dois policial saliente, que foi
de Luzimar, Joana, Dalva, Lucinda e Maria. derrubando a porta do povo, que eles não tinha
Suas declarações nos fazem compreender direito de derrubar nada. Eles dizem que nós é
que o conflito da Serra do Centro, além de ser que invadimos, mas quem invadiu foram eles.
uma expropriação camponesa, é uma disputa A Gente não, eu tava junto. Eu não fui porque
entre dois modos de produção: de um lado, o nós se escondemo, botemos as coisas no mato,

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minha casa foi arrebentada, tomei muito prejuí- A gente é da gente, a gente acha bom aqui, mas
zo, porque eu tinha uma cozinha cheia de coisa, o negócio é o veneno e o projeto é muito perto
até minhas pias levaram tudo, coisa de trabalhar, para nós ficar embaixo do veneno. Quando eles
o carrinho de mão, levou tudo. E o Zé [esposo] jogam o veneno, a gente sente daqui o cheiro,
estava bem pertinho oiando, e os policiais são a catinga do veneno. A gente vê muitos bichi-
os primeiros sem-vegonhos que foi tocar os nhos pulando para cá devido o veneno. Sempre
pés na parede e na porta pra arrebentar8(94). que ia para Campos Lindos, lá não sentia nada,
quando chegava aqui tornava sentir zonzeira,
Francisca, da comunidade Raposa, também quando tomava banho na água aí que ficava
relata que só não foi retirada pela força policial com aquela zonzeira, zonzeira, zonzeira. Falava
porque se escondeu: para os meninos, não sei que problema é esse,
quando chego aqui é passando mal... jogaram
Eu fui, eu não fui porque não tava, eu me veneno nesse dia, de manhã para meio dia,
escondi, não vou mentir. Eu me escondi. Quando passaram jogando veneno e a gente enxergando
eles passavam, ele sempre dizia que vinha. Aí eles jogando veneno de avião, o avião passava,
nunca pude viver debaixo de uma casa. Eu moro tornava ir e tornava voltar. E a criança morreu, a
debaixo de uma casa cheia de pau em cima, criança estava com nove meses. A gente achava
nunca tive condição de construir uma casa, bom que o projeto fosse mais afastado da terra
porque não é brincadeira você construir uma da gente, a gente acha melhor, né. Não introdu-
casa, para quando terminar de construir, eles zisse esse veneno para prejudicar as pessoas,
falar: saia, se não derruba com trator8(95). né, é melhor não ter, né8(98).

A decisão judicial à qual Joana e Francisca Na visão dessas mulheres, o Projeto Agrícola
se referem foi executada pela Polícia Militar, Campos Lindos tem violado seus direitos am-
com reforço da Polícia Civil, Força Tática e bientais, direito constitucional da população,
Polícia Ambiental. Na operação do despejo, garantido na Constituição Federal de 1988, no
os móveis, animais, alimentos e pessoas en- art. 22511, em que estabelece que
contradas nas casas foram retirados e levados
para um galpão na cidade de Campos Lindos. todos têm direito ao meio ambiente ecologica-
Para as camponesas, as lavouras de soja mente equilibrado, bem de uso comum do povo
provocam a desagregação comunitária e am- e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-
biental na Serra do Centro, ameaçando todas -se ao Poder Público e à coletividade o dever
as formas de vida existentes no ecossistema de defendê-lo e preservá-lo para as presentes
da região. Nesse cenário de destruição da so- e futuras gerações.
ciobiodiversidade, o olhar das camponesas
se volta para os elementos que garantem a
reprodução de seus modos de vida coletivo: A produção de vida no território da
biodiversidade, água, ar, terra e alimentos que Serra do Centro
compõem o universo do trabalho feminino,
denominado por elas de responsabilidades e As mulheres camponesas pouco compreen-
afazeres que estão relacionados com a saúde, dem o desenvolvimento e a modernização
a nutrição e a higiene da família. do campo, mas sabem que ter ‘vida boa’ é ter
Lucinda, da comunidade Vereda Bonita, saúde, que permita trabalhar na casa, fazer
destaca que, além das violações de direitos e comida,
pressões psicológicas, a saúde da população
é impactada pela exposição aos agrotóxicos Ir para roça todos os dias – apanhar arroz, des-
que são usados nas lavouras de soja e milho: cascar mandioca, fazer a tapioca e farinha de

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puba, é ir dormir tranquila sem violência e ouvir dessas jornadas de trabalho, com o advento
o boa noite dos filhos8(101). da modernização rural desenvolvimentista, se
veem obrigadas a assumir uma outra jornada,
Apesar das perdas de produção por ataques que é a luta contra os impactos das lavouras
de insetos como mosca branca, lagarta, fer- de soja.
rugem e agrotóxicos que atingem os cultivos Com tudo isso, as camponesas se encontram
das comunidades, o sustento das famílias em situação de adoecimento, com acúmulo de
continua tendo como carro-chefe a produ- muitas dores. Algumas são dores físicas, como
ção de mandioca, arroz e feijão nas roças de nas articulações e na coluna, possivelmente
toco e criação de gado curraleiro. Os quintais relacionadas com o excesso de esforço físico
produtivos, espaços nos quais predomina a empregado no conjunto do trabalho realizado
força de trabalho das mulheres, funcionam pelas mulheres; no trabalho de carregar lata
como a extensão do paiol, em que, ao alcance de feijão, potes de água na cabeça, capina da
da mão, têm a disponibilidade de caju, manga, roça, juntar coivara para queimar, lavar roupa e
cana, mandioca, galinha caipira, ovos, porcos, carregar crianças no colo8. Outras dores estão
hortaliças e ervas medicinais. Ainda assim, relacionadas com o ‘psicológico’. No entanto,
mesmo diante das alterações do ambiente que houve quem dissesse que sentir dor é normal.
dificultam a produção de alimentos, Francisca, Já para Luzimar, da comunidade Raposa, a
da Comunidade Raposa, diz que mantém os dor não é normal, e chega a ser insuportável:
tratos culturais de cuidado dos plantios
Hoje eu tenho um problema de depressão, não
Nós plantamos arrozinho, uma macaxeira, uma gosto nem de sair, me sinto não sei nem como,
mandioca, aí nós deixamos essa mata aí na louca. Aí me sinto bem assim, saio estou con-
frente, que é pra não prejudicar nada. Nós não versando com você, me sinto bem, não sinto
jogamos veneno, porque nós não vamos plantar nada, mas quando chegou em casa, assim eu
uma coisa pra nós comer e jogar veneno8(103). me acho... não sei nem explicar. É sobre família
mesmo, é crítica, tem dias que eu me desespero,
Contudo, a produção de alimentos não tem aí é só choro, quanto mais eu choro mais tenho
sido suficiente, e a renda precisa ser comple- vontade de chorar, vai chegando para a idade e
mentada pelos benefícios previdenciários, os problemas vão amontoando só8(110).
benefício do Programa Bolsa Família, trabalho
assalariado na escola e nas lavouras de soja. O A sobrecarga de trabalho assumida pelas
trabalho na escola é exercido principalmente camponesas, naturalizada como responsabili-
pelas mulheres nas funções de merendeiras, dades, resulta do sistema capitalista patriarcal
auxiliar de serviços gerais e professoras. Para o que definiu os papéis sexistas, responsabili-
trabalho nas lavouras, são contratados somente zando e limitando as mulheres à reprodução
os homens, principalmente os jovens, para as da vida. Nessa relação, os homens, detentores
funções de caseiros, aplicadores de veneno do poder, assumem funções de comando, ora
ou técnicos de classificação da soja. Já para são os chefes de famílias, ora são os chefes
as funções de domésticas, os produtores de de Estado e das empresas, que dominam e
soja contratam as mulheres, e, na maioria dos exploram as mulheres e o Cerrado10.
casos, sem garantia de direitos trabalhistas. Os impactos socioambientais na Serra do
Nas comunidades, as mulheres assumem Centro não só exaurem as riquezas naturais,
diversas jornadas de trabalho e tarefas cotidia- fonte de sustentação das mulheres, como
nas, como o cuidado da saúde, a educação dos tencionam as relações de gênero e aumen-
filhos, o preparo dos alimentos, o cuidado da tam a jornada de trabalho delas. Com os im-
casa, no quintal, na roça e no emprego. Além pactos das lavouras de soja, que deixam as

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águas impróprias para o consumo humano, possibilitar a apropriação de terras e a acele-


elas precisam andar mais para apanhar água. ração da expansão do agronegócio.
O desmatamento que provoca a escassez de Por um lado, o poderoso sistema finan-
frutas, a extinção de animais do Cerrado e a ceiro mundial tem passado a ver a terra não
improdutividade das roças de tocos força as só como ativo produtivo, mas também como
mulheres a recriarem suas dinâmicas de sus- ativo financeiro, especialmente com a insta-
tentação da família, o que exige mais empenho bilidade provocada pela crise financeira que
de horas de trabalho, mais esforço físico e a eclodiu em 2007/2008. Assim, esses atores
intensificação da pressão psicológica. encontram no negócio com terras uma boa
As camponesas compreendem suas fragi- oportunidade de diversificar seus investimen-
lidades e a complexidade do conflito em que tos, aumentar os lucros e diminuir os riscos.
estão inseridas. Elas querem permanecer na Dessa forma, “a terra e os recursos naturais a
terra com tranquilidade, querem entender as ela relacionados são cada vez mais tratados
ações judiciais movidas contra suas comu- como bens econômicos e financeiros globaliza-
nidades, querem ter mais acesso às políticas dos”12(12), em um processo que envolve fundos
públicas, denunciam a contaminação das águas de pensão dos Estados Unidos da América
e o adoecimento de mulheres e crianças pela (EUA), Alemanha, Países Baixos e Suécia, entre
exposição aos agrotóxicos, além do adoeci- outros. O Teachers Insurance and Annuity
mento psicológico das mulheres. Entretanto, Association (TIAA) dos EUA, por exemplo,
elas buscam preservar as suas práticas co- já possui e controla quase 300 mil hectares
munitárias de cuidado da saúde por meio do de terras no Brasil.
benzimento, do uso de garrafadas, dos banhos Tal processo articula-se à acelerada expan-
de rios e dos encontros entre as comadres e são do agronegócio no Cerrado que, de acordo
as irmãs da igreja que, para elas, são parte da com os dados do Sistema IBGE de Recuperação
dimensão sagrada da produção de vida. Esse Automática (Sidra-IBGE), já em 2018, concen-
sagrado está nos saberes, fazeres e olhares trava 75% do total das commodities de soja,
das mulheres e comunidades que conservam cana-de-açúcar, milho e algodão plantados no
e convivem com a terra e a biodiversidade País, para o que ocupa 46.889.008 hectares do
do Cerrado. Portanto, na atualidade, a con- bioma. Além disso, de acordo com a mesma
servação das riquezas do Cerrado continua fonte e ano, as pastagens ocupam 63.847.127
nas mãos, nos territórios e na memória das hectares do Cerrado, nos quais estão 54,9%
mulheres camponesas e de suas comunidades de todo rebanho bovino no Brasil3,4, trazendo
tradicionais. elementos sobre a amplitude da zona de sa-
crifício em que vem se constituindo o bioma.
Embora esse quadro e suas repercussões
O Cerrado: zona sobre o Produto Interno Bruto (PIB) e a
de sacrifício do balança comercial possam ser divulgados como
conquistas do desenvolvimento – e essa é a
desenvolvimento narrativa hegemônica sobre o agronegócio,
brasileiro? elaborada tanto por associações de empresá-
rios, como por governos e parlamentares –,
Os elementos centrais que delineiam o conflito é preciso tomar em conta suas repercussões
em Campos Lindos podem ser verificados em socioecológicas.
todo o bioma Cerrado, em que as comunidades Salta aos olhos a perversa concentração
disputam com políticas de desenvolvimen- fundiária à custa da expropriação das terras
to voltadas para, atendendo aos interesses ocupadas por diferentes povos do Cerrado
de grandes corporações internacionais, que, sem acesso ao ecossistema que dá base

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às suas vidas, vêem ameaçadas ou mesmo mudanças climáticas se somam para explicar
inviabilizadas suas formas tradicionais de o déficit de recarga dos aquíferos, o rebai-
organização da economia, sua cultura e socia- xamento e desaparecimento de nascentes, a
bilidade. Comunidades e famílias muitas vezes redução da vazão dos rios a níveis críticos, e até
são empurradas para processos de migração a sua morte. Com isso, ficam comprometidas a
compulsória, comumente para a periferia das pesca, a agricultura camponesa e a soberania
cidades da região, onde vão encontrar os de- e segurança alimentar dos povos do Cerrado,
safios da moradia, do emprego, da fome, das assim como as práticas culturais associadas
drogas, da exploração sexual e das violências. às águas. Outrossim, ainda traz implicações
Àquelas comunidades que permanecem para outros biomas do Brasil e para países da
no Cerrado, impõem-se as consequências da América do Sul que também se beneficiam das
degradação ambiental resultante do modelo águas que transbordam do Cerrado.
produtivo do agronegócio, a começar pelo Se a oferta de empregos compõe a narrativa
desmatamento de extensas áreas, que já des- desenvolvimentista para legitimar a expansão
truiu 52% da rica e diversificada vegetação do agronegócio, vale apontar que os empregos
nativa do bioma e, apenas entre 2019 e 2020, gerados para a população local são poucos, em
eliminou 29 milhões de hectares de vegeta- função da mecanização; que as relações e con-
ção nativa, em paralelo à implantação de 28 dições de trabalho são, em geral, precarizadas,
milhões de hectares de empreendimentos do incluindo até o trabalho análogo ao escravo4; e
agronegócio3,13,14. Deriva diretamente daí, o que o processo produtivo introduz importantes
comprometimento da coleta de frutos e ervas riscos de acidentes, nas estradas ou no traba-
importantes na alimentação e nas práticas de lho, além das consequências do uso intensivo
saúde da cultura tradicional. Mais que isso, o de agrotóxicos, fertilizantes químicos e semen-
desmatamento impacta sobre o ciclo hidro- tes transgênicas. Tais impactos se estendem
lógico do Cerrado, associado às árvores de para além das cercas dos empreendimentos,
raízes profundas e às gramíneas que captam por meio da contaminação do ar, da água e
a água de chuva para alimentar os aquíferos. dos alimentos, atingindo as comunidades do
Evidentemente, a abundância de águas entorno dos empreendimentos e até mesmo
do Cerrado é um dos fatores de atração dos zonas mais remotas, por intermédio do vento
empreendimentos hidrointensivos do agro- e das águas contaminadas.
negócio. Esse generoso ‘berço das águas’ No ano de 2018, foram pulverizados
alimenta seis das oito regiões hidrográficas 607.408.086 de litros de agrotóxicos nos cul-
brasileiras, com seus aquíferos e rios – como tivos de soja, cana-de-açúcar, milho e algodão
o Araguaia, Tocantins, São Francisco, Paraná, no Cerrado3,6 – os quais têm implicações na
Prata, Parnaíba, Jequitinhonha e Doce –, além contaminação ambiental e, muito especial-
de abrigar duas das áreas alagadas mais impor- mente, no adoecimento de trabalhadores/as e
tantes do planeta – o Pantanal e o Araguaia15. moradores/as. A pulverização aérea amplifica
De acordo com a Agência Nacional de esses riscos, como no caso do ‘acidente’ em
Águas, a agricultura irrigada é responsável Rio Verde/GO5, atingindo uma escola; ou de
pela retirada de 83 bilhões de litros de água Lucas do Rio Verde/MT, afetando toda a área
por dia das fontes de água superficiais e sub- urbana do município17, ou ainda denúncias de
terrâneas no Brasil16, enquanto a média de aldeias indígenas literalmente pulverizadas
consumo diário de cada brasileiro é de 150 com venenos no Cerrado.
litros. A maior parte das áreas equipadas com Nesse cenário, é possível compreender a
pivôs de irrigação do País está concentrada nos maior incidência de intoxicações agudas por
estados do Cerrado: 91,8%. O desmatamento, agrotóxicos entre moradores no entorno de
o intensivo uso da água pelo agronegócio e as fazendas de milho e algodão em Mato Grosso,

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quase duas vezes superior às taxas encontradas 10,9 milhões de hectares. Destaca-se o oeste
em moradores de outras regiões18 ou a asso- da Bahia, onde estão 87% das áreas irrigadas
ciação positiva entre malformações congênitas por pivôs do Matopiba, exaurindo as águas do
em crianças menores de 5 anos e a ocupação Sistema Aquífero Urucuia24.
do pai na agricultura19. Ou ainda a contamina- Se, com base na perspectiva da justiça
ção de 100% das amostras analisadas de leite ambiental, a Ecologia Política designa como
materno de nutrizes residentes no entorno de ‘zonas de sacrifício’ os territórios que con-
empresas do agronegócio, também em Mato centram riscos ambientais sobre populações
Grosso, nas quais foram encontrados os in- vulnerabilizadas25, há robustos elementos para
gredientes ativos dos agrotóxicos p,p’- DDE caracterizar o Cerrado como zona de sacrifício
β-endossulfam e o p’-DDT20 . Outro autor21 do modelo de desenvolvimento vigente no
encontrou associação positiva entre níveis Brasil.
altos e médios de exposição a agrotóxicos
e mortalidade por neoplasias malignas de
esôfago, estômago, pâncreas, encéfalo, além Considerações finais:
de leucemias e linfomas. reflexões trazidas do
A despeito de todas estas evidências – e
para argumentar que a crítica à ideologia do
Cerrado para a saúde
desenvolvimento precisa ser aprofundada coletiva e a agroecologia
no campo da política –, a então presidenta
Dilma Rousseff e sua ministra da agricultura O avanço da fronteira agrícola sobre os terri-
Kátia Abreu assinaram, em 2015, o Decreto nº tórios tradicionais, de acordo com os depoi-
8.447, que aprova o Plano de Desenvolvimento mentos das mulheres camponesas, revela-se
Agropecuário do Matopiba, enquanto um vasto como uma grande ameaça aos modos de vida
território estratégico de expansão do agrone- das comunidades da Serra do Centro/TO. O
gócio no Cerrado dos estados de Maranhão, neoextrativismo, sobretudo o agronegócio,
Tocantins, Piauí e Bahia. Apoiado por infra- impacta de forma sistêmica o bioma em suas
estruturas públicas de rodovias, ferrovias e várias dimensões, produzindo rupturas meta-
hidrovias; fornecimento de energia e acesso bólicas e vulnerabilizando comunidades que
à água, conta também com financiamentos vivem no modo de vida tradicional.
públicos, isenções tributárias e pesa sobre a Além dessas vozes, muitas outras provin-
desregulamentação ambiental, trabalhista e das de comunidades do Cerrado se somam
sanitária em curso no País22. ao coro, clamando por justiça; gritando que
São 73 milhões de hectares destinados ao a extinção do Cerrado corre a passos largos
agronegócio, dos quais 13,9 milhões já são com as grilagens, desmatamentos, queimadas
áreas legalmente atribuídas a 46 unidades e destruição e contaminação das águas: são
de conservação, 35 terras indígenas demar- as vozes das comunidades geraizeiras, fundo
cadas, 781 assentamentos de reforma agrária e fecho de pasto, indígenas, quebradeiras de
e áreas quilombolas. Como sobreviver com coco-babaçu, apanhadoras de flores sempre-
essa vizinhança? Entre 2000 e 2014, a área -vivas, retireiros do Araguaia, quilombolas,
plantada de soja na região do Matopiba au- raizeiras e pescadores, que não têm oportu-
mentou de 1 milhão para 3,4 milhões de hec- nidades de expressarem suas denúncias, seus
tares, um crescimento de 253% no período, saberes, fazeres e vozes ancestrais.
à custa da eliminação de 94 mil km2 de mata Essas vozes querem ser ouvidas, preci-
nativa23. E as projeções para o ciclo 2023/2024 sam de visibilidade na arena social, e a saúde
apontam a produção de 22,6 milhões de tone- coletiva pode ajudar a repercuti-las, por
ladas de grãos, com área plantada entre 8,4 e exemplo, evidenciando as consequências

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desse ‘desenvolvimento’ sobre o processo os oceanos, a cultura – como as línguas, as


saúde-doença, como já vem sendo feito por expressões culturais –, relações e vínculos
alguns grupos acadêmicos, em particular comunitários, conhecimento, paz, bem-estar.
no tema dos agrotóxicos. Especialmente Abrangem escalas globais, regionais ou locais.
expostas à perversidade do agronegócio, as O comum está relacionado com o direito e
mulheres não reconhecem as monoculturas com o compartilhamento. O modo de vida
da soja como desenvolvimento da região, tradicional é a partilha, a troca, a proteção e
e apontam o agronegócio como responsá- a reprodução da vida. Caracteriza-se
vel pela desagregação dos seus modos de
vida tradicionais, ao violar os direitos das por um certo grau de coesão e solidariedade
famílias ao território, à água e à soberania obtido face a antagonistas e em situações de
alimentar, fundamentais para a saúde. A extrema adversidade e de conflito, que reforçam
ruptura do que era uno é a estratégia da politicamente as redes de solidariedade26(30).
dominação. O sofrimento aí se instala, e elas
nomeiam o ‘desassossego’, possivelmente, É dessa fonte que provém as bases estraté-
como experiência de sofrimento psicos- gicas da agroecologia, como afirmam Caporal
social nascido do medo e da insegurança et al.27(46):
quanto ao futuro.
Trata-se, de fato, do choque entre cosmo- a agroecologia reconhece e se nutre dos
visões profundamente distintas: de um lado, saberes, conhecimentos e experiências dos
o projeto moderno-colonial, que promove a agricultores(as), dos povos indígenas, dos
separação entre seres humanos-natureza para povos da floresta, dos pescadores(as), das
explorar e espoliar a ambos, embalado pela comunidades quilombolas na medida em que
cantilena do progresso e do desenvolvimento; auxilia na aprendizagem sobre os fatores so-
de outro, os diversificados saberes ancestrais cioculturais e agroecossistêmicos.
que têm a terra como bem de uso comum,
que cultivam em seus territórios de vida Tais elementos podem ser identificados na
uma relação virtuosa com a biodiversidade, convivência das comunidades e povos tradicio-
cuidando de construir uma ‘vida boa’ para o nais com o Cerrado, tecida por conhecimentos
coletivo. Entretanto, essa não é uma disputa ancestrais do uso das áreas de baixões, veredas
‘democrática’, entre iguais; pelo contrário, é e chapadas sobre uma diversidade de árvores
demarcada por uma violenta assimetria de que curam doenças, como mangaba, sucupi-
poder, já que o projeto moderno-colonial es- ra, inharé, pau-amargo, mangabeira amarela,
tabelece hierarquias de classe, raça e etnia, copaíba, aroeira, ipês e tantas outras. Ou as
gênero e culturas para justificar sua própria frutas que alimentam e possibilitam geração de
dominação. Como a agroecologia e a saúde renda, como pequi, buriti, oiti, tucum-rasteiro,
coletiva se posicionam nessa disputa? jatobá, araçá, murici, araticum, coco-babaçu,
Modos de vida embasados na complexi- baru etc. Essas árvores, quando conservadas
dade organizada da diversidade de sistemas e manejadas pelos povos tradicionais, ofere-
biológicos e culturais, reproduzidos no âmbito cem diversos subprodutos, como farinhas,
dos ‘comuns’, entretanto, continuam sendo sementes, sucos, óleos, fundamentais para sua
resistência à necropolítica neoextrativista. segurança alimentar, e ainda respondem pelo
Os bens comuns estão relacionados com o equilíbrio hídrico e da fauna do Cerrado. Toda
que está fora do mercado e que são utiliza- essa riqueza de biodiversidade e de saberes
dos por todos, como direito, sem que seja tradicionais não está nas prateleiras dos su-
preciso pagar: o ar que respiramos, a água permercados e farmácias, e muito pouco ou
doce que bebemos e que reproduz toda a vida, quase nada nas bibliotecas e livrarias. São

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conhecimentos reproduzidos na oralidade, mal, indivíduo e comunidade, propriedade


repassados de geração a geração, que precisam individual e comunitária, trabalho individual
ser valorizados e respeitados pela comunida- e coletivo; responsabilidade e pertencimen-
de acadêmica e pela população. Qual o lugar to – opostos ao individualismo e à concor-
desses bens comuns na promoção da saúde? rência; iii) Busca do equilíbrio – entre seres
No âmbito dos comuns, emerge uma pers- humanos e natureza, material e espiritual,
pectiva relacionada com os direitos da natu- conhecimento e sabedoria; perspectiva to-
reza. Acosta defende que estes devem estar talizante e não fragmentada; e a ideia de que
inter-relacionados na construção de socieda- somos cuidadores, e não proprietários da
des mais democráticas e que tenham a vida Mãe Terra; iv) Complementaridade da diver-
– humana e não humana – como centralidade sidade – complementar sem anular o outro,
da ação coletiva: “respeitar a diversidade e encontrar maneiras
de articular experiências, conhecimentos e
Os Direitos Humanos e os Direitos da Natureza, ecossistemas”31(30); “o Bem Viver é o encon-
que articulam uma ‘igualdade biocêntrica’, tro da diversidade”31(31); v) Descolonização
sendo analiticamente diferenciáveis, se com- – “‘desmantelar’ esses sistemas políticos,
plementam e transformam em uma espécie de econômicos, sociais, culturais e mentais que
direitos da vida e direitos à vida28(140). imperam”31(31); pensar outros mundos, e não
apenas o moderno-colonial.
Tais direitos estão inscritos em instrumen- Em tempos de colapso socioambiental,
tos normativos em vários países. Comunidades expressão da crise planetária e civilizatória
dos EUA foram as primeiras a outorgar status a que nos trouxe a modernidade – capita-
de pessoas a ecossistemas locais. Na Nova lista e racista –, podemos nos aproximar de
Zelândia, o rio Whanganui, sagrado para os distintas alternativas, nascidas de saberes
Maori, é um sujeito de direitos, com persona- ancestrais e de formulações teóricas: há
lidade jurídica, assim como na Colômbia (rio narrativas que possibilitam nos afastarmos
Atrato), na Índia e na Austrália29. A partir da da direção do desastre anunciado. Acosta e
inclusão dos direitos da natureza nas consti- Brand31, assim como Svampa32, propõem o
tuições da Bolívia (2009) e do Equador (2008), pós-extrativismo e o decrescimento como
novos olhares foram lançados para pensarmos estratégias e condição para o bem viver e,
a água como bem comum. para superar, sobretudo na América Latina,
Os valores de “vida plena, vida doce, vida a acumulação na exportação primária - que
harmoniosa, vida sublime, vida inclusiva, também o é, por espoliação e por despos-
saber viver”30(21) compõem a cosmovisão do sessão33. Azam34 entende o decrescimento
bem viver, que emerge na América Latina, como uma provocação, que significa redução
sobretudo entre povos andinos, no contexto do consumo da natureza e de energia e a
do neoliberalismo e de críticas à esquerda por saída do ciclo produtivista; um novo ima-
sua adesão ao neoextrativismo. Tem origens ginário fora da roda do desenvolvimento;
no suma qamaña e no sumak kawsay desses pluralidade, diversidade de experiências e
povos e é constituído por cinco elementos estratégias; e provoca: como queremos viver
centrais31: i) Visão do todo – constitui a al- juntos com a natureza?
ternativa sistêmica, a partir da compreensão Essas perspectivas nos convidam a deslocar
do todo; envolve a indissociabilidade entre das abordagens funcionalistas, da ideologia
espaço-tempo, que avança na forma de espiral, do desenvolvimento, da colonialidade ainda
opondo-se ao crescimento e progresso line- presente no campo científico, rumo às in-
ares; e que a centralidade deve ser a vida; surgências criativas que abram os portais da
ii) Convivência na multipolaridade – bem e imaginação para mundos outros, pluri-versos

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Territórios tradicionais de vida e as zonas de sacrifício do agronegócio no Cerrado 25

– e, não apenas o uni-verso –; que também Colaboradores


requerem outras epistemologias, teorias e
metodologias, ancoradas e em diálogo com Rigotto RM (0000-0002-7460-3221)*, Santos
os saberes tradicionais dos povos. Desafios VP (0000-0002-3889-8632)* e Costa AM
e cocriações descoloniais, para tentarmos (0000-0001-6043-129X)* contribuíram igual-
escapar do colapso iminente. mente para a elaboração do artigo. s

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Territórios tradicionais de vida e as zonas de sacrifício do agronegócio no Cerrado 27

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28 ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE

Territórios indígenas e determinação


socioambiental da saúde: discutindo
exposições por agrotóxicos
Indigenous territories and socio-environmental determination of
health: discussing exposure by pesticides

Francco Antonio Neri de Souza e Lima1, Marcia Leopoldina Montanari Corrêa2, Silvia Angela
Gugelmin2

DOI: 10.1590/0103-11042022E202

RESUMO As etapas que envolvem a cadeia produtiva de commodities agrícolas produzem possibilidades
diferenciadas de vulnerabilidade nas populações, afetando a situação de saúde dos povos indígenas. O uso
de agrotóxicos é uma atividade intrínseca aos monocultivos. A exposição a essas substâncias gera desfechos
negativos agudos e crônicos na saúde humana e contaminação no ambiente. De modo a contribuir com o
debate no campo da Saúde Coletiva, o texto direciona as discussões ao estado de Mato Grosso, onde estão
vários povos indígenas, enfrentando a produção de commodities e desfechos em saúde relacionados com os
agrotóxicos. Para isso, recorremos à determinação socioambiental do processo saúde-doença, organizando
uma matriz de indicadores que enfatizam as escolhas e as omissões do Estado nas questões ambientais,
incorporando historicidade nos processos de adoecimento. Os impactos da cadeia de commodities agrícolas
e as exposições por agrotóxicos em territórios indígenas são um problema intersetorial que se vincula a
violação de direitos humanos, direito à terra, à saúde e à segurança alimentar e nutricional. As respostas
devem ser consideradas em uma perspectiva articulada entre os setores econômico, político, ambiental
e da saúde, com participação e decisão da população indígena nas etapas dos processos.

PALAVRAS-CHAVE Determinação Social da Saúde. Agronegócio. Agrotóxicos. Praguicidas. Povos indígenas.

ABSTRACT The stages involving the agricultural supply chain produce different possibilities of vulnerability
in populations, affecting the health situation of indigenous peoples. The use of pesticides is an activity intrinsic
to monocultures. The exposure to these substances generates acute and chronic negative outcomes in human
health and contamination in the environment. In order to contribute to the debate in Public Health, the text
directs the discussions to the state of Mato Grosso, where are several indigenous peoples, facing the production
of commodities and health outcomes associated to pesticides. For that, we resort to the socio-environmental
determination of the health-disease process, organizing a matrix of indicators that emphasize the choices
and omissions of the State in environmental issues, incorporating historicity in the processes of illness. The
impacts of the agricultural commodities chain and exposures by pesticides in indigenous territories are an
1 Fundação Oswaldo Cruz
(Fiocruz), Escola Nacional
intersectoral problem that is linked to the violation of basic social rights, such as the right to land, health,
de Saúde Pública Sergio and food and nutritional security. The responses must be considered in an articulated perspective between
Arouca (Ensp) – Rio de the economic, political, environmental, and health sectors, with participation and decision by the indigenous
Janeiro (RJ), Brasil.
franccoantonio@gmail.com
population in the stages of the processes.

2 Universidade Federal de
KEYWORDS Social Determination of Health. Agribusiness. Pesticides. Indigenous peoples.
Mato Grosso (UFMT),
Instituto de Saúde Coletiva
(ISC) – Cuiabá (MT),
Brasil.

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 28-44, JUN 2022 meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado.
Territórios indígenas e determinação socioambiental da saúde: discutindo exposições por agrotóxicos 29

Introdução sedentarizar esses povos em reservas indíge-


nas e disciplinar o acesso e o uso das terras
A intensa utilização de agrotóxicos nas regiões devolutas. Sob a égide do regime tutelar, o SPI
agrícolas está relacionada com a produção de e a Fundação Nacional do Índio (Funai) foram
grãos e fibras, mas também com as questões essenciais na conformação da apropriação
agrárias, políticas, sanitárias e ambientais que fundiária existente no País, que permanece
formam uma trama de vias diretas e indiretas até hoje um sistema estatizado, colonizador,
de exposições, que devem ser analisadas en- desenvolvimentista e excludente8.
quanto processo de contaminação1. Os resulta- No Brasil, há 725 Terras Indígenas (TI) em
dos das exposições por agrotóxicos aparecem diferentes fases do processo demarcatório9
nos corpos como irritações dérmicas, oculares, – cada terra possui particularidades sociocul-
cefaleia, náuseas, desregulação endócrina, turais, em que as condições de vida estão rela-
malformações fetais, abortos, mutações ge- cionadas com os processos históricos sociais,
néticas, canceres, distúrbios respiratórios, econômicos e ambientais10. Mato Grosso é um
mentais (depressão e suicídio) e exploração dos estados brasileiros com maior produção
das condições de trabalho2,3, afetando o perfil de commodities agrícolas. Ao mesmo tempo,
de morbimortalidade das populações. é onde vivem 42 povos indígenas9 em 79 TI
O conjunto das operações de produção reconhecidas.
agropecuária, denominado agronegócio, legi- Assim, o presente artigo discute as pressões
tima-se com publicidade, políticas de créditos do agronegócio e do uso de agrotóxicos sobre
públicos, isenções tributárias e maior regula- territórios e populações indígenas. De modo a
ção externa nas técnicas de manejo, insumos contribuir com esse debate no campo da Saúde
e logística. Seus produtos ou commodities são Coletiva, o texto direciona as discussões para
coordenados por instituições como governo e Mato Grosso, o segundo estado com maior
mercados futuros, atendendo a uma economia número de TI reconhecidas no Brasil9 e onde
globalizada, não priorizando a produção de estão vários povos indígenas, enfrentando e se
alimentos para abastecimento interno, a so- mobilizando sobre a produção de commodi-
berania e segurança alimentar da população ties agrícolas e desfechos negativos em saúde
brasileira4,5. relacionados com os agrotóxicos.
 As etapas que envolvem a cadeia produtiva
de commodities agrícolas, como soja, milho,
algodão e cana-de-açúcar, produzem possibi- Metodologia
lidades diferenciadas de vulnerabilidade nas
populações, afetando a situação de saúde dos O modelo de análise para mudanças ambien-
povos indígenas em conflitos socioambientais tais de Franco Netto11 utiliza três grupos de
injustos, processos históricos de discrimina- determinantes socioambientais, que interagem
ção, ameaças à integridade dos territórios entre si. Neste estudo, ampliamos as explica-
tradicionais e desestruturação dos sistemas ções mediante a perspectiva teórica da deter-
nativos de subsistência e autocuidado6.  minação social do processo saúde-doença12,13,
As políticas indigenistas dos séculos pas- incorporando historicidade nas dimensões
sados traziam a ideia equivocada da transi- socioeconômicas e agroindustriais, enfati-
toriedade do indígena, que passaria a ser um zando as escolhas e as omissões do Estado
trabalhador rural integrado à ‘civilização’7. O nas questões ambientais e nos processos de
Serviço de Proteção aos Índios (SPI) surgiu adoecimento. As informações são apresenta-
nesse cenário com a intenção de controlar os das por meio de indicadores em cada um dos
conflitos pela terra, transformar a população grupos, que se articulam, mas não se limitam ao
indígena em pequenos produtores agrícolas, causalismo linear entre os eventos de maneira

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 28-44, JUN 2022


30 Lima FANS, Corrêa MLM, Gugelmin SA

isolada e pontuais13,14. Os grupos de determi- de commodities agrícolas, com cultivo de se-


nação socioambiental da saúde nas populações mentes transgênicas, regulamentações am-
indígenas se expressam nos seguintes níveis: bientais pouco protetivas, desestruturação
Grupo 1 – microssocial: vinculado às ex- da vigilância em saúde. O Estado incentiva
posições múltiplas, relacionadas diretamente a produção com redução de tributos, alte-
com os agrotóxicos, seus desfechos negativos rações legislativas, e há forte apelo publici-
na saúde das populações e no ecossistema de tário/midiático vinculado ao agronegócio.
territórios indígenas; Os desfechos ambientais aparecem com a
Grupo 2 – intermediário: proximidade das expansão das lavouras, uso de água para
TI com plantações de monocultivos. Inseridas irrigação, mudanças climáticas e epidemias.
em municípios de alta produtividade agrí- Os três grupos interagem e comple-
cola e economia agroindustrial, que geram mentam-se, não existindo isoladamente, e
efeitos negativos nos territórios, serviços de operam em hierarquia de processos14,15. Esse
atenção à saúde indígena, condições de vida, modelo é interdisciplinar, com diferentes
práticas alimentares (cultivo, caça, coleta e níveis de determinação e complexa relação
pesca), ambiente (contaminação por agrotó- entre as áreas de interlocução, podendo es-
xicos, desmatamentos e queimadas) e práticas timular discussões das vulnerabilidades que
curativas tradicionais; acometem populações indígenas em escala
Grupo 3 – macrossocial: dimensão ampla temporal e espacial distintas (figura 1).
da estrutura globalizada da cadeia produtiva

Figura 1. Interação entre grupos hierárquicos da determinação socioambiental do processo saúde-doença em populações
indígenas

Populações vulnerabilizadas às Grupo 1 - Mudanças


mudanças socioambientais ambientais acopladas
dos grupos 1 e 3 pela exposição direta ou Populações vulnerabilizadas às
indireta aos agrotóxicos mudanças socioambientais
dos grupos 1 e 2

Populações vulnerabilizadas às
mudanças socioambientais
Grupo 3 - Mudanças Grupo 2 - Mudanças dos grupos 1, 2 e 3
ambientais acopladas ambientais acopladas
à cadeia produtiva de à proximidade das
commodities lavouras nos
globalizada territórios indígenas

Populações vulnerabilizadas às
mudanças socioambientais
dos grupos 3 e 2

Fonte: Elaborado a partir de Franco Netto11

Os dados foram obtidos em fontes secundá- o ano de 2018 foram: Volume de exportação
rias dos setores da saúde e ambiente, além de das commodities agrícolas16 dos municípios
legislações que se relacionam com os indica- de Querência e Sapezal, maiores produtores
dores. Os dados econômicos e ambientais para das regiões onde estão os territórios indígenas

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 28-44, JUN 2022


Territórios indígenas e determinação socioambiental da saúde: discutindo exposições por agrotóxicos 31

comentados; Produto Interno Bruto (PIB) agro- população indígena total residente nas regiões
pecuário; área plantada de commodities17; esti- do zoneamento socioeconômico, do Censo de
mativa de uso de agrotóxicos em commodities18; 2010, por 10 mil habitantes.
desmatamento19; número de focos de queimadas Na análise dos dados de saúde, consi-
e material particulado fino (PM2,5)20. O PM 2,5 deraram-se duas categorias, conforme sua
foi obtido para os meses de junho a novembro, relação à exposição aos agrotóxicos: Agravos
utilizando média dos valores máximos mensais agudos – taxa de intoxicação exógena por
das regiões (quadro 1).  agrotóxicos, de uso agrícola, domésti-
Os dados de saúde foram obtidos no co, saúde pública e raticida (Sistema de
Datasus21, utilizando a variável raça/cor, ca- Informação de Agravos de Notificação do
tegoria indígena, sem especificação do povo, Sistema Único de Saúde – Sinan/SUS), e taxa
uma vez que não consta no sistema e que o de internação por doenças respiratórias,
acesso ao Sistema de Informação da Atenção excluindo influenza e tuberculose (Sistema
à Saúde Indígena (Siasi) é restrito. As taxas de de Informações Hospitalares do SUS – SIH/
internações foram calculadas a partir da média SUS); Agravos crônicos – taxa de interna-
dos valores do período entre os anos 2010 e ção por doenças endócrinas, nutricionais e
2018, utilizando como base para os cálculos a metabólicas, capítulo IV do CID-10.

Quadro 1. Matriz de indicadores utilizados na determinação socioambiental do processo saúde-doença em populações


indígenas

Níveis das determinações


socioambientais Indicadores Unidades Fontes Ano
Grupo 3 (macrossocial) - Volume de exportação de Toneladas Trase 2018
Mudanças socioambien- commodities
tais acopladas à cadeia PIB-agropecuária Reais Sidra-IBGE 2018
produtiva de commodi-
ties globalizadas Área plantada commo- Hectares Sidra-IBGE 2018
dities
Leis tributárias - DOU 1997-2020
Código florestal - Lei nº 12.651 2012
Grupo 2 (intermediário) Desmatamento Hectares Inpe 2018
- Mudanças socioam- Focos de queimadas Número absoluto Inpe 2018
bientais acopladas a
proximidade da produção Uso de agrotóxicos por Litros por hectares Pignati et al., 2017/ 2018
agrícola com os territó- município Sidra-IBGE
rios indígenas Material particulado MP Média dos valores Sisam/Inpe 2018
2,5mg/m³ máximos
Lei distância de pulve- - Decreto MT nº 1.651 2013
rização
Grupo 1 (microssocial) - Qualidade das águas e Valor Máximo Permi- Portaria GM/MS nº 2019-2021
Mudanças socioambien- alimentos tido (µg/L) e Limite 888/2021 e PARA/
tais acopladas a exposi- Máximo de Resíduos MS
ção direta ou indireta aos (mg/kg)
agrotóxicos Intoxicação exógena Notificação Sinan-DataSUS 2010-2018
Doença respiratória Internação SIH/SIM-DataSUS 2010-2018
Doenças endócrinas, nu- Internação SIH/SIM-DataSUS 2010-2018
tricionais e metabólicas

Fonte: Elaboração própria.

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32 Lima FANS, Corrêa MLM, Gugelmin SA

Os dados de cada município (ambientais, fertilizantes e máquinas) que cresceu 6,91%


econômicos e de saúde) foram agrupados em 2019, com aumento de faturamento da
conforme as 12 regiões do Zoneamento indústria de agrotóxicos em 23,7% devido ao
Socioeconômico Estadual de Mato Grosso aumento da área plantada23.
(ZSEE-MT), com o objetivo de comparar A quantidade de área plantada é orienta-
os padrões de uso do solo, a influência dos da pela Reserva Legal, disposta pelo Código
núcleos urbanos e tipos de produção de cada Florestal Brasileiro (Lei nº 12.651/2012, art. 3º,
região, as quais servem como suporte para o inciso III), que prevê manter área com vegeta-
Estado na proposição de programas e orien- ção nativa, a título de Reserva Legal correspon-
tação de empreendimentos do agronegócio22.  dente a 80% nos imóveis da Amazônia Legal,
35% nos imóveis do Cerrado e 20% em demais
regiões do País. As maiores áreas plantadas de
Mudanças ambientais commodities em Mato Grosso, regiões X-Centro
relacionadas a cadeia (3,16 milhões/ha), V-Sudeste (2,73 milhões/ha),
XII-Centro-norte (1,78 milhões/ha) e IV-Leste
produtiva de commodities (1,48 milhões/ha), estão localizadas no bioma
globalizada Cerrado, onde o código florestal permitiu maior
desmatamento, anistiou multas de desmata-
O modelo agropecuário participou com 20% mento ilegal antes de 2008 e dispensou áreas
do PIB na receita estadual no ano de 2017, atrás multadas que deveriam ser reflorestadas. 
apenas do segmento serviços (64%). Entre as O setor agrícola também se beneficia com a
regiões com maior PIB agropecuário em 2018 isenção de cinco modalidades de impostos para
(valor bruto da agropecuária em mil reais), compra de agrotóxicos. Com renúncias fiscais,
estão a região do ZSEE-MT V-Sudeste com R$ a União deixou de arrecadar R$ 9,8 bilhões em
4,3 milhões, VII-Sudoeste com R$ 3,9 milhões, 2017, sendo R$ 6,2 bilhões somente de ICMS24.
VIII-Oeste com R$ 3,2 milhões, e III-Nordeste Mato Grosso deixou de arrecadar R$ 1,3 bilhão
com R$ 2,8 milhões. Em 2020, houve aumento no mesmo ano. Estima-se que, para cada US$
de 24,3% do PIB do agronegócio nacional em 1 gasto na compra de agrotóxicos, são gastos
relação ao ano anterior, chegando a quase R$ US$ 1,28 com tratamentos de saúde por into-
2 trilhões23. Foi um dos setores mais lucrativos xicações agudas25. As isenções de impostos
durante a pandemia da Covid-19. e tributos, no entanto, não contabilizam as
Em 2018, Querência (região IV-Leste) e externalidades sociais, ambientais e sanitárias
Sapezal (região VIII-Sudoeste) produziram que impactam a sociedade5,26.
2.411.400 toneladas de soja, destacando-se As tentativas de expansão da produção
dentre os seis maiores produtores do estado. acontecem na medida em que o setor agrícola
A produção de commodities agrícolas estadu- lucra e avança sobre direitos das populações
al cresce anualmente, e somente Querência com desregulações ambientais que são uma
direcionou para outros países mais de 95% ameaça à proteção jurídica ambiental do País,
do volume da soja, milho e algodão pro- aos povos indígenas, às comunidades tradicio-
duzidos pelo município. Sapezal exportou nais e suas culturas27. No início da pandemia
97% do algodão, 86% da soja e 54% do milho da Covid-19, o Projeto de Lei Complementar nº
produzido. 17/2020, de autoria do governador do estado
Essa produção contribuiu para que Sapezal de Mato Grosso, aprovado na Assembleia
e Querência permanecessem entre os 50 Legislativa estadual, tentou regularizar o
maiores PIB agropecuário do País, 3ª e 45ª Cadastro Ambiental Rural (CAR) de fazen-
posição, respectivamente, em 2018 – impul- das em sobreposição às TI, medida que foi
sionando a indústria de insumos (agrotóxicos, impedida após intensa mobilização social de

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Territórios indígenas e determinação socioambiental da saúde: discutindo exposições por agrotóxicos 33

organizações indígenas e entidades parcei- de lavoura mecanizada, que somam 16.334


ras, por contrariar o art. 231 da Constituição hectares plantados, em duas TI, escolhidas
Federal de 1988.  conforme critérios debatidos entre as lide-
Segundo o documento Conflitos no ranças indígenas. Além disso, instalaram um
Campo28, em 2019, as ameaças em territórios pedágio na rodovia que passa pela TI.
indígenas estavam vinculadas a atividades de Independentemente da escolha desse povo
exploração de madeira, minério, expansão em produzir commodities, impasses jurídicos
agrícola de fazendas ou especulação imobiliá- e relações de poder assimétricas, é importante
ria, contabilizando 244 ocorrências de conflito discutir as circunstâncias e as determinações
por terra (20% dos registros), em que uma em que levaram à tal decisão, além dos possíveis
cada três famílias era indígena. A produção conflitos com direitos indígenas já promulga-
agrícola e as estratégias de expansão de terras dos. Também é importante refletir se a adoção
não consideram o espaço de reprodução social da agricultura, poluente e historicamente ex-
dos povos locais, transformando as relações cludente, tem assegurado sustentabilidade
de produção ali existentes em espaços para a e subsistência das comunidades, proteção
reprodução do capital, que são excludentes29. aos territórios e manutenção das condições
de vida. Segundo relatos dos Haliti, houve
A região ZSEE Sudoeste e o povo aumento do número de casos de malformação
Haliti-Paresi fetal nos últimos anos e preocupações quanto
ao modelo agrícola químico-dependente
A intersecção entre os grupos de determinan- adotado por eles30. 
tes socioambientais III e I pode ser visualizada
pela situação do povo Paresi, autodenominado
Haliti. O território do povo Haliti-Paresi com- Mudanças ambientais pela
preende 1,1 milhão de hectares, com população proximidade da produção
de 2.186 habitantes, distribuídos em 64 aldeias.
Historicamente, parte dos indígenas escraviza-
agrícola com os territórios
dos pelos bandeirantes sofreu com a abertura indígenas
da rodovia BR-364, perdeu parte de suas terras
e passou a ser aliciada como peões nas fazen- O desmatamento na Amazônia Legal seguiu
das. Após mobilização, esse povo conseguiu o em crescimento no período de 2010 a 2019.
reconhecimento das TI pelo governo federal, Entre as regiões do ZSEE-MT com maior des-
mas seus territórios estavam fragmentados, dis- matamento no ano de 2018 estão as regiões:
tanciando-se do modo de ocupação tradicional. I-Noroeste 1 (47.309 ha), IV-Leste (33.092 ha);
Assim, as atividades de subsistência tornaram-se XII-Centro-norte (26.656 ha) e V-Sudeste
insuficientes para suprir as necessidades; e uma (24.208 ha), mostrando as direções da expan-
das estratégias encontradas foi recorrer à pro- são da fronteira agropecuária mato-grossense,
dução agrícola mecanizada, a fim de estabelecer totalizando 235.140 hectares desmatados,
autonomia econômica ante as novas condições sendo 58% na Amazônia e 42% no Cerrado.
de vida impostas pela região, um dos polos do Mato Grosso contabiliza a maior quantida-
agronegócio estadual30.  de de queimadas, com 251.835 focos de calor
Desde a década de 1990, a Associação acumulados de 2010 a 2018, principalmente
Halitinã e a Associação Waymare fazem a na estação seca. Em 2019 e 2020, segundo
gestão da produção mecanizada de soja, milho o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais
e feijão, em parceria com produtores locais, da (Inpe), houve aumento de 86% de queimadas
região que é uma das mais intensas de produ- na Amazônia Legal20. Essas queimadas an-
ção agrícola do estado. No total, há 9 projetos trópicas iniciadas por agropecuaristas são

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34 Lima FANS, Corrêa MLM, Gugelmin SA

para expandir pastagens para criação de doenças respiratórias, principalmente em


gado e limpar áreas destinadas ao plantio31 crianças e idosos 20, aumentando o risco
– e, em alguns casos, como forma de inti- relativo de internação para crianças (em
midação aos povos tradicionais e peque- 6%) e idosos (6,8%) no período da seca31.
nos agricultores familiares, na tentativa de As regiões do ZSEE-MT que apresenta-
expulsá-los dos seus territórios. À medida ram maiores valores de material particulado
que aumentam as áreas de desmatamentos – PM2,5 na atmosfera, no ano de 2018, foram
e queimadas, também há a conversão dessas II-Norte (353 μm/m³ de PM2,5), VII-Sudoeste
áreas em pastagens ou lavouras. (308 μm/m³), XII-Centro-norte (283 μm/m³),
Em 2018, focos de queimadas ocorreram nos III-Nordeste (276 μm/m³). As áreas de maior
três biomas de Mato Grosso totalizando 35.122 concentração de PM2,5 não são coincidentes
pontos. Na Amazônia, foram 17.654 (50,3%); às de maior quantidade de queimadas, mas
no Cerrado, 11.653 (33,2%); no Pantanal, algumas apresentam maior uso de agrotóxicos.
1.862 (5,3%). No mesmo ano, as regiões do A resolução Conama nº 491/2018 estabelece
ZSEE-MT com mais focos foram: V-Sudeste como nível de atenção a concentração de 250
(19.555 focos), VII-Sudoeste (3.253 focos), II- μm/m³ de PM2,5, e nível de alerta a concen-
Norte (2.827 focos) e IV-Leste (2.008 focos). tração de 420 μm/m³ de PM2,5 (média de 24
Segundo o Instituto de Pesquisa Ambiental horas).
da Amazônia (Ipam), em 2019, as áreas com Em 2018, Mato Grosso foi o estado que mais
menos desmatamentos e queimadas foram as comercializou agrotóxicos32, com estimativa
TI e as Unidades de Conservação.  de pulverização de 226,4 milhões de litros
As partículas de material sólido das de agrotóxicos em produtos formulados no
queimadas e, também, de materiais líqui- mesmo ano, sendo 98,4% (222,9 milhões de
dos como o aerossol das pulverizações de litros) utilizados nas commodities agrícolas
agrotóxicos permanecem na atmosfera soja, milho, algodão e cana-de-açúcar18. A
(cerca de duas semanas) e são facilmente figura 2 apresenta as regiões com maior uso
inaláveis, causando danos à saúde, como de agrotóxico e a localização das TI no estado. 

Figura 2. Mapa de estimativa de uso de agrotóxicos por regiões do Zoneamento Socioeconômico e Ecológico (ZSEE) e a
localização de terras indígenas, Mato Grosso, 2018

Fonte: Elaboração própria a partir de IBGE17, Pignati et al.18, Seplag-MT22.

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Territórios indígenas e determinação socioambiental da saúde: discutindo exposições por agrotóxicos 35

Com base na figura, vemos que as regiões que As regiões Sudeste e Leste do
sofreram o processo intenso de colonização pelas ZSEE-MT e o Território Indígena do
frentes de expansão agrícola e pela construção Xingu 
da BR-163 Cuiabá-Santarém na década de 1970
apresentam menor número de TI (regiões II- No modelo explicativo proposto, as inter-
Norte; XII-Centro-Norte; X-Centro; e VI-Sul). secções entre os grupos II e III resultam em
A região V-Sudeste possui extensas áreas plan- diferentes vulnerabilidades relacionadas com
tadas para commodities, intenso uso de agro- a proximidade das lavouras agrícolas que usam
tóxico, focos de queimadas e o segundo maior agrotóxicos, impulsionadas pelo mercado
PIB agropecuário de Mato Grosso. Dentre as global de commodities. As regiões Sudeste e
regiões que mais utilizaram agrotóxicos em Leste contam com 20 TI, sendo o Xingu o de
2018, destacam-se: X-Centro (45.383.065 litros), maior extensão territorial.
V-Sudeste (43.453.597 litros), XII-Centro-norte O Território Indígena do Xingu (TIX) é
(24.957.583 litros), IV-Leste (23.382.508 litros) e formado por um complexo de TI: Wawi, Batovi,
VII-Sudoeste (21.133.076 litros). Pequizal do Naruvôtu e Parque Indígena do
As pulverizações aéreas de agrotóxicos Xingu (PIX). Este último tem uma área de 2,64
são orientadas pela Instrução Normativa milhões de hectares, onde residem 16 povos,
do Ministério da Agricultura, Pecuária e que contabilizavam 6.090 pessoas em 20139,33.
Abastecimento (Mapa) nº 02/2008, que es- Atualmente, possui cerca de 36 organizações
tabelece uma distância mínima de 500 metros indígenas, entre elas, a Associação Terra
de habitações e de 250 metros de fontes de Indígena Xingu (Atix), fundada em 1995. Essas
água para pulverização. Em Mato Grosso, havia associações fazem gestão de grandes projetos
orientações para pulverização terrestre com com instituições externas não indígenas, em
distância mínima de 300 metros em áreas de temas como geração de renda, infraestrutura,
povoações, mananciais de captação de água, cidadania e representação política. 
moradias isoladas e nascentes. Essa distância As lideranças Xinguanas têm discutido
foi reduzida para 90 metros dos mesmos locais, desmatamento, avanço das lavouras sobre os
segundo Decreto estadual MT nº 1.651/2013. territórios indígenas, mortandade de peixes
A Resolução de Diretoria Colegiada (RDC) em rios próximos às lavouras, derivas de pulve-
nº 294/2019 da Agência Nacional de Vigilância rização de agrotóxicos sobre TI; e apresentam
Sanitária (Anvisa), que aprovou o novo marco propostas de trabalho intersetoriais para ga-
regulatório de classificação toxicológica de rantir o cumprimento da legislação ambiental
agrotóxicos, com base em um sistema global, no entorno do território33.
realocou os produtos extremamente tóxicos Na TI Wawi do povo Khisêtjê, que já foram
para outras categorias consideradas menos chamados Suya, a comunidade mudou o local
tóxicas26, sem novas avaliações. Esse marco da aldeia por causa do ‘cheiro de veneno’ vindo
regulatório está alinhado ao Projeto de Lei das lavouras, que estão nos limites da TI. O
(PL) nº 6.299/2002, que flexibiliza o sistema desmatamento para plantio de grãos aumenta,
normativo regulatório de agrotóxicos no Brasil, e há relatos de agravos à saúde, como febre,
buscando reduzir custos para o setor produtivo dor de cabeça, coceira na pele e adoecimento
e pressionando dispositivos protetivos à saúde de crianças34. Tal mudança é um processo
humana e ao ambiente24,26,27. Cabe salientar complexo, que envolve realocação de todas as
que a quantidade de uso de agrotóxicos segue pessoas, obtenção de novos recursos materiais
aumentando em Mato Grosso18,32, é acompa- e infraestrutura para construção das casas,
nhada pela liberação de novos registros de polo de saúde e escola, adequação de novas
agrotóxicos no País, com pouca ou nenhuma roças e pomares, rotas pelo rio e por estradas,
fiscalização de uso pelo governo estadual. que influenciam na chegada de materiais de

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36 Lima FANS, Corrêa MLM, Gugelmin SA

fora da aldeia e a saída da produção econô- 399 ingredientes ativos de agrotóxicos agríco-
mica da comunidade (como óleo de pequi, las37, dos quais 120 têm relação com danos à
mel, pimenta, artesanato, entre outros). Afeta saúde, sendo 67,2% associados a danos crôni-
ainda o atendimento de saúde dentro e fora cos. Além disso, 80% dos agrotóxicos autori-
da aldeia, entrada de insumos e mobilidade zados no Brasil não têm permissão de uso em
dos profissionais de saúde, remoção de pa- pelo menos três países de base agrícola que
cientes para tratamentos fora da aldeia. O compõem a Organização para a Cooperação e
‘cheiro de veneno’ também é relatado na aldeia Desenvolvimento Econômico (OCDE)37.
Tangurinho do povo Kalapalo localizada em Os agrotóxicos glifosato, 2,4-D, acefato,
outra região, ao sul do PIX, a menos de um mancozebe, atrazina, malationa, clorpirifós,
quilômetro de distância das lavouras. imidacloprido, paraquate e carbendazim estão
A percepção de agrotóxicos no ar, relatada entre os mais utilizados em Mato Grosso.
por essas comunidades, indica a mobilida- Destes, acefato, malationa e clorpirifós são
de de resíduos de agrotóxicos na atmosfera. inseticidas do grupo Organofosforado (OF),
Além disso, parte dessas substâncias são vo- com maior toxicidade aguda, ação neurotóxica
láteis, podendo contaminar nuvens e água e inibição da atividade das enzimas colines-
de chuva35; ademais, por escoamento super- terases, afetando o Sistema Nervoso Central
ficial e lixiviação, podem contaminar córre- (SNC), o Sistema Nervoso Periférico (SNP)
gos, rios e o ecossistema aquático. Exemplo e as junções neuromusculares3,38, podendo
disso é a contaminação de cágados e tracajás levar à falência respiratória em síndromes
(Testudines), avaliados na bacia Xinguana, os intermediárias39. Ressalta-se que a maior taxa
quais apresentaram resíduos de oito tipos de de internação por doença respiratória foi na
agrotóxicos em concentrações maiores que os região VII-Sudoeste, onde há maior produção
limites estabelecidos para recursos proteicos de algodão, cultura agrícola que usa grande
de consumo humano nacional e internacional, quantidade de clorpirifós.
afetando a saúde das populações que conso- Segundo o Sinan, no Brasil, entre 2007 e
mem esses alimentos36. 2016, foram notificados 6.408 casos de intoxi-
O contexto delineado nos leva a refletir cação relacionados com o herbicida glifosato.
sobre as implicações da Proposta de Emenda As maiores notificações foram no primeiro e no
à Constituição (PEC) nº 215/2000 sobre o último trimestre de cada ano38, acompanhan-
direito à terra para povos indígenas, uma vez do o período de cultivo da soja transgênica,
que essa proposta transfere competência ex- resistente ao glifosato. Das intoxicações não
clusiva ao Congresso Nacional para aprovar associadas ao trabalho, 76,7% foram por via
a demarcação das terras tradicionalmente digestiva, 13% por via respiratória e 5,8% por
ocupadas e a ratificação das demarcações já via cutânea40. O glifosato apresenta potencial
homologadas, alinhadas ao PL nº 490/2007 genotóxico, alérgico, hepatotóxico39 e está
pressionado pela Frente Parlamentar da no grupo 2A – Provável carcinógeno para
Agropecuária, que representa o agronegócio humanos, segundo a Agência Internacional
no Congresso Nacional. para Pesquisa em Câncer – Iarc/OMS3.
O herbicida 2,4-D é amplamente utilizado
Efeitos na saúde humana no cultivo da soja, é o segundo mais comer-
relacionados com os agrotóxicos e as cializado no estado. Atua como desregulador
mudanças ambientais  endócrino, que afeta os processos hormonais,
com efeitos estrogênicos, androgênicos e an-
O nível microssocial representa os desfechos titireoidiano; e danos ao sistema reprodutivo,
vinculados aos agrotóxicos na saúde das popu- desencadeando “indução de abortos espon-
lações indígenas. No Brasil, estão autorizados tâneos, baixo peso ao nascer, malformações

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Territórios indígenas e determinação socioambiental da saúde: discutindo exposições por agrotóxicos 37

esqueléticas e urogenitais”38(71). Esse herbi- X-Centro, VIII-Oeste e IX-Centro-oeste.


cida está no grupo 2B – Possível carcinógeno,
segundo a Iarc/OMS3. Os agravos à saúde
O herbicida paraquate foi recentemente
reavaliado pela Anvisa, e recomendada sua A tabela 1 sistematiza as mudanças socio-
proibição a partir de setembro de 2020 pela ambientais e agravos à saúde por região do
RDC nº 177/2017, mas segue em uso no Brasil. ZSEE-MT. Houve sete intoxicações por agro-
Tem potencial tóxico para o fígado, rim, estô- tóxicos entre indígenas, de 2010 a 2018, com
mago, intestino e sistema respiratório41. quatro (57%) intoxicações no ano de 2015.
 Os agrotóxicos mais utilizados em 2018 em As regiões IV-Leste e VI-Sul, ambas com
Mato Grosso, que puderam ser quantificados dois registros. Em Mato Grosso, pessoas com
por município, foram os herbicidas glifosa- residência próxima a lavouras agrícolas de
to, 2,4-D e paraquate, comuns em ordem de milho e algodão tiveram quase duas vezes mais
maior uso nas regiões X-Centro, V-Sudeste, IV- intoxicações agudas comparadas com as que
Leste, XII-Centro-norte e VIII-Oeste. O her- residiam em outros locais42. No entanto, há
bicida atrazina foi mais utilizado nas regiões subnotificação de intoxicações por agrotóxicos
X-Centro, XII-Centro-norte, V-Sudeste, VIII- de maneira geral5, agravando-se ainda mais
Oeste e VII-Sudoeste. Já o inseticida clorpi- quando a subnotificação se refere às popula-
rifós, nas regiões V-Sudeste, VII-Sudoeste, ções indígenas.

Tabela 1. Indicadores socioambientais, agravos à saúde relacionados com a exposição aos agrotóxicos, por região do ZSEE-MT

Agravo crônico
Ano 2018 Agravos agudos (2010-2018) (2010-2018)
PIB da Área plantada Focos de População Taxa doenças Taxa doenças
agropecuária commodities Desmata- queimadas Uso de agrotóxicos com- Média PM2,5 indígena Taxa intoxica- respiratórias nutricionais em
ZSEE- MT (R$) (ha) mento (ha) (unidade) modities (litros) e % (µm/m³) (censo 2010) ção indígena em indígenas indígenas
X - Centro 2.001.818 3.163.506 5.471 757 45.383.065 20,4 147 124 0 0 0
V - Sudeste 4.322.737 2.737.574 24.208 19.555 43.453.597 19,5 194 4.083 2 14 12
XII - Centro-norte 1.175.311 1.787.637 26.656 682 24.957.583 11,2 283 1.584 0 11 5
IV - Leste 2.838.638 1.483.662 33.092 2.008 23.382.508 10,5 206 17.956 1 23 32
VII - Sudoeste 3.897.390 1.272.977 13.674 3.253 21.133.076 9,5 308 2.559 0 116 19
VIII - Oeste 3.292.312 1.360.135 6.028 925 18.951.152 8,5 149 3.619 3 16 17
IX - Centro-oeste 1.766.669 1.071.844 7.137 1.437 16.281.728 7,3 116 132 0 0 0
III - Nordeste 2.840.338 901.446 20.351 1.557 13.218.633 5,9 276 3.519 0 10 10
XI - Noroeste 2 506.294 571.515 6.740 261 8.027.122 3,6 95 1.159 0 20 4
II - Norte 1.872.694 295.441 23.675 2.827 4.307.944 1,9 353 2.414 4 14 11
VI - Sul 847.932 233.756 20.791 1.073 3.532.054 1,6 236 2.894 7 1 2
I - Noroeste 1 321.967 24.946 47.309 787 282.082 0,1 170 2.495 0 25 6
Mato Grosso 25.684.099 14.904.439 235.132 35.122 222.910.544 100 2.532 42.538 2 24 19

Um estudo sobre o uso de agrotóxicos socioeconômico e de industrialização dessa


em TI foi realizado com o povo Xukuru região; e para os Xukuru, a utilização do
de Pernambuco. Os agrotóxicos estão his- ‘veneno’ foi uma alternativa para se inserirem
toricamente relacionados com o modelo no processo de desenvolvimento econômico

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local. Também denominam o agrotóxico como agrícola “predatória em relação ao ambiente


remédio, e 46% dos indígenas entrevistados ou às relações econômicas e sociais, causam
relataram dores de cabeça, vômitos, tonturas, imposição de padrões alimentares”3(252), e con-
‘moleza no corpo’, ‘língua grossa’, ‘salivação trariam o art. 1º do Decreto nº 6.040/2007 e
excessiva’ após aplicação de agrotóxicos, 10% o art. 4º, inciso III, da Política Nacional de
relataram ter sofrido intoxicação pelo produto. Segurança Alimentar e Nutricional (PNSAN)
Os entrevistados também associaram o caso (Decreto nº 7.272/2010). A região IV-Leste
de leucemia de uma indígena com a exposição é onde vivem os Xavante, tradicionalmente
aos agrotóxicos43. caçadores e coletores, de relação intrínseca
Os desfechos respiratórios na população com o Cerrado.
apontam que as exposições a inseticidas OF,
piretróides e organoclorados estão associadas Imposição e exposição aos
com agravos pulmonares44,45. Os dados sobre agrotóxicos em territórios indígenas
doenças respiratórias em indígenas de Mato
Grosso registram 905 internações entre 2010 A região IV-Leste possui numericamente a
e 2018, com variação dos casos entre os anos maior população indígena do estado, composta
analisados, sendo o maior registro em 2014, principalmente pelo povo Xavante. Foi a região
com 149 internações (16,4%). As maiores taxas do ZSEE-MT que apresentou valores altos
de doenças respiratórias (tabela 1) foram nas para os indicadores aqui analisados, perma-
regiões VII-Sudoeste (116 internações por 10 necendo sempre entre as quatro regiões com
mil/ hab), região I-Noroeste 1 (25 por 10 mil/ maior desmatamento, área plantada, foco de
hab), IV-Leste (23 por 10 mil/hab). A região queimadas, uso de agrotóxicos e maiores taxas
VII-Sudoeste foi a segunda com maior quan- de internações para doenças respiratórias e por
tidade dos indicadores PM2,5 na atmosfera, doenças nutricionais e metabólicas. 
focos de queimadas e uso do inseticida OF Entre as TI do povo Xavante, Marãiwatsédé
clorpirifós. O PM2,5 de agrotóxicos pulveriza- é a única que fica na região III-Nordeste. No
do na atmosfera aumenta irritações no nariz, entanto, cabe mencioná-la devido à pesquisa
garganta, olhos e peito45. Nessa região, estão sobre os agrotóxicos, conduzida entre 2013 e
os Pareci, que cultivam soja e milho dentro 2015 após denúncia de óbitos de duas crianças
de suas terras. com suspeita de intoxicação por agrotóxicos46.
Os dados sobre doenças endócrinas, nutri- O processo histórico e produtivo da região de
cionais e metabólicas mostram 742 internações base agropecuária, aponta caminhos que se
na população indígena entre 2010 e 2018, com relacionam com os múltiplos desfechos sociais
maior registro no ano de 2015 com 93 interna- e de saúde desse povo. 
ções (13,07%). Como as internações variam de Em 1966, os Xavante foram exilados de suas
um ano para outro, se considerarmos o ano de terras para implantação de projetos agrícolas
2019, o aumento foi de 19,3% em Mato Grosso. pelo grupo Ometto; posteriormente, a terra
As maiores taxas de internações no período foi negociada para a holding italiana Agip-
foram nas regiões IV-Leste (32 casos por 10 Petroli do Brasil. Pressionada na Eco-92, essa
mil/hab), VII-Sudoeste (19 por 10 mil/hab), empresa devolveu a terra aos indígenas, o que
VIII-Oeste (17 por 10 mil/hab). A região IV- impulsiona atividades de grilagem e invasões,
Leste é a região do ZSEE-MT com maior valor organizadas por políticos e servidores públicos
médio de desmatamento por hectare entre da região. Depois de décadas na posse de não
2010 e 2018, está entre as quatro regiões com indígenas, várias disputas jurídicas e lobby de
maior número de focos de queimadas, que mais parlamentares, a mobilização do povo Xavante
plantam commodities agrícolas e que usam pressionou o estado a reconhecer e a devol-
agrotóxicos, como o paraquate. A produção ver suas terras tradicionais – isso ocorreu em

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Territórios indígenas e determinação socioambiental da saúde: discutindo exposições por agrotóxicos 39

2004. No entanto, os conflitos permaneceram a área plantada de commodities reduzindo as


mesmo após o processo de desintrusão total em TI, os territórios quilombolas e Unidades de
2013, período em que o território foi utilizado Conservação por meio da PEC nº 215/2000,
para retirada de madeira, pastagem, pecuária do PL nº 490/2007 e do PL nº 2.633/2020. Há
e plantio de grãos46,47, sendo que, no ano da também aumento da produtividade da área
desintrusão, 66,64% da área estava desmatada. plantada pelo uso de insumos como agrotó-
Nos limites da TI Marãiwatsédé, havia la- xicos, que pretende ser impulsionado com o
vouras em atividade localizadas na porção sul PL nº 2.699/2002. Há ainda que considerar a
e centro, produzindo soja e milho próximo pulverização aérea de agrotóxicos, próximos
a cursos de água que eram utilizados pelos ou em territórios indígenas, como estratégia
Xavante. Na aldeia Marãiwatsédé, houve de intimidação dos produtores rurais a estes
relatos de ‘cheiro de agrotóxico’ no ar e sin- povos e outras comunidades.
tomas de garganta seca e tosse no período de Os resultados apresentados no presente
atividade agrícola, mencionados desde 201346. artigo corroboram a aplicação de tais estraté-
No decorrer da pesquisa, foi investigada gias dentro do estado de Mato Grosso; e, mais
presença de resíduos de agrotóxicos na água especificamente, como elas, pressionam social,
em um local onde seria construída uma nova econômica e fisicamente povos e comunidades
aldeia e no qual foram relatados sinais e sin- tradicionais que estão cercadas pelo agrone-
tomas de náusea e diarreia, em alguns casos gócio, especialmente as indígenas.
com presença de sangue, após o consumo
constante dessa água. Dentre 12 agrotóxicos
avaliados nas amostras de água, o resultado Considerações finais
foi positivo para o inseticida permetrina na
concentração de 0,19 μg/L. Embora o valor O modelo explicativo buscou identificar as
encontrado na amostra estivesse em confor- pressões do agronegócio e do uso de agrotó-
midade com a portaria de potabilidade de água xicos sobre povos indígenas em Mato Grosso,
brasileira, esse agrotóxico não é autorizado incorporando a historicidade nas dimensões
na União Europeia desde o ano 2000 devido socioeconômicas e agroindustriais que estão
à sua toxicidade, rápida absorção por via oral, impactando o ambiente, com efeitos diretos
irritabilidade de vias aéreas, dérmicas e ocula- ou indiretos na saúde. A exposição aos agrotó-
res, atividade neurotóxica e por ser altamente xicos é mais uma das atividades poluidoras da
tóxico para comunidades aquáticas e abelhas. cadeia de produção de commodities agrícolas.
As lavouras nesses territórios eram fontes fixas Os agrotóxicos selecionados representam uma
de poluição ambiental e dos sistemas hídricos parte ínfima do que é utilizado nas lavouras
que adentravam a TI46. do estado, que estão misturados com tantas
As interlocuções entre os grupos de de- outras moléculas de agrotóxicos pulverizadas
terminações I, II e III, neste caso, mostram no ambiente e que contaminam a água, a biota e
que o modelo de apropriação socioambiental os alimentos. Ainda há poucas informações nos
praticado pelo agronegócio é sistêmico e anula bancos de dados públicos sobre intoxicações
outras possibilidades de produções agrícolas, por agrotóxicos entre os diversos povos indíge-
econômicas e sociais nos territórios indígenas; nas. Igualmente os desfechos ambientais e em
caracterizando a exposição aos agrotóxicos saúde relatados pelas comunidades indígenas
como uma imposição que gera agravos nas relacionados com os agrotóxicos precisam ser
condições de vida e reprodução social, descon- considerados nas avaliações, porque os terri-
siderando os direitos constitucionais dos povos tórios indígenas estão cercados por lavouras,
indígenas sobre as terras tradicionalmente que são fontes fixas e sazonais de poluição
ocupadas. O agronegócio pretende ampliar por agrotóxicos.

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40 Lima FANS, Corrêa MLM, Gugelmin SA

As queimadas e o desmatamento, comuns para manutenção da produção de commodities


nas mesmas regiões do ZSEE-MT, também têm agrícolas. Os estudos sobre agrotóxicos em
relação com a abertura de novas áreas desti- TI são escassos no País, visto que os limites
nadas à produção de commodities e pecuária interpostos por diferentes instâncias governa-
extensiva nas regiões de entorno das TI, ou mentais limitam o acesso à produção de dados.
seja, fazem parte do processo de ocupação da É necessário ampliar o escopo das pesquisas
terra pelo agronegócio. Essas pressões sobre a partir de uma ciência socialmente crítica,
os territórios indígenas intensificam conflitos participativa, capaz de também oportunizar
fundiários com tentativas de legalização da espaços de autonomia para os povos indígenas
usurpação das terras por meio de instrumentos em suas próprias investigações.
legislativos como a Portaria da Advocacia- Modelos teóricos de leitura interdiscipli-
Geral da União (AGU) nº 303/2012 e os outros nar dos territórios e processos de trabalho, na
já citados, impondo um modelo de produção relação entre saúde, desenvolvimento econô-
agropecuário ‘químico-dependente’. Esse mico, social e ambiental, estão além da visão
modelo pode inviabilizar os modos de vida, epidemiológica tradicional. Agronegócio, uso
funções ecossistêmicas, a autossuficiência de agrotóxico, conflitos territoriais e saúde
alimentar, com dependência econômica. não podem ser pensados como elementos
A abordagem utilizou informações agru- dissociados. Pensar políticas públicas de vi-
padas por regiões do ZSEE-MT, que orienta gilância de base territorial e participativa em
empreendimentos agroindustriais impactantes territórios indígenas, vigilância de populações
ao ambiente e à saúde. O novo zoneamento expostas aos agrotóxicos, assim como ações
está em discussão e deve ser aprovado ainda intersetoriais de combate à pulverização aérea,
este ano, fato que poderá trazer mais reper- definição de áreas livres de uso de agrotóxicos
cussões para os povos indígenas. A escolha de e garantia das terras homologadas e saudáveis
análise pela determinação socioambiental do aos povos indígenas, são alguns dos desafios
processo saúde-doença na população indígena colocados para a saúde coletiva e integrados
mostra que a exposição aos agrotóxicos é um neste estudo.
problema histórico, dinâmico e intersetorial,
vinculado à violação de direitos humanos e
ao direito originário à terra, à água, à saúde, Colaboradores
à alimentação dos indígenas preconizados na
Constituição Federal de 1988. Além de apre- Lima FANS (0000-0001-5677-2390)* con-
sentar que uma hierarquia na organização de tribuiu para concepção da pesquisa, coleta e
grupos sociais que determinam os processos análise de dados, discussão, escrita e revisão.
que geram problemas na saúde humana. Côrrea MLM (0000-0001-7812-0182)* con-
 As pesquisas sobre efeitos negativos re- tribuiu para concepção da pesquisa, escrita e
lacionados com os agrotóxicos apresentam revisão. Gugelmin SA (0000-0002-4818-1344)*
desafios no âmbito da saúde coletiva, porque contribuiu para concepção da pesquisa, análise
há disputas com o campo econômico e político de dados, discussão, escrita e revisão. s

*Orcid (Open Researcher


and Contributor ID).

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Territórios indígenas e determinação socioambiental da saúde: discutindo exposições por agrotóxicos 41

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ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE 45

Exposição aos agrotóxicos, condições de


saúde autorreferidas e Vigilância Popular em
Saúde de municípios mato-grossenses
Exposure to pesticides, health conditions, and popular surveillance of
municipalities of Mato Grosso

Wanderlei Antonio Pignati1, Mariana Rosa Soares1, Stephanie Sommerfeld de Lara2, Francco
Antonio Neri de Souza e Lima3, Nara Regina Fava1, Jackson Rogério Barbosa1, Marcia Leopoldina
Montanari Corrêa1

DOI: 10.1590/0103-11042022E203

RESUMO O estudo analisou o perfil sociodemográfico e condições de saúde da população residente em


municípios mato-grossenses entre 2016 e 2017. Trata-se de estudo qualiquantitativo de base populacional,
autorreferido. Entrevistaram-se moradores adultos, com base em questionário com 172 questões, referen-
tes às informações familiares e individuais. Aplicaram-se 1.379 questionários válidos, totalizando 4.778
indivíduos. A maioria referiu morar em áreas urbanas em distâncias inferiores a 1 km das áreas de lavoura
(98%), baixa escolaridade (43%), renda menor que 3 salários mínimos (68%) e utilizar agrotóxicos de
uso doméstico (71,8%). As morbidades mais citadas foram: problemas respiratórios, intoxicações agudas,
transtornos psicológicos, doenças renais e cânceres. Identificou-se a subnotificação de intoxicações por
agrotóxicos de 1 para 20 casos em Campos de Júlio; 1 para 77 casos em Campo Novo do Parecis e 100%
de subnotificação em Sapezal. Encontraram-se associações entre as variáveis sociodemográficas e de
exposição aos agrotóxicos e as morbidades referidas, considerando o p-valor=0,05 e nível de significância
de 95%. O uso crescente de agrotóxicos associado a cenários políticos e econômicos favoráveis ao agrone-
gócio demonstraram a importância da Vigilância Popular em Saúde, pois ela é uma estratégia do Sistema
Único de Saúde que permite evidenciar os impactos negativos causados na saúde humana e ambiental.

PALAVRAS-CHAVE Nível de saúde. Agroquímicos. Vigilância Popular em Saúde. Agroindústria.

ABSTRACT The study analyzed the socio-demographic profile and health conditions of the population living
in Mato Grosso municipalities between 2016 and 2017. It is a quali-quantitative, self-referred, population-
based study. Adult residents were interviewed on the basis of a structured questionnaire with 172 questions
concerning family and individual information. A total of 1,379 valid questionnaires were applied, totaling
1 Universidade
Federal de 4,778 individuals. Most reported living in urban areas at distances of less than 1 km from farming areas
Mato Grosso (UFMT) –
Cuiabá (MT), Brasil.
(98%), low schooling (43%), average income below 3 minimum wages (68%), and using agrochemicals for
pignatimt@gmail.com domestic use (71.8%). The most commonly cited morbidities were: respiratory problems, acute intoxications,
psychological disorders, kidney diseases, and cancers. Underreporting of pesticide poisoning was identified,
2 Instituto Federal de

Educação, Ciência e
from 1 to 20 cases in Campos de Júlio; 1 to 77 cases in Campo Novo do Parecis, and 100% underreporting in
Tecnologia de Mato Grosso Sapezal. Associations were found between sociodemographic variables and exposure to agrochemicals and
(IFMT) – Cuiabá (MT), the mentioned morbidities, considering the p-value=0.005 and 95% significance level. The increasing use of
Brasil.
agrochemicals associated with political and economic scenarios favorable to agribusiness interests demon-
3 Fundação Oswaldo Cruz strated the need to develop strategies for Popular Health Surveillance, highlighting the negative impacts of
(Fiocruz), Escola Nacional this production model on human and environmental health.
de Saúde Pública Sergio
Arouca (Ensp) – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil. KEYWORDS: Health status. Agrochemicals. Popular Health Surveillance. Agribusiness.

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 45-61, JUN 2022
46 Pignati WA, Soares MR, Lara SS, Lima FANS, Fava NR, Barbosa JR, Corrêa MLM

Introdução  Sistema Único de Saúde (SUS), permitindo a


aproximação das populações com a sua efetiva
O Brasil destina cerca de 76% de toda sua participação nas práticas de saúde, desde o
área plantada aos cultivos de exportação de planejamento, gerenciamento, no controle
soja, milho, cana-de-açúcar e algodão1,2. Entre e avaliação da resposta popular e social das
os anos de 2010 e 2016, houve uma variação práticas de saúde no território, atuando em
percentual anual de 4% da área plantada no um processo de transformação sócio-histórica,
País e 5% do consumo de agrotóxicos, destes, a fim de atender às necessidades da popula-
cerca de 164% são produtos de alta e muito ção que devem ser respondidas em conjunto
alta periculosidade ambiental3,4. Os incen- com as gestões governamentais, de forma
tivos fiscais de isenção de impostos para a intersetorial.
exportação de bens primários, introdução de Apesar de o Brasil possuir um dos melhores
grãos transgênicos, fragilização de leis am- Sistemas de Informação em Saúde (SIS) do
bientais, precarização dos órgãos de controle mundo, capaz de registrar agravos e doenças
e fiscalização são exemplos de como a política ocorridos em território nacional, quando se
e a economia contribuíram para que o Brasil trata de agravos desencadeados pela exposição
utilize em suas lavouras cerca de um quinto aos agrotóxicos, a magnitude do seu impacto
de todo o agrotóxico produzido no mundo2. na saúde não se torna aparente, em decorrência
Entre os estados brasileiros, Mato Grosso da subnotificação das intoxicações agudas,
lidera a produção de soja, milho, algodão, assim como dificuldade em estabelecer o nexo
girassol e bovinos 5,6. Essas quatro com- causal das intoxicações crônicas, cujos regis-
modities correspondem a 97% de toda a área tros são essenciais para subsidiar pretensas
agrícola na safra de 2017/2018 no estado. políticas intersetoriais9.
Consequentemente, foi estimado que, nessas Diante desse desafio, os estudos epidemio-
lavouras, foram utilizados mais de 222 milhões lógicos de inquéritos de morbidade referida
de litros de agrotóxicos, representando o maior são uma alternativa viável, utilizados quando
consumo do País1. Dos municípios que mais as informações existentes são insuficientes em
consomem agrotóxicos no Brasil, Campo Novo virtude de subnotificações, falhas de registro
do Parecis, Campos de Júlio e Sapezal7 utili- e, sobretudo, no contexto das intoxicações
zam cerca de 98% de seu território para pro- exógenas por agrotóxicos. O inquérito pos-
dução de commodities, utilizando em média, sibilita obter informações das condições de
15 a 20 litros de agrotóxicos por hectare8. Cada saúde de base populacional, fatores de risco e
um desses três municípios utilizou mais agro- exposição, sendo um instrumento sensível, em
tóxicos que Ceará, Rondônia, Pará e outros 12 que o próprio acometido relata sua morbidade,
estados brasileiros1. em determinado período, não demandando
Os danos ambientais e os efeitos negativos avaliação clínica11-15. 
na saúde humana decorrentes da exposição aos Este estudo justifica-se pelo ineditismo em
agrotóxicos são amplamente reconhecidos na realizar um inquérito de morbidade referida
literatura científica9,10. Portanto, investigar e relacionado com a exposição aos agrotóxicos
discutir os impactos dos agrotóxicos nas ma- da população residente em alguns municípios
trizes ambientais, na saúde dos trabalhadores/ mato-grossenses. Parte-se da hipótese que os
as e da população dos municípios agrícolas é dados levantados pelos sistemas de saúde e
fundamental, constituindo um dos mecanis- outros são limitados para expressar a situação
mos para a Vigilância Popular em Saúde (VPS).  de saúde desses territórios. 
A VPS tem por base a Lei nº 8.080/1990 O objetivo foi analisar o perfil socioeconô-
e a Lei nº 8.142/1990, que dispõem sobre a mico, demográfico, condições de saúde e expo-
participação da comunidade na gestão do sição aos agrotóxicos na população residente,

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 45-61, JUN 2022


Exposição aos agrotóxicos, condições de saúde autorreferidas e Vigilância Popular em Saúde de municípios mato-grossenses 47

comparando aos dados oficiais notificados por agrotóxicos na Bacia do Juruena – MT’,
nos municípios de Campo Novo do Parecis, do Núcleo de Estudos Ambientais e Saúde e
Campos de Júlio e Sapezal, no período de 2016 Trabalho (Neast), realizada no Instituto de
a 2017, visando contribuir para a melhoria das Saúde Coletiva (ISC) da Universidade Federal
ações de VPS.  de Mato Grosso (UFMT) em parceria com
Ministério Público do Trabalho de Mato
Grosso (MPT-MT).
Material e métodos  O local de estudo compreende os municípios
do cerrado mato-grossense situados na região
Trata-se de um estudo qualiquantitativo, trans- oeste do estado, compostos pela bacia hidro-
versal e de base populacional dos municípios gráfica dos Rios Juruena, Tapajós e Amazonas
de Campos de Júlio, Campo Novo do Parecis (figura 1). A população, no Censo de 2010,
e Sapezal entre, os anos de 2016 e 2017, que era de 5.154 habitantes em Campos de Júlio,
integram a pesquisa ‘Avaliação da contami- 27.577 em Campo Novo do Parecis e 18.094
nação ocupacional, ambiental e em alimentos em Sapezal, totalizando 50.825 habitantes16.

Figura 1. Localização dos municípios estudados na bacia hidrográfica do Rio Juruena, (a) Campos de Júlio, (b) Sapezal e
(c) Campo Novo do Parecis, Mato Grosso, Brasil

Fonte: Elaboração própria.

Como instrumento da pesquisa participa- os municípios aceitaram que seus agentes de


tiva, foi elaborado um formulário populacio- saúde participassem da coleta de dados na
nal para revelar a magnitude das morbidades condição de entrevistadores. Desse modo,
na população relacionadas com a exposição as entrevistas foram então conduzidas por
aos agrotóxicos. estudantes dos cursos de saúde coletiva, me-
A equipe de entrevistadores, inicialmente, dicina e da pós-graduação em saúde coletiva
era composta por Agentes Comunitários de da UFMT. Antes da aplicação do formulário,
Saúde (ACS), Agentes de Endemias (AE) dos os entrevistadores participaram de oficinas
municípios amostrados, porém, nem todos de capacitação sobre o tema. 

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48 Pignati WA, Soares MR, Lara SS, Lima FANS, Fava NR, Barbosa JR, Corrêa MLM

O formulário foi estruturado, com 172 ques- os adultos à participação da pesquisa. Foram
tões, constituído por 2 módulos de análises: excluídas as perdas de formulários e recusas.
por famílias (sim/não), por indivíduos das A máscara do questionário foi elaborada, os
famílias (sim/não) e quantas vezes ocorreu, dados obtidos foram duplamente digitados e as
em casos específicos. As variáveis foram: de- variáveis foram validadas no software Epi Info
mográficas (sexo, idade, zona do domicílio), 7 (Centers for Disease Control and Prevention,
socioeconômicas (escolaridade, renda familiar, Atlanta, Estados Unidos). Geraram-se análise
ocupação, abastecimento de água), aspectos descritiva, tabelas e gráficos no software Excel
relacionados com os agrotóxicos (distância da 2010 da Microsoft®. A análise de associação
casa à lavoura, do local de armazenamento ou pelo Qui-quadrado foi realizada pelo software
distribuição, uso no domicílio e horta, contato estatístico Stata 14.
direto no trabalho) e condições de saúde (13 O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética
morbidades referidas: hipertensão arterial, em Pesquisa do Hospital Universitário Júlio
diabetes, câncer, malformação, doença renal, Müller, com o Parecer nº 2.092.601, de 11 de
aborto espontâneo, doenças respiratórias, fevereiro de 2015, e foram respeitadas as reco-
doenças neurológicas, transtornos psicológi- mendações da Resolução nº 466/2012.
cos, suicídio, tentativa de suicídio, intoxicação
aguda e baixo peso).
Antes da versão final, foi realizado um pré- Resultados 
-teste em área de abrangência urbana e rural de
duas Unidades de Saúde da Família no municí- Foram utilizados 1.378 questionários corres-
pio próximo, Diamantino-MT, que apresenta pondentes às famílias entrevistadas, sendo 630
semelhanças no perfil de produção agrícola. em Campos de Júlio, 415 em Campo Novo do
Para que os dados representassem as ca- Parecis e 333 em Sapezal, totalizando 4.751
racterísticas relevantes de cada município, indivíduos (1.998 do município de Campos de
foi realizado um desenho amostral aleatório Júlio, 1.552 de Campo Novo do Parecis e 1.201
probabilístico, utilizando 95% de intervalo de de Sapezal). Os resultados foram apresentados
confiança, erro amostral de 5% e prevalência de acordo com o grupo de variáveis.
de 50%, conforme o número de domicílios
obtidos pelo Censo populacional de 201016. Informações sociodemográficas
Realizou-se a amostragem estratificada de
cada município por setor censitário e razão de As informações demográficas mostraram
sexo. O formulário foi aplicado seguindo inter- que mais de 91% das famílias entrevistadas
valos de três casas para cada rua amostrada. residiam na área urbana desses municípios.
Foram entrevistados todos os moradores Destas, 1.212 famílias (87,9%) utilizavam água
adultos, responsáveis ou chefes das famílias de abastecimento da rede pública municipal,
residentes em cada domicílio sorteado, sendo 160 famílias (11,6%) usavam poço artesiano,
este o responsável por responder ao formulário não artesiano e outros, informações que podem
por todos os membros da família. O critério ser visualizadas na tabela 1.
de inclusão no estudo foi a anuência de todos

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Exposição aos agrotóxicos, condições de saúde autorreferidas e Vigilância Popular em Saúde de municípios mato-grossenses 49

Tabela 1. Informações socioeconômicas e demográficas por famílias e indivíduos residentes nos municípios de Campos de Júlio, Campo Novo do Parecis
e Sapezal, 2016 e 2017

Campos de Júlio Campo Novo do Parecis Sapezal Total


Famílias Indivíduos Famílias Indivíduos Famílias Indivíduos
n = 631 n = 1.998 n = 415 n = 1.552 n = 333 n = 1.201
n (%) n (%) n (%) n (%) n (%) n (%)
Sexo
Feminino 966 (48,3%) 754 (48,6%) 582 (48,5%) 2.302 (48,0%)
Masculino 940 (47,0%) 746 (48,1%) 618 (51,5%) 2.304 (48,5%)
Ign/branco 92 (4,6%) 52 (3,4%) 1 (0,1%) 145 (3,1%)
Faixa etária
< 9 anos 320 (16,0%) 232 (14,9%) 205 (17,1%) 757 (15,9%)
10 a 19 anos 279 (14,0%) 235 (15,1%) 179 (14,9%) 693 (14,6%)
20 a 49 anos 828 (41,4%) 576 (37,1%) 543 (45,2%) 1.947 (41,0%)
50 a 69 anos 278 (13,9%) 179 (11,5%) 134 (11,2%) 591 (12,4%)
>70 anos 46 (2,3%) 45 (2,9%) 17 (1,4%) 108 (2,3%)
Ign/branco 247 (12,4%) 285 (18,4%) 123 (10,2%) 655 (13,8%)
Escolaridade
Analfabeto 37 (1,9%) 46 (3,0%) 41 (3,4%) 124 (2,6%)
Ensino Fundamental incompleto 807 (40,4%) 691 (44,5%) 562 (46,8%) 2.060 (43,4%)
Ensino Fundamental completo 124 (6,2%) 120 (7,7%) 80 (6,7%) 324 (6,8%)
Ensino médio incompleto 261 (13,1%) 162 (10,4%) 140 (11,7%) 563 (11,9%)
Ensino médio completo 347 (17,4%) 250 (16,1%) 217 (18,1%) 814 (17,1%)
Ensino superior incompleto 73 (3,7%) 76 (4,9%) 46 (3,8%) 195 (4,1%)
Ensino superior completo 168 (8,4%) 90 (5,8%) 59 (4,9%) 317 (6,7%)
Ign/branco 181 (9,1%) 117 (7,5%) 56 (4,7%) 354 (7,5%)
Renda familiar (R$)
≤ 1 mil 174 (27,6%) 57 (13,7%) 41 (12,3%) 272 (19,7%)
1 a 3 mil 236 (37,4%) 245 (59,0%) 185 (55,6%) 666 (48,3%)
3 a 5 mil 67 (10,6%) 79 (19,0%) 76 (22,8%) 222 (16,1%)
5 a 15 mil 31 (4,9%) 21 (5,1%) 23 (6,9%) 75 (5,4%)
≥ 15 mil 4 (0,6%) 4 (1,0%) 0 8 (0,6%)
Ign/branco 119 (18,9%) 9 (2,2%) 8 (2,4%) 136 (9,9%)
Zona de residência
Urbana 600 (95,1%) 378 (91,1%) 298 (89,5%) 1.276 (92,5%)
Rural 31 (4,9%) 32 (7,7%) 35 (10,5%) 98 (7,1%)
Ign/branco - 5 (1,2%) - 5 (0,4%)
Abastecimento de água
Rede pública 582 (92,2%) 352 (84,4%) 278 (83,5%) 1.212 (87,9%)
Poço e córrego 47 (7,4%) 60 (14,5%) 53 (15,9%) 160 (11,6%)
Ign/branco 2 (0,3%) 3 (0,7%) 2 (0,6%) 7 (0,5%)
Fonte: Elaboração própria.

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50 Pignati WA, Soares MR, Lara SS, Lima FANS, Fava NR, Barbosa JR, Corrêa MLM

Em relação às informações de sexo, os in- entrevistados referiu renda média de até 3


divíduos apresentaram um padrão de distri- salários mínimos.
buição com proporção igualitária, 48,2% para Quanto à ocupação (tabela 2), em média,
ambos os sexos. As variáveis socioeconômicas 37,1% dos(as) entrevistados(as) se enqua-
demonstraram que a faixa etária de 20 a 49 draram na classe sem qualificação; 13,1% na
anos foi a que apresentou a maior proporção de classe operadores de instalação, máquinas e
indivíduos, acima de 41% entre os municípios, montadores, em que a ocupação de operador
indicando uma população economicamente de máquinas predominou com 57% dos indi-
ativa, e o público menor de 9 anos apresentou víduos; 23,3% de motoristas; e 16% de cami-
a segunda maior proporção, com 16%.  nhoneiros nessa classe. Operadores, artesãos
 A escolaridade dos indivíduos apontou de mecânica e outros ofícios abrangeram 9,3%
que a maior parte deles possui o ensino dos indivíduos, e a ocupação mecânico foi
fundamental incompleto (44%), seguido destaque nessa classe com 31% dos indivíduos.
de ensino médio completo (17%); e em Os agricultores e trabalhadores agrícolas com-
menores proporções, a taxa de analfabe- puseram 5,8% dos indivíduos, predominando
tismo representou 2,7%. Observa-se também a ocupação agricultor e ajudante em 56,8%
que metade das famílias (50,6%) vive com dos indivíduos nessa classe; e 14,3% referiram
renda que varia de mil a R$ 3 mil mensais. ser dosadores e aplicadores de agrotóxicos
Em relação à renda familiar, a maioria dos (aplicador agrícola). 

Tabela 2. Classificação de ocupações dos entrevistados maiores de 18 anos em Campos de Júlio, Campo Novo do Parecis e Sapezal – MT, 2016 a 2017

Campos de Júlio Campo Novo do Parecis Sapezal Média do total


Indivíduos Indivíduos Indivíduos
n = 1.124 n = 815 n = 699
Ocupação CNAE n (%) n (%) n (%) (%)
Não qualificado 415 (36,9%) 288 (35,3%) 273 (39,1%) 37,1%
Desempregado 41 (3,6%) 48 (5,9%) 41 (5,9%) 5,1%
Operadores de instalação, máquinas e montadores 142 (12,6%) 112 (13,7%) 91 (13,0%) 13,1%
Caminhoneiro 14 (9,9%) 19 (17,0%) 19 (20,9%) 16%
Motorista 44 (31,0%) 24 (21,4%) 16 (17,6%) 23,3%
Operador de máquinas agrícolas 78 (54,9%) 62 (55,4%) 55 (60,4%) 56,9%
Outros 6 (4,2%) 7 (6,3%) 1 (1,1%) 3,8%
Prestadores de serviços e vendedores de lojas e mercados 136 (12,1%) 126 (15,5%) 56 (8,0%) 11,8%
Operadores e artesãos de mecânica e outros ofícios 92 (8,2%) 70 (8,6%) 78 (11,2%) 9,3%
Mecânico 27 (29,3%) 22 (31,4%) 25 (32,1%) 31%
Outros 65 (70,7%) 48 (68,8%) 53 (67,9%) 69%
Aposentado 66 (5,9%) 52 (6,4%) 31 (4,4%) 5,5%
Agricultores e trabalhadores agrícolas 75 (6,7%) 40 (4,9%) 41 (5,9%) 5,8%
Agricultor e ajudante 48 (64,0%) 28 (70,0%) 15 (36,6%) 56,8%
Dosador e aplicador de agrotóxicos 10 (13,3%) 5 (12,5%) 7 (17,1%) 14,3%
Outros 17 (22,7%) 7 (17,5%) 19 (46,3%) 28,8%
Técnicos e profissionais de nível médio 41 (3,6%) 16 (2,0%) 16 (2,3%) 2,6%
Profissionais científicos e intelectuais 56 (5,0%) 25 (3,1%) 24 (3,4%) 3,8%
Outros (funcionários de escritório, forças armadas, poder execu- 60 (5,3%) 38 (4,7%) 48 (6,9%) 5,6%
tivo e legislativo e demais respostas)
Fonte: Elaboração própria.

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Exposição aos agrotóxicos, condições de saúde autorreferidas e Vigilância Popular em Saúde de municípios mato-grossenses 51

Informações de hábitos de vida e de Novo do Parecis, 31% das famílias residiam


exposição aos agrotóxicos a mais de 1 quilômetro da lavoura, seguido
de 25% das famílias que residiam a menos
A exposição aos agrotóxicos (tabela 3) indire- de 90 metros, e de 25% para 300 metros a 1
tamente avaliada pela variável tempo de resi- quilômetro. Em Sapezal, metade das famílias
dência na cidade demonstrou que, em média, (50%) residiam a uma distância maior que 1
27% dos indivíduos residiam de 1 a 5 anos; 26%, quilômetro da lavoura.
de 11 a 20 anos; e 19%, de 6 a 10 anos. Em relação à distância da casa às revendas
 Em Campos de Júlio, 27% das famílias re- de agrotóxicos, 40% dos domicílios de Campos
sidiam a menos de 300 metros de distância da de Júlio, 63% de Campo Novo do Parecis e 72%
lavoura agrícola; 26%, a mais de 1 quilômetro; de Sapezal localizavam-se em uma distância
24%, de 300 metros a 1 quilômetro. Em Campo acima de 1 quilômetro.

Tabela 3. Variáveis de exposição a agrotóxicos e hábitos de vida referidos por família e indivíduos dos municípios de Campos de Júlio, Campo Novo do
Parecis e Sapezal – MT, entre os anos 2016 e 2017

Campos de Júlio Campo Novo do Parecis Sapezal


Famílias Indivíduos Famílias Indivíduos Famílias Indivíduos
n = 631 n = 1.998 n = 415 n = 1.552 n = 333 n = 1.201
n (%) n (%) n (%) n (%) n (%) n (%) Total
Tempo de residência na cidade
< 1 ano 165 (8,3%) 120 (7,7%) 148 (12,3%) 433 (9,1%)
1a5 567 (28,4%) 403 (26,0%) 310 (25,8%) 1.280 (26,9%)
6 a 10 333 (16,7%) 268 (17,3%) 270 (22,5%) 871 (18,3%)
11 a 20 449 (22,5%) 427 (27,5%) 327 (27,2%) 1.203 (25,3%)
21 a 50 179 (9,0%) 175 (11,3%) 84 (7,0%) 438 (9,2%)
Ign/branco 305 (15,3%) 159 (10,2%) 62 (5,2%) 526 (11,1%)
Distância entre a casa e lavoura
< 90 m 170 (26,9%) 107 (25,8%) 32 (9,6%) 309 (22,4%)
90 a 300 m 124 (19,7%) 68 (16,4%) 46 (13,8%) 238 (17,3%)
300 m a 1 km 151 (23,9%) 104 (25,1%) 88 (26,4%) 343 (24,9%)
>1 km 163 (25,8%) 128 (30,8%) 163 (48,9%) 454 (32,9%)
Ign/branco 23 (3,6%) 8 (1,9%) 4 (1,2%) 35 (2,5%)
Distância entre a casa e revendedoras de agrotóxicos
< 90 m 94 (14,9%) 32 (7,7%) 12 (3,6%) 138 (10,0%)
90 a 300 m 73 (11,6%) 23 (5,5%) 33 (9,9%) 129 (9,4%)
300 m a 1 km 162 (25,7%) 79 (19,0%) 39 (11,7%) 280 (20,3%)
>1 km 253 (40,1%) 263 (63,4%) 239 (71,8%) 755 (54,7%)
Ign/branco 49 (7,8%) 18 (4,3%) 10 (3,0%) 77 (5,6%)
Distância entre a casa e armazenadoras de recolhimento de embalagens de agrotóxicos vazias
< 90 m 59 (9,4%) 16 (3,9%) 4 (1,2%) 79 (5,7%)
90 a 300 m 27 (4,3%) 7 (1,7%) 14 (4,2%) 48 (3,5%)
300 m a 1 km 68 (10,8%) 19 (4,6%) 15 (4,5%) 102 (7,4%)
>1 km 436 (69,1%) 345 (83,1%) 288 (86,5%) 1.069 (77,5%)
Ign/branco 41 (6,5%) 28 (6,7%) 12 (3,6%) 81 (5,9%)

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52 Pignati WA, Soares MR, Lara SS, Lima FANS, Fava NR, Barbosa JR, Corrêa MLM

Tabela 3. (cont.)

Campos de Júlio Campo Novo do Parecis Sapezal


Famílias Indivíduos Famílias Indivíduos Famílias Indivíduos
n = 631 n = 1.998 n = 415 n = 1.552 n = 333 n = 1.201
n (%) n (%) n (%) n (%) n (%) n (%) Total
Usa agrotóxicos no domicílio
Sim 473 (75,0%) 288 (69,4%) 229 (68,8%) 990 (71,8%)
Não 156 (24,7%) 127 (30,6%) 102 (30,6%) 385 (27,9%)
Ign/branco 2 (0,3%) 2 (0,6%) 4 (0,3%)
Possui contato com agrotóxicos
Sim 393 (19,7%) 385 (24,8%) 315 (26,2%) 1.093 (23,0%)
Não 1.514 (75,8%) 1.134 (73,1%) 865 (72,0%) 3.513 (73,9%)
Ign/branco 91 (4,6%) 33 (2,1%) 21 (1,7%) 145 (3,1%)
Em qual atividade está em contato com agrotóxicos
Em casa, na horta e/ou quintal 158 (7,9%) 169 (10,9%) 147 (12,2%) 474 (10,0%)
Trabalho 191 (9,6%) 162 (10,4%) 145 (12,1%) 498 (10,5%)
Ign/branco 135 (6,8%) 54 (3,5%) 23 (1,9%) 212 (4,5%)
Não possui contato direto 1.514 (75,8%) 1.134 (73,1%) 865 (72,0%) 3.513 (73,9%)
Fonte: Elaboração própria.

Quanto à utilização de agrotóxicos no do-  Entre os 335 (7,1%) transtornos psico-


micílio, 71,8% das famílias afirmaram utili- lógicos, os mais citados foram ansiedade,
zar, sendo esta a principal forma de contato depressão, bipolaridade, hiperatividade, es-
direto referida pelos entrevistados, seguida da quizofrenia e autismo; 289 (6,1%) casos de
categoria contato no trabalho. Entre os usos problemas renais (cálculo renal, cisto renal,
mais citados, estão controle de insetos e ervas pielonefrite, insuficiência renal); 63 (1,3%)
daninhas em hortas e jardinagem. Os produtos casos de neoplasias (câncer de mama, tireoi-
mais utilizados foram: ‘Barragem’ (Piretrina); de, pele, boca, faringe, próstata, ósseo, útero,
‘Mata Mato’ ‘(Glicina Substituída); ‘Baygon’ cerebral, leucemia e linfomas) e 30 (0,6%)
(Organofosforado), ‘K-Otrine’ (Piretroide). casos de malformações (gastrosquise, língua
presa, malformação no osso do pé, ausência
Condições de saúde referidas  de orelha e sopro no coração). Também foram
registrados 38 (0,8%) casos de tentativas de
Dos 4.751 indivíduos entrevistados, 60,4% suicídio e 15 (0,2%) casos de suicídios.
apresentaram algum relato de morbidade, Por meio da comparação dos dados referi-
sendo 524 (11%) casos de doença respirató- dos no presente estudo e dados de notifica-
ria (bronquite, asma, rinite alérgica, sinusite ção de Intoxicação Exógena por Agrotóxicos
e dificuldade para respirar); 504 (10,6%) de do Sistema de Informação de Agravos de
hipertensão arterial; 421 (8,9%) de intoxicação Notificação (Sinan), foi calculada a taxa de
aguda por agrotóxicos, sendo as vias inalatória intoxicação exógena por agrotóxicos. Para as
e ocular as mais citadas e a predominância da informações autorreferidas e população da
ocorrência no local de trabalho. amostra, observou-se uma taxa de 886 casos

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Exposição aos agrotóxicos, condições de saúde autorreferidas e Vigilância Popular em Saúde de municípios mato-grossenses 53

a cada 10 mil habitantes. Quando calculada Associação das variáveis


a mesma informação com dados oficiais do sociodemográficas e morbidades
Sinan, a taxa foi de 34 casos para cada 10 mil autorreferidas
habitantes. Desse modo, podemos inferir, por
um cálculo de razão, que a taxa de subnoti- Em comparação à distância, residir entre 90 e 300
ficação de intoxicação por agrotóxicos nos metros da lavoura agrícola esteve associado a uma
municípios estudados foi de 1 caso notificado prevalência de 32,8% (p=0,001) de ocorrência de
para cada 26 subnotificados. agravos respiratórios, 33,4% (p=0,001) de intoxi-
Quando analisado por municípios, obser- cações agudas, 23,9% (p=0,001) de agravos psico-
vou-se que, para o município de Campos de lógicos, 9,6% (p=0,001) de prevalência de câncer,
Júlio, a razão foi de 1 caso notificado para 20 3,8% (p=0,040) de problemas neurológicos, 3,6%
subnotificados; em Campo Novo do Parecis, (p=0,001) na prevalência de malformação fetal e
1 para cada 77 casos subnotificados; e em 1,3% (p=0,006) para suicídio (tabela 4).
Sapezal, existe uma proporção de 100% de A maioria dos entrevistados referiu residir em
subnotificação, ou seja, no período de três áreas urbanas. No entanto, a proximidade das
anos não foi registrado nenhum caso de casas das lavouras foi relatada por 98% dos en-
Intoxicação Exógena por Agrotóxicos nesse trevistados que referiram morar a menos de 500
município, sendo relatados 115 casos pelos metros das áreas de plantio, dos quais 22,4% entre
entrevistados. 10 e 90 metros e 17,3% entre 90 e 300 metros. 

Tabela 4. Razão de prevalência pelo teste do qui-quadrado das variáveis sociodemográficas e morbidade referida, CNP, CJ, SAP, Mato Grosso, 2016 a 2017
Morbidade Autorreferida
Intoxicação
Respiratório Aguda Psicológicos Renais Aborto Baixo peso Câncer Suicídio Malformação Neurológicos
% p-valor % p-valor % p-valor % p-valor % p-valor % p-valor % p-valor % p-valor % p-valor % p-valor
Distância da lavoura
< 10 a 90 m 27,1 0.001 23,7 0.001 17,5 0.001 15 0.001 5,4 0.556 9,8 0.001 6,1 0.001 0,9 0.006 1,3 0.001 1,4 0.040
90 a 300 m 32,8 33,4 23,9 22,2 4,8 10,4 9,6 1,2 3,6 3,8
300 m a > 1 km 28,2 19,9 21,7 22,3 5,1 13,2 7,1 1,3 3,2 2,2
Zona
Urbana 28,7 0.554 22,3 0,001 20,8 0.001 20,8 0.014 5,2 0.751 12,6 0.005 7,5 0.017 1,2 0.129 2,8 0.192 2,2 0.131
Rural 27,2 32,2 20,9 15 4,7 7,3 3,5 0 4,1 0,9
Renda familiar
<ou= a 3 mil 70,6 0.002 22,1 0,002 18,9 0,001 18,6 0,001 5,4 0.380 11,5 0.001 6,9 0.283 1,4 0.250 2,8 0.102 2,6 0,001
3 a 5 mil 20,8 25,1 27,2 21,4 4,1 12,4 7,1 1,2 3,7 0,7
5 a > 15 mil 8 28,7 32,5 35,7 4,9 21 9,3 0 1,8 5,1
> 15 mil 0,6 0 9 18,1 0 0 0 0 9 0
Usa veneno em casa
Sim 29,6 0.061 24,5 0,001 23,4 0,001 23,5 0.000 5,6 0.008 11,9 0.604 7,6 0.212 1,5 0.002 2,9 0.416 2,8 0.001
Não 26,8 18,9 14,7 12,7 4 12,7 6,2 0,3 2,3 0,8
Água residencial
Rede pública 88,4 0.032 22,6 0,01 20,8 0.069 20,2 0.069 5,2 0.616 12,5 0.074 7,7 0,001 1,3 0.125 3,2 0,025 2,2 0,85
Poço artesiano 11,1 27,5 22,4 21,6 4,1 9 1,5 0 0,7 2,7
Poço não artesiano 0 15,8 21 21,5 5,2 15,8 21 0 0 0
Córregos 0,1 0 0 0 14,2 0 0 0 0 0

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Tabela 4. (cont.)

Morbidade Autorreferida
Intoxicação
Respiratório Aguda Psicológicos Renais Aborto Baixo peso Câncer Suicídio Malformação Neurológicos
% p-valor % p-valor % p-valor % p-valor % p-valor % p-valor % p-valor % p-valor % p-valor % p-valor
Tempo de moradia (anos)
0a5 28,5 0.198 23,4 0.079 23,4 0.286 22,5 0.179 4,3 0.292 15,4 0.004 7,8 0.000 0,2 0.000 3,1 0.001 1,1 0.001
6 a 10 30,6 24,1 22,7 21 5 13,6 11.3 0 4,7 2,7
11 a 30 30,8 22,9 20,6 19,5 5,8 11,1 5,3 2,2 1,9 1,7
>30 anos 26,1 28,8 21,9 18,4 4,5 10,6 8,2 0 5,7 4,6
Fonte: Elaboração própria.

Quanto ao local de moradia, foram encon- artesiano, a associação foi encontrada para
tradas associações entre residir em zona rural as famílias que informaram ter intoxicação
e intoxicação aguda com razão de prevalência aguda com prevalência de 27,5% (p=0,001), e
de 32,2% (p=0,001) e transtornos psicológi- para os que informaram rede de abastecimento
cos com razão de 20,8% (p=0,001). Para os advindo de poço não artesiano, encontrou-se
residentes em zona urbana, foram encontra- associação com prevalência de 21% (p=0,001)
das associações para os problemas renais, para os de câncer. 
20,8% (p=0,014); baixo peso ao nascer, 12,6% O tempo de moradia de 0 a 5 anos foi associa-
(p=0,005); e câncer, 7,5% (p=0,017).  do a 15,4% (p=0,004) de baixo peso ao nascer;
Quanto à renda familiar, foi encontrada o tempo variando de 6 a 10 anos apresentou
associação entre os que referiram renda fa- associação com prevalência de 11,3% (p=0,001)
miliar menor que R$ 3 mil com prevalência para os casos de câncer, e de 11 a 30 anos, asso-
de 70,6% (p=0,002) para as famílias que rela- ciação significativa com razão de prevalência
taram problemas respiratórios. Nas famílias de 2,2% (p=0,001) para as famílias que referi-
que informaram renda superior a R$ 5 mil, ram suicídio. Para o tempo de moradia maior
houve associação de casos de intoxicação que 30 anos, foi encontrada associação com
aguda com prevalência de 28,7% (p=0,002); uma razão de prevalência de 4,6% (p=0,001)
transtornos psicológicos, 32,5% (p=0,001); para problemas neurológicos, bem como de
problemas renais, 35,7% (p=0,001); e proble- 5,7% (p=0,001) para malformação.
mas neurológicos, 5,1% (p=0,001). 
Em relação ao uso domiciliar de agrotóxi-
cos, foram encontradas associações com razão Discussão
de prevalência para intoxicação aguda, 24,5%
(p=0,001); problemas renais, 23,5% (p=0,001); Observa-se que a principal característica
problemas psicológicos, 23,4% (p=0,001); desses municípios é o cerceamento da zona
aborto espontâneo, 5,6% (p=0,008); proble- urbana por monocultivos transgênicos, uso
mas neurológicos, 2,8% (p=0,001); e suicídio, frequente de agrotóxicos e fertilizantes quí-
1,5% (p=0,002). micos1,17, com pouca ou nenhuma vegetação
Referente às fontes de abastecimento para de contenção das derivas advindas da aplica-
o uso residencial de água, foi encontrada as- ção desses produtos8, que são pulverizados a
sociação entre água da rede pública e pre- menos de 500 metros das moradias.
valência de 88,4% (p=0,032) de problemas Beserra18 identificou que, nos mesmos mu-
respiratórios, e para os casos de malforma- nicípios do presente estudo, foram encon-
ção, de 3,2% (p=0,025). Em relação a poço trados resíduos de agrotóxicos em 61% das

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 45-61, JUN 2022


Exposição aos agrotóxicos, condições de saúde autorreferidas e Vigilância Popular em Saúde de municípios mato-grossenses 55

amostras de poços artesianos e em 75% das No que concerne aos hábitos de vida e ex-
amostras de água de chuva de escolas rurais posição aos agrotóxico advinda da proximi-
e urbanas dos três municípios. Os agrotóxi- dade de residências e cidades das lavouras,
cos agrícolas encontrados foram metolacloro, associam-se com frequência às situações de
atrazina, trifluralina, malationa e metribuzim mal-estar geral, sobretudo em épocas de pul-
na chuva, e metolacloro e atrazina nos poços verização30; e os moradores com residência
artesianos das escolas.  próxima a plantações de milho e de algodão
Em relação à proporção de sexo dos indi- têm duas vezes mais intoxicações agudas31. 
víduos entrevistados, de acordo com o Censo Estudo conduzido por Lara32 demonstrou
Agropecuário de 201719, cerca de 18% dos pro- que as intoxicações ocupacionais ocorreram
dutores rurais são mulheres. Luna20 cita que, prioritariamente com agrotóxicos agrícolas e
embora o contingente de mulheres trabalhando de saúde pública, sendo que, dos 141 municí-
seja menor, ao avaliar a diferença entre o gênero e pios de Mato Grosso, 83 notificaram intoxica-
a mortalidade proporcional por intoxicações ocu- ções ocupacionais por agrotóxicos agrícolas; e
pacionais agudas por agrotóxicos na agropecuária dos 54 municípios caracterizados como zona
brasileira, evidencia-se que a mortalidade entre de elevada produção agrícola, 14 permanece-
as mulheres foi maior do que a estimada entre ram silenciosos ao longo de 10 anos. 
os homens em todas as categorias dos fatores A subnotificação do evento sentinela into-
associados potenciais. Ainda, as atividades do- xicação exógena por agrotóxicos corrobora os
mésticas, como a lavagem de roupas de familiares achados de outros estudos realizados nesta e
que trabalham em contato com os agrotóxicos, em outras regiões do agronegócio7-10,26-29, que
também é outra via de exposição21. evidenciaram, entre outros fatores, as dificul-
A predominância nas faixas etárias econo- dades de atuação das equipes de vigilância
micamente ativa é explicada pelo investimen- em saúde9,10, a interveniência de gestores
to em cultivos de commodities no estado de ligados ao agronegócio e a baixa procura dos
Mato Grosso, onde observa-se uma proporção intoxicados pelos serviços de saúde7,9,10,17, de-
maior de homens entre 20 e 30 anos buscando sencadeada pelo receio de represálias e con-
trabalho, posteriormente, suas famílias22. A sequente perda do vínculo empregatício, caso
baixa escolaridade encontrada no estudo pode se efetivasse a notificação das intoxicações
indicar maior vulnerabilidade para situações relacionadas, sobretudo, com o trabalho, mas
de risco, nos quesitos de informações técnicas, também às ‘nuvens de agrotóxicos’ decorren-
leitura de rótulos de agrotóxicos, utilização de tes das pulverizações aéreas nas lavouras que
Equipamentos de Proteção Individual (EPI) e pairam sobre as cidades17,30.
reconhecimento de riscos de adoecimento23. A legislação estadual de agrotóxicos, por
Nesse sentido, a escolaridade age como fator meio do Decreto Mato Grosso nº 1.651/201333,
protetor, pois, em indivíduos com o ensino estabelece distância mínima de pulverização
médio, as chances de intoxicar-se com agro- terrestre para 90 metros; e a Instrução nor-
tóxicos são 57% menores24. mativa do Ministério da Agricultura, Pecuária
Embora esses municípios apresentem e Abastecimento (Mapa) nº 02/200834 regu-
elevados valores de Produto Interno Bruto lamenta a distância mínima de 500 metros
(PIB) per capita, a renda familiar não acom- para pulverizações de aéreas de regiões po-
panha esses dados, fato este relacionado com voadas, fontes de água e áreas de preservação
alta taxa de informalidade e baixa escolari- ambiental. 
dade25, o que se assemelha aos resultados Dessa forma, devido ao cercamento da
de estudos realizados no Nordeste com tra- cidade pelas lavouras agrícolas, residir na área
balhadores da fruticultura irrigada26,27 e no urbana desses municípios não significa estar
Sul em municípios produtores de tabaco28,29. menos exposto aos agrotóxicos, em que não

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56 Pignati WA, Soares MR, Lara SS, Lima FANS, Fava NR, Barbosa JR, Corrêa MLM

há cumprimento das distâncias mínimas de exógena por agrotóxicos, além de associações


pulverização, evidenciando a permissividade entre exposição ambiental e ocupacional aos
do estado por meio da não ação manifesta na agrotóxicos e diferentes situações de adoeci-
ausência ou insuficiência de fiscalização10 que mento relatadas pelos entrevistados.
normaliza e consolida a ilegalidade, naturali- O inquérito, nesse contexto, torna-se ins-
zando a inevitabilidade das pulverizações e, trumento de visibilização dos problemas rela-
também, dos agravos. cionados com a exposição aos agrotóxicos em
O uso de agrotóxicos agrícolas para fins territórios agrícolas, a partir da participação
domésticos foi referido por 72% dos entrevis- da população, com potencial de desencadear
tados, com maior uso registrado para o her- ações locais de redução do uso de agrotóxicos
bicida glifosato conhecido como ‘Mata Mato’ e a transição agroecológica como outra forma
ou ‘Roundup’, para fins de ’capina química’ de produção, sob a perspectiva da Vigilância
urbana, além de inseticidas a base de ciperme- Participativa e Popular, e o fortalecimento da
trina, deltametrina e neonicotinoides para con- Vigilância em Saúde das Populações Expostas
trole de pragas domésticas. O uso doméstico de aos Agrotóxicos (VSPEA), cujas pautas não são
agrotóxicos aumenta a exposição ambiental e contempladas nas agendas de planejamento
os riscos de intoxicação por ingestão acidental da gestão municipal.
ou provocada35.
Diversos estudos nacionais e internacionais
relacionam a exposição aos agrotóxicos ao Considerações finais
perfil de adoecimento descrito nesta pesqui-
sa, tais como a associação entre exposição Neste estudo, foi possível descrever que a
aos agrotóxicos e intoxicações agudas14,32,36; maioria das famílias é composta, principal-
Hipertensão Arterial 37-39 ; Câncer 39-44 mente, de indivíduos de 20 a 49 anos, com
Malformações45,46; Doenças Respiratórias31,47; ensino fundamental incompleto, renda predo-
doenças neurológicas e psiquiátricas e agravos minante de mil a R$ 3 mil, sem qualificação,
associados, tais como suicídio, tentativa de com ocupação de operador de máquinas, me-
suicídio e sofrimento social48-50.  cânica e agricultura. Residem a menos de 500
Em Mato Grosso, diversos estudos verifi- metros das lavouras e manuseiam herbicidas
caram que os agravos à saúde estão relacio- em suas residências. Identificou-se que, para
nados com os municípios e regiões maiores cada caso de intoxicação exógena por agro-
produtoras do estado, que, consequentemente, tóxicos, existem 26 casos subnotificados nos
usam mais agrotóxicos1,7,8 e apontaram para as três municípios de estudo, com valores que
incidências de intoxicações agudas, cânceres variaram de 1 para 20 em Campos de Júlio a
e malformaçõe1,10,30, contaminação do leite 100% de subnotificação em Sapezal. 
materno por resíduos de agrotóxicos51, além O aumento histórico dos registros de produ-
da contaminação em águas de chuva, água de tos formulados, desestruturação das políticas
abastecimento e alimentos7,8,52.  públicas de fiscalização e as tentativas de flexi-
As condições de saúde autorreferidas são bilização de mais uso e tipos de agrotóxicos no
importantes fontes de dados que permitem País, por meio do Projeto de Lei nº 6.299/2002,
visualizar parte da situação de saúde de um reacendem a importância da implementação
território a partir da percepção das famílias. de mecanismos de participação social, como
Nesse sentido, os resultados apresentam um a vigilância de base territorial e participativa,
cenário de adoecimento relacionado com as tendo como foco a vigilância dos perfis de
características do modelo de produção do desenvolvimento, por meio da VPS. 
agronegócio, evidenciando a subnotificação de A partir dos dados produzidos por este
um importante evento sentinela, a intoxicação estudo, das estratégias que podem ser

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 45-61, JUN 2022


Exposição aos agrotóxicos, condições de saúde autorreferidas e Vigilância Popular em Saúde de municípios mato-grossenses 57

utilizadas para a implantação dessa vigilância, contaminação ambiental e de saúde invisibi-


os movimentos de luta, cobrança de direitos lizados nos registros oficiais dos sistemas de
ambientais já previstos em leis, organização da informação do SUS. As determinações sociais
sociedade civil, reconhecimento dos impactos dessas condições se agravam quando essas
negativos, fóruns de luta contra os impactos necessidades em saúde não são investigadas,
dos agrotóxicos e campanha permanente seja pelo silenciamento das reivindicações
contra os agrotóxicos e pela vida têm-se mos- populares por saúde, seja pela impossibilida-
trado importantes estratégias para denúncia de de investigação governamental, quando o
dos impactos dos agrotóxicos e anúncio da Estado se mostra ineficiente, as vezes omisso,
transição agroecológica como proposta de em ações de vigilância.
transformação do modelo de produção.
As instâncias formais de representação
popular nesses territórios têm-se transmutado Colaboradores
à medida dos interesses econômicos, não ex-
pressando as necessidades de saúde de forma Pignati WA (0000-0001-9178-6843)* par-
a promover e estimular um ambiente saudável ticipou de todas as etapas de elaboração do
de vida, existência e permanência. Portanto, a artigo. Soares MR (0000-0002-0417-2614)*,
VPS e a utilização de técnicas como o inqué- Lara SS (0000-0001-7996-1629)*, Lima FANS
rito de condições de saúde autorreferidas são (0000-0001-5677-2390)* e Fava NR (0000-
estratégias necessárias para a promoção de 0002-8499-5310)* participaram da escrita,
Territórios Saudáveis e Sustentáveis (TSS). revisão, discussão e revisão do final do artigo.
Recomendam-se novos estudos para inter- Barbosa JR (0000-0003-2762-3665)* e Corrêa
pretar esses processos, que demonstram sua MLM (0000-0001-7812-0182)* colaboraram
importância à medida que as pessoas resi- para a revisão do artigo e leitura da versão
dentes nesses locais são afetadas pelo modelo final do artigo. Todos os autores aprovaram a
de desenvolvimento, gerando problemas de versão final do manuscrito. s

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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V.V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 45-61, JUN 2022
58 Pignati WA, Soares MR, Lara SS, Lima FANS, Fava NR, Barbosa JR, Corrêa MLM

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Recebido em 20/09/2020
vel em: https://www1.ufmt.br/ppgsc/arquivos/1b2a Aprovado em 13/07/2021
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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V.V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 45-61, JUN 2022
62 ARTÍCULO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE

Entre denunciar y aguantar. Sojización,


plaguicidas y participación en salud
ambiental en Uruguay
Between denouncing and enduring. Soybean expansion, pesticides and
environmental health participation in Uruguay

Victoria Evia1

DOI: 10.1590/0103-11042022E204

RESUMEN Desde principios de la década del 2000, se ha desarrollado una expansión de cultivo de soja
transgénica en el Conosur que ha implicado un incremento exponencial de los volúmenes de plaguicidas
utilizados en la región. Desde las ciencias sociales, se ha enfatizado el análisis de los conflictos socio-
-ambientales para resistir ante los diversos proble-mas que conlleva este modelo productivo. Uruguay,
aunque menos visible en los debates internacionales, no estuvo ajeno a dicho proceso. Este artículo tiene
como objetivo introducir el caso uruguayo en el debate regional sobre los problemas ocasionados por la
expansión de plaguicidas asociada al avance de la sojización y discutir las posibilidades de la participación
social en salud ambiental como forma de resistencia. La metodología combina un estudio etnográfico en
el núcleo agrícola del país con análisis documental. Se discuten los resultados a la luz de la antropología
médica crítica, evidenciando que si bien las denuncias son mecanismos que permiten visibilizar pública-
mente los problemas ocasionados por el uso de plaguicidas, en el marco de las relaciones de hegemonía-
-subalternidad que estructuran las relaciones sociales en una economía agraria, los alcances y límites de
la participación social en salud ambiental las trascienden.

PALABRAS-CLAVE Antropología médica. Salud ambiental. Participación social. Plaguicidas.

ABSTRACT Since the early 2000s, there has been an expansion of transgenic soybean cultivation in the
Conosur, which has involved an exponential increase in the volumes of pesticides used in the region. Social
sciences have emphasized the analysis of socio-environmental conflicts to resist the various problems that
this productive model entails. Uruguay, although less visible in international debates, was not exempt from
this process. This article aims to introduce the Uruguayan case in the regional debate on the problems caused
by the spread of pesticides associated with the advance of soybean production and to discuss the possibilities
of social participation in environmental health as a form of resistance. The methodology combines an ethno-
graphic study in the agricultural core of the country with documentary analysis. The results are discussed in
the light of critical medical anthropology, evidencing that although public complaints are mechanisms that
allow public visibility of the problems caused by the use of pesticides, within the framework of hegemony-
subalternity relations that structure social relations in an agrarian economy, the scope and limits of social
participation in environmental health transcend them.

1 Universidadde la KEYWORDS Medical anthropology. Environmental health. Social participation. Pesticides.


República (UdelaR),
Facultad de Humanidades
y Ciencias de la Educación
(FHCE) – Montevideo,
Uruguay.
vicevia@gmail.com

Este es un artículo publicado en acceso abierto (Open Access), bajo licencia de Creative
Commons Attribution, que permite el uso, distribución y reproducción en cualquier
SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 62-74, JUN 2022 medio, sin restricciones, siempre que el trabajo original sea correctamente citado.
Entre denunciar y aguantar. Sojización, plaguicidas y participación en salud ambiental en Uruguay 63

Introducción el término ‘plaguicida’ para explicitar que se


trata de sustancias que son biocidas9.
Desde principios de la década del 2000, se ha Como fue reseñado en Evia10,11, si bien los
desarrollado una expansión de cultivo de soja plaguicidas eran y son utilizados en distintos
transgénica en el Conosur1 que ha implicado sistemas agrícolas en Uruguay desde mediados
un incremento exponencial de los volúme- del siglo XX, la sojización ha sido relacionada
nes de plaguicidas utilizados en la región. con un incremento exponencial de los volú-
Desde las ciencias sociales, se ha enfatizado menes de plaguicidas importados y usados
el análisis de los conflictos socio-ambientales durante este período y se han encontrado re-
para resistir ante los diversos problemas que siduos en matrices ambientales como aguas
conlleva este modelo productivo, pero no se superficiales, suelos, peces y abejas, entre
ha reflexionado tanto sobre los límites de otros. Las exposiciones a plaguicidas, aún
dicha enunciación. Uruguay, aunque menos en pequeñas dosis, pueden generar distintos
visible en los debates internacionales, no problemas de salud a corto y mediano plazo,
estuvo ajeno a dicho proceso. El proceso de agudos y crónicos, entre los que se destacan
sojización2 uruguayo, también denominado afectaciones cutáneas, respiratorias, efectos
como ‘intensificación agrícola’3 o agricultu- carcinogénicos y teratogénicos, problemas
rización4, fue influenciado por el crecimiento endocrinológicos, entre otros, dependiendo
de los precios y la demanda de mercancías del tipo de sustancia específica del que se trate,
del sector primario en los mercados interna- de las características de la exposición en sí, y
cionales y supuso la adopción de un ‘paquete de las características de la persona expuesta,
tecnológico dominante’ que combina el uso de entre otros factores9,12,13. Afectaciones ambien-
soja transgénica, la siembra directa y el uso de tales, productivas y a la salud, ocasionados
plaguicidas sintéticos en distintos momentos por el uso de plaguicidas en estos cultivos
del ciclo productivo3-7. y sus derivas empezaron a adquirir visibili-
Los cultivos transgénicos son cultivos ge- dad pública en los últimos años gracias a que
néticamente modificados a los cuales se les productores, maestras rurales, habitantes de
introduce un gen de otra especie para que pequeños centros poblados, de forma individu-
manifiesten una virtud deseada. Al primer al o en pequeños colectivos, se movilizaron y
cultivo de soja transgénica, conocido como RR realizaron denuncias ante organismos estatales
(Roundup Ready), la modificación introducida y medios de prensa14-17. Organizaciones no gu-
le permitió hacerla resistente al herbicida gli- bernamentales como, por ejemplo, ‘Redes-AT
fosato. La soja RR fue aprobada en Uruguay en Uruguay’, que integra la Red de Ecología Social
1996 para su producción y, posteriormente, se Amigos de la Tierra, y ‘Rapal Uruguay’, perte-
han aprobado otros cultivos transgénicos con neciente a la La Red de Acción en Plaguicidas
más de un evento modificado8. Como analiza y sus Alternativas para América Latina (RAP-
Cáceres6, además del ya referido glifosato, AL), así como asociaciones de la sociedad civil
el paquete tecnológico dominante utilizado con presencia local también han contribuido
en la producción de estos cultivos implica a visibilizar estos debates.
un uso creciente de distintos plaguicidas Investigaciones del Centro de Información
con un Índice de Toxicidad Global que ha y Asesoramiento Toxicológico (Ciat) nacional
ido en aumento en los últimos 20 años, que reportan que Uruguay tiene una tasa nacional
genera impactos socioambientales negativos, de intoxicación por plaguicidas de 7.9/100.000
demanda mayores costos financieros y origina habitantes, con variaciones importantes entre sus
nuevos problemas productivos. Si bien los diferentes departamentos18. Los antecedentes na-
plaguicidas pueden recibir diferentes deno- cionales indican que los trabajadores asalariados
minaciones, en este trabajo se utiliza dicho agrícolas son los más vulnerables a intoxicaciones

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 62-74, JUN 2022


64 Evia V

agudas y crónicas, pero señalan la preocupación Este artículo busca aportar a la discusión
por el riesgo de exposiciones ambientales en la de las luchas sociales por salud ambiental y
población rural y de pequeños centros poblados, de la participación social en salud ambiental
anclados en territorios agrícolas9,18,19 a partir del análisis de los alcances y limitacio-
En el campo de la antropología, se evidencia nes de las denuncias públicas por problemas
un interés creciente en los estudios de salud por plaguicidas en el contexto de sojización
ambiental, atendiendo a las experiencias y uruguayo. Para hacerlo, se analizan fuentes
condiciones de vida de las personas en con- oficiales, análisis de prensa e investigación
textos de toxicidad10,20-26. Para la Organización etnográfica en la región suroeste de Uruguay.
Mundial de la Salud (OMS), la salud ambien-
tal está relacionada con todos los factores
físicos, químicos y biológicos ‘externos’ de una Metodología
persona, que podrían incidir en la salud, como
la contaminación del aire, agua y saneamiento Este artículo se basa en el análisis de resul-
deficientes, agentes químicos y biológicos, tados obtenidos a partir de un estudio etno-
radiación, entre otros27. En cambio, desde la gráfico desarrollado en la región suroeste
antropología médica crítica21, se plantea que de Uruguay, núcleo agrícola del país, con el
la salud humana es producto de la interacción análisis de fuentes primarias y secundarias
de factores ambientales, biológicos y sociales, sobre denuncias realizadas ante organismos
donde los seres humanos no son solo agentes estatales por problemas vinculados con pla-
del cambio ambiental, sino también objeto de guicidas agrícolas.
ese cambio. Por ello, desde esta perspectiva, Se desarrolló una estrategia de investigación
es necesario atender a la interconexión de la etnográfica de 12 meses de duración, inspirada
estructura social y la constitución sistémica de por el enfoque de la epidemiología sociocultu-
la inequidad para comprender los problemas ral29,34,35. El estudio etnográfico fue realizado
de salud ambiental. en la microrregión de Dolores, departamento
A su vez, resulta central recuperar la expe- de Soriano (suroeste de Uruguay)36, porque
riencia vivida de las personas que experimentan es de las zonas más intensivas en el uso de
estos problemas, sus formas de percibirlos y suelo agrícola con una importante presencia
entenderlos y las luchas sociales por la justi- del cultivo de soja transgénica2,37. Además, el
cia ambiental que desarrollan20,21. Desde la departamento de Soriano casi duplica la tasa
antropología médica crítica latinoamericana y, nacional de intoxicación por plaguicidas38. Se
en particular, desde la escuela de antropología abordaron desde una perspectiva relacional los
médica desarrollada en el Ciesas, existe una sentidos, prácticas y experiencias de los dife-
amplia tradición de estudios de epidemiología rentes actores relevantes a partir de entrevistas
sociocultural que han investigado cómo los informales, entrevistas en profundidad y dife-
distintos conjuntos sociales explican, atienden rentes instancias de observación participante
y previenen los más diversos padecimientos que del ciclo productivo y las actividades sociales
los aquejan28-31. Estos trabajos nos han enseña- y sanitarias de la comunidad estudiada.
do que si bien la participación social en salud en Durante el trabajo etnográfico, se realizaron
niveles meso y macro pueden ser importantes alrededor de una quincena de observaciones
en las luchas por la salud de las comunidades, de actividades del ciclo agrícola, más de treinta
no debemos olvidar el papel central que juega entrevistas con trabajadores agrícolas, tra-
el proceso de autoatención y las redes primarias bajadores asalariados agrícolas y pequeños
de ayuda mutua en la prevención, atención y productores que manipulan directamente los
‘aguante’ de los padecimientos como primer plaguicidas agrícolas como parte de su proceso
nivel de participación social en salud32,33. de trabajo, cuatro talleres en escuelas rurales

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Entre denunciar y aguantar. Sojización, plaguicidas y participación en salud ambiental en Uruguay 65

con habitantes de la región de estudio, con la Se relevó información sobre denuncias realiza-
participación de alrededor de veinte mujeres das ante organismos del estado por problemas
habitantes de pequeños centros poblados y vinculados al uso de plaguicidas agrícolas. En
áreas rurales, observaciones en servicios de Uruguay existen distintos organismos estatales
salud rurales de la zona y entrevistas con per- involucrados en la regulación de los plagui-
sonal de salud y agentes comunitarios locales, cidas, controlando, entre otros aspectos, las
así como la participación en otras actividades composiciones y etiquetas de los productos, las
cotidianas de la comunidad11. tecnologías y distancias de aplicación respecto
Además, el trabajo etnográfico en la locali- de centros poblados, instituciones educativas
dad de estudio fue articulado con la consulta y cursos de agua, entre otros39,40. Para este
y análisis de distintas fuentes documentales y estudio, se solicitó y obtuvo mediante ley de
epidemiológicas nacionales y locales disponi- acceso a la información pública (Ley N.º 18381)
bles y con entrevistas a funcionarios públicos datos sobre denuncias por problemas con pla-
de salud y ambiente. Sobre las fuentes consul- guicidas presentadas ante: la División de Salud
tadas, es importante distinguir entre aquellas Ambiental y Ocupacional del Ministerio de
que refieren específicamente a intoxicaciones Salud Pública (MSP), la Dirección Nacional
por plaguicidas de otras fuentes que pueden de Medio Ambiente (Dinama) del Ministerio
dar información complementaria respecto de de Vivienda, Ordenamiento Territorial y
otras dimensiones de este problema de salud Medio Ambiente (MVOTMA) y la Dirección
ambiental que trascienden las intoxicaciones Nacional de Servicios Agrícolas del Ministerio
en términos biomédicos. de Ganadería, Agricultura y Pesca (MGAP). Se
I) Fuentes sobre intoxicaciones por plagui- seleccionaron estos tres organismos debido
cidas: a) Las intoxicaciones por plaguicidas a que tanto en la bibliografía, como en las
constituyen un hecho de notificación obliga- entrevistas realizadas a expertos sobre salud
toria en el sistema de salud y su registro está ambiental nacional, emergieron como los más
a cargo del Ciat. Sin embargo, estas cifras no significativos. Las características, calidad y
son publicadas periódicamente. Los últimos período de la información obtenida varió en
datos disponibles corresponden al estudio cada institución de acuerdo a su disponibilidad,
realizado por Laborde y Tarán38 ya referi- por ejemplo mientras el MVOTMA y el MSP
dos. b) Se consultaron registros de policlínicas aportaron registros de denuncias a partir del
rurales de salud e información de la puerta año 2009, el MGAP lo hace recién a partir de
de emergencia del hospital regional público 2011. Es importante precisar que sólo se contó
de la zona de estudio, pero por la calidad de con la información de la denuncia efectuada, es
los mismos, se tuvieron que descartar estas decir, de los registros que las instituciones rea-
fuentes para obtener información específica lizaron a partir de los datos proporcionados por
sobre intoxicaciones por plaguicidas11. el denunciante. No se contó con información
II) Fuentes que aportan información com- sistematizada de resultados de las actuaciones
plementaria respecto de las intoxicaciones oficiales ante las mismas.
por plaguicidas agrícolas y otros problemas El protocolo de la investigación fue apro-
de salud ambiental vinculados a su uso: a) Se bado por el Comité de Ética de la Facultad
realizó un relevamiento sistemático de las no- de Humanidades y Ciencias de la Educación
ticias relacionadas con el uso de plaguicidas (Número de expediente 121900-000246-16).
agrícolas en dos medios de prensa escritos de Se tomaron recaudos de confidencialidad
alcance nacional para el período 2006-2015, y se preservó el anonimato de los partici-
donde se ficharon un total de 30 artículos y en pantes del estudio, a excepción de aquellas
los que se reportaban, en algunos casos, proble- personas que solicitaron explícitamente ser
mas de afectaciones a la salud y el ambiente. b) identificadas.

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66 Evia V

Resultados y discusión capital nacional. También se registraron casos


(aunque en menor número) en las regiones
arroceras (este) y de agricultura de secano
Denuncias por problemas con (oeste). En cuanto a las características de los
plaguicidas: prensa y fuentes y las denunciantes, los actores sociales visibi-
oficiales lizados en los medios de prensa como denun-
ciantes eran maestras rurales, organizaciones
Las denuncias de problemas por plaguicidas de apicultores, grupos ambientalistas locales y
agrícolas ante medios de prensa y organismos ONGs de alcance nacional, pobladores de las
oficiales comenzaron a ser visibilizadas de comunidades afectadas y pequeños produc-
forma más sistemática en el espacio público tores familiares hortícolas. Exceptuando las
en Uruguay en la segunda década del siglo maestras rurales (sector fuertemente femi-
XXI14,17,40. Los primeros casos relevados se nizado), los voceros eran preeminentemente
remontan a 2006, cuando vecinos de pueblos hombres. No se logró obtener información
ubicados en áreas agrícolas comenzaron a de- sobre las características de los/as denunciantes
nunciar en medios de prensa fumigaciones ante fuentes oficiales.
realizadas en cultivos de soja a escasos metros En el cuadro 1 se presentan los totales de
de los centros poblados14. Tanto en los medios denuncias relevadas en las distintas fuentes
de prensa como en las fuentes oficiales, las consultadas y se observa una tendencia cre-
denuncias se concentraban en departamen- ciente de las denuncias en el período analizado
tos de la región sur del país, cercanos a la de acuerdo a los datos disponibles.

Cuadro 1. Denuncias por problemas con plaguicidas agrícolas en prensa y organismos oficiales 2006-2015

2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 Sub-total
MVOTMA s/d s/d s/d 1 4 5 6 10 10 17 53
MGAP s/d s/d s/d s/d s/d 35 82 104 129 135 485
MSP s/d s/d s/d 1 3 6 4 11 26 36 87
Prensa 2 0 6 1 0 3 6 2 15 4 39
Sub-total 2 0 6 3 7 49 98 127 180 192 664
año
Fuente: Elaboración propia.

Los episodios referidos a problemas con pla- aguas superficiales, entre otros. En muchas
guicidas agrícolas levantados por los medios ocasiones estos motivos se intersectaban.
de prensa nacionales referían, principalmente, Los registros de los organismos oficiales
a: a) afectaciones de tipo productivo (espe- sobre el tipo de episodios denunciados no
cialmente en producción hortícola, frutícola era homogénea y evidencian la diversidad de
y apícola); b) afectaciones de la salud por fu- fenómenos que pueden motivar las denuncias
migaciones cercanas a centros educativos y por plaguicidas agrícolas. Los registros de la
pequeños centros poblados; c) afectaciones Dinama – MVOTMA daban cuenta de los si-
‘ambientales’ como mortandad de peces, pre- guientes eventos: ‘Fumigaciones o derivas’,
sencia de residuos de plaguicidas y/o envases ‘Presencia de envases’, ‘Derrames o uso in-
cerca de cursos de agua, contaminación de correcto de plaguicidas’ y ‘Olor molesto’. En

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Entre denunciar y aguantar. Sojización, plaguicidas y participación en salud ambiental en Uruguay 67

el MGAP se contaba con un campo específico contribuir a la superposición de esfuerzos y a


donde se registraban los ‘motivos de denuncia’ las disputas inter-institucionales sobre quién
y se incluían aspectos vinculados a las condi- debe (o no) atender el problema.
ciones en las que eran realizadas las fumiga- Tanto el análisis de la prensa como de las de-
ciones, como realizar derivas o no respetar nuncias realizadas ante instituciones oficiales,
las distancias de aplicación previstas por la dan cuenta de la diversidad de dimensiones de
normativa. La normativa nacional establece un salud ambiental que pueden verse afectadas
límite de distancias de aplicaciones terrestres por problemas en el uso de plaguicidas agrí-
y aéreas respecto de cursos de agua (10 y 30 colas como aspectos productivos, daños socio-
mts, respectivamente) y de centros educativos -sanitarios y ambientales y sus intersecciones
y centros poblados (300 y 500 mts respecti- en la vida cotidiana. Asimismo, no hay que
vamente), a los efectos de las fumigaciones, olvidar que las denuncias que son registradas
como ‘mortandad de colmenas’, ‘afectación a ante las instituciones oficiales y/o difundidas
la salud’, ‘contaminación de fuente de agua’, por los medios de prensa son sólo aquellas que
entre otros. En el MSP, todos los casos referían llegan a ser realizadas.
a ‘Presunta afectación a la salud’ y registraban En el siguiente apartado, se busca profundi-
con mayor detalle las condiciones de la ex- zar en el significado de las denuncias por parte
posición, los síntomas referidos por parte de de los diferentes actores sociales involucrados
la persona y en caso de disponer de análisis y en sus consecuencias en términos sociales
de laboratorios u otra información clínica, la para aportar elementos a la comprensión de
misma era referida. los límites y alcances de estas prácticas en
Por último, resulta de interés destacar que el términos de garantizar un derecho a la vida
MGAP fue el organismo estatal que recibió una en un ambiente sano. ¿Cuándo y porqué se
mayor cantidad de denuncias por problemas decide denunciar y cuándo no? ¿Quiénes lo
con plaguicidas, seguido por el MSP y por hacen y qué consecuencias implica?
último el MVOTMA. Como se evidencia en
la literatura sobre el tema9,39,40, a pesar de la Hallazgos etnográficos: las
diversidad de organismos involucrados en la denuncias como eventos disruptivos
regulación de los plaguicidas en Uruguay, la en el lazo social
preeminencia que el MGAP tiene en cuanto
a las competencias reguladoras de estas sus- Para los trabajadores asalariados y referen-
tancias son notorias lo que podría tener un tes de empresas agropecuarias que aplica-
correlato con las representaciones sociales ban plaguicidas, productores agropecuarios
y expectativas sobre las competencias e in- e ingenieros agrónomos, era un motivo de
jerencias de los distintos organismos estata- orgullo el ‘no haber tenido nunca una deriva’,
les41,42 respecto de la regulación y control de ya que daba cuenta de sus habilidades técni-
los plaguicidas. cas. Sin embargo, todos coincidían en que si
Desde la Institución Nacional de Derechos una fumigación derivaba ‘accidentalmente’ en
Humanos (INDDHH) se ha planteado que la un cultivo lindero, la afectación económico-
multiplicidad de lugares a los que las personas -productiva se ‘arreglaba entre vecinos’. Esto
deben recurrir y la falta de claridad en las com- significaba que se establecía un diálogo entre
petencias de cada uno hace que las acciones las partes, con el objetivo de llegar a una com-
instrumentadas resultan poco accesibles para pensación económica justa para ambas, sin
realizar denuncias, lo que afecta la protección involucrar a terceros.
de los derechos40. Además de generar poca Cuando en un clima de mayor confianza,
claridad respecto de los mecanismos de de- algunas personas contaron que habían ‘sido
nuncia existentes para la ciudadanía, puede denunciados’ o que ‘tuvieron que denunciar’,

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narraban no sólo daños económico-producti- una indemnización económica, tenía como


vos, sino que también aludían connotaciones objetivo prevenir que se los siguiera perjudi-
de daño moral e implicancias afectivas, tanto cando a futuro. Ellos querían ‘vivir cómodos’,
para el denunciante como para el denunciado. se preocupaban por los efectos a mediano y
Las narraciones de los episodios por parte largo plazo en su salud y la de sus hijos y los
de los actores denunciados estaban teñidas por daños ocasionados a su entorno ambiental
el malestar de haber sido objeto de acusaciones también eran significados como daños a su
que cuestionaban sus cualidades morales para calidad de vida y su salud.
con la comunidad (‘me trataron como si fuera Otro tipo de motivo frecuente de denuncias
un delincuente’), así como por el sentimiento en los medios de prensa y fuentes oficiales eran
de que las denuncias habían sido injustas, aún las fumigaciones cercanas a escuelas rurales.
cuando reconocían su incumplimiento de la Este tipo de eventos causaba indignación entre
normativa vigente. La ‘injusticia’ estaba en la población general, especialmente porque
que concebían a la normativa como arbitraria, atentaba contra la salud de niños y niñas. Sin
contraria para sus intereses productivos y di- embargo, a partir del trabajo de campo reali-
señada ‘desde un escritorio’ desconociendo la zado observar que muchas escuelas rurales
‘realidad productiva’. Además, se resaltaba con tenían campos de cultivos linderos a sus
mucha molestia los costos derivados no sólo predios y era de público conocimiento que
de las sanciones recibidas, sino también del su manejo incluía la fumigación con distin-
tiempo y gestiones que requerían los trámites. tos plaguicidas a lo largo del ciclo productivo
Por parte de los y las denunciantes, la deci- sojero. Maestras, madres y vecinas de distin-
sión de hacer una denuncia también parecía tas comunidades educativas con quienes se
estar asociada a daños morales. Sus historias trabajó contaban que, aunque habitualmente
referían no sólo a daños económico-produc- fumigaban cerca, nunca habían hecho una
tivos y/o sanitarios, sino también a afectos re- denuncia. Las fumigaciones eran consideradas
lativos al haber sido perjudicados en términos como algo ‘normal’ o habitual, parte de la vida
morales, por no haber sido ‘respetados’ en sus cotidiana y de la actividad agrícola de la zona.
derechos de vivir y producir en su propio lugar. A pesar del ‘mal olor’ de los productos e incluso
Por ejemplo, la familia de Daisy y Horacio de que llegaban a ocasionarles molestias físicas,
eran pequeños productores familiares agríco- como dolores de cabeza o dificultades respirato-
la-ganaderos, ubicados en el corazón agrícola rias, muchas de ellas afirmaban estar ‘acostum-
de Soriano, que residían en el predio con dos bradas’. Esta normalización no estaba exenta de
hijos varones menores de edad. Los proble- ambivalencias y contradicciones, porque si bien
mas comenzaron en el año 2002, cuando la el uso de plaguicidas era aceptado como algo
empresa vecina empezó con el cultivo de necesario para la producción, desde los saberes
soja y las fumigaciones aéreas. En numerosas populares y la experiencia cotidiana los mismos,
ocasiones habían hablado con los empleados eran reconocidos como sustancias molestas y
encargados de la empresa manifestando su potencialmente dañinas para la salud10.
malestar, pero como los servicios de fumigaci- Quizá debido a esa misma ambivalencia, se
ón eran contratados a empresas tercerizadas, encontraron evaluaciones morales respecto de
nadie asumía la responsabilidad de los daños. los productores que sembraban y fumigaban
Recién en 2012, a raíz de que una deriva les cerca de las escuelas que distinguían entre
dañó árboles frutales de su predio que había aquellos que ‘cuidaban’ de los que ‘no respeta-
plantado el padre de Horacio, ‘se cansaron de ban’. Estas valoraciones se vinculan a saberes
pedir de buena manera’ y de que no los ‘res- populares compartidos de que ciertas prácticas
petaran’ y decidieron presentar una denuncia productivas, como fumigar ‘cuando no hay
formal ante el MGAP. La denuncia, más que viento’ o ‘fuera del horario’ de funcionamiento

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Entre denunciar y aguantar. Sojización, plaguicidas y participación en salud ambiental en Uruguay 69

escolar, prevenían que las sustancias tóxicas ‘meterse con los gringos’ (forma popular de
‘llegaran’ a las escuelas y los niños. Por otra denominar a los empresarios agropecuarios)
parte, quienes fumigaban ‘sin cuidar el viento’ porque ‘tienen plata’.
o en el horario de clases, eran considerados No obstante lo anterior, durante el trabajo
como ‘irrespetuosos’. Afirmar que estas prác- de campo en la zona, tomé contacto con un
ticas productivas eran consideradas como pre- caso en el que sí se realizó una denuncia
ventivas en términos populares43 no implica ante el MGAP de una deriva provocada por
considerar que efectivamente previnieran la una fumigación aérea en una escuela rural.
exposición a las sustancias tóxicas, ya que es Posteriormente, las actuaciones de los técnicos
sabido que los plaguicidas pueden llegar a de la DGSA del MGAP constataron median-
tener residualidad de varios días y que, de- te estudios de laboratorio la ocurrencia de
pendiendo de las condiciones de aplicación, deriva y multaron a tres productores locales
pueden ser muy volátiles. Lo que interesa por incumplimientos en la normativa de las
destacar es que el uso de las tecnologías y la distancias de aplicación respecto del centro
percepción sobre los potenciales riesgos de la educativo. La denuncia se convirtió en un
misma están atravesados por saberes populares acontecimiento excepcional y muy polémico
sobre los procesos de salud-enfermedad, así en una zona donde la exposición ambiental a
como por valoraciones morales y expectativas plaguicidas fue naturalizada como parte de la
respecto del cuidado de la comunidad. Por ello, vida cotidiana por muchos años.
no era esperable que alguien denunciara a un Las condiciones que posibilitaron la de-
vecino por fumigar cerca de una escuela un día nuncia se relacionaron con algunos aspectos
de fin de semana o fuera del horario escolar. discutidos anteriormente y otros novedosos.
Otro factor identificado como un desestí- En primer lugar, las condiciones del clima y
mulo a las denuncias es la dependencia eco- la tecnología de aplicación usadas el día de
nómica para el funcionamiento cotidiano de la deriva fueron decodificadas en términos
las escuelas rurales de las empresas agrope- populares como peligrosas. Se trataba de un
cuarias. Esta dependencia se materializaba en día ‘muy ventoso’ y se utilizó un avión ‘muy
donaciones monetarias directas a la comisión grande’ en comparación con la maquinaria
fomento, en especias (carne para el comedor, terrestre y/o avionetas aerofumigadoras uti-
pintura para el mantenimiento del local edu- lizadas comúnmente. Además, la empresa
cativo, animales para festivales a beneficio agrícola donde se realizaba la fumigación
de las escuelas) y servicios (colaboración no formaba parte de las relaciones sociales
en el mantenimiento del local y predio de la tradicionales de la zona por ser sus dueños
escuela). Asimismo, vecinos e integrantes de extranjeros y preexistía una valoración social
la comunidad educativa (padres y/o madres negativa respecto de sus prácticas productivas
de los alumnos) solían estar empleados en los como ‘descuidados’ e ‘irrespetuosos’.
emprendimientos productivos agropecuarios Asimismo, se presentaron síntomas agudos
y dependían económicamente de su salario en de afectación a la salud ocasionados por la
dicha actividad. Como afirmaba una maestra, deriva de los químicos (insecticidas y fungi-
‘Muchas personas ven el tema de la soja como cidas) en algunos adultos y niños, como bron-
algo bueno porque da trabajo’. La dependen- coespasmos, cefaleas, alteración de la presión
cia económica de esta actividad productiva arterial, dermatitis, entre otros. En términos
estaba directamente relacionada a las rela- populares, estos síntomas fueron clasifica-
ciones asimétricas de poder en el territorio dos como ‘graves’, lo que llevó a buscar ayuda
entre empresarios agropecuarios, maestras externa en lugar de ‘aguantar’, como se solía
y madres de la comunidad educativa. En tér- hacer ante otros malestares que se soportaban
minos de una vecina de la zona, era difícil habitualmente y eran clasificados como ‘leves’.

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70 Evia V

La denuncia posibilitó que al día siguiente del desestimar la experiencia de sufrimiento oca-
acontecimiento, un equipo de salud pública sionado por la exposición a plaguicidas en
(médico y enfermera) fuera enviado por las niños y adultos afectados.
autoridades sanitarias departamentales a la Por último, los productores locales dismi-
escuela y evaluara a los afectados. El médico nuyeron su colaboración con las actividades
estableció un diagnóstico clínico de ‘intoxi- de la comisión fomento para el mantenimien-
cación leve’. to de la escuela. Cuando, meses después de
Las imbricadas relaciones sociales y de lo ocurrido, una de las madres fue a pedir
parentesco a nivel local dinamizaron la con- colaboración para comprar pintura para la
creción de la denuncia ante las autoridades escuela, se negaron aludiendo que ya habían
competentes. Uno de los niños que sufrió sín- tenido muchos gastos con las sanciones eco-
tomas agudos era pariente del policía local, nómicas recibidas debido a ‘la denuncia’. Esto
por lo que cuando se llamó a la familia para llevó a algunas mujeres vinculadas a la escuela
avisar que el niño no se sentía bien, aún sin a cuestionarse sobre las consecuencias para
haberlo buscado, se puso en conocimiento a sus vidas cotidianas de haber denunciado. Ni
un agente del estado de lo sucedido, quien lo ellas, ni sus hijos, ni la escuela habían sido
reportó a su superior. Asimismo, una de las resarcidas económicamente por los daños
madres de la escuela ya tenía experiencia en acontecidos y ninguno de los productores
los mecanismos para realizar denuncias ante el locales se había ‘fundido’, ni había ‘dejado de
estado por problemas sufridos en su predio, y plantar soja’. Sin embargo, para ellas, haber
transmitió es saber-hacer a la maestra. Eso fue roto el ‘statu quo’ les perjudicaba en sus re-
clave debido a que, generalmente, las mismas laciones de dependencia cotidiana.
maestras funcionarias de escuelas públicas no
están adecuadamente informadas sobre cómo
proceder para realizar una denuncia. Consideraciones finales
El concretar la denuncia tuvo algunos
efectos positivos para los implicados, como Este artículo buscó aportar a la discusión de
el que fuera un equipo de salud a la escuela las luchas sociales por salud ambiental y de la
al día siguiente de lo ocurrido. Sin embargo, a participación social en salud ambiental a partir
mediano plazo, se visibilizaron consecuencias del análisis de los alcances y limitaciones de las
negativas en las relaciones sociales y territo- denuncias públicas por problemas por plagui-
riales para las personas involucradas. cidas en el contexto de sojización uruguayo,
La maestra de la escuela y la auxiliar de partiendo de fuentes secundarias y primarias
servicio se vieron sometidas a distintas formas en el contexto de sojización uruguaya.
de violencia simbólica por parte de empre- El análisis realizado permite evidenciar que,
sarios agrícolas de la zona y de la empresa durante el período analizado, se incrementaron
fumigadora involucrada en el caso, tanto en el e intensificaron las denuncias ante medios de
local educativo en el día de los hechos, como prensa y ante diferentes organismos oficiales
a los meses de lo sucedido, en contextos de por problemas con plaguicidas de uso agrícola
interacción social en la vida cotidiana. Además, y muestra que estos problemas incluyen tanto
se pusieron en juego estrategias de deslegiti- aspectos económico-productivos como daños
mación por parte de actores vinculados con socio-sanitarios, ambientales y morales que se
el agronegocio local (productores y asesores intersectan. Asimismo, se deja en evidencia
técnicos). A partir de la circulación de rumores que la multiplicidad de organismos oficiales
en la localidad de que la causa de los malestares y las disputas sobre sus competencias contri-
presentados en la escuela se debían a ‘comida buyen a una fragmentación de los problemas
en mal estado’ y no a la intoxicación, buscaron en dimensiones artificialmente separadas de

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Entre denunciar y aguantar. Sojización, plaguicidas y participación en salud ambiental en Uruguay 71

lo que sería el ámbito de la ‘producción’, la modelo tecnológico dominante agropecuario.


‘salud’ y el ‘ambiente’ y a definiciones muy Como se ha reportado ante casos similares de
restrictivas de dichas dimensiones. Como ha conflictos socio ambientales por plaguicidas,
sido demostrado por estudios antropológicos los actores sociales vinculados al modelo he-
sobre sufrimiento social, la fragmentación de gemónico desencadenan estrategias de legi-
problemas complejos por parte del estado, timación del modelo, basadas en estrategias
tanto a nivel de su conceptualización como de deslegitimación y amedrentación de sus
de su gestión burocrática, tienen efectos de oponentes6,47-56. Luego de la denuncia, la vida
saber-poder al diluir las causas estructura- cotidiana sigue y las consecuencias de romper
les de los problemas y sus consecuencias en con el ‘statu quo’ pueden traer más perjuicios
términos estructurales44-46. Esto resulta par- que beneficios en términos inmediatos para
ticularmente problemático para atender a la los ‘afectados’, que se encuentran insertos y
interconexión de la estructura social en los dependen de una red de relaciones sociales y
problemas de salud ambiental. económicas en el territorio, que son produci-
El trabajo etnográfico de cercanía y profun- das y reproducidas por los lazos sociales de
dización en los sentidos y consecuencias que cercanía interpersonal.
estas prácticas adquieren para los diferentes Más allá de las limitaciones analizadas, las
actores sociales, permiten evidenciar que la denuncias también pueden ser pensadas como
decisión de presentar una denuncia ante un una forma de enunciación del problema en la
organismo oficial es tomada luego de intentos esfera pública que buscan prevenir daños y
previos de conciliación entre las partes. La en la salud socio-ambiental. En este sentido,
denuncia emerge como alternativa cuando se planteamos que la realización de denuncias
supera cierto umbral de tolerancia o ‘aguante’, puede entenderse como una forma de parti-
sea porque los daños percibidos superan de- cipación social en salud ambiental. Así como
terminado umbral de gravedad tolerable o los datos oficiales de intoxicaciones agudas
porque se interpreta el problema en términos registrados por los centros de vigilancia toxico-
de daños morales. lógicos han sido interpretados como la ‘punta
La denuncia aparece como un aconteci- del iceberg’ en términos epidemiológicos de
miento disruptivo en el lazo social y cargado las afectaciones a la salud por plaguicidas, los
de valoraciones morales, tanto para los de- datos oficiales sobre denuncias pueden ser
nunciantes como para los denunciados. Si interpretados como la ‘punta del iceberg’ de
bien quienes denuncian parecen buscar pre- los conflictos socio-ambientales y sanitarios.
venir daños futuros, también deben afrontar
conflictos sociales y situaciones de violencia
simbólica. Cuando se realizan denuncias por Colaborador
problemas con plaguicidas en comunidades
agrarias, se enfrentan relaciones de saber- Evia V (0000-0001-9049-2464)* es responsa-
-poder muy arraigadas en el territorio y valora- ble por la elaboración del manuscrito. s
ciones morales que sostienen la hegemonía del

*Orcid (Open Researcher


and Contributor ID).

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72 Evia V

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ARTÍCULO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE 75

Consumo e impactos de los agrotóxicos en


Colombia: comunidades envenenadas
Consumption and impacts of agrochemicals in Colombia: poisoned
communities

Lina Marcela Meneses Cabrera1

DOI: 10.1590/0103-11042022E205

RESUMEN Los agrotóxicos ampliamente usados en el mundo, han provocado muertes y enfermedades
letales en los seres vivos. En el caso de Colombia, un país productor de agrotóxicos, las consecuencias se
avizoran en diferentes comunidades tanto urbanas como rurales, pero sus estudios han sido limitados o
son dispersos, lo que no permite obtener un panorama real de las consecuencias del modelo de Revolución
Verde en el país. El objetivo de este artículo fue recopilar algunas investigaciones sobre los impactos de
los agrotóxicos en Colombia, particularmente sobre los efectos del glifosato. Para ello, se seleccionaron
29 artículos en lenguas española y portuguesa, en buscadores como Scielo, Google académico y Science
direct, así como prensa independiente y documentos institucionales, de los cuales 14 son estudios en
Colombia, que demuestran el envenenamiento de suelos, aguas y personas. Discutimos estos impactos y
los relacionamos con el panorama de la desigualdad y violencia agraria que vive el país.

PALABRAS-CLAVE Agroquímicos. Colombia. Herbicidas. Agroindustria.

ABSTRACT Pesticides widely used in the world have caused death and fatal diseases in living things. In
the case of Colombia, a pesticide-producing country, the consequences have been foreseen in different com-
munities, but their studies have been scarce or scattered, which does not allow obtaining a real picture of the
consequences that the green revolution model would have. take in parents. The purpose of this article was to
compile some research on the impacts of pesticides in Colombia, particularly on the effects of glyphosate. For
this, 29 articles in Spanish and Portuguese were selected in search engines such as Scielo, Academic Google
and Science Direct, as well as independent and institutional press documents, of which 14 studies are found in
Colombia, which demonstrate the poisoning of soils, waters and people. We discuss these impacts and relate
them to the panorama of inequality and agrarian violence that the country is experiencing.

KEYWORDS Agrochemicals. Colombia. Herbicides. Agribusiness.

1 Universidade Estadual
Paulista (Unesp) – São
Paulo (SP), Brasil.
marce15120@hotmail.com

Este es un artículo publicado en acceso abierto (Open Access), bajo licencia de Creative
Commons Attribution, que permite el uso, distribución y reproducción en cualquier
medio, sin restricciones, siempre que el trabajo original sea correctamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 75-88, JUN 2022
76 Cabrera LMM

Introducción impactos en la salud de las personas y del am-


biente, particularmente del uso del glifosato.
El modelo del llamado desarrollo rural en
Colombia hace parte de la lógica de desar-
rollo en la que se inscribió el mundo en el siglo Material y métodos
XX, cuando el país fue delegado para cumplir
la tarea de los países del tercer mundo: ser Se desarrolló una revisión bibliográfica de
proveedor de materias primas, impulsando el publicaciones sobre la producción y comercia-
extractivismo e introduciendo el agronegocio lización de agrotóxicos en Colombia, tenien-
mediante el modelo de Revolución Verde en do en cuenta el panorama agrario y cultivos
el campo colombiano. Además, la realidad de principales de tipo comercial que se han es-
un país en guerra, con presencia de diferentes tablecido en el país. Además, una revisión de
actores armados, ha condicionado una reali- investigaciones que dan cuenta del impacto
dad particular y diferente a todos los países ambiental y en la salud, producto del uso de
de América Latina, afectando las dimensio- agrotóxicos, particularmente, se escogieron
nes social, económica, productiva, política estudios de campo, ensayos de laboratorio
y cultural. La territorialidad construida co- e informes de salud que dan cuenta de los
lectivamente por la comunidades, sea por la impactos del glifosato en Colombia; estos es-
ausencia del estado o por la decisión colectiva tudios fueron seleccionados en bases de datos
de familias negras, indígenas y campesinas, se de la plataforma Scielo, Google académico y
ve fracturada por la presencia de los actores Science direct, así como artículos periodísticos
armados con intereses en los bienes naturales de prensa nacional e independiente recono-
o el control político1, teniendo como resulta- cida en Colombia. La búsqueda fue realizada
do en el panorama actual, una alianza entre durante el primer semestre de 2020 y rectifi-
paramilitarismo, estado, empresas nacionales cada en julio de 2021.
y multinacionales con el fin de despojar a El panorama agrario de Colombia se analiza
las comunidades de sus tierras e imponer un desde las cifras oficiales, basadas en las es-
modelo de desarrollo capitalista. tadísticas del DANE y el último censo agro-
El modelo de Revolución Verde, ha encon- pecuario del país, realizado en el 2014, para
trado su asiento en empresas agroindustriales obtener cifras de acceso a tierra, indicadores
como las de aceite de palma, café, producción de pobreza y vulnerabilidad, así como tipo y
de azúcar y agrocombustibles, que mediante extensión de cultivos agroindustriales esta-
servicios de asistencia técnica han promovido blecidos en Colombia.
el uso de agrotóxicos en comunidades rurales. Para reconocer la producción de agrotóxicos
La academia y los bancos son aliados para en Colombia, se toma como base la informa-
su reproducción, por un lado, las universida- ción del Instituto Colombiano Agropecuario
des, enseñando un el modelo de Revolución (ICA), quien es la entidad pública del orden
verde como única opción en la agricultura, nacional encargada de desarrollar procesos
aun cuando en el mundo hay diferentes expe- de vigilancia y control frente a las actividades
riencias y sabidurías sobre agricultura, dada la agropecuarias que se desarrollan en el país, se
diversidad de climas, ecosistema y pueblos que toma de base el informe del año 2016, ya que es
se fueron adaptando a sus territorios, por otro el más completo, los informes más actualizados
lado, los bancos por condicionar los préstamos carecen de información y suministran infor-
a la compra de insumos agrotóxicos. mación sin explicación, impidiendo un análisis
Este artículo tiene como finalidad recopi- certero sobre las estadísticas suministradas.
lar informaciones sobre los agrotóxicos en También se tomó como base los informes del
Colombia, permitiendo un análisis frente a los Instituto Nacional de Salud (INS) frente a los

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Consumo e impactos de los agrotóxicos en Colombia: comunidades envenenadas 77

hallazgos referentes a salud que ocasionan las que asciende a 9.153.0782 personas registradas
intoxicaciones producto del uso de agrotóxicos por la unidad de víctimas, siendo la mayoría
en Colombia. de la zona rural de Colombia, cifra actualizada
al 14 de julio de 2021. Para 2019, se estimó
que vivían en el campo, aproximadamente,
Resultados y discusión 11.000.000 de personas3 y, desde el año 1985
hasta el 2018 7.816.000 personas fueron des-
plazadas por la violencia, siendo Colombia el
Cifras de la desigualdad y violencia segundo país con más desplazados, solamen-
en Colombia te después de Siria4. De las familias que aún
quedan en el campo, se encuentra que, para el
Hoy en día, Colombia es un país sumido en 2019, el 34,5% estaba en condición de pobreza.
la violencia, donde los pobres han sido his- La situación se complejiza más con la pande-
tóricamente los más afectados por la guerra mia, donde se ve afectado el sector comercial
permanente perpetrada por el estado legal o y de servicios del país, pero, además, las fa-
ilegal (paramilitares), por narcotraficantes y milias que trabajan en empleos informales,
sus aliados armados, por los terratenientes y como venta de comidas rápidas o diferentes
las grandes empresas nacionales y multinacio- productos en semáforos y buses públicos, lo
nales e incluso las insurgencias, un escenario que se refleja en la cifra de pobreza monetaria
de violencia que puede verse en cifras como el que para el DANE ascendió al 42,5% del total
número de víctimas por el conflicto armado, de nuestra población (tabla 1).

Tabla 1. Datos en porcentaje de pobreza, según el DANE, año 2018, 2019 y 2020

% del total de la % del total de la % del total de la


Dato población 2018 población 2019 población 2020
Pobreza Monetaria - 35,7 42,5
Pobreza Multidimensional (salud, educación, cali- 19,1 17,5 -
dad de vida) total
Pobreza multidimensional en centros poblados y 38.6 34,5 -
rural disperso

Fuente: Elaboración propia con base en DANE5-8.

El 70% de los niños y jóvenes que no acceden Tierra: ¿en manos de quién y para qué?
a educación provienen de las zonas rurales,
pero en un país donde la pobreza recorre todos En Colombia, el conflicto histórico ha sido
los lugares y la vida se encarece, es de esperar el acceso y tenencia de la tierra. Durante el
que los jóvenes en lugar de estudiar quieran último censo agropecuario5 ll evado a cabo en
conseguir ingresos para sus familias, o para sí el año 2014, se obtuvo como resultado que el
mismos, en el campo como jornaleros, o en la 40,6% del territorio es dedicado a actividades
ciudad como obreros y/o cualquier actividad agropecuarias, equivalente a 45.881.500 hec-
que pueda generar ingresos con prontitud. táreas, de estas, el 80% son pastos y rastrojos,
Estas son cifras que dejan ver la magnitud de y el 19,1%, es decir, 8.763.366 hectáreas, están
la desigualdad y violencia en este país. dedicadas a la agricultura, para el 2017, el

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78 Cabrera LMM

DANE actualizó este el último dato a 5.099.774 de los cinturones de miseria de las ciudades,
hectáreas, de las cuales el 59% están sembradas por ejemplo, el distrito de Agua Blanca en Cali,
en cultivos agroindustriales y cereales (tabla formando por familias desplazadas de todo
2), quedando el 41% restante que deduciría- el sur occidente colombiano, asentándose en
mos están en manos de pequeños productores, tierras vacías principalmente a la orilla de ríos.
con la diversidad que esta categoría engloba. La tierra que podría dedicarse a la agri-
El censo de 2014, mostró que sólo el 0,4% de cultura es dedicada a la ganadería extensiva,
la población posee el 46% de la tierra, cifra y como es de esperarse en un país donde el
que ha sido constante desde años atrás, lo narcotráfico va acumulando el poder abso-
que refleja de la concentración de tierra en luto, estas mismas tierras son usadas para el
muy pocas manos. Mientras, los campesinos procesamiento de la hoja de coca en pasta y/o
despojados de sus tierras van formando parte para la especulación financiera.

Tabla 2. Hectáreas sembradas por cultivo

Tipo Cultivos Hectáreas


Agroindustriales Café 814.808
Total: 2.049.067 Caña de azúcar 276.914
Palma aceitera 517.561
Caña de panela 213.026
Cacao 129.371
Soya 30.705
Ilegal Coca 154,475
Amapola 462
Cereales Arroz, maíz amarillo, maíz blanco y 1.034.065
Total: 1.034.065 otros cereales.

Fuente: Elaboración propia, datos tomados de DANE5 y Observatorio de drogas en Colombia6.

Estos cultivos agroindustriales son sembra- de suelos como es el caso de la Federación


dos en tierras que son propiedad de las empre- Nacional de Cafeteros y de Cacaoteros.
sas o en tierras alquiladas a campesinos, donde Este modelo, si bien tiene su acento con
las empresas aplican su paquete tecnológico, la entrada del neoliberalismo, sobre todo la
sin importar consecuencias a las poblaciones inversión extranjera directa, ya desde los
vecinas y a los ecosistemas como es el caso de años 50´s, se dirigió el sector agropecuario
los ingenios azucareros asentados en el valle a la producción agroindustrial. La violencia
geográfico del Rio Cauca. En otras ocasiones, bipartidista, los masivos desplazamientos
los producen los mismos campesinos en sus forzados, despojo de tierras y consolidación
propias tierras, pero están supeditados a dichas del control territorial por parte de poderes
empresas, quienes imponen paquetes tecno- locales y regionales fueron determinantes para
lógicos y precios de los productos de acuerdo la expulsión del campesinado y la configura-
al mercado internacional, lo que no deja una ción de los centros urbanos7. La conforma-
renta fija para cada campesino, en cambio, ción de paramilitares, el favorecimiento del
pobreza, contaminación de agua y destrucción estado para la compra de tierras por parte

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Consumo e impactos de los agrotóxicos en Colombia: comunidades envenenadas 79

de terratenientes y narcotraficantes fueron rurales y ecosistemas aledaños.


configurando el actual panorama complejo
agrario de Colombia. Principales empresas e ingredientes
Un ejemplo de ello, puede verse de manera activos de agrotóxicos en Colombia
reciente con la promoción de cultivo de palma
africana por parte del estado para producción La implantación de los cultivos agroindustria-
de agrocombustibles para los países del norte, les vino acompañada del consumo masivo de
fue configurándose a partir de la usurpación agrotóxicos. Para el caso de Colombia, esta in-
de tierras colectivas ya tituladas a afrodescen- dustria de producción de agrotóxicos comenzó
dientes de las comunidades de Jiguamiandó desde 1962, para ese momento, las industrias
y Curvaradó en el departamento del Chocó, mezclaban uno o más ingredientes activos
de la destrucción de bosques y la esclavitud importados con solventes y coadyuvantes,
del trabajo que genera, reconocidas incluso los envasaban y/o empacaban para la venta
por la OIT8, así como los serios indicios de al público, como menciona Nivia10,
los vínculos directos e indirectos de varias
de estas empresas con grupos paramilitares1, Para 1964 se inició la síntesis de algunos ingre-
hechos que dan cuenta de la disputa por tierra dientes activos como los funguicidas mancozeb
que se vive en nuestro país. y cimoxanil, los herbicidas diurón y propanil y el
Los campesinos que quedaron en zonas desinfectante de suelos metam sodio.
rurales se vieron expulsados a los bordes
de la frontera agraria, sin apoyo del estado, Durante el año 2013, según el censo nacional
en condiciones de pobreza, en medio de agropecuario, el 70,2% de 2.370.099 unidades
la violencia que hasta se hoy vive, lo que de producción agropecuaria (UPA), incluyendo
aporta a la implantación de los cultivos predios con cultivos agroindustriales y pro-
de uso ilícito, su procesamiento y tráfico9, ducción de alimentos declararon haber usado
ya que sembrar coca o marihuana para las fertilizantes de síntesis química, para el control
comunidades rurales puede significar un de insectos y microorganismos el 57, 8% de las
ingreso estable, tal como el del café, pero UPA lo hacían con químicos.
significativamente mejor pago. Estos agrotóxicos son suministrados por
En definitivo, todo el despojo histórico empresas multinacionales, en su mayoría im-
de las comunidades rurales es lo que pro- portadoras y distribuidoras de agrotóxicos
mueven los gobiernos con el discurso de (gráfico 1), principalmente glifosato, mancozeb
desarrollo rural, ahora ‘sostenible’, para y los clorpirifos, los cuales son importados
acomodarse a las críticas por contaminaci- como productos terminados de acuerdo con la
ón e impactos ambientales que produce el figura 1, donde se observa una cifra mayor en
modelo capitalista, pasando del uso indis- ventas con respecto a la cifra de producción.
criminado de agrotóxicos a buenas prácticas Para el caso del mancozeb, su alta producción
agrícolas y normas de seguridad y salud se debe a la exportación de agrotóxicos que
en el trabajo, que aún siendo necesarias, Colombia tiene en varios países, aunque su
no minimizan el impacto ambiental y en consumo en el país no sea comparable con
la salud de los trabajadores, comunidades los dos anteriores.

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80 Cabrera LMM

Gráfico 1. Producción de agroquímicos por empresas en millones para el 2016

9,59
INVESA S.A

4,59
ARYSTA LIFESCIENCE COLOMBIA S.A

7,95
Empresa
ADAMA ANDINA B.V SUCURSAL COLOMBIA

24,2
DOW AGROSCIENCES DE COLOMBIA S.A.
16,17

9,07
BAYER CROPSCIENCE S.A.
2,18

0,00 5,00 10,00 15,00 20,00 25,00 30,00

Cantidad

Litros Kilogramo

Fuente: Elaboración propia. Datos tomados de ICA, 201611.

De acuerdo a la información pública, la ChemChina, las demás empresas son multi-


empresa Invesa S.A. está ubicada en Medellín, nacionales y es necesario aclarar que la mayor
Antioquia, las demás están ubicadas en Bogotá. parte de los insumos primarios, como ingre-
Invesa S.A. es de capital colombiano, Adama dientes activos o semillas, son propiedad de
andina B.V. Sucursal Colombia fue formada las grandes cooperaciones Bayer, ChemChina
con capital colombiano y, en 2014, fue com- y Dupont, queda claro en este gráfico que la
prada por Adama Agricultural Solutions Ltd., producción de agrotóxicos en el país está en
de Israel, hoy subsidiaria de la multinacional manos de empresas multinacionales.

Figura 1. Kilogramos y litros de ingredientes activos producidos y comercializados en el 2016 en Colombia

Herbicida Insecticida Fungicida


Glifosato Clorpirifos Mancozeb

Producidos
(kg) 541.240 2.924.362 12.847.938

Vendidos
(kg) 525.642 3.401.875 2.413.158

Herbicida Fungicida Insecticida


Glifosato Mancozeb Clorpirifos

Producidos
(kg) 8.891.801 10.093.483 2.346.114

Vendidos
(kg) 9.735.026 2.764.047 2.197.095

Fuente: Elaboración propia. Datos tomados de ICA, 201611.

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Consumo e impactos de los agrotóxicos en Colombia: comunidades envenenadas 81

Además de estos agrotóxicos, los insecti- interrumpiendo los procesos ecológicos natura-
cidas con principios activos como los mono- les; su vida media está entre las 6 y 25 semanas, lo
crotofos y metamidofos, catalogados como que quiere decir que si se aplica un litro de clor-
extremadamente tóxicos, los profenofos y pirifos en el suelo, a las 25 semanas, encontrara
malathion como medianamente tóxicos por medio litro aún disponible en el suelo, si llevamos
el Instituto Nacional de Salud de Colombia, esto a escala real de aplicaciones permanentes,
son producidos e importados a Colombia, en tenemos un resultado de suelos progresivamente
menor cantidad a comparación de los clorpi- contaminados; el mancozeb es un fungicida que
rifos, pero su consumo es permanente. pertenece al grupo de los ditiocarbamatos, que
Para 1974, eran registrados 770 agrotóxicos junto a los organofosforados y organoclorados
en Colombia, ya en 2003, 1.370 contaban con inhiben la acción de la enzima acetilcolines-
licencias comerciales, de estos, al menos 123 terasa en las terminaciones nerviosas, lo que
se consideraban de alto riesgo para la salud genera una acumulación de acetilcolina y como
humana, elaborados a partir de 400 ingredien- consecuencia se altera el funcionamiento del
tes activos, de los cuales 77 eran prohibidos impulso nervioso de manera irreversible15. Tanto
o restringidos en otros países. Hoy en día, se el clorpirifos como el mancozeb son de amplio
estima una demanda en el país de 1,5 millones espectro, lo que quiere decir que puede atacar
de toneladas métricas de agrotóxicos12, con cualquier insecto, hongo o bacteria.
515 registros de empresas comercializadoras Un informe de la ONU, publicado en 2017,
de agrotóxicos en Colombia13. menciona que los agrotóxicos son los respon-
Colombia cuenta con 16 acuerdos comer- sables de la muerte de 200.000 personas cada
ciales de acceso preferencial, en las diferentes año, el 99% correspondientes a países en de-
partidas arancelarias, de productos químicos sarrollo, menciona también que los agrotóxicos
a países como Estados Unidos y otros países disminuyen la biodiversidad de los suelos, lo
de la Comunidad Andina (CAN). Por eso, se que reduce la calidad de los cultivos y ocasiona
ha convertido en proveedor número uno de un problema de seguridad alimentaria116.
todas las categorías de agrotóxicos en Ecuador; Para el caso de Colombia, el informe del 2017
sales y mezclas de nitratos de calcio y amonio del Instituto Nacional de Salud17, da cuenta que
en Perú; productos con aldrina en República el 21,2% de los 39.709 de casos reportados de
Dominicana; herbicidas en Jamaica; y fungi- intoxicación fueron causados por agrotóxicos,
cidas en Costa Rica, Panamá, Perú, Jamaica, y el número de muertes por intoxicaciones con
El Salvador y Guatemala. En el 2017, se expor- agrotóxicos representa el 57, 47% (150 casos),
taron US 468 millones hacia mercados como siendo la primera causa de muerte de la po-
Brasil (27%), Ecuador (12%) y México (12%)14. blación intoxicada; de 272 casos reportados
Aunque existen diversos estudios científicos, de intoxicación en población gestante, 79 eran
análisis de laboratorio y estudios independien- por agrotóxicos, algunas de esas se relacionan
tes, desde testimonios, informes periodísticos, con intención suicida, sosteniendo un rango
hasta bioensayos en campo de centros de inves- entre el 33% – 21% entre los años 2008 y 2017.
tigación y de organizaciones sociales en los que Para el 2013 y 2014, el Instituto informó que la
se han comprobado los impactos ambientales población gestante se intoxicó por agrotóxicos
y en la salud del uso de estos agrotóxicos, para en el 39.9% (316 casos) de los casos presentados
Colombia los estudios son escasos. en esos años por los agrotóxicos inhibidores
De acuerdo a las investigaciones aquí referen- de la acetilcolinesterasa (aldicarb, clorpirifos,
ciadas, se puede reconocer que los clorpirifos son paraquat), reconociendo a la población gestante
compuestos organofosforados, clasificados como como vulnerable a la intoxicación por causa
medianamente tóxicos, que pueden persistir en de muerte como por los posibles efectos en
el suelo por más de un año, bioacumulándose e el feto18.

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En lo que respecta al suelo, se destruyen los Santa Marta23, y apoyada desde 199424 por los
diferentes micro y macro habitantes, sus rela- Estados Unidos. Pese a estos programas y la
ciones, dinámicas y sus diversidades19, muchos inversión que se ha realizado en agrotóxicos,
de los principios activos, son dañinos para los los cultivos no disminuyeron, por el contrario,
cromosomas, perturban la división normal de han tenido un crecimiento constante, pasando
las células y causan mutaciones o son cance- de las 44.700 ha en 1994 a 154.000 en 201925.
rígenas20, la planta, entonces, es un paciente Y aunque la fumigación aérea no ha sido
enfermo de gravedad, que sigue con vida porque permanente en todos estos años, si ha sido
está conectada con diferentes insumos externos. constante. Su suspensión ha estado mediada
En el suelo, solo prosperan microorganismos por la acción de las comunidades rurales afec-
resistentes a los agrotóxicos, que generalmente tadas, como la del 2015, mediante la acción
tienen la tarea en la naturaleza de degradar de tutela interpuesta por en el departamento
todo aquello que tenga un estado de vitalidad del Putumayo por los efectos del herbicida.
mínimo, ya que sirve más a la naturaleza una Las comunidades manifestaron que no fueron
vez integrado en el suelo. Los insectos, como consultados, ni informados para su aspersión,
menciona Chaboussou21 en su teoría de la trofo- pese a la normativa del convenio 169 de la
biosis, se alimentan de aminoácidos libres que OIT, que menciona el derecho de los pueblos a
están presentes en plantas en todo momento, participar en la formulación, aplicación y eva-
porque estos se usan para su crecimiento, sin luación de los planes y programas de desarrollo
embargo, existen momentos del estado de de- nacional y regional susceptibles de afectarles
sarrollo vegetativo de la planta, donde estos directamente26. Estas comunidades notaron la
pueden estar más disponibles para los insectos, reducción de cultivos de pancoger, el aumento
debido a una acumulación de azúcares y ami- de mortalidad en peces, y que empezaron a
noácidos, principalmente cuando las plantas llegar epidemias de diarrea, fiebre, vómito y
están en estados de deficiencia nutricional. Los dolores de cabeza27.
agrotóxicos, por su parte, cada vez se fabrican Durante la suspensión, el gobierno nacio-
con mayor solubilidad, con baja capacidad de nal, adoptó la erradicación manual de cultivos
adhesión y son más volátiles, lo cual los hacen de coca como estrategia para la reducción de
más tóxicos, persistentes y eficientes para com- los cultivos, sin embargo, las comunidades
batir las 'plagas'. Cuando los cultivos no tienen reconocen que tanto la fumigación aérea
cobertura vegetal, o cuando están en fase inicial como manual, no es la solución a los culti-
de crecimiento, existe una mayor probabilidad vos de uso ilícito y que más bien, parece una
de contaminación de sistemas hídricos subter- estrategia para acabar con las comunidades
ráneos22 por el proceso llamado escorrentía e rurales del país, ya que esto no resuelve las
infiltración, lo que perjudica toda interacción necesidades económicas de ellas, como ma-
de los organismos vivos con el agua. nifiesta Molano28:

[…] La aspersión – como se dice para disfrazar


Glifosato, el agrotóxico de consumo la agresión – es también un arma hermana del
masivo paramilitarismo puesto que busca desplazar a
campesinos y colono […] es la estrategia fun-
El glifosato es un herbicida de amplio es- damental de la guerra contra la insurrección:
pectro, usado en Colombia entre otras, para quitarle el apoyo campesino a la guer-
la fumigación de cultivos de uso ilícito por rilla. Los paras lo hacían con las masacres.
parte del estado desde los años 70´s, cuando La fumigación lo hace arruinando sus cultivos,
se iniciaron las aspersiones aéreas contra los no sólo de coca sino también los que les permi-
cultivos de marihuana en la Sierra Nevada de ten comer: yuca, plátano, arroz. Más aún, zonas

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que nada tienen que ver con la coca también son El glifosato puro parece actuar en el curso de
arrasadas porque el veneno ‘deriva’, es decir, el las primeras 24 horas activando las caspasas
viento lo dispersa. e induciendo muerte celular (apoptosis) en
cultivos de células con dosis de 500 a 1.000
El glifosato es el herbicida más consumido veces menores que las usadas en agricultura
en Colombia, no solo en aspersión de cultivos y 200 veces menores que las necesarias para
ilícitos sino también como ‘matamalezas’, para producir daño de membranas […]. En otras
mantener las calles de los cultivos y caminos palabras, el glifosato podría estar interfirien-
‘limpios’, es fabricado por la multinacional do en un mecanismo, todavía no explorado,
Monsanto, hoy Bayer, sobre la cual recaen varios que forma parte de la fisiología normal de las
procesos jurídicos por las afectaciones a la salud células y eventualmente en nuestro modelo
de las personas en diversas partes del mundo. la formación de tejidos y órganos, disparado
Para el caso de Colombia, existen 118 formu- desde receptores celulares específicos34(143).
laciones permitidas a base de glifosato, siendo
uno de los más comercializado el Roundup. Un estudio realizado por Diva Revelo35
Este producto comercial contiene 2 sustan- en el marco Programa de Erradicación de
cias, POEA o polioxietileno-amida, surfactante Cultivos Ilícitos por Fumigación, en Orito,
que le da posibilidades de atravesar las mem- la Hormiga y la Dorada, Putumayo, encon-
branas celulares de las plantas, y el CosmoFlux tró mediante entrevistas con personas del
411F, que resulta ser más tóxico que el mismo área rural y urbana y personal médico de
glifosato, sin embargo, legalmente, solo es ne- las Instituciones Prestadoras de Servicios
cesario dar información en la etiqueta de los de Salud (IPS), 1.153 quejas que se referían
productos sobre el ingrediente activo, en este a problemas de salud por aspersión, princi-
caso, el glifosato. La Organización Mundial de palmente en brotes en piel (524), fiebre (516),
la Salud, en 2015, lo clasificó como una sustan- cefalea (469), infección respiratoria aguda
cia tipo 2A, es decir, aquella que puede causar (454), diarrea (373), vómito (281), dolor ab-
cáncer a los humanos29, aun cuando existen di- dominal (221), malestar general (179), mareos
versos estudios que prueban contundentemente (137), angustia, miedo y pánico (64), dolor de
que el glifosato produce cáncer y malformacio- garganta (41), conjuntivitis (32) y otros sínto-
nes congénitas30,31, por ejemplo, uno de ellos, mas (30), hemos de aclarar que una persona
un estudio independiente que recopila más de puede presentar varios síntomas a la vez.
830 artículos científicos, expone las enfermeda- Otro estudio realizado por docentes in-
des comprobadas por el uso de glifosato entre vestigadores de la Universidad del Valle, en
las que se pueden mencionar encefalopatía, Cali, encontró que en el Resguardo de López
autismo, Parkinson, malformaciones congénitas Adentro, en Caloto, Cauca, el agua potable
y diversos tipos de cáncer, además afecta el contenía glifosato, proveniente de la aplica-
sistema nervioso, cardiovascular, reproductivo ción en el monocultivo de caña de azúcar
inmunológico, digestivo y hepático32. en la zona plana del valle geográfico del Río
En cada aplicación de glifosato a los cul- Cauca, se sabe que este agrotóxico se usa como
tivos, los efectos visibles se presentan como madurante de la caña, el cual es asperjado o
“marchitamiento, enrojecimiento y ama- rociado en los cañaduzales alrededor de los
rillamiento del follaje, que aparecen de 7 a cuales se levantan ciudades enteras; aunque la
14 días después de la aspersión y conllevan la cantidad obtenida en el estudio no sobrepasa
muerte de la maleza”33(8), lo mismo ocurre en los límites permitidos en Colombia, resulta
los humanos, los cuales se van marchitando, de amplia discusión la presencia de este tipo
mientras el veneno hace efecto en las personas, de contaminante en el agua potable de una
al cabo de años o meses ellos se mueren: comunidad que no participa en ningún proceso

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productivo, ni cadena económica del cultivo sido prohibidos, en su mayoría en la década de


de la caña de azúcar36. los 70´s y 80´s, décadas después aún se encuen-
De igual manera, un estudio en laboratorio tren metabolitos en los suelos, y frutos, debido
sobre la acción del glifosato en cultivo de frijol a su capacidad de acumulación y persisten-
dio como resultado que muestras tratadas cia39, así lo demuestra un estudio desarrollado
con glifosato propiciaban la presencia de en la zona rural del municipio de Palmira,
hongos del género fusarium37, conocido por Valle del Cauca, para el año 2000 en suelos,
sus amplias afectaciones a los cultivos. Este aguas y frutos de tomate, donde se encontraron
género se reproduce cuando las plantas están presencia de los residuos de metabolitos del
en estado de marchitamiento y necrosis, el DDT, aldrin, dieldrin, endrin, HCH, hepta-
hongo las consume para reintegrarlas al suelo. cloro y metoxicloro40, además del informe
Este estudio concuerda con los resultados preparado para la Comisión Interamericana
expuestos por Chaboussou, en comunida- para el Control del Abuso de Drogas (CICAD),
des fúngicas, concluyo que, al usar dosis en 2005, que indagaba sobre la presencia de
permanentes de agroquímicos, en este caso, glifosato en el agua en Colombia, confirmó que
glifosato y 2,4 D combinados, se promueve la al no ser este un producto móvil no se esperaba
proliferación de géneros Mucor, Fusarium y encontrar en el agua, sino en el suelo, por el
Trichoderma, los dos primeros géneros, suelen contrario, lo que sí fue encontrado 2,4 D y
presentar serios problemas y enfermedades endosulfán, el cual está prohibido desde 199341.
en los cultivos22. Los agrotóxicos son bioacumulados en las
Para el caso del café, que es cultivado en su plantas de consumo animal o en los tejidos
mayoría por pequeños productores entre 1 a grasos de los animales que luego son consu-
10 ha, menciona Cenicafe38(133) midos por los seres humanos, provocando
afecciones en la salud de todo ser vivo; países
Desde la llegada del glifosato en 1970 y 1980, como Brasil y principalmente Argentina han
se disminuyó la búsqueda de otras moléculas visto como las últimas generaciones nacen con
para el control de arvenses en el su cultivo, sin malformaciones, las personas se enferman de
embargo, actualmente, con la evolución de la cáncer o aún jóvenes sufren enfermedades
resistencia de las arvenses a los herbicidas, se relacionados con mal funcionamiento del
observa la necesidad de otros agrotóxicos con sistema nervioso, producto de los agrotó-
mayor capacidad para 'combatir' las plantas no xicos usados en los grandes campos de soja
deseadas en el cultivo. transgénica cultivada en esos países. Estos
agrotóxicos son transportados fácilmente y
Este agrotóxico ha sido ampliamente usado pueden acumularse a lo largo de la cadena
en el cultivo, ya que la persistencia del glifosato trófica, exponiendo los animales superiores
y paraquat solos o combinados con 2,4 D y a mayores riesgos, varias de estas sustancias
diuron, respectivamente, oscila entre 45 a 81 son excretadas por medio de leche materna,
días38, por lo cual podría aplicarse a los suelos constituyendo así una de las fuentes de con-
de los cultivos de café antes de su exportación, taminación de recién nacidos42. Sin embargo,
en cumplimiento con los estándares inter- las consecuencias del uso de agrotóxicos
nacionales llamados trazabilidad en el café aún están por descubrirse, la tesis de la dosis
o periodos de carencia, que son los días que segura de dichos compuestos fue derribada
se debe esperar después de la aplicación del hace tiempo, pese a ello y las demandas a las
agrotóxico para poder cosechar el producto compañías por el riesgo a la salud y al ambien-
y enviarlo al mercado. te, el uso diario en las comunidades rurales
De igual manera, es alarmante que, a pesar es permanente, pues hay por detrás un gran
de que los compuestos organoclorados hayan negocio con grandes ganancias por sostener.

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Consideraciones finales matar, por ello, es trabajo permanente de los


profesionales de la ruralidad y comunidades
La agricultura convencional fue implementa- conscientes motivar los trabajos para construir
da para la producción industrial de cultivos, y reconstruir aquellas formas ancestrales de
para ello, se despojaron campesinos de sus cuidado y protección del espacio común, así
tierras, se desplazó y asesinó a muchos de los como proponer tecnologías sociales, económi-
habitantes de la ruralidad, se destruyó el suelo cas y de fácil acceso a las comunidades, como
y sus ecosistemas; es un modelo de muerte la agricultura orgánica, la cosecha de agua
que se mantiene y reproduce por el poder del de lluvia, el saneamiento básico ambiental,
estado, sin embargo, en todo el mundo pueden entre otras, promoviendo la formación social
encontrarse experiencias significativas de di- y política de manera permanente.
ferentes formas de agriculturas para la vida y
en armonía con la naturaleza, lo que significa
esperanza y resistencia para la construcción de Colaborador
mundos más dignos y radicalmente diferente
al que se ha construido hasta el momento. Cabrera LMM (0000-0002-9040-728X)* es
En definitivo, los agrotóxicos son un responsable por la elaboración del manus-
negocio de unos pocos y una opción para crito. s

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88 Cabrera LMM

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Conflicto de intereses: inexistente
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Apoyo financiero: no hubo

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ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE 89

As mulheres lavradoras e os agrotóxicos no


cotidiano da agricultura familiar
Women farmers and pesticides in daily family farming

Amália Oliveira Carvalho1, Herling Gregorio Aguilar Alonzo1

DOI: 10.1590/0103-11042022E206

RESUMO Considerando a invisibilidade do trabalho feminino no cenário da agricultura familiar, este


trabalho teve como objetivo descrever e analisar a relação da mulher com os agrotóxicos no processo de
trabalho. Esta pesquisa qualitativa foi realizada com agricultoras familiares de São Miguel Arcanjo (SP),
e tem como material de análise o conteúdo das entrevistas com as 14 agricultoras, segundo adaptação dos
conceitos de Bardin. Os conteúdos das falas das entrevistadas foram organizados e delineados em duas
categorias analisadas no corpo deste trabalho. Foi possível inferir que a mulher desempenha atributos
historicamente designados à figura masculina, como as práticas do capinar, da colheita e da manipula-
ção de agrotóxico, embora desprovida do direito a acesso à informação e orientação necessário para o
desempenho do seu labor com segurança. A prática do agronegócio adentra as propriedades familiares,
pautada na produção dependente de agrotóxicos, e é relatada por elas de maneira não naturalizada, quando
identificam os agrotóxicos como venenos. Por fim, potencializar as competências identificadas nessas
mulheres, sobretudo o poder de resiliência, preservando suas competências e identidades perante tantos
fatores estressores vivenciados no contexto da margem feminilizada da agricultura, pode contribuir para
o fim da miséria econômica, intelectual e sanitária das mulheres lavradoras.

PALAVRAS-CHAVE Mulheres trabalhadoras. Agricultura familiar. Exposição a praguicidas. Toxicidade.


Saúde da mulher.

ABSTRACT Considering the invisibility of female labor in the family farming scenario, this work aims
to describe and analyze the relationship of women with pesticides in the work process. This qualitative
research was carried out with family farmers in São Miguel Arcanjo (SP) and has as analysis material the
content of the interviews with the 14 women farmers, according to the adaptation of Bardin’s concepts. The
contents of the interviewees’ speeches were organized and outlined in two categories analyzed in the body
of this work. It was possible to infer that women perform attributes historically assigned to the male figure,
such as the practices of weeding, harvesting, and handling pesticides, although they lack the right to access
the information and guidance necessary to safely perform their work. The practice of agribusiness enters
family properties, based on pesticide-dependent production, and is reported by them in an unnatural way,
when they identify pesticides as poisons. Finally, enhancing the skills identified in these women, especially
the power of resilience, preserving their skills and identities in the face of so many stressors experienced in
the context of the feminized margin of agriculture, may contribute to the end of economic, intellectual, and
sanitary misery of women farmers.

KEYWORDS Women workers. Family farming. Pesticide exposure. Toxicity. Women’s health.

1 UniversidadeEstadual de
Campinas (Unicamp) –
Campinas (SP), Brasil.
amaliacarvalho@hotmail.
com

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 89-101, JUN 2022
90 Carvalho AO, Alonzo HGA

Introdução rurais que residem no entorno das grandes


propriedades regadas à produção do agro-
A utilização maciça de agrotóxicos, encorajada negócio, a exposição e a contaminação com
por movimentos de modificação das práticas agrotóxicos acontecem quando recebem essas
agrícolas, alçadas na chamada ‘Revolução substâncias por contiguidade nas moradias
Verde’, a partir da década de 1960, no âmbito situadas a poucos metros das plantações no
mundial, em prol à ‘modernização da agri- processo de pulverização terrestre e aérea,
cultura’, vem ocasionando grande impacto pela água dos canais de irrigação (que é a
socioambiental, sobretudo no Brasil1-3. Estudos mesma oferecida pelo município aos mora-
acerca do impacto da Revolução Verde con- dores), pelos alimentos contaminados, pelas
cluíram que a população pobre rural não se roupas das trabalhadoras e dos trabalhadores
beneficiou das tecnologias ofertadas por esse que serão lavadas em casa, culminando por
modelo. Os grandes agricultores foram e ainda ampliar a domiciliação de riscos à saúde para
são os principais beneficiários dos incentivos essa população8,9.
governamentais no que tange à facilidade de Estima-se, no mundo, que 3 milhões de
obtenção de créditos para insumos e fertili- casos de intoxicações por agrotóxicos ocorrem
zantes, e no acesso à mecanização, incenti- todos os anos, resultando em 250 mil mortes
vada pelos pacotes governamentais3, ou seja, por intoxicação aguda ao ano, das quais mais
a modernização não atinge, de forma homo- de 90% ocorrem em países em desenvolvimen-
gênea, os estabelecimentos. Outra consequ- to8-10. No entanto, os dados disponíveis sobre
ência foi o intenso processo de expropriação a utilização mundial de agrotóxicos são de
de terras no campo, ocasionando aumentos difícil acesso, apesar do seu uso crescente nos
contínuos da concentração fundiária, da con- últimos decênios10. Também, a Organização
centração de renda e desemprego no cenário Mundial da Saúde (OMS) estima que, de cada
de trabalhadoras e trabalhadores rurais4. 500 casos sintomáticos, 11 procuram atendi-
Consequentemente, ao encontro com essa mento hospitalar e 1 caso é fatal9. Além disso,
realidade de má distribuição de terras, dados para cada caso notificado de intoxicação por
do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada agrotóxicos, há 50 outros que não aparecem
(Ipea), de 2011, mostram que, das famílias que nas estatísticas11. Em alguns países, a intoxi-
residem em meio rural, 36% são considera- cação por agrotóxicos supera, inclusive, as
das extremamente pobres; e 21%, pobres4. mortes por outras enfermidades, como as
Quanto à ocupação de terras, os 3.897.408 es- doenças infecciosas10.
tabelecimentos da agricultura familiar estão Quanto ao olhar de gênero, em 2010, as
concentrados em 23% do território de terras mulheres representavam, em média, 43%
agricultáveis brasileiras5. da força de trabalho agrícola nos países em
O uso de agrotóxicos é uma das ativida- desenvolvimento, variando esta taxa de 20%,
des em que a contaminação do ambiente de na América Latina, a 50%, na Ásia Oriental e
trabalho é intencional, imposta pelo modelo África subsaariana, segundo a Organização
agroquímico de produção6. Na agricultura, das Nações Unidas para a Alimentação e a
o local de trabalho é o ambiente; portanto, Agricultura (FAO)12,13.
contaminam-se o trabalhador e a trabalhadora, Estima-se que, no Brasil, o percentual de
a produção e o próprio ambiente6, ou seja, mulheres agricultoras é de 13% em relação
distintos grupos populacionais estão expostos, ao total de trabalhadores agrícolas, e que esse
em maior ou menor intensidade, pela ocupa- contingente tem crescido nos últimos anos não
ção, contaminação ambiental e alimentar7. só no Brasil, mas em toda a América Latina.
Considerando a precariedade sanitária e social Porém, esse número não reflete a realidade
das famílias de trabalhadoras e trabalhadores da participação das mulheres nos trabalhos

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As mulheres lavradoras e os agrotóxicos no cotidiano da agricultura familiar 91

agrícolas e na produção de alimentos em em famílias estadunidenses agricultoras de


todo o continente. Para a Via Campesina, por pequenas propriedades24.
exemplo, as mulheres camponesas produzem Finalmente, considerando a invisibilidade
de 70% a 80% dos alimentos consumidos pelas do trabalho feminino no cenário da agricul-
famílias mais pobres no mundo. Estudos no tura familiar, resultando em políticas públicas
Brasil, que analisaram programas e políticas focais nulas a essa população, este trabalho tem
específicas, apontam uma participação em como objetivo descrever e analisar a relação da
torno de 35% nos empreendimentos associati- mulher lavradora em contato direto e indireto
vos solidários e em torno de 50% na produção com os agrotóxicos no processo de trabalho
para autoconsumo14. da agricultura familiar e o seu conhecimento
Em se tratando dos âmbitos doméstico e e opinião acerca dessas substâncias.
laboral, é fato que, na literatura, a maioria das
evidências sobre a exposição a agrotóxicos
decorre de estudos realizados com homens, Material e métodos
criando uma lacuna no conhecimento neces-
sário para avaliar o risco inerente no trabalho Esta pesquisa ocorreu em São Miguel Arcanjo,
residencial e/ou ocupacional das mulheres município localizado na região sudoeste do
quanto aos efeitos dos agrotóxicos. Alguns estado de São Paulo. Ocupando uma área de
outros estudos recentes chamaram a atenção aproximadamente 930 km², está a uma alti-
para a falta de pesquisas que determinam a tude de 659 metros do nível do mar, inserido
exposição a agrotóxicos em populações de em um bioma de mata atlântica e abrigando
risco, como mulheres grávidas, por exemplo15. o ‘Parque Estadual Carlos Botelho’ com os
Há uma série de fatores das condições de municípios de Tapiraí, Capão Bonito e Sete
trabalho relativas ao gênero que agravam a Barras25. Segundo o Instituto Brasileiro de
exposição ocupacional feminina a agrotóxicos, Geografia e Estatística (IBGE), a população
desencadeando desfechos desfavoráveis na estimada é de 32.959 habitantes, em 2018, com
saúde16. Sobre saúde reprodutiva, a taxa de densidade demográfica de 33,80 habitantes por
mortalidade infantil em uma população de km² e Índice de Desenvolvimento Humano
trabalhadoras rurais pode alcançar o dobro da alto, de 0,7126,27.
média nacional em determinadas regiões do Do total de moradores, 31,63% residem
mundo17. Tem sido documentada associação na zona rural; e 68,37%, na urbana. Quanto
da exposição aos agrotóxicos com: baixo peso à população ocupada em estabelecimentos
ao nascer; anomalias congênitas18; presença agropecuários, 61,39% são do sexo masculino;
de agrotóxicos no leite materno, expondo o e 38,61%, do feminino26,28.
bebê pela amamentação10; incidência signifi- Dados do Censo Agropecuário de 2017
cativamente maior de endometriose e infer- mostram que São Miguel Arcanjo possui, ao
tilidade19,20; dificuldade para engravidar em total, 1.916 estabelecimentos agropecuários, os
filhas de mulheres expostas a agrotóxicos21; quais ocupam uma área territorial de 75.866
menopausa precoce; abortamento espontâneo; hectares. Nesse aporte de propriedades rurais,
morte fetal; trabalho de parto prematuro; e 1.794 estabelecimentos (93,6%) possuem área
restrição de crescimento intrauterino16,22,23; inferior a 100 hectares, e ocupam uma exten-
e cânceres de mama, ovário e colo uterino21. são territorial de 16.971 hectares (22,37% do
No ambiente doméstico, em mulheres que total das terras agricultáveis do município)29.
supostamente não trabalham diretamente A maior extensão territorial de área culti-
com agrotóxicos, e só cuidam do lar, é pos- vada do município contempla as culturas de
sível quantificar resíduos de agrotóxicos em braquiária, eucalipto, milho e soja28. Mesmo
suas mãos, fato este relatado em um estudo assim, segundo o Censo Agropecuário de 2017,

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92 Carvalho AO, Alonzo HGA

São Miguel Arcanjo ainda é o maior produtor de intoxicações devido ao contato com agro-
de uvas de mesa do estado de São Paulo, tanto tóxicos, e sua opinião quanto ao uso dessas
em número de estabelecimentos quanto em substâncias. Também, foi utilizado gravador
volume de produção (13.093 toneladas)29. de áudio no intuito de valorizar a fluidez do
Para a pesquisa, caracterizada como qua- diálogo sem interrupções para anotações
litativa, descritiva e exploratória, por conve- em papel.
niência, foram consideradas para entrevista Levando em consideração a extensão ter-
agricultoras com idade mínima de 18 anos, ritorial do município, para a identificação
proprietárias, arrendatárias, empregadas ou das mulheres entrevistadas, foi estabelecida
diaristas, e que trabalhem em propriedades de parceria com Secretaria Municipal de Saúde,
agricultura familiar no meio rural, conforme por meio dos Agentes Comunitários de Saúde
estabelece a Lei nº 11.326/200630, atendendo, (ACS) inseridos nas Equipes de Estratégia
simultaneamente, aos seguintes requisitos: Saúde da Família (ESF) atuantes nos bairros
rurais, cujo perfil de propriedades rurais
I. Não detenha, a qualquer título, área maior atendam ao critério de propriedade familiar.
do que 4 (quatro) módulos fiscais; II. Utilize Foram contatadas as equipes de cada
predominantemente mão-de-obra da própria Unidade de Saúde da Família dos bairros
família nas atividades econômicas do seu es- rurais para apresentação, discussão do tra-
tabelecimento ou empreendimento; III. Tenha balho e elaboração da listagem de agriculto-
percentual mínimo da renda familiar originada ras a serem convidadas pelo ACS. Realizada
de atividades econômicas do seu estabeleci- essa primeira etapa em que, por conveni-
mento ou empreendimento, na forma definida ência foram selecionadas 14 agricultoras,
pelo Poder Executivo; e IV. Dirija seu estabele- os ACS ficaram responsáveis por marcar a
cimento ou empreendimento com sua família. data, o horário e o local para a realização
das entrevistas, conforme a disponibilidade
O trabalho teve como critérios de exclusão das futuras entrevistadas.
os agricultores do sexo masculino, agricultoras Nos meses de março a julho de 2018, foram
que trabalham em propriedades caracterizadas realizadas 14 entrevistas com as agricultoras
como não familiares, agricultoras menores de dos seguintes bairros: Abaitinga (3); Colônia
18 anos, e agricultoras que se negaram a par- Pinhal (3); Retiro (2); Santa Cruz (2); Brejaúva
ticipar do trabalho ou que, por algum motivo, (2); e Turvinho (2). As mulheres que se pro-
optaram por não finalizar a entrevista. puseram a participar assinaram o Termo de
Como ferramenta para coleta de dados, Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
foi utilizado um questionário semiestrutu- É válido ressaltar que foram utilizados nomes
rado, constando de perguntas fechadas e fictícios atribuídos às agricultoras participan-
abertas, sobre dados pessoais (idade, estado tes, fim de preservar suas identidades.
civil, escolaridade, cor autorreferida) e uso Esta pesquisa tem como material de análise
de agrotóxicos durante a rotina de trabalho, o conteúdo das entrevistas a partir de três
no que condiz com capacitação e orientação polos cronológicos, seguindo conceitos e rigor
para o seu manuseio, percepção de episódios de Bardin31, conforme figura 1:

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As mulheres lavradoras e os agrotóxicos no cotidiano da agricultura familiar 93

Figura 1. Fases da Análise de Conteúdo

Análise de
Conteúdo

C. Tratamento
A. Pré-análise
dos Resultados

•Leitura flutuante •Resultados brutos


•Definição do corpus tornam-se 'falantes'

B. Exploração do
Material

Inferências e
•Decomposição do corpus Interpretações
•Codificação e enumeração

Fonte: Adaptado de Bardin31.

A. Pré-análise: nessa primeira etapa, aconte- a fase de análise propriamente dita persis-
ceu a escolha do material submetido à análise. te em aplicar sistematicamente as decisões
Por meio da leitura exaustiva, ou ‘flutuante’, tomadas. Essa fase longa e criteriosa ocorreu
do material, a pesquisadora definiu o corpus, manualmente por meio de decomposição do
ou seja, o conjunto de documentos a serem corpus, codificação e enumeração em função
submetidos aos procedimentos analíticos. Sua das regras advindas da pré-análise31.
constituição contemplou quatro regras básicas, C. Tratamento dos Resultados Obtidos: os
conforme orienta Bardin: 1. Exaustividade – as resultados brutos, neste caso, a fala das mulheres,
entrevistas foram transcritas e consideradas são tratados de maneira a serem significativos
na sua integralidade e totalidade durante todo (‘falantes’) e válidos. Tendo a disposição tais resul-
o percurso de elaboração do material final de tados, foi possível propor inferências e adiantar
análise; 2. Representatividade – as entrevista- interpretações a propósito do objetivo previsto,
das foram cuidadosamente escolhidas levando que vem ao encontro ‘a servir de prova’, ou que
em consideração as diversidades culturais e ge- digam respeito a outras descobertas inesperadas,
ográficas de um mesmo município, mas sendo ‘para ver no que dá’31.
elas agricultoras familiares na sua totalidade; Por fim, o projeto de pesquisa e o TCLE
3. Homogeneidade – a pesquisadora realizou foram apresentados ao Comitê de Ética em
todas as entrevistas pessoalmente, utilizando- Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas, da
-se de gravador de voz e roteiro de entrevista Universidade Estadual de Campinas, parecer
semiestruturado como norteador do percurso nº CAAE: 80848617.2.0000.5404.
da entrevista; e 4. Pertinência – as entrevistas
transcritas foram adequadas enquanto fonte
de informação, de modo a corresponderem ao Resultados e discussão
objetivo desta análise31.
B. Exploração do Material: após cumpri- As mulheres entrevistadas trazem consigo
das as diferentes operações da pré-análise, o histórico comum de serem advindas de

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94 Carvalho AO, Alonzo HGA

famílias de trabalhadores rurais. Nesse con- de agrotóxico também estão no rol das suas
texto, não escolheram caminho diverso da atividades diárias, embora inseridas no con-
profissão lavradora. texto da inexistência político-social na figura
Quanto à faixa etária das 14 entrevistadas, 8 da mulher, desprovida de direito a acesso a
mulheres possuíam entre 30 e 44 anos, 4 mu- quaisquer meios de informação e orientação
lheres possuíam entre 45 e 59 anos e 2 mulheres necessários para o desempenho do seu labor
possuíam 60 anos ou mais. Sete mulheres se com segurança.
autodeclararam pardas; 6 brancas; e 1, amarela. A mulher, desprovida de conhecimento
Sobre a escolaridade, 10 entrevistadas acessa- técnico sobre riscos que os agrotóxicos podem
ram o ensino fundamental, e 4, o ensino médio. causar por meio de contato direto ou indireto16,
Sobre configuração familiar, 13 mulheres desenvolve, no entanto, habilidades que a faz
têm companheiro, e 1 é separada. Metade identificar a ocorrência de sintomas clássicos
das mulheres possuem 1 filho/a, 5 possuem 2 de intoxicação aguda leve ou moderada:
filhos/as, e 2 possuem 3 filhos/as.
A renda familiar mensal estimada variou Tem uns venenos que dá uma dor de cabeça vio-
de 0,8 a 4,2 salários mínimos, incluindo as lenta! Sempre acontece! Quando vai passar veneno
aposentadorias do casal, sendo que três en- que dá essas ‘crise’ de dor de cabeça, eu nem vou
trevistadas usufruem da aposentadoria rural, pra roça! (Ana Clara).
na condição de seguradas especiais, conforme
limite mínimo de idade de 55 anos e 180 meses Da mesma forma, pelos mesmos métodos
de comprovação de trabalho em regime de não técnicos, mas por intermédio da vivência e
agricultura familiar, estabelecidos pelas Leis sobrevivência no meio rural periférico, é capaz
nº 8.212 e nº 8.213, ambas de 24 de julho de de reconhecer as interações dos agrotóxicos
199132. Diversa a esta condição, uma família com outras substâncias como tabaco e álcool:
possui renda familiar mensal estimada de 5,5
salários mínimos, justificada pela aposenta- Tem um veneno que é passado na uva, e não pode
doria por invalidez do esposo. Três mulheres fumar! E não pode beber!... Quase que fui parar na
não se sentiram confortáveis em informar a Santa Casa!... Bebi e fumei! Vomitei, fiquei com
renda familiar. tontura, ‘bambeou as perna’! (Roberta).
Em relação à posse da terra, cinco são ar-
rendatárias e nove são proprietárias/copro- Diante da falta de informação sobre o tempo
prietárias das propriedades onde trabalham. de reentrada nas áreas pulverizadas, as agri-
Os conteúdos das falas das 14 mulheres cultoras decidem por conta própria quando
entrevistadas organizados e analisados pos- voltar ao local de trabalho. São gestoras do
sibilitaram identificação das duas categorias seu próprio tempo e risco, obrigadas a des-
exploradas e analisadas a seguir. considerar características nocivas inerentes
aos produtos formulados e comercializados
Exposição e intoxicação por no Brasil, com suas especificidades e tempos
agrotóxico na rotina de trabalho da variáveis de reentrada de cada um desses pro-
mulher lavradora dutos utilizados. “Não chego perto da ‘pranta’
[no dia em que ocorre a pulverização]! Espero
Dentro das estruturas familiares camponesas, um dia, dois, pra depois ir!” (Ana Clara).
a mulher desempenha, não a exceção à regra, A maior ou menor exposição aos agrotó-
atributos que historicamente foram desig- xicos, também, é definida pelas relações de
nados à figura masculina, na sua formação trabalho e de propriedade. Se a mulher que
ideológica masculino-imperialista. As práti- está inserida na propriedade de agricultura
cas do capinar, da colheita, da manipulação familiar de subsistência, sem conhecimento

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As mulheres lavradoras e os agrotóxicos no cotidiano da agricultura familiar 95

técnico, gere seu tempo e seu risco; a mulher passa!!! Eu acho que esse negócio... só a época da
diarista periférica, desprovida de qualquer uva mesmo! Porque esse ano também deu! Deu
direito a terra ou contrato de trabalho, não algumas ‘coisa’ minha mão, que ficava... Mas antes
gere o seu tempo de reentrada, tampouco era muito ‘mai’ pior, sabe?! E a turma falava que
pode se preocupar com seu risco à exposição era de veneno! (Mônica).
à agrotóxicos.
A exposição a agrotóxicos em um curto
Para outras pessoas, pra outras mulheres, no caso, período (menor que 24 horas) leva a efeitos
tem que encarar, né?! Encarar porque trabalha agudos leves – muitas vezes autolimitados, não
pra patrão, aí tem que aguentar [o mal-estar e diagnosticados e subnotificados, como citados
contato com agrotóxico]. (Ana Clara). pela entrevistada, mas que não se isentam de
apresentar efeitos agudos moderados e graves,
Durante a rotina de trabalho do casal, a podendo levar a morte, dependendo das quan-
esposa vivencia os efeitos clássicos de intoxi- tidades e tempo de contato. Além disso, ex-
cação aguda por agrotóxicos, e os reconhece. posições contínuas direta e/ou indireta, em
No entanto, quando dialoga com o esposo, que quantidades menores, em períodos de dias ou
nega a relação dos sintomas com intoxicação, algumas semanas, dependendo da quantidade
é possível inferir que cabe à mulher maior de agrotóxico absorvido, resultam em efeitos
cuidado e preocupação com seu bem-estar tóxicos subagudos33,34, que nem sempre são
ante os percalços impostos pela rotina da roça. relacionados pelas trabalhadoras com a exposi-
Ou seja, desprovidas de acesso a conhecimen- ção a agrotóxicos nas atividades na agricultura.
tos técnicos, refletem e concluem o óbvio, Outra forma de intoxicação por agrotóxicos,
como relatado: e que é preocupante, devido ao seu difícil reco-
nhecimento clínico por parte dos profissionais
Teve um dia que foi passado ‘uns produto’ lá e eu da saúde, e pela população exposta, são as
voltei pra casa com dor de cabeça! Meio com enjoo. intoxicações subcrônica e crônica. Elas estão
[...] Até falei pro meu marido, falei: ‘Ixe, a minha relacionadas com exposições aos agrotóxicos
cabeça tá meia zonza, estranha!’ Daí eu falei: ‘Será por longos períodos, em meses (subcrônica) e
que foi não o veneno?’ Daí ele falou assim: ‘Mai anos a décadas (crônica), e em baixas concen-
não... Acho que não foi!’. Esse ‘acha’, né, mas... trações34. Caracteristicamente, manifestam-se
pode ser que sim, né?! (Lorena). tardiamente, em meses ou anos, por meio do
acarretamento de danos fisiopatológicos so-
Ademais, no contato cotidiano dessas tra- matórios e/ou irreversíveis ao corpo humano,
balhadoras com agrotóxicos, possivelmen- com quadros clínicos inespecíficos, e número
te desde o útero da mãe, constado desde a adicional de doenças e mortes nessa popula-
infância, é que se pode caracterizar a falsa ção33. Consequentemente, é esperado entre
concepção de inocuidade dessas substâncias, as trabalhadoras, trabalhadores, profissionais
quando a intoxicação não ocorre por meio de de diversas áreas, incluindo os da saúde, e na
sintomas clássicos de intoxicação aguda. população geral relatos de desconhecimento
de episódios de intoxicação, como este: “Não.
Porque desde criança trabalhei com veneno, nunca Nunca passei [mal com o contato com agrotó-
tive ‘pobrema’! Não! Não. A única coisa que eu xico]” (Paula).
tinha muito uma época, agora tá melhor, é ‘uns Mesmo trabalhando há mais de uma década
negócio’ que ‘apareceu’ na minha mão, sabe?! no cultivo de uvas, a entrevistada refere nunca
Falavam que era do veneno, né, que tinha dado...! ter sofrido nenhum episódio de intoxicação
Mas era veneno, produto de limpeza, tudo aquela por agrotóxicos, ou qualquer sintoma que ela
coisa dava! Agora... tem um período que passa uva, relacione ao contato com estas substâncias.

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96 Carvalho AO, Alonzo HGA

É fato que a desinformação quanto ao uso de O agrotóxico, ele tá acabando com o ser humano
agrotóxicos e suas consequências à saúde da po- por dentro e por fora! É um fantasma invisível! Todo
pulação trabalhadora e consumidora, aos danos mundo sabe, ‘mai’ ninguém quer ver! Lentamente,
ao meio ambiente, é uma constante. Porém, na ele [o agrotóxico] ‘tá’ acabando de uma certa
ótica do gênero, o acesso das mulheres a serviços maneira com o ser humano... (Roberta).
de extensão agrícola, como informação técnica,
capacitações e palestras acerca dos produtos Nesse discurso, quando se possibilita
que utilizam nos seus ambientes de trabalho, é o espaço de fala, é possível identificar o
notadamente mais limitado quando compara- conhecimento empírico que essas mulhe-
do ao dos homens. Por definição (definida aos res trazem na sua bagagem de vida. Foram
moldes do patriarcalismo), essas informações desprovidas do direito ao conhecimento
são tipicamente voltadas para os agricultores do acadêmico, no entanto, adquirem conhe-
sexo masculino, por serem assuntos que não são cimentos advindos da sua vivência, ante
importantes às mulheres do campo. Dessa forma, as adversidades, que o mundo capitalista
a mensagem aprendida é repassada pelos homens obstrui. São subalternas que contradizem
às mulheres durante a rotina de trabalho. Porém, o discurso do agronegócio em relação à
na prática, não é o que acontece35. inocuidade dos agrotóxicos.
Nesse sentido, para descolonizar essa
forma de conhecimento merecedora do sexo Antigamente você não precisava colocar nem
masculino, é necessário se ater à identidade adubo na terra pra produzir! Hoje se põe tone-
social desses atores (homem x mulher), não lada! Antigamente você usava lá... cinco mL de
somente para evidenciar como o projeto de veneno pra produzir! Hoje você usa cinco ‘litro’!
colonização tem criado essas identidades, mas Antigamente, você nem ouvia falar [de agrotó-
para mostrar como certas identidades têm sido xico]! (Roberta).
historicamente silenciadas e desautorizadas
ante o fortalecimento de outras36. O incômodo com o modelo de produção
tradicional é constante entre as camponesas.
Definição de agrotóxicos a partir da Inevitavelmente, a prática do agronegócio
voz feminina adentra as propriedades familiares, pautada
na produção dependente de agrotóxicos, e é
Na ótica do gênero, em um recorte de binaris- relatada por elas, na rotina de trabalho, de
mo heteronormativo colonialista, pautando no maneira não naturalizada: “Porque a gente
raciocínio que traz Michel Foucault37 quando que trabalha na agricultura, você tem noção do
analisa as relações do Poder-Corpo, ao ativar quanto veneno usa! [...] A gente viver na roça
os saberes locais desqualificados e não legiti- aqui... A gente vive contaminado!” (Roberta).
mados, que ecoam nas vozes dessas mulheres, Nesse sentido, as camponesas demons-
é enfrentar uma instância teórica unitária, tram a insatisfação com os seus meios de
de corpo masculino, e que pretende depurar produção a todo instante. Agrotóxico para
esses saberes, hierarquizá-los, ordená-los em elas é sinônimo de veneno:
nome de um conhecimento verdadeiro, em
nome de direitos de uma ‘ciência detida por Tudo é... Pode colocar o apelido que for, o sinônimo
alguns’. Ou seja, quando ecoam outras vozes, que for, você puxou o rótulo: Veneno! (Roberta).
em uma forma de contradiscurso do modelo
hegemônico, elas ecoam o perigo de revide Agora tudo que ‘cê’ come tem veneno! E a gente
das forças das massas subalternas. Outrossim, se envenena... [risos] tudo tem veneno! Veneno
essas mulheres subalternizadas têm o que demais! (Ana Clara).
dizer. Basta ouvi-las:

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As mulheres lavradoras e os agrotóxicos no cotidiano da agricultura familiar 97

Nas palavras de Foucault37(279): “O poder Pois então, é por meio da análise desse
não para de nos interrogar, de indagar, regis- contexto, não simplesmente a partir de ex-
trar e institucionalizar a busca da verdade, periências individuais dessas camponesas,
profissionaliza-a e recompensa-a”. Todavia, mas, sim, das condições sociais que permi-
segundo esse mesmo autor, não há possibili- tem ou não que esses grupos de mulheres
dade de exercício de poder sem certa econo- acessem lugares de cidadania, é que se faz
mia dos discursos de verdade. Ademais, por necessário entender como o lugar social
essas ‘verdades profissionalizadas’, motor do ocupado por certos grupos (neste caso, a
agronegócio, surgem indagações por meio dos pesquisadora permite identificá-los como
discursos das camponesas: ‘Agropatriarcado’) restringe oportunida-
des a outros (mulheres da agricultura de
Porque assim, na ignorância do ‘hómi’ de querer periferia)36,38,39.
‘trabaiá...’ ele não tem tempo de pegar um papel e
ler! Aí, um dia, o C. [esposo] pegou e começou...
‘pá-pápá-pá-pá...’ O C. falou: Ó onde tá a desordem Considerações finais
do Brasil... é aqui, ó, no mata-mato! [...] Que ‘nói’ tá
no dia a dia, mexe ‘cá’ terra! A gente sente, minha Aos moldes do projeto capitalista, é inviável
‘fia’ [...] Ó, um lugar que cê joga mata-mato, a possibilitar e estimular a reflexão das mu-
minhoca morre! Ali não tem ‘mai’ nada! (Érica). lheres lavradoras sobre sua condição de não
existência. Combater e refletir o quão grande
A ideia do uso de agrotóxicos como o agente permanece o obstáculo imposto pela dualidade
de sucesso de produção, por meio dos discursos oprimido x opressor, no cenário da agricultura
das agricultoras, é algo que elas questionam. familiar no agravante de ser mulher, é redese-
O interesse em ler um rótulo de agrotóxico e nhar o caminho alheio às regras masculino-im-
relacioná-lo aos efeitos indesejáveis que essas perialistas historicamente reconhecidas como
substâncias possam causar no ser humano e no verdades. Freire40(54) relata com sobriedade:
ambiente mostram que a cultura da agricultura
familiar pautada no cuidado com a terra e com É que o opressor sabe muito bem que esta
o meio ambiente, além da preocupação com ‘inserção crítica’ das massas oprimidas, na
a qualidade de alimento servido à população, realidade opressora, em nada pode a ele inte-
ainda vive no ambiente dessas camponesas, ressar. O que lhe interessa, pelo contrário, é a
apesar da marginalização de classe. permanência delas em seu estado de ‘imersão’
em que, de modo geral, se encontram impo-
Eu não quero isso pra mim! Eu falei pra ele [o tentes em face da realidade opressora, como
esposo]: Chega [de usar agrotóxico]! Já deu!!! ‘situação limite’ que lhes parece intransponível.
[...] Nem que a produção da gente ‘seje’ menos,
mas ponha coisa natural! (Érica). A soberania do agropatriarcado sustenta o
rótulo das mulheres como cuidadoras do lar e
Perpassa por esses discursos a necessidade genitoras. Obstrui a grandeza da mulher mul-
de pensar em direito à existência digna dessas titrabalhadora, responsável por orquestrar a
mulheres, o direito a ouvir suas vozes silencia- rotina do núcleo familiar, em sintonia com a
das. Além disso, quando se fala em direito de sua força motriz consumida na atividade de
existir e de ser ouvida, fala-se de locus social, agricultura familiar. No mais, elas oferecem seus
de como esse lugar imposto pelo colonialismo corpos de forma acrítica aos efeitos danosos dos
patriarcal dificulta a possibilidade de transcen- agrotóxicos, justificada pelo projeto patriarcal e
dência desses sujeitos femininos. A questão a ser capitalista, que as mantém inaptas a acessarem
formulada é: por que ainda são silenciadas?36 informações ‘masculinas’.

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98 Carvalho AO, Alonzo HGA

Em contrapartida, apesar do conhecimento como construção de Grupos Sujeitos, a


técnico subtraído dos seus pertences, quando exemplo da definição de Campos41, como
se possibilita o lugar de fala a essas mulheres, ‘agrupamentos aptos a lidar com tais reali-
são combativas ao identificar os agrotóxicos dades de forma mais livre, voltados para a
como venenos, que estão contaminando a si, construção da liberdade, do novo e de modos
os alimentos e o mundo no qual habitam seres de convivência mais justos’. Nessa perspecti-
vivos; quando reconhecem os efeitos danosos, va, é possível potencializar as competências
relatam sintomas de intoxicação e, também, identificadas nessas mulheres, sobretudo
levantam questões sobre os efeitos subcrônicos o poder de resiliência, preservando suas
e crônicos decorrentes da exposição em longo competências e identidades perante tantos
prazo, para o ser humano e o ambiente. fatores estressores vivenciados no contexto
São Miguel Arcanjo, palco desta pesquisa, da margem feminilizada da agricultura42,
não diferiu do contexto de realidade das mu- os quais contribuem para a manutenção da
lheres lavradoras que ocupam os territórios miséria econômica, intelectual e sanitária
rurais no mundo. Retrata claramente o cotidia- das mulheres lavradoras.
no de vida dessas mulheres, e nos possibilitou
a produção de hipóteses e incômodos acerca
desse cenário, além de serem sementes para Colaboradores
novos estudos, tão necessários.
Finalmente, no âmbito local, a partir da Carvalho AO (0000-0002-7419-8318)* e
análise e da reflexão do material obtido nesta Alonzo HGA (0000-0002-3366-0983)* con-
pesquisa, é viável proporcionar espaços de tribuíram igualmente na elaboração do ma-
encontros permanentes a essas mulheres, nuscrito. s

*Orcid (Open Researcher


and Contributor ID).

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As mulheres lavradoras e os agrotóxicos no cotidiano da agricultura familiar 101

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102 ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE

Uso de agrotóxicos e saúde de trabalhadores


rurais em municípios de Pernambuco
Use of pesticides and the health of rural workers in municipalities in
Pernambuco

Glaucia da Silva Pessoa1, Pedro Costa Cavalcanti de Albuquerque2, Geiziane Silva Cotrim3, Aline
do Monte Gurgel2, Paulo Victor Rodrigues de Azevedo Lira2, Idê Gomes Dantas Gurgel2, Adriana
Guerra Campos4

DOI: 10.1590/0103-11042022E207

RESUMO Desde 2013, Pernambuco desenvolve o Plano de Vigilância em Saúde de Populações Expostas
aos Agrotóxicos, cujas estratégias incluem o cadastro de trabalhadores rurais aplicadores de agrotóxicos,
realizado pelas Equipes de Saúde da Família. Com o objetivo de descrever as características do uso de
agrotóxicos, o perfil dos trabalhadores atuantes com essa prática e as condições de saúde que os constitui
foram analisados, no período de janeiro de 2015 a agosto de 2019. Realizou-se estudo transversal, descri-
tivo, em que as variáveis selecionadas foram organizadas em quatro grupos: 1) Características sociode-
mográficas; 2) Condições de saúde; 3) Características do uso do agrotóxico; e 4) Princípios ativos mais
utilizados e suas categorias de análise. Os resultados evidenciam que, entre os aplicadores de agrotóxicos,
encontram-se pessoas menores de idade, idosas, analfabetas, sem treinamento e sem Equipamento de
Proteção Individual; a utilização de agrotóxicos proibidos e classificados como extremamente tóxicos; e
a comercialização de agrotóxicos sem o controle adequado. Além de apontar caminhos mediante a análise
do cenário apresentado, esta pesquisa indica a urgência de articulação intersetorial para a efetividade da
promoção e proteção da saúde dessa população.

PALAVRAS-CHAVE Agrotóxicos. Perfil de saúde. Saúde da população rural. Saúde do trabalhador.


Vigilância em saúde do trabalhador.

ABSTRACT Since 2013, Pernambuco has been developing the Health Surveillance Plan for Populations
Exposed to Pesticides, whose strategies include the registration of rural workers who apply pesticides, carried
out by the Family Health Care Teams. In order to describe the characteristics of the use of pesticides, the
profile of workers subjected to this practice and their health conditions were analysed from January 2015
1 Secretaria
de Saúde do to August 2019. A cross-sectional descriptive study was carried out, in which the selected variables were
Recife (SSR) – Recife (PE),
Brasil. organized into four groups: 1) Sociodemographic characteristics; 2) Health conditions; 3) Characteristics
glauciadspessoa@gmail.com of pesticide use; and 4) Most used active ingredients and their categories of analysis. The results show that,
2 Fundação Oswaldo Cruz
among the pesticide applicators, there are underage, elderly, illiterate people, without training and Personal
(Fiocruz), Instituto Aggeu Protective Equipment; the use of prohibited pesticides classified as extremely toxic; and the commercializa-
Magalhães (IAM) – Recife tion of pesticides without adequate control. In addition to pointing out paths through the analysis of this
(PE), Brasil. scenario, this research indicates the urgency of intersectoral articulation for the effectiveness of the health
3 Universidade Federal promotion and protection to this population.
de Pernambuco (UFPE) –
Recife (PE), Brasil. KEYWORDS Agrochemicals. Health Profile. Rural health. Occupational health. Surveillance of the workers
4 Secretaria
de Saúde do health.
Estado de Pernambuco
(SES/PE) - Recife (PE),
Brasil.

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Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 102-121, Jun 2022 meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado.
Uso de agrotóxicos e saúde de trabalhadores rurais em municípios de Pernambuco 103

Introdução prevenção, promoção, vigilância e atenção


integral à saúde, visando reduzir, controlar ou
Agrotóxicos são agentes biocidas com efeitos eliminar a vulnerabilidade em decorrência do
sobre a saúde humana e do ambiente 1-3, uso desses venenos9.
podendo ser utilizados em diversos ambientes, Para monitorar a saúde e enfrentar os pro-
como florestas, ambientes urbanos, industriais blemas relacionados com o uso de agrotóxi-
e corpos hídricos. cos no estado, foi elaborado pela Secretaria
Nacionalmente, o uso de agrotóxicos en- Estadual de Saúde, em 2013, o ‘Plano de
contra terreno fértil devido à estrutura agrária Vigilância em Saúde de Populações Expostas
concentrada nas monoculturas de exporta- aos Agrotóxicos no Estado de Pernambuco’13.
ções, que, necessariamente, exigem a produ- Para construção e condução do Plano, foi es-
ção em larga escala4,5. Entre os anos 2000 e truturado um Grupo Condutor (GC)14, com
2010, houve aumento de 190% no merca do de representantes de diferentes setores, como en-
agrotóxicos, colocando o Brasil em primeiro tidades de classe, academia, representantes do
lugar do ‘ranking’ mundial no consumo desses controle social e da gestão do governo, com as
produtos6. Essa posição se mantém nos últimos Secretarias de Saúde, Educação e Agricultura;
anos, sendo o País responsável por 18% do total Instituições de Pesquisa; Conselho Estadual
de agrotóxicos utilizados no mundo em 20177. de Saúde; Federação dos Trabalhadores Rurais
Há discussão, também, sobre a influência de Agricultores e Agricultoras Familiares do
as novas regras de classificação dos agrotóxi- Estado de Pernambuco (Fetape); Fundação
cos desenvolvidas pela Agência Nacional de Oswaldo Cruz (Fiocruz), entre outros, para
Vigilância Sanitária (Anvisa) estarem estimu- definir ações intersetoriais que contemplassem
lando o aumento do consumo8. uma abordagem efetiva e articulada.
O uso de agrotóxicos apresenta graves con- Para execução do Plano, houve repasse
sequências para o ambiente e para a saúde, financeiro aos fundos municipais de saúde
particularmente para a saúde de trabalhadores de 15 municípios prioritários, selecionados
rurais, sendo esses últimos mais afetados nas segundo critérios relacionados com o maior
regiões em que a economia depende da pro- uso de agrotóxicos: maior área plantada de
dução agrícola baseada no uso de venenos. cana-de-açúcar (5 municípios da região da
Em Pernambuco, a agricultura correspondeu, Zona da Mata); maior área plantada de frutas
em 2018, a 4,9% do Produto Interno Bruto do polo irrigado do Vale do São Francisco (5
(PIB)10, com cerca de 8,3% da população municípios); e quantidade de amostras insa-
ocupada nesse setor no mesmo ano11. No que tisfatórias de alimentos contendo resíduos de
se refere ao uso de agrotóxicos no estado, o agrotóxicos monitoradas pelo Programa de
Relatório ‘Vigilância em Saúde de Populações Análise de Resíduos de Agrotóxicos da Agência
Expostas a Agrotóxicos em Pernambuco: in- Nacional de Vigilância Sanitária (Para-Anvisa)
tersetorialidade e ações no Sistema Único de (5 municípios)13,15.
Saúde’ evidenciou que houve um aumento de Dados do Sistema de Informação de Agravos
46% no volume comercializado entre 2005 e de Notificação (Sinan) referentes à intoxica-
2017, mesmo com a redução de 30% na área ção exógena por agrotóxico em Pernambuco
plantada no mesmo período12. identificaram casos de intoxicações crônicas
Em 2012, o Ministério da Saúde desenvolveu e, principalmente, agudas na população, mas
a Vigilância em Saúde de Populações Expostas a grande incompletude dos dados16 dificulta a
a Agrotóxicos (VSPEA) e disponibilizou in- elaboração de ações e intervenções mediadas
centivo financeiro para desenvolvimento por agentes públicos. Assim, o Plano buscou
de ações nas Unidades da Federação. Essa implementar mecanismos que auxiliassem
iniciativa buscou desenvolver medidas de a melhoria na qualidade da informação e

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 102-121, Jun 2022


104 Pessoa GS, Albuquerque PCC, Cotrim GS, Gurgel AM, Lira PVRA, Gurgel IGD, Campos AG

o cuidado da saúde. Foi desenvolvida uma rurais aplicadores de agrotóxicos nas equipes
ficha denominada ‘Cadastro de Trabalhador(a) da ESF dos municípios13. Até agosto de 2019,
Rural Exposto Diretamente a Agrotóxicos’, haviam sido cadastrados trabalhadores dos
que compreende dados de identificação do(a) municípios de Barra de Guabiraba; Bezerros;
trabalhador(a); de residência; caracterização do Cabrobó; Camocim de São Félix; Gravatá; Lagoa
trabalho e da aplicação; morbidade referida e Grande e Vitória de Santo Antão.
acesso ao agrotóxico. A coleta de informações Foram incluídos todos os aplicadores de
ficou a cargo das equipes da Estratégia Saúde agrotóxicos cadastrados pelas equipes da ESF
da Família (ESF) dos municípios participantes, dos municípios. Dos 776 aplicadores cadas-
sendo disponibilizado o registro individual para trados, 233 (30,03%) residem em Gravatá; 73
as equipes de saúde para facilitar a identificação (9,41%) em Barra de Guabiraba; 68 (8,76%) em
de possíveis casos suspeitos de intoxicação13. Bezerros; e 54 (6,96%) em Camocim de São
Diante do exposto, este estudo objetiva des- Félix, todos na Região do Agreste; 90 (11,6%)
crever as características de uso de agrotóxicos, em Vitória de Santo Antão, localizada na região
o perfil sociodemográfico e as condições de da Zona da Mata; 214 (27,6%) em Cabrobó e 35
saúde dos trabalhadores rurais que aplicam (4,51%) em Lagoa Grande, ambas na Região do
agrotóxicos nos municípios prioritários do Vale do Rio São Francisco; e 9 cadastros (1,4%)
estado de Pernambuco. realizados em outros municípios.
Os dados utilizados constam em banco de
dados da Secretaria Estadual de Saúde de
Metodologia Pernambuco e foram disponibilizados me-
diante Carta de Anuência. Do total de variáveis
Realizou-se um estudo transversal retrospec- dispostas na ficha (67), foram selecionadas 22,
tivo, com base nos dados dos aplicadores de as quais foram divididas em quatro grupos de
agrotóxicos cadastrados nos municípios prio- acordo com o quadro 1.
ritários do estado de Pernambuco, coletados As variáveis selecionadas permitiram
no período de janeiro de 2015 a agosto de 2019. identificar características sociodemográfi-
Para implantar a estratégia, a Secretaria cas, condições de saúde dos trabalhadores
Estadual de Saúde de Pernambuco realizou trei- rurais, características de uso de agrotóxicos
namento para cadastramento dos trabalhadores e princípios ativos mais utilizados.

Quadro 1. Relação de categorias das variáveis e grupo de variáveis selecionadas da ficha dos aplicadores de agrotóxicos
cadastrados em Pernambuco

Categoria das variáveis Grupo de variáveis selecionadas da ficha de cadastro


Características sociodemográficas Sexo
Faixa etária
Raça/cor
Escolaridade
Condição do trabalhador em relação às terras
Situação no mercado de trabalho
Filiação sindical
Condições de saúde Problemas de saúde frequentes relatados
Problemas de saúde na família
Relato de intoxicação por agrotóxico

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Uso de agrotóxicos e saúde de trabalhadores rurais em municípios de Pernambuco 105

Quadro 1. (cont.)

Categoria das variáveis Grupo de variáveis selecionadas da ficha de cadastro


Características do uso de agrotóxicos Tempo de aplicação
Frequência de utilização
Armazenamento
Treinamento sobre riscos de acidentes com agrotóxicos
Orientação técnica
Equipamento utilização para aplicação
Uso de equipamento de proteção individual
Lavagem de roupa após a aplicação
Local de compra do agrotóxico
Apresentação de receituário
Principais culturas
Princípios ativos mais utilizados e suas catego- Princípios ativos mais utilizados
rias de análise Grupo químico
Cultura indicada
Classificação de risco anterior
Classificação de risco atual
Fonte: Elaboração própria.

As informações das fichas foram consoli- ficha. Faz-se necessário avaliar as etapas de
dadas e tabuladas no programa Excel 2010®. construção, treinamento e aplicabilidade da
Os dados foram apresentados e analisados ficha, a fim de aprimorá-las para uma melhor
utilizando estatística descritiva. Foram elabo- utilização deste instrumento.
radas tabelas para facilitar a análise de cada
variável e, posteriormente, as informações Características sociodemográficas
foram discutidas e comparadas com legislações dos aplicadores de agrotóxicos
e publicações científicas tratando da temática.
Esta pesquisa foi apreciada e aprovada A maioria dos trabalhadores rurais é do sexo
por Comitê de Ética em Pesquisa em Seres masculino (97,4%) e encontra-se na faixa
Humanos da Faculdade Pernambucana de etária dos economicamente ativos (88,4%),
Saúde CEP-FPS. CAAE: 10301719.1.0000.5569. entre 18 e 59 anos, com maior concentração
Parecer nº 3.316.754. na idade entre 30 e 39 anos (26,8%). Destes,
9,9% tinham 60 anos ou mais. No total, 65% dos
trabalhadores se declaram negros (56% pardos
Resultados e 9% pretos), 27% como brancos. Segundo a
escolaridade, a maioria (30,2%) cursou até a
Os resultados foram sistematizados segundo 4ª série, seguida de 10,8% entre a 5ª a 8ª séries
categorias de análise relacionadas com as ca- incompletas, 8,1% de analfabetos. A condição
racterísticas sociodemográficas, condições de de proprietário das terras de cultivo é decla-
saúde e características do uso. rada em 30,8% das fichas, enquanto 20,1%
Observou-se uma grande quantidade de que possuem relação de parceria no cultivo
campos não preenchidos (em branco/igno- da terra. Conforme a inserção no mercado de
rado) em vários itens da ficha de cadastro. trabalho, 67,5% não possuem nenhum vínculo
Diversos fatores podem ter contribuído para empregatício, sendo a maioria autônoma
esse resultado, como, por exemplo, dificulda- (48,5%). Sobre a filiação sindical, 58,9% não
de de compreensão e de preenchimento da estão filiados (tabela 1).

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106 Pessoa GS, Albuquerque PCC, Cotrim GS, Gurgel AM, Lira PVRA, Gurgel IGD, Campos AG

Tabela 1. Características sociodemográficas dos aplicadores de agrotóxicos cadastrados em Pernambuco

Cadastro de Aplicadores
Variáveis n=776 %
Sexo
Masculino 756 97,4%
Feminino 17 2,2%
Ignorado/Branco 3 0,4%
Faixa etária
Menor de 15 anos 1 0,1%
15-17 anos 7 0,9%
18-29 anos 160 20,6%
30-39 anos 208 26,8%
40-49 anos 187 24,1%
50-59 anos 131 16,9%
60 anos ou mais 77 9,9%
Ignorado/Branco 5 0,6%
Raça/cor
Parda 434 56,0%
Branca 211 27,0%
Preta 70 9,0%
Amarelo 3 1,0%
Indígena 2 0,0%
Ignorado/Branco 56 7,0%
Escolaridade
Analfabeto 63 8,1%
1ª a 4ª séries incompletas 234 30,2%
4ª série completa 51 6,6%
5ª a 8ª séries incompletas 84 10,8%
Ensino Fundamental completo 53 6,8%
Ensino Médio incompleto 18 2,3%
Ensino Médio completo 61 7,9%
Educação Superior incompleta 1 0,1%
Educação Superior completa 2 0,3%
Ignorado/Branco 209 26,9%
Condição do trabalhador em relação às terras
Proprietário 239 30,8%
Parceiro 156 20,1%
Arrendatário 52 6,7%
Produtor sem área 49 6,3%
Assentado sem titulação definida 47 6,1%
Ocupante 21 2,7%
Ignorado/Branco 212 27,3%

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Uso de agrotóxicos e saúde de trabalhadores rurais em municípios de Pernambuco 107

Tabela 1. (cont.)

Cadastro de Aplicadores
Variáveis n=776 %
Situação no Mercado de Trabalho
Autônomo 376 48,5%
Trabalhador Avulso 69 8,9%
Trabalho temporário 44 5,7%
Empregado não registrado 34 4,4%
Desempregado 33 4,3%
Aposentado 28 3,6%
Outros 18 2,3%
Empregados registrados 14 1,8%
Cooperativado 2 0,3%
Empregador 2 0,3%
Ignorado/Branco 156 20,1%
Filiação Sindical
Sim 149 19,2%
Não 457 58,9%
Não sabe/lembra 9 1,2%
Ignorado/Branco 161 20,7%
Fonte: Elaboração própria.

Condições de saúde dos aplicadores insônia 12,7% e infecções de garganta frequentes


de agrotóxicos (6,7%). No âmbito familiar, os problemas mais
frequentemente reportados foram câncer (18%),
De acordo com as condições de saúde, a hi- hipertensão (16%) e depressão (14%). Sobre a
pertensão foi citada como o maior problema ocorrência de intoxicações, 21,1% relataram já
de saúde (37,5%) nos aplicadores, seguida por ter sofrido alguma intoxicação (tabela 2).

Tabela 2. Condições de saúde dos aplicadores de agrotóxicos cadastrados em Pernambuco

Cadastro de Aplicadores
Variáveis n=776 %
Problemas de saúde frequentes relatados*
Hipertensão 112 37,5%
Insônia 38 12,7%
Infecções de garganta frequentes 20 6,7%
Alergias frequentes 18 6,0%
Astenia/Cansaço frequente 17 5,7%
Outros 94 31,4%

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108 Pessoa GS, Albuquerque PCC, Cotrim GS, Gurgel AM, Lira PVRA, Gurgel IGD, Campos AG

Tabela 2. (cont.)

Cadastro de Aplicadores
Variáveis n=776 %
Problemas de saúde na família*
Câncer 73 18%
Hipertensão 65 16%
Depressão 59 14%
Infecções de garganta frequentes 32 8%
Aborto 28 7%
Outros 155 35%
Relato de Intoxicação por agrotóxico
Sim 164 21,1%
Não 497 64,0%
Ignorado/Branco 115 14,8%

Fonte: Elaboração própria.


* Variável permite assinalar mais de uma opção, justificando a diferença na quantidade total, n=299 e 412, respectivamente.

Características do uso de agrotóxicos 63,8% não receberam ou não se lembram de


por aplicadores de agrotóxicos ter recebido orientação técnica de agrônomos
vinculados ao acesso ao produto.
Entre as fichas cadastradas, 15,9% dos traba- O pulverizador costal é o equipamento mais
lhadores afirmam aplicar agrotóxicos entre utilizado pelos aplicadores (53,2%), seguido
6 e 10 anos, e 21,8% informaram ter aplicado pelo pulverizador estacionário (13,3%). Dos
agrotóxicos por 16 anos ou mais. Quanto à trabalhadores, 55,4% alegam não utilizar
frequência de utilização, 53,6% aplicam sema- nenhum tipo de Equipamento de Proteção
nalmente, e 21,3% aplicam uma vez por mês. Individual (EPI). Quanto à lavagem da roupa
Segundo as condições de armazenamento, após a aplicação, 48,1% utilizam locais não
21,9% que armazenam em local destinado a específicos para este fim.
outras finalidades e 11,7% que utilizam um Com relação à compra dos produtos, 84,4%
cômodo da própria casa. informaram ter adquirido em casas agropecu-
Quanto à participação em treinamentos árias, enquanto 4,4% adquiriram diretamente
sobre os riscos de acidentes com agrotóxicos, com o agrônomo. Contudo, 65,7% deles efe-
69,3% alegam não ter participado de formações tivaram a compra sem apresentar receituário
com órgãos regulamentadores e fiscalizadores, agronômico. As principais culturas que recebe-
enquanto 9,4% afirmam ter acesso às infor- ram pulverização de agrotóxicos foram: milho
mações do treinamento informalmente. Já (19,1%); feijão (17,3%) e flores (8%) (tabela 3).

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Uso de agrotóxicos e saúde de trabalhadores rurais em municípios de Pernambuco 109

Tabela 3. Características do uso de agrotóxicos por aplicadores de agrotóxicos cadastrados em Pernambuco

Cadastro de Aplicadores
Variáveis n=776 %
Tempo de Aplicação
< 1 ano 7 0,9%
1-5 anos 94 12,1%
6-10 anos 123 15,9%
11-15 anos 54 7,0%
16-20 anos 71 9,1%
21-30 anos 65 8,4%
31-40 anos 16 2,1%
> 40 anos 17 2,2%
Ignorado/Branco 328 42,3%
Frequência de Utilização

Diariamente 26 3,4%
Semanal 416 53,6%
Mensalmente 165 21,3%
Outro 80 10,3%
Ignorado/Branco 89 11,5%
Armazenamento
Local de trabalho – Sala exclusiva para agrotóxico 312 40,2%
Local de trabalho – Sala com várias finalidades 170 21,9%
Própria residência (cômodo da casa) 91 11,7%
Outro 124 16,0%
Ignorado/Branco 79 10,2%
Treinamento sobre riscos de acidentes com agrotóxicos
Sim, informalmente 73 9,4%
Sim, formalmente com menos de 20 horas de duração 30 3,9%
Sim, formalmente duração de pelo menos de 20 horas 10 1,3%
Não 538 69,3%
Ignorado/Branco 125 16,1%
Orientação técnica
Sim 182 23,5%
Não/não lembra 495 63,8%
Ignorado/Branco 99 12,8%
Equipamento utilizado para aplicação
Pulverizador costal 413 53,2%
Pulverizador estacionário 103 13,3%
Equipamento de tração mecânica/animal 43 5,5%
Por aeronave 2 0,3%
Outro equipamento 18 2,3%
Ignorado/Branco 197 25,4%

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110 Pessoa GS, Albuquerque PCC, Cotrim GS, Gurgel AM, Lira PVRA, Gurgel IGD, Campos AG

Tabela 3. (cont.)

Cadastro de Aplicadores
Variáveis n=776 %
Uso de Equipamento de Proteção Individual (EPI)
Sempre 184 23,7%
Não utiliza 430 55,4%
Esporadicamente 96 12,4%
Ignorado/Branco 66 8,5%
Lavagem de roupa após aplicação
Em local exclusivo para lavagem de roupas contaminadas 218 28,1%
Em local com outras finalidades 373 48,1%
Não sabe 56 7,2%
Ignorado/Branco 129 16,6%
Local de compra do agrotóxico
Casa Agropecuária 655 84,4%
Agrônomo 34 4,4%
Vendedor entrega o produto na propriedade 5 0,6%
Não compra diretamente 10 1,3%
Outro 19 2,4%
Ignorado/Branco 53 6,8%
Apresentação de receituário
Sim 134 17,3%
Não 510 65,7%
Esporadicamente (raramente) 26 3,4%
Ignorado/Branco 106 13,7%
Principais Culturas*
Milho 304 19,1%
Feijão 276 17,3%
Flores 127 8,0%
Cebola 120 7,5%
Inhame 92 5,8%
Banana 91 5,7%
Mato 72 4,5%
Tomate 72 4,5%
Pimentão 65 4,1%
Macaxeira 63 4,0%
Coentro 56 3,5%
Ignorado/Branco 256 16,1%
Fonte: Elaboração própria.
*Variável permite assinalar mais de uma opção, justificando a diferença na quantidade total, n=1594.

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Uso de agrotóxicos e saúde de trabalhadores rurais em municípios de Pernambuco 111

Ingredientes ativos mais utilizados dos agrotóxicos quanto à toxicidade, conforme


por aplicadores de agrotóxicos e Lei nº 7.802/8917, Decretos nº 4.074/0218 e
categorias de análise nº 5.981/0619 e Portaria SNVS- MS nº 3/9220,
evidencia-se que, entre os agrotóxicos citados,
Os principais ingredientes ativos utilizados três são classificados como extremamente
foram: Metomil (18,5%), Glifosato (13,9%), tóxicos (Classe I), sendo que dois são proibi-
Dimetoato (9,5%) e Mancozebe (7,2%); de dos de serem comercializados e utilizados no
grupos químicos: Metilcarbamato de oxima, Brasil (carbofurano e metamidofós). A maioria
Glicina substituída, Organofosforado e dos agrotóxicos referidos é considerada me-
Alquilenobis (ditiocarbamato), respectiva- dianamente tóxica (Classe III).
mente (tabela 4). Considerando a classificação

Tabela 4. Princípios ativos mais utilizados por aplicadores de agrotóxicos cadastrados em Pernambuco e suas categorias
de análise

Princípios Ativos* Grupo químico Classificação toxicológica** n %


Metomil Metilcarbamato de oxima Classe III 345 18,5%
Glifosato Glicina substituída Classe IV 259 13,9%
Dimetoato Organofosforado Classe III 177 9,5%
Mancozebe Alquilenobis (ditiocarbamato) Classe III 134 7,2%
Tebuconazol Triazol Classe IV 98 5,3%
Acefato Organofosfato Classe III 81 4,3%
Deltametrina Piretroide Classe III 80 4,3%
Piraclostrobina Estrobilurina Classe III 78 4,2%
Paraquate Bipiridílio Classe III 71 3,8%
Abamectina Avermectina Casse I 60 3,2%
Cipermetrina Piretroide Classe III 56 3,0%
Trifloxistrobina Estrobilurina Classe III 55 2,9%
Alfacipermetrina Piretroide Classe III 45 2,4%
Epoxiconazol Triazol Classe III 43 2,3%
Imidacloprido Neonicotinoide Classe III 48 2,6%
Lambda-cialotrina Piretroide Classe III 41 2,2%
Mandipropamida Éter Mandelamida Classe II 39 2,1%
Azoxistrobina Estrobilurina Classe III 37 2,0%
Metiram Alquilenobis(ditiocarbamato) Classe III 34 1,8%
Profenofós Organofosforado Classe III 31 1,7%
Carbofurano*** Metilcarbamato de benzofuranila Classe I 27 1,4%
Metamidofós*** Organofosforado Classe I 27 1,4%
Fonte: Elaboração própria.
*Variável permite assinalar mais de uma opção, justificando a diferença na quantidade total, n=1866.
**Classificação quanto à toxicidade, conforme Lei nº 7.802/89, Decretos nº 4.074/02 e nº 5.981/06 e Portaria SNVS-MS nº 3/92.
***Ingrediente ativo proibido no Brasil em decorrência de reavaliação toxicológica realizada pela Anvisa.

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112 Pessoa GS, Albuquerque PCC, Cotrim GS, Gurgel AM, Lira PVRA, Gurgel IGD, Campos AG

Discussão doenças crônicas ou incapacitantes pode di-


ficultar a busca pelo sustento próprio e da
família por meio da agricultura.
Características sociodemográficas Considerando a categoria raça/cor, os
dos aplicadores de agrotóxicos achados do presente estudo estão compatíveis
com o perfil da população de Pernambuco,
Observou-se que a aplicação de veneno é composto majoritariamente por pessoas
quase exclusivamente realizada por homens. negras (62%). Deve-se considerar que, histo-
Moreira21, Londres22 e Preza23 também en- ricamente, a população preta/parda é explora-
contraram uma maior proporção de homens da e ocupa espaços subalternos, relações que
utilizando agrotóxicos. Historicamente, na perduram na contemporaneidade. Ratifica-
agricultura, cabe às mulheres a organização fa- se essa colocação mediante análise da taxa
miliar para atividades auxiliares na produção, de desemprego entre esse segmento, que se
além de práticas domésticas que expressam apresenta maior (16% para negros e 14,5% para
um lugar imposto a elas na reprodução social pardos) que a dos brancos (12,7%), chegan-
do trabalho, mas que são essenciais à esfera do a superar ao da média nacional em 2016
produtiva, apesar da subalternidade que a (12,7%)28. Essa população, geralmente, ocupa
constitui. Quando a produção do trabalho e postos que ofertam menores salários e onde
a reprodução são interpretadas como esferas o trabalho é mais precarizado, e está inserida
distintas, é eliminada a percepção de totalidade entre as ocupações com menores rendimen-
que insere homens e mulheres juntos, contudo tos: agropecuária (60,8%), construção (63%)
de formas diferentes em ambos os processos24. e serviços domésticos (65,9%)29.
Desse modo, a divisão sexual do trabalho no O baixo nível de escolaridade observado está
meio rural é mais evidente e persistente. de acordo com o resultado de outros estudos
Embora a aplicação dos agrotóxicos seja realizados entre trabalhadores rurais21,22,27. A
exercida, em sua maioria, por adultos economi- existência de trabalhadores analfabetos uti-
camente ativos, foram identificados menores lizando agrotóxicos está em desacordo com
de 18 anos e maiores de 60 anos utilizando a legislação estadual, que proíbe o manuseio
essas substâncias, contrariando a legislação de agrotóxicos por essas pessoas26. Deve-se
vigente25,26. Também foram encontrados considerar que uma pessoa com mais de 15
idosos em contato direto com utilização de anos de idade e até 3 anos de estudo é consi-
agrotóxicos em estudos de Abreu27; e a par- derada analfabeta funcional, ou seja, possui
ticipação de crianças e jovens na preparação dificuldades de ler e escrever em atividades
e aplicação de veneno em Moreira21. Sabe-se cotidianas30. Essas características expressam
que a exposição em períodos críticos para a vulnerabilidade do aplicador de agrotóxicos,
o desenvolvimento, como na infância, pode pois dificultam o acesso às orientações conti-
resultar em danos graves e irreversíveis, que das em bulas, normas operacionais e medidas
podem se manifestar, inclusive, na vida adulta; de prevenção, impactando na saúde dele.
e que exposições repetidas ao longo da vida A maioria dos trabalhadores informa ser
aumentam as chances de desenvolvimento proprietária ou parceira da terra utilizada para
desses problemas. Por exemplo, as principais o cultivo, e se enquadra no perfil de trabalha-
janelas de vulnerabilidade para exposição a dor autônomo, caracterizando um modelo de
desreguladores endócrinos são a fase fetal, a agricultura familiar, herdeiro da ‘Revolução
infância e a adolescência; e as possíveis alte- Verde’, processo de financiamento agrícola
rações epigenéticas causadas pela exposição fomentado pelo Estado, vinculado ao uso de
aos agrotóxicos podem ser transmitidas para agrotóxicos e outros insumos agrícolas16. O
as futuras gerações1. O desenvolvimento de direcionamento precípuo de cultivo para a

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Uso de agrotóxicos e saúde de trabalhadores rurais em municípios de Pernambuco 113

venda, a influência do mercado competitivo, A Rede de Atenção à Saúde, especialmente a


o incentivo de políticas públicas, a variabili- atenção básica, precisa estar atenta e vigilante
dade da safra ante as interferências climáticas para acompanhar e identificar situações que
e ambientais que, por vezes, foge ao padrão podem influenciar no declínio da qualidade de
de mercado são fatores que influenciam o saúde da população adscrita16, principalmente
pequeno agricultor a escolher a utilização e referente aos sintomas leves. A investigação
exposição ao agrotóxico, sem necessariamente diagnóstica não deve desconsiderar o trabalho
obter os rendimentos que os grandes negócios e a determinação social da saúde, evitando a
alcançam com esta técnica. perda de informações valiosas para a com-
O perfil hegemônico de trabalhadores autô- preensão e tratamento das queixas. Um baixo
nomos e informais está associado a uma maior percentual dos cadastrados reporta terem se
precarização do trabalho. Mesmo não sendo intoxicado, e, muitas vezes, tais sinais e sinto-
sinônimos, “sua vigência expressa formas de mas são naturalizados2,33,34 e não se suspeita de
trabalho desprovido de direitos e, por isso, correlação com o sintoma e uso de agrotóxicos.
encontra clara similitude com o processo de
precarização”4,22,31(418). Os danos causados por Características do uso de agrotóxicos
adoecimento/acidente podem acarretar desde por aplicadores de agrotóxicos
a paralisação do cultivo até o comprometimen-
to da renda para a subsistência. Sendo assim, Com relação à aplicação dos agrotóxicos, o
os benefícios previdenciários, frequentemente, exercício da atividade por períodos prolonga-
irão depender da existência de contribuição dos e exposição frequente coloca os aplicadores
individual prévia ou cadastro enquanto segu- em uma situação de grande vulnerabilidade,
rado especial. ainda mais com a pouca ou nenhuma proteção
Outro elemento que endossa a precarização identificada, tanto no que se refere à utilização
do trabalho é a baixa filiação sindical, cenário de EPI quanto às proteções sociais. O tempo
diferente do encontrado no País28, em que prolongado de exposição provoca problemas
a taxa média de filiação sindical se mantém agudos e crônicos. Dentre os agravos e doenças
estável. A fragilidade na representação dos associados aos efeitos crônicos, podem ser
interesses desses trabalhadores comprome- citados: infertilidade, impotência, abortos,
te a conquista, defesa e ampliação de novos malformações, neurotoxicidade, desregulação
e antigos direitos e interesses coletivos do hormonal, efeitos sobre o sistema imunológico
segmento32. e câncer, assim como outros2,35.
Embora os trabalhadores agrícolas estejam
Condições de saúde dos aplicadores constantemente expostos a diversos produtos,
de agrotóxicos por longos períodos, por múltiplas vias (ab-
sorção dérmica, inalação, ingestão), o conhe-
Em relação às condições de saúde, destaca-se cimento e a associação de agravos crônicos
que os sintomas relatados são inespecíficos são mais difíceis, exigindo maior tempo de
e comuns a diversos agravos. Com a utiliza- observação e estudo. Em contrapartida, as in-
ção contínua do uso de agrotóxicos, sinais e toxicações agudas possuem sintomas clínicos
sintomas crônicos de intoxicação podem ser e laboratoriais mais evidentes, o que facilita o
naturalizados e, dessa forma, não identificados diagnóstico e o tratamento dos casos23.
como provenientes da utilização do veneno, A fim de diminuir o risco de contaminação/
principalmente quando alguns sintomas de intoxicação por agrotóxicos, a NBR 9843 re-
intoxicação não geram necessidade de busca gulamenta o armazenamento desses tipos de
imediata por atendimento médico ou não é produtos, dando instruções sobre edificação,
estabelecido o nexo causal. pavimentação, ventilação, iluminação e outros

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114 Pessoa GS, Albuquerque PCC, Cotrim GS, Gurgel AM, Lira PVRA, Gurgel IGD, Campos AG

fatores36. Embora a maioria dos trabalhadores a lavagem da roupa contaminada é feita se-
cadastrados utilize sala exclusiva para essa paradamente em tanques de uso domésticos,
funcionalidade, não é possível afirmar que as isso é feito apenas por apresentar visivelmente
condições previstas na NBR 9843 são adequa- mais sujeira, e não pelo conhecimento do risco
damente atendidas, visto que nem seu nome de contaminação43.
nem seus critérios são avaliados no questioná- Os relatos de compra indicam que a
rio aplicado. Chama atenção a alta proporção maioria dos aplicadores adquire os produ-
de relatos em que não é utilizada sala exclusiva tos em casas agropecuárias oficiais e sem a
para armazenamento do veneno ou utilização necessidade de apresentação de receituá-
de cômodo dentro da própria residência, situ- rio agronômico, realidade encontrada por
ação que representa perigo para toda a família. Corcinio44 e Bedor45. Essa informação evi-
A maioria dos trabalhadores não recebe dencia o total descontrole na venda desses
nenhum tipo de treinamento26 ou orientação produtos e a necessidade de intensificação
técnica em relação aos riscos no manuseio da fiscalização por parte dos órgãos oficiais
dos agrotóxicos, assim como nos estudos de para realizar o cumprimento da lei21.
Vicente37, Bernardes38 e Duleba39. Como a As principais culturas plantadas foram o
maioria dos profissionais são autônomos, a milho e o feijão. Em estudos de Pignati46, o
responsabilidade por medidas protetivas é milho foi o segundo cultivo com maior área
do próprio trabalhador, e, devido às precárias plantada do País em 2015 e foi a segunda
condições de vida e trabalho, estes têm dificul- cultura que mais utilizou agrotóxicos, cor-
dade em adquirir equipamentos de proteção respondendo a 13% do total comercializado
e acessar orientações de saúde e segurança naquele ano. Já o feijão, apesar de partici-
no trabalho. O uso de pulverizador costal e o par do cotidiano das refeições brasileiras,
não uso de EPI pela maioria dos trabalhadores mantém em equilíbrio a extensão de área
agravam o cenário de grandes vulnerabili- plantada e corresponde a 2% do consumo
dades. Assim como encontrado por Abreu27, de agrotóxicos em 20112.
Vicente37 e Preza23, há uma pequena quanti-
dade de trabalhadores que reportam o uso de Ingredientes ativos mais utilizados
EPI completos para utilização do agrotóxico. por aplicadores de agrotóxicos e
Condições inadequadas do processo de traba- categorias de análise
lho propiciam a adoção de modelos operatórios
degradados, trazendo como consequência a Os principais ingredientes ativos utilizados
intoxicação dos expostos40. Mesmo a aplicação nas lavouras são o metomil e o glifosato. Cada
de agrotóxicos sendo feita mediante o uso de agrotóxico possui orientação quanto à cultura
EPI completo não garante a proteção total do e à quantidade a ser utilizada. Segundo a
trabalhador, não sendo possível considerar que Anvisa, o metomil é autorizado para aplica-
exista uso seguro de agrotóxicos41,42. ção foliar em culturas de feijão e milho, entre
A maioria dos trabalhadores cadastrados outras culturas, assim como no pré-plantio de
não faz a lavagem das roupas contaminadas milho e soja47. Ele está associado a um elevado
em lugares específicos, e um quantitativo número de intoxicações agudas, muitas delas
considerável armazena as substâncias em fatais48. Intoxicações por esse ingrediente
locais não apropriados para esse fim, como, podem variar desde irritação cutânea e nas
por exemplo, dentro de casa, o que aumenta mucosas até a morte por depressão do centro
as chances de exposição de outros membros respiratório. Em testes realizados em camun-
da família, apontando a necessidade de in- dongos sob dieta baseada na Ingestão Diária
vestigação dos problemas reportados por Aceitável (IDA) de metomil apresentaram
esses indivíduos no presente estudo. Quando efeitos genotóxicos49.

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Uso de agrotóxicos e saúde de trabalhadores rurais em municípios de Pernambuco 115

O glifosato é autorizado como herbicida acessar esses insumos. Diante das vulnerabi-
em milho e feijão quando em situações de lidades identificadas, observa-se que se faz
pós-emergência50. As intoxicações agudas necessário, além de políticas para proteção a
relacionadas a esse ingrediente possuem um saúde de aplicadores, o desenvolvimento de
alto índice de letalidade, principalmente em assistência técnica e outras medidas previstas
trabalhadores rurais com baixo nível de esco- no Plano Nacional de Agroecologia e Produção
laridade50, população semelhante à encontrada Orgânica, reduzindo os danos associados ao
nesse estudo. Apesar das doses recomendadas uso de agentes químicos na agricultura57.
de glifosato puro serem consideradas de baixa
toxicidade para a alimentação, as formulações
que chegam ao mercado possuem toxicidade Considerações finais
significativamente mais elevada. Foi possível
demonstrar perda de peso, descarga nasal, O cadastro dos aplicadores permitiu identifi-
morte de animais prenhes e desordens diges- car a existência de g randes vulnerabilidades
tivas em estudos realizados com ratos51. socioeconômicas, bem como referentes às con-
É importante ressaltar a utilização de pa- dições de uso de agrotóxicos, implicando di-
raquate (3,8%) em um cenário de 53,2% de versos danos à saúde das populações expostas.
trabalhadores utilizando pulverizador costal, Os resultados evidenciam o descumpri-
o que pode aludir que alguns aplicadores estão mento da legislação vigente: menores de idade
contrariando a legislação52 de proibição da e idosos realizando aplicação, analfabetos,
utilização desse veneno com tal equipamen- pessoas sem treinamento, sem EPI, venda
to, causando intoxicações graves52. Houve sem controle, uso de agrotóxicos proibidos e
registro de utilização de venenos proibidos: extremamente tóxicos, entre outros.
metamidofós (1,4%), proibido desde 200253, Como uma ferramenta sistemática de
e carbofurano (1,4%) banido desde 201754. coleta, essa ficha tem em seu objetivo uma
Destaca-se que o metamidofós é o principal das principais ações da Vigilância em Saúde,
metabólito do acefato, produto que ainda tem além de facilitar uma análise específica sobre
uso autorizado no Brasil, indicando que sua as características da população a que se refere.
presença não representa necessariamente o Essa análise pode ser utilizada para a realiza-
uso de um ativo proibido. O metamidofós é ção de ações e intervenções mais assertivas
listado na Convenção sobre o Procedimento de quanto à promoção e à prevenção à saúde desse
Consentimento Prévio Informado (PIC) para segmento, tanto no Sistema Único de Saúde
o comércio internacional de certas substân- (SUS) como em outros setores, dada a escassez
cias químicas e agrotóxicos perigosos como de estudos e estratégias direcionadas a essa
uma ‘formulação severamente perigosa’, que problemática em âmbito nacional que tenham
produz efeitos prejudiciais graves à saúde e avaliado número expressivo de trabalhadores.
ao ambiente observáveis em curto espaço de Recomenda-se que esse banco de dados
tempo após uma única ou múltipla exposição, seja constantemente atualizado para que
nas condições de uso recomendadas, represen- não reflita um recorte temporário, mas que
tando um enorme problema de saúde pública55. se torne um acompanhamento sistemático e
O paraquate foi banido do Brasil em setembro proporcione subsídios para a construção de
de 2020, após decisão da Anvisa, devido à gra- estratégias participativas de vigilância à saúde
vidade dos danos provocados à saúde humana, dessas populações, direcionando as práticas
como parkinsonismo56. de cuidado, particularmente no âmbito da
A comercialização de produtos aponta a atenção primária.
fragilidade do sistema de controle da venda, Os dados apontam para a urgência de ar-
visto que, pelas vias legais, não seria possível ticulação intersetorial para a efetividade da

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116 Pessoa GS, Albuquerque PCC, Cotrim GS, Gurgel AM, Lira PVRA, Gurgel IGD, Campos AG

promoção e proteção da saúde dessa popula- Colaboradores


ção, bem como para a prevenção e o controle
de riscos, agravos e doenças por parte da utili- Pessoa GS (0000-0001-5333-0124)*, Albuquerque
zação de agrotóxicos em sua atividade laboral. PCC (0000-0002-2515-2778)*, Cotrim GS (0000-
Sugere-se que a produção de base agro- 0002-5283-8310)*, Gurgel AM (0000-0002-5981-
ecológica seja incentivada pelas entidades 3597)*, Lira PVRA (0000-0002-8588-839X)*,
governamentais, tanto por ser menos agressivo Gurgel IGD (0000-0002-2958-683X) e Campos
para o ambiente quanto por promover uma AG (0000-0002-1085-9236)* contribuíram igual-
alimentação mais adequada e saudável, me- mente para concepção, elaboração e revisão final
lhorando a qualidade de vida nos territórios. do manuscrito. s

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comercialização, a propaganda comercial, a utiliza- mento, o uso e aplicação, o destino final dos resíduos
ção, a importação, a exportação, o destino final dos e embalagens vazias, o controle, a inspeção e a fiscali-
resíduos e embalagens, o registro, a classificação, o zação de agrotóxicos, seus componentes e afins, bem
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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 102-121, Jun 2022


Uso de agrotóxicos e saúde de trabalhadores rurais em municípios de Pernambuco 121

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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 102-121, Jun 2022


122 ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE

Empoderamento e construção coletiva de


estratégias ante vulnerabilidades e situações
de risco no uso de agrotóxicos
Empowerment and collective elaboration of strategies based on the
vulnerabilities and risk situations in the use of pesticides

Cheila Nataly Galindo Bedor1, Cristiano Almeida Bastos1, Monize da Silva Cavalache1, Rosimeire
Morais Cardeal Simão1

DOI: 10.1590/0103-11042022E208

RESUMO Este artigo teve como objetivos descrever as vulnerabilidades e as situações de riscos relacio-
nados com o uso de agrotóxicos e suas implicações na saúde dos trabalhadores rurais do município de
Miguel Calmon (BA) e dar subsídios a comunidade para a construção coletiva de estratégias de enfren-
tamento dessa problemática. Estudo do tipo descritivo, com abordagem quantitativa, desenvolvido com
98 trabalhadores rurais. Como instrumento, foi utilizado questionário que abordava questões acerca
das características sociodemográficas, patológicas, condições de trabalho e exposição a agrotóxico. Os
resultados apontam que os trabalhadores rurais apresentam baixa escolaridade e baixa renda familiar.
Cerca de 60% referiram utilizar ou já ter utilizado agrotóxicos em suas plantações; destes, 11% citaram
já ter sofrido intoxicação, e 80% relataram algum sintoma relacionado com o uso de agrotóxicos. Mesmo
com cerca de 40% dos agricultores não utilizando agrotóxicos, apenas 28% relataram ter conhecimento
sobre agroecologia ou produção orgânica. Uma roda de conversa foi realizada com a presença de vários
atores do município com o objetivo de instigar a comunidade a elaborar estratégias de enfrentamento
dos problemas elencados, levantando várias estratégias para contrapor a produção convencional, princi-
palmente, entre os agricultores que desconhecem modelos mais sustentáveis.

PALAVRAS-CHAVE Agricultura. Trabalhadores rurais. Vulnerabilidade social. Estratégias locais.

ABSTRACT The purpose of this study was to describe some of the vulnerabilities and risk situations related
to pesticides and their implications on the health of rural workers in the city of Miguel Calmon, Bahia.
Semi-structured questionnaires were applied to random samples of 98 farm workers to obtain data on social,
economic, and cultural characteristics, as well as the morbidity related to pesticide poisoning. An event was
held in the city with the aim of instigating the community to develop coping strategies These farm workers
have low level of schooling and low family incomes. About 60% reported the use of pesticides in their planta-
tions; 11% percent of the population reported poisoning events at some point in their lives and 80% reported
symptoms suggestive of pesticide poisoning. Although 40% of farmers did not use pesticides, only 28% reported
knowledge about agroecology or organic production. These results were presented at an event in the city and
the need to devise projects that address this problem in the region was discussed. The community has listed
several strategies to opposing the conventional production for those who don’t use pesticides and for those
who are unaware of more sustainable ways of agriculture.

1 Universidade Federal KEYWORDS Agriculture. Rural workers. Social vulnerability. Local strategies.
do Vale do São Francisco
(Univasf) – Petrolina (PE),
Brasil.
cheila.bedor@univasf.edu.br

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 122-132, JUN 2022 meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado.
Empoderamento e construção coletiva de estratégias ante vulnerabilidades e situações de risco no uso de agrotóxicos 123

Introdução comércio para sua utilização; a alta toxicidade


de certos produtos; a ausência de informações
O modelo de produção agrária hegemôni- sobre a saúde; a segurança de fácil apropriação
co no Brasil, embasado pelo capitalismo, por parte dos trabalhadores; e a deficiência
possui caráter perverso em relação ao modo dos mecanismos de vigilância, que têm sido
de apropriação e exploração da natureza e muito precários. Com esse quadro, a economia
da força de trabalho, sendo o agrotóxico e suas práticas exploratórias de venda7 são
a expressão de seu potencial morbígeno e determinantes que podem agravar ainda mais
mortífero da transformação dos recursos essa realidade.
públicos e bens naturais em janelas de negó- Diante desse contexto, faz-se necessário
cios1. Esse modelo, por sua vez, é amparado estudos sobre a prevalência e a contamina-
por uma estrutura institucional e legislativa ção pelo uso dos agrotóxicos nas populações
que lhe concede meios necessários para expostas a essas substâncias, uma vez que
sustentar o ciclo virtuoso de sua economia2. é elevada a utilização desses produtos no
Tal conjuntura social e política confere uma cotidiano de muitos agricultores, associado
situação potencial de risco, característico da aos vários casos de intoxicações no nordes-
sociedade moderna e do modelo capitalista, te brasileiro8. Para tanto, é imprescindível
em que o lucro sobrepõe o direito à saúde conhecer a fragilidade social e de exposi-
dos seres humanos e do meio ambiente. ção ambiental e humana aos agrotóxicos,
Nesse sentido, o consumo excessivo de indicando a necessidade de implementar
insumos químicos vem trazendo, há vários agendas específicas de políticas e ações no
anos, inúmeros prejuízos ao meio ambiente e campo da saúde e da educação do trabalha-
ao homem3. A contaminação de águas e solo4, dor agrícola. Ademais, é urgente reconhecer
assim como o impacto direto na biodiversi- a complexidade inerente aos problemas dos
dade, interfere diretamente na qualidade de agrotóxicos e tratá-la nos seus múltiplos
vida humana. aspectos, por meio de abordagens que con-
Desde a entrada dos agrotóxicos no País na siderem as interações entre as variáveis am-
década de 1960, houve, principalmente entre bientais e os determinantes sociais, culturais
os trabalhadores rurais, o aumento dos riscos e econômicos9.
de adoecer e morrer5. Em pequenas comuni- Esta pesquisa foi realizada envolvendo a
dades rurais, o efeito da contaminação por população do município, como sujeitos na
agrotóxico à saúde humana pode ser agravado busca de produção e conhecimento para trans-
devido às más condições sanitárias, infraestru- formação dessa realidade, concordando com
tura local, sistema de saúde precário e baixas Almeida et al.10(344-345) que apontam:
condições sociodemográficas da população,
tais como a baixa escolaridade que dificulta o A participação cidadã nos assuntos de interesse
entendimento dos procedimentos para o uso e defesa da saúde é uma questão de direitos
desses biocidas6. humanos, e, por essa razão, a consulta pública
À medida que a utilização dos agrotóxicos e deve anteceder aos requisitos fundamentais
a prática agrícola se tornaram indissociáveis, para o esclarecimento e tomada de decisão,
as populações humanas ficaram vulneráveis na mais profunda transferência e promovendo
às contaminações por essas substâncias. As um ambiente democrático, o que raramente
consequências advindas de sua utilização no acontece no Brasil quando se trata de avaliação
meio rural são, em geral, condicionadas por de Impacto Ambiental. Para as situações que
fatores intrinsecamente relacionados, como, afetam a saúde das populações do campo, esse
por exemplo: o uso inadequado dessas subs- é um desafio que exige uma agenda ainda a ser
tâncias; a pressão exercida pela indústria e conquistada.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 122-132, JUN 2022


124 Bedor CNG, Bastos CA, Cavalache MS, Simão RMC

Material e métodos que já sofreram ao longo da vida esse tipo de


intoxicação diagnosticada por um profissional
Este estudo trata-se de uma pesquisa descriti- de saúde. Já os sintomas foram aqueles listados
va, com características quantitativas, realizada por esses trabalhadores após ou durante a apli-
no município de Miguel Calmon, localizado na cação desses. O formulário também continha
região do Piemonte da Chapada Diamantina perguntas sobre conhecimento da agroecologia
no estado da Bahia. O município possui uma ou produção orgânica por parte da população.
área municipal de 1.463 km² e uma popula- Foi feita análise descritiva dos trabalhadores
ção total de cerca 27 mil habitantes. Miguel estudados A análise bivariada foi realizada
Calmon limita-se ao norte com Várzea Nova para exploração inicial das associações brutas,
e Jacobina, ao sul com Piritiba, a leste com o sendo estimadas as razões de prevalência e os
município de Várzea do Poço e a oeste com intervalos de confiança de 5%.
Morro do Chapéu11. O projeto foi aprovado pelo Comitê de
Para o cálculo da amostra, consideraram- Ética e Deontologia em Estudos e Pesquisas
-se o número total de pessoas ocupadas na da Universidade Federal do Vale do São
agricultura familiar no município (4.774)12, a Francisco com parecer 1.648.072 (CAAE
prevalência de intoxicações referida por agro- 45647515.9.0000.5196). A participação na
tóxicos de 7%9, erro amostral de 5% e nível pesquisa foi voluntária, mantendo o sigilo das
de confiança de 95%, obtendo-se tamanho informações obtidas. Todos os participantes
mínimo da amostra a ser estudada de 98 agri- leram e assinaram o Termo de Consentimento
cultores. Esses foram incluídos de ambos os Livre e Esclarecido antes das realizações das
sexos, com idade acima de 18 anos, escolhidos entrevistas.
aleatoriamente de 18 comunidades do muni-
cípio (Água Branca; Almas; Bagres; Barragem
do França; Cabaceiras; Campestre; Itapura; Resultados e discussão
Lagoa de Dentro; Lagoa Grande; Mucambo;
Mulungu da Serra; Olhos D’água; Palmeiras; Ao todo, participaram do estudo 98 agriculto-
Ponte do Massambão; Queimada Nova; Salgado res, sendo a maioria do sexo masculino (84%,
Grande; Serra e Tamanco). n=82), de idade entre 19 e 76 anos, média de
A coleta de dados ocorreu de janeiro a de- 46 anos (±12,4) e renda média familiar menor
zembro de 2016, por meio de uma entrevista ou igual a um salário mínimo (82%, n= 80).
estruturada com aplicação de um formulário A maioria da amostra (65%, n=64) recebia
que abordou questões sobre condições de vida, algum benefício social. Entre os mais citados,
ambiente e trabalho e de morbidade referida. o Bolsa Família representou 59% (55), seguido
Para avaliação da exposição ocupacional aos de aposentadoria (7%, n=7). Aproximadamente
agrotóxicos, foram coletadas informações 68% (67) se consideram pardos ou morenos,
sobre o tipo e a maneira de utilização desses 84% (82) são casados e 76,6% (76) possuem
produtos, o intervalo de aplicação, se recebe- filhos, sendo a média de filhos de 3 por família
ram orientação técnica para utilização dessas (±1,53). A média de habitantes por casa foi de
substâncias, se utilizavam receituário para 3,41 (±1,38), tendo como o máximo 7 pessoas
sua compra e se faziam leitura da bula antes (3%) e como o mínimo 1 (5%) por habitação.
de utilizá-los. A variável jornada de trabalho A escolaridade é baixa, a maior parte dos
foi referente à quantidade de horas que o tra- entrevistados (65%) possui o ensino fun-
balhador permanecia nas lavouras durante a damental incompleto, e apenas 16% (n=15)
aplicação do produto. possuem ensino médio completo. Dados esses
Os dados de intoxicação por agrotóxico semelhantes a um estudo realizado no mu-
foram mencionados pelos trabalhadores rurais nicípio de Conceição do Jacuíbe, localizado

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Empoderamento e construção coletiva de estratégias ante vulnerabilidades e situações de risco no uso de agrotóxicos 125

também na Bahia, em 2012, com produtores As principais culturas da região são milho,
de hortaliças13. O Censo Escolar do Ministério feijão, tomate, pimentão e outras hortaliças. Em
da Educação aponta que, entre 2003 e 2013, relação ao tamanho da área cultivada, 57,3%
foram fechadas 32.500 escolas no campo em possuíam áreas menores que 4 hectares, sendo
todo o País. Em diversas comunidades rurais, que 46% dos entrevistados possuem 1 ou menos
as escolas são os únicos equipamentos públi- hectares para plantar, ou seja, áreas que não re-
cos existentes, sendo nessas que ocorrem as presentam uma fração mínima de parcelamento
discussões coletivas e as atividades culturais. de imóvel rural para aquele município. Esse dado
Assim, o fechamento dessas escolas é atentado deve ser visto com cautela, uma vez que essa pes-
à sobrevivência da comunidade14. quisa só foi realizada em pequenas propriedades.
O exercício do trabalho rural era a única Aproximadamente 60% (58) dos entrevista-
atividade laboral para 90% dos agricultores. dos referiram utilizar agrotóxico atualmente
Desses, 54% (53) eram proprietários rurais em suas plantações A média do tempo de ex-
que trabalhavam diretamente na sua terra, posição a essas substâncias em horas foi de 2,63
5% (5) usavam terras arrendadas, 6% (6) eram (±2,4); 26% afirmaram aplicar agrotóxicos até
meeiros (agricultor que planta e divide os 1 hora por dia; 31%, de 2 a 4 horas; e 10%, de
resultados com proprietário da terra) e 34% 5 a 8 horas. Não responderam a essa questão
(35) possuíam outro vínculo, como diaristas 33% dos entrevistados. A tabela 1 aponta as
(empregados), ou usavam terras cedidas, na características da utilização de agrotóxicos
maior parte pela Prefeitura do município. na população de estudo.

Tabela 1. Características do uso de agrotóxicos no município de Miguel Calmon (BA)

Características N (58) (%)


Tempo de uso em ano
<1 2 3,4
2a5 13 22,41
6 a10 4 6,90
11 a 20 21 36,21
21 a 39 13 22,41
Não responderam 5 8,62
Tipo de contato
Apenas aplica 15 25,9
Apenas prepara calda 2 3,4
Aplica, prepara e faz limpeza 34 58,6
Aplica e faz a limpeza 1 1,7
Prepara e faz a limpeza 3 5,2
Não responderam 3 5,2
Quantidade de vezes que aplica
Mais de 1 vez por semana 5 8,62
1 vez por semana 17 29,31
2 vezes ao mês 13 22,41
1 vez ao mês 10 17,24
De 2 em 2, ou 3 em 3, ou 1 vez ao ano 9 15,52
Não responderam 4 6,9

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126 Bedor CNG, Bastos CA, Cavalache MS, Simão RMC

Tabela 1. (cont.)

Características N (58) (%)


Tipo de aplicador dos agrotóxicos
Pulverizador costa 26 44,83
Aplicação manual 15 25,86
Pulverizador estacionário 13 22,41
Não responderam 4 6,90
Uso de EPI
Não utilizam 16 27,59
Utilizam EPI completo 5 8,62
Utilizam de maneira incompleta 37 63,70
Fonte: Elaboração própria.

Dos 47 agricultores que mencionaram ser que o EPI é caro ou desconfortável ou, ainda,
responsáveis pela compra dos agrotóxicos, que o patrão não fornecia. Quase metade dos
40% (19) alegaram não receber orientações trabalhadores que utilizam agrotóxicos disse
quanto ao uso dos produtos no ato da compra, não ter orientação para o uso do EPI (24),
na maioria das vezes comprado por conta outra metade referiu ter essa orientação (24)
própria (68%, n=47), ou seja, sem receituá- e 10 trabalhadores não responderam a essa
rio. Ainda se tratando do uso de agrotóxicos, pergunta.
69% (40) alegaram não ler os rótulos dos Muitos trabalhadores rurais optam por não
produtos. Os motivos mencionados foram a utilizar ou por deixar de utilizar alguns itens
falta de prática da leitura e, principalmente, a dos EPI devido ao desconforto causados pela
linguagem técnica que os rótulos trazem, difi- utilização desses equipamentos, os quais, em
cultando o entendimento por parte da maioria casos extremos, podem levar ao estresse de
dos trabalhadores. Waichman, Eveb e Nina15, calor. Além disso, a falta de costume, o preço e
em estudo com grupos focais de agricultores, o desconforto são justificativas de produtores
apontam que a maioria desses demonstram agrícolas descritas em alguns estudos para o
dificuldades com o tamanho da letra e com o não uso dos EPI16,17. Veiga et al.18 apontam
excesso de informações técnicas contidas no que, mesmo utilizando esses equipamentos de
rótulo e na bula. maneira completa, os EPI não protegem inte-
Pôde-se observar que poucos indivíduos gralmente o trabalhador, podendo ainda ser
usam o Equipamento de Proteção Individual fonte de contaminação durante o ato de vestir
(EPI) completo, sendo estes citados na seguin- e despir esse EPI contaminado no exercício
te ordem: botas (86,4%), máscaras (78,3%), de algumas atividades laborais.
luvas (75,6%), viseira (59,4%), boné (54%), Os agrotóxicos utilizados no município de
calça hidrorrepelente (45,9), capuz (32,4%), Miguel Calmon são guardados, na sua maioria,
avental (32,4%) e paletó (16,2%). Cerca de no campo – 41,8% (24) –, em sacos plásticos,
5% dos trabalhadores se referiram ao uso de ‘debaixo de uma moita’ ou no ‘ranchinho’,
pano molhado como substituto de EPI. Entre como referido, seguido por armazenamento
aqueles que não fazem uso de nenhum EPI, o em deposito – 32,7% (19) – e na residência ou
motivo mais citado foi que não achavam neces- próximo a essa – 8,62% (5). Dez agricultores
sário, pois a aplicação é rápida, ou porque apli- não responderam a essa pergunta. Os que des-
cava de longe. Também houve quem dissesse pejam os dejetos de lavagem dos equipamentos

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Empoderamento e construção coletiva de estratégias ante vulnerabilidades e situações de risco no uso de agrotóxicos 127

no solo (ambiente) são 32,76% (18). A devo- após a aplicação, 15,5% mantêm o vestuário. As
lução dessas embalagens é feita à Agência roupas, em sua grande maioria (70%), assim
Estadual de Defesa Agropecuária da Bahia como os EPI (65%), são lavadas separadas das
(Adab), excetuando-se as embalagens de for- demais roupas da casa.
micidas classe toxicológica IV (classe química Chamou a atenção o depoimento de um
Sulfonamidas Fluoroalifáticas), produto que dos trabalhadores que referiu ser orientado
não tem fiscalização de venda, muitas vezes pelo proprietário a lavar os equipamentos com
sendo encontrado para compra em, até mesmo, leite. O leite, por conter gordura e açúcar, fa-
supermercados. De acordo com o Instituto cilita a absorção dos venenos organoclorados,
Nacional de Processamento de Embalagens organofosforados, carbamatos, ditiocarba-
Vazias (inpEV), em 2015, o estado da Bahia matos, triazínicos, piretroides, acetanilidas
devolveu 3.413 toneladas de embalagens, o entre outros20, a maioria desses citados como
que representa 7,49% do total de embalagens utilizados em Miguel Calmon.
devolvidas no Brasil19.
Apenas metade dos agricultores respei- Caracterização dos agrotóxicos
ta o intervalo de segurança para reentrada utilizados na produção agrícola do
na área de aplicação. Quanto às medidas de local da pesquisa
higiene durante e depois da aplicação dos
agrotóxicos, 22,4% (13) se alimentam mesmo Os agricultores citaram 67 agrotóxicos. Dos 49
durante o contato com os produtos químicos; identificados, foram descritos 32 ingredientes
e, desses, cerca de 30% não lavam as mãos ativos e 7 misturas. O quadro 1 aponta os agro-
após a alimentação, 72,4% (42) tomam banho tóxicos mais citados como utilizados na região.

Quadro 1. Agrotóxicos mais citados como utlizados em Miguel Calmon (BA)

Classif.
Nome Ingrediente ativo Classe Grupo químico toxicológica Classif. ambiental
Abamex abamectina Acaricida/ Inseticida Avermectinas Extremamente Perigoso
tóxico
Fastac alfacipermetrina Inseticida Piretroide Extremamente Muito perigoso
tóxico
Lannate metomil Inseticida Metilcarbamato Extremamente Muito perigoso
de Oxima tóxico
Pirate clorfenapir Inseticida/acaricida Análogo de Medianamente Muito perigoso
pirazol tóxico
Tamaron methamidophos inseticida/acaricida Organofosforado Extremamente Muito perigoso
tóxico
Simetrex ametrina+ simazina Herbicida Triazina Medianamente Perigoso
Tóxico
Fonte: Elaboração própria a partir do Sistema de Agrotóxicos. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Augusto et al.1.

O Tamoron (metamidofós) teve o uso entre os agrotóxicos citados como utilizados


proibido no Brasil em 2011, sendo sua venda pelos agricultores. Esse ingrediente ativo
proibida em 201221, mesmo assim, ainda está foi banido por apresentar características

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128 Bedor CNG, Bastos CA, Cavalache MS, Simão RMC

neurotóxicas, imunotóxicas e provocar to- Morbidade referida


xicidade sobre o sistema endócrino, repro-
dutor e no desenvolvimento embriofetal21. Quando questionados sobre possíveis in-
A principal classe dos agrotóxicos é a toxicações em decorrência do manuseio
de inseticida (43%, n=25), fungicida (24%, dos agentes químicos, 11,2% (11) referiram
n=14), acarecida (15%, n=9) e herbicida (12%, já ter sofrido intoxicação por agrotóxico
n=7). Os grupos químicos mais citados são diagnosticada por um profissional de saúde
organofosforados e piretroides, ambos com pelo menos uma vez na vida. Esse número
12,7%; e carbamatos e triazois com 9,1%. ainda pode ser maior tendo em vista que
Esses agrotóxicos são, em sua maioria (82%), 18,4% (18) não responderam a essa pergunta.
classificados como extremamente (41%) ou Além disso, 80% dos entrevistados relataram
medianamente (41%) tóxicos para o homem, algum sintoma após aplicação de agrotóxico.
e 61% deles são muito perigosos para o meio Os principais sintomas de saúde citados
ambiente (quadro 1). estão descritos no quadro 2.

Quadro 2. Sintomas de saúde referidos pelos agricultores de Miguel Calmon (BA)

Queixa Quantidade de vezes citadas


Dor de cabeça 30
Lacrimejamento/irritação nos olhos 19
Suor excessivo 19
Tonteira/zonzeira/vertigens 16
Coceira, irritação ou alergia na pele 15
Falta de apetite 13
Dor na barriga 11
Palpitação/coração disparado 10
Enjoo/náuseas/ânsias 9
Fraqueza intensa 9
Salivação 8
Câimbras 7
Formigamento/dormência 6
Diarreia 6
Tremores 6
Tosse 6
Visão turva 5
Vômito 5
Agitação/Irritabilidade 4
Catarro 4
Falta de ar 3
Digestão difícil 3
Chiado/sibilos 1
Fonte: Elaboração própria.

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Empoderamento e construção coletiva de estratégias ante vulnerabilidades e situações de risco no uso de agrotóxicos 129

A taxa de intoxicação referida pelos agricul- agroecologia e importância do uso de téc-


tores corrobora os valores descritos na litera- nicas alternativas ao modelo da agricultura
tura. Bedor et al.9 descreveram a prevalência químico-dependente.
de 7% de, pelo menos, uma intoxicação por Os resultados da pesquisa revelam um
agrotóxico no decorrer da vida dos agricul- quadro de fragilidade social e de exposição
tores do submédio do Vale do São Francisco, humana e ambiental, mostrando a necessidade
Corcino22 encontrou uma prevalência de de implementação de ações tanto no campo da
9,14%, em estudos realizados na mesma região, saúde como na ambiental. Desse modo, estes
estando também próxima das encontradas foram apresentados à população do municí-
em outras regiões agrícolas brasileiras. Faria pio juntamente com a exposição dos temas:
et al.23 descreveram a prevalência de 12% de ciclo de contaminação; intoxicações, sinas
intoxicação por agrotóxicos em trabalhadores e sintomas associados ao uso dos agrotóxi-
rurais da Serra Gaúcha. As queixas de saúde cos e primeiros socorros de intoxicações por
declaradas pelos agricultores foram as espera- agrotóxicos, sendo também realizada a expo-
das para grupos expostos aos agrotóxicos9,24. sição de práticas ecológicas em contraponto
Dos agricultores intoxicados, 45% (5) as- à agricultura convencional. Participaram do
sociaram a intoxicação ao uso do Tamaron; evento 96 pessoas, entre elas, agricultores,
18% (2), do Lannate, assim como a mesma representantes sociais, de órgãos municipais
quantidade para o Tordon; e o restante para e estaduais.
Abamex ou Cupravit ou Vertimec. Todos esses Após o ciclo de palestras, foi realizada
são produtos extremamente tóxicos de acordo uma roda de conversa com 21 pessoas, entre
com a classificação toxicológica. essas, representantes das associações rurais de
Dos agricultores que referiram não utilizar Miguel Calmon, do sindicato rural, Prefeitura
agrotóxicos nas suas lavouras (40%, n=39), Municipal (representantes da Secretaria de
36% (14) nunca utilizaram esses produtos, Educação, da Saúde, do Meio Ambiente),
28% (11) têm de 1 a 5 anos que não utilizam; Núcleo de Educação e Monitoramento
13% (5), de 5 a 10; e 23% (9) não fazem uso Ambiental (Nema), Agricultura Familiar e do
dessas substâncias há mais de 10 anos. Apenas Desenvolvimento Agrário (Bahiater), Adab e
28% desses alegaram ter algum conhecimento representantes da Câmera de Vereadores para
sobre agroecologia ou produção orgânica se discutir estratégias e metodologias adequadas
referindo principalmente à agroecologia como de comunicação social e educação em saúde
alimento sem agrotóxicos. Mais do que o não que apontem os perigos do uso de agrotóxicos.
uso dos agrotóxicos, a agroecologia considera A roda de conversa foi mediada pelos pes-
aspectos éticos, culturais, sociais, ambientais quisadores com o apontamento de algumas das
e políticos na produção de alimentos25. Esses problemáticas observadas durante a pesquisa,
resultados sobre o desconhecimento da agro- o que disparou discussões entre os presentes e
ecologia pela população foram discutidos em a deliberação de futuras ações que poderiam
Bedor et al.26. ser realizadas para o enfrentamento da pro-
Após a análise dos dados apresentados blemática apresentada, entre essas:
acima, em novembro de 2017, foi realizado
um encontro em Miguel Calmon, que ob- a) construção de um projeto para recolhi-
jetivou apresentar os resultados dessa pes- mento das embalagens;
quisa, discutir com a comunidade e gestores
locais estratégias e metodologias adequadas b) trabalho da temática dos perigos do uso
de comunicação social e educação em saúde dos agrotóxicos no Programa Saúde na Escola
que apontaram os perigos do uso de agro- (PSE);
tóxicos, além de apresentar os conceitos de

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130 Bedor CNG, Bastos CA, Cavalache MS, Simão RMC

c) implantação da educação ambiental como tecnologias alternativas ao modelo empre-


disciplina nas escolas municipais; gado estão relacionados com o maior risco
de agravos à saúde, seja intoxicações aguda
c) formação e fortalecimento das ações agro- diagnosticadas por médicos ou mesmo su-
ecológicas no município; bagudas, das quais apenas sintomas pouco
específicos são relatados.
d) capacitações para o manejo de agrotóxicos; Os resultados ainda caracterizam que os tra-
balhadores da região se encontram expostos e
e) reflorestamento das margens do Lago vulneráveis às condições de trabalhos que lhes
municipal; são impostas pelo modelo econômico nacional,
o agronegócio, que presa seus interesses em de-
f ) utilização da mídia local para mobilização trimento da saúde dos trabalhadores, visando
social sobre a temática, inclusive mostrando sempre o aumento da produção a qualquer
os resultados desta pesquisa; custo, mesmo que, para isso, seja necessário
o uso de agentes químicos.
g) capacitação da guarda municipal para Nesta pesquisa, a participação dos sujei-
monitoramento do meio ambiente; tos na busca de produção e conhecimento foi
essencial para a elaboração de alternativas
h) realização de uma Audiência Pública no capazes de transformar a realidade aqui apre-
Município sobre a temática apresentada. sentada, confirmando a importância do diálogo
de saberes que incluem o popular e o científico,
unidos por uma ciência a favor da vida.
Conclusões
A abordagem utilizada permitiu conhecer a Colaboradores
exposição da população estudada aos agrotóxi-
cos e uma alta prevalência de intoxicação por Bedor CNG (0000-0002-1614-7539)*, Bastos
essas substâncias referida por essa população. CA (0000-0002-0927-998X)*, Cavalache
A baixa escolaridade, o uso indiscriminado MS (0000-0003-4395-5336)* e Simão RMC
de agrotóxicos, principalmente dos extrema- (0000-0002-6529-0761)* contribuíram igual-
mente tóxicos, e a falta de conhecimento de mente para a elaboração do manuscrito. s

*Orcid (Open Researcher


and Contributor ID).

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Empoderamento e construção coletiva de estratégias ante vulnerabilidades e situações de risco no uso de agrotóxicos 131

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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 122-132, JUN 2022


132 Bedor CNG, Bastos CA, Cavalache MS, Simão RMC

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Recebido em 30/09/2020
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Conflito de interesses: inexistente
Suporte financeiro: não houve
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Submédio do Vale do São Francisco e preparação de

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ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE 133

Investigando os olhares da saúde coletiva


sobre a agroecologia
Investigating the views of collective health on agroecology

Lorena Portela Soares1, Rosely Magalhães de Oliveira1, Danielle Ribeiro de Moraes2

DOI: 10.1590/0103-11042022E209

RESUMO A agroecologia tem sido objeto no campo da saúde coletiva/pública de maneira crescente nas
duas últimas décadas no Brasil. Conforme o tema ganha relevância, importa verificar como o campo
tem abordado a agroecologia, tendo em vista a persistência de tendências à redução e ao esvaziamento
no processo de apropriação de conceitos ao campo. Artigos científicos da saúde foram analisados por
procedimentos da análise de conteúdo e da análise do discurso, atentando aos sentidos e temas mais re-
correntes, bem como às ausências nas abordagens sobre agroecologia. Resultados mostram que abordagens
de tendência mais normativa/regulatória da saúde coletiva tendem a se associar à vertente mais técnica
da agroecologia; silenciamentos sobre legitimidade da origem ‘tradicional’/’indígena’/’popular’ e sobre
o protagonismo das mulheres na construção do conhecimento agroecológico; a importância histórica de
movimentos populares na constituição desse campo científico; e, ainda, apontam o reconhecimento da
agroecologia enquanto um campo que, como o da saúde coletiva, está em disputa. Fazem-se considerações
sobre a redução da agroecologia a um sistema ecológico de produção que ‘naturalmente promove saúde’
e possíveis repercussões para cooptação da pauta agroecológica pelos discursos hegemônicos. Reflete-se
sobre a importância da apropriação crítica de conceitos no diálogo entre os campos.

PALAVRAS-CHAVE Saúde pública. Agricultura orgânica. Agricultura sustentável. Discurso.

ABSTRACT Agroecology has been an object in collective/public health in an increasing way in the last
two decades. As its gains relevance, it is important to verify how Brazilian academic health literature has
addressed agroecology, considering the persistent tendencies towards reduction, standardization and empty-
ing when concepts are appropriated by the field. Scientific papers in health were analyzed through content
and speech analysis, paying attention to the recurring meanings and themes, as well as to the ‘absences’ in
health discourses related to agroecology. Results show that collective health instrumental approaches tend
to be associated with more ‘technical’ agroecology perspectives; persistent silencing related to ‘traditional
’/‘indigenous’/‘popular’ and woman protagonism in agroecological knowledge construction; recognition of
the emergence of agroecology as a scientific field as part of the historic popular movements struggle; and,
1 Fundação Oswaldo Cruz further, to the consideration of agroecology as a scientific field that is in dispute, just like collective health.
(Fiocruz), Escola Nacional Considerations are made involving the reduction of agroecology as an ecological-based agricultural system
de Saúde Pública Sergio
that ‘naturally promotes health’, and its possible repercussions in agroecological agenda cooptation. It is
Arouca (Ensp) – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil. discussed the importance of critical appropriation of concepts in deepening dialogues between the fields of
lorenaportelasoares@gmail. collective health and agroecology.
com

2 Fundação Oswaldo KEYWORDS Public health. Organic agriculture. Sustainable agriculture. Address.
Cruz (Fiocruz), Instituto
Nacional de Saúde da
Mulher, da Criança e do
Adolescente Fernandes
Figueira (IFF) – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil.

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 133-148, JUN 2022
134 Soares LP, Oliveira RM, Moraes DR

Introdução apropriação que reduz e, ao reduzir, produz


apagamentos. Sevalho2 aponta que, ao privi-
Este artigo apresenta resultados da disserta- legiar a objetividade e a operacionalidade, a
ção de mestrado intitulada ‘Agroecologia para saúde submete à deformação política concei-
adiar o fim do mundo? Uma análise dos olhares tos e categorias de outros campos científicos,
e dos discursos da saúde sobre a agroecologia’, amputando sua historicidade e criticidade.
apresentada ao Programa de Pós-Graduação Este estudo se dedica a investigar os cami-
em Saúde Pública da Escola Nacional de Saúde nhos que a saúde coletiva vem utilizando para
Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo relacionar agroecologia e saúde. Foram identi-
Cruz (Ensp/Fiocruz) em março de 2020. ficados aproximações, limites e tensionamen-
A agroecologia, nas últimas duas décadas, tem tos entre os modos de produção de sentidos e
sido um objeto no campo da saúde. Conforme o de práticas discursivas na saúde coletiva em
tema ganha relevância, há necessidade de saber relação a outras práticas científicas/sociais
de que maneira a agroecologia tem sido apropria- atualmente associadas ao termo agroecologia.
da nas diferentes narrativas da produção científi- Para embasar a análise, utilizaram-se os se-
ca em saúde coletiva no Brasil. Historicamente, a guintes referenciais teóricos: o modelo explica-
área da ‘saúde rural’ se ocupava do mundo agrário tivo de determinação social do processo saúde
quase inteiramente por meio de ações de profila- doença, mais especificamente, a atualização
xia. Passados mais de cem anos, como esse tema conceitual da determinação ‘estrutural-relacio-
está sendo abordado no campo da saúde? Mais nal’ elaborada em Borghi, Oliveira e Sevalho3; o
especificamente, como vem sendo tecidos os conceito de promoção da saúde em sua vertente
diálogos teóricos com o campo da agroecologia? ‘emancipatória’, elaborada em Freitas e Porto4; e
A agroecologia se configura a partir da a produção do conhecimento, nomeadamente, a
década de 1970 no Brasil e América Latina e noção de construção compartilhada do conheci-
é resultado da colaboração entre agricultoras/ mento, partindo de Oliveira5 e Valla6.
es, técnicas/os, pesquisadoras/es e das lutas
de movimentos populares. Como campo de
conhecimento, ela disputa o espaço da ciência Material e métodos
‘oficial’ no esforço de traduzir e sistematizar,
para essa linguagem, conhecimentos vivos A metodologia foi inspirada na busca siste-
que mantêm, há alguns milhares de anos, a mática7 seguida de um desenho qualitativo de
humanidade de pé. análise documental. A opção pelo artigo cientí-
O diálogo entre os campos da saúde e da fico para o corpus de análise se justifica por ser
agroecologia começa a acontecer pouco a um gênero textual que, uma vez selecionado
pouco, a partir de iniciativas de movimen- e publicado em determinados circuitos de
tos sociais ligados à agroecologia, como na produção do conhecimento, é representativo
ocasião do Encontro Nacional de Diálogos da ciência hegemônica. Para Castiel e Sanz-
e Convergências entre Agroecologia, Saúde Valero8, em tempos de intensa mercantilização
e Justiça Ambiental, Soberania Alimentar, dos bens intelectuais, os artigos são assumidos
Economia Solidária e Feminismo em 2011, em uma dimensão de moeda corrente, nego-
que, segundo Monteiro e Londres1, inicia o ciável no mercado acadêmico. 
fortalecimento de importantes alianças polí- A busca sistemática foi realizada nas bases
ticas entre redes da sociedade civil. de recuperação de referências da Scientific
Em relação à saúde coletiva, considera-se Electronic Library Online (SciELO) e do Portal
que, nesse campo interdisciplinar, há uma Regional da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS).
tendência a ‘fagocitar’ conceitos advindos O esquema na figura abaixo detalha os proce-
de outros campos científicos, uma forma de dimentos realizados (figura 1).

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 133-148, JUN 2022


Investigando os olhares da saúde coletiva sobre a agroecologia 135

Figura 1. Estudos da Saúde Coletiva/Pública sobre agroecologia no Brasil selecionados por descritores e/ou palavras-
chave

BIBLIOTECA VIRTUAL EM SAÚDE | 13/09/2019 SCIELO | 07/11/2019

ESTRATÉGIA DE BUSCA: "AGROECOLOGIA" ESTRATÉGIA DE BUSCA: "AGROECOLOGIA" AND


EM "TÍTULO, RESUMO, ASSUNTO" "SAÚDE" EM "TÍTULO, RESUMO, ASSUNTO"
n = 162 n = 20

ESTUDOS EXCLUÍDOS ESTUDOS EXCLUÍDOS


n = 144 n = 18
CRITÉRIOS DE EXCLUSÃO: CRITÉRIOS DE EXCLUSÃO:
•DUPLICADOS; •DUPLICADOS;
•SEM "AGROECOLOGIA" COM •SEM "AGROECOLOGIA" COM
"AGRICULTURA SUSTENTÁVEL" "AGRICULTURA SUSTENTÁVEL"
E COM CONTEÚDO RELACIONADO E COM CONTEÚDO RELACIONADO
COM AGROECOLOGIA OU COM COM AGROECOLOGIA OU COM
PRODUTIVIDADE/ANÁLISE AMBIENTAL; PRODUTIVIDADE/ANÁLISE AMBIENTAL;
•COM "AGROECOLOGIA"COMO •ESTUDOS DO TIPO TESE,
NOME DE CURSO OU EVENTO; DISSERTAÇÃO E MONOGRAFIA E
•PUBLICADOS EM REVISTA •PUBLICADOS EM REVISTA
NÃO BRASILEIRA E NÃO BRASILEIRA E
•PUBLICADOS EM REVISTA FORA •PUBLICADOS EM REVISTA FORA
DO CAMPO DA SAÚDE COLETIVA E DO CAMPO DA SAÚDE COLETIVA E
DA NUTRIÇÃO. DA NUTRIÇÃO.
18 ARTIGOS ESTUDOS INCLUÍDOS 02 ARTIGOS ESTUDOS INCLUÍDOS
CRITÉRIOS DE INCLUSÃO CRITÉRIOS DE INCLUSÃO
•ARTIGOS; •SER ARTIGO;
•TODOS OS ANOS; •TODOS OS ANOS;
•TODOS OS IDIOMAS DISPONÍVEIS; •TODOS OS IDIOMAS DISPONÍVEIS;
•COM CONTEÚDO RELACIONADO •COM "AGROECOLOGIA" OU
COM A AGROECOLOGIA; •COM "AGRICULTURA SUSTENTÁVEL" E
•PUBLICADOS EM REVISTAS CONTEÚDO RELACIONADO COM
BRASILEIRAS DO CAMPO DA SAÚDE A AGROECOLOGIA;
COLETIVA E NUTRIÇÃO. •SEM AGROECOLOGIA, MAS COM
CONTEÚDO RELACIONADO;
•PUBLICADOS EM REVISTAS BRASILEIRAS
DO CAMPO DA SAÚDE COLETIVA.
20 ARTIGOS

No intuito de produzir uma síntese quali- A Análise de Conteúdo (AC) e a Análise


tativa dos 20 artigos, foi elaborada a catego- do Discurso (AD) foram combinadas para
ria ‘nível de conformidade/criticidade’ dos auxiliar a reconhecer, no corpus, práticas
campos da saúde coletiva e da agroecologia, sociais discursivas características do campo
produzida a partir da conversão de parâmetros científico da saúde. A intenção não foi definir
qualitativos de análise em valores numéricos o que é ‘correto’ ou ‘falacioso’ nos discursos
e montagem de gráfico de dispersão para o da saúde sobre agroecologia, mas compre-
conjunto do corpus. ender diversidade e padrões que marcam os
Nesse exercício de apreensão visual da asso- textos, conteúdos explícitos e uso recorrente
ciação entre tendências mais ‘conformadas’ e de determinados conceitos, como também as
‘críticas’ nas discussões que relacionam saúde faltas e silenciamentos. Os limites da pesqui-
coletiva e agroecologia, levaram-se em conta sa se relacionam à capacidade de o conjunto
os distintos níveis atuais de estabilização dos de 20 artigos ser representativo das práticas
dois campos. Uma consequência metodológica discursivas da literatura acadêmica da saúde. 
foi a maior facilidade de mapear as ‘vertentes Ao longo da análise, emergiram ‘marcas
críticas’ dentro da saúde coletiva; enquanto no de discurso’9: palavras ou formas sintáticas
campo da agroecologia, as estratégias de insti- selecionadas para interpretação devido ao
tucionalização no Brasil levaram a caminhos estranhamento produzido com sua presença e/
distintos de produção acadêmica, de modo ou recorrência; a partir das ‘marcas de discur-
que há, atualmente, menos coalizão enquanto so’, foram elaboradas categorias operacionais,
‘campo de conhecimento’. partindo de algumas perguntas, por exemplo:

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 133-148, JUN 2022


136 Soares LP, Oliveira RM, Moraes DR

a agroecologia está sendo considerada em suas MeSH, uma árvore hierárquica de termos
dimensões indissociáveis de prática de cultivo organizadas a partir de uma linguagem de
de base ecológica, ciência transdisciplinar e indexação criada pela Bireme) como ‘agri-
movimento social10,11? Quando o artigo aborda cultura sustentável’, tendo como sinônimos:
a agricultura familiar ou a reforma agrária, o agricultura multifuncional, agricultura sus-
tipo de sistema de cultivo é posto em questão? tentada, agroecologia e multifuncionalidade
A pesquisa segue uma vertente mais confor- na agricultura; e como temas relacionados:
mada à produção hegemônica do campo ou conservação dos recursos naturais, agricul-
é um engajamento para produzir tensiona- tura orgânica e agricultura urbana. Por ser a
mentos, tanto do ponto de vista teórico como principal base de recuperação de referências
metodológico? Como considera a dimensão da saúde, as chaves classificatórias da BVS re-
dos saberes ‘popular’/’tradicional’/’local’ na fletem como opera a lógica hegemônica nesse
construção dos conhecimentos agroecológi- campo e em qual medida este é permeável a
cos? Como aborda questões de classe, gênero outros campos e práticas.
e cor/raça e suas interseccionalidades? A quantidade de artigos encontrados e a
As categorias elaboradas a partir das per- ausência do termo ‘agroecologia’ entre os des-
guntas foram organizadas em quadro, ali- critores demonstram que o termo está fora do
mentado com citações extraídas dos artigos escopo reconhecido como pertencente à área
e reflexões preliminares. Após, o conteúdo da saúde; e sua equivalência a ‘agricultura sus-
foi organizado em texto e tensionado com os tentável’ demonstra sua redução, pelo campo,
referenciais teóricos do estudo. a um conjunto de técnicas ou ‘ciência dura’. 
O quadro 1 a seguir resume informações
básicas dos 20 artigos, que foram organiza-
Resultados e discussão dos numericamente sem citar o nome das/os
autoras/es. Destaca-se uma concentração de
publicações nas regiões Sudeste e Sul. Apesar
Análise documental de 20 artigos da pequena extensão territorial de Santa
de revistas brasileiras do campo Catarina, uma hipótese ao elevado número
da saúde recuperados na BVS e no de publicações é o histórico de organização
SciELO da agricultura familiar de base ecológica no
estado. Embora sejam regiões com reconheci-
Os primeiros indícios de um processo de esva- das experiências em agroecologia, não foram
ziamento da agroecologia pelo campo da saúde identificadas publicações na região amazônica,
apareceram já na etapa de busca bibliográfi- Nordeste e Norte. A Fiocruz foi a instituição
ca. O termo ‘agroecologia’ é identificado nos com mais publicações em número absoluto,
descritores da BVS (a Biblioteca opera com considerando as unidades regionais distri-
Descritores em Ciências da Saúde – DeCS/ buídas pelo País.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 133-148, JUN 2022


Investigando os olhares da saúde coletiva sobre a agroecologia 137

Quadro 1. Caracterização dos 20 artigos segundo ano e revista de publicação, instituição de afiliação do primeiro autor,
estado da instituição e região de assunto do estudo

Região da Região como Financiamento


Nº Ano Revista Instituição Instituição Assunto da Pesquisa
1 2009 Revista Brasileira em UFSC - Dep. de Saúde Pública SC Brasil Não informado
Promoção da Saúde
2 2011 Saúde e Sociedade USP - Faculdade de Saúde Pública SP Brasil Não informado
3 2012 Revista Brasileira de Ensp/Fiocruz - C. Estudos Saúde RJ Brasil Não informado
Saúde Ocupacional Trabalhador e Ecologia Humana
4 2012 Saúde e Sociedade Ensp/Fiocruz - C. Estudos Saúde RJ Brasil Não informado
Trabalhador e Ecologia Humana
5 2012 Revista Brasileira de USP - Faculdade de Saúde Pública SP SP CNPq e Fapesp
Promoção da Saúde (bolsa)
6 2012 Revista Panamerica- USP - Faculdade de Saúde Pública SP Brasil Fapesp
na de Saúde Pública
7 2013 Interface UFSC - Dep. de Saúde Pública SC SC CNPq (bolsa)
8 2014 Interface IAM/Fiocruz- Progr. Pós-gradua- PE BA Não informado
ção em Saúde Pública
9 2014 Saúde e Sociedade Fundacentro SP SP Não informado
10 2014 Interface Uerj - Faculdade de Enfermagem RJ Brasil Não informado
11 2015 Ciência e Saúde UFRRJ - Prog. Pós-Grad Ciências RJ Brasil Não informado
Coletiva Sociais em Des., Agricultura e
Sociedade
12 2015 Revista de Nutrição UFSC - Departamento de Nutrição SC Brasil Não informado
13 2015 Ciência e Saúde USP - Faculdade de Saúde Pública SP SP CNPq e Fapesp
Coletiva (bolsa)
14 2017 Ciência & Saúde Embrapa - Dep. de Pesquisa e DF Brasil Não informado
Coletiva Desenvolvimento
15 2017 História, Ciências, UFFS - Progr. Pós-Grad. em PR SC CNPq (bolsa)
Saúde - Manguinhos Agroecologia e Desenv. Rural
Sustentável
16 2017 Interface UFSC - Departamento de Saúde SC SC Não informado
Pública
17 2018 Trabalho, Educação IAM/Fiocruz - Lab. Saúde, Am- PE PE Não informado
e Saúde biente e Trabalho
18 2018 Reciis Ensp/Fiocruz RJ Brasil CNPq e Faperj
19 2018 Saúde em Debate Unicamp - Faculdade de Ciências SP MG Não financiado
Médicas
20 2019 Revista Brasileira de UFRJ - Instituto de Economia RJ Brasil Fapesp
Saúde Ocupacional
Fonte: Elaboração própria.

A primeira aproximação para caracterizar quadro 2 foi construído com base em Borghi,
o corpus analítico foi elaborada a partir das Oliveira e Sevalho3 ao caracterizar as diferen-
principais perspectivas identificadas, nos 20 tes abordagens teóricas sobre determinação/
artigos, em suas abordagens sobre determina- determinantes sociais da saúde. Ressalta-se
dos temas e conceitos (ver quadro 2 abaixo). O que a divisão em três grandes perspectivas

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 133-148, JUN 2022


138 Soares LP, Oliveira RM, Moraes DR

(Conformadora/Instrumental; Crítica/ com um grau inevitável de redução e generali-


Estrutural; e Crítica/Emancipatória) busca zação, que não nega o gradiente mais amplo de
sintetizar marcações recorrentes identificadas perspectivas associadas a cada tema e conceito
nos textos – um exercício de ‘enquadramento’ elencados.

Quadro 2. Caracterização dos artigos selecionados conforme as principais perspectivas identificadas na abordagem de temas e conceitos presentes no
corpus analítico

PERSPECTIVAS DE ABORDAGEM NO DIÁLOGO ENTRE SAÚDE E AGROECOLOGIA


Perspectiva
Tema Conformadora/ instrumental Crítica/Estrutural Crítica/Emancipatória
Abordagem conceituação da biomédica; saúde pública questiona modelo biomédico; questiona modelo biomédico;
da saúde saúde abordagem instrumental da saúde abordagem crítica da saúde co-
coletiva letiva
modelo explicativo determinantes (explicitado) ou não diferencia determinantes/ determinação (explicitada)
determinação com pespectiva dos determinação, mas adota perspec.
determinantes da determinação
Abordagem conceituação da sistema de cultivo; equivalente a ciência, mov. social e prática ciência, mov. social e prática
da agroeco- agroecologia outras agriculturas 'sustentáveis' separáveis; equivalente a outras indissociáveis; reconhece disputas
logia agriculturas 'sustentáveis' ('agroecologias')
quanto à origem apagamento da historicidade situa surgimento na artic. agricul- surgimento integra agricultores,
tores, mov. sociais e academia mov. populares e academia;
origem conh. popular/indígena/
tradicional
sujeitos da agroe- academicos, técnicos, agricultores acadêmicos, técnicos, agricultores acadêmicos, técnicos, agricultores
ologia familiares familiares/camponeses familiares/camponeses, povos das
florestas e das águas
objetivo da agroe- aperfeiçoamento do sistema transformação do sistema agroa- transformação do sistema agroali-
cologia alimentar limentar mentar e emancipação;
conceitos associa- desenvolvimento sustentável agroecossistema; campo de co- campo de conhecimento; agro-
dos nhecimento; sistema de cultivo; ecossistema; regime alimentar;
abordagem sistêmica sistema agroalimentar
Eixo positivo benefícios Segurança Alimentar e Nutri- SAN e soberania alim.; promoção (Soberania e Segurança Aali-
saúde - agri- cional (SAN) e soberania alim.; da saúde (perspec. crítica); refor- mentar e Nutricional) SSAN;
cultura promoção da saúde (perspec. ma agrária promoção da saúde (crítica/
dominante) emancipatória); reforma agrária e
reconhecimento dos territórios
eixo conectivo causal; agroecologia naturalmente agroecologia influencia na saúde; agroecologia e saúde assoc. en-
promove saúde agroecologia determina a saúde quanto propostas de emancipação
Eixo negativo soluções uso funcional e uso seguro de banimento de agrotóxicos; pre- banimento de agrotóxicos; agroec.
saúde - agri- agrotóxicos; mitigação e preven- venção; agroec. para superar o e superação agronegócio; agroec.
cultura ção; agroeoc. para aprimorar o agronegócio com equidadade gênero/racial
agronegócio
malefícios agravos à saúde trabalhador/con- agravos à saúde do trabalhador/ agravos à saúde do trabalhador/
sumidor (genéricos) consumidor e impactos ao am- consumidor (por segmentos
biente (genéricos) sociais) e demais organismos
conceitos associa- risco; vulnerabilidade; estilo de risco; vulnerabilidade; situação risco; vulnerabilidade; prevenção;
dos vida; prevenção; mitigação; reme- de saúde; prevenção; condições situação de saúde; condições de
diação de vida vida; experiências de vida

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Investigando os olhares da saúde coletiva sobre a agroecologia 139

Quadro 2. (cont.)
PERSPECTIVAS DE ABORDAGEM NO DIÁLOGO ENTRE SAÚDE E AGROECOLOGIA
Perspectiva
Tema Conformadora/ instrumental Crítica/Estrutural Crítica/Emancipatória
Legitimidade fluxo conhec. cien- transferência unilateral do conhe- integração do conhecimento construção compartilhada do
do conheci- tífico/técnico - po- cimento conhecimento
mento pular
conceitos associa- empoderamento; protagonismo; empoderamento; protagonismo; autonomia e interdependência;
dos percepção; interpretação; saberes autonomia percepção; interpreta- emancipação; resistência; conhe-
ção; saberes cimento
Propostas ao proposições à aca- não problematiza ciência; propõe problematiza ciência; propostas problematiza ciência; proposta
campo cientí- demia inclusão de temas na dimensão epistemológica dimensão epistemológica e on-
fico da saúde tológica
conceitos associa- interdisciplinaridade; educação interdisciplinaridade; transdicipli- educação popular (emancipatória)
dos popular (tutelar) nariedade transdisciplinaridade; cosmologia
Abordagem relação campo - dualidade como presuposto; dualidade como pressuposto; dualidade em questão (constru-
do 'meio cidade campo à serviço da cidade aproximação pela relação produ- ída); integração nas resistências
ambiente' ção - consumo cotidianas
relação natureza- dualidade como pressuposto estabelece relação e mantém questiona dualidade com vistas à
-cultura dualidade superação
conceitos associa- recurso natural; serviço ecossis- recurso/bem natural; serviço recurso/bem natural; serviço
dos têmico ecossistêmico; saúde ambiental ecossistêmico; saúde ambiental;
pachamama; mãe terra
Projeto socie- soluções mitigação/redução das desigual- redução de desigualdades sociais disitrib. recursos e medidas repa-
tário dades; desenvolvimento susten- e distribuição dos recursos produ- ratórias; desenv. susten. crítico/
tável tivos; desenvolvimento sustentá- outras formas de 'envolvimento'
vel crítico
escala das soluções proposta universal e uniforme proposta local e/ou universal proposta local e/ou transescalar
e/ou territorializada
problematização das conformada ao sistema econômi- questiona sistema econômico; questiona sist. econômico, co-
relações de poder co (capital./neoliberal.); consumi- consumidor porta responsabilida- lonialismo, patriarcado; aconsu-
dor portador de responsabilidades des e sujeito porta direitos midor porta responsabilidades e
(culpabilização individual) sujeito porta direitos; autodermi-
nação dos grupos sociais
conceitos associa- intersetorialidade; participação intersetorialidade; participação intersetorialidade; desigualdade;
dos social; pobreza; desigualdade social; desigualdade; iniquidade; iniquidade; classe, raça, gênero;
classe controle cidadão; vigilância civil
da saúde

Fonte: Elaboração própria.

Em síntese, o fenômeno que atravessa o ‘crítica’ à medida que demarcam os referen-


corpus analítico decorre de uma composição ciais utilizados para produção de tensiona-
mista de forças entre saúde coletiva e saúde mentos no campo.
pública: em alguns artigos, a saúde coletiva A partir da observação de alguns padrões
está presente no discurso, mas é incorporada entre os artigos, sintetizados no quadro 2, foi
instrumentalmente como saúde pública, ou possível exercitar a construção de parâmetros
seja, em boa parte do corpus, pressupostos qualitativos de criticidade específicos para o
epistemológicos dominantes do campo da corpus analisado, disponíveis no quadro 3, os
saúde são utilizados sem problematização. quais foram utilizados na construção do gráfico
Outros artigos os incorporam de maneira mais de dispersão ‘Conformidade/Criticidade’.

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140 Soares LP, Oliveira RM, Moraes DR

Quadro 3. Parâmetros qualitativos de referência para elaboração ‘nível de conformidade/criticidade’ na abordagem sobre
agroecologia e saúde coletiva no corpus e o gráfico de dispersão elaborado utilizando esses parâmetros. Cada ponto no
gráfico representa um dos 20 artigos analisados

PARÂMETROS QUALITATIVOS DO GRÁFICO CONFORMIDADE X CRITICIDADE VALOR (-5 a 5)


Abordagem (a) conceituação sistema de cultivo; equivalente a outras agriculturas 'susten- -1
da agroeco- da agroecologia táveis'
logia sem conceituação explícita e sem elementos suficientes para 0
identificar/definir
ciência, mov. social e prática indissociáveis; reconhece dispu- 1
tas ('agroecologias')
(b) quanto à apagamento da historicidade -1
origem sem conceituação explícita e sem elementos suficientes para 0
identificar/definir
situa surgimento na artic. agricultores, mov. sociais e acade- 1
mia
integra agricultores, mov. populares e academia; origem co- 2
nhec. popular/indígena/tradicional
(c) dimensão aprimoramento do agronegócio; desenvolvimento sustentável -1
da agroecologia (definição dominante); solução universal/uniforme
como “solução” sem conceituação explícita e sem elementos suficientes para 0
para a saúde identificar/definir
superação do agronegócio; desenv. sustentável crítico 1
superação do agronegócio; desenv. susten. crítico/outras 2
formas de 'envolvimento'; equidadade gênero/racial
PARÂMETROS QUALITATIVOS DO GRÁFICO CONFORMIDADE X CRITICIDADE VALOR (0 a 10)
Abordagem (d) conceituação sem conceituação explícita e sem elementos suficientes para 0
da saúde da saúde e/ou identificar/definir
de promoção da biomédica; saúde pública; promoção da saúde (perspec. 1
saúde dominante)
questiona modelo biomédico; abordagem instrumental da 2
saúde coletiva; promoção da saúde (perspec. crítica)
questiona modelo biomédico; abordagem crítica da saúde 3
coletiva; promoção da saúde (crítica/emancipatória)
(e) modelo expli- sem conceituação explícita e sem elementos suficientes para 0
cativo identificar/definir
determinantes (explicitado ou subjacente) ou determinação 1
com pespectiva dos determinantes
não diferencia determinantes/determinação, mas adota pers- 2
pec. da determinação
determinação (explicitada ou subjacente); determinação 3
'estrutural-relacional'
(f) eixo conectivo sem conceituação explícita e sem elementos suficientes para 0
saúde - agricul- identificar/definir
tura abordagem 'causal'; agroecologia naturalmente promove 2
saúde
abordagem 'estrutural'; agroecologia determina a saúde e 3
potencialmente promove saúde
agroec. potencialmente promove saúde; agroec. e saúde 4
assoc. enquanto propostas para emancipação/ transformação
social

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 133-148, JUN 2022


Investigando os olhares da saúde coletiva sobre a agroecologia 141

Fonte: Elaboração própria.

A partir dos elementos textuais (presentes e paradigma científico ocidental e reconhecendo


ausentes), foram elaborados parâmetros especí- a pluralidade de atores que integram os sistemas
ficos para classificar as distintas formas de abor- agroalimentares; que inclui dimensão das trans-
dagem ligadas à saúde, e outros para as formas formações sociais necessárias aos processos de
de abordagem ligadas à agroecologia. Esses transição para a agroecologia – perpassando
parâmetros foram traduzidos em duas escalas questões de gênero, raça/etnia e classe; além
numéricas, em um exercício de aproximação. do quadro 3, para um maior detalhamento dos
Embora se reconheça o campo de dispu- parâmetros utilizados na construção do gráfico
tas na produção científica em saúde e que de dispersão14.
nenhuma produção é ‘desinteressada’, tomou- A combinação do valor numérico represen-
-se como critério de criticidade aquele que se tativo do ‘grau de criticidade’ da abordagem
aproxima mais da possibilidade emancipa- da saúde (0 a 10, relativo ao eixo y, vertical) e
tória de promoção da saúde. As abordagens do valor numérico representativo do ‘grau de
são menos críticas ou mais ‘conformadas’ no criticidade’ da abordagem da agroecologia (-5
sentido de aderidas aos referenciais hegemô- a 5, relativo ao eixo x, horizontal) fornece a
nicos de produção da ciência no campo da posição final para a publicação no gráfico. No
saúde coletiva, próximas do que Quijano12 eixo vertical, quanto mais próximo de ‘0’, mais
nomeia ‘colonialidade do saber’, mais associa- acentuada é uma incorporação ‘conformada’
das às perspectivas regulatória e normativa13, dos referenciais epistemológicos do campo
dominantes no campo. da saúde; deslocando-se no eixo em direção
Em relação à agroecologia, como padrão de ao valor ‘10’, maior é a incorporação crítica
criticidade, foi utilizada a vertente do campo desses referenciais, no sentido da produção
orientada por princípios ecológicos e, também, de tensionamentos no campo. Já na análise
por princípios éticos, na perspectiva das rela- da abordagem sobre agroecologia, no eixo ho-
ções entre quem dispõe da terra, quem produz, rizontal, foram alocados na posição ‘0’ dois
quem consome e quem reivindica a ‘proprieda- artigos em que a palavra agroecologia não é
de’ dos conhecimentos; que valoriza as contri- mencionada, o que inviabilizou a análise do
buições de conhecimentos construídos fora do nível de ‘criticidade’ na sua conceituação.

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142 Soares LP, Oliveira RM, Moraes DR

Ressalta-se que a análise gráfica não tem como do conhecimento, potencializando a relação
intenção julgar o valor individual das publica- entre o ‘conhecimento local’, o ‘conhecimento
ções, mas facilitar uma apreensão visual das científico’ e diferentes tipos de conhecimentos
tendências encontradas na AC e na AD do corpus. ‘codificados’, bebendo das controvérsias que
Esses dois ‘gradientes numéricos de criticidade’ emergem dos espaços de construção agroeco-
foram criados para esse conjunto específico; e, lógicos. Considera-se ainda que estabelecer
inevitavelmente, os artigos estão posicionados a distinção entre agroecologia e agricultura
no gráfico um em relação aos outros. orgânica é fundamental para evidenciar as
É apresentada, a seguir, a análise dos textos disputas no uso desses termos.
do corpus analítico, a partir de procedimentos Foi observada ainda uma opção majoritária
combinados que se aproximam da AC e da AD. por tomar como ‘objeto’ da agroecologia o
espaço do cultivo ou o agroecossistema. Nesse
Eixos centrais da relação entre saúde sentido, considera-se como alternativa impor-
e agroecologia tante a utilização do ‘sistema agroalimentar’
como categoria de referência que, por ser mais
Da análise dos 20 artigos, emergiram 4 eixos abrangente, tem o potencial de contribuir nas
temáticos principais, apresentados a seguir. discussões sobre promoção da saúde no Brasil,
Existe um movimento importante e crescente facilitando olhar, por exemplo, como dinâmi-
nas discussões sobre agroecologia dentro da cas nos sistemas de produção, circulação e
saúde coletiva, e os artigos analisados estão consumo de produtos da agricultura explici-
mais nucleados em torno de certos temas e tam, reforçam ou tensionam à transformação
paradigmas: nutrição e segurança alimentar estruturas sociais profundamente desiguais
e nutricional, riscos e agravos associados ao que balizam as condições e possibilidades de
uso de agrotóxicos e promoção da saúde. A transição a modelos de agricultura de base
partir da segunda metade da década de 2010, ecológica.
os temas se diversificam, abarcando, pouco
a pouco, discussões voltadas à educação, à ABORDAGENS SOBRE PROMOÇÃO DA SAÚDE E
comunicação e à arte. USO DE AGROTÓXICOS

AGROECOLOGIA SEGUNDO O CAMPO DA O uso de agrotóxicos é um eixo temático impor-


SAÚDE tante em 4 dos 20 artigos analisados. Já a ‘pro-
moção da saúde’ é conceituada em 5 estudos,
No corpus, 12 artigos apresentam conceitu- todos eles referenciando a Carta de Ottawa16,
ações sobre ‘agroecologia’; observou-se que estabelecendo uma relação entre promoção da
algumas/os autoras/es se engajam na defesa saúde e agroecologia a partir dos benefícios que
de uma proposta excessivamente genérica ou sistemas produtivos ecológicos trazem para
idealizada da agroecologia. Observaram-se, em a qualidade do alimento e do meio ambien-
parte desses artigos, um apagamento da histo- te ao transformarem práticas alimentares e
ricidade da agroecologia, uma desconsideração de cuidado dos agricultores e consumidores.
da existência de vertentes distintas no interior Além disso, ‘determinantes socioambientais
do campo e a apresentação da agroecologia da saúde’ e ‘determinação social do proces-
como equivalente à ‘agricultura orgânica’. so saúde-doença’, categorias importantes ao
Para Schmitt15, um traço distintivo da campo da saúde coletiva, não parecem ser uma
agroecologia seria o tipo de circulação que questão conceitual dos estudos, tampouco a
ela busca estabelecer como campo de estudos: demarcação de suas diferenciações.
não apenas entre diferentes disciplinas cientí- Como contribuição, essas pesquisas que
ficas, mas entre distintas formas de produção relacionam promoção da saúde e agroecologia

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Investigando os olhares da saúde coletiva sobre a agroecologia 143

assinalam a importância de incluir com mais Outro aspecto relevante nos artigos analisados
atenção a dimensão da saúde nas discussões são as relações entre campo e cidade. Em alguns
das áreas de conhecimento ligadas ao meio artigos, o ambiente rural é apresentado como um
ambiente/proteção ambiental e a importância espaço importante para prevenção de doenças,
de considerar a agricultura nas estratégias de já que pode ser um local de produção de alimen-
promoção da saúde. tos ‘de qualidade’. Esse tipo de relação pode ser
Observou-se também que, entre os princí- demonstrativo de uma compreensão do rural
pios orientadores da agricultura de base eco- como lugar cujo fim é produzir para a cidade e,
lógica, um é destacado com mais frequência por conseguinte, dos sujeitos do mundo rural
que os demais: a não aplicação de agrotóxicos/ como aqueles que devem aprender a produzir
pesticidas e fertilizantes químicos nos sistemas (sem agrotóxicos) para servir melhor.
de cultivo. Discursos que vinculam agricultura No sentido inverso, considera-se que a
e saúde a partir do risco oferecido por determi- saúde também pode ser objetificada quando
nadas práticas, ou que que equivalem as práticas abordada desde o campo da agroecologia, se
de cultivo agroecológico à não utilização – ou reduzida a um ‘efeito’ do cultivo sobre bases
mesmo ao uso funcional dos agrotóxicos e de ecológicas, encobrindo questões fundamen-
insumos sintéticos –, podem indicar uma com- tais ligadas às condições de saúde e vida das
preensão reduzida da agroecologia enquanto populações e à diversidade de sujeitos que
técnica de cultivo, e sua defesa pela sua reper- compõem os sistemas agroalimentares. Se a
cussão positiva na ‘saúde’. agricultura de base ecológica libera agricul-
Destaca-se que, apesar de o termo ‘Agrotóxicos’ toras/es dos efeitos da aplicação de veneno,
aparecer no título e/ou palavras-chave dos artigos outras adversidades à saúde persistem entre
recuperados, no portal regional da BVS, ele é con- populações do campo, populações tradicionais
vertido para o descritor ‘Agroquímicos’, ao ser e povos indígenas, como, por exemplo, o agra-
traduzido do descritor em inglês ‘Agrochemicals’ vamento das violências e a precariedade no
(língua original do DeCS/MeSH), apresentado acesso a serviços básicos de assistência à saúde
como sinônimo de ‘Produtos Agroquímicos’ e e saneamento, que também ameaçam a per-
‘Defensivo(s) Agrícola(s)’ e associado hierarquica- manência das populações em seus territórios.
mente aos descritores ‘Fertilizantes’ e ‘Praguicidas’.
Nas próprias bases de busca, identificam-se, assim, CONFORMAÇÃO X TRANSFORMAÇÃO: RUMO
mecanismos que podem auxiliar a justificar ou AO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL OU A
legitimar o uso dos agrotóxicos no campo da saúde. OUTRAS FORMAS DE ENVOLVIMENTO?
Apesar de avanços nas abordagens sobre ‘pro-
moção da saúde’, incluindo a dimensão das influ- Além das concepções sobre ‘agroecologia’,
ências à saúde externas ao indivíduo (ambientais as noções de ‘sustentabilidade’ e ‘desenvol-
e sociais), por vezes, nelas não são transpostos vimento sustentável’ auxiliam a identificar a
alguns limites importantes para compreensão do diversidade das formas de engajamento nos
processo saúde-doença em sua complexidade. Há, artigos: mais conformadoras ou mais proble-
no corpus, uma tendência gerencialista na com- matizadoras do modelo de sociedade dentro
preensão da relação ‘agroecologia – saúde’, que do qual se desenrolam as possibilidades de
considera que ambientes e alimentos mais ‘sau- diálogos entre saúde e agroecologia relatados
dáveis’, ‘limpos’, ‘naturais’ são geradores de saúde e/ou desejados.
para aqueles que os consomem; em alguns casos, Sustentabilidade/desenvolvimento sus-
é incluído ainda na discussão o caráter educativo tentável aparecem em 12 dos 20 documentos,
das ações de promoção da saúde por meio da na maior parte deles, sem uma definição do
‘conscientização da população’ para transforma- termo. Quando conceituados, as referências
ção nos seus comportamentos e ‘estilos de vida’. são feitas ao relatório de Brundtland17. Ainda,

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144 Soares LP, Oliveira RM, Moraes DR

em 4 artigos, a agroecologia é considerada protagonismo das mulheres na agroecologia.


equivalente à ‘agricultura sustentável’ ou uma Alguns estudos consideram que a agroecolo-
forma desta. gia pressupõe a integração entre conhecimento
A referência a documentos produzidos por de agricultores e o conhecimento científico.
organismos multilaterais, como a Organização Outros abordam, adicionalmente, o papel da
das Nações Unidas (ONU) e a Organização agroecologia no resgate de conhecimentos
Mundial da Saúde (OMS), é um recurso para ‘tradicionais’, ‘ancestrais’, ‘locais’, ‘populares’
conferir legitimidade ao estudo, já que docu- (proveniente de grupos camponeses, indíge-
mentos como a Carta de Ottawa sobre promoção nas, quilombolas e outras populações tradi-
da saúde e o relatório sobre desenvolvimento cionais, ou resultantes de influências entre
sustentável são internacionalmente ‘consagra- as práticas de povos originários, europeus
dos’ e relevantes para o campo da saúde pública/ e africanos no Brasil), ligados ao cultivo de
coletiva. Entretanto, a adoção acrítica dos sen- alimentos e às práticas de cuidado, eventual-
tidos e as propostas neles cunhados – sobre mente, sem questionar processos de produção
promoção da saúde, determinantes sociais da de hegemonia na ciência.
saúde e desenvolvimento sustentável – trazem Nenhum dos artigos discutiu a questão in-
limites importantes às conexões estabelecidas dígena ou da saúde indígena; apenas 1 entre
entre saúde e agroecologia.  os 20 estudos foi realizado com a população
É desejável e importante que autoras/res da tradicional (neste caso, de matriz africana);
saúde se dediquem, por um lado, a um exercício nenhum deles se dedica ao tema das mulheres
de atualização, aprofundamento e seleção dos na agroecologia ou discute seu protagonismo
referenciais conceituais de embasamento ao na construção do conhecimento agroecológico.
campo da agroecologia e, por outro, ao esforço A dimensão da experiência da ‘coloniali-
de explicitar os referenciais utilizados, locali- dade’18 pode ajudar a compreender marcas
zando os pressupostos teóricos que orientam a intelectuais nos nossos padrões de produção
aplicação de termos como ‘sustentabilidade’ e do conhecimento, sobretudo em relação às
‘agricultura sustentável’, considerando as ine- ‘ausências que persistem’ nas discussões sobre
rentes transformações nas formas de apropria- desigualdades sociais e condições de saúde.
ção e uso de tais categorias ao longo do tempo. Tais resultados podem ajudar a compre-
ender as diferentes disposições das/dos pes-
AUSÊNCIAS PERSISTENTES: LEGITIMIDADE DO quisadoras/es em revisar espaços de poder
CONHECIMENTO consolidados e se colocar a serviço de outros
sujeitos que também constroem conhecimen-
Buscou-se observar concepções sobre os to em saúde e agroecologia, porém sem as
processos de construção do conhecimento mesmas pré-condições de legitimidade dos
em saúde e/ou em agroecologia e verificar espaços oficiais de produção científica. A pro-
a coerência entre a abordagem teórica da priedade intelectual não é demarcada somente
produção do conhecimento e a condução da recorrendo-se ao sistema de patentes; basta
proposta metodológica em cada um dos 20 ignorar origens e contribuições de determi-
estudos. Foram identificadas 5 publicações nados conhecimentos.
nas quais o saber acadêmico é problematizado, Considera-se que o tempo requerido para
relativizado e/ou tem seus limites discuti- uma pesquisa construída em base horizontal/
dos. Outro aspecto importante identificado compartilhada, por vezes, é incompatível com os
no corpus analítico é o silenciamento sobre as atuais imperativos de produtividade acadêmica.
matrizes de conhecimento de povos indígenas Admite-se também a possibilidade de uma maior
e africanos que compõem parte fundamental dificuldade por parte das/os pesquisadoras/es de
do conhecimento agroecológico, e sobre o instituições alocadas nos centros urbanos para

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Investigando os olhares da saúde coletiva sobre a agroecologia 145

trabalhar com grupos mais afastados geogra- campo científico e, como tal, pode aportar outras
ficamente. Pode ser, ainda, que os referenciais possibilidades epistemológicas à saúde.
teóricos utilizados pelas/os autoras/os se liguem No processo de análise dos artigos, procu-
à vertente da agroecologia mais afeita às ciências rou-se levar em conta limites característicos
duras/naturais. Fato é que, entre as publicações desse gênero textual de tamanho reduzido e,
dos grupos de pesquisa da saúde coletiva que ocasionalmente, conformado às exigências
têm se dedicado a discutir agroecologia nas ins- da própria revista científica, que inviabiliza
tituições brasileiras – e conseguido divulgar seus maiores discussões acerca dos pressupostos
resultados –, não foi encontrada uma abordagem teóricos da pesquisa, ainda que esta se posi-
mais aprofundada das dimensões de cor ou raça/ cione criticamente sobre os referenciais do
etnia e gênero. campo da saúde. Ainda assim, foi confirmado
o pressuposto inicial de que quando temas e
conceitos são apropriados do campo da agro-
Considerações finais: ecologia para a saúde coletiva, por vezes eles
algumas reflexões para são submetidos à “alienação e deformação po-
lítica”2(179). Ao contrário, quando a saúde adota
a saúde coletiva sobre uma posição crítica ao discutir agroecologia,
caminhos possíveis ao lado as próprias bases epistemológicas da saúde
da agroecologia coletiva podem ser tensionadas, trazendo à
luz dificuldades e equívocos do campo ao se
Tendo em vista o poder social conferido à ciência apropriar desses conceitos.
e àqueles que falam por ela19, importa analisar os Pressupunha-se que a vertente do campo
discursos e as ausências produzidos em seu inte- da agroecologia que a compreende como uma
rior. As ciências da saúde, em especial, ocupam técnica – que possui mais possibilidades de
um espaço legitimado para prescrever o que faz institucionalização – estivesse associada a
‘bem’, o que deve ser ‘feito’, o que é ‘verdadeiro’. perspectivas mais ‘regulatórias’ da saúde. Foi
Investigar a produção do conhecimento desde a verificado, no corpus, que a maior parte das
saúde coletiva teve como intenção compreender publicações pode ser considerada ‘híbrida’ de
de que maneira sua prática científica pode co- níveis variados entre essas abordagens. Como
laborar no fortalecimento e na legitimação ou, hipóteses, pergunta-se: referenciar a vertente
ao contrário, no esvaziamento e na cooptação explicitamente mais ‘crítica’ da agroecologia
da agroecologia. torna a pesquisa menos propícia a receber um
A ausência da palavra ‘agroecologia’ do parecer favorável à publicação na BVS? Ou
sistema de descritores da BVS e sua equivalência então, a militância envolvida com a agroecologia
a termos genéricos como ‘agricultura sustentável’ dispõe de energia e vontade para se engajar em
pode ser indicativa de mecanismos de apazigua- disputas nos espaços de produção científica?
mento dos embates ligados à questão agrária Outro tema para atenção é a afirmação da
e ambiental, e que podem ter efeito limitante agroecologia como ‘naturalmente’ promoto-
nas discussões sobre o tema na grande área das ra de saúde e sua defesa como ‘nova grande
ciências da saúde e na saúde coletiva. solução’, que expressa a postura universali-
A análise da apropriação da agroecologia pelo zante da cultura científica8. Se a agroecologia
campo da saúde, nos 20 artigos, pode ser com- é um componente importante na conquista de
preendida a partir de dois polos ou ‘movimentos’ condições dignas de saúde e vida, as estraté-
principais: ora agroecologia é um conceito e, gias de transformação que têm se mostrado
como conceito/termo/coisa, pode ser confor- efetivas, segundo a Carta de Salvador20, são
mada aos paradigmas dominantes do campo; aquelas que integram múltiplas perspecti-
ora é reconhecida também em sua condição de vas: da agroecologia, da soberania alimentar

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146 Soares LP, Oliveira RM, Moraes DR

e energética, da economia solidária, do femi- Em decorrência da própria heteronomia22


nismo e da justiça social e ambiental, e que característica do campo da saúde, desafios no
têm como base a organização prévia e a forte diálogo com a agroecologia advêm, de um lado,
identidade territorial das comunidades. das tendências de instrumentalização, regu-
A visibilidade da agroecologia por or- lação e normatização dominantes no campo
ganismos multilaterais, após mais de 30 – que reduzem a condição indissociável de
anos de negligenciamento do movimento ‘movimento/ciência/prática’ da agroecologia
agroecológico, vem ocorrendo hoje com – e, de outro, do desafio de produzir conheci-
tensionamentos entre diferentes lógicas mento com os grupos populares/movimentos
de legitimidade/valoração: um reconhe- sociais ligados à agroecologia sem submeter
cimento que desterritorializa, avançando o campo a um processo de incorporação de-
sobre o que é comum – as bases, as raízes e liberada de suas demandas. Considera-se que
os contextos. Há uma crescente tentativa de o modelo explicativo de determinação social
consolidar a agroecologia como um conjun- do processo saúde-doença é um referencial
to de técnicas/tecnologias de cultivo com importante para orientar a inserção da agroe-
potencial de mitigar a crise da produção cologia no campo da saúde coletiva, especial-
alimentar industrial, ao mesmo tempo que se mente sua atualização ‘estrutural-relacional’3.
garante a manutenção dos arranjos/circuitos Os intensos embates simbólicos em torno da
dominantes de produção e consumo, sem agroecologia, as distintas formas de compreen-
contestar as estruturas de poder. são e pontes que vêm sendo construídas entre
É reconhecida que a criação da legitimi- a agroecologia e a saúde demonstram que a
dade na agroecologia é um processo político disputa ainda está acontecendo sobre uma parte
no qual a ciência desempenha autoridade21. “não resolvida da ciência”23(166), de uma iden-
‘Agroecologia’ enquanto conceito/ideia pode tidade da agroecologia ainda em elaboração.
servir a segmentos distintos da sociedade, Ao considerar a agroecologia, a saúde
direcionamentos que se dão conforme a pública, o futuro: nem avidez por uma solução
opção por determinada abordagem em uma pronta, única, unidirecional; tampouco a
pesquisa. Assumir a existência de ‘diferentes apatia, a indiferença, a paralisia. Nem a ânsia
agroecologias’ não as iguala ou as planifica por soluções universais, muito menos garan-
em termos de ‘validade’; atentar às origens tias: mas oportunidades de experimentar, de
de conceitos e definições não é, sequer, um caminhar permitindo as perguntas como guia
preciosismo acadêmico. Os conceitos estão generosas. Com olhar curioso, podemos con-
em disputa, e ignorar suas distinções ou siderar tais embates como potencialidades de
tratá-los com superficialidade são esco- uma controvérsia que ainda está ‘aberta’: um
lhas políticas que favorecem condições de momento propício para direcionar o trabalho
cooptação/captura da agroecologia pelos científico à construção de imaginários pode-
interesses tecnocientíficos dominantes. rosos de mobilização24 em torno das relações
Assim, o esforço de análise da produção entre saúde e agroecologia.
teórica da saúde sobre a agroecologia não se
direcionou a ‘encaixar’ os textos entre duas
propostas societárias opostas, reduzi-los à Colaboradoras
binaridade regulação/emancipação, muito
menos diferenciar abordagens verdadeiras das Soares LP (0000-0002-3265-3562)*, Oliveira
falsas; mas compreender como determinados RM (0000-0003-2338-1347)* e Moraes DR
discursos e tomadas de posição expressam ou (0000-0002-5600-5412)* contribuíram igual-
*Orcid (Open Researcher
tencionam as referidas disputas. mente para a elaboração do manuscrito. s
and Contributor ID).

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Investigando os olhares da saúde coletiva sobre a agroecologia 147

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Recebido em 30/09/2020
4(115):1-24. Aprovado em 14/06/2021
Conflito de interesses: inexistente
Suporte financeiro: não houve

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ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE 149

Cultivo Biodinâmico de Plantas Medicinais


em Agroflorestas na Promoção de
Territórios Saudáveis e Sustentáveis: uma
proposta pedagógica de formação-ação
Biodynamic Cultivation of Medicinal Plants in Agroforests to
Promote Healthy and Sustainable Territories: a pedagogical proposal
for training-action

Gislei Siqueira Knierim1, Virginia da Silva Corrêa1, Nelson Filice de Barros2, Marcos Antonio
Trajano Ferreira3, Ximena Soledad Moreno Sepúlveda1, Ana Paula Andrade Silva Milhomem1,
André Luiz Dutra Fenner1

DOI: 10.1590/0103-11042022E210

RESUMO A formação-ação no contexto da saúde coletiva pode ser estratégica para a resistência a esse modelo de
agronegócio deletério e excludente, pois engendra um conjunto de práticas que modificam a maneira de sentir,
pensar e agir em relação aos usos da terra; e fortalecem o movimento agroecológico, as práticas integrativas
complementares de cuidado e as formas solidárias, democráticas e inclusivas de se relacionar com a natureza.
A formação-ação: Cultivo Biodinâmico de Plantas Medicinais em Agroflorestas na Promoção de Territórios
Saudáveis e Sustentáveis no Distrito Federal, nasce da confluência de outras experiências associada à neces-
sidade de construir estratégias para a formação de profissionais e comunidades relacionados com ações em
saúde para a promoção de territórios saudáveis e sustentáveis, constituído de bases teórico-metodológicos que
envolvem educandos, educadores e comunidades, e articula diferentes categorias de análise para a construção e
ressignificação do conhecimento, contando com ferramentas pedagógico-metodológicas baseadas na Pedagogia
da Alternância e organizadas em tempos distintos do processo ensino-aprendizagem. A matriz curricular
organiza-se em dois módulos: Desenvolvimento, Ciência e Saúde; e Agrofloresta, Arranjos Produtivos e Saúde.
A formação é um meio de transformar a realidade local, de promover a saúde, de dialogar com as comunidades
e de reconhecer os territórios.

PALAVRAS-CHAVE Formação-ação. Cultivo biodinâmico. Plantas medicinais. Agrofloresta. Territórios.

ABSTRACT Training-action, in the context of collective health, can be strategic for resisting this harmful and
exclusive agribusiness model, as it engenders a set of practices that modify not only the way of feeling, thinking
and acting in relation to land uses, and they strengthen the agroecological movement, complementary integrative
1 Fundação
care practices and the solidary, democratic, and inclusive ways of relating to nature. Training-action: Biodynamic
Oswaldo Cruz
(Fiocruz) – Brasília (DF), Cultivation of Medicinal Plants in Agroforestry in the Promotion of Healthy and Sustainable Territories in the
Brasil. Federal District arises from the confluence of other experiences associated with the need to build strategies for the
gislei.knierim@fiocruz.br
training of professionals and communities related to health actions to promote healthy and sustainable territories,
2 Universidade Estadual constituted by theoretical-methodological bases that involve students, educators, and communities, and articulates
de Campinas (Unicamp), different categories of analysis for the construction and reframing of knowledge, having pedagogical-methodological
Faculdade de Ciências
tools based on the Pedagogy of Alternation and organized at different times of the teaching-learning process. The
Médicas (FCM),
Departamento de Saúde curriculum matrix has 2 modules: Development, Science, and Health; and Agroforestry, Productive Arrangements,
Coletiva (DSC) – Campinas and Health. Training is a means to transform the local reality, to promote health, to dialogue with communities,
(SP), Brasil.
and to recognize the territories.
3 Secretariade Saúde do
Distrito Federal (SSDF) – KEYWORDS Formation-action. Biodynamic cultivation. Medicinal plants. Agroforestry. Territories.
Brasília (DF), Brasil.

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 149-162, JUN 2022
150 Knierim GS, Corrêa VS, Barros NF, Ferreira MAT, Sepúlveda XSM, Milhomem APAS, Fenner ALD

Introdução Formação-ação que


fortalece o movimento
O modelo de agricultura desenvolvido no
Brasil tem sido considerado adoecedor,
agroecológico e as
na medida em que usa agrotóxico exten- práticas integrativas e
sivamente e amplia as iniquidades sociais, complementares de cuidado
com concentração de renda, aumento da
miséria, fome, destruição dos ecossistemas A formação-ação de produção agroflorestal
e deterioração da saúde das populações. A biodinâmica de plantas medicinais busca, por
formação-ação no contexto da saúde cole- um lado, trazer melhorias efetivas nas comuni-
tiva pode ser estratégica para a resistência dades e, por outro, responder às necessidades
a esse modelo de agronegócio deletério e e demandas da sociedade, especialmente dos
excludente, pois engendra um conjunto de grupos mais vulnerabilizados ambiental, eco-
práticas técnico-científicas que modificam nômica e socialmente. Também, favorecer o
não somente a maneira de sentir, pensar fortalecimento das capacidades individuais,
e agir em relação aos usos da terra, mas coletivas e públicas, e levar ao aumento da
também a mudança gradativa de hábitos, eficiência e da eficácia das práticas e políticas
práticas e atitudes, que fortalecem o movi- públicas de saúde.
mento agroecológico, Práticas Integrativas O Projeto Político-Pedagógico (PPP) dessa
e Complementares (PICs) de cuidado, bem formação-ação teve sua origem na confluência
como as formas solidárias, democráticas e de outras experiências associada à necessidade
inclusivas de se relacionar com a natureza. de construir estratégias para a formação de
O objetivo deste artigo é discutir a propos- profissionais e comunidades relacionados com
ta pedagógica de formação-ação em cultivo ações em saúde para a promoção de TSS, bem
biodinâmico de plantas medicinais no como de apoiar na expertise do PSAT/Fiocruz
Distrito Federal (DF), compreendida como Brasília, que desenvolve projetos voltados à
um eixo estruturante no desenvolvimento de saúde do trabalhador(a) e formação de lideran-
Territórios Saudáveis e Sustentáveis (TSS). ças das populações do Campo, da Floresta e das
Dessa maneira, o ensaio orienta-se para a Águas (CFA). Outra experiência significativa
construção de novos modelos compreen- foi desenvolvida no Curso de Especialização
sivos e de atuação frente às nocividades e Livre em Promoção e Vigilância em Saúde,
do modelo de produção do agronegócio Ambiente e Trabalho, realizado nos estados
e pretende refletir sobre como a adoção do Ceará, de Pernambuco e do Tocantins; no
de abordagens teóricas, práticas e episte- Curso Livre de Vigilância Popular de Base
mológicas mais críticas pode viabilizar o Territorial, realizado no Piauí; e na Residência
fortalecimento da agroecologia. O artigo Multiprofissional em Saúde da Família com
apresenta as bases teórico-epistemológicas ênfase na Saúde da População do Campo, em
para trilhar o processo da formação-ação; andamento na região norte do DF.
as ferramentas pedagógico-metodológicas;
a estrutura político-pedagógica do cultivo Bases teórico-epistemológicas
biodinâmico de plantas medicinais; e as
interfaces e aproximações com as PICs de A formação e a capacitação de profissionais da
cuidado, a serem realizadas pelo Programa saúde e das comunidades, quando bem plane-
de Promoção à Saúde, Ambiente e Trabalho jadas e desenvolvidas, são capazes de produ-
da Fundação Oswaldo Cruz Brasília (PSAT/ zir mudanças positivas na vida da população,
Fiocruz Brasília). especialmente nos processos de trabalho, nas

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Cultivo Biodinâmico de Plantas Medicinais em Agroflorestas na Promoção de Territórios Saudáveis e Sustentáveis: uma proposta pedagógica de formação-ação 151

ações nas comunidades urbanas e rurais e no em si mesmo, que faz dele objeto da análise
Sistema Único de Saúde (SUS). social”3(255) mas seus usos e as vivências nele
A prática pedagógica transformadora e presenciadas. Nesse sentido, a vida saudável
emancipatória, requer, pelo menos, dois mo- e sustentável de um território se expressa
vimentos: o da reflexão crítica de sua prática ao longo do tempo, de forma multiescalar,
e o da consciência das intencionalidades manifestando-se, portanto, dentro do desen-
que presidem suas práticas. Os referenciais volvimento global, regional e local, em suas
teórico-metodológicos da Formação-ação dimensões ambientais, culturais, econômicas,
envolverão educandos, educadores e comu- políticas e sociais4.
nidades, e articularão as seguintes catego- À medida que os territórios resultam de
rias de análise: Território, Desenvolvimento e construções sociais-naturais, é possível empre-
Sustentabilidade; Desenvolvimento Saudável ender ações para o Desenvolvimento Saudável
e Sustentável; Agroecologia; Educação do e Sustentável. Grande parte da literatura
Campo e Pedagogia Antroposófica; Saúde sobre desenvolvimento omite que é a relação
e Medicina Antroposófica; Promoção e entre o crescimento ordenado ou sustentável,
Vigilância em Saúde; Agricultura Biodinâmica; com a inclusão de temas relacionados com o
e Práticas Integrativas e Complementares. meio ambiente, aspectos sociais e culturais.
Para desenvolver teórico-conceitual- Outrossim, a associação redutora do desen-
mente o conteúdo relativo a ‘Território, volvimento com os indicadores econômicos
Desenvolvimento e Sustentabilidade’, assumi- levou à construção de planejamentos pouco
remos que o território é o lócus da reprodução centrados nas necessidades dos diferentes
da vida, que: grupos sociais, sem incluir as consequências
dessa centralização de perspectiva.
Compreende um conjunto indissociável, soli- O desenvolvimento sustentável foi conce-
dário e também contraditório, de sistemas de bido como uma ruptura com outros modos
objetos e sistemas de ações, não considerados de desenvolvimento que conduziram, e ainda
isoladamente, mas como quadro único no qual conduzem, a desgastes sociais e ecológicos
a história se dá2(39). consideráveis, tanto em nível internacional
como regional ou local5. Essa perspectiva se
Toda a sociedade tem como base de vida o consolidou nos últimos 30 anos e se refere
espaço geográfico que habita, desenvolve suas a diversas ações, conceitos e estratégias. O
práticas produtivas e/ou de lazer. São espaços adjetivo sustentável propõe uma noção de
originariamente naturais, continuamente modi- tempo que visa proporcionar uma situação de
ficados pela ação do homem, que os fazem cons- bem-estar a todos. O desenvolvimento susten-
tantemente ressignificados. Estamos falando tável é definido como aquele que responde às
de territórios de vida, em que o território é necessidades do presente sem comprometer a
definido como um espaço de poder apropriado capacidade das gerações futuras a responder
pelo grupo social, no qual é conferido um or- sobre suas necessidades6. A partir desse pres-
denamento característico, sendo as relações de suposto, assume-se a demanda de produzir
produção, bem como as simbólicas e afetivas, espaços saudáveis e sustentáveis, que buscam
determinantes desse processo. minimizar as desigualdades sociais, a má dis-
O território tem-se constituído como a tribuição de renda e a falta de acesso a políticas
base sobre a qual as determinações sociais públicas e de um ambiente promotor da saúde.
do processo saúde-doença-cuidado produzem Os territórios saudáveis promovem processos
efeitos transformadores; por isso, é uma refe- de planejamento para a saúde visando superar
rência fundamental também para o campo da as iniquidades e as vulnerabilidades, desen-
saúde coletiva. Deste modo, “não é o território volvendo a governança participativa para

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152 Knierim GS, Corrêa VS, Barros NF, Ferreira MAT, Sepúlveda XSM, Milhomem APAS, Fenner ALD

minimizar os impactos dos determinantes am- promoção da saúde em suas dimensões cole-
bientais, econômicos e sociais da saúde. Essa tivas e de atenção integral, como uma forma
visão múltipla e diversa acerca do conceito de de pensar a saúde que não se dirige apenas ao
sustentabilidade trata a promoção da saúde e o indivíduo e está associada ao bem comum e
envolvimento de vários atores na mediação de seus processos transformadores. A aproxima-
interesses, entretanto, destaca Machado et al.4 ção da promoção com a vigilância em saúde
que, apesar da presença de atores econômicos, se deve ao fato de que, nesse segundo campo,
sociais e agentes governamentais, “as ações de as ações de meio ambiente desenvolvidas em
vigilância de intervenção territorializadas que associação com a promoção são responsáveis:
contribuam para o desenvolvimento susten-
tável têm sido negligenciadas”4(245). pela informação para a ação e a intervenção que
A agroecologia como uma estratégia de sus- reduzam riscos e promovam a saúde nos terri-
tentabilidade em ambientes promotores de tórios, integrada às Redes de Atenção à Saúde.
saúde caracteriza-se por uma agricultura capaz Esta função essencial do Sistema Único de
de proporcionar às famílias do campo benefícios Saúde (SUS) tem sido chamada a orientar sua
ambientais, econômicos e sociais significativos, ação considerando os complexos fenômenos
e, também, de forma equânime e sustentável econômicos, ambientais, sociais e biológicos
de alimentar as famílias que vivem nas áreas. que determinam o nível e a qualidade da saúde
O sistema agrícola baseado em princípios das brasileiras e dos brasileiros, em todas as
agroecológicos exibe altos níveis de diversida- idades. Assim, é imperativo que a Vigilância em
de e resiliência, ao mesmo tempo que oferece Saúde se reconheça na agenda da determinação
rendimentos justos e serviços ecossistêmicos7. social da saúde trazendo para si a construção
A agroecologia é capaz de restaurar paisagens, de conhecimentos e práticas transdisciplinares
enriquecer a matriz ecológica e suas funções, e transetoriais10(3145).
como: o controle natural de pragas, a regula-
ção climática e biológica, a preservação e a Essa concepção de vigilância à saúde é
conservação do solo e da água, resultando em derivada da territorialização em saúde e é,
um aumento da agrobiodiversidade. também, um método pedagógico, de pes-
A agroecologia se conforma como um quisa e de trabalho, envolvendo as etapas de
campo de conhecimento a partir das “refle- diagnóstico e mapeamento das condições de
xões teóricas e avanços científicos, oriun- vida e situação de saúde, bem como meio da
dos de distintas disciplinas”8(81) e, segundo elaboração de planos de intervenções11. Dessa
Gliessman9(12), contribui com “a aplicação dos forma, suas ações estabelecem um permanente
princípios e conceitos da Ecologia no manejo diálogo com o conceito de TSS na perspectiva
e desenho dos agroecossistemas sustentáveis”. de promoção da saúde e de redução dos im-
Portanto, estamos falando de uma ciência que pactos sanitários na população.
estuda e busca explicar o funcionamento dos Um conjunto de ações associado aos pro-
agroecossistemas, seus mecanismos, suas re- cessos de ‘Educação do Campo e Pedagogia na
lações e seus desenhos biológicos, ecológicos, Antroposofia’ compreenderá a educação como
sociais, econômicos, ambientais, culturais, um direito humano e universal, necessário
políticos e éticos, como um conjunto de práti- para a dignidade humana e que
cas agrícolas que busca produzir alimentos de
forma mais sustentável e como um movimento pressupõe o desenvolvimento de todas as habi-
que defende uma agricultura ecologicamente lidades e potencialidades humanas, entre elas
correta e socialmente justa. o valor social do trabalho, que não se reduz à
Na promoção e vigilância em saúde, adota- dimensão do mercado12(219).
remos os princípios conceituais e práticos da

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Cultivo Biodinâmico de Plantas Medicinais em Agroflorestas na Promoção de Territórios Saudáveis e Sustentáveis: uma proposta pedagógica de formação-ação 153

Brandão13 pondera que a educação pode jovens médicos, no qual apresentou o ser
ser tanto uma opressão quanto uma forma de humano formado por uma quadrimembração
libertação, pois depende de como é pensada formada pelo corpo físico (material), corpo
e praticada, já que “ninguém educa ninguém, etérico (vitalidade), corpo astral (emoções)
ninguém educa sozinho, os homens se educam e a organização do Eu (identidade)18 como
entre si, mediatizados pelo mundo”14(39). modo ‘de andar a vida’, como define Georges
A educação do campo se constitui como um Canguilhem19 em seu clássico ‘O Normal e o
movimento de luta do povo do campo por polí- Patológico’, em que as condições de trabalho
ticas públicas que garantam o seu direito à edu- e de vida, modo de produção e de reprodução
cação ‘no e do’ campo. ‘No campo’, refere-se às social estão na origem do processo de deter-
pessoas que têm direito a serem educadas no minação social da saúde. Nessa perspectiva
lugar em que vivem; e ‘do campo’, às pessoas histórica e epistemológica, a saúde é decorren-
que têm direito a uma educação pensada a te de políticas públicas e ações comunitárias
partir de seu lugar e com sua participação, condicionadas pela capacidade de expressão,
vinculada à sua cultura e às suas necessidades geração de estruturas e serviços articulados
humanas e sociais. Portanto, trata-se de combi- a uma agenda interinstitucional, voltadas às
nar pedagogias, de modo a fazer uma educação necessidades da população. Além disso, a saúde
que forme e cultive identidades, autoestima, se configura como um direito a atenção inte-
valores, memória, saberes, sabedoria e que gral individual e de ‘saúde pública’, ganhando
enraíze sem necessariamente fixar as pessoas. um caráter coletivo e relacionado com um
Trata-se, dessa maneira, de uma educação que princípio conquistado na Constituição brasi-
projeta movimento, relações e transformações. leira de 1988, que nos arts. 196 e 197 registra o
A pedagogia na antroposofia será de fun- direito de todos à saúde e o dever de garantia
damental importância na compreensão do do Estado20.
desenvolvimento humano, a partir do diálogo Os princípios antroposóficos também deram
entre as experiências advindas do mundo ex- origem à agricultura biodinâmica, a partir do
terior e do conteúdo subjetivo humano, que curso intitulado ‘Fundamentação da Ciência
interagem não apenas na esfera do pensamento do Espírito para a prosperidade da agricultu-
e do raciocínio, mas também na esfera mais ra’, ministrado por Steiner em Koberwitz, na
material do corpo. Polônia, em 1924, sob a forma de oito confe-
rências que foram cuidadosamente registradas,
Toda educação é uma autoeducação e a autoria editadas e publicadas posteriormente.
do processo de aprendizagem é sempre de Além disso, as bases da racionalidade
quem aprende, por isso os processos de ensino- médica antroposófica serão fundamentais para
-aprendizagem devem ser feitos a partir da construir a relação entre o cultivo das plantas
realidade, de forma que ‘nessa escola unifica- medicinais e o cuidado em saúde. Sabe-se
da estará tudo o que para a vida precisa estar que, na década de 2000, o Brasil avançou na
dentro, e se não estivesse dentro, entraríamos criação de políticas e ações de promoção da
ainda mais fortes na calamidade social do que saúde que dialogam com o cotidiano de vida
estamos agora. É preciso haver conhecimento das pessoas valorizando suas condições ma-
de vida em todo ensino’15(126). teriais e imateriais de existência, bem como
os diversos aspectos envolvidos nos processos
De acordo com Marasca16, na perspectiva saúde-doença-cuidado, que dialogam com
da medicina antroposófica, a saúde educa e a os fatores relacionados com determinação
educação cura. Assim, abordaremos Saúde e social da saúde. No bojo desse avanço, foram
Medicina Antroposófica, por Rudolf Steiner17, criadas as condições para a implantação,
a partir do primeiro ciclo de palestras para em todos os níveis de atenção do SUS, de

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154 Knierim GS, Corrêa VS, Barros NF, Ferreira MAT, Sepúlveda XSM, Milhomem APAS, Fenner ALD

Práticas Integrativas e Complementares em Gerência de Práticas Integrativas (Gerpis)


Saúde (PICS), que incluem, entre outras, a da SES/DF, com o PSAT/Fiocruz Brasília
medicina antroposófica, plantas medicinais e o Laboratório de Práticas Alternativas,
e fitoterápicos. Complementares e Integrativas em Saúde
A Política Nacional de Práticas Integrativas (Lapacis) da Faculdade de Ciências Médicas da
e Complementares (PNPIC) foi regulamentada Unicamp. Além disso, apoios serão recebidos
pelas Portarias nº 971/2006, nº 1.600/2006, nº da Biblioteca Virtual em Saúde em Medicinas
849/2017, nº 702/2018 e nº 1.988/2018. Após Tradicionais Complementares e Integrativas
a publicação dessas portarias, atualmente, em Saúde (BVS/MTCI-Bireme), do Consórcio
integram a PNPIC o total de 29 práticas. A Acadêmico Brasileiro para a Saúde Integrativa
Organização Mundial da Saúde (OMS) pre- da Rede PICS Brasil, do Observatório Nacional
coniza a adoção das medicinas tradicionais de Saberes e Práticas Tradicionais, Integrativas
desde a década de 1970, reafirmando a sua e Complementares (ObservaPICS/Fiocruz)
importância na Conferência de Alma-Ata, e da Coordenação Nacional de Práticas
em 1978, e em diversos documentos das Integrativas e Complementares (PNPIC-
Assembleias Mundiais de Saúde posteriores. Ministério da Saúde/MS).
Mais recentemente, a OMS adotou o termo
medicina tradicional complementar integra- Ferramentas
tiva e reconheceu o Brasil como um dos países pedagógico-metodológicas
de referência em relação à sua integração no
sistema nacional de saúde, em especial, na A pedagogia da alternância será o caminho
Atenção Primária à Saúde. pedagógico escolhido para a construção do
Sabe-se que as PICS estão presentes em conhecimento nos territórios e se constituirá
15.955 serviços de saúde brasileiros, sendo em uma das estratégias de ensino-aprendi-
14.456 serviços da atenção básica de 4.323 zagem mais adequadas às peculiaridades da
municípios de todas as capitais brasileiras21. vida no campo, na cidade e/ou no mundo do
Sabe-se, também, que a PNPIC trouxe desdo- trabalho. Sua metodologia e seus conteúdos
bramentos e inovação tecnológica e social para curriculares contextualizados na vida e na
o SUS. No DF, propiciou a criação da Política realidade de cada local estarão relacionados
Distrital de Práticas Integrativas em Saúde diretamente com as necessidades de promover
(PDPIS), que foi submetida à consulta pública uma maior integração entre teoria e prática,
e aprovada por unanimidade pelo Colegiado alternando os tempos e espaços entre a escola
Gestor da Secretaria de Saúde do Distrito e a comunidade.
Federal (SES/DF), Deliberação nº 1/2014, e A formação baseada na pedagogia da al-
pelo Conselho de Saúde do Distrito Federal, ternância estará organizada em duas etapas.
Resolução nº 429/2014. Atualmente, a PDPIS A primeira é o Tempo-Escola (TE), no qual
preconiza o uso de 17 diferentes práticas; e os educandos permanecerão uma parte do
como a PNPIC, inclui medicina antroposófica, seu tempo em instituições de ensino e terão a
plantas medicinais e fitoterápicos. possibilidade de estabelecer um diálogo direto
As Práticas Integrativas em Saúde (PIS) com os educadores e com os conteúdos concei-
serão parte estruturante dessa formação- tuais e teóricos ministrados. Nesse tempo, será
-ação para o cultivo biodinâmico de plantas estimulada a discussão teórica e a construção
medicinais no âmbito do SUS, por criarem de interações entre as diferentes realidades
um ambiente promotor de inovação tecno- vividas pelos educandos, assim promovendo
lógica e social em práticas integrativas ou reflexões críticas sobre questões relevantes.
tradicionais em saúde e, também, por apoia- A intervenção ‘transformadora’ ocorrerá
rem-se nas articulações e parcerias entre a no momento do Tempo-Comunidade (TC),

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Cultivo Biodinâmico de Plantas Medicinais em Agroflorestas na Promoção de Territórios Saudáveis e Sustentáveis: uma proposta pedagógica de formação-ação 155

em que os educandos retornarão às suas co- teóricas e os procedimentos metodológicos


munidades com o propósito de realizar um mais adequados a serem utilizados no TC.
conjunto de tarefas que foram orientadas pelos O diálogo entre educando e educador, tendo
educadores. Para Silva22(108), como referência os problemas identificados na
realidade social dos territórios, tem base na
A alternância, enquanto princípio pedagógico, noção de interdisciplinaridade, que, segundo
mais que característica de sucessões repetidas Casanova24(13) é:
de sequências, visa desenvolver na formação
situações em que o mundo escolar se posiciona [...] uma relação entre várias disciplinas em
em interação com o mundo que os rodeia. Sob que se divide o saber fazer humano, é uma das
este aspecto, a ideia de alternância converte-se soluções que se oferecem a um problema muito
em uma estratégia de escolarização que possi- mais profundo, como a unidade do ser e do
bilita aos jovens que vivem no campo conjugar a saber, ou a unidade das ciências, das técnicas,
formação escolar com as atividades e as tarefas das artes e das humanidades com o conjunto
na unidade produtiva familiar, sem desvincular- cognoscível e construtível da vida e do universo.
-se da família e da cultura do campo.
O objetivo será a aprendizagem integral, não
As correntes que trabalham na perspectiva fragmentada, viabilizada mediante a disponi-
da pedagogia da alternância apoiam-se na linha bilização de metodologias de investigação que
histórico-crítica, para a qual não é possível privilegiem o estudo da realidade social, de
compreender o processo pedagógico separado suas contradições e possibilidades de interven-
dos processos sociais, ou seja, é preciso partir ção transformadora, com o foco na formação
dos vínculos existentes entre educação e so- para a ação. Desse modo, os temas afetos às
ciedade, objetivados na prática social dos seus diferentes disciplinas do conhecimento serão
educandos. A educação, nessa perspectiva, é submetidos ao crivo da reflexão dos educan-
conceituada como uma atividade mediadora dos e educadores, a fim de que se possa cons-
no seio da prática social, razão pela qual deve truir uma visão mais abrangente e sistêmica
ser tomada como ponto de partida do processo da realidade social. Por isso, a Coordenação
de construção do conhecimento23. Política Pedagógica (CPP) que é uma estrutura
A prática social será o primeiro momento organizativa do curso, a qual será composta
desta proposta metodológica por ser a di- por educadores e educandos, que terão como
mensão comum aos educandos e educado- tarefa conduzir política e pedagogicamente
res. Porém, do ponto de vista pedagógico, há o projeto de ensino-aprendizagem e a inten-
uma diferença crucial entre ambos, visto que cionalidade da formação-ação pretendida de
educador e educando se encontram em níveis forma transformadora para o coletivo.
diferentes de compreensão (conhecimento e A organização dos espaços/tempos edu-
experiências) da prática social. cativos contribuirá para o processo de orga-
O próximo passo articulará a pesquisa e o nização das etapas TE e buscarão exercitar a
trabalho nos territórios como parte constituin- organização do tempo individual e coletivo
te e indissolúveis do processo educativo. Desse em relação às tarefas necessárias ao cumpri-
modo, a pesquisa permeia todo o processo mento dos objetivos propostos na formação-
de formação, visando fortalecer a atuação, -ação. A organização do processo educativo,
as aulas e as demais atividades. Nos TE, são na perspectiva da transformação, precisa ser
combinadas reflexões coletivas e individuais, entendida dialeticamente. Para além do TE,
que dialogam com a realidade e a atuação na os educandos precisarão realizar as atividades
comunidade, que contribuirão para que os do TC, que tem o objetivo de estabelecer o
educandos possam discutir as abordagens diálogo entre os conteúdos e aprendizagens

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156 Knierim GS, Corrêa VS, Barros NF, Ferreira MAT, Sepúlveda XSM, Milhomem APAS, Fenner ALD

do TE e a realidade de seus territórios. No uma dinâmica própria no seu processo or-


regime de alternância, percebe-se um processo ganizativo, em que cada educando, por um
dialético, no qual os educandos são desafia- determinado período, assume um papel e
dos a se auto-organizarem e se autogerirem, diferentes tarefas no núcleo, que são perio-
na medida do possível, proporcionando um dicamente avaliadas e reorientadas quando
crescimento técnico e político. Essa é uma necessárias. Dessa forma, nesse processo de
construção permanente, que leva em conta vivenciar e compartilhar a condução do pro-
o processo emancipatório do ser humano. cesso pedagógico, vai-se gerando autonomia
Trata-se de uma emancipação libertadora, e se forjando sujeitos coletivos.
observando que um processo só é educativo Uma entre as muitas experiências que serão
quando oferece elementos para o desenvolvi- vivenciadas nos NAE é a da cartografia social,
mento de todas as dimensões do ser humano, com a construção de croquis e mapas falantes,
considerando nos conteúdos a produção da que é entendida como uma tecnologia social
cultura, da arte, da dança, da literatura, enfim, caracterizada como uma ferramenta para
dos elementos significativos relacionados com construção de mapeamentos participativos,
a vida concreta e plena de sentidos. Pressupõe, pressupondo-se também a construção de
ainda, a gestão democrática e participativa, o informações contextualizadas em reflexões
planejamento constante, as relações estabe- coletivas para ação, seja para processos de
lecidas, a auto-organização dos educandos e fortalecimento identitários (uso de mapas
a avaliação emancipadora. falantes), seja para mecanismos de gestão ter-
A organização do processo educativo em ritorial (croquis comunitários e domiciliares),
tempos distintos nasce para reforçar alguns podendo ser aplicada em diferentes territórios.
princípios importantes: a necessidade de Por meio dessa tecnologia, todos os educandos
mudar a existência dos educandos, seu jeito e moradores do território se transformarão em
de viver e perceber o mundo, criando possibili- pesquisadores locais e cartógrafo do se lugar.
dades para o questionamento e a busca de uma Com isso, serão realizados diagnósticos
nova síntese; e a formação humana, com as participativos, territorializações e constru-
várias dimensões da vida. Concomitantemente, ções de projetos de intervenção. Para muitos
os tempos pedagógicos visam contribuir para autores, a territorialização nada mais é do que
o processo de organização (ênfase maior no um processo de “habitar um território”25(22)
TE) e auto-organização dos educandos (ênfase e o ato de habitar traz como resultado a cor-
maior no TC). Os tempos educativos poderão porificação de saberes e práticas. Sob uma
ter determinada periodicidade, duração e in- perspectiva transformadora de saberes e
tencionalidade pedagógica específica. práticas locais, a territorialização passa a
Os Núcleos de Aprendizagem e Estudo ser considerada de forma ampla como um
(NAE) emergirão como ferramenta de organi- processo de habitar e vivenciar um territó-
zação coletiva, participação e gestão dos edu- rio, uma técnica e um método de obtenção e
candos. Caracterizam-se pelo nucleamento análise de informações sobre as condições de
dos educandos, com o objetivo de contribuir vida e saúde da população, um instrumento
para a gestão dos processos de formação- de compreensão dos diferentes contextos de
-ação, facilitar a ampliação do conhecimento uso do território nas diferentes dimensões
e trabalhar a convivência e a troca de experi- humanas e um caminho metodológico de
ência entre os educandos nos seus processos aproximação e análises sucessivas da reali-
de ensino-aprendizagem, visando ampliar a dade para a produção social da saúde.
participação, a auto-organização dos educan- A territorialização se articula fortemente
dos para assumirem a condução e a gestão com o diagnóstico rápido participativo, e juntos
dos tempos educativos. Os NAE assumem se constituirão como suporte teórico e prático

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Cultivo Biodinâmico de Plantas Medicinais em Agroflorestas na Promoção de Territórios Saudáveis e Sustentáveis: uma proposta pedagógica de formação-ação 157

da ação em saúde e o Projeto de Intervenção possibilidades dos sujeitos, proporcionando


(PI) de uma estratégia de ação territorial local. o entendimento às diferentes lógicas conti-
O PI consistirá em uma produção técnica e das na construção social do conhecimento.
científica aplicada de pesquisa-ação, em que a Entendendo que o conhecimento é resultado
proposição, a elaboração e o desenvolvimento de trocas que se estabelecem, tanto entre o
ocorrerão de forma coletiva, envolvendo edu- meio social, cultural e político quanto entre
candos e a comunidade, tendo como contexto o sujeitos, esse processo exige o diálogo autênti-
território de atuação dos educandos, de modo a co entre educando e educador. Uma avaliação
apoiar as ações e práticas de ação em saúde. Os embasada nessa concepção de conhecimento
PI terão como objetivo atuar sobre a realidade caracteriza-se por um processo contínuo e
da comunidade estudada, refletindo sobre este participativo, com função diagnóstica, prog-
território vivido, fazendo a articulação entre nóstica e investigativa, cujas informações
teoria e a prática (formação-ação), construindo propiciarão o rendimento da ação pedagó-
conjuntamente a ação-reflexão-ação sobre o gica e educativa, reorganizando as próximas
tema de intervenção proposto, gerando novos ações (do educando, da turma, do coletivo),
conhecimentos, implementando políticas no sentido de avançar no atendimento e no
públicas e visando à melhoria na qualidade desenvolvimento de aprendizagens. O por-
de vida das pessoas envolvidas no projeto. tfólio configura-se como uma ferramenta de
Trata-se de uma pesquisa-ação ao desvelar a ensino, aprendizagem e avaliação, inovador
realidade, construir ações, refletir e gerar co- e potencializador de competências cogniti-
nhecimentos coletivamente, que, desse modo, vas e metacognitivas. Os educandos poderão
promoverão o desenvolvimento de ações e reunir suas diferentes produções durante os
iniciativas para melhoria das condições de processos de formação, utilizando um suporte
vida nas comunidades e construção de TSS. criativo ( jogos, livretos, vídeos, artes plásticas
O ambiente educativo nos processos de etc.), realizando novas reflexões e autoavalia-
formação-ação tornará possível antecipar e ção do seu deslocamento durante o processo
provocar relações e situações de aprendizado, ensino-aprendizagem e no desenvolvimento
influir e tornar cada tempo o mais educativo das atividades de formação-ação nos diferen-
possível, refletindo e recriando seus conteúdos tes territórios.
e suas didáticas. Constroem-se circunstâncias
objetivas que alteram a existência social de Projeto político-pedagógico
todas as pessoas envolvidas no processo pe- da formação-ação de Cultivo
dagógico, possibilitando novas necessidades Biodinâmico de Plantas Medicinais
de aprendizado e de posicionamento pessoal em Agroflorestas
e coletivo, tendo em vista fazer acontecer a
formação humana pretendida. É importante Entendemos a formação como um meio de
compreender que ambiente educativo é tudo transformar a realidade local, de promover
aquilo que acontece dentro e fora da sala de a saúde, de dialogar com as comunidades
aula, desde que tenha sido preparado para e de reconhecer os territórios. Por isso, a
permitir uma nova interação educativa. É o formação-ação estimulará a construção do
exercício de superar o espontaneísmo, pois conhecimento a partir dos saberes e práticas,
nem sempre as situações e as experiências da realidade dos diferentes territórios, da
educam. É, enfim, ousar dar intencionalidade ciência comprometida com a vida e da abor-
pedagógica aos movimentos de aprendizagem. dagem transdisciplinar no trabalho em saúde.
Haverá também a avaliação como instru- Esse arcabouço teórico-conceitual suporta o
mento orientador da caminhada ou do proces- objetivo da construção de paradigmas para o
so, com o objetivo de conhecer os avanços e as cuidado do ser humano e dos bens comuns

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158 Knierim GS, Corrêa VS, Barros NF, Ferreira MAT, Sepúlveda XSM, Milhomem APAS, Fenner ALD

no diálogo com os pressupostos da promo- da antroposofia e no cultivo de plantas me-


ção, da atenção e da vigilância da saúde, da dicinais em agroflorestas, visando alterar a
antroposofia, da agroecologia, das plantas práxis “atividade concreta pela qual os sujeitos
medicinais, dos TSS em consonância com os humanos se afirmam no mundo, modificando
Objetivos do Desenvolvimento Sustentável a realidade objetiva e, para poderem alterá-la,
(ODS) para o alcance da Agenda 2030. transformando-se a si mesmos”26(115) dos edu-
Como exercício de equidade, essa formação- candos, transformando-os e sensibilizando-
-ação desenvolve-se, simultaneamente, como -os a olhar a influência do meio ambiente no
curso especialização para pessoas com forma- processo saúde-doença-cuidado.
ção superior e curso livre para pessoas sem Alicerçada nesses princípios, a formação-
formação superior. Trata-se de uma opção para -ação de Cultivo Biodinâmico de Plantas
envolver educandos com/ou sem graduação e Medicinais em Agroflorestas na Promoção
trabalhadores de diferentes áreas e com dife- de Territórios Saudáveis e Sustentáveis no DF
rentes experiências. Assim, serão capacitados está organizada em dois módulos compostos
profissionais de saúde e pequenos agricultores por diferentes disciplinas, como se observa
nos fundamentos da agricultura biodinâmica, no quadro 1.

Quadro 1. Módulos e disciplinas que formam a matriz curricular da formação-ação na Produção Agroflorestal Biodinâmica
de Plantas Medicinais no Distrito Federal

Módulo Disciplina Carga horária


Módulo 01. Desenvolvi- Estado, Ciência e Desenvolvimento (Política Pública) 40 h/a
mento, Ciência e Saúde Agroecologia e Biodiversidade 50 h/a
Promoção, Vigilância e Cuidado 40 h/a
Território Saudável e o Cuidado em Saúde 40 h/a
Marcos Regulatórios e Boas Práticas Agrícolas e Saúde Pública 30 h/a
Metodologia Científica 55 h/a
Módulo 02. Agrofloresta, A Cosmovisão e a Teoria do conhecimento Antroposófico 30 h/a
Arranjos produtivos e Introdução à Botânica: teoria e prática no cultivo de plantas medicinais 45 h/a
Saúde
Introdução à Agricultura Biodinâmica 45 h/a
Introdução a Sistemas Agroflorestais Sucessionais 45 h/a
Práticas Biodinâmicas Avançadas 45 h/a
30 h/a
Trabalho de Conclusão de Curso 50 h/a
Projeto de Intervenção 30 h/a
Total de carga horária do Curso 575 h/a

Fonte: Elaboração própria.

Além dos conteúdos previstos nas disci- enfocar questões como raça, gênero, classe
plinas, temas transversais que emergem nas social, importância do trabalho na terra e as
discussões dos educandos após suas ações nos relações sociais envolvidas no processo de
territórios serão discutidos e aprofundados produção. Também, deverão ser debatidos
ao longo dos módulos. Com isso, é possível temas acerca da promoção de territórios

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Cultivo Biodinâmico de Plantas Medicinais em Agroflorestas na Promoção de Territórios Saudáveis e Sustentáveis: uma proposta pedagógica de formação-ação 159

sustentáveis e saudáveis, por meio da agri- educacional para os profissionais da saúde


cultura biodinâmica, da antroposofia e do e a comunidade, o qual teve seu início em 3
cultivo de plantas medicinais em agroflorestas, de fevereiro de 2021 com um total de 66 edu-
pautada no diálogo e na relação orgânica entre candos. Destes, 45 são educandos do Curso de
a teoria e a prática, entre saber científico e Especialização e 21 são educandos do Curso
saber popular, possibilitando aos educandos Livre, e estão organizados em 6 NAE.
a construção de uma análise crítica sobre a Estão sendo usadas metodologias e instru-
realidade, o conhecimento sobre os sujeitos mentos pedagógicos inovadores, que se mos-
e a vida nos territórios, a presença do estado traram importante na qualificação das ações
e das políticas públicas nesses espaços, como intersetoriais de saúde apontando para os ODS
a saúde se expressa no ambiente, no trabalho, e em articulação com a estratégia de Promoção
no corpo dos sujeitos e nas relações sociais, de Territórios Saudáveis e Sustentáveis no
buscando fortalecer e articular redes socio- Distrito Federal e Entorno.
técnicas, desenvolver tecnologias sociais e Devido à pandemia da Covid-19, foi necessá-
modelos de governança de base territorial. rio repensar a metodologia e a distribuição das
O aprofundamento desses temas e de outros disciplinas, visando a uma maior concentração
é estimulado, inclusive, para serem abordados do conteúdo teórico nesses primeiros meses de
nos portfólios, utilizados para a avaliação dos curso. Contudo, as atividades e a observação
educandos durante seu percurso de formação. de plantio vêm sendo concretizadas de forma
Esses temas também deverão ser marcadores individual durante o TC e compartilhadas
sociais para os projetos de intervenção desen- no TE. Nesse sentido, as aulas estão sendo
volvidos nos territórios em que os educandos ministradas mensalmente, durante quatro dias
atuam profissionalmente. Os portfólios e o consecutivos, de forma síncrona e assíncrona.
projeto de intervenção auxiliarão na cons- A organização, o desenvolvimento, a reflexão
trução do Trabalho de Conclusão de Curso e o acompanhamento das atividades do TC
(TCC) dos matriculados na especialização e ocorrerão por meio dos NAE, que se reúnem
do Trabalho Final (TF) dos educandos matri- semanalmente nos períodos entre um TE e TC.
culados no Curso Livre. Até o momento, o Curso já abordou temas
O Projeto Político-Pedagógico (PPP) dessa do campo da saúde, em torno de elementos
formação-ação exigirá um diálogo interdis- fundamentais das políticas públicas de saúde,
ciplinar e permanente entre educandos e relacionados com autonomia e justiça social,
educadores, compreensão da complexidade sob forte orientação comunitária; e estimulou
do processo saúde-doença-cuidado, sua de- o diálogo entre diferentes sistemas médicos
terminação e soluções diversas e complexas complexos, em prol de adquirir competência
para o seu enfrentamento. Diante disso, cobra cultural para lidar com a emergência de um
a disponibilização de metodologias de pesquisa cenário de saúde cada vez mais complexo.
e investigação que privilegiam o estudo da As plantas medicinais representam grande
realidade social, de suas contradições e pos- fonte de recursos capaz de fornecer elemen-
sibilidades de intervenção transformadora. tos para a inovação tecnológica no âmbito da
promoção, proteção prevenção, assistência
e reabilitação em saúde, além de ser trans-
Considerações finais disciplinar nas áreas da educação, educação
ambiental e vigilância em saúde. Os sistemas
A formação-ação de Cultivo Biodinâmico agroflorestais, como conjunto de conhecimen-
de Plantas Medicinais em Agroflorestas tos ligados às ciências da terra, aportam às
na Promoção de Territórios Saudáveis ciências da saúde conhecimentos científicos
e Sustentáveis desenvolveu um modelo até então indisponíveis.

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160 Knierim GS, Corrêa VS, Barros NF, Ferreira MAT, Sepúlveda XSM, Milhomem APAS, Fenner ALD

A medicina antroposófica no campo da Nos territórios, observam-se as dimensões


saúde coletiva e enquanto racionalidade administrativas, culturais, epidemiológicas,
médica promove ampliação do olhar, além de sanitárias e tecnológicas, e dinâmica de mu-
acesso a uma grande quantidade de procedi- danças, de transformações e de evoluções per-
mentos de densidade tecnológica leve capazes manentes. É nesse contexto que são gerados
de ampliar a capacidade de diagnóstico e a os problemas de saúde, econômicos, políticos,
utilização de recursos terapêuticos na direção conflitos socioambientais e as potencialidades
da integralidade do cuidado. para o seu enfrentamento, como os sistemas
Um dos grandes desafios é dotar o contin- agroflorestais biodinâmicos.
gente de profissionais de saúde e a comuni- A formação-ação, associada a tecnologias
dade de conhecimentos amplos para realizar de informação, estratégias de construção de
ações de promoção e vigilância em saúde que sistemas agroflorestais biodinâmicos e redes
sofrem constantemente no modelo atual de sociotécnicas, constitui-se como elemento
desenvolvimento, com as mudanças ambien- estruturante para o fortalecimento dos su-
tais e tecnológicas em um mundo globalizado, jeitos e das comunidades em territórios mais
com a precarização do trabalho, com a falta saudáveis e sustentáveis.
de valorização dos conhecimentos tradicio- Este trabalho é a conformação de parte da
nais, com interdependência dos países e do produção intelectual, conceitual, metodológica
capital, o que impacta diretamente na vida e prática, orientada para o fortalecimento e
das comunidades. O processo de educação implementação das políticas públicas de saúde,
desenvolvido possibilitará a qualificação dos compreendidas como um bem comum, cole-
trabalhadores envolvidos na execução de po- tivo, dinâmico e dinamizador do desenvolvi-
líticas públicas, como profissionais da saúde mento, além de potente instrumento por meio
que atuam no SUS e agricultores familiares do qual poderão ser enfrentadas e reduzidas a
que convivem nos diferentes territórios. Para exclusão, as invisibilidades, a marginalização
além do aprimoramento da teoria e do método e a vulnerabilidades da população.
com a prática, ampliam-se o diálogo inter e
multidisciplinar, a reflexão crítica e contextu-
alizada dos educandos, integrando o ensino, a Colaboradores
pesquisa, a extensão e as ações de intervenção
nos territórios. Knierim GS (0000-0002-4811-5769)*, Corrêa
O território é o espaço de vivência, de VS (0000-0001-7763-5475)*, Barros NF
construção e de experimentação, no qual as (0000-0002-2389-0056)*, Ferreira MAT
determinações sociais se concretizam no co- (0000-0002-0709-6063)*, Sepúlveda XSM
tidiano vivido pelos indivíduos. Para além de (0000-0001-7906-387X)*, Milhomem APAS
espaço geográfico, o território constitui-se (0000-0002-4640-8824)*, Fenner ALD (0000-
de história e de histórias, de sujeitos e comu- 0002-6217-3893)* contribuíram igualmente
nidades com características singulares, com para a elaboração do manuscrito. s
múltiplos saberes, maneiras e conhecimentos.

*Orcid (Open Researcher


and Contributor ID).

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Cultivo Biodinâmico de Plantas Medicinais em Agroflorestas na Promoção de Territórios Saudáveis e Sustentáveis: uma proposta pedagógica de formação-ação 161

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Recebido em 30/09/2020
primária. Curitiba: IBPEX; 2007. p. 75-98. Aprovado em 05/08/2021
Conflito de interesses: inexistente
Suporte financeiro: não houve

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ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE 163

Compra de alimentos da agricultura familiar


para a alimentação escolar: a situação do Rio
Grande do Norte
Purchase of food from family farming for school feeding: the situation
in Rio Grande do Norte

Leticia Gabriella Souza da Silva1, Genykléa Silva de Oliveira1, Clélia de Oliveira Lyra1, Liana Galvão
Bacurau Pinheiro1, Renata Alexandra Moreira das Neves1, Maria Angela Fernandes Ferreira1

DOI: 10.1590/0103-11042022E211

RESUMO Objetivou-se caracterizar o cenário da aquisição dos alimentos provenientes da Agricultura


Familiar (AF) para o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) nos municípios do Rio Grande
do Norte. Pesquisa avaliativa com delineamento ecológico, utilizando dados do Centro Colaborador
em Alimentação e Nutrição Escolar da Universidade Federal do Rio Grande do Norte em 2017 e 2018.
Avaliaram-se 31 municípios, analisando o percentual de aquisição de alimentos da AF para a alimentação
escolar, além das possíveis dificuldades nesse processo, utilizando variáveis relacionadas com governança
e gestão, estabilidade e disponibilidade de alimentos. Dos municípios avaliados, mais de 50% adquiriram
alimentos da AF no ano anterior e afirmaram a compra no ano atual. Todos relataram empregar o modelo
de gestão centralizada, 29% declararam aquisição menor que 30%, 9,7%, aquisição acima de 30%, e 61,3%
não souberam informar. Quanto às principais dificuldades relacionadas com governança e gestão, a arti-
culação intersetorial e o edital de chamada pública ganharam destaque. Sobre a estabilidade de alimentos,
destacaram-se as condições higienicossanitárias necessárias, e em relação à disponibilidade de alimentos,
a aquisição de alimentos orgânicos mostrou-se como uma dificuldade elencada por 80,6% dos municípios.

PALAVRAS-CHAVE Alimentação escolar. Agricultura familiar. Segurança alimentar e nutricional.

ABSTRACT The objective was to characterize the scenario of acquisition of food from Family Farming (AF)
for the National School Feeding Program (PNAE) in the municipalities of Rio Grande do Norte. An evaluative
research with an ecological design, using data from the Collaborating Center for School Food and Nutrition of
the Federal University of Rio Grande do Norte in 2017 and 2018. 31 municipalities were evaluated, analyzing
the percentage of food purchases from AF for school meals, in addition to of the possible difficulties in this
process, using variables related to governance and management, stability and availability of food. Of the
evaluated municipalities, more than 50% purchased food from the AF in the previous year and confirmed the
purchase in the current year. All reported using the centralized management model, 29% declared acquisition
less than 30%, 9.7%, acquisition above 30%, and 61.3% were unable to inform. As for the main difficulties
related to governance and management, intersectorial articulation and the public call notice were highlighted.
Regarding food stability, the necessary hygienic-sanitary conditions were highlighted, and in relation to food
availability, the purchase of organic food was shown to be a difficulty listed by 80.6% of the municipalities.

1 Universidade Federal KEYWORDS School feeding. Family farming. Food and nutrition security.
do Rio Grande do Norte
(UFRN) – Natal (RN),
Brasil.
leticiagabrielasouza@
hotmail.com

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 163-174, JUN 2022
164 Silva LGS, Oliveira GS, Lyra CO, Pinheiro LGB, Neves RAM, Ferreira MAF

Introdução da Lei nº 11. 947/2009, foi declarada a obriga-


toriedade de que, no mínimo, 30% dos recursos
De acordo com a Lei nº 11.346/2006, que criou repassados pelo FNDE sejam investidos na
o Sistema Nacional de Segurança Alimentar compra de gêneros alimentícios provenientes
e Nutricional (Sisan), a alimentação adequa- diretamente da Agricultura Familiar (AF) e
da é um direito fundamental do ser humano, suas organizações3,4.
inerente à dignidade da pessoa humana e A inclusão da AF como parte do PNAE
indispensável à realização dos direitos con- aumenta a oferta de alimentos in natura,
sagrados na Constituição Federal, devendo o produzidos localmente, promovendo uma
poder público adotar as políticas e ações que alimentação mais saudável e sustentável. Ao
se façam necessárias para promover e garantir mesmo tempo que agrega benefícios aos es-
a Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) colares, a compra de alimentos de pequenos
da população1. produtores locais viabiliza a valorização da
O Programa Nacional de Alimentação AF, o resgate de hábitos alimentares locais,
Escolar (PNAE) é gerenciado pelo Fundo as políticas de produção de alimentos e as
Nacional de Desenvolvimento da Educação políticas de educação e proteção ambiental5.
(FNDE) do Ministério da Educação (MEC), e Com o objetivo de auxiliar a implantação do
consiste na mais antiga e abrangente política PNAE e a consolidação da Política Nacional de
brasileira na área de alimentação escolar e Segurança Alimentar e Nutricional (PNSAN)
de SAN, sendo considerada uma das maiores no ambiente escolar, mediante a qualificação da
do mundo relacionada com o atendimento gestão e do controle social do PNAE, o FNDE,
universal aos escolares e de garantia do Direito baseado na Portaria Interministerial nº 1.010,
Humano à Alimentação Adequada (DHAA) se de 2006, firmou parcerias com Instituições
estendendo a todos os alunos matriculados na Federais de Ensino Superior para a criação
educação básica da rede pública e filantrópica dos Centros Colaboradores em Alimentação
de ensino no Brasil2,3. e Nutrição Escolar (Cecane), que têm como
Ainda de acordo com a Lei nº 11.346/2006, a competência levar apoio a gestão, desenvolver
SAN consiste na realização do direito de todos projetos e pesquisas, bem como ofertar ações
ao acesso regular e permanente a alimentos de formação, controle e avaliação do PNAE6.
de qualidade, em quantidade suficiente, sem A execução do PNAE no âmbito da AF é um
comprometer o acesso a outras necessidades dos eixos do programa de mais difícil avaliação,
essenciais, tendo como base práticas alimen- haja vista o escasso número de estudos que
tares promotoras de saúde que respeitem a buscam analisar como se dá o processo de
diversidade cultural e que sejam ambiental, aquisição desses alimentos2.
cultural, econômica e socialmente sustentá- A obrigatoriedade do percentual de compra
veis. Nessa perspectiva, a criação do PNAE de alimentos advindos da AF para o PNAE,
engloba-se como um dos maiores marcos na bem como a elaboração do marco legal, na
garantia da SAN de escolares no País1,2. análise de Siqueira et al.7(3) é um avanço e um
O apoio ao desenvolvimento sustentável “instrumento importante para a implementa-
é uma das diretrizes do PNAE, mediante o ção da estratégia nacional ao DHAA”, porém,
incentivo à aquisição de gêneros alimentícios somente a criação de um expediente legal não
diversificados, produzidos em âmbito local e, garante o seu cumprimento nem a sua eficácia.
preferencialmente, pelo pequeno agricultor e O fato de este ser um programa de larga
por empreendedores familiares rurais, priori- abrangência em que as adequações às normas
zando as comunidades tradicionais indígenas, ocorrem de formas distintas e condicionadas
remanescentes de quilombolas e assentamen- a questões de natureza política, econômica e
tos de reforma agrária. Nesse sentido, a partir social locais, pode haver dificuldades em sua

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Compra de alimentos da agricultura familiar para a alimentação escolar: a situação do Rio Grande do Norte 165

execução enquanto promotor do DHAA, com- identificar as possíveis fragilidades envolvidas


prometendo a SAN dos estudantes pretendida nesse processo.
pela política7.
Diante do cenário exposto, consideran-
do a importância do conhecimento do real Material e métodos
panorama de aquisição de alimentos prove-
nientes da AF para o PNAE nos municípios Trata-se de uma pesquisa avaliativa com de-
do Rio Grande do Norte (RN), o objetivo do lineamento ecológico, com informações ana-
presente estudo foi caracterizar o cenário da lisadas segundo dados secundários extraídos
aquisição desses alimentos nos municípios do do Cecane/UFRN dos anos de 2017 e 2018,
RN acompanhados pelo Cecane vinculado à de acordo com a fundamentação de modelo
Universidade Federal do Rio Grande do Norte teórico exposta na figura 1.
(UFRN) nos anos de 2017 e 2018, bem como

Figura 1. Fluxograma de modelo teórico

PROGRAMA NACIONAL DE
ALIMENTAÇÃO ESCOLAR

Formação de Respeitar os
Dinamizar a
hábitos alimentares hábitos alimentares Controle Social
economia local
saudáveis e vocação agrícola locais

CAE Cecane

Agricultura familiar

Pesquisa e Extensão
Capacitação
Assessorias e
Promoção da SAN monitoramentos
Sustentabilidade

Fonte: Elaboração própria.

A unidade de análise foi composta por todos do Sabugi, Extremoz, Florânia, Tentente
os municípios que receberam o monitoramen- Laurentino Cruz, Timbaúba dos Batistas, Rio
to e consultoria do Cecane/UFRN nos anos do Fogo, Cerro-Corá, Caicó, Goianinha, Paraú,
de 2017 e 2018, um total de 31 municípios, Caiçara do Rio do Vento, Pilões, Barcelona,
sendo: Alexandria, Vila Flor, Baraúna, João Pedra Grande, Galinhos e Água Nova. A coleta
Câmara, São Gonçalo do Amarante, Touros, foi realizada mediante o banco de dados do
São José do Campestre, Serra Negra do Norte, Cecane/UFRN referente ao exercício das as-
Natal, Cruzeta, Serrinha, Caiçara do Norte, sessorias e monitoramento da execução do
Parnamirim, Jundiá, Tibal do Sul, São João PNAE nos respectivos anos.

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A seleção dos municípios que receberão as no ato da assessoria e monitoramento, foram


assessorias e o monitoramento do Cecane é elencados como variáveis independentes do
realizada anualmente pela gestão nacional do tipo categórica nominal. Esses obstáculos
programa seguindo critérios relativos a dados foram selecionados e agrupados em três eixos
dos sistemas de informações oficiais, presta- por conterem informações afins: o primeiro
ções de contas não enviadas pelo Conselho eixo englobando demandas relacionadas com
de Alimentação Escolar (CAE), denuncias, governança e gestão do programa; o segundo
reprogramação de saldo acima do valor per- com demandas ligadas à estabilidade no for-
mitido (30%), e a não aquisição de produtos necimento; e a terceiro sobre a disponibilida-
da AF. As assessorias são realizadas por uma de dos alimentos. Os dados foram analisados
equipe previamente capacitada composta por utilizando os softwares Microsoft Excel® 2013
nutricionista e contador, consistindo em uma e SPSS v22.0.
primeira visita com duração de cinco dias, O trabalho em questão foi submetido e
com direito à revisita. Durante a assessoria, é aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa
realizada uma avaliação diagnóstica mediante do Hospital Universitário Onofre Lopes
a aplicação de questionários padronizados pela (CEP-HUOL), como parte de um projeto de
gestão nacional do programa; e com base nos pesquisa intitulado ‘O PNAE na perspectiva
achados, são repassadas orientações técnicas da Segurança Alimentar e Nutricional no am-
a todos os atores envolvidos no programa, biente escolar do Rio Grande do Norte’, tendo
ou seja, a Entidade Executora (EE), gestores, como parecer o número 3.640.100.
nutricionistas, CAE e agricultores familiares.
Os questionários padronizados aplicados
no ato da assessoria incluem categorias ava- Resultados
liativas tanto voltadas à gestão do PNAE como
ao desenvolvimento das recomendações na Dos 31 municípios assessorados pelo Cecane,
execução do programa, questões como: tipo 100% declararam executar o PNAE por meio
de gestão, utilização de recursos financeiros, do Modelo de Gestão Centralizada, ou seja,
processos licitatórios, formas de aquisição o repasse financeiro é direcionado do FNDE
de alimentos, compras de alimentos da AF, para a EE e esta faz a aquisição e a distribuição
dificuldades relativas a compras da AF, capaci- dos gêneros alimentícios as escolas.
tação e assessoria por meio do Cecane, controle Dos municípios analisados, mais de 50%
de qualidade de alimentos, atuação do CAE e dos entrevistados referiram ter adquirido ali-
responsabilidade técnica pelo programa. mentos da AF no ano anterior e afirmaram
O percentual de aquisição de alimentos comprar no período em questão. No entanto,
diretamente da AF para o PNAE no período 29% declararam aquisição menor que 30%,
avaliado foi considerado variável desfecho, 9,7% referiram aquisição acima de 30% e 61,3%
do tipo categórica nominal. A utilização dos não souberam informar o percentual de aqui-
recursos financeiros repassados anualmente sição de gêneros da AF para o PNAE. Dentre
pelo FNDE para a aquisição de gêneros alimen- as possíveis fragilidades relacionadas com essa
tícios diretamente da AF e do empreendedor aquisição, podem-se destacar as demandas
familiar rural ou suas organizações para a ali- relacionadas a governança e gestão envolvidas
mentação escolar foi classificada em: abaixo na compra e venda desses gêneros.
do recomendado (0 a 29,99%), e igual ou acima Observa-se que a emissão de documentos
do recomendado (30% ou mais). Os principais fiscais por parte dos fornecedores (90,3%), o
obstáculos relacionados com a compra de pro- valor de fornecimento (93,5%) e a elabora-
dutos da AF para o PNAE, segundo os itens ção do projeto de venda (90,3%) não foram
trazidos pelo questionário avaliativo aplicado considerados fragilidades relacionadas com

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o percentual de aquisição; por outro lado, a Chamada Pública (51,6%) foram elencados
articulação intersetorial (61,3%) e o edital de como dificultadores nesse processo (tabela 1).

Tabela 1. Aspectos relacionados com governança e gestão envolvidos na compra e venda de gêneros oriundos da
agricultura familiar para o PNAE (n=31)

Houve dificuldade Não houve dificuldade Não sabe/Não se aplica


Classificação n % n % n %
Emissão de documentos fiscais pelos 2 6,5 28 90,3 1 3,2
fornecedores
Valor de fornecimento 1 3,2 29 93,5 1 3,2
Articulação intersetorial 19 61,3 12 38,7 0 0
Edital de chamada pública 16 51,6 15 48,4 0 0
Elaboração do projeto de venda pelos 2 6,5 28 90,3 1 3,2
agricultores
Realização de pesquisa de preço 9 29,0 21 67,7 1 3,2
Conhecimento da produção local 7 22,6 12 38,7 12 38,7

Fonte: Elaboração própria.

No que concerne à Chamada Pública, 43% No que se refere à origem do fornecimen-


dos entrevistados não souberam informar o to, 29% não souberam informá-la e 67,7%
local de publicação da desta, 24,39% relataram relataram aquisição diretamente de pro-
publicar em Diário Oficial, 12,2%, em Jornal de dutores individuais organizados em grupos
grande circulação, e 20,4%, em outros meios informais.
de comunicação. Vale salientar que o mesmo Ainda referente às possíveis fragilidades
município pode utilizar mais de um meio de ante o percentual de aquisição, demandas
comunicação para realizar essa publicação. relacionadas com estabilidade no forne-
O total de 67,7% dos gestores municipais cimento demonstram que o fornecimento
não teve dificuldade em relação à pesquisa e regular desses alimentos não foi conside-
estabelecimento de preço para o fornecimento, rado uma dificuldade (74,2%). Do total dos
e no que tange ao conhecimento da produção municípios avaliados, foi verificado que
local, 22,6% relataram ter essa dificuldade no 41,9% apresentaram dificuldades quanto
acesso, embora outros 38,7% não souberam às condições higienicossanitárias (tabela 2).
opinar sobre este ponto.

Tabela 2. Estabilidade no fornecimento de alimentos oriundos da agricultura familiar para o PNAE (n=31)

Estabilidade no fornecimento Segurança higiênico-sanitárias


Classificação n % n %
Houve dificuldade 8 25,8 13 41,9
Não houve dificuldade 23 74,2 17 54,8
Não sabe/Não se aplica 0 0 1 3,2

Fonte: Elaboração própria.

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No que concerne à disponibilidade de ali- relataram não ter dificuldades nesse aspecto.
mentos oriundos da AF para o PNAE, outro Ainda sobre a disponibilidade de alimentos,
ponto destacado é a elaboração do cardápio de 80,6% dos municípios referiram ter dificulda-
acordo com a produção local: tendo em vista de na aquisição de alimentos orgânicos e/ou
que, durante o ano, o processo produtivo per- agroecológicos por meio da AF para o PNAE
passa por fatores condicionados à sazonalidade (tabela 3).
de cultivo e colheita, 83,9% dos entrevistados

Tabela 3. Disponibilidade de alimentos oriundos da agricultura familiar para o PNAE (n=31)

Cardápio de acordo com Aquisição de alimentos


produção local orgânicos e/ou agroecológicos
Classificação n % n %
Houve dificuldade 4 12,9 25 80,6
Não houve dificuldade 26 83,9 6 19,4
Não sabe/Não se aplica 1 3,2 0 0
Fonte: Elaboração própria.

Discussão Cecane/UFRN no ano de 2017, observou que


apenas 3 municípios relataram ter adquiri-
A compra de alimentos da AF para o PNAE do gêneros da AF para o PNAE no exercício
em RN, nos anos de 2017 a 2018, foi insufi- anterior, porém com o percentual abaixo de
ciente; apesar de a maioria dos municípios 30%. No que concerne ao exercício atual, os
terem realizado a compra, o seu percentual 7 municípios avaliados não estavam fazendo
foi inferior ao recomendado. Em justificativa a essa aquisição.
essa baixa aquisição, os municípios elencaram Dessa forma, atender às normativas referen-
a falta de articulação intersetorial como uma tes à aquisição de, no mínimo 30%, dos recursos
das dificuldades, ou seja, a falta de interação repassados pelo FNDE de alimentos oriundos
nos diversos setores envolvidos no processo da AF para o PNAE, conforme preconiza a
de compra e venda pode prejudicar esse pro- Lei nº 11.947/09, tem-se mostrado uma difi-
cesso. Além disso, a elaboração da Chamada culdade, sobretudo pela escassez de políticas
Pública também foi considerada um dificulta- de valorização e incentivo à AF8. Entretanto,
dor, uma vez que é por meio dela que todas as é importante destacar que a inserção da AF
exigências e recomendações para a aquisição como parte do PNAE, o incentivo a práticas
são estabelecidas. Outro fator elencado como alimentares saudáveis, priorizando alimentos
fragilidade foi a aquisição de alimentos orgâni- in natura e regionais, ganharam maior espaço,
cos e/ou agroecológicos, em que a maioria dos colocando em ênfase a importância da sobera-
municípios estudados relataram não adquirir, nia alimentar, isto é, a valorização da cultura
levando a crer que, embora os alimentos sejam alimentar local e impactando na SAN9.
produzidos em âmbito local e por meio da Os resultados do presente estudo são simi-
AF, o uso de defensivos agrícolas ainda seja lares aos encontrados por Silva et al.10, que, ao
prevalente no processo de cultivo. avaliar dois municípios do estado de Minas
Em relação ao estado do RN, Santos8, ao Gerias quanto à compra de alimentos da AF
analisar 7 dos 16 municípios assessorados pelo para o PNAE, observaram que, até o final de

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2016 as recomendações para essa aquisição não social, que todos os atores possam contribuir
eram cumpridas, ou seja, a aquisição era infe- para execução13. Todavia, além de um CAE
rior a 30% dos recursos enviados pelo FNDE. atuante, a comunicação entre os setores in-
Essa dificuldade também foi evidenciada ternos e externos ao processo produtivo local,
por Villar et al.11, em que, dos 645 municípios bem como da gestão municipal, pode colabo-
do estado de São Paulo que foram avaliados, rar para aquisição de alimentos da AF para o
cerca de 50% não estavam em situação positiva programa8,14.
em relação às compras da AF para o PNAE. Uma desarticulação intersetorial pode
Diante disso, é possível observar que o pano- interferir em todos os processos envolvidos
rama de aquisição de alimentos da AF para na execução do PNAE, inclusive no processo
o PNAE não é tido como dificuldade apenas de Chamada Pública, tendo em vista a ne-
no estado do RN, uma vez que, em inúmeros cessidade de um planejamento conjunto nas
municípios do País, essa compra não atingiu diferentes fases de aquisição dos alimentos.
o que preconiza a Lei nº 11.947/0912. Para que a Chamada Pública seja efetivada,
No que concerne à aquisição de alimentos necessita-se, previamente, do estabelecimento
da AF para o PNAE, é possível observar que dos alimentos que compõem o cardápio pré-
seguir a recomendação da Lei nº 11.947/09 não -elaborado pelo(a) nutricionista, mediante as
tem sido fácil, uma vez que a compra desses necessidades e especificidades locais. Nessa
alimentos depende de inúmeros fatores, sendo concepção, além do levantamento dos alimen-
eles internos e externos. Fatores relacionados tos, necessita-se realizar a pesquisa de preço,
com gestão e governança do programa podem a fim de definir o valor de aquisição desses
impactar de forma direta na comercialização alimentos por meio dos agricultores partici-
dos gêneros alimentícios por meio da AF. A pantes. Todo o processo da Chamada Pública
principal fragilidade citada quanto à gestão deve cumprir a orientação do FNDE, seguindo
do PNAE nos municípios avaliados foi a falta a Lei Federal nº 8.666/1993, que determina as
de articulação intersetorial na execução do normas referentes ao processo de licitações,
programa, seguida dos trâmites relaciona- e a Lei Federal nº 10.520/2002, que dispõe
dos com Chamada Pública, dado similar ao as exigências para a modalidade licitatória
encontrado por Santos8 também em RN. É denominada Pregão15-17.
importante relatar, diante do contexto atual, A elaboração do edital de Chamada Pública,
o crescente enfraquecimento da governança e mediante todos os processos envolvidos, é
gestão das políticas públicas, incluindo as po- uma das demandas de gestão que podem tanto
líticas de fortalecimento da SAN, tendo como favorecer como, se não realizada conforme as
exemplo a publicação da Medida Provisória recomendações legais, prejudicar o processo
nº 870, de 1º de janeiro de 2019, que extinguiu de aquisição dos alimentos da AF, uma vez
o Conselho Nacional de Segurança Alimentar que é uma etapa em que todas as exigências e
e Nutricional (Consea), órgão consultivo que orientações aos fornecedores são determina-
tinha como competência institucional apre- das. Uma pesquisa em que foram analisados,
sentar proposições e exercer o controle social via internet, 201 editais de Chamada Pública de
na formulação, execução e monitoramento das alimentos para o PNAE nas diferentes regiões
políticas de SAN9. do País evidenciou que todas as regiões pes-
A articulação dos atores envolvidos na quisadas apresentaram editais em não con-
gestão do PNAE é essencial para que todos formidade com as recomendações, faltando
os princípios e diretrizes sejam assegurados. informações básicas ao agricultor15.
Para isso, a boa estruturação e atuação dos Esquerdo et al.18, ao analisar os municípios
CAE pode colaborar com a organização seto- do Circuito das Frutas/São Paulo, observa-
rial, bem como garantir, por meio do controle ram que quando existe apoio por meio do

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170 Silva LGS, Oliveira GS, Lyra CO, Pinheiro LGB, Neves RAM, Ferreira MAF

município, em seus diversos setores, para a pelos agricultores, a maioria dos municípios
organização do processo produtivo e dos agri- elencados no presente estudo não a conside-
cultores locais, tem-se um melhor resultado rou como um fator problema, fato que pode
na participação destes nas chamadas públicas, estar ligado à participação dos agricultores em
uma vez que os agricultores não dispõem de grupos informais, aos quais os agricultores se
informações necessárias, principalmente re- aliam informalmente, sem uso de documen-
lacionados com demandas burocráticas. to jurídico, unindo forças na produção para
Outro fator relacionado à gestão e gover- mantê-la regular e constante.
nança que pode impactar na aquisição de ali- A organização dos agricultores, seja em
mentos da AF para o PNAE são os documentos grupos estruturados como associações e
fiscais necessários ao agricultor para que este cooperativas ou até mesmo em grupos não
possa se beneficiar do programa. Embora, na formalizados, pode agregar maior poder de
presente pesquisa, a maioria dos municípios negociação, reduzir custos referentes à logís-
avaliados tenham relatado que a elaboração tica e aumentar o volume produtivo, uma vez
dos documentos fiscais por parte dos agricul- que os agricultores organizados em grupos
tores não é uma dificuldade, estudos mostram tendem a buscar a diversificação dos mercados,
que a elaboração do projeto de venda, emissão inclusive nos institucionais23,24.
de nota fiscal, porte da Declaração de Aptidão Ainda relacionado com estabilidade do
ao Pronaf (DAP), bem como a burocracia en- fornecimento, uma dificuldade elencada no
volvida, podem limitar a participação dos estudo em questão é manter-se dentro dos
agricultores nas chamadas públicas, tendo padrões de qualidade exigidos pelo progra-
em vista as exigências de cada um18-20. ma, tendo em vista que é necessário tanto o
Para que todo processo de fornecimento atendimento das questões sanitárias e às for-
e aquisição aconteça, o primeiro passo a ser malidades exigidas à sua comprovação como
seguido é mapeamento e conhecimento da o registro de produtos e dos estabelecimentos
produção local, levantamento dos alimentos nas instâncias responsáveis. Devido à série
cultivados, informações acerca da sazonalida- de medidas que poderiam onerar a produção
de, bem como mediar a articulação de todos e inviabilizá-la, essas exigências podem im-
os atores envolvidos nesse processo, ou seja, possibilitar a formalização dos agricultores,
órgãos municipais de gestão e agricultores, a bem como sua participação no programa20.
fim de planejar as ações o mais próximo possí- O atendimento à legislação sanitária e a
vel da realidade local, assim como fomentar o necessidade de certificação de alguns ali-
consumo de alimentos regionais sustentáveis21. mentos apresentam-se como medidas de
Uma das principais dificuldades relacionadas controle e de aperfeiçoamento do processo
com compra de alimentos da AF para o PNAE produtivo, visando a um padrão de qualidade
pelas EE é a ausência do mapeamento da pro- efetivo e à minimização dos possíveis riscos
dução agrícola local2,22. envolvidos, fazendo parte da garantia da
Dessa forma, sem o devido conhecimen- SAN aos escolares. Uma forma de reduzir
to acerca da agricultura local, o cardápio e as dificuldades relacionadas com o atendi-
a Chamada Pública tendem a se afastar da mento dessas recomendações e viabilizar
realidade e gerar impacto na estabilidade do ainda mais a participação dos agricultores
fornecimento de alimentos durante todo o no programa é, novamente, a participação
ano letivo, que é um dos pontos destacados ativa dos atores sociais envolvidos, ou seja,
referentes à associação com o percentual de disseminar a informação e torná-la mais
aquisição de alimentos da AF. Nessa pers- acessível, assim como facilitar a comunica-
pectiva, mesmo estando a estabilidade do ção com órgãos e profissionais que possam
fornecimento como um desafio enfrentado orientar o processo8,20.

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Compra de alimentos da agricultura familiar para a alimentação escolar: a situação do Rio Grande do Norte 171

Quando se fala em AF, é importante destacar Soares et al.10 que, ao estudar um município
o espaço que ganha a produção orgânica e a de Santa Catarina, notaram que apesar de ter
agroecológica, tendo em vista a possibilidade, aumentado a compra de alimentos saudáveis
por meio da AF, de fomento a esse tipo de agri- para o PNAE, este não realizou a compra de
cultura, bem como incentivar a sua produção alimentos orgânicos.
e o consumo. Atualmente, o Brasil lidera a É importante relatar a necessidade do co-
escala mundial de consumo de agrotóxicos, nhecimento a respeito dos alimentos produ-
com um mercado global caracterizado por zidos de maneira orgânica e todo o contexto
um oligopólio com alto grau de concentração, envolvido nesse tema, uma vez que os orgâ-
ou seja, poucas empresas detêm o controle nicos e os agroecológicos, por não conterem
desse mercado. Nesse sentido, observa-se que, fertilizantes nem terem sofrido modificações
mesmo diante de políticas que fomentam a AF, genéticas, comportam uma grande responsa-
abrindo espaço para a produção orgânica e/ bilidade social e ambiental. Nesse contexto,
ou agroecológica, como o PNAE e o Programa além de se tratar de alimentos considerados
de Aquisição de Alimentos (PAA), a dispo- saudáveis, seguros do ponto de vista ambiental
nibilidade desses alimentos ainda se mostra e nutricional, são produzidos considerando o
limitada diante da atual realidade do processo uso saudável e responsável do solo, da água, do
produtivo interno do País25. ar e dos demais recursos naturais colaborando
Ainda segundo Silva et al.25, o cenário atual para o desenvolvimento sustentável25.
relacionado com a utilização de agrotóxicos Valer-se de programas como o PNAE, que
no Brasil já é algo muito preocupante, tanto defende a alimentação adequada e saudável,
do ponto de vista de saúde pública quanto incentiva a produção agrícola local e valoriza
ambiental, devendo ser levados em conta todos o pequeno agricultor, sobretudo após a Lei nº
os riscos associados à monocultura químico- 11.947/09, é crucial que a produção orgânica
-dependente. Perante isso, o mercado bra- e agroecológica ocupe espaços cada vez mais
sileiro de alimentos orgânicos pode, e deve, amplos, gerando impactos não só na economia
ser desenvolvido amplamente, articulando local, mas também na saúde e na qualidade de
os setores envolvidos, de modo a favorecer vida dos escolares beneficiários do PNAE26.
sua ascensão, visto que o fomento dessa ati- Nessa concepção, diante de tudo o que foi
vidade tende a contribuir para a inserção dos levantando, é possível observar as inúmeras
agricultores no mercado interno, bem como fragilidades envolvidas no processo de compra
impactar significativamente na garantia do e venda de alimentos diretamente da AF para
DHAA e SAN no Brasil. o PNAE não apenas em RN, mas também em
A disponibilidade de alimentos orgânicos todo País, fato que necessita de um olhar mais
e/ou agroecológicos, assim como sua aquisi- ampliado para essa política pública e sua exe-
ção pelo PNAE, tem se mostrado uma tarefa cução em nível municipal. Para todos os pontos
difícil. Na presente pesquisa, mais de 80% dos levantados, menciona-se a articulação dos
municípios avaliados relataram ter dificuldade diversos setores envolvidos como um ponto-
quanto a essa aquisição, cenário similar ao -chave existente no processo de execução que
encontrado por Silva et al.26 em Santa Catarina, pode fazer grande diferença; estes incluem os
em que foi observada uma baixa aquisição órgãos governamentais, profissionais, agricul-
desses alimentos na maioria dos municípios tores e escolares, a fim de tornar a alimentação
pesquisados. ofertada pelo PNAE o mais regional possível8.
Santos et al.27, ao avaliar municípios do Rio Assim sendo, os cardápios elaborados con-
Grande do Sul, observaram um baixo número forme a produção agrícola local, valorizando os
de municípios que compravam produtos or- alimentos típicos, respeitando a sazonalidade
gânicos provenientes da AF, como também e os valores culturais vinculados ao alimento,

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172 Silva LGS, Oliveira GS, Lyra CO, Pinheiro LGB, Neves RAM, Ferreira MAF

abrindo espaço e mercado para a produção de Conclusões


alimentos orgânicos e/ou agroecológicos, não
só gerariam um impacto imensurável na exe- Conforme os resultados obtidos no estudo
cução do PNAE, como também aproximariam em questão, observou-se que a aquisição
sua execução a todos os princípios e diretrizes de alimentos da AF para o PNAE nos mu-
pregadas por ele. É importante destacar que a nicípios de RN avaliados nos anos de 2017
Resolução nº 6/2020, que entrará em vigor a e 2018 foi insuficiente, e, diante isso, di-
partir de 2021, traz que pelo menos 75% dos versas são as dificuldades que podem estar
recursos devem ser destinados à aquisição de envolvidas nesse processo. Entre todos os
alimentos in natura ou minimamente proces- fatores avaliados, a falta de articulação dos
sados, restringe a, no máximo, 20% a aquisição diversos setores envolvidos no processo, bem
de alimentos processados e ultraprocessados, como a elaboração do processo de Chamada
abrindo ainda mais espaço para o cumprimen- Pública, a manutenção dentro das exigências
to dos objetivos do PNAE28. higienicossanitárias e a compra de alimen-
Diante de todos os assuntos levantados, tos orgânicos e/ou agroecológicos para a
é importante mencionar as limitações e as alimentação escolar mostraram-se como
lacunas presentes no estudo em questão, sendo principais no que se refere à insuficiência
uma delas a ausência do estabelecimento de na aquisição.
critérios para os entrevistadores e entrevis- Diante desse cenário, é importante men-
tados, bem como a ausência de clareza de cionar que esses problemas podem ser so-
algumas questões presentes no instrumento lucionados com medidas de articulação e
avaliativo, fatores que podem gerar vieses nas planejamento conjunto, envolvendo órgãos
respostas e, com isso, camuflar as fragilidades legais, agricultores, CAE e demais setores
existentes no processo de compra e venda de necessários a essa construção, uma vez que
alimentos da AF para o PNAE. a aproximação da AF à alimentação escolar
Assim como as fraquezas, as fortalezas traz inúmeros benefícios sociais.
do estudo também merecem destaque. O
Cecane posto em evidência ante o contro-
le social do PNAE é algo que necessita ser Colaboradoras
mais explorado, tendo em vista a grande
importância desses Centros para a adequada Silva LGS (0000-0002-5924-8671)*, Ferreira
execução do PNAE, o cumprimento de seus MAF (0000-0002-6142-948X)* e Oliveira GS
objetivos, princípios e suas diretrizes. Além (0000-0002-7054-3612)* contribuíram para a
disso, o presente estudo explanou como concepção, realização da pesquisa, redação e
o PNAE em RN vem se comportando no revisão do artigo. Pinheiro LGB (0000-0001-
que se refere à compra de alimentos da AF, 6360-3771)*, Neves RAM (0000-0003-1014-
cenário importante para diagnóstico local, 0536)* e Lyra CO (0000-0002-1474-3812)*
bem como laboração de ações para melhorar contribuíram para a realização da pesquisa e
a execução do programa. redação do artigo. s

*Orcid (Open Researcher


and Contributor ID).

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Compra de alimentos da agricultura familiar para a alimentação escolar: a situação do Rio Grande do Norte 173

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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 163-174, JUN 2022


174 Silva LGS, Oliveira GS, Lyra CO, Pinheiro LGB, Neves RAM, Ferreira MAF

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22. Marques AA, Fernandes MGM, Leite IN, et al. Refle-


Recebido em 30/09/2020
xões de agricultores familiares sobre a dinâmica de Aprovado em 13/07/2021
Conflito de interesses: inexistente
fornecimento de seus produtos para a alimentação
Suporte financeiro: não houve
escolar: o caso de Araripe, Ceará. Saud Socied. 2014;
(23)1329-1341.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 163-174, JUN 2022


ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE 175

Desigualdade espacial na compra de


alimentos da agricultura familiar para
alimentação escolar no Brasil
Spatial inequality in the purchase of food from family agriculture for
school feeding in Brazil

Genykléa Silva de Oliveira1, Ana Emília Galvão e Silva Holanda1, Maria Arlete Duarte de Araújo1,
Javier Jerez-Roig2, Maria Angela Fernandes Ferreira1

DOI: 10.1590/0103-11042022E212

RESUMO O objetivo do estudo foi analisar o cumprimento do uso de, no mínimo, 30% dos recursos do
Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) para a aquisição dos gêneros alimentícios provenientes
da agricultura familiar no Brasil, no período de 2013 a 2016. Trata-se de uma pesquisa com delineamento
ecológico e longitudinal. A coleta de dados foi realizada por meio de dados públicos disponibilizados no
Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Construíram-se mapas temáticos e de correlação
espacial para análise da distribuição espacial da compra e realizou-se análise de tendência. Verificou-se
que o percentual de municípios que cumprem com a exigência legal de compra passou de 34,3% em 2013
para 43,7% em 2016, com maior número de municípios no Sul com 72,5%, enquanto apenas 26,1% no
Centro-Oeste, 27,4% no Norte e 31,6% no Nordeste. A região Sul se destaca quando comparada às regiões
Norte, Nordeste e Centro-Oeste (p=<0,001). Já a análise de tendência dos recursos orçamentários anuais
da união mostrou um crescimento médio de 30,8% (IC = 13,2-51,1), porém com declínio entre 2015 e 2016.
Conclui-se que houve um aumento progressivo na compra direta de alimentos da agricultura familiar para
alimentação escolar no Brasil de 2013 a 2016, embora de maneira desigual nas diferentes regiões do País.

PALAVRAS-CHAVE Alimentação escolar. Abastecimento de alimentos. Agricultura. Segurança alimentar.


Análise espacial.

ABSTRACT The study aims to analyze the fulfillment of the use of at least 30% of the National School
Feeding Program (PNAE) resources for the acquisition of food from family agriculture in Brazil, from 2013
to 2016. This is a longitudinal ecological research. Data was collected through public data available at the
National Education Development Fund (FNDE). Thematic and spatial correlation maps were constructed
for analysis of the spatial distribution of the purchase and trend analysis. It was verified that the percentage
1 UniversidadeFederal
of municipalities that comply with the legal purchase requirement increased from 34.3% in 2013 to 43.7% in
do Rio Grande do Norte
(UFRN) – Natal (RN), 2016, with the largest number of municipalities in the Southern region of the country with 72.5%, while only
Brasil. 26.1% in the Midwest, 27.4% in the North and 31.6% in the Northeast. The South region stands out when
genyklea@yahoo.com.br
compared to the North, Northeast and Midwest (p =<0.001). The trend analysis of the union’s annual budget
2 University of Vic-Central resources showed an average growth of 30.8% (CI = 13.2-51.1), but with a decline between 2015 and 2016. It
University of Catalonia is concluded that there has been a progressive increase in the direct purchase of food from family farms for
(UVic-UCC), Faculty
school feeding in Brazil from 2013 to 2016, although in unequal manner in different regions of the country.
of Health Sciences and
Welfare, Research group
on Methodology, Methods, KEYWORDS School feeding. Food supply. Agriculture. Food security. Spatial analysis.
Models and Outcomes of
Health and Social Sciences
(M3O) - Catalunha,
Espanha.

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 175-189, JUN 2022
176 Oliveira GS, Holanda AEGS, Araújo MAD, Jerez-Roig J, Ferreira MAF

Introdução Lei nº 11.947/2009, instituiu a obrigatoriedade


da compra de, no mínimo, 30% de gêneros
No Brasil e no mundo, a população é acometida alimentícios provenientes diretamente da agri-
por uma dupla carga de doenças de cunho nu- cultura familiar e do empreendedor familiar
tricional. Em um extremo, a obesidade e suas rural ou suas organizações, privilegiando os
comorbidades, no outro, as carências nutricio- assentamentos da reforma agrária, as comu-
nais, provenientes do consumo insuficiente nidades tradicionais indígenas e comunidades
e/ou inadequado de alimentos. Esse quadro quilombolas4,5.
revela uma disfunção no sistema alimentar O PNAE é o programa na área de SAN mais
que abrange todos os elementos e atividades antigo no País e considerado um dos mais
relacionadas com a alimentação, desde a sua abrangentes na área de alimentação escolar
produção até o seu consumo, influenciada por do mundo. O programa tem caráter universal
grandes transformações oriundas da globaliza- e vem ampliando seu público-alvo, passando
ção e modificação dos padrões alimentares1,2. de 33,2 milhões de alunos atendidos em 1995
Essa transição nutricional e epidemiológica para 41,5 milhões em 20156-8.
demandou mudanças nas políticas públicas Tal conquista foi fruto de ampla mobilização
nas áreas da saúde e nutrição. No Brasil, um intersetorial com a participação da socieda-
dos principais marcos dessa mudança foi a Lei de civil, por meio do Conselho Nacional de
nº 11.346, de 15 de setembro de 2006, criadora Segurança Alimentar e Nutricional (Consea),
do Sistema Nacional de Segurança Alimentar o que resultou também em expansão dos obje-
e Nutricional (Sisan), o qual fundamenta as tivos do PNAE, visando ao crescimento biop-
ações, os programas e a Política Nacional de sicossocial, à aprendizagem, ao rendimento
Segurança Alimentar e Nutricional, que tem escolar e à formação de hábitos alimentares
como conceitos fundamentais para a cons- saudáveis desde a infância3,6,7,9-11.
trução da agenda das políticas de Segurança Essas políticas estão em consonância com a
Alimentar e Nutricional (SAN) no País: Agenda 2030 que contém 17 Objetivos para o
Direito Humano à Alimentação Adequada; Desenvolvimento Sustentável (ODS) com 169
Segurança Alimentar e Nutricional e Soberania metas. Dentre os ODS, destaca-se o objetivo
Alimentar2,3. 2 “Acabar com a fome, alcançar a segurança
Tais políticas inverteram as tendências alimentar e melhoria da nutrição e promover
históricas de desigualdades e redução da a agricultura sustentável”12(20), que, entre suas
fome. Entre as diversas políticas estruturan- metas, propõe:
tes, aquelas voltadas para o fortalecimento
da agricultura familiar, em paralelo com os Até 2030, dobrar a produtividade agrícola e a
programas de transferência de renda, têm renda dos pequenos produtores de alimentos,
contribuído para a diminuição da fome no particularmente das mulheres, povos indígenas,
Brasil, assim como têm ampliado a agricul- agricultores familiares, pastores e pescadores,
tura familiar que é responsável por 70% dos inclusive por meio de acesso seguro e igual à
alimentos consumidos internamente no País4. terra, outros recursos produtivos e insumos,
O orçamento para agricultura familiar conhecimento, serviços financeiros, mercados
do Programa Nacional de Fortalecimento e oportunidades de agregação de valor e de
da Agricultura Familiar (Pronaf ) ampliou- emprego não agrícola12(20).
-se em dez vezes, de 2003 a 2013. Ademais,
vários programas têm dado apoio à compra Diante do escasso número de estudos de
de alimentos provenientes da agricultura fa- base nacional com a evolução das compras
miliar, destacando-se o Programa Nacional de públicas para o PNAE e com o objetivo de ana-
Alimentação Escolar (PNAE) que, a partir da lisar o processo de implantação dessa política,

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 175-189, JUN 2022


Desigualdade espacial na compra de alimentos da agricultura familiar para alimentação escolar no Brasil 177

a presente investigação está centrada em ana- proposto pela Lei nº 11.947/2009. Nos mapas
lisar o cumprimento do uso de, no mínimo da série histórica, do período 2013 a 2016, a
30%, dos recursos do PNAE para a aquisição variável foi classificada como ‘não cumpriu’
dos gêneros alimentícios provenientes da nos municípios que utilizaram menos de 30% e
agricultura familiar no Brasil, no período de ‘cumpriu’ nos municípios que utilizaram 30%
2013 a 2016. ou mais dos recursos com a compra de gêneros
alimentícios da agricultura familiar conforme
disposto na legislação. A fim de conhecer a
Metodologia tendência do uso desses recursos do PNAE no
Brasil, de 2011 a 2016, foi coletado no site do
FNDE14 o valor total em reais corrigido pelo
Desenho do estudo e coleta de dados Índice Nacional de Preços ao Consumidor
Amplo (IPCA) do recurso utilizado com a
Trata-se de uma pesquisa com uso de dados se- compra direta de alimentos da agricultura
cundários e classificada como um estudo eco- familiar por ano.
lógico, longitudinal e cujas unidades de análise
de área são os 5.570 municípios brasileiros. Análises dos dados
Foram utilizados dados referentes ao
uso dos recursos do Fundo Nacional de Foram utilizados os seguintes softwares para a
Desenvolvimento da Educação (FNDE) com análise: Microsoft Excel® 2013 para organiza-
gêneros alimentícios provenientes diretamen- ção dos dados do FNDE, e TerraView15 versão
te da agricultura familiar e do empreendedor 4.2.2 para a construção dos mapas temáticos e
familiar rural ou suas organizações para a ali- análise da autocorrelação espacial consideran-
mentação escolar pelos municípios brasileiros, do o percentual do valor de aquisição da agri-
concernentes ao período de 2013 a 2016, cole- cultura familiar para o PNAE nos municípios
tados no site do FNDE8; e para a confecção dos brasileiros; IBM SPSS® versão 24 para a análise
mapas temáticos, foram utilizadas as malhas descritiva dos dados, a análise de tendência
digitais do Instituto Brasileiro de Geografia por Joinpoint; e, para comparar as diferen-
e Estatística (IBGE)13. A escolha do período ças no cumprimento legal do uso de 30% ou
de estudo fundamentou-se na alteração da mais de recursos do PNAE com a compra da
legislação que norteia o PNAE em 2009 a partir agricultura familiar entre as regiões do Brasil,
da Lei nº 11.147. Outrossim, considerando que, foram calculadas as razões de proporção e o
na literatura nacional, existem publicações teste do Qui-quadrado com significância 95%.
avaliando os dois primeiros anos após a lei, Além disso, foi realizada a análise descri-
optou-se por avaliar dados dos quatro últimos tiva com mapas exploratórios, por ano, com
anos (2013 a 2016) que estão disponíveis no percentual dos valores investidos nas aquisi-
site do FNDE. ções de gêneros alimentícios diretamente da
agricultura familiar ou empreendedores rurais
Variáveis do estudo para a alimentação escolar em escala de cinza,
na qual os municípios que não atenderam a
A variável principal do estudo foi o percentual exigência legal são apresentados pela tonali-
de utilização dos recursos financeiros repas- dade mais escura no mapa.
sados pelo FNDE para a aquisição de gêneros A fim de avaliar a dependência espacial,
alimentícios diretamente da agricultura fa- foi utilizado o coeficiente de autocorrelação
miliar e do empreendedor familiar rural ou global de Moran. Esse índice é calculado a
suas organizações para a alimentação escolar partir do produto dos desvios em relação à
pelos municípios brasileiros, de acordo com o média e mede a autocorrelação espacial por

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 175-189, JUN 2022


178 Oliveira GS, Holanda AEGS, Araújo MAD, Jerez-Roig J, Ferreira MAF

indicar o grau de associação espacial presen- exemplo, tinham 238 municípios com dados
te no conjunto dos dados. Logo, o Índice de ausentes, enquanto o ano de 2015, apenas 23.
Moran global mede a dependência espacial
baseado em observações simultâneas no con-
junto de n localizações16. Resultados
Buscando possíveis agrupamentos entre os
polígonos estudados, procedeu-se à análise A partir da análise realizada nos 5.570 muni-
univariada do Moran local que determina a cípios brasileiros, verificou-se que a média de
dependência dos dados com relação aos seus utilização dos recursos do FNDE para aquisição
vizinhos, sendo convencionalmente chamado de gêneros alimentícios da agricultura fami-
de Indicadores Locais de Associação Espacial liar pelo PNAE, entre os anos de 2013 e 2016,
(Lisa). Esse indicador permite identificar foi de 26,5%, encontrando-se abaixo dos 30%
padrões de associação espacial, ou seja, de- como preconiza a Lei nº 11.947/2009. Porém,
senhar ‘novos territórios’ (agrupamentos de na análise exploratória realizada por meio dos
polígonos estudados) a partir da semelhança mapas em série temporal (figura 1), verifica-
de uma ou mais características16. -se um aumento progressivo do percentual
A estatística analítica espacial foi realizada de compras no Brasil, progredindo de 23,37%
apenas com as informações de 2015 em virtude (±29,85) em 2013 para 26,57% (±48,51) em 2014,
da maior completude dos dados disponibiliza- 28,33% (±26,19) em 2015 e 27,76 % (±21,71) em
dos no sistema do FNDE. Os dados de 2016, por 2016 (dados não apresentados em tabela).

Figura 1. Distribuição espacial do percentual de uso dos recursos do FNDE para compra com a agricultura familiar
utilizados para o PNAE em 2013 (a), 2014 (b), 2015 (c) e 2016 (d)

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados disponíveis no FNDE14.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 175-189, JUN 2022


Desigualdade espacial na compra de alimentos da agricultura familiar para alimentação escolar no Brasil 179

O índice de Moran global para o percentu- houve a formação de um cluster do tipo baixo-
al de utilização dos recursos do FNDE para -baixo, composto por municípios dos estados
agricultura familiar pelo PNAE, em 2015, foi das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste;
de 0,1591 (p=0,01), o que demostra autocorre- enquanto os do tipo alto-alto, por municípios
lação espacial, porém fraca (figura 1c). Já na da região Sul.
análise de clusters (figura 2), verifica-se que

Figura 2. Distribuição espacial dos clusters do percentual de recursos do FNDE para agricultura familiar utilizados pelo
PNAE, com Lisa estatisticamente significativo (MoranMap), Brasil, 2015

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados disponíveis no FNDE14.

Ao analisar os dados entre os anos de 2013 de tendência do aporte anual de recursos do


e 2016, verificou-se também um aumento orçamento da união para o PNAE, quando
no percentual de municípios que compram se observou um crescimento médio anual de
gêneros alimentícios provenientes da agricul- 30,8% (IC=13,2 – 51,1); porém, entre os anos de
tura familiar pelo PNAE, de 78% e 85% respec- 2015 e 2016, é possível observar uma redução
tivamente. Contudo, ao analisar o percentual nos recursos utilizados para as compras com
de municípios que cumprem a exigência legal alimentos da agricultura familiar, apesar de
do uso de recursos, esses percentuais foram de essa diferença não ter sido estaticamente sig-
34,3% de municípios em 2013 e 43,7% em 2016. nificante (gráfico 1).
Esse incremento está de acordo com a análise

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180 Oliveira GS, Holanda AEGS, Araújo MAD, Jerez-Roig J, Ferreira MAF

Gráfico 1. Tendência dos valores em reais utilizados pelo PNAE para a compra direta de alimentos provenientes da
agricultura familiar, segundo modelo Joinpoint, Brasil, 2011 a 2016

R$ 1400000000,0,00
Brasil: 0 joinpoints (APC = 30,80^ ; IC= 13,2-51,1)

Valor do recurso utilizado para a compra direta pelo PNAE corrigido pelo IPCA
R$ 1200000000,0,00

R$ 1000000000,0,00

R$ 800000000,0,00

R$ 600000000,0,00

R$ 400000000,0,00

R$ 200000000,0,00

R$ -
2011 2012 2013 2014 2015 2016

Indicates that the Anual Percent Change (APC) is significantly diferrent from zero at the alpha =0,05 level.

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados disponíveis no FNDE14.

Ademais, foi observado um número maior diferença estatisticamente significativa no


de municípios da região Sul, com 72,5% cum- cumprimento do percentual do uso de recur-
prindo o estabelecido em lei; em seguida, a sos para as compras da agricultura familiar
região Sudeste com 48,4% (tabela 1). Por outro em relação às demais regiões, nas quais a
lado, as regiões que apresentaram menor per- maior diferença ocorreu entre as regiões Sul
centual de municípios cumprindo o estabeleci- e Centro-Oeste com uma razão de proporção
do no artigo 14 foram as regiões Centro-Oeste de 2,63 no cumprimento, ou seja, o Sul tem um
(26,1%), Norte (27,4%) e Nordeste (31,5%). número de municípios cumprindo a compra de
Além Disso, a região Sul se destaca quando 30% ou mais quase três vezes superior quando
comparada com as demais, pois apresentou comparado ao Centro-Oeste (tabela 1).

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Desigualdade espacial na compra de alimentos da agricultura familiar para alimentação escolar no Brasil 181

Tabela 1. Distribuição do percentual de municípios por região brasileira conforme o cumprimento legal do uso de recursos
do PNAE para compras de alimentos da agricultura, 2015

< 30% ≥30%


Não cumpriu Cumpriu
Regiões n % n % RP** p*

Sul 328 27,6 860 72,4 1 1

Sudeste 856 51,6 803 48,4 1,84 0,001

Nordeste 1.226 68,5 565 31,5 2,44 0,001

Norte 323 72,6 122 27,4 2,58 0,001

Centro-Oeste 343 73,9 121 26,1 2,63 0,001

Total 3.076 55,5 2.471 44,5 - -

Fonte: FNDE14.
*teste do Qui-quadrado, 1 – região Sul foi a de referência para comparação, e ** Razão de Proporção.

Ao analisar os dados de 2015, constatou-se Discussão


que 18,6% dos municípios que não cumpri-
ram a exigência legal utilizaram entre 10,1% A partir dos resultados encontrados, verificou-
e 25% dos recursos do FNDE na aquisição -se um aumento progressivo do número de
de gêneros alimentícios para a agricultura municípios cumprindo o estabelecido em lei
familiar. Além disso, os estados que apre- quanto ao uso dos recursos (no mínimo 30%)
sentaram um maior número de municípios do PNAE com a agricultura familiar; porém,
com menores percentuais de uso de recursos a maioria dos municípios analisados em 2015
para a compra de gêneros alimentícios da (55,5%) não cumpriram esse objetivo, princi-
agricultura familiar (abaixo de 10%) encon- palmente nas regiões Centro-Oeste, Norte e
travam-se nas regiões Norte, Centro-Oeste Nordeste.
e Nordeste. Nessa condição, destacaram-se Siqueira et al.17, ao analisar os avanços da
os estados de Roraima (71,4% dos municí- incorporação dos princípios (não discrimi-
pios), Amazonas (63,9%), Amapá (60%), nação, justiça, adequação, sustentabilidade,
Acre (50%), Piauí (63,9%), Rio Grande do responsabilidade, transparência, participa-
Norte (49,4%), Mato Grosso (45,4%) e Goiás ção e empoderamento) do Direito Humano
(44,4%) (dados não apresentados em tabela). à Alimentação Adequada (DHAA) no PNAE,
Por outro lado, a maioria dos municípios com a Lei nº 11.947/2009 e a Resolução/CD/
que utilizaram 30% ou mais dos recursos do FNDE nº 38/2009 – sendo esta última subs-
FNDE para a aquisição de gêneros alimen- tituída pela Resolução/FNDE nº 26/2013 –,
tícios para a agricultura familiar encontra- relataram como um avanço a incorporação
vam-se na região Sul – em Santa Catarina do princípio de sustentabilidade por meio da
(84,4%), Rio Grande do Sul (85%) e Paraná instituição legal da obrigatoriedade do uso de,
(79,1%) –, destacando-se o Rio Grande do no mínimo, 30% dos recursos para aquisição de
Sul (63,7%) e Santa Catarina (61%) utilizan- gêneros alimentícios diretamente da agricul-
do 35% ou mais desses recursos (dados não tura familiar e do empreendedor familiar rural
apresentados em tabela). ou suas organizações dispensando o processo

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 175-189, JUN 2022


182 Oliveira GS, Holanda AEGS, Araújo MAD, Jerez-Roig J, Ferreira MAF

licitatório para facilitar a compra. No entanto, de alimentos da agricultura familiar enquan-


os autores17 relatam que, apesar da dispensa do to as regiões Norte e Centro-Oeste possuem
processo licitatório ser importante, as demais as menores frequências. Ainda no estudo de
condicionalidades impostas pelo PNAE aos Machado et al.20, identificou-se um maior
produtores para participar do programa têm número de municípios com menores percen-
trazido entraves, citando como exemplos: tuais da aquisição de produtos da agricultura
apresentação do documento fiscal, garantia de familiar na região Centro-Oeste, no estado
fornecimento regular e constante dos gêneros de Goiás e no Distrito Federal, seguidos por
alimentícios e estrutura e logística adequada Mato Grosso do Sul. Nos estados da região
no fornecimento dos gêneros alimentícios. Nordeste, Piauí e Alagoas possuíam as menores
Cita a região Nordeste como destaque nesses frequências da realização da compra.
entraves, o que corrobora os resultados deste As desigualdades regionais descritas nos
estudo, em que essa é uma das regiões que resultados são fruto da concentração histórica
tiveram o maior número de municípios que não e desigual de terras no País, particularmente
atingiram o uso mínimo de 30% dos recursos nas regiões Centro-Oeste, Norte e Nordeste21.
com a agricultura familiar para o PNAE. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
Outra pesquisa, realizada a partir da percep- (Ipea) 22, apresentando dados do Censo
ção dos agricultores familiares por Marques Agropecuário de 2006 sobre as microrregiões
et al.18 em Araripe – Ceará, demonstra as di- classificadas, segundo o índice de Gini da posse
ficuldades enfrentadas para participação no de terra, demonstra que a concentração fun-
programa. Os principais entraves encontrados diária é mais baixa, com ocupação territorial
no estudo de caso se detiveram às questões: baseada em pequenas e médias proprieda-
atraso no pagamento dos produtos vendidos, des, principalmente em áreas que abrangem
necessidade de custeio pelos próprios agricul- o centro-sul do País, bem como em uma faixa
tores para o transporte dos alimentos, irregu- da região Norte que envolve parte do Acre e
laridade da produção por questões climáticas, de Rondônia e se estende do sul de Roraima
e estrutura física deficitária para a produção ao nordeste do Amazonas até a divisa desse
dos alimentos comprometendo a regularidade estado com o Pará – esses estados se encontram
da entrega dos gêneros alimentícios. A pes- os menores índices de Gini (inferior a 0.714).
quisa aponta ainda a necessidade de ações da Já as áreas de maior concentração fundiária
gestão municipal para melhorar a capacidade apontadas pelo Censo Agropecuário e que
produtiva dos agricultores e fornecer subsídios apresentam os maiores índices de Gini (acima
para o atendimento às especificações legais de 0,852) são o centro-oeste do Amazonas; o
do programa18. Cerrado e o Pantanal, além do Sertão Norte e
Saraiva et al.19, ao analisar o primeiro o Agreste22. Tal situação explica, ao menos em
ano, após a implantação do art. 14 da Lei nº parte, haver maior participação da agricultura
11.947/2009 nos municípios brasileiros, ve- familiar no fornecimento de gêneros alimen-
rificaram que 47,4% adquiriram alimentos tícios no âmbito do PNAE nas regiões Sul e
da agricultura familiar para o PNAE e que Sudeste, locais onde há também uma maior
o percentual médio de compra foi de 22,7%, incidência de pequenas propriedades rurais.
apresentando diferenças regionais com maior Outro dado importante que pode explicar
percentual na região Sul (71,3%) e menor na o menor percentual de adequação das ma-
região Centro-Oeste (35,3%). As diferenças crorregiões Centro-Oeste, Norte e Nordeste
regionais também foram encontradas por na distribuição espacial dos percentuais de
Machado et al.20 ao analisar 5.184 municípios recursos do FNDE para agricultura familiar
brasileiros com dados de 2011, destacando a utilizados pelo PNAE é o acesso desigual de
região Sul com maior frequência de compra crédito rural por meio do Pronaf, que, desde

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 175-189, JUN 2022


Desigualdade espacial na compra de alimentos da agricultura familiar para alimentação escolar no Brasil 183

1995, financia projetos rurais com baixas uma dupla função para o equilíbrio climático
taxas de juros21. De acordo com o relatório do planeta, pois podem atenuar repercussões
da Oxfam21, “os estabelecimentos da Região de riscos climáticos, como secas, inundações
Norte recebem 3% do crédito rural do Brasil, e tempestades e aumento do nível do mar;
enquanto a Região Sul recebe 30%”21(12). fornecer serviços ecossistêmicos, como: a água
Para Oliveira e Filho23, as regiões mais de- fresca, ar limpo, solo férteis, polinização e bio-
senvolvidas, Sul e Sudeste, conseguem movi- diversidade, que contribuem para o combate
mentar os maiores montantes de recursos do à fome e incentiva meios de subsistência re-
programa, entre outros fatores, por possuírem silientes – além de serem fundamentais para
organização institucional relativamente mais apoiar os sistemas alimentares sustentáveis e
forte em termos de sindicatos e cooperativas a para vida25,26.
de agricultores familiares. O acesso à infor- Sob essa perspectiva, vários países que
mação e aos recursos técnicos que permitem ofertam a alimentação nas escolas vêm promo-
ingressar em uma faixa de financiamento su- vendo iniciativas para promoção de sistemas
perior dentro do programa contemplam um alimentares sustentáveis e saudáveis por meio
maior desenvolvimento da agricultura familiar da compra de alimentos da agricultura familiar
nessas regiões. para ofertar aos escolares24.
As evidências históricas comprovam que O PNAE é um exemplo de programa público
investimentos na agricultura familiar aliados que vem contribuindo para o fortalecimento
às políticas e às instituições que apoiam essas da agricultura familiar no Brasil, promovendo
políticas contribuem efetivamente para SAN, um círculo propulsor do desenvolvimento
geração de emprego e renda, redução da local e a qualidade da alimentação oferecida
pobreza, sustentabilidade e biodiversidade aos estudantes, o que contribui para a SAN em
dos recursos naturais e para a conservação seus diferentes aspectos, desde o acesso aos
do patrimônio cultural das famílias afetadas. alimentos in natura provenientes da produção
Ademais, as compras públicas pela agricultura local até uma transformação no aspecto da
familiar alcançam um público historicamente promoção à alimentação saudável e adequada
marcado pela insegurança alimentar e nutri- nas escolas mediante inserção de ações de
cional, pois dá preferencias às comunidades educação alimentar e nutricional e do tema ali-
quilombolas, indígenas e empreendedores mentação saudável nos projetos pedagógicos
rurais familiares2. das escolas como preconizado pela legislação
Além disso, diante de um modelo agroa- que dá suporte ao programa2,27.
limentar brasileiro com predominância do Um destaque deve ser dado à região Sul,
agronegócio, com uma produção de alimentos que apresentou o maior número de municípios
em larga escala que limitam a diversidade de que cumpriram o art. 14 da Lei nº 11.947/2009.
alimentos naturais, faz-se necessária a promo- Um estudo realizado por Baccarin et al.28, ana-
ção da maior autonomia do País para definir lisando o cumprimento do art. 14 dessa lei,
suas políticas agrícolas, controlar a produção entre os anos de 2011 e 2014, nos estados de
de alimentos e garantir o abastecimento de São Paulo, Paraná e Santa Catarina, identificou
alimentos para a população por meio da pro- um aumento progressivo no número de muni-
dução local24. cípios que cumpriram os 30% nesses estados,
Entre as medidas para reduzir a vulnera- com maiores percentuais de compra em Santa
bilidade dos sistemas alimentares, estão as Catarina e Paraná. Além disso, mostrou uma
baseadas na natureza, como destacado no predominância de alimentos in natura ou de
documento final da ‘23º Conferencia de las baixo grau de processamento nas chamadas
Partes’, em que os ecossistemas agromari- públicas. Resultados semelhantes foram retra-
nhos saudáveis e diversos são citados com tados por Ferigollo et al.29 em 52 municípios

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 175-189, JUN 2022


184 Oliveira GS, Holanda AEGS, Araújo MAD, Jerez-Roig J, Ferreira MAF

do Rio Grande do Sul com dados de chamadas de defender a continuidade e a ampliação de


públicas em 2013. políticas públicas voltadas para a agricultura
Ademais, os resultados de diferentes estudos familiar, como o Programa de Aquisição de
realizados no Brasil constataram que o uso Alimento (PAA) e o próprio PNAE21.
de recursos do PNAE para compra direta de Entre os desafios para a melhoria da im-
alimentos da agricultura familiar contribuem plantação da aquisição de gêneros alimentícios
para a melhoria da SAN em suas diferentes da agricultura familiar pelo PNAE, estão: a
dimensões, promovendo desde o acesso a integração entre os diferentes setores públicos
alimentos diversificados, em sua maioria in envolvidos, em especial os da alimentação
natura, minimamente processados e orgânicos; escolar e do fomento agropecuário, a fim de
a formação de mercados locais de produção adequar os cardápios às sazonalidades da pro-
e distribuição de alimentos aproximando o dução local de alimentos; o apoio administra-
consumidor e o pequeno produtor favore- tivo aos agricultores para os trâmites legais e
cendo, assim, a sustentabilidade e a soberania as questões sanitárias, desde a produção até a
alimentar; o acesso a alimentos com melhor distribuição dos alimentos, o apoio e a capaci-
qualidade nutricional e higiênico-sanitária; e tação aos agricultores quanto às questões de
incentiva à promoção de hábitos alimentares estimulo à formalização e ao associativismo
saudáveis por meio de práticas educativas até a possibilidade de gêneros alternativos
vinculadas a esse programa30-33. ou mesmo a realização de investimentos que
Apesar desses avanços progressivos com permitam pequenas transformações dos pro-
a compra de alimentos visualizados neste dutos in natura pelos próprios agricultores28.
estudo, de 2013 a 2016, o Brasil precisa ampliar Outro ponto para o sucesso da adesão dos
as terras ocupadas por agricultores familiares, agricultores familiares locais ao PNAE depende
pois a estrutura agrária do País ainda é con- da parceria efetiva com os gestores locais do
centrada na agricultura patronal (agricultura programa, em especial, os nutricionistas do
em grande escala e não familiar) que ocupa a programa, que precisam conhecer a capacidade
maior parte das terras e produz especialmente agrícola produtiva da região para elaborar os
commodities que não servem à alimentação dos cardápios contemplando esses alimentos2.
brasileiros e comprometem a sustentabilidade Por conseguinte, conforme recomenda o
dos sistemas alimentares nacionais2,34. Consea no ‘Guia para Análise de Políticas e
Como recomendações, o relatório da Programas Públicos de Segurança Alimentar
Oxfam21 aponta para a necessidade de repensar e Nutricional sob a Perspectiva dos Direitos
o modelo agrícola brasileiro, que, desde a época Humanos’ de 2009, é necessário estudos
da colonização, locais nos municípios que não cumpriram a
exigência legal, apresentados neste estudo,
privilegia os latifúndios monocultores e a ex- a fim de identificar os problemas vivencia-
tração de recursos naturais em larga escala, dos para execução do programa, centrando
colocando à margem do desenvolvimento essa investigação na forma como o PNAE é
as populações camponesas, indígenas e desenvolvido pelos atores locais para buscar
quilombolas21(24). soluções possíveis e efetivas para os problemas
encontrados35. Além disso, os estudos devem
Nessa mesma perspectiva, a organização verificar os efeitos gerados pelo programa em
indica a necessidade de priorizar “o estabe- questão e se, de fato, ele implica a mudança
lecimento de programas de incentivo ao de- social esperada. Outrossim, devem ocorrer
senvolvimento rural com base na agricultura sistematicamente, de forma ex ante concomi-
familiar por meio de acesso ao crédito, pesqui- tante ou ex post, de acordo com o momento
sa, assistência técnica e formação”21(24), além em que são realizadas36.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 175-189, JUN 2022


Desigualdade espacial na compra de alimentos da agricultura familiar para alimentação escolar no Brasil 185

Apesar das evidências históricas comprova- especialmente em 2016. Por outro lado,
rem que o investimento em agricultura fami- destaca-se a originalidade do estudo, a partir
liar, aliado a políticas públicas, contribui para de levantamento da evolução da compra de
a SAN, no atual cenário das políticas públicas alimentos da agricultura familiar no Brasil,
brasileiras, vem ocorrendo uma redução de in- importante para reflexões sobre a política atual
vestimentos na agricultura familiar, que coinci- e possíveis mudanças.
diu com a redução dos recursos utilizados para
a compra de alimentos da agricultura familiar
entre 2015 e 2016 no PNAE observadas no Considerações finais
presente estudo. Esse cenário pode ser conse-
quência da redução nos investimentos públicos A partir dos resultados apresentados, é pos-
nesse setor, pois os recursos executados para sível concluir que a distribuição espacial do
as ações de promoção e fortalecimento da cumprimento do art. 14 da Lei nº 11.947/2009
agricultura familiar no Brasil, que eram de R$ foi desigual entre as regiões brasileiras, ao
13,05 milhões em 2014, passaram para R$ 3,36 longo do período de 2013 a 2016. Entretanto,
milhões em 201737, com impactos negativos verificou-se um aumento progressivo do
para a SAN dada a magnitude do corte orça- número de municípios utilizando, no mínimo,
mentário. Logo, são importantes a ampliação 30% dos recursos provenientes do PNAE com
e o incentivo às políticas de fortalecimento da a compra direta de gêneros alimentícios da
agricultura familiar a fim de alcançar impactos agricultura familiar, constituindo um avanço
positivos para o desenvolvimento econômico importante para o fomento do desenvolvimen-
e ambientais sustentáveis e contribuir para to local, incentivo à alimentação saudável nas
reduzir as desigualdades sociais tão proemi- escolas, sustentabilidade, biodiversidade dos
nentes no Brasil. recursos naturais e conservação do patrimônio
Entre essas políticas, estão as que promo- cultural das famílias afetadas.
vem os modelos agrícolas alternativos, como Conforme apresentado na Agenda 2030:
o PNAE ao incentivar a agricultura familiar, ODS, o incentivo à agricultura familiar por
com o seu potencial de contribuir para o que meio de programas que gerem um mercado
denominam ‘Agricultura Sensível a Nutrição’, promissor para os pequenos produtores é
sendo este termo orientado na perspectiva dos de fundamental importância para garantir
Determinantes Sociais da Saúde que considera o DHAA12.
a agricultura de base agroecológica uma priori- Diante dessas metas supracitadas, o PNAE
dade para o alcance da SAN38,39. Isso se dá em é um programa que contribui para esses obje-
virtude de esta promover os circuitos alimen- tivos; por isso, a partir dos resultados encon-
tares curtos, valorizarem a cultura alimentar trados neste estudo, é importante deixar as
e a biodiversidade, gerando a autonomia dos seguintes recomendações:
agricultores em relação às grandes indústrias
e, com isso, contribuir para a diversidade de Recomendações para o Estado
alimentos produzidos e consumidos, unindo as
pontas entre produção e consumo de uma dieta
saudável com incentivo a alimentos orgânicos, 1) Ampliar o financiamento de políticas e
e, consequentemente, livre de agrotóxicos que programas que facilitam o crédito aos pe-
são prejudiciais ao meio ambiente e a saúde39. quenos produtores rurais.
Entre as limitações do estudo, estão a con-
fiabilidade dos dados fornecidos nas presta- 2) Promover a reforma agrária diminuindo
ções de contas dos municípios e a ausência as desigualdades no acesso à terra.
de dados em alguns municípios brasileiros,

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 175-189, JUN 2022


186 Oliveira GS, Holanda AEGS, Araújo MAD, Jerez-Roig J, Ferreira MAF

3) Fornecer melhor apoio técnico, por parte 3) Conhecer a capacidade agrícola produtiva
dos gestores municipais, aos agricultores da região, por parte dos nutricionistas das
familiares a fim de melhorar a capacidade escolas, para elaborar os cardápios contem-
produtiva e auxiliar nas especificações legais plando os alimentos locais e realizar ações
para adesão no PNAE. de educação alimentar e nutricional com
os alunos.
4) Capacitar os membros do Conselho de
Alimentação Escolar (CAE) no intuito de
melhorar o controle social em relação às Colaboradores
compras da agricultura familiar no programa.
Oliveira GS (0000-0002-7054-3612)* conce-
5) Criar estratégias que visem à equidade da beu a ideia que originou o presente artigo e foi
implantação das compras de alimentos da a responsável pela coleta e análise dos dados,
agricultura familiar nas diferentes regiões redação inicial do manuscrito, adequação às
e/ou municípios do País. normas da revista, submissão, reformulação e
revisão final. Holanda AEGS (0000-0001-7391-
Recomendações para escola 6501)* participou da concepção e redação do
artigo. Araújo MAD (0000-0002-4137-4266)*
participou da concepção da ideia que deu
1) Fomentar ações de educação alimentar origem ao estudo e realizou a revisão crítica do
e nutricional com os escolares através de artigo. Jerez-Roig J (0000-0002-1968-4452)*
oficinas culinárias, hortas escolares, visitas participou da escrita do artigo e realizou a
aos agricultores locais e apresentações em revisão crítica do mesmo. Ferreira MAF (0000-
sala de aula com a participação de toda a 0002-6142-948X)* orientou a pesquisa que
comunidade escolar. deu origem ao estudo, participou da análise
dos dados, escrita do artigo e fez a revisão
2) Inserir o tema alimentação saudável nos crítica do estudo. s
projetos pedagógicos da escola.

*Orcid (Open Researcher


and Contributor ID).

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 175-189, JUN 2022


Desigualdade espacial na compra de alimentos da agricultura familiar para alimentação escolar no Brasil 187

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Relat.pdf. Aprovado em 31/05/2021
Conflito de interesses: inexistente
Suporte financeiro: não houve

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190 ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE

Exposição infantil aos agrotóxicos: avaliação


de alimentos representativos da dieta de
crianças do município do Rio de Janeiro
Children’s exposure to pesticides: evaluation of food representatives of
children’s diets in the city of Rio de Janeiro

Angélica Castanheira de Oliveira1, Lucia Helena Pinto Bastos1, Maria Helena Wohlers Morelli
Cardoso1, Armi Wanderley da Nóbrega1

DOI: 10.1590/0103-11042022E213

RESUMO Alimentação adequada durante os primeiros anos de vida é fundamental para a saúde e tem
repercussões em todos os ciclos da vida do indivíduo. Diversos trabalhos científicos associam efeitos
nocivos à saúde com exposição aos agrotóxicos. Foram avaliados 312 agrotóxicos em alimentos comu-
mente presentes na dieta infantil, selecionados a partir do cardápio do programa de alimentação escolar
da educação infantil do município do Rio de Janeiro. A seleção dos alimentos baseou-se na frequência
de consumo conforme os cardápios semanais da rede municipal de ensino. A análise multirresíduos por
Cromatografia Líquida de Ultra Eficiência acoplada à Espectrometria de Massas sequencial em 145 amos-
tras (leite, cereais infantis, banana, maçã, mamão, laranja, feijão e arroz) identificou 426 detecções de 53
agrotóxicos diferentes. Mais de 68% das amostras apresentaram múltiplos resíduos de agrotóxicos. Com os
resultados, foi estimada a exposição da população infantil aos resíduos encontrados, indicando potencial
risco à saúde das crianças, que precisa ser uma preocupação prioritária da saúde pública. É necessário
verificar os impactos toxicológicos do uso de agrotóxicos sobre a saúde infantil, ampliar a aquisição de
alimentos orgânicos pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar e fortalecer a agroecologia com
incentivos e políticas pública, buscando proteção e promoção da saúde coletiva.

PALAVRAS-CHAVE Resíduos. Alimentos. Saúde pública.

ABSTRACT Adequate nutrition in the first years of life is a fundamental requirement for health and affects
all life cycles of the individual. Several scientific studies associate exposure to pesticides with adverse effects
to health. A total of 312 pesticides residues were evaluated in common foods from children’s diets, selected
from the infancy school feeding program menu in the city of Rio de Janeiro. The selection of food was based
on the frequency of consumption according to the weekly menus of the municipal school system. Multiresidue
pesticide analysis by Ultra Performance Liquid Chromatography coupled to tandem Mass Spectrometry in
145 samples (milk, infant cereal, banana, apple, papaya, orange, beans and rice) identified 426 detections of
53 different pesticides. More than 68% of the samples had multiple pesticide residues. Based on the results,
was estimated the exposure of children to residues that were detected, indicating a potential risk to children’s
health, which needs to be a priority public health concern. It is necessary to verify the toxicological impacts
of the use of pesticides on children’s health, to expand the acquisition of organic foods by the School Feeding
1 Fundação Oswaldo National Program, and to strengthen agroecology with incentives and public policies, aiming at the protection
Cruz (Fioc ruz), Instituto
Nacional de Controle and promotion of collective health.
de Qualidade em Saúde
(INCQS) – Rio de Janeiro KEYWORDS Pesticide residues. Food. Public health.
(RJ), Brasil.
angelica.oliveira@incqs.
fiocruz.br

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 190-209, JUN 2022 meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado.
Exposição infantil aos agrotóxicos: avaliação de alimentos representativos da dieta de crianças do município do Rio de Janeiro 191

Introdução de ensino em que o educar e o cuidar estão


intimamente ligados7.
A alimentação adequada da criança durante O Programa Nacional de Alimentação
os primeiros anos de vida é um requisito fun- Escolar (PNAE), implantado em 1955, con-
damental para a saúde e tem repercussões tribui para o crescimento, o desenvolvimento,
em todos os ciclos da vida do indivíduo. A a aprendizagem, o rendimento escolar dos
alimentação infantil saudável deve incluir o estudantes e a formação de hábitos alimentares
aleitamento materno e a introdução de ali- saudáveis pela oferta da alimentação escolar
mentos complementares de qualidade, em e de ações de educação alimentar e nutricio-
tempo oportuno1,2. Após os 6 meses, a criança nal8. A Lei nº 11.947, de 16 de junho de 2009,
deve consumir frutas, cereais ou tubérculos, determina que, no mínimo, 30% do valor repas-
leguminosas, carnes, hortaliças (verduras e sado a estados, municípios e Distrito Federal
legumes), sucos e chás, além do leite materno. pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento
Com 12 meses, a criança já deve receber, no da Educação (FNDE) para o PNAE deve ser
mínimo, cinco refeições ao dia, devendo-se utilizado na compra de gêneros alimentícios
estimular o consumo diário de frutas, verduras diretamente da agricultura familiar e do em-
e legumes3. preendedor familiar rural. Esse encontro da
Apesar da importância nutricional, o alimentação escolar com a agricultura familiar
consumo desses alimentos pode representar tem promovido uma importante transforma-
uma importante fonte de exposição a substân- ção ao permitir que alimentos saudáveis e
cias químicas potencialmente tóxicas, como, com vínculo regional, produzidos diretamente
por exemplo, os resíduos de agrotóxicos. Há pela agricultura familiar, sejam consumidos
uma crescente preocupação com a presença diariamente pelos alunos da rede pública de
desses resíduos nos alimentos em relação aos todo o Brasil1,9.
possíveis efeitos adversos à saúde humana No entanto, alguns obstáculos, como a
devido à exposição prolongada. As crianças, falta de assistência técnica e de incentivos ao
que consomem maiores porções de alimentos universo orgânico, ainda impedem o amplo
em relação à massa corporal, quando com- desenvolvimento da agricultura orgânica pela
paradas aos adultos, são mais suscetíveis aos agricultura familiar10.
efeitos tóxicos por estarem nos estágios iniciais Ao mesmo tempo, desde 2008, o Brasil vem
de desenvolvimento4. se consolidando entre os maiores mercados
Estar na escola é um direito de toda consumidores de agrotóxicos do mundo.
criança desde o seu nascimento. Esse direito Segundo dados do Instituto Brasileiro do Meio
está assegurado no Estatuto da Criança e do Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
Adolescente (ECA) e registrado também na Lei (Ibama), em 2019, a agricultura brasileira usou
de Diretrizes e Bases da Educação (LDB)5,6. 620 mil toneladas de Ingredientes Ativos (IA)
No Brasil, a educação infantil, etapa inicial da de agrotóxicos, mais que o dobro do que foi
educação básica, atende crianças de 0 a 5 anos. utilizado em 2009 e quase quatro vezes mais
Na primeira fase de desenvolvimento, de 0 a que em 200011.
3 anos, as crianças são atendidas nas creches Estão registrados, no Brasil, cerca de 2.704
ou instituições equivalentes. A partir daí, até produtos comerciais com mais de 447 IA auto-
completar 6 anos, frequentam as pré-escolas6. rizados para o uso agrícola – em sua maioria,
A Constituição Federal de 1988 assegura o herbicidas, inseticidas e fungicidas; e, em
reconhecimento do direito da criança à creche, menor número, acaricidas, nematicidas, bacte-
garantindo a permanente atuação no campo ricidas, inseticidas biológicos e cupinicidas12,13.
educacional, deixando de ser meramente as- Diversos trabalhos científicos associam
sistencialista, passando a ser uma instituição efeitos nocivos à saúde com a exposição

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 190-209, JUN 2022


192 Oliveira AC, Bastos LHP, Cardoso MHWM, Nóbrega AW

crônica a agrotóxicos, relacionando suas pro- O plano alimentar das creches e dos Espaços
priedades toxicológicas a casos de depressão, de Desenvolvimento Infantil (EDI) municipais
suicídio, más-formações congênitas, distúrbios é elaborado pelo Instituto de Nutrição Annes
endócrinos e neurocomportamentais14-18. Dias de acordo com o tipo de refeição a ser
Assim, é fundamental verificar a presença fornecida e a faixa etária do aluno da unidade
de resíduos de agrotóxicos nos alimentos para escolar21.
esclarecer se os níveis atuais de exposição da Há quatro cardápios semanais (de segunda-
população brasileira via alimentação repre- -feira a sábado), identificados como Semana
sentam um risco efetivo. A, B, C e D, com a descrição das refeições
Embora o Brasil realize programas de mo- diárias de desjejum, lanches, almoço e jantar
nitoramento de agrotóxicos em alimentos, para crianças de 6 meses a 6 anos de idade,
com destaque para o Programa de Análise de e são os mesmos para toda a rede municipal
Resíduos de Agrotóxicos (PARA), da Agência de ensino21.
Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)19, não Os cardápios apresentam leite, iogurte,
há estudos no Brasil sobre resíduos de agrotó- frutas, alimentos à base de cereais para ali-
xicos que relacionem os alimentos avaliados à mentação infantil (mucilagem de arroz, de
dieta infantil. Essa carência de informações é milho, farinha láctea, maisena, aveia), biscoito
a principal justificativa para realização deste salgado e doce, carne, peixe, frango, ovo, arroz,
estudo. Os métodos multirresíduos podem feijão, legumes e macarrão21.
propiciar uma melhor avaliação da presença O leite está presente em todas as refeições
dessas substâncias20 e resultar em ações da de desjejum e lanches, algumas vezes como
vigilância sanitária no sentido de diminuir a mingau ou mesmo iogurte. Em metade dessas
exposição desse grupo e, consequentemente, refeições, para a faixa etária de 6 a 12 meses,
de toda a população. o leite é preparado com cereais infantis. Para
Diante das justificativas expostas, foi reali- as demais faixas etárias, a frequência é menor.
zada uma avaliação de alimentos representati- Além da presença diária de fruta como
vos da dieta de crianças, selecionados com base sobremesa no almoço e no jantar, são indica-
nos cardápios do programa de alimentação dos consumos frequentes de banana, maçã e
escolar da educação infantil do município do mamão no desjejum e nos lanches.
Rio de Janeiro, quanto à presença de resíduos O feijão faz parte de 11 entre as 12 princi-
de agrotóxicos. A partir dos resultados, foi pais refeições previstas. O arroz também é
estimada a exposição da população infantil aos um alimento muito frequente nas refeições
resíduos encontrados, discutindo alguns im- de almoço e jantar, estando presente em oito
pactos toxicológicos sobre a saúde das crianças delas (quatro vezes no almoço e outras quatro
e propondo estratégias no sentido de proteção no jantar).
e promoção da saúde coletiva. As informações dos cardápios do programa
possibilitam a verificação da frequência de
consumo de cada alimento nas creches e EDI
Material e métodos municipais. Assim, foi possível selecionar os
alimentos da dieta infantil prioritários para
Para identificar os alimentos consumidos com as análises de resíduos de agrotóxicos, sendo
maior frequência pela população infantil do analisadas amostras de banana, maçã, mamão,
município do Rio de Janeiro, foi realizado laranja, leite, alimentos à base de cereais para
um levantamento de dados da Secretaria alimentação infantil, arroz e feijão.
Municipal de Educação da prefeitura da cidade Como não foi possível utilizar amostras pro-
sobre o programa de alimentação escolar da venientes do PNAE, foram coletadas amostras
educação infantil. em pontos de venda do comércio do município

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Exposição infantil aos agrotóxicos: avaliação de alimentos representativos da dieta de crianças do município do Rio de Janeiro 193

do Rio de Janeiro. Os alimentos à base de cereais quadrupolo por eletronebulização (Clue-EM/


para alimentação infantil, por serem produtos EM) modelo Quattro Premier XE, Waters.
industrializados, não são analisados pelos pro- Foram pesados 15 g das amostras. Para as
gramas nacionais de monitoramento de agrotó- amostras com baixo teor de água (cereais in-
xicos em alimentos19,22, e, por serem destinados fantis, arroz e feijão), foi necessária a adição
especificamente ao público-alvo do estudo, foram gradual de água ultrapura até que a amostra
priorizados nas análises de amostras. atingisse uma consistência pastosa e homo-
As amostras foram submetidas às etapas gênea. Em seguida, foi iniciada a extração
de processamento, extração e análise por utilizando o método QuEChERS adaptado.
Cromatografia Líquida de Ultra Eficiência Foi realizada a adição de 15 mL de acetonitrila
acoplada à Espectrometria de Massas sequen- (1% ácido acético) e agitação em vortex. Para a
cial (Clue-EM/EM) para avaliação quanto à partição, promovida pela adição de sais, foram
presença de resíduos de 312 IA de agrotóxicos adicionados 6,0 g de MgSO4 + 1,5 g Na(C2H3O2)
de diferentes classes químicas, além da quan- homogeneizados por cerca de 30 segundos
tificação e confirmação desses resíduos. em vortex e, posteriormente, centrifugados
Os métodos de extração e análise foram durante 5 minutos, em temperatura ambiente.
previamente validados para cada matriz, con- O extrato orgânico foi diluído com metanol,
templando também trabalhos de validação e filtrado em unidades filtrantes de 0,22 mm e
aplicação de métodos realizados entre 2017 analisados por Clue-EM/EM27.
e 202023-26. O cromatógrafo utilizado (Clue) (Waters,
Os reagentes e solventes utilizados foram: EUA) modelo ACQUITY UPLCTM possui um
materiais de referência de IA de agrotóxicos sistema binário de bombas, injetor automático,
(AccuStandard e Dr. Ehrenstorfer), acetato degaseificador, forno, coluna de fase reversa
de etila, acetonitrila, metanol – solventes or- ACQUITY UPLCTM BEH C18 (Waters, EUA)
gânicos de alta pureza e grau cromatográfico, e pré-coluna VanGuardTM BEH C18 (Waters,
ácido acético glacial (Merck e Tedia), formato EUA). O espectrômetro de massas sequencial
de amônio (Fluka), Extran® alcalino (Merck), (EM/EM) (Waters, EUA) é o modelo Quattro
MgSO4 PA (Merck); e Na(C2H3O2) anidro Premier XETM, contendo fonte de ionização
(Spectrum), seco a 220 °C por 3 horas antes do tipo IEN (Z-SprayTM) e analisador do tipo
do uso. Os materiais utilizados foram: serin- triplo quadrupolo. O gás de colisão é o argônio,
gas de vidro; tubos para centrífuga de fundo e o gás de dessolvatação é o nitrogênio.
cônico (tipo Falcon) de 50 mL; frascos de vidro Para a cromatografia, o gradiente de eluição
âmbar com tampa vazada e teflon (Supelco); utilizado foi: fase móvel A (5 mmol/L formato
macrocontrolador de pipetas (Brand), unidade de amônio em água (10% metanol) inicial-
filtrante GV Millex 0,22 mm (Millipore); vials mente com 82,5% (v/v) com rampa linear até
de vidro (Waters). atingir 5,5% da mesma fase em curva linear.
Foram utilizados os seguintes equipa- O tempo total de análise foi de 25 minutos. O
mentos: liquidificador industrial, centrífuga equipamento foi operado em Monitoramento
Hitachi-himac CF7D2, agitador rotatório de Reações Múltiplas (MRM) com ionização
marca IKA® modelo Ms3 digital, balança por electrospray no modo positivo. O quadro 1
analítica, com resolução de 10-5 g, cromató- apresenta os 312 IA de agrotóxicos avaliados e
grafo líquido de ultraeficiência acoplado ao as transições utilizadas para o monitoramento
espectrômetro de massas sequencial tipo triplo dessas substâncias.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 190-209, JUN 2022


194 Oliveira AC, Bastos LHP, Cardoso MHWM, Nóbrega AW

Quadro 1. Agrotóxicos avaliados e transições monitoradas

Transições monitoradas Transições monitoradas


Agrotóxico (m/z) Agrotóxico (m/z)
2,6-Diclorobenzamida 190 > 109 | 190 > 145 Bitertanol 338 > 99 | 338 > 70
3-Hidroxicarbofurano 238 > 163 | 238 > 181 Boscalida 343 > 307 | 343 > 271
Abamectina 891 > 305 | 891 > 567 Bromofós metílico 367 > 125 | 369 > 125
Acefato 184 >143 | 184 > 95 Bromuconazol 376 > 159 | 376 > 70
Acetamiprido 223 > 126 | 223 > 90 Bupirimato 317 > 108 | 317 > 272
Acetocloro 270 > 224 | 270 > 148 Buprofezina 306 > 201 | 306 > 116
Acibenzolar-S-Metílico 211 > 136 | 211 > 140 Butacloro 312 > 238 | 312 > 162
Alacloro 270 > 238 | 270 > 162 Butocarboxim 213 > 75 | 213 > 116
Alanicarbe 400 > 238 | 400 > 91 Butocarboxim sulfóxido 207 > 132 | 207 > 75
Aldicarbe 191 > 116 | 191 > 89 Cadusafós 271 > 159 | 271 > 215
Aldicarbe Sulfona 223 > 86 | 223 > 76 Carbaril 219 > 145 | 219 > 127
Aldicarbe Sulfóxido 207 > 132 | 207 > 89 Carbendazim 192 > 160 | 192 > 132
Ametrina 228 > 186 | 228 > 96 Carbetamida 237 > 192 | 237 > 118
Amicarbazona 242 > 143 | 242 > 85 Carbofurano 222 > 165 | 222 > 123
Aminocarbe 209 > 137 | 209 > 152 Carbossulfano 381 > 118 | 381 > 160
Atrazina 216 > 174 | 216 > 96 Carboxina 236 > 143 | 236 > 87
Azaconazol 300 > 159 | 300 > 231 Carbutilato 280 > 181 | 280 > 209
Azametifós 325 > 112 | 325 > 139 Carfrentazona etílica 412 > 346 | 412 > 266
Azinfós Etílico 345 > | 132 > 345 > 160 Carpropamida 334 > 139 | 334 > 196
Azinfós Metílico 318 > 132 | 318 > 104 Cartape 238 > 73 | 238 > 150
Azoxistrobina 404 > 372 | 404 > 329 Ciazofamida 325 > 108 | 325 > 261
Benalaxil 326 > 148 | 326 > 294 Cicloxidine 326 > 280 | 326 > 180
Bendiocarbe 224 > 167 | 224 > 109 Ciflufenamida 413 > 203 | 413 > 295
Benfuracarbe 411 > 252 | 411 > 158 Ciflutrina 451 > 191 | 451 > 127
Benzoato de Emamectina 886 > 126 | 886 > 302 Cihexatina 369 > 205 | 369 > 287
Bifenazate 301 > 170 | 301 > 198 Cimoxanil 199 > 128 | 199 > 111
Bitertanol 338 > 99 | 338 > 70 Cipermetrina 433 > 191 | 433 > 416
Boscalida 343 > 307 | 343 > 271 Ciproconazol 292 > 70 | 292 > 125
3-Hidroxicarbofurano 238 > 163 | 238 > 181 Boscalida 343 > 307 | 343 > 271
Abamectina 891 > 305 | 891 > 567 Bromofós metílico 367 > 125 | 369 > 125
Acefato 184 > 143 | 184 > 95 Bromuconazol 376 > 159 | 376 > 70
Acetamiprido 223 > 126 | 223 > 90 Bupirimato 317 > 108 | 317 > 272
Acetocloro 270 > 224 | 270 > 148 Buprofezina 306 > 201 | 306 > 116
Acibenzolar-S-metílico 211 > 136 | 211 > 140 Butacloro 312 > 238 | 312 > 162
Alacloro 270 > 238 | 270 > 162 Butocarboxim 213 > 75 | 213 > 116
Alanicarbe 400 > 238 | 400 > 91 Butocarboxim sulfóxido 207 > 132 | 207 > 75
Aldicarbe 191 > 116 | 191 > 89 Cadusafós 271 > 159 | 271 > 215
Aldicarbe sulfona 223 > 86 | 223 > 76 Carbaril 219 > 145 | 219 > 127
Aldicarbe sulfóxido 207 > 132 | 207 > 89 Carbendazim 192 > 160 | 192 > 132
Ametrina 228 > 186 | 228 > 96 Carbetamida 237 > 192 | 237 > 118

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 190-209, JUN 2022


Exposição infantil aos agrotóxicos: avaliação de alimentos representativos da dieta de crianças do município do Rio de Janeiro 195

Quadro 1. (cont.)

Transições monitoradas Transições monitoradas


Agrotóxico (m/z) Agrotóxico (m/z)
Amicarbazona 242 > 143 | 242 > 85 Carbofurano 222 > 165 | 222 > 123
Aminocarbe 209 > 137 | 209 > 152 Carbossulfano 381 > 118 | 381 > 160
Atrazina 216 > 174 | 216 > 96 Carboxina 236 > 143 | 236 > 87
Azaconazol 300 > 159 | 300 > 231 Carbutilato 280 > 181 | 280 > 209
Azadiractina 743 > 725 | 743 > 625 Carfrentazona etílica 412 > 346 | 412 > 266
Azametifós 325 > 112 | 325 > 139 Carpropamida 334 > 139 | 334 > 196
Azinfós etílico 345 > 132 | 345 > 160 Cartape 238 > 73 | 238 > 150
Azinfós metílico 318 > 132 | 318 > 104 Ciazofamida 325 > 108 | 325 > 261
Azociclotina 369 > 205 | 369 > 287 Cicloxidine 326 > 280 | 326 > 180
Azoxistrobina 404 > 372 | 404 > 329 Ciflufenamida 413 > 203 | 413 > 295
Benalaxil 326 > 148 | 326 > 294 Ciflutrina 451 > 191 | 451 > 127
Bendiocarbe 224 > 167 | 224 > 109 Cihexatina 369 > 205 | 369 > 287
Benfuracarbe 411 > 252 | 411 > 158 Cimoxanil 199 > 128 | 199 > 111
Benzoato de emamectina 886 > 126 | 886 > 302 Cipermetrina 433 > 191 | 433 > 416
Bifenazate 301 > 170 | 301 > 198 Ciproconazol 292 > 70 | 292 > 125
Ciprodinil 226 > 93 | 226 > 108 Difenoconazol 406 > 251 | 406 > 188
Ciromazina 167 > 60 | 167 > 125 Difenoxurom 287 > 122 | 287 > 71
Cletodim 360 > 136 | 360 > 240 Diflubenzurom 311 > 158 | 311 > 113
Clodimeforme 197 > 46 | 197 > 117 Dimetenamida 276 > 244 | 276 > 168
Clofentezina 303 > 138 | 303 > 102 Dimetoato 230 > 199 | 230 > 125
Clomazona 240 > 125 | 240 > 89 Dimetomorfe 388 > 301 | 388 > 165
Clorantraniliprole 484 > 453 | 484 > 286 Dimoxistrobina 327 > 116 | 327 > 89
Clorbromurom 294 > 206 | 294 > 182 Diniconazol 326 > 70 | 326 > 159
Clorfenvinfós 359 > 99 | 359 > 127 Dinotefuram 203 > 129 | 203 > 123
Clorfluazurom 540 > 383 | 540 > 158 Dioxacarbe 224 > 167 | 224 > 123
Clorimurom etílico 415 > 186 | 415 > 83 Disulfotom 275 > 89 | 275 > 61
Cloroxurom 291 > 72 | 291 > 164 Diurom 233 > 72 | 233 > 160
Clorpirifós 350 > 98 | 350 > 97 DMSA 201 > 92 | 201 > 137
Clorpirifós metílico 322 > 125 | 322 > 290 DMST 215 > 106 | 215 > 79
Clotianidina 250 > 169 | 250 > 132 Dodemorfe 282 > 116 | 282 > 98
Coumafós 363 > 307 | 363 > 289 Dodina 228 > 57 | 228 > 60
Cresoxim metílico 314 > 116 | 314 > 267 Doramectina 917 > 331 | 917 > 593
Cumilurom 303 > 185 | 303 > 125 Epoxiconazol 330 > 121 | 330 > 123
Daimurom 269 > 151 | 269 > 91 Eprinomectina 915 > 186 | 915 > 144
Deltametrina 523 > 281 | 523 > 506 EPTC 190 > 128 | 190 > 86
Demeton-S-metílico 231 > 89 | 231 > 61 Esfenvalerato 437 > 167 | 439 > 169
Desmedifam 318 > 182 | 318 > 136 Espinetoram 749 > 142 | 749 > 98
Diafentiurom 385 > 329 | 385 > 278 Espinosade A 733 > 142 | 733 > 98
Diazinona 305 > 169 | 305 > 97 Espinosade D 747 > 142 | 747 > 98
Diclofuanida 350 > 123 | 350 > 224 Espirodiclofeno 411 > 71 | 411 > 313

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 190-209, JUN 2022


196 Oliveira AC, Bastos LHP, Cardoso MHWM, Nóbrega AW

Quadro 1. (cont.)

Transições monitoradas Transições monitoradas


Agrotóxico (m/z) Agrotóxico (m/z)
Diclorvós 221 > 109 | 221 > 127 Espiromesifeno 371 > 273 | 371 > 255
Dicrotofós 238 > 112 | 238 > 72 Espirotetramato 374 > 330 | 374 > 302
Dietofencarbe 268 > 226 | 268 > 124 Espiroxamina 298 > 144 | 298 > 100
Esprocarbe 266 > 91 | 266 > 71 Fenpropimorfe 304 > 147 | 304 > 130
Etidimurom 265 > 208 | 265 > 114 Fentiona 279 > 169 | 279 > 105
Etiofencarbe 226 > 107 | 226 > 169 Fentiona sulfóxido 295 > 109 | 295 > 79
Etiofencarbe sulfona 275 > 107 | 275 > 201 Fentoato 321 > 247 | 321 > 163
Etiofencarbe sulfóxido 242 > 107 | 242 > 185 Fenurom 165 > 72 | 165 > 46
Etiona 385 > 199 | 385 > 143 Fenvalerato 437 > 167 | 437 > 125
Etiprole 414 > 351 | 414 > 255 Flonicamida 230 > 203 | 230 > 148
Etirimol 210 > 140 | 210 > 98 Fluazifope-p-butílico 384 > 282 | 384 > 328
Etobenzanida 340 > 179 | 340 > 149 Flufenacete 364 > 194 | 364 > 152
Etofenproxi 394 > 177 | 394 > 107 Flufenoxurom 489 > 158 | 489 > 141
Etofumesato 287 > 121 | 287 > 259 Fluoxastrabina 459 > 427 | 459 > 188
Etoprofós 243 > 131 | 243 > 97 Fluquinconazol 376 > 349 | 376 > 108
Etoxazol 360 > 141 | 360 > 57 Flusilazol 316 > 247 | 316 > 165
Etrinfós 293 > 125 | 293 > 265 Flusulfamida 413 > 171 | 413 > 179
Famoxadona 392 > 331 | 392 > 238 Flutiaceto metílico 404 > 274 | 404 > 215
Fenamidona 312 > 92 | 312 > 236 Flutolanil 324 > 262 | 324 > 65
Fenamifós 304 > 217 | 304 > 202 Flutriafol 302 > 70 | 302 > 123
Fenarimol 331 > 268 | 331 > 81 Fluxapiroxade 382 > 342 | 382 > 314
Fenazaquina 307 > 57 | 307 > 161 Forclorfenurom 248 > 129 | 248 > 93
Fenbuconazol 337 > 125 | 337 > 70 Fosalona 368 > 182 | 368 > 111
Fenhexamida 302 > 97 | 302 > 55 Fosfamidona 300 > 174 | 300 > 127
Fenitrotiona 278 > 184 | 278 > 125 Fosmete 318 > 160 | 318 > 133
Fenmedifam 301 > 168 | 301 > 136 Foxim 300 > 129 | 300 > 125
Fenobucarbe 208 > 95 | 208 > 152 Fuberidazol 185 > 157 | 185 > 156
Fenoxicarbe 302 > 88 | 302 > 116 Furalaxil 302 > 95 | 302 > 242
Fenpiroximato 422 > 366 | 422 > 138 Furatiocarbe 383 > 195 | 383 > 252
Fenpropatrina 367 > 125 | 367 > 350 Halofenosídeo 331 > 275 | 331 > 105
Fenpropidina 274 > 147 | 274 > 86 Heptenofós 251 > 127 | 251 > 109
Hexaconazol 314 > 70 | 314 > 159 Mefosfolam 270 > 140 | 270 > 196
Hexitiazoxi 353 > 228 | 353 > 168 Mepanipirim 224 > 106 | 224 > 77
Imazalil 297 > 159 | 297 > 69 Mepronil 270 > 119 | 270 > 91
Imazapique 276 > 231 | 276 > 163 Mesotriona 340 > 228 | 340 > 104
Imazapir 262 > 69 | 262 > 86 Metalaxil-M 280 > 220 | 280 > 192
Imazaquim 312 > 266 | 312 > 86 Metamidofós 142 > 94 | 142 > 125
Imazasulfurom 413 > 153 | 413 > 156 Metconazol 320 > 70 | 320 > 125
Imazetapir 290 > 245 | 290 > 86 Metfuroxam 230 > 137 | 230 > 111
Imibenconazol 411 > 125 | 411 > 171 Metidationa 303 > 145 | 303 > 85

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 190-209, JUN 2022


Exposição infantil aos agrotóxicos: avaliação de alimentos representativos da dieta de crianças do município do Rio de Janeiro 197

Quadro 1. (cont.)

Transições monitoradas Transições monitoradas


Agrotóxico (m/z) Agrotóxico (m/z)
Imidacloprido 256 > 175 | 256 > 209 Metiocarbe 226 > 169 | 226 > 121
Indoxacarbe 528 > 203 | 528 > 218 Metiocarbe sulfona 275 > 122 | 275 > 201
Ioxinil 370 > 127 | 370 > 243 Metiocarbe sulfóxido 242 > 185 | 242 > 122
Iprovalicarbe 321 > 119 | 321 > 203 Metobromurom 259 > 170 | 259 > 148
Isocarbamida 186 > 87 | 186 > 130 Metomil 163 > 88 | 163 > 106
Isocarbofós 291 > 231 | 291 > 121 Metopreno 311 > 279 | 311 > 191
Isofenofós 346 > 245 | 346 > 217 Metoprotrina 272 > 198 | 272 > 170
Isoprocarbe 194 > 95 | 194 > 137 Metoxifenosida 369 > 149 | 369 > 313
Isoprotiolona 291 > 231 | 291 > 189 Metoxurom 229 > 72 | 229 > 156
Isoproturom 207 > 72 | 207 > 46 Metrafenona 409 > 209 | 409 > 227
Isoxaflutol 359 > 251 | 359 > 220 Metribuzim 215 > 131 | 215 > 89
Isoxationa 314 > 105 | 314 > 286 Metsulfurom metílico 382 > 167 | 382 > 199
Ivermectina 893 > 307 | 893 > 569 Mevinfós 225 > 127 | 225 > 193
Lactofem 479 > 344 | 479 > 462 Miclobutanil 289 > 70 | 289 > 125
Lambda-cialotrina 467 > 225 | 467 > 450 Molinato 188 > 126 | 188 > 55
Linurom 249 > 160 | 249 > 182 Monalida 240 > 85 | 240 > 128
Malationa 331 > 127 | 331 > 99 Monocrotofós 224 > 127 | 224 > 98
Mandipropamida 412 > 328 | 412 > 125 Monolinurom 215 > 148 | 215 > 99
Mefenacete 299 > 148 | 299 > 120 Moxidectina 641 > 528 | 641 > 498
Neburom 275 > 88 | 275 > 57 Pirimifós metílico 306 > 108 | 306 > 67
Nitenpiram 271 > 225 | 271 > 126 Piriproxifem 322 > 96 | 322 > 185
Norflurazom 304 > 284 | 304 > 160 Procloraz 376 > 308 | 376 > 266
Novalurom 493 > 158 | 493 > 141 Profam 180 > 120 | 180 > 138
Nuarimol 315 > 252 | 315 > 81 Profenofós 375 > 305 | 375 > 347
Ometoato 214 > 183 | 214 > 125 Prometom 226 > 184 | 226 > 86
Oxadiargil 341 > 151 | 341 > 230 Prometrina 242 > 158 | 242 > 200
Oxadixil 279 > 219 | 279 > 132 Propanil 218 > 162 | 218 > 127
Oxamil 237 > 72 | 237 > 90 Propargito 368 > 231 | 368 > 175
Oxamil oxima 163 > 72 | 163 > 90 Propazina 230 > 146 | 230 > 188
Oxicarboxina 268 > 175 | 268 > 147 Propiconazol 342 > 69 | 342 > 159
Paclobutrazol 294 > 70 | 294 > 125 Propizamida (Pronamida) 256 > 190 | 256 > 173
Pencicurom 329 > 125 | 329 > 218 Propoxur 210 > 111 | 210 > 93
Penconazol 284 > 70 | 284 > 159 Proquinazida 373 > 289 | 373 > 331
Pendimetalina 282 > 212 | 282 > 194 Protioconazol 344 > 189 | 344 > 326
Permetrina 408 > 183 | 408 > 355 Quinalfós 299 > 163 | 299 > 147
Picoxistrobina 368 > 205 | 368 > 145 Quinoxifem 308 > 197 | 308 > 162
Pimetrozina 218 > 105 | 218 > 78 Quizalofope-P-etílico 379 > 211 | 379 > 115
Piperonil butóxido 356 > 177 | 356 > 119 Rotenona 395 > 213 | 395 > 192
Piraclostrobina 388 > 194 | 388 > 163 Sebutilazina 230 > 174 | 230 > 96
Pirazofós 374 > 222 | 374 > 194 Sidurom 233 > 94 | 233 > 137

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 190-209, JUN 2022


198 Oliveira AC, Bastos LHP, Cardoso MHWM, Nóbrega AW

Quadro 1. (cont.)

Transições monitoradas Transições monitoradas


Agrotóxico (m/z) Agrotóxico (m/z)
Piridabem 365 > 147 | 365 > 309 Simazina 202 > 132 | 202 > 124
Piridafentiona 341 > 189 | 341 > 92 Simetrina 214 > 124 | 214 > 96
Pirifenoxi 295 > 93 | 295 > 66 Sulfentrazona 387 > 146 | 387 > 307
Pirimetanil 200 > 107 | 200 > 82 Tebuconazol 308 > 70 | 308 > 125
Pirimicarbe 239 > 72 | 239 > 182 Tebufenosida 353 > 133 | 353 > 297
Pirimicarbe desmetil 225 > 72 | 225 > 168 Tebufenpirade 334 > 117 | 334 > 145
Pirimifós etílico 334 > 198 | 334 > 182 Tebupirinfós 319 > 277 | 319 > 153
Tebutiurom 229 > 172 | 229 > 116 Tolifluanida 363 > 238 | 363 > 137
Temefós 467 > 419 | 467 > 125 Triadimefom 294 > 69 | 294 > 197
Tepraloxidim 342 > 250 | 342 > 166 Triadimenol 296 > 70 | 296 > 99
Terbufós 289 > 103 | 289 > 57 Triazofós 314 > 162 | 314 > 119
Terbumetom 226 > 170 | 226 > 114 Triciclazol 190 > 162 | 190 > 136
Terbutrina 242 > 186 | 242 > 91 Triclorfom 257 > 109 | 257 > 127
Tetraconazol 372 > 159 | 372 > 70 Tridemorfe 298 > 57 | 298 > 98
Tiabendazol 202 > 175 | 202 > 131 Trifenmorfe 243 > 165 | 243 > 228
Tiacloprido 253 > 126 | 253 > 90 Trifloxistrobina 409 > 186 | 409 > 145
Tiametoxam 292 > 211 | 292 > 181 Triflumizol 346 > 278 | 346 > 73
Tiobencarbe 257 > 124 | 257 > 100 Triflumurom 359 > 156 | 359 > 139
Tiodicarbe 355 > 88 | 355 > 108 Triflusulfurom metílico 493 > 264 | 493 > 96
Tiofanato metílico 343 > 151 | 343 > 93 Triforina 435 > 390 | 435 > 215
Tiofanox 219 > 57 | 219 > 76 Triticonazol 318 > 70 | 318 > 125
Tiofanox sulfona 268 > 57 | 268 > 76 Vamidotiona 288 > 146 | 288 > 118
Tiofanox sulfóxido 252 > 235 | 252 > 178 Zoxamida 336 > 187 | 336 > 159
Tolclofós metílico 301 > 269 | 301 > 175 ---------- ----------
Fonte: Elaboração própria.

Os critérios de identidade para a confir- Os limites de quantificação, em geral, foram


mação dos agrotóxicos avaliados nas amos- de 0,01 mg kg-1, concentração inferior aos
tras foram: a) o tempo de retenção obtido Limites Máximos de Resíduos (LMR) defi-
nas amostras em relação ao tempo de reten- nidos na legislação brasileira12. Para as amos-
ção dos padrões – o critério de tolerância tras de fórmulas infantis e de cereais infantis,
entre o tempo de retenção (tR) dos padrões devido à ausência de regulamentação nacional,
e da amostra foi de ± 0,1 min; b) a intensi- foi adotada a legislação europeia segundo a
dade relativa das transições detectadas na Diretiva 2006/125/CE, de 5 de dezembro de
amostra avaliada e nos padrões, expressa 2006, que estipula que os alimentos à base de
como razão de intensidade da transição mais cereais e os alimentos para bebês não podem
abundante com a transição correspondente conter resíduos de agrotóxicos superiores a
do padrão, medida na mesma concentração 0,01 mg kg-1 29.
e condições analíticas; e c) razão sinal/ruído Para estimar a exposição dietética infantil
maior que 3:128. aos múltiplos resíduos, foram selecionadas

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Exposição infantil aos agrotóxicos: avaliação de alimentos representativos da dieta de crianças do município do Rio de Janeiro 199

amostras do comércio local que apresenta- uma abordagem que ainda não demonstra
ram, somadas, a combinação dos agrotóxicos consenso internacional acerca da metodolo-
com maiores índices de detecção pelo método gia a ser empregada e conta com propostas
multirresíduos. metodológicas em estudo e experimenta-
A partir dessas amostras, foi calculada a in- ção19. O presente estudo aplicou o método
gestão, em mg, de cada um dos principais agro- do índice de risco, proposto por Goumenou
tóxicos encontrados. Considerando o consumo e Tsatsakis32.
de tais amostras em um mesmo dia, com as O índice de risco é determinado pela soma
concentrações de agrotóxicos encontradas dos quocientes de risco de cada resíduo encon-
nas análises, foi calculada uma estimativa da trado32,33. Quando o índice de risco excede a
exposição e, com isso, o índice de risco, caso unidade (maior que 1,00), a mistura excede o
uma criança de 18 kg, que é o peso aproximado índice considerado seguro e pode representar
de uma criança de 5 anos30, consumisse tais um risco. Quando o valor da Ingestão Diária
alimentos. As porções dos alimentos selecio- Aceitável (IDA) não está disponível, pode ser
nados para a estimativa da exposição seguiram utilizado um valor de orientação proposto de
as recomendações do ‘Manual de Alimentação 10 ng por kg de peso corporal por dia34.
da Sociedade Brasileira de Pediatria’31.
É importante ressaltar que, para esse
cálculo, não foram utilizadas as amostras que Resultados e discussão
apresentaram as maiores concentrações de
agrotóxicos, mas, sim, as que, em conjunto, Na análise das 145 amostras, foram obser-
resultaram na combinação dos agrotóxicos vadas 426 detecções de 53 IA diferentes. A
mais frequentemente encontrados no total de tabela 1 apresenta os agrotóxicos identifica-
amostras analisadas neste estudo. dos nas amostras, com o respectivo número
A avaliação de risco cumulativo, embora de detecções e as matrizes nas quais foram
já tenha sido utilizada por alguns países, é encontrados.

Tabela 1. Agrotóxicos detectados nas amostras analisadas

Agrotóxicos Nº de amostras Matrizes


1 Carbendazim 65 Mamão (16), cereais infantis (15), maçã (12), feijão (12), laranja (7),
arroz, banana e leite
2 Pirimifós metílico 49 Cereais infantis (34), arroz (9) e leite (4) e feijão (2)
3 Piperonil butóxido 43 Mamão (19), cereais infantis (16), leite (4), arroz (3) e feijão
4 Triciclazol 32 Cereais infantis (23), arroz (8) e leite
5 Tebuconazol 27 Cereais infantis (12), arroz (8), laranja (3), mamão (2), banana e maçã
6 Azoxistrobina 18 Mamão (13), arroz (4) e cereais infantis
7 Piraclostrobina 18 Laranja (9), maçã (6), arroz, banana e mamão
8 Difenoconazol 16 Mamão (11) e maçã (5)
9 Ciproconazol 11 Cereais infantis (7) e arroz (4)
10 Clorpirifós 10 Maçã (6), laranja (3) e leite
11 Fosmete 10 Maçã (8) e laranja (2)
12 Tiabendazol 10 Mamão (8), banana e leite
13 Trifloxistrobina 10 Maçã (6), laranja (3) e mamão
14 Imidacloprido 9 Arroz (3), laranja (4), cereais infantis (2)

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Tabela 1. (cont.)

Agrotóxicos Nº de amostras Matrizes


15 Tiametoxam 9 Laranja (3), mamão (3), feijão (2) e arroz
16 Flutriafol 7 Mamão (4), feijão (2) e banana
17 Acetamiprido 6 Maçã (3), cereal infantil, feijão e mamão
18 Clotianidina 6 Cereais infantis (2), laranja (2), arroz e feijão
19 Pirimetanil 6 Maçã (5) e laranja
20 Epoxiconazol 5 Arroz (3), banana e cereal infantil
21 Diflubenzurom 4 Laranja (4)
22 Espirodiclofeno 4 Maçã (3) e laranja
23 Etofenproxi 4 Maçã (3) e laranja
24 Imazalil 4 Mamão (2), cereal infantil e laranja
25 Propargito 4 Laranja (4)
26 Ametrina 3 Leite (2) e laranja
27 Espiromesifeno 3 Laranja (3)
28 Buprofezina 2 Cereais infantis (2)
29 Etiona 2 Arroz e leite
30 Etoprofós 2 Arroz e cereal infantil
31 Mefosfolam 2 Cereal infantil e leite
32 Piriproxifem 2 Laranja (2)
33 Triazofós 2 Arroz (2)
34 Triflumurom 2 Cereal infantil e laranja
35 Acefato 1 Laranja
36 Carbofurano 1 Laranja
37 Carbosulfano 1 Mamão
38 Diazinona 1 Leite
39 Dimetoato 1 Laranja
40 Espinosade 1 Arroz
41 Etirimol 1 Arroz
42 Famoxadona 1 Mamão
43 Fenoxicarbe 1 Leite
44 Fenpiroximato 1 Maçã
45 Fenpropimorfe 1 Cereal infantil
46 Flufenoxurom 1 Cereal infantil
47 Monalida 1 Arroz
48 Picoxistrobina 1 Arroz
49 Piridabem 1 Maçã
50 Procloraz 1 Mamão
51 Simazina 1 Cereal infantil
52 Tebufenosida 1 Laranja
53 Tiofanato metílico 1 Laranja
Fonte: Elaboração própria.

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Exposição infantil aos agrotóxicos: avaliação de alimentos representativos da dieta de crianças do município do Rio de Janeiro 201

Nota-se que algumas substâncias são encon- e piretroides para controlar pragas em grãos
tradas com maior frequência, com destaque armazenados. O sistema MFO é o conjunto
para o carbendazim, presente em 44,8% das de defesa natural dos insetos e causa a quebra
amostras. oxidativa dos inseticidas. Assim, inibindo esse
O carbendazim é um benzimidazol e age sistema, o PBO promove níveis mais altos de
como fungicida. Seu mecanismo de ação se dá inseticida e permite que doses mais baixas
por meio da interrupção ou inibição da função sejam usadas para um efeito letal. O PBO
dos microtúbulos, estruturas proteicas do ci- produz em mamíferos a inibição dos seguintes
toesqueleto das células, ao se ligar a proteínas sistemas enzimáticos: transaminase glutâmico-
do grupo das tubulinas. Assim, o carbenda- -oxalacética; transaminase glutâmico-pirúvica,
zim bloqueia a mitose e, consequentemente, lactato desidrogenase e sistema oxigenase.
o crescimento de fungos. Esse mecanismo Ainda, em animais, provoca a diminuição na
também explica seus potenciais efeitos tóxicos filtração glomerular, produz hipotermia, uma
em mamíferos. A toxicidade aguda é baixa, depleção dos níveis hepáticos da glutationa
enquanto estudos de exposição crônica en- e aumento da atividade da delta-aminole-
contraram efeitos no fígado, testículos, medula vulínico-sintetase. O PBO é carcinogênico
óssea e trato gastrointestinal. Pode provocar para ratos e camundongos e teratogênico em
aberrações cromossômicas (aneuploidia) in camundongos. Também pode induzir hepa-
vitro e in vivo, mas não interage diretamente tocarcinogênese em camundongos, além de
com o DNA. Tumores hepáticos têm sido ob- estresse oxidativo, ativação da via MAPK e
servados em estudos de oncogenicidade em aumento dos níveis de transcrição ATF3 nos
camundongos, e efeitos teratogênicos foram hepatócitos fora dos focos alterados durante a
observados após a administração de doses fase inicial da hepatocarcinogênese35,36.
elevadas de carbendazim a ratos35,36. Triciclazol é um fungicida sistemático
Além de carbendazim, outros IA foram usado para controlar a doença blástica no
encontrados com frequência, como pirimi- arroz. É um inibidor de melanina que não afeta
fós metílico, piperonil butóxido, triciclazol, o crescimento de forma eficaz e foi classificado
tebuconazol, azoxistrobina, difenoconazol e com um grupo de fungicidas que inibem a
piraclostrobina. Juntos, esses oito agrotóxicos bioconstrução de melanina35,36.
representam mais de 60% do total de detecções Tebuconazol e difenoconazol são fungicidas
das amostras analisadas. do grupo dos triazóis e atuam por interferência
Pirimifós metílico é um Organofosforado na síntese de ergosterol nos fungos alvo por
(OP) usado como inseticida e acaricida pela inibição da 14-alfa-desmetilação de esteróis, o
inibição da enzima Acetilcolinesterase (AChE), que leva a alterações morfológicas e funcionais
causando acúmulo do neurotransmissor ace- na membrana celular fúngica35,36.
tilcolina nas sinapses colinérgicas, resultando Azoxistrobina e piraclostrobina são fungici-
em toxicidade colinérgica e morte. A inibição das do grupo das estrobilurinas. Esses fungici-
da AChE por compostos OP é a causa principal das atuam por meio da inibição da respiração
das anormalidades da transmissão neuromus- mitocondrial, bloqueando a transferência de
cular, e a ação letal pode ser comumente atri- elétrons dentro da cadeia respiratória, o que,
buída à insuficiência respiratória35,36. por sua vez, faz com que importantes proces-
Piperonil butóxido (PBO) não é considerado sos bioquímicos celulares sejam severamen-
um agrotóxico. É um sinergista, inibidor da ati- te interrompidos, resultando na cessação do
vidade enzimática microssomal. O PBO inibe crescimento fúngico35,36.
as enzimas Oxidases Multifuncionais (MFO) No Brasil, a avaliação toxicológica é uma
de insetos e tem sido usado com resultados das etapas obrigatórias no processo de regis-
notáveis como sinergista com inseticidas OP tro de agrotóxicos. No entanto, nessa etapa, a

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202 Oliveira AC, Bastos LHP, Cardoso MHWM, Nóbrega AW

Anvisa analisa o risco para a saúde humana as chances do consumo de alimentos com
decorrente da exposição a um único IA por múltiplos resíduos, principalmente pela
vez, conforme o processo em análise19. Na falta de orientação técnica às pessoas res-
prática, são utilizados produtos formula- ponsáveis pela aplicação de agrotóxicos,
dos, que incluem IA e substâncias usadas que em geral têm dificuldades de entendi-
para potencializar os seus efeitos e que, mento das orientações que acompanham
apesar de serem chamadas de ‘ingredientes esses produtos, potencializando o risco de
inertes’ pela Lei de Agrotóxicos, muitas intoxicação e de uso inadequado40.
vezes aumentam a toxicidade dos produ- Isso foi confirmado com o elevado percentu-
tos37,38. Além disso, é muito comum o uso al de amostras que apresentaram múltiplos re-
simultâneo de vários produtos formulados síduos de agrotóxicos detectados neste estudo.
no mesmo alimento e, inclusive, aplicados O gráfico 1 resume os resultados das amostras
conjuntamente39. Essas práticas aumentam analisadas pelo método multirresíduos.

Gráfico 1. Número de resíduos de agrotóxicos encontrados nas amostras de alimentos analisadas

22
20
18
Número de amostras analisadas

16
14
12
10
8
6
4
2
0
na o las is oz ão
na anj
a çã mã mu is fan
t
Arr ij
Ba Lar Ma Ma Fór infant is in Fe
te / rea
Lei Ce

Sem resíduos detectados 1 resíduo 2 resíduos 3 ou 4 resíduos 5 a 15 resíduos

Fonte: Elaboração própria.

Observa-se que aproximadamente 86% índices de detecção de agrotóxicos, mas


das amostras analisadas apresentaram ainda significativos, em torno de 50%.
resíduo de algum dos agrotóxicos dentre No entanto, as amostras nas quais não foram
os IA avaliados nesse método. Foram iden- encontrados nenhum dos resíduos monito-
tificados resíduos em todas as amostras de rados por esse método não necessariamente
laranja e mamão e em cerca de 90% das são amostras sem agrotóxicos, pois muitos IA
amostras de maçã, cereais infantis, arroz não estão contemplados no método utilizado,
e feijão. Já as amostras de banana e leite/ como as substâncias que ionizam no modo
fórmulas infantis apresentaram os menores negativo, os agrotóxicos mais polares, além

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Exposição infantil aos agrotóxicos: avaliação de alimentos representativos da dieta de crianças do município do Rio de Janeiro 203

dos IA que somente apresentam resposta por Além disso, há ainda mais de 150 IA proibidos
cromatografia a gás. (monografias excluídas) e outros que nunca
Esses números indicam um quadro preocu- foram registrados no País12.
pante à saúde pública e podem ainda não refle- Além disso, embora muitos IA sejam clas-
tir adequadamente as dimensões do problema, sificados como moderadamente ou pouco
visto que os 14% de amostras sem resíduos tóxicos conforme seus efeitos agudos, os
detectados se referem aos IA pesquisados, o efeitos crônicos podem ocorrer meses, anos
que não permite afirmar a ausência dos demais. ou até décadas após a exposição14,15,41.
Ao avaliar os dados disponíveis nos relató- Só em 2019, foram autorizados 474 regis-
rios do PARA referentes às análises multirresí- tros de agrotóxicos no Brasil, sendo que 20%
duos dos alimentos de interesse deste estudo, deles são produtos classificados como extre-
observa-se que as amostras de maçã e mamão mamente tóxicos42,43. Em 2020, foram mais
foram as culturas que apresentaram maiores 493 registros, alcançando o maior número da
índices de detecção de agrotóxicos (99% e 89% série histórica, que apresenta intenso cresci-
respectivamente), seguidas pelas amostras de mento desde 201642. A política de liberação
laranja e feijão (em torno de 70%). Cerca de de agrotóxicos também contribui para o uso
40% a 50% das amostras de arroz, farinha de indiscriminado desses produtos e para um
milho e farinha de trigo também evidenciaram maior risco à saúde da população.
a presença de resíduos de agrotóxicos, e as Enquanto a população está exposta a mistu-
amostras com os menores índices de detecção ras de produtos tóxicos cujos efeitos sinérgicos
foram de banana (20%)19. ou de potencialização são desconhecidos ou
Embora os resultados mostrem convergên- desconsiderados, a Anvisa realiza suas ava-
cias, destaca-se que foram pesquisados pelo liações de risco desconsiderando tais efeitos.
PARA no máximo 243 IA19. Esse dado sugere Segundo o relatório do PARA, o risco aos con-
que as mesmas amostras, caso fossem avaliadas sumidores decorrente da presença de resíduos
por um método de maior escopo, pesquisan- de agrotóxicos nos alimentos é estimado para
do resíduos de mais agrotóxicos, poderiam cada substância individualmente19. Além da
mostrar um panorama diferente, com mais exposição mista, as vias de penetração no or-
detecções que as apresentadas nos relatórios. ganismo também são variadas, podendo ser
Nas análises realizadas neste estudo, entre oral, inalatória e/ou dérmica simultaneamente.
as amostras com agrotóxicos detectados, 20% Embora não haja dados reais de consumo
evidenciaram a presença de apenas um dos de alimentos pela população infantil brasileira,
resíduos pesquisados; as outras 80% apresen- com os dados das amostras analisadas, pode ser
taram múltiplos resíduos. Esses dados podem estimada a exposição da população infantil aos
indicar o uso simultâneo de vários produtos resíduos de agrotóxicos encontrados. Algumas
na agricultura e a exposição da população a amostras apresentaram mais de oito resíduos
possíveis efeitos sinérgicos ou de potencia- de agrotóxicos, no entanto, em nenhuma delas
lização desconhecidos ou desconsiderados. foram detectados, simultaneamente, os oito IA
Este cenário, de alimentos com múltiplos mais encontrados neste estudo. Para conseguir
resíduos e amostras com até 15 diferentes IA, essa combinação, foi considerada a ingestão
confirma o uso indiscriminado dessas subs- de três desses alimentos frequentemente con-
tâncias em um país que segue há mais de uma sumidos por crianças.
década entre os maiores mercados consumi- A partir dessas três amostras, foi calcu-
dores de agrotóxicos. lada a ingestão, em mg, de cada um dos oito
Vale ressaltar que, embora este trabalho agrotóxicos de interesse. Como exemplo, a
tenha avaliado 312 IA, atualmente, há 447 amostra de mamão, que apresentou 0,413
IA autorizados para o uso agrícola no Brasil. mg kg -1 de carbendazim, deve conter em

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meia unidade pequena (140 g) 57,8 mg de cereal infantil de arroz, pode ser ingerida
carbendazim, além de outros agrotóxicos uma combinação de agrotóxicos tal qual a
presentes na amostra. Quando, além da apresentada na tabela 2, que foi elaborada
porção de mamão, há o consumo de uma com os resultados encontrados em amostras
maçã (120 g) e duas porções (42 g) de um do comércio local.

Tabela 2. Estimativa da ingestão de agrotóxicos pelo consumo de três amostras de alimentos avaliados que apresentaram
a combinação dos agrotóxicos com os maiores índices de detecção

Agrotóxicos Conc. (mg kg-1) Amostra Consumo mg ingeridos


Carbendazim 0,413 Mamão 140 g (1/2 unid. peq.) 57,8
Pirimifós metílico 0,373 Cereal infantil 42 g (2 porções*) 15,7
Piperonil butóxido 0,082 Cereal infantil 42 g (2 porções*) 3,4
Triciclazol 0,008 Cereal infantil 42 g (2 porções*) 0,3
Tebuconazol 0,349 e 0,242 Mamão e cereal infantil 140 g + 42 g 59,0
Azoxistrobina 0,068 Mamão 140 g (1/2 unid. peq.) 9,5
Piraclostrobina 0,084 Maçã 120 g (1 unid.) 10,1
Difenoconazol 0,075 Mamão 140 g (1/2 unid. peq.) 10,5
Fonte: Elaboração própria.
*Conforme instruções de preparo contidas no rótulo do produto.

Considerando a combinação de uma É importante ressaltar que, para esse cálculo,


maçã, meia unidade pequena de mamão e foram considerados apenas oito agrotóxicos
duas porções de um cereal infantil de arroz, em três alimentos diferentes, desconsiderando
consumidos em um mesmo dia, com as con- todos os demais resíduos de outros alimentos que
centrações de agrotóxicos encontradas nas compõem o cardápio infantil. Caso contrário, as
análises, foi calculado o índice de risco, con- quantidades de agrotóxicos calculadas seriam
forme apresentado na tabela 3. significativamente superiores.

Tabela 3. Estimativa da exposição e cálculo do índice de risco de crianças de 18 kg aos agrotóxicos encontrados em três
amostras analisadas

IDAa Exposição estimadab Quociente de Índice de


Agrotóxicos mg ingeridos (mg kg-1 p.c. dia-1) (mg kg-1 p.c. dia-1) riscoc riscod
Carbendazim 0,0578 0,02000 0,003212 0,160611 2,43
Pirimifós metílico 0,0157 0,00400 0,000870 0,217583
Piperonil butóxido 0,0034 0,20000 0,000191 0,000957
Triciclazol 0,0003 0,00001 0,000019 1,866667
Tebuconazol 0,0590 0,03000 0,003279 0,109304
Azoxistrobina 0,0095 0,20000 0,000529 0,002644
Piraclostrobina 0,0101 0,03000 0,000560 0,018667
Difenoconazol 0,0105 0,01000 0,000583 0,058333
Fonte: Elaboração própria.
IDA – Ingestão Diária Aceitável; p.c. – peso corporal.
aIDA segundo a Anvisa. b Exposição estimada = (resíduos consumidos)/(peso da criança). c Quociente de risco = níveis de exposição/
IDA. d Índice de risco = soma dos quocientes de risco individuais.

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Exposição infantil aos agrotóxicos: avaliação de alimentos representativos da dieta de crianças do município do Rio de Janeiro 205

O índice de risco calculado foi 2,43 para (Pronaf ), no final da década de 1990, e o lan-
crianças de 18 kg (peso médio aproximado çamento da Política Nacional de Agroecologia
de crianças de 5 anos), que representa mais e Produção Orgânica (PNAPO), em vigor desde
que o dobro do índice considerado seguro. 2012, são exemplos das políticas públicas bra-
Para crianças com menor peso corporal, caso o sileiras de maior relevância e impacto para a
consumo dos alimentos seja o mesmo, o índice agricultura familiar45,46.
aumenta. Essa possibilidade é reforçada pela No entanto, tais políticas perderam impor-
pirâmide dos alimentos para crianças, que tância no cenário político atual, e ainda há
recomenda, para a faixa etária de 6 a 11 meses, dificuldades e obstáculos que impedem o pleno
o consumo de três porções de cereais e três desenvolvimento da produção agroecológica
porções de frutas por dia31. pelos produtores de base familiar. Pode-se
A maior contribuição para esse índice destacar a falta de assistência técnica, de co-
refere-se ao triciclazol. Embora esse agrotó- nhecimento sobre os sistemas de certificação,
xico tenha apresentado a menor concentração de disponibilização de crédito diferenciado,
quando comparado aos outros sete mais en- além da falta de acesso a tecnologias, infra-
contrados nas amostras, como essa substância estrutura e logística adequadas ao sistema de
não tem IDA estabelecida pela Anvisa, assume- produção orgânico. É necessário incentivar e
-se um valor de orientação conservador, de dar visibilidade às experiências orgânicas já
10 ng por kg de peso corporal por dia. Com existentes, estimular políticas públicas for-
isso, seu quociente de risco calculado foi 1,87, talecedoras da agricultura orgânica nacional,
ultrapassando sozinho o índice considerado ampliar o diálogo com a sociedade e evidenciar
seguro (até 1,00). os benefícios e vantagens desse modelo de
Esse resultado mostra que a estimativa produção10.
de avaliação da exposição pode indicar um Assim, considerando a saúde infantil como
potencial risco à saúde infantil associado à uma das prioridades da saúde pública, é fun-
ingestão de resíduos dos agrotóxicos identifi- damental desenvolver políticas de incentivo à
cados. Ademais, quanto menor o peso corporal, ampliação da aquisição de alimentos orgânicos
considerando a mesma alimentação, maior pelo PNAE, a exemplo das medidas adotadas
o índice de risco no consumo dos mesmos pelo Paraná na Lei nº 16.751, de 29 de dezem-
alimentos. Assim, como já identificado por bro de 2010, regulamentada pelo Decreto nº
outros autores, ressalta-se a importância de 4.211/202047,48, e combater o uso indiscrimina-
estudos toxicológicos que avaliem os impactos do de agrotóxicos, visando ao fortalecimento
das combinações de múltiplos resíduos sobre da produção agroecológica e à construção de
a saúde, com enfoque nas crianças, mais sus- modelos de atuação diante das nocividades do
cetíveis aos efeitos tóxicos4. modelo de produção do agronegócio.
Se, por um lado, a situação do Brasil em
relação aos agrotóxicos é preocupante, por
outro, há grandes possibilidades com a agroe- Conclusões
cologia. O contexto da agricultura familiar se
apresenta como o espaço ideal para o desenvol- Embora não tenha sido possível avaliar amostras
vimento da agricultura orgânica, fortalecendo provenientes do PNAE, os alimentos analisados
suas bases sociais, econômicas, ambientais e quanto à presença de resíduos de agrotóxicos
culturais44, com possibilidades de se tornar contribuíram para a caracterização dessas
um setor fundamental para a produção desse matrizes do comércio local, com informações
tipo de alimentos no País10. relevantes sobre a qualidade e a segurança de
A criação do Programa Nacional de alimentos representativos da dieta de crianças
Fortalecimento da Agricultura Familiar do município do Rio de Janeiro.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 190-209, JUN 2022


206 Oliveira AC, Bastos LHP, Cardoso MHWM, Nóbrega AW

Na maior parte das amostras analisadas A alimentação precisa garantir, além da nu-
foram identificados múltiplos resíduos de trição, a inocuidade dos alimentos oferecidos
agrotóxicos, com destaque para as matrizes às crianças. Por isso, é necessário verificar os
mamão e laranja, que apresentaram resíduos impactos toxicológicos do uso de agrotóxicos
em todas as amostras, e para as matrizes maçã, sobre a saúde infantil, ampliar a aquisição de
cereais infantis, arroz e feijão que também evi- alimentos orgânicos pelo PNAE e fortalecer a
denciaram alto índice de detecção dos resíduos agroecologia com incentivos e políticas pública,
avaliados. Não é possível afirmar a ausência buscando proteção e promoção da saúde coletiva.
de resíduos de agrotóxicos nas amostras que
não apresentaram as substâncias pesquisadas,
uma vez que um único método analítico não Colaboradores
contempla todos os agrotóxicos que podem
estar presentes nos alimentos. Oliveira AC (0000-0003-3083-4682)* con-
O elevado índice de amostras com múlti- tribuiu para a análise e a interpretação dos
plos resíduos de agrotóxicos indica possível dados, a elaboração do rascunho e a aprovação
uso inadequado e/ou indiscriminado desses da versão final do manuscrito. Bastos LHP
produtos. A partir da estimativa da exposição (0000-0001-6965-6903)*, Cardoso MHWM
e do cálculo do índice de risco, foi verificado (0000-0002-8963-8777)* e Nóbrega AW
potencial risco à saúde infantil, principalmente (0000-0002-8369-9528)* contribuíram para
para crianças abaixo de 5 anos (até 18 kg), a concepção, o planejamento, a revisão crítica
conforme as concentrações de agrotóxicos do conteúdo e a aprovação da versão final do
encontrados em três amostras analisadas. manuscrito. s

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Exposição infantil aos agrotóxicos: avaliação de alimentos representativos da dieta de crianças do município do Rio de Janeiro 209

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Recebido em 30/09/2020
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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 190-209, JUN 2022


210 ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE

A comercialização de agrotóxicos e o modelo


químico-dependente da agricultura do Brasil
The commercialization of pesticides and the chemical-dependent
model of agriculture in Brazil

Suellen Dayse de Moura Ribeiro1, Marília Teixeira de Siqueira2, Idê Gomes Dantas Gurgel1,
George Tadeu Nunes Diniz1

DOI: 10.1590/0103-11042022E214

RESUMO Com o objetivo de analisar a comercialização de agrotóxicos no Brasil, suas regiões e estados,
desenvolveu-se um estudo ecológico de série temporal no período de 2000 a 2014. Foram utilizados os
dados sobre vendas de agrotóxicos do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis e do Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Vegetal. A comercialização de
agrotóxicos foi calculada como o quociente da quantidade de ingredientes ativos, em quilogramas, e a área
plantada das principais lavouras, em hectares, anualmente, nos estados e regiões. Os programas Excel® e R
foram utilizados para processamento e análise dos dados. Para análise de tendência, utilizou-se a regressão
linear com nível de significância de 5%. Observou-se tendência à elevação da comercialização em todas
as regiões do País no período (p<0,001), com o maior registro no Sudeste (4,88 kg/ha/ano); e o maior
incremento nas regiões Norte e Nordeste. As maiores médias de vendas, em kg/ha/ano, ocorreram em
São Paulo (8,43), Goiás (5,34) e Mato Grosso (4,92). O maior incremento de vendas por estado no período
ocorreu no Acre (99,52%), Piauí (94,19%) e Distrito Federal (91,55%). Tornam-se imperativas medidas
de regulação, fiscalização e normatização contra o agravamento da situação de saúde da população e
contaminação do ambiente.

PALAVRAS-CHAVE Agrotóxicos. Agricultura. Série temporal.

ABSTRACT Aiming to analyzing the commercialization of pesticides in Brazil, its regions and states, an
ecological time series study was developed from 2000 to 2014, based on data on sales of pesticides from the
Brazilian Institute of the Environment and Renewable Natural Resources and the National Union of Plant
Protection Products Industry. The commercialization was calculated as the quotient of the quantity of active
ingredients, in kilograms, and the planted area of the main crops, in hectares, annually in the states and
regions. The Excel® and R programs were used for data analysis. For trend analysis, linear regression was
used with a 5% significance level. There was a trend towards an increase in sales in all regions of the country
in the period (p<0.001), with the highest record in the Southeast (4.88 kg/ha/year), and the largest increase
in the North and Northeast regions. The highest average sales, in kg/ha/year, occurred in São Paulo (8.43),
1 Fundação Oswaldo Goiás (5.34), and Mato Grosso (4.92). The biggest increase in sales by state occurred in Acre (99.52%), Piauí
Cruz (Fiocruz), Instituto (94.19%), and Distrito Federal (91.55%). Regulatory, inspection, and standardization measures against the
Aggeu Magalhães (IAM) –
Pernambuco (PE), Brasil. worsening of the population’s health situation and contamination of the environment are imperative.
suellenribeiro.sr@gmail.com

2 Universidade
KEYWORDS Pesticides. Agriculture. Time series.
de
Pernambuco (UPE),
Faculdade de Ciências
Médicas – Pernambuco
(PE), Brasil.

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 210-223, Jun 2022 meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado.
A comercialização de agrotóxicos e o modelo químico-dependente da agricultura do Brasil 211

Introdução Em 2017, cerca de 30% dos ingredientes


ativos registrados no Brasil já haviam sido
O Brasil passou a ocupar a posição de maior proibidos na União Europeia9. Nesse mesmo
consumidor de agrotóxicos no mundo a partir ano, havia 517 ingredientes autorizados para
de 20081. As vendas de agrotóxicos e afins uso e 97 banidos no País10. As formulações co-
apresentaram um crescimento de 194% no mercializadas em território brasileiro contam
período 2000 a 20122. Eles têm sido ampla- com mais de um ingrediente ativo; e para uma
mente utilizados na agricultura, com finali- mesma cultura agrícola, geralmente, é pres-
dades inseticida, herbicida, fungicida, entre crito mais de um produto11.
outras. No entanto, o uso tem se estendido O contexto atual ainda está agravado pela
para as áreas urbanas no controle de zoono- flexibilização da legislação para registro, re-
ses e vetores, seja no ambiente doméstico ou avaliação toxicológica e uso de agrotóxicos
logradouros públicos3. – Projeto de Lei nº 6.299/2002, conhecido
Entre os vários impactos negativos decor- como ‘PL do veneno’. Um dos objetivos é a
rentes do uso de agrotóxicos, a contaminação substituição do termo agrotóxico por ‘de-
ambiental e as intoxicações agudas e crônicas fensivo fitossanitário e produtos de controle
relacionadas com os agrotóxicos são as de ambiental’, buscando, assim, revogar a Lei nº
maior relevância para a saúde do trabalhador 7.802/89 e eliminar os perigos implícitos ao
e da população. São poluições intencionais, seu uso. Além disso, pretende criar o registro
sejam do tipo ambiental, ocupacional e/ou temporário de uso dos agrotóxicos e retira
alimentar, pela utilização de produtos sabida- da Agência Nacional de Vigilância Sanitária
mente tóxicos. De acordo com estudos, apenas (Anvisa)/Ministério da Saúde e do Instituto
30% desses produtos atingem o alvo ao serem Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
aplicados nas lavouras, o restante se perde no Naturais Renováveis (Ibama)/Ministério do
solo, nas águas, no ar e nas plantas4. Meio Ambiente as competências de registro
A associação entre o uso de agrotóxicos e as e reavaliação, ficando a cargo da Comissão
consequências adversas para a saúde humana Técnica Nacional de Fitossanitários (CTNFito)
está estabelecida, sendo os efeitos agudos os do Ministério da Agricultura12.
mais facilmente diagnosticados, cuja relação Nesse cenário, a saúde coletiva pode con-
causal pode ser facilmente identificada. No tribuir com estudos que analisem a comercia-
entanto, para os danos crônicos, tal relação lização de agrotóxicos no Brasil, suas regiões
pode passar despercebida, visto que pode e estados para orientar as políticas públicas
ocorrer anos depois da exposição5. atuais na defesa da saúde e ambiente.
Em decorrência de sua toxicidade às
pessoas e ao ambiente, os agrotóxicos pro-
duzem efeitos deletérios que variam de Material e métodos
acordo com o ingrediente ativo, a forma de
exposição e as características individuais da Trata-se de estudo ecológico de série temporal,
pessoa exposta. As consequências descritas na cujas unidades de análise foram os estados e as
literatura compreendem: alergias; distúrbios regiões do Brasil, no período 2000 a 2014. As
gastrintestinais, respiratórios, endócrinos, re- fontes de informação utilizadas foram o histórico
produtivos e neurológicos; neoplasias; mortes de venda de agrotóxicos do Ibama12 e os dados do
acidentais e suicídios. Além disso, os grupos Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para
mais suscetíveis a esses efeitos são trabalha- Defesa Vegetal (Sindiveg)13, ambos de domínio
dores, crianças, gestantes, lactentes, idosos público. Devido à impossibilidade de obtenção
e pessoas com problemas de saúde expostos dos dados do Ibama em 2007 e 2008, foram uti-
direta ou indiretamente4,6-8. lizados os dados do Sindiveg nesses anos.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 210-223, Jun 2022


212 Ribeiro SDM, Siqueira MT, Gurgel IGD, Diniz GTN

A comercialização de agrotóxicos foi obtida avaliadas utilizando Anova seguido do post hoc;
por meio dos registros de vendas de ingredientes o teste de Tukey, quando observado o pres-
ativos por estado e região do País, informados suposto de homogeneidade. Caso contrário,
pelas próprias unidades federativas e compi- utilizou-se o teste Kruskal-Wallis seguido do
lados pelos órgãos citados, ou seja, referem-se post hoc de Fisher. Dessa forma, para as regiões
às vendas no atacado e no varejo, não sendo Norte, Nordeste e Sudeste, foram utilizadas as
possível identificar, ainda, a produção indus- medianas, e para as regiões Centro-Oeste e Sul,
trial. A quantidade comercializada diz respeito as médias como medidas de tendência central.
à quantidade total de quilos de ingredientes Foi adotado o nível de significância de 5%.
ativos, de todas as classes de uso e de periculo- Para análise de tendência da comercialização
sidade, comercializadas em uma área circuns- de agrotóxicos, utilizou-se a regressão linear.
crita e em um determinado período. Buscando Este estudo utilizou dados agregados dispo-
uma aproximação do consumo de agrotóxicos, níveis em bancos de domínio público, dispen-
calculou-se o quociente entre a quantidade de sando a sua submissão ao Comitê de Ética em
ingredientes ativos de todos os grupos quími- Pesquisa (CEP) do Instituto Aggeu Magalhães
cos comercializados (em quilogramas) e a área (IAM) – Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz),
plantada das principais lavouras temporária e conforme as Resoluções nº 466/2012 e nº
permanente (em hectares) por ano (kg/ha/ano) 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde.
dos 26 estados e o Distrito Federal, distribuí-
dos nas regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste,
Sudeste e Sul. Esse último indicador também é Resultados
utilizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE). A quantidade média de agrotóxicos comercia-
Os dados foram processados no Programa lizados no País entre 2000 e 2014 foi de 2,92
Excel® (versão 2010) e analisados no programa kg/ha/ano, sendo a maior registrada em 2014
R versão 3.5.0 (2018). Os dados foram avalia- (4,80 kg/ha/ano), com aumento de 2,26 vezes
dos quanto ao tipo de abordagem paramétrica nesse intervalo. Observaram-se diferenças sig-
ou não paramétrica, utilizando os testes de nificantes entre as médias no período (tabela
Bartlett, para verificar a suposição de homo- 1). Em termos absolutos, a comercialização
geneidade, e o de Shapiro-Wilk para examinar variou de 0,02 (2001) a 11,53 kg/ha/ano (2009).
anormalidades. As diferenças de médias foram

Tabela 1. Vendas de ingredientes ativos no Brasil, 2000 a 2014

Ano 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014
Min. 0,09 0,02 0,06 0,14 0,25 0,15 0,06 0,11 0,14 0,15 0,23 0,25 0,30 0,32 0,36
Máx. 7,28 7,88 7,61 6,96 8,10 8,26 8,25 9,49 7,38 11,53 10,15 10,03 10,37 9,10 9,68
Média 2,12 1,76 1,73 1,95 2,11 2,06 2,25 3,13 3,20 2,70 3,28 3,71 4,47 4,54 4,80

Fonte: Elaboração própria a partir de dados do Ibama (2000-2006; 2009-2014)13; Sindiveg (2007-2008)14.

Foi observada tendência à elevação da co- agrupados no País (p<0,0001) e por cada região
mercialização quando analisados os dados (figura 1).

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A comercialização de agrotóxicos e o modelo químico-dependente da agricultura do Brasil 213

Figura 1. Taxas médias de comercialização de agrotóxicos no Brasil e regiões, 2000 a 2014

Brasil Norte

Taxas médias de comecialização de


7,0 7,0
Taxas médias de comecialização de

6,0 6,0
agrotóxicos (Kg/ha)

5,0 5,0

agrotóxicos
(Kg/ha)
4,0 4,0

3,0 3,0

2,0 2,0

1,0 1,0

0,0 0,0

Ano Ano

Nordeste Centro-Oeste

Taxas médias de comecialização de


Taxas médias de comecialização de

7,0 7,0

6,0 6,0

5,0 agrotóxicos 5,0


agrotóxicos

(Kg/ha)
(Kg/ha)

4,0 4,0

3,0 3,0

2,0 2,0

1,0 1,0

0,0 0,0

Ano Ano

Sudeste Sul

7,0 7,0
Taxas médias de comecialização de

Taxa Médias de comecialização de

6,0 6,0
agrotóxicos (Kg/ha)

5,0 5,0
agrotóxicos
(Kg/ha)

4,0 4,0

3,0 3,0

2,0 2,0

1,0 1,0

0,0 0,0

Ano Ano

Fonte: Elaboração própria a partir de dados do Ibama (2000-2006; 2009-2014)13; Sindiveg (2007-2008)14.

A região Sudeste apresentou a maior Na região Norte, a menor (0,72) e a maior


média de vendas de agrotóxicos, 4,88 kg/ média de comercialização (5,22), em kg/ha,
ha/ano, seguida pelas regiões Centro- ocorreram, respectivamente, em 2001 e 2014. O
Oeste (4,74) e Sul (4,01), Norte (2,04) e estado do Acre apresentou, em 2001, o menor
Nordeste (1,56). Contudo, a região Norte registro (kg/ha/ano) na região (0,02); enquanto
obteve o maior incremento na comercia- em Roraima, foi notado o maior (9,68) em 2014.
lização do período (99,78%), seguida pelas A menor média do período se deu no Amazonas
regiões Nordeste (97,50%), Centro-Oeste (0,24); a maior, em Roraima (3,35), em kg/ha/ano.
(93,24%), Sudeste (86,81%) e Sul (70,29%). Contudo, a maior intensificação de vendas no
Detectaram-se diferenças estatisticamente período foi observada no Acre (99,52%) (tabela
significantes entre as vendas nas regiões 2). Foram percebidas diferenças estatísticas sig-
(p<0,0001), com exceção entre a Sudeste nificantes entre as vendas dos estados no período
e as regiões Centro-Oeste e Sul (figura 1). (p<0,0001).

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214 Ribeiro SDM, Siqueira MT, Gurgel IGD, Diniz GTN

Tabela 2. Comercialização de agrotóxicos (ingredientes ativos/área plantada – kg/hectares) por regiões e estados. Brasil, 2000 a 2014

Regiões/estados 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 Média
Norte 1,19 0,72 0,96 1,18 1,13 0,98 1,32 1,68 2,12 1,66 2,25 2,89 3,46 3,87 5,22 2,04
Acre 0,35 0,02 0,35 0,37 0,25 0,30 0,75 0,32 1,79 1,06 1,84 2,52 2,55 2,65 4,41 1,30
Amapá 1,30 0,45 1,40 1,97 1,85 0,28 2,87 0,11 0,14 2,69 3,29 3,66 4,70 1,93 3,85 2,03
Amazonas 0,09 0,11 0,06 0,14 0,25 0,15 0,06 0,22 0,31 0,24 0,23 0,25 0,40 0,71 0,37 0,24
Pará 0,36 0,43 1,05 0,60 0,54 0,58 0,70 0,68 1,53 0,97 1,79 2,73 3,24 3,60 4,25 1,54
Rondônia 2,19 0,75 0,82 1,40 1,37 1,61 1,94 3,18 4,62 2,62 3,64 3,24 5,26 6,53 8,15 3,15
Roraima 2,19 2,57 2,24 2,83 2,98 2,53 1,66 3,40 2,59 1,86 2,19 4,22 3,34 5,99 9,68 3,35
Tocantins 1,87 0,68 0,79 0,98 0,67 1,38 1,27 3,86 3,83 2,17 2,78 3,59 4,76 5,68 5,85 2,68
Nordeste 0,76 0,73 0,72 0,88 1,07 0,99 1,02 1,96 2,02 1,08 1,81 2,20 2,64 2,77 2,80 1,56
Alagoas 1,65 1,84 1,64 1,70 1,68 1,63 1,27 2,62 2,86 1,14 2,65 3,01 3,27 2,83 3,24 2,20
Bahia 0,93 0,96 1,03 1,29 1,71 2,06 1,90 2,49 2,83 2,64 3,77 4,37 5,41 5,85 5,78 2,87
Ceará 0,15 0,13 0,18 0,17 0,28 0,26 0,32 0,91 0,89 0,15 0,30 0,30 0,30 0,32 0,36 0,31
Maranhão 0,75 0,69 0,74 1,28 2,00 1,35 1,58 2,64 2,76 2,09 2,76 3,74 4,57 4,35 4,86 2,41
Paraíba 0,47 0,32 0,33 0,33 0,51 0,52 0,71 0,64 0,65 0,35 0,55 0,72 1,51 2,29 1,77 0,78
Pernambuco 1,80 1,43 1,34 1,46 1,71 1,53 1,51 4,57 3,99 1,37 2,39 2,45 2,62 4,05 2,98 2,35
Piauí 0,21 0,21 0,30 0,62 0,57 0,55 0,80 1,34 1,41 1,19 2,13 2,74 3,41 3,22 3,58 1,49
Rio Grande do Norte 0,58 0,44 0,50 0,50 0,56 0,61 0,52 1,94 1,99 0,46 0,83 0,90 1,17 0,85 1,13 0,87
Sergipe 0,30 0,56 0,46 0,52 0,59 0,42 0,54 0,51 0,86 0,59 0,89 1,57 1,53 1,17 1,47 0,80
Centro-Oeste 4,11 3,02 3,17 3,85 3,87 3,60 4,10 5,24 5,59 4,12 5,26 5,62 6,57 6,75 6,21 4,74
Distrito Federal 4,24 0,56 3,78 4,81 3,45 3,98 4,40 3,42 3,62 4,31 4,90 5,19 6,63 6,14 4,42 4,26
Goiás 4,33 4,19 3,12 3,89 4,15 3,42 4,06 6,38 6,35 4,35 6,11 6,19 7,87 8,29 7,31 5,34
Mato Grosso 3,73 3,30 2,73 3,35 4,01 3,55 4,37 5,99 6,63 4,60 5,66 6,08 6,28 6,85 6,71 4,92
Mato Grosso do Sul 4,15 4,01 3,06 3,34 3,85 3,45 3,56 5,18 5,76 3,23 4,37 5,04 5,50 5,73 6,42 4,44
Sudeste 4,06 3,76 3,32 3,18 3,77 4,10 4,38 5,03 4,35 6,07 5,57 5,88 7,16 6,40 6,11 4,88
Espírito Santo 2,45 1,71 1,73 1,52 2,05 2,79 2,14 2,53 2,58 2,34 3,09 4,09 6,02 5,35 5,35 3,05
Minas Gerais 3,53 2,84 2,20 2,69 3,00 3,26 3,13 4,09 4,46 3,55 5,00 5,08 6,78 6,51 6,12 4,15
Rio de Janeiro 2,99 2,61 1,74 1,53 1,95 2,08 4,00 4,01 2,97 11,53 4,03 4,33 5,49 4,64 4,18 3,87
São Paulo 7,28 7,88 7,61 6,96 8,10 8,26 8,25 9,49 7,38 6,84 10,15 10,03 10,37 9,10 8,77 8,43
Sul 3,08 2,99 2,52 2,76 2,97 3,00 2,78 4,68 4,52 3,60 4,44 4,67 5,93 6,01 6,17 4,01
Paraná 3,42 3,40 2,87 2,75 3,04 2,72 2,00 5,67 5,14 3,11 3,85 4,34 5,49 5,49 5,40 3,91
Rio Grande do Sul 2,65 2,57 2,14 2,82 3,43 2,81 2,85 4,28 3,86 4,17 4,40 4,29 5,65 5,79 6,45 3,88
Santa Catarina 3,16 2,99 2,55 2,72 2,45 3,48 3,48 4,08 4,56 3,52 5,06 5,39 6,64 6,74 6,65 4,23
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do Ibama (2000-2006; 2009-2014)13; Sindiveg (2007-2008)14.

A região Nordeste apresentou a menor (0,72) observaram a menor e a maior média do período,
e a maior média de comercialização (2,80), 0,31 e 2,87, em kg/ha/ano. Piauí foi o estado
em kg/ha, respectivamente, em 2002 e 2014. que apresentou o maior incremento (94,19%)
Quanto aos registros de vendas, o menor ocorreu de vendas (tabela 2). Diferenças significantes
em 2001 (0,13), no Ceará; e o maior, em 2013 entre as vendas dos estados no período foram
(5,85), na Bahia, em kg/ha/ano, onde também se observadas (p<0,0001).

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A comercialização de agrotóxicos e o modelo químico-dependente da agricultura do Brasil 215

Na região Centro-Oeste, as menores Discussão


vendas do período ocorreram em 2001 no
Distrito Federal (0,56), assim como a menor O crescimento na comercialização de agro-
média (3,02); e as maiores, em 2013, em tóxicos entre 2000 e 2014, identificado neste
Goiás (8,29), bem como a maior média (6,75), estudo, no País foi de 213%. Tendência à
kg/ha/ano, quando considerada a compara- elevação das vendas também foi observada
ção ano a ano. A maior média decorreu em nas regiões, com médias acima da nacional: a
Goiás (5,34); e a menor, no Distrito Federal Sudeste, a Centro-Oeste e a Sul. Outro aspecto
(4,26 kg/ha/ano), embora este último tenha importante quanto à comercialização trata-se
apresentado maior acréscimo no período do incremento em regiões com menor produ-
(91,55%) (tabela 2). Quando analisados os tividade agrícola para exportação, a exemplo
dados dos estados do Centro-Oeste, não do Norte e do Nordeste, como também pela
foram demonstradas diferenças entre as abertura de novas fronteiras agrícolas nestas
médias de vendas (p=0,161). regiões, a exemplo de Matopiba, uma área
Na região Sudeste, a comercialização que compreende os estados do Maranhão,
variou de 1,52 (2003), no Espírito Santo, Tocantins, Piauí e Bahia.
a 11,53 (2009), no Rio de Janeiro, em kg/ Matopiba respondeu por, aproximadamen-
ha/ano. O estado de São Paulo registrou a te, 11% da produção nacional de soja na safra
menor variação no período – 6,84 a 10,37 2017/2018. Além disso, vem recebendo des-
kg/ha/ano – com a maior média (8,43) na taque na produção de milho, algodão e arroz,
região, seguido por Minas Gerais (4,15), Rio sobretudo para exportação, ocupando essas
de Janeiro (3,87) e Espírito Santo (3,05), em quatro culturas 90% da área desse território
kg/ha/ano, embora o Rio de Janeiro tenha no período 2001-201315.
apresentado o maior aumento (86,72%) de A região Norte foi a que apresentou maior
vendas no período (tabela 2). Observaram- incremento na comercialização de agrotóxicos,
se diferenças estatisticamente significantes assim como demonstrado em outro estudo,
entre os valores de comercialização de São cuja elevação nas vendas no mesmo período
Paulo e os demais da região no período. Não foi de quase 700%14. Em uma pesquisa sobre
houve diferenças significantes, do ponto de trabalho análogo à escravidão no País, esse
vista estatístico, entre as médias das vendas, mesmo grupo de autores identificou que havia
por cada ano, na região (p=0,642). grande concentração dessa situação em fa-
Na região Sul, o menor registro de vendas zendas dessa mesma região. Essa facilidade
se deu em 2006 (2,00), no Paraná; e o maior, de obtenção de mão de obra barata aliada ao
em 2013 (6,74), em Santa Catarina, kg/ha/ desmatamento para expansão de áreas agrí-
ano. A média oscilou entre 2,52, em 2002, e colas ao longo dos anos e às falhas quanto às
6,17, em 2014, com média de 4,01 kg/ha/ano. atualizações nos registros de comercialização
Diferenças significativas ocorreram entre as dos venenos, além da falta de fiscalização sobre
médias da região no período (p<0,0001). A estes, podem ser fatores que contribuem para a
menor média sobreveio no Rio Grande do elevação dos registros de vendas nessa região.
Sul (3,88), bastante próxima à do Paraná Os agrotóxicos estão entre as principais
(3,91); e a maior, em Santa Catarina (4,23 tecnologias do atual modelo de agricultura
kg/ha/ano). Observou-se aumento seme- brasileira, que é químico-dependente. Há uma
lhante de vendas nos estados da região, concepção hegemônica entre os produtores/
discretamente maior no Rio Grande do Sul empresários do agronegócio de que os agrotó-
(66,80%) (tabela 2). Não foram identificadas xicos são indispensáveis ao controle de ‘pragas’
diferenças entre os valores comercializados para o consequente aumento da produtividade,
dos estados (p=0,738). o que fez elevar a comercialização de forma

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216 Ribeiro SDM, Siqueira MT, Gurgel IGD, Diniz GTN

exponencial nas últimas décadas, atingindo que o próprio país exporta. Assim, são ex-
até mesmo os pequenos produtores agrícolas15. pandidas áreas com cultivo de commodities e
Segundo o Ministério do Meio Ambiente, tais reduzidas áreas com cultivos voltados para a
produtos são “extremamente relevantes no alimentação das pessoas25.
modelo de desenvolvimento da agricultura O agronegócio, orientado pela obtenção de
no país”18. maior lucro em um curto prazo, perpetua-se
Esta compreensão é corroborada pelas di- por intermédio de economias de escala que
versas estratégias de vendas da indústria dos induzem a ocupação dos territórios rurais com
venenos para disseminação e intensificação extensas monoculturas e criatórios industria-
do uso. Um agravante disso são os incentivos lizados. A tão propagada necessidade do uso
fiscais concedidos pelas diferentes esferas de dos agrotóxicos só pode ser compreendida
governo, além da concessão de crédito agrí- como “o resultado da combinação deletéria
cola atrelada à aquisição destes, que ocorre e mutuamente recíproca entre a voracidade
desde a criação do Sistema Nacional de Crédito econômica e a vulnerabilidade ecológica do
Rural, em 196519. Exemplificando tal fato, a agronegócio”26. Assim, o crescimento vertigi-
última prorrogação do Convênio Imposto de noso das monoculturas sobre os biomas bra-
Circulação de Mercadorias e Serviços 100 sileiros em resposta ao aumento da demanda
(ICMS/100), de 1997, foi realizada em abril de externa por commodities agrícolas fez com
2020, por meio do Convênio 22/20, e estendeu, que o Brasil passasse a consumir um volume
até 31 de dezembro desse ano, a redução de demasiado de agrotóxicos26.
60% da base de cálculo desse imposto sobre O intenso uso de agrotóxicos e a produção
alguns produtos, inclusive agrotóxicos20,21. de commodities estão totalmente relacionados.
Além dessas estratégias, há redução das Em 2013, as culturas de soja, cana-de-açúcar,
alíquotas das Contribuições para o Programa milho e algodão, quatro commodities de grande
de Integração Social/Programa de Formação interesse do agronegócio, totalizaram 80%
do Patrimônio do Servidor (PIS/Pasep) e do montante de vendas nacionais desses
para o Financiamento da Seguridade Social tóxicos, cabendo à soja metade desse consumo.
(Cofins)22. De 2011 a 2016, as isenções somaram No entanto, a relação entre o consumo de
R$ 8,65 bilhões, considerando apenas esses venenos e o aumento da produtividade não
dois últimos impostos. Há, ainda, a isenção foi demonstrada9.
da cobrança do Imposto sobre Produtos Em 2015, apenas três culturas – a soja, o
Industrializados (IPI) para agrotóxicos23. milho e a cana – representaram 72% de toda
Ao contrário da extrafiscalidade aplica- a comercialização nacional de agrotóxicos. A
da aos cigarros, que busca desestimular o soja, sozinha, foi responsável por 52% desta,
consumo por meio do aumento da tributação ficando o milho e a cana com 10% cada uma.
sobre eles, o que ocorre com os agrotóxicos é Elas estão entre as 12 culturas com maior ex-
a concessão de benefícios tributários ao uso, portação no País9.
comercialização, produção e importação. Isto é A produção da soja aumentou 84% entre os
denominado por Melo e Marques24 de “extra- anos 2002 e 2015, percentual bastante próximo
fiscalidade às avessas”, visto que contradizem à expansão da área plantada no período, o que
os princípios constitucionais, a ordem pública demonstra que o aumento está relacionado
ambiental e o Estado de Direito Ambiental. com a expansão territorial, e não com ganhos
O Brasil é um dos maiores produtores de de produtividade9.
alimentos do mundo, mas segue uma lógica Segundo a Lei dos Agrotóxicos (nº 7.802/89,
de produção que busca atender à economia regulamentada pelo Decreto nº 4.074/02),
internacional, voltada para a exportação de as empresas importadoras, exportadoras,
monoculturas, e acaba importando produtos produtoras e formuladoras de agrotóxicos

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A comercialização de agrotóxicos e o modelo químico-dependente da agricultura do Brasil 217

devem fornecer aos órgãos federais e esta- envolvidos na falta de clareza acerca dos dados
duais, semestralmente, relatórios referentes que permeiam a comercialização e a utiliza-
à comercialização destes27. Apesar disso, até ção de agrotóxicos, visto que não existe um
o momento, não existe um sistema oficial de banco de dados com as informações no que
informações, de abrangência nacional, sobre se refere à quantidade real comercializada, o
quais são os agrotóxicos, a quantidade, os tipos cálculo realizado neste estudo para obter os
e onde são comercializados no País11. valores foi o mesmo utilizado pelo IBGE na
Obter dados sobre vendas e consumo de construção do indicador ‘uso de agrotóxicos’
agrotóxicos no Brasil é um desafio, mesmo no País. As limitações consistem em admitir
diante da lei de transparência administrati- que todos os venenos comercializados serão
va. Devido à isenção de impostos da qual os utilizados, inclusive no mesmo ano em que
venenos gozam em diversos estados, é impossí- foram comprados e pelo mesmo estado que os
vel estimar o volume de vendas a partir dos tri- adquiriu, quando o consumo pode se dar em
butos. Os Conselhos Regionais de Engenharia um outro ano e em outro estado. Além disso,
e Agronomia (Crea), que têm a atribuição de não são conhecidas as produções industriais
controlar a emissão de receitas agronômicas, de agrotóxicos de cada unidade federativa,
também não possuem sistema informatizado visto que estas não são divulgadas, o que gera
que possa consolidar os dados, com exceção um sub-registro na quantidade real utilizada.
de poucos estados. Resta à sociedade confiar Outra questão é que a área plantada con-
nas informações que as empresas são obrigadas sidera apenas os principais cultivos da pes-
a enviar para os órgãos citados anteriormen- quisa Produção Agrícola Municipal, que são
te. Ainda assim, apenas o Ibama consolida e os de maior interesse econômico, mas não se
divulga os dados que recebe da indústria28. consegue obter a quantidade empregada de
Assim, a única fonte de informação sobre o agrotóxicos em cada cultura. Entretanto, con-
mercado de agrotóxicos “são os próprios donos sistem em uma ‘boa aproximação do consumo
deste”29, representados na figura do Sindiveg, de agrotóxicos’ no País e, consequentemente,
anteriormente denominado Sindag. Até o ano refletem a exposição a que está submetida toda
de 2011, os dados divulgados pelo Sindag con- a população brasileira.
tinham detalhes sobre a venda de agrotóxicos Devido a essas limitações e à falta de clareza,
por cultura, estado e classe, em relação ao o Ministério Público Federal solicitou ao
ingrediente ativo, produto formulado e valor, Ministério da Agricultura, no primeiro tri-
em dólares. No período 2012 a 2014, os dados mestre de 2018, as informações referentes
exibem apenas o faturamento e a quantidade às vendas realizadas nos últimos dez anos,
comercializada para cada cultura29. por tipo de cultura e, ainda, que possam ser
Corroborando tal fato, o Relatório Nacional consultadas pela população e interessados na
de Vigilância em Saúde de Populações página do órgão na internet. O objetivo é dar
Expostas a Agrotóxicos, do Ministério da transparência aos dados para que a sociedade
Saúde, destacou as divergências verificadas possa fiscalizar como ocorrem as vendas, as
entre dados divulgados pelo Ministério da quantidades e de que forma são utilizados
Agricultura, Pecuária e Abastecimento – Mapa os agrotóxicos, assim como a liberação e a
(banco Agrofit) e o Ibama, advertindo sobre a proibição do seu uso31.
necessidade de aperfeiçoamento dos dados de Mais um exemplo da dificuldade de obten-
comercialização por parte dos entes federados ção de informações quanto ao uso de agro-
com vistas a uma aproximação mais real do tóxicos e suas consequências para a saúde
consumo de agrotóxicos, na perspectiva de re- humana, por parte da sociedade civil, reside
conhecimento das características territoriais30. na lacuna quanto à contaminação dos ali-
Diante de todas as dificuldades e interesses mentos. O Programa de Análise de Resíduos

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218 Ribeiro SDM, Siqueira MT, Gurgel IGD, Diniz GTN

de Agrotóxicos em Alimentos foi criado em pelos órgãos públicos. Ainda são desconhe-
2001 e está a cargo da Anvisa. Desde então, são cidos dados como os volumes de agrotóxicos
analisados anualmente 25 alimentos, e ocorre utilizados em pulverizações e seus impactos
em todo o País desde 2012. O último relatório à saúde, os efeitos do uso de determinado
divulgado, em dezembro de 2019, realizou produto em cada alimento e as quantidades
pesquisa de 270 agrotóxicos em 4.616 amostras aplicadas por cada região do País, sendo funda-
de 14 alimentos entre 2017 e 2018, das quais mental o acesso a estes, além de tantos outros
1.072 (23,0%) amostras foram insatisfatórias, dados que deveriam ser divulgados de forma
ou seja, em pior situação que no período 2013 objetiva e transparente. É importante que se
a 2015 quando 2.371 amostras (19,7%) estavam saiba quanto de agrotóxico chega à mesa da
insatisfatórias, com 3% destas apresentando população brasileira por meio dos alimentos,
resíduos acima do limite máximo permitido e configurando-se como um direito o conhe-
18,3% demonstrando resíduos de agrotóxicos cimento acerca da origem desse alimento e
não autorizados para as culturas32,33. a forma de produção empregada, além dos
Cabe salientar que a Lei de acesso à infor- custos ambientais e sociais desta16.
mação, Lei nº 12.527, de 18 de novembro de Tais informações não estão disponibilizadas
2011, assinala nos arts. 5º e 6º que “é dever para o público, como também não são obtidas
do Estado garantir o direito de acesso à in- por meio de solicitações. Os números gerados
formação, que será franqueada, mediante pelas empresas e publicados por instituições
procedimentos objetivos e ágeis, de forma como o Ibama, a Anvisa e o Mapa não infor-
transparente, clara e em linguagem de fácil mam adequadamente aos agricultores que
compreensão”, cabendo aos órgãos e entidades manuseiam os produtos nem a quem consome
do poder público, assegurar a “gestão trans- os alimentos e a água. Além disso, essa falta
parente da informação, propiciando amplo de transparência restringe o exercício do
acesso a ela e sua divulgação”34. controle social por parte da população, cada
Assim, estariam garantidos os direitos de vez mais apreensiva acerca dos riscos do uso
obtenção de orientação sobre os procedimen- intensivo de agrotóxicos para a saúde e o meio
tos para o acesso, bem como onde encontrar ambiente16.
a informação desejada; de informação em As políticas e os limites estabelecidos pelos
registros ou documentos, produzidos ou acu- países para minimizar os prejuízos causados
mulados pelos órgãos e entidades, recolhidos pelos agrotóxicos mudam significativamente.
ou não a arquivos públicos, e, entre outros A falta de um instrumento internacional de
direitos, o da “informação primária, íntegra, regulação da produção e uso de agrotóxicos
autêntica e atualizada”34. permite que agrotóxicos banidos e altamen-
Entretanto, como já registrado, o acesso à te tóxicos sejam amplamente utilizados em
informação sobre os agrotóxicos é ainda muito países em desenvolvimento sob a justificati-
difícil, sendo desenvolvidas estratégias pela va de serem alternativas mais baratas, o que
própria sociedade civil, que utiliza tal lei como representa uma nítida violação dos direitos
um dos principais aliados para a mudança humanos – a exposição de outras nações a
do quadro atual, a exemplo da Campanha substâncias tóxicas cujos prejuízos já são co-
Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela nhecidos e até fatais35.
Vida. Assim, seguem imprecisas as informa- Considerando os impactos ambientais
ções sobre contaminação de água, alimentos dos agrotóxicos e tais efeitos sobre a saúde
e ambiente, além de outros vários problemas humana, uma alternativa ao modelo de uso
decorrentes do uso dos venenos16. intensivo deles, apontada pelo relatório es-
São fragmentadas as informações gerais pecial do Conselho de Direitos Humanos
produzidas pela agroindústria e publicadas sobre o direito à alimentação e os efeitos dos

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 210-223, Jun 2022


A comercialização de agrotóxicos e o modelo químico-dependente da agricultura do Brasil 219

agrotóxicos, é a agroecologia – um modelo realizados no sentido de destacar o uso inten-


alternativo de agricultura sustentável que sivo e abusivo de agrotóxicos e suas graves
substituiu o químico pelo biológico, orientando implicações para a saúde e o ambiente, a
práticas agrícolas adaptadas ao ambiente local, exemplo do Programa Nacional de Redução
promovendo a fertilidade e a saúde do solo em de Agrotóxicos. Este programa, divulgado em
longo prazo, preservando os ecossistemas. Tem 2015, destacou, dentre as propostas apresen-
sido demonstrado por estudos que a agroeco- tadas, a criação de um sistema integrado de
logia é capaz de alimentar toda a população avaliação, registro, fiscalização e controle de
mundial com nutrição adequada35. agrotóxicos.
A agroecologia se relaciona com a noção
de territorialidade, que considera a atividade
do campo em função do território, das rela- Considerações finais
ções sociais e da forma como são utilizados
os recursos naturais. Visa à superação do co- Tendo em conta todo o exposto acima, além
nhecimento fragmentado, por intermédio de dos interesses envolvidos quanto à falta de
uma abordagem integrada, por meio da prática divulgação e clareza dos dados, fica evidente
social e da experiência de pessoas inseridas que, no Brasil, independentemente de carac-
em um determinado lugar sobre a natureza. terísticas individuais e socioeconômicas, toda
Hoje, as práticas agroecológicas são adotadas a população está exposta a diferentes tipos e
exclusivamente por grupos minoritários cujos gradientes de venenos, inclusive suas misturas,
estilo de vida e cultivo da terra respeitam o por diversas vias, tornando complexas as ava-
ambiente e a interação com a natureza36. liações de risco e de perigo. A exposição não
Em um contexto de reivindicações de direi- se dá de forma igualitária, dadas a dimensão
tos pela sociedade civil e demais movimentos territorial do País e as diferenças regionais,
organizados, assim como da disponibilidade culturais e socioeconômicas. Algumas popu-
de modelos alternativos ao uso intensivo dos lações estão mais expostas aos agrotóxicos,
venenos, a exemplo da agroecologia, o Brasil como as que vivem em localidades de maior
vive um retrocesso de direitos à proteção atividade agrícola com utilização dos venenos,
agroambiental. Para além da permissividade a exemplo das regiões Centro-Oeste, Sudeste
estabelecida quanto ao uso desses tóxicos no e Sul, tendo entre elas subgrupos ainda mais
País e da frouxidão obtida nos últimos anos vulnerados, como os trabalhadores agrícolas
que tem conduzido a um número recorde de e suas famílias.
registro de agrotóxicos, a PL do Veneno pre- Dessa forma, torna-se imperativo no Brasil
tende ainda, entre outras medidas, simplificar o envolvimento dos órgãos de regulação, fisca-
tal processo de registro, concentrar a legislação lização e normatização contra o agravamento
acerca de agrotóxicos em favor da União; obter da situação de saúde da população e contami-
uma definição legal de risco aceitável; proibir nação do ambiente.
a comercialização de produtos artesanais para
uso nas lavouras e possibilitar a prescrição de
receituário agronômico preventivo, ocorrendo Colaboradores
antes mesmo das “pragas”36.
Diversos esforços da sociedade civil or- Ribeiro SDM (0000-0002-5526-5626)* parti-
ganizada e de entidades que representam cipou da concepção e do planejamento, coleta,
profissionais da saúde e de áreas como a agro- análise e interpretação dos dados, redação
ecologia, a segurança alimentar e nutricional, do artigo, revisão crítica e aprovação final da
entre outras, como a Campanha Permanente versão a ser submetida à publicação. Siqueira
Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, vêm sendo MT (0000-0002-6159-9729)* participou da

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 210-223, Jun 2022


220 Ribeiro SDM, Siqueira MT, Gurgel IGD, Diniz GTN

concepção e do planejamento, análise e inter- final da versão a ser submetida à publicação.


pretação dos dados, redação do artigo, revisão Diniz GTN (0000-0002-9620-2621)* parti-
crítica e aprovação final da versão a ser sub- cipou da análise e interpretação dos dados,
metida à publicação. Gurgel IGD (0000-0002- revisão crítica e aprovação final da versão a
2958-683X)* participou da concepção e do ser submetida à publicação. s
planejamento, revisão crítica e da aprovação

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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 210-223, Jun 2022


224 ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE

Impactos da pulverização aérea de


agrotóxicos em uma comunidade rural em
contexto de conflito
Impacts of aerial spraying of pesticides in a rural community in a
context of conflict

Lucinéia Miranda de Freitas1, Renato Bonfatti1, Luiz Carlos Fadel de Vasconcellos1

DOI: 10.1590/0103-11042022E215

RESUMO Este trabalho buscou analisar o contexto social, institucional e ambiental da contaminação
humana e ambiental por agrotóxicos, via pulverização aérea, por meio do estudo de caso de uma comunidade
atingida, incluindo a possibilidade de os agrotóxicos serem utilizados como arma química em região onde
há conflitos por terras e territórios. Como metodologia, utilizou-se o estudo de caso sobre a pulverização
ocorrida no Assentamento Raimundo Vieira III, Gleba Gama, Nova Guarita-MT. No caso estudado, há
indícios de intencionalidade no processo de contaminação das famílias, principalmente considerando
que estas já vinham sofrendo outras agressões. O estudo mostrou a ineficiência, intencional ou não, dos
aparelhos públicos tanto na investigação e responsabilização dos envolvidos quanto no atendimento das
pessoas contaminadas. Conclui-se que o método de pulverização aérea é ineficiente com perdas elevadas,
só podendo justificar sua adoção por razões econômicas em detrimento da racionalidade técnica e dos
princípios de prevenção e precaução. O Estado não consegue manter efetivamente a fiscalização do uso
de agrotóxicos, e há uma ampliação dos riscos vinculados aos agrotóxicos com as mudanças legais que
têm sistematicamente ocorrido desde 2015.

PALAVRAS-CHAVE Comunidade rural. Violência. Pulverização. Agroquímicos.

ABSTRACT This work sought to analyze the social, institutional and environmental context of human and
environmental contamination by pesticides by aerial spraying, through the case study of an affected com-
munity, including the possibility of pesticides being used as a chemical weapon in a region where there are
conflicts over land and territories. The methodology used was the case study on the spraying that occurred
in the Raimundo Vieira III Settlement, Gleba Gama, Nova Guarita-MT. It was concluded that, in the case
studied, spraying is part of a framework with several other types of violence experienced by families. The
study showed the inefficiency, intentional or not, of public institutions in the investigation and accountability
of those involved and in the care of t he infected people. It is concluded that the aerial spraying method is
inefficient with high losses, and its adoption can only be justified for economic reasons to the detriment
of technical rationality and the principles of prevention and precaution. The State is unable to effectively
maintain inspection of the use of pesticides, and there is an increase in the risks linked to pesticides with the
legal changes that have been systematically taking place since 2015.
1 Fundação Oswaldo Cruz
(Fiocruz), Escola Nacional KEYWORDS Community, rural. Violence. Pulverization. Agrochemicals.
de Saúde Pública Sergio
Arouca (Ensp)
– Rio de Janeiro (RJ), Brasil.

(Renato Bonfatti in
memoriam).
lumifloresta@gmail.com

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 224-235, JUN 2022 meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado.
Impactos da pulverização aérea de agrotóxicos em uma comunidade rural em contexto de conflito 225

Introdução Além das variáveis ambientais fora da ca-


pacidade de controle dos aplicadores, como a
O uso de agrotóxicos via pulverização terrestre direção e a velocidade dos ventos, a umidade
e aérea é uma prática cotidiana nas regiões do ar, a temperatura, tem-se um amplo debate
agrícolas brasileiras influenciadas pelo agro- a partir da efetividade técnica que perpas-
negócio, provocando danos diversos desde sa pelo tamanho das gotas e capacidade dos
ambientais, econômicos, sociais e à saúde de bicos, considerando que o menor diâmetro das
comunidades camponesas e urbanas. gotas permite maior cobertura das plantas4; no
Quando pessoas, territórios protegidos entanto, ao reduzi-las de tamanho, aumenta-se
(reservas, córregos, nascentes, poços etc.), a interferência dos ventos, da temperatura
ou mesmo vilas e cidades, são diretamente e da umidade5. Assim, diversos pesquisado-
afetadas por agrotóxicos pulverizados em res afirmam que grande parte dos produtos
lavouras próximas ou não, geralmente, con- aplicados não atingem o alvo, são perdidos
sidera-se que houve derivas, ou seja, acidentes. durante a aplicação6-8, um perdido que acha
No entanto, alguns autores, como Augusto et sempre outros pontos, como solo, água, ar, as
al.1(111), avaliam que plantações de outros territórios, as escolas,
as comunidades.
Há pulverizações intencionais nas plantações cul- Um fator a se considerar em relação à
tivadas próximas a residências, córregos, criação pulverização aérea é uma longa ausência de
de animais e reservas florestais, que também são normatização legal, a Lei nº 7.802/1989 Lei
classificadas erroneamente de deriva. dos Agrotóxicos, não tratou desse assunto
especificamente. O Decreto nº 4.074/2002,
Cabe perguntar: se um agente social cons- que a regulamentou, também não abordou
ciente pulveriza no entorno ou sobre uma co- o tema, que foi normatizado pela Instrução
munidade/uma escola, com uma substância Normativa (IN) nº 02/2008 do Ministério da
reconhecida técnica e legalmente como tóxica, Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa).
isso deveria ser considerado acidente? Atualmente, além dessa normativa, alguns pro-
A ocorrência de diversas denúncias de co- dutos como a banana têm normas específicas,
munidades envolvendo pulverização aérea, le- a IN nº 13/2020, porém não necessariamente
vou-nos ao questionar sobre a probabilidade da mais restritiva que a norma geral. Dessa forma,
utilização de agrotóxicos como arma química percebe-se que há um vácuo entre o desenvol-
nas áreas em conflitos, dada a possibilidade de ver das pesquisas, a utilização dos produtos e
caracterizar tais ações como acidentais, por- a regulação destas.
tanto, a necessidade de compreender melhor Considerando os impactos provocados pela
essas ocorrências. pulverização, e os limites para realização da
A pulverização aérea de agrotóxicos é uma fiscalização das aplicações, o estado do Ceará,
dessas modernas técnicas desenvolvidas pela por meio da Lei nº 16.820/2019 (Lei Zé Maria
indústria bélica e, posteriormente, adaptada do Tomé), proibiu a pulverização aérea. Além
para a agricultura. Sendo que esta tem sido desse estado, outros 15 municípios em todas
alvo de críticas das organizações de saúde e as regiões brasileiras também criaram regras
ambientalistas, como a Campanha Permanente restritivas a técnicas.
contra os Agrotóxicos e pela Vida2 ‘não existe Destacamos que agrotóxicos não são utili-
condições em que a pulverização aérea possa zados apenas na agricultura, mas também em
ser considerada segura’, por Estados nacionais ações de saúde pública, no combate de vetores
e acordos supranacionais, como a orientação como o mosquito Aedes aegypti. Nesse sentido,
do Parlamento Europeu3 para a sua proibição em 2016, no bojo da crise sanitária dos vírus
no âmbito dos países membros. da zika, da dengue e da chikungunya, o estado

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brasileiro sancionou a Lei nº 13.301/2016, Procedimentos


que permite a pulverização aérea em áreas e instrumentos
urbanas, contrariando posições de entidades
de saúde pública, como a Associação Brasileira
metodológicos
de Saúde Coletiva (Abrasco) e a Fundação
Oswaldo Cruz (Fiocruz), que alertaram em A pesquisa foi um estudo de caso que, de
notas que os riscos de danos à saúde da po- acordo com Minayo12(164),
pulação eram maiores do que a possibilidade
de benefícios. A lei teve resistência também utiliza uma estratégia de investigação qua-
no Ministério da Saúde. litativa para mapear, descrever e analisar
A pulverização aérea, mesmo quando o contexto, as relações e as percepções a
cumpre todas as normas legais de sua apli- respeito da situação ou episódio em questão.
cação, apresenta sérios riscos para a popu-
lação que mora no entorno das plantações, Para Yin 13(21), “a necessidade de estudo
que, em muitos municípios, são os bairros de caso surge do desejo de se compreender
periféricos. Fonseca, Duso e Hoffmann9 fenômenos sociais complexos”.
afirmam que, esse é um problema ambiental Este trabalho é fruto da dissertação de
e de saúde pública, que perpassa pelas ques- mestrado em Trabalho, Saúde, Ambiente
tões de interesses coletivos já que interfere e Movimentos Sociais, cujo título foi
tanto na saúde humana quanto ambiental. ‘Pulverização aérea de agrotóxicos: acidente
Outrossim, a Campanha Permanente Contra ou crime?’; e teve como objetivo analisar o
os Agrotóxicos e pela Vida2 afirma haver uma caso de Nova Guarita e observar as seme-
ocultação cotidiana em que pequenas chuvas lhanças e diferenças com outros casos de
tóxicas recaem sobre populações urbanas e contaminação humana e ambiental envol-
rurais em diversas partes do País. Já Augusto vendo pulverização aérea de agrotóxicos. O
et al.1 afirmam que diversas contaminações Estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética
intencionais acabam classificadas de derivas em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde
acidentais, e para Pignatti et al.7, o uso de Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz),
agrotóxico é uma ação que provoca a conta- conforme o Parecer nº 1.285.645. Todos os
minação intencional do ambiente. participantes foram incluídos somente após
Quando não é possível serem ocultadas, serem prestadas as devidas informações
essas chuvas de veneno viram conflitos, como sobre a pesquisa e assinado o Termo de
na contaminação das águas e das populações Consentimento Livre e Esclarecido.
na Chapada do Apodi no Ceará10, ou a con- O levantamento dos dados se deu entre
taminação das águas com as consequentes agosto de 2015 e fevereiro de 2016, por in-
perdas na Província de Limon na Costa Rica11. termédio de entrevistas semiestruturadas,
Segundo Ferreira11, considerando-se os formulário semiestruturado, e acesso a
princípios da precaução e da prevenção, há documentos.
necessidade urgente a proibição da pulveri- Foram abarcados nas entrevistas dois
zação aérea no Brasil. agentes pastorais, oito moradores do as-
Dessa forma, o objetivo deste artigo foi sentamento e, via formulário, uma técnica
analisar o contexto social, institucional e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e
ambiental da contaminação humana e do dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
meio ambiente, com agrotóxicos via pulve- O critério de seleção para as entrevistas
rização aérea por meio do estudo de caso no foi terem em algum momento se envol-
Assentamento Raimundo Vieira III, Lote 10, vido com o processo de pulverização na
Gleba Gama, Nova Guarita-MT. comunidade:

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Impactos da pulverização aérea de agrotóxicos em uma comunidade rural em contexto de conflito 227

– os agentes pastorais acompanham o con- Luta e resistência: como


flito da área; se configura o conflito
– em relação aos moradores, foram con-
na Gleba Gama, Nova
vidados para participar as famílias dos 12 Guarita-MT
lotes, dessas 10 responderam, 2 justifica-
ram impossibilidade em decorrência de
estar em outro município devido a proble- Caracterização do território
mas de saúde e 2 não nos deram retorno;
A Gleba Gama se localiza no município de
– em relação à técnica do Ibama, a parti- Nova Guarita, na região norte de Mato Grosso-
cipação na ação de fiscalização realizada MT. Segundo o processo da Justiça Federal nº
pelo órgão após a denúncia de crime am- 2005.36.00.005674-6, 2ª Vara de Sinop-MT, a
biental na área. Gleba Gama se insere na área de terra pública
da união, da antiga Gleba Teles Pires, com
Na metodologia inicial previa-se ainda a um tamanho de 435.000,00 hectares. Com a
realização de entrevista com os profissionais formação de municípios, houve um remanes-
de saúde e segurança pública, porém, não cente de 18.992,1477 hectares, da qual o Incra
foi possível visto que alguns não foram en- requereu tutela antecipada e emissão de posse
contrados e outros não aceitaram o convite. para implementar Projetos de Assentamentos.
Para levantamento dos dados docu- Essa área, por ser ocupada por diversos
mentais, utilizou-se o processo judicial ‘donos’, originou vários processos judiciais e
da vara estadual de conflitos agrários, diferentes conflitos; entre essas áreas/confli-
de autoria do fazendeiro; o processo na tos, está o Lote 10 – Assentamento Raimundo
justiça federal nº 2005.36.00.005674-6, 2º Vieira III, onde ocorreu o caso de pulverização
Vara de Sinop-MT, de autoria do Instituto aérea que é objeto deste estudo.
Nacional de Colonização e Reforma Agrária O Incra recebeu, em 2005, da justiça federal,
(Incra); Processo justiça estadual nº 22401- autorização para a emissão de posse da área
72.2009.811.0041, – Vara Agrária de Cuiabá- onde assentou 12 famílias que se tornaram
MT, o relatório de vistoria e o processo fiéis depositárias dos lotes. Os supostos donos
administrativo – PA de notificação Ibama apresentaram título de compra dos lotes 68
523343 do Ibama; relatórios da Comissão e 72 com 30 e 20 alqueires paulista respec-
Pastoral da Terra (CPT); da Campanha tivamente (equivalente a 120,0000 ha), mas
Permanente contra os Agrotóxicos e requereu o direito de posse do lote 10 com
pela Vida; Relatório de Vistoria Técnica 409,7039 hectares. Segundo Laudo Cadastral
Autônoma, que foi contratada pelas vítimas. do Incra, as benfeitorias do ‘interessado’ estão
Para análise dos dados levantados nos em uma área de, aproximadamente, 110,0000
documentos e nas entrevistas, utilizou-se hectares, reconhecida como projeto de uni-
a análise de conteúdo, que, de acordo com dades autônomas, que fica subjacente ao lote
Minayo12, consiste em descobrir os núcleos 10, (processo justiça estadual, incluindo os
de sentidos, cuja presença signifique alguma destaques).
coisa para o objeto analítico. Pode-se considerar que esses conflitos estão
As categorias principais levantadas relacionados com o projeto de desenvolvi-
foram: conflitos e violência no campo, mento proposto para o estado de Mato Grosso
direito à saúde e ao meio ambiente sadio, que visa expandir a produção agropecuária.
legalidade x legitimidade da pulverização Nesse sentido, tem-se investido em infraes-
aérea de agrotóxicos. truturas na região, como asfaltamento da BR

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163 – Cuiabá-Santarém, além dos projetos de As pessoas acharam que era a Polícia Federal, pois
ferrovias e hidrovias, que trazem no bojo a estavam aguardando vistoria do Incra, logo em
valorização das terras na região. seguida perceberam que era veneno, a força da
Segundo relatórios da CPT e depoimentos pulverização molhou quem estava fora de casa.
de lideranças da comunidade, o conflito na (Morador 02).
área envolveu as seguintes formas de viola-
ções: ameaças de morte, incluindo disparos Ainda de acordo com os relatos, ao saírem
de armas de fogo contra moradias de lide- de suas residências, foram recebidos por uma
ranças; destruição de cercas; destruição de forte neblina, avistaram o avião sobrevoan-
roças, destruição de rede elétrica; queima do as residências, e perceberam que estava
de casa; ameaça a idosos; agressões verbais pulverizando.
e psicológicas às crianças; retirada ilegal de Segundo os entrevistados, imediatamente
madeira na área de reserva legal; pulverização eles acionaram a Polícia Militar pelo 190, mas
de agrotóxicos sobre as moradias e plantações que esta se recusou a prestar atendimento
das famílias. “A PM se recusou inicialmente a atender a
Todos esses fatos estão registrados em ocorrência, por isso falamos com a promotora,
Boletins de Ocorrência (B.O.) das Polícias que encaminhou a queixa e a viatura veio até o
Civil e Militar nos municípios de Nova local”. (Morador 02). Em seguida, acionaram a
Guarita e Terra Nova do Norte, e estão ane- Polícia Federal, que fica a aproximadamente
xados em ambos os processos judiciais. No 200 km, no munícipio de Sinop, que os orien-
caso da pulverização, há também o processo tou a permanecer em um local coberto e que
administrativo no Ibama. Destaca-se que cobrissem nariz e boca para não respirar ou
esses conflitos afetam a saúde das pessoas inalar o produto: “Ligamos para a Polícia
causando tanto problemas físicos quanto Federal, que orientou proteger boca e nariz,
emocionais. No caso da pulverização, os e disse que só podia fazer essa orientação”
prontuários médicos acusam as intoxica- (Morador 03). Como terceira tentativa, acio-
ções oriundas da exposição a agrotóxicos naram a Promotoria de Justiça do município
e a substâncias exógenas. vizinho, Terra Nova do Norte, que solicitou
à Polícia Militar (PM) que fizesse as devidas
Pulverização aérea no lote 10, averiguações.
Assentamento Raimundo Vieira III, No Boletim de Ocorrência da Polícia Militar
Gleba Gama, Nova Guarita de Mato Grosso – MT (BOPM) 65/2013, de
15 de março de 201314 – anexado ao PA de
No dia 15 de março de 2013, em torno das 10 notificação do Ibama, tendo como solicitante
horas da manhã, as famílias do Assentamento a Promotoria de Terra Nova do Norte, consta
Raimundo Vieira III, notaram que uma ae- o seguinte relato,
ronave sobrevoava a área. Segundo relatos,
quando ouviram o barulho pensaram ser a Esta GUPM foi acionada pela Promotoria de
Polícia Federal, pois no dia aguardavam vis- Justiça de Terra Nova do Norte, que na área em
toria do Incra, que em outras visitas a área litígio na fazenda Baixa Verde teria um avião
se fez acompanhar pela Polícia Federal, em sobrevoando e pulverizando veneno nas casas
decorrência de litígios existentes na região. dos assentados, esta GUPM se deslocou até o
local e ao aproximar da localidade visualizamos
Aqui no dia era para ter vistoria do Incra, no o avião em pleno voo, e pulverizando na área14,15.
primeiro voo pensamos ser a Polícia Federal em
decorrência do conflito, depois notamos que era Ainda de acordo com a descrição do BOPM,
pulverização. (Morador 03). após prestar socorro às vítimas com sintomas

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Impactos da pulverização aérea de agrotóxicos em uma comunidade rural em contexto de conflito 229

de intoxicação aguda, foram informados que Crime, pela altura que faz a aplicação, você não
os responsáveis se encontravam no campo de tem controle da ação na natureza, plantas e bichos
aviação da cidade, que se dirigiram até o espaço acabam recebendo os agrotóxicos. (Agente 02).
no qual os encontrou, bem como os produtos
que foram apreendidos. Crime, afeta, adoece, contaminação aguda e
Os produtos químicos utilizados na crônica. (Morador 03).
pulverização foram: Prend D, Dominum
20 e Defender pastagem. De acordo com Uma entrevistada caracterizou como crime
as especificações técnicas, Prend D, ficha ambiental: “crime ambiental, afeta toda a na-
técnica do Mapa nº 15.808, deve ser aplicado tureza, plantas e animais além das pessoas”
exclusivamente por equipamento tratoriza- (Morador 05), e uma questionou que a ocor-
do com barra15; o receituário agronômico rência em área de litígio é, no mínimo, suspeita,
apresentado é apenas do Dominum15; a nota e que deveria haver maior rigor na investigação
fiscal de compra é para os três produtos; o para caracterizar as circunstâncias do evento.
relatório de aplicação aérea com a ordem Em relação especificamente a Gleba Gama,
de serviço 369, os produtos descritos são o das oito entrevistas realizadas com os mora-
Dominum e o Defender15. dores, quatro afirmaram intencionalidade de
Na avaliação da técnica do Ibama responsá- contaminação humana ao descrever o ocorri-
vel pela fiscalização pós-pulverização, do, bem como as duas entrevistas realizadas
com os agentes pastorais
[...] Restou evidente, entretanto, que não houve
observância das medidas de segurança opera- No caso da Gleba Gama houve intencionalidade
cional descritas nas normas que regem a ativi- de uso, a região do rio até as casas é onde só há
dade aeroagrícola, em vários aspectos. Diante pessoas e plantas de quintal, e foi onde foi pulve-
disso, os danos ambientais tipificados como rizado, então não há dúvida da intencionalidade
crime ou infração ambiental, foram apurados de atingir as famílias. (Agente 02).
e responsabilizados pelo Ibama, na medida da
culpabilidade do fazendeiro, contratante do Houve intenção de envenenar, não comunicou
serviço e da empresa aeroagrícola, com a co- ninguém e pulverizou, serviu de coação para as
municação dos fatos ao Ministério Público, para pessoas abandonar a terra. (Morador 02).
apuração na esfera penal. (entrevista analista
do Ibama). Quanto a Gleba Gama foi intencional, pois iniciou
a pulverização pelas casas, ou seja, impossível
Ou seja, por intencionalidade ou negligên- de justificar como acidente, se tivessem feito na
cia, houve um atentado contra as pessoas que pastagem e as casas tivessem sido afetado pela
residem na área causando danos diversos, e deriva poderia ser acidente, mas não é o caso.
permitindo questionar se há viabilidade am- (Agente 01).
biental e humana da pulverização aérea e se
resultados econômicos de um setor compen- Em relação ao fato de a pulverização aérea
sam os riscos inerentes à prática. ferir diversos direitos constitucionais, como
Foi nessa perspectiva que as pessoas foram o direito à saúde e ao meio ambiente sadio,
indagadas da legalidade da pulverização aérea. da dificuldade de ser fiscalizada, ainda assim
Das 11 entrevistas realizadas, 9 pessoas carac- manter a legalidade da atividade, um entrevis-
terizaram o processo de pulverização aérea tado assim respondeu: “A pulverização aérea
como crime devido aos impactos causados é difícil de controlar porque são os grandes
na saúde e no ambiente e à impossibilidade que fazem, se fossem os pequenos, o Estado
de controle efetivo da contaminação controlaria” (Morador 01).

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230 Freitas LM, Bonfatti R, Vasconcellos LCF

O sobrevoo realizado pelo Ibama na área anexados aos processos judiciais atestam in-
após a pulverização atesta que o polígono toxicação exógena por pesticida agrícola. No
afetado tangencia as moradias, isto é, foge do entanto, no depoimento prestado na delega-
polígono da pastagem. cia de Polícia Civil de Terra Nova do Norte, o
médico afirmou não saber precisar as causas
Chama atenção, entretanto, o fato de que o polígo- das intoxicações, e que assim que os pacien-
no da área afetada, tangência grande parte da área tes apresentaram melhoras, foram liberados
de uso e moradia dos assentados. Considerando (partes do inquérito anexado ao processo
tratar-se de uma área pública em litígio, e que os 19854-83.2014.811.0041 – Vara Especializada
serviços de pulverização aérea foram contratados de Direito Agrário), contudo, não informou se
pelo réu de processo judicial de Restituição de Área foram solicitados os exames necessários para
Pública movido pelo Incra, faz-se necessário que as comprovar ou não a intoxicação.
autoridades competentes promovam a apuração É importante registrar que, conforme con-
do fato, a fim de averiguar possíveis outros crimes sulta ao Datasus, essas ocorrências não foram
associados. (analista ambiental do Ibama). notificadas ao Sistema Informação de Agravos
de Notificações (Sinan); mesmo que o ‘Manual
A defesa do proprietário da empresa de de Vigilância da Saúde de População Expostas
aviação aérea, no processo administrativo do a Agrotóxicos’ afirme que todos os casos sus-
Ibama PA de Notificação 52358115, afirma que peitos em qualquer unidade de saúde devem
ser notificados, e que são casos suspeitos todos
durante o sobrevoo de qualificação e avaliação, os indivíduos que foram expostos a agrotó-
observou a existência de barracos de lona, re- xicos e que apresentem sinais ou sintoma de
latando ao proprietário este informou que se intoxicação16. Nesse caso, a exposição teve
tratava de barracos abandonados e que não testemunho ocular dos soldados da PM que
precisava preocupar, pois não havia presença transcreveram no BOPM terem chegado na
de pessoas. área enquanto o avião ainda pulverizava.
Ainda conforme os documentos anexados
Ou seja, o proprietário que contratou o ao processo nº 19854-83.2014.811.0041 – Vara
avião para pulverização tinha conhecimento Especializada de Direito Agrário, com o de-
da presença de moradores na área em questão poimento da enfermeira de plantão, esta infor-
e negou essa presença. mou que os pacientes que deram entrada às 12
No processo que corre na Vara Agrária horas apresentavam odor parecido com cheiro
Estadual que solicita a reintegração de posse de agrotóxicos nas roupas, mas também não
da área, os advogados de Izairo Batista Raposo informa os procedimentos efetivados.
afirmam que este “[...] não poupou esforços no As vítimas relataram que, depois do aten-
sentido de persuadir os requeridos a desocupa- dimento inicial, não houve nenhum acompa-
rem o imóvel, [...]”, tendo a legalidade desses nhamento de saúde, por parte do sistema de
esforços sido questionada pela Defensoria saúde local, ou mesmo pelo responsável da
Pública, perante todas as denúncias de vio- pulverização, mesmo das pessoas que tiveram
lência registrada contra ele. intoxicação aguda

Impactos à saúde Saí da área depois da pulverização, por que agravou


os meus problemas de saúde. (Morador 01).
Em relação ao atendimento à saúde das pessoas
com intoxicação aguda, confirma-se que seis Foi tudo muito triste, a vida da gente está uma
vítimas deram entrada no hospital da cidade merda, eu não posso nem passar perto de área pulve-
entre 12 e 16 horas, cujos prontuários médicos rizada, passo mal, tenho as marcas. (Morador 02).

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Impactos da pulverização aérea de agrotóxicos em uma comunidade rural em contexto de conflito 231

Houve outras intoxicações que não foram notifi- Impactos ambientais e econômicos
cadas, por que não foram ao médico: ardência na
garganta, nos olhos; e não houve nenhum auxílio Além das moradias, a pulverização atingiu
ou acompanhamento depois da ocorrência, nem as áreas de proteção ambiental, tendo sido
pelo Estado, nem pelo responsável. (Morador 05). observada por todos entrevistados,

Na casa todos se intoxicaram, mas uma pessoa não contaminou a água para o consumo e no mesmo
foi ao hospital, as duas crianças foram. Ao chegar dia não dava mais para consumir. (Morador 02).
ao hospital o médico não relatou como intoxica-
ção para não incriminar o fazendeiro, e no dia se A pulverização foi feita diretamente sobre as casas
recusou a entregar o prontuário. (Morador 06). e a floresta. (Agente CPT 01).

Não foi possível acessar os prontuários Durante o sobrevoo, constatou-se dano ambiental
das crianças citadas na entrevista, sendo à vegetação susceptível aos produtos utilizados.
que, tanto no depoimento do médico quanto Conforme consta nos processos administrativos do
da enfermeira, e nos prontuários anexados Ibama e no Inquérito Policial, estes produtos foram
nos processos que correm na justiça federal o Dominum e Prend 806, que são de classificação
e estadual, não há referência ao atendimen- toxicológica I (Extremamente tóxico). Observou
to de menores. Destaca nesta indicação, se os danos causados pelos agrotóxicos em áreas
mas não foi possível de ser averiguado, a não permitidas (mananciais de água e moradias
afirmação de que o médico não quis regis- isoladas). Visualizou-se plantas afetadas pelos
trar como intoxicação por agrotóxicos para agrotóxicos em Área de Preservação Permanente
não incriminar o fazendeiro, mas remete à (APP), como mata ciliar, entorno de nascentes e
necessidade de refletir sobre a violência áreas em declive. (Analista ambiental do Ibama).
existente nos territórios com conflitos por
terra e território, e como todas as pessoas Percebe-se que, além das intoxicações
podem ser expostas a essa violência. agudas, a comunidade se manteve exposta,
Verifica a necessidade de o Sistema Único visto que a maioria das pessoas não conse-
de Saúde (SUS) ampliar sua atuação tanto na guiram se ausentar do território, e as casas
capacitação dos profissionais para diagnosticar e entorno não tiveram nenhum processo de
intoxicações, como na necessidade da notifi- descontaminação, também em decorrência
cação dos agravos, principalmente nas regiões dos danos ambientais, como a contaminação
onde há prevalência produtiva do agronegócio, da água de consumo humano e animal, que só
haja vista situações como as analisadas no teve o abastecimento garantido no primeiro
município de Lucas do Rio Verde que, pelo momento: “A prefeitura distribuiu água mineral
fato de os sintomas de contaminação terem por o ito dias” (Morador 01). Com o impacto
característica de outras doenças comuns nos sobre as Áreas de Reserva Legal (ARL) e as
períodos produtivos, como a dengue e o rota- Áreas de Preservação Permanente (APP), é
vírus, registra um aumento nessas doenças, importante marcar a inter-relação que as co-
mas não testa intoxicações7. munidades camponesas mantêm com as áreas
Isso demanda também que o SUS debata a de preservação22.
relação direta entre modo de produção preva- Vinculado aos danos ambientais, houve um
lente e agravos aà saúde, bem como sobre os impacto econômico para as famílias, já que a
impactos dos agrotóxicos na saúde, conforme produção de roças e quintais e o extrativis-
abundante literatura17-22, e pautar a neces- mo são o principal meio de subsistência das
sidade de maior controle das técnicas e das famílias camponesas; e a perda dessa produ-
substâncias utilizadas. ção pode significar o comprometimento da

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232 Freitas LM, Bonfatti R, Vasconcellos LCF

reprodução social da comunidade: “Com a Aqui matou as plantações, a mandioca apodre-


pulverização das plantas, houve dificuldades ceu nas raízes, até o esterco ficou contaminado, e
financeiras e insegurança alimentar, tiveram mesmo depois de um tempo não há brotação de
pessoas que precisaram ser socorridas pela algumas plantas. (Morador 08).
assistência social” (Morador 06).
Além da produção de autossustento, Já são quase 03 anos e há dificuldade de produzir,
constatam-se as perdas econômicas na im- principalmente na horta. (Morador 04).
possibilidade de comercializar a produção
que permaneceu nas roças, devido aos riscos Segundo o receituário agronômico do
de contaminação e, consequentemente, à Dominum, o plantio de espécie suscetíveis a
suspensão do contrato com o Programa de ele só deve ser efetivado de dois a três anos
Aquisição de Alimentos (PAA): após sua última aplicação, ou seja, há resí-
duos que impedem o desenvolvimento das
Minha parcela não foi diretamente atingida pelos plantas suscetíveis. Esse é um impacto não
produtos, porém fiquei mais de 06 meses sem contabilizado, mesmo nos laudos agronômicos
conseguir comercializar a produção por nenhum independentes, que contabilizaram apenas as
mecanismo (nem Conab, nem na cidade) houve perdas imediatas.
a perda da produção (Morador 07). Constatamos que as 12 famílias assentadas
no Assentamento Raimundo Vieira III, Lote
Aqui prejudicou muito, pois a Conab parou com as 10 da Gleba Gama, têm sofrido diversas vio-
compras, por seis meses não foi possível comer- lências e violações. Entre essas, a intoxicação
cializar. (Morador 05). por agrotóxicos decorrente de pulverização
aérea sobre a comunidade, tem um impacto
Durante visita constatou-se plantações ampliado para a reprodução social delas, pois
completamente destruídas, enquanto outras além do adoecimento físico e mental, causa
parcialmente afetadas na parte vegetativa, comprometimento econômicos e alimentar.
porém comprometidas produtivamente, A legislação em vigor impõe normas e
como é o caso da plantação de mandioca, limites para os projetos de desenvolvimen-
se regenerando vegetativamente enquan- to a serem implementados pelo Estado e
to suas raízes apodrecerão totalmente. O por particulares. Porém, os casos como da
que fica evidente é que os referidos danos Gleba Gama juntam-se a outros, como da TI
a essas plantações ocorreram por conta Marãiwatsédé-MT, povo Guarani Kaiowá-MS,
da aplicação direta de agrotóxico sobre as Escola Rural em Rio Verde-GO, Quilombolas
plantas. Conforme tabela acima se conclui em Buritis-MA, Assentados em Nova Santa
ter perdido/comprometido um montante de Rita-RS, entre outras denúncias;, e mostram
produção avaliado em R$ 44.500,00 que que os registros de pulverização de agrotóxicos
seria parte utilizada no uso familiar e parte com aviões sobre comunidades que se encon-
para comercialização nos vários mercados, tram em áreas de conflitos, ou de interesse para
institucional ou convencional15. expansão de monocultura, tornam-se cada
vez mais frequentes, e adquirem um caráter
Outro problema não visualizado nos cálcu- de naturalização, como se contaminar seres
los dos impactos econômicos foi a dificuldade humanos, fauna, flora e bens comuns, inten-
de retomar a produção após a contaminação cionalmente ou não, fosse um mal menor para
das plantas, sementes, águas e do solo. Os manter a balança comercial.
depoimentos das famílias nas entrevistas são Augusto et al.1(2), referindo-se ao modelo
corroborados com as informações constantes de desenvolvimento do rural brasileiro,
no receituário agronômico. afirmam que “o agrotóxico é a expressão de seu

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Impactos da pulverização aérea de agrotóxicos em uma comunidade rural em contexto de conflito 233

potencial morbígeno e mortífero, que trans- entanto, há limites na fiscalização, desde


forma os recursos públicos e os bens naturais a comercialização até a aplicação, e um
em janela de negócio”. processo de desconsideração dos riscos
Burigo et al.16, avaliando o caso de pulve- associados ao seu uso, seja da toxicidade
rização em Rio Verde-GO, questionaram o dos produtos ou das técnicas de aplicação,
uso misturado de Ingredientes Ativos (IA), como verificado com a pulverização aérea de
já que os estudos de intoxicações são feitos produtos não autorizados por essa técnica.
separadamente, e não há análise para os casos Percebe-se que intencionalidade ou ne-
de interações, mistura essa que se repete na gligência em relação às normas acarretam
Gleba Gama. um forte impacto sobre a vida das pessoas
Apesar da amplitude dos casos denuncian- que vivem e trabalham nas regiões contami-
do os impactos humanos e ambientais dos nadas, nas regiões de conflitos e nas regiões
agrotóxicos, percebe-se que a base legal se de expansão da fronteira agrícola, desde
encontra em amplo processo de retrocessos, adoecimentos e mortes, até dificuldades
como o Projeto de Lei (PL) nº 6.299/2002, que econômicas com destruição de modos de
altera a Lei nº 7.802/1989 e foi aprovada em vida e de bens comuns.
Comissão Especial do Congresso aguardando A pulverização aérea de agrotóxico é um crime
ainda ser votada em plenário, a qual foi apeli- contra a vida e os direitos humanos, haja vista a
dada de PL do Veneno. No entanto, também impossibilidade de controle dessas substâncias
nas sucessivas liberações de substâncias que quando lançadas na atmosfera. Dessa forma,
o governo fez, desconsiderando os protocolos reverter esse quadro é estratégico para um de-
ainda em vigência. senvolvimento mais justo, saudável e sustentável.

Considerações finais Colaboradores


A questão dos agrotóxicos no Brasil virou des- Freitas LM (0000-0001-9468-3292)* cola-
taque público desde 2008, ano em que o País borou para a concepção e realização da pes-
passou a ser reconhecido como o maior consu- quisa, análise dos dados e redação do artigo.
midor mundial. Porém, problemas relacionados Bonfatti R (0000-0002-0924-5149)* colaborou
com a pulverização aérea já eram ocasionados para a revisão do dados e revisão do artigo.
anteriormente, como a chuva de veneno sobre o Vasconcellos LCF (0000-0002-7679-9870)*
município de Lucas do Rio Verde-MT em 2005. colaborou para a concepção da pesquisa,
A concepção ideológica da legislação de revisão da análise dos dados e revisão do
agrotóxicos no Brasil é a do uso seguro. No artigo. s

*Orcid (Open Researcher


and Contributor ID).

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234 Freitas LM, Bonfatti R, Vasconcellos LCF

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NHgxSSQBQ/abstract/?lang=pt.
Suporte financeiro: não houve

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236 ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE

Fim dos benefícios fiscais aos agrotóxicos,


sustentabilidade da agricultura e a saúde no
Brasil
End of tax benefits for pesticides, agricultural sustainability and
health in Brazil

Wagner Lopes Soares1,2, Lucas Cunha2, Marcelo Firpo Porto3

DOI: 10.1590/0103-11042022E216

RESUMO O presente artigo avaliou o fim dos benefícios fiscais dados aos agrotóxicos a partir dos mi-
crodados do Censo agropecuário de 2017. Realizou-se um estudo descritivo explorando duas variáveis
pesquisadas: a despesa com agrotóxicos e o lucro obtido com a atividade agropecuária. Foram traçados
cenários de aplicação de alíquotas de tributação dos agrotóxicos e os seus respectivos aumentos de preços,
o que possibilitou avaliar os impactos diretos na lucratividade dos produtores. O cenário de tributação que
gere um aumento de 15% nos preços dos agrotóxicos reduziria a lucratividade em cerca de 5,1% em 2017
(R$ 4,8 bilhões). Contudo, os maiores impactados seriam os produtores de commodities, com uma redução
média de 9,6% na lucratividade. Discutiram-se esses resultados à luz de dois prismas: o impacto na renda
do produtor e possíveis consequências no aumento de preços da cesta básica; e a capacidade da função
extrafiscal do imposto em regular o uso dos agrotóxicos e redirecionar possíveis mudanças na tomada
de decisão sobre os métodos de controle de pragas mais sustentáveis. Concluiu-se que há necessidade de
harmonizar regras fiscais à uma política pública mais equilibrada no âmbito do setor agropecuário que
garantisse a defesa da saúde da população e a sustentabilidade ambiental.

PALAVRAS-CHAVE Agrotóxicos. Regulação. Externalidades. Subvenções e subsídios governamentais.

ABSTRACT This paper assesses the end of the tax incentives given to pesticides, based on the constitutional-
ity analysis lawsuit (ADI 5553) that will be judged by the Supreme Court, which discusses the exemptions of
ICMS and IPI on these products. Based on the last Brazilian Census Survey we evaluate the tax incidence of
ICMS and IPI on agricultural expenditure and profitability of the agricultural establishment in some diferent
scenarios. A 15% increase in pesticide prices would have an impact on costs and profitability of approximately
1 Instituto
Brasileiro de R$ 4 and R$ 6.8 billion (-7%), respectively. This represents a value of almost R$ 10 billion less than calculated
Geografia e Estatística
(IBGE), Escola Nacional de by a similar study released by the Sindicato Nacional da Indústria da Defesa Vegetal (Sindiveg) for a scenario
Ciências Estatísticas – Rio of equivalent price increase. We discussed not only the impact results in income of the producer, but also the
de Janeiro (RJ), Brasil. capacity of the extrafiscal function of the tax to regulate the use of pesticides and redirect possible changes in
soareswagner7219@gmail.
com decision making on pest control methods, enabling the transition to a more sustainable and healthy agriculture.
Finally, we conclude that, regardless of the outcome of the judgment of ADI 5553, the problem of negative
2 Universidade Federal
externalities resulting from the use of pesticides does not end with the end of fiscal incentives to them, as
Rural do Rio de Janeiro
(UFRRJ) – Rio de Janeiro they depend on the formulation of a more balanced public policy within the scope of the agricultural sector
(RJ), Brasil. that would guarantee the defense of the population’s health and environmental sustainability.
3 Fundação Oswaldo Cruz
(Fiocruz), Escola Nacional KEYWORDS Agrichemicals. Regulation. Externalities. Subsidies, government.
de Saúde Pública Sergio
Arouca (Ensp) – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil.

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 236-248, JUN 2022 meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado.
Fim dos benefícios fiscais aos agrotóxicos, sustentabilidade da agricultura e a saúde no Brasil 237

Introdução atividades voltadas para a exportação de


commodities, que correspondem às principais
A Ação Direta de Inconstitucionalidade culturas consumidoras de agrotóxicos5.
(ADI) 5553 tem suscitado debates acerca Um estudo publicado recentemente pela
dos impactos econômicos e o futuro da agri- Abrasco6 concluiu que, dos quase R$ 10 bilhões
cultura brasileira. Ela foi protocolada pelo dos benefícios concedidos em 2017, 63,1% se
Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) em referiam ao ICMS; 16,5%, ao IPI; 15,6%, às
junho de 2016 com cinco entidades como contribuições sociais; e 4,8%, ao imposto de
amicus curiae, uma delas a Associação importação. No entanto, entidades ligadas ao
Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), e até agronegócio, fabricação e comércio de agro-
a presente data não foi julgada no Supremo tóxicos alegam que o benefício é necessário,
Tribunal Federal (STF)1. Essa ação analisa a entre outras razões, por baratear a cesta básica
constitucionalidade dos benefícios fis cais e aumentar a produtividade da agricultura
dados aos agrotóxicos relacionados com o brasileira, e que o fim desses benefícios fiscais
Convênio 100/97 do Conselho Nacional de reduziria a competitividade do setor, princi-
Política Fazendária (Confaz)2, que reduz a palmente a lucratividade daqueles produtores
base de cálculo do Imposto sobre Circulação que empregam agrotóxicos nas lavouras.
de Mercadorias e Serviços (ICMS) sobre A argumentação do impacto no preço
operações interestaduais em 60% e autoriza dos alimentos foi baseada principalmente
a concessão de isenção ou redução da base de no estudo produzido pela consultoria Jorge
cálculo nas operações internas, e o Decreto Barral, contratada pelo Sindicato Nacional
nº 8.950/20163,4, que concede alíquota zero da Indústria de Produtos para Defesa Vegetal
do Imposto sobre Produtos Industrializados (Sindiveg)7, que trabalhou cenários de tributa-
(IPI), mas não analisa outros benefícios ção, cujas perdas na rentabilidade do produtor
fiscais concedidos aos agrotóxicos, como as poderiam alcançar R$ 16,4 bilhões, com uma
Contribuições Sociais (Cofins e PIS/Pasep) redução de até 21% na cultura do algodão, por
e o imposto de importações. exemplo. Esse estudo, apesar de assumir hipó-
Observa-se que o julgamento da consti- teses metodológicas diferenciadas detalhadas
tucionalidade ou não dos benefícios fiscais no segundo relatório produzido pela pesqui-
concedidos aos agrotóxicos no âmbito do sa da Abrasco8, também estimou números
ICMS e do IPI é um debate jurídico e polí- alarmantes das desonerações concedidas aos
tico, tendo em vista que a decisão tomada agrotóxicos, cerca de R$ 8,4 bilhões para 2016.
pelo Supremo afetará de forma concreta a Neste artigo, busca-se demonstrar a in-
estrutura de poder e os ganhos econômicos consistência das alegações feitas pelo agro-
do agronegócio. O debate desenvolve-se negócio e seus consultores. Em primeiro
acerca dos direitos constitucionais difusos lugar, serão usados como base os dados do
de terceira geração, mais especificamente último levantamento censitário do Instituto
o direito à saúde e o direito ao meio am- Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
biente ecologicamente equilibrado, indo para avaliar possíveis cenários de tribu-
também de encontro às regras previstas tação de ICMS e IPI sobre os agrotóxicos
para o estabelecimento de impostos com e a redução da lucratividade do produtor
a suposta redução de custos dos produtos rural. Será evidenciado que o incentivo a um
que compõem a cesta básica e dos alimentos insumo notoriamente prejudicial à saúde e
em geral a partir da concessão de benefícios ao meio ambiente9 interessa essencialmente
fiscais aos agrotóxicos. No entanto, a parcela aos que mais lucram com o modelo agrope-
do setor agropecuário que será mais atingida cuário voltado à exportação de commodities,
com esse julgamento é aquela que tem suas e não aos direitos do cidadão.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 236-248, JUN 2022


238 Soares WL, Cunha L, Porto MF

Do ponto de vista constitucional e do inte- produtos. Para tal, a investigação se baseou


resse público, essencial é o alimento de qua- em dois estudos da literatura que estimaram
lidade e baixo custo na mesa dos brasileiros, as desonerações com agrotóxicos com esses
mas isso não deveria incluir os riscos à saúde tributos: o estudo da Abrasco6 e o do Sindiveg7.
e ao meio ambiente de um modelo agrícola O primeiro cenário, baseado no estudo da
químico-dependente. Argumenta-se que o Abrasco6, estimou desonerações dos agrotóxicos
fim dos benefícios fiscais aos agrotóxicos terá para esses dois impostos em R$ 7.846,16 milhões,
impactos reduzidos na cesta básica ao mesmo que representam cerca de 24% das despesas com
tempo que incentivará a necessária transição agrotóxicos informadas no Censo agropecuário
para uma produção mais orgânica e agroeco- de 2017. Assim, caso se considere o repasse inte-
lógica que beneficiará tanto agricultores como gral desse imposto da indústria para o produtor,
consumidores. tomando o exemplo de 2017, as despesas com
agrotóxicos dos produtores seriam 24% maiores,
chegando a R$ 40,2 bilhões.
Material e métodos Outro cenário de impacto seria basear-se
no cálculo do Sindiveg7 para cobrança de IPI
O presente estudo é uma pesquisa explora- e ICMS sobre os agrotóxicos. Guardadas as
tória, de caráter descritivo e comparativo. devidas distinções metodológicas entre esses
Avaliaram-se cenários de impacto de uma estudos8, o Sindiveg calcula um valor de R$
elevação da carga tributária dos agrotóxi- 4.864.484.777, o que representa cerca de 15%
cos sobre o custo de produção e renda dos das despesas com agrotóxicos segundo o Censo
produtores agrícolas que foram desenhados agropecuário. Sendo assim, haveria dois ce-
com base em observações dos microdados do nários de elevação de preços dos agrotóxicos
último Censo do IBGE10. O processamento baseados na ADI 5553, um com aumento de
dos dados censitários foi realizado por meio 24% e outro mais conservador de 15%.
do e-Data, tabulador especial de microdados Além de cenário de mudanças no preço dos
disponível no Banco Multidimensional de agrotóxicos baseados na tributação, deve-se
Estatística (BME/IBGE), cujo acesso se dá avaliar que um aumento de preços gera,
mediante a autorização de usuário previa- possivelmente, alterações na demanda por
mente cadastrado11. Mesmo se tratando de agrotóxicos, o que os economistas chamam de
microdados censitários, divulgaram-se as in- elasticidade-preço da demanda. Ou seja, pre-
formações agregadas para o País, respeitando cisa-se também considerar esses cenários, pois
o sigilo das informações de acordo com as a tributação e seu reflexo sobre o preço dos
boas práticas de uso das estatísticas oficiais12. agrotóxicos têm potencial de alterar a tomada
Basicamente, foram analisadas duas variáveis de decisão de empregar agrotóxicos ou outro
presentes no Censo agropecuário de 2017: as método de controle. Portanto, por essas razões,
despesas com agrotóxicos realizadas naquele não se pode considerar uma elasticidade nula
ano; e o lucro (Valor da Produção Agropecuária da demanda de agrotóxicos em função dos
(VBA) – Despesa total do estabelecimento) preços, como se um aumento no seu preço não
obtido no estabelecimento com suas atividades afetasse a demanda pelo produto agrotóxico ou
agropecuárias. a demanda por um substituto, como o controle
No que diz respeito à elaboração dos cená- biológico ou outra alternativa que não tivera
rios de tributação dos agrotóxicos, tomou-se incremento nos seus preços. Cabe esclarecer
como referência a ADI 5553, cujo objeto da que a lógica exclusivamente econômica não é
ação é a suspensão dos incentivos do ICMS a única a influenciar a decisão dos agriculto-
e do IPI sobre os agrotóxicos1, e procurou- res, já que existem vários casos relatados de
-se aplicar alíquotas ordinárias para esses transição agroecológica posteriores a casos de

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 236-248, JUN 2022


Fim dos benefícios fiscais aos agrotóxicos, sustentabilidade da agricultura e a saúde no Brasil 239

câncer na família ou devido a preocupações por uma elevação da alíquota em igual mon-
com as futuras gerações. tante, haveria uma redução na demanda por
Países europeus que sentiram mudanças agrotóxicos de respectivamente, 3,0%, 7,5% e
nas regras de tributação por agrotóxicos esti- 13,5% segundo essas três hipóteses de elasti-
maram que a elasticidade-preço da demanda cidades. Esses dados apoiam o pressuposto
por esses produtos não é nula (a sensibili- de que os atuais benefícios fiscais reforçam
dade de alterações da demanda em função o modelo agrícola baseado no uso intensivo
das mudanças de preço), ela variou de -0,2 de agrotóxicos.
a -0,5, sendo que, na Suécia, para herbicidas, A figura 1 apresenta os quatro cenários
esse número é bem expressivo, ficou em -0,913. de aumento de preços dos agrotóxicos e de
Isso significa que, caso ocorresse um aumento elasticidade da demanda que impactam a lu-
em 15% nos preços dos agrotóxicos causados cratividade dos produtores rurais:

Figura 1. Quatro cenários de aumento de preços e de elasticidade da demanda por agrotóxicos

Aumento de Elasticidade preço da demanda


preços 0 -0,02
15% 1 3
25% 2 4

Os cenários apresentados na figura 1 também potencialidades de análise, mas também limi-


são avaliados segundo a atividade econômica tações. No levantamento censitário do IBGE,
principal do estabelecimento agropecuário. Nesse a unidade de investigação é o estabelecimento
caso, a título de comparação dos resultados com agropecuário; nesse caso, a análise permite
aqueles obtidos pelo estudo apresentado pelo avaliar o resultado operacional do negócio do
Sindiveg, selecionaram-se cinco atividades agro- produtor rural, levando em conta a sua renda
pecuárias (algodão, cana-de-açúcar, soja, café e total com sua atividade agropecuária, bem
cereais), embora este último estudo tenha consi- como a estrutura de custos de cada estabeleci-
derado apenas o milho e não uma categoria mais mento do País. É importante deixar claro que
agregada ‘cereais’. Deve-se ressaltar que, além de esse resultado não é um rendimento potencial
possibilitar uma comparação com os resultados cujo desempenho é revelado em termos de
do estudo do Sindiveg, a escolha dessas culturas custo ou lucro por hectare plantado de uma
se dá pelo fato de elas, em conjunto, demandarem cultura específica, tampouco é um rendimento
cerca de 80% das vendas de agrotóxicos no País6. que tenha sido imputado por uma propriedade
modal da região. Os dados censitários são, em
tese, reais e não potenciais, e são capazes de
Resultados e discussão mostrar a renda líquida do produtor (receita-
-despesa) levando em conta toda a diversidade
Antes de apresentar os resultados encontrados, do País, representada por mais de 5 milhões de
convêm comentar aspectos sobre a base de estabelecimentos agropecuários. Outro ponto
dados utilizada e ressaltar algumas das suas positivo dos dados censitários é o olhar para

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 236-248, JUN 2022


240 Soares WL, Cunha L, Porto MF

o produtor, que permite uma avaliação mais e -0,2 de elasticidade, mesmo porque há uma
precisa de cenários do aumento de preço dos grande dependência aos agrotóxicos dos sis-
agrotóxicos e seus impactos sobre a demanda temas agrícolas baseados nas monoculturas,
e lucratividade – diferentemente dos regis- principalmente no curto prazo. No entanto,
tros administrativos do Instituto Brasileiro deve-se ressaltar que a redução da demanda
do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais em função do aumento de preço tende a ser
Renováveis (Ibama) que reportam as vendas mais expressiva no médio e longo prazo, pois se
de agrotóxicos efetuadas pela indústria em esperam elasticidades não estáticas ao longo do
geral ao comércio5. tempo, inclusive com o aumento da consciência
Por outro lado, o Censo possui a limita- dos cidadãos em consumir alimentos mais sau-
ção de não permitir uma avaliação direta do dáveis, sem agrotóxicos, e seus reflexos sobre os
impacto por tipo de cultura, uma vez que os produtores. Essa mudança tardia na percepção
dados censitários só avaliam as despesas, as e no comportamento dos agricultores quanto às
receitas e o lucro do estabelecimento, e não de relações de custo-benefício dos demais métodos
determinada cultura. Ainda assim, uma apro- de controle de pragas é positiva para a transição
ximação seria possível quando se classifica o agroecológica, que exige um período de, no
estabelecimento por sua atividade econômica mínimo, três a cinco anos6.
principal, aquela de maior importância no Levando em consideração os dados censi-
valor da produção gerado pelo estabelecimen- tários e analisando o pior cenário de aumento
to. Por exemplo, tanto as despesas quanto as de preços dos agrotóxicos de 24%, ter-se-ia
receitas de um estabelecimento classificado um impacto de R$ 7,8 bilhões no lucro dos
como atividade econômica principal ‘café’ produtores, o que representa uma redução de
poderiam estar somadas àquelas oriundas 8,1% com a tributação do ICMS e IPI sobre
de outras atividades agropecuárias também esses produtos. Para efeitos comparativos, o
realizadas nesse mesmo estabelecimento, valor estimado no relatório do Sindiveg7 para
ou seja, não seria avaliado apenas o lucro da o mesmo cenário, isto é, de cobrança de IPI
‘cultura café’, mas o resultado operacional e ICMS, aumentaria os preços em 14,22%, o
do estabelecimento cujo negócio principal é que, segundo a pesquisa, geraria uma redução
o cultivo de café. global na lucratividade do produtor rural de
Outra limitação está na escolha dos cená- R$ 16,4 bilhões. Verifica-se na tabela 1 que esse
rios de elasticidade-preço da demanda dos valor é mais que o triplo do valor encontrado
agrotóxicos, pois não há estudos no País para no cenário 1 da tabela 1, quando se utilizam
servir como referência. Por essa razão, foi-se os dados estruturais censitários e se admite
mais conservador ao adotar um cenário nulo aumento de 15% nos preços dos agrotóxicos.

Tabela 1. Impacto da tributação do ICMS e IPI sobre a lucratividade do produtor segundo os cenários de aumento dos
preços de venda dos agrotóxicos

Cenário aumento Despesa Redução no Lucro


preços agrotóxicos Total de receitas Despesa total Lucro total % (R$ bilhões)
Isenção 32.469.724.480 345.240.415.282 249.276.506.837 95.963.908.445 -
1 (15%) 37.340.183.152 345.240.415.282 254.146.965.509 91.093.449.773 5,1 (-4,8)
2 (24%) 40.262.458.355 345.240.415.282 257.069.240.712 88.171.174.570 8,1 (-7,8)

Fonte: Elaboração própria com base nos microdados do Censo agropecuário 201710.
Nota: Assumindo a hipótese que após o aumento, os 1.681.740 estabelecimentos que consumiram agrotóxicos permaneceram
consumindo em igual quantidades (elasticidade nula).

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Fim dos benefícios fiscais aos agrotóxicos, sustentabilidade da agricultura e a saúde no Brasil 241

Revisou-se, portanto, a tabela anterior, relação de lucro/despesa do agrotóxico, pois


incluindo também cenários de elasticidade uma redução na demanda diminuiria não só a
variando entre esses valores (tabela 2). Por despesa, mas também a lucratividade, tendo
exemplo, na relação entre lucro e despesa em vista que se estaria empregando ‘menos
com agrotóxicos, com base nos dados censitá- tecnologia’. Com uma relação de elasticidade-
rios, é, para cada R$ 1 gasto com agrotóxicos, -preço da demanda por agrotóxicos de -0,2,
de R$ 2,9 de lucratividade com a produção um aumento nos preços dos agrotóxicos na
agropecuária. Sendo assim, nos cenários de ordem de 15% e 24% geraria uma redução
redução da demanda baseados em elastici- de, respectivamente, 3% e 4,8% na demanda
dades não nulas, procurou-se manter essa por esses produtos.

Tabela 2. Impacto da tributação do ICMS e IPI sobre a lucratividade do produtor segundo os cenários de aumento dos
preços e de elasticidade da demanda por agrotóxicos

Cenário Elasticidade Despesa Redução no


aumento preço agrotóxicos R$ Total receitas Lucro R$
preços demanda* (milhões) R$ (milhões) Despesa total Lucro total (bilhões) (%)
Isenção - 32.470 345.240 249.276 95.964 -
3 (15%) -0,2 36.366 342.361 253.173 89.189 6,8 (-7,06)
4 (24%) -0,2 38.704 340.634 255.511 85.123 10,8 (-11,3)
Fonte: Elaboração própria com base nos microdados do Censo agropecuário 201710.
* Muñoz-Piña et al., 200413.

Observa-se na tabela 2, quando se R$ 10,8 bilhões menores (-11%). Caso se tome


admitem mudanças de curto prazo na como exemplo um aumento próximo daquele
demanda por agrotóxicos, que as despesas calculado pelo Sindiveg, de 15% nos preços dos
totais tiveram um menor aumento quando agrotóxicos, ter-se-ia um impacto nos custos e
comparadas com o incremento obtido com na lucratividade de quase R$ 4 bilhões e uma
hipótese de elasticidade nula assumida na redução do lucro em R$ 6,8 bilhões (-7%).
tabela 1. Por outro lado, a receita teve uma Ou seja, ainda que relevante, esse é um valor
redução considerável em função do menor de quase R$ 10 bilhões a menos do calculado
emprego dos agrotóxicos, o que proporcio- pelo estudo do Sindiveg para um cenário de
nou um resultado na lucratividade ainda aumento de preços equivalente.
pior quando comparado com os cenários Além disso, o relatório do Sindiveg imputa
anteriores. Ressalta-se que essa hipótese a perda de lucratividade a apenas cinco pro-
não considera a substituição de tecnolo- dutos agrícolas (algodão, soja, milho, cana e
gia empregada, ou seja, o agrotóxico não café). Em outras palavras, o valor de cerca de
empregado que impacta na receita não é R$ 16 bilhões do Sindiveg se refere somente
substituído por nenhuma outra técnica de a esses produtos. Todavia, uma abordagem
controle. mais próxima seria a da tabela 3, que apre-
Dessa forma, no pior cenário de impacto senta as relações de lucro do estabelecimento
sobre a rentabilidade do produtor, cujo agropecuário classificado segundo as cinco
desenho é um aumento nos preços de 24% atividades econômicas principais (algodão,
e uma elasticidade de -0,2, os lucros seriam cana-de-açúcar, soja, café e cereais).

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242 Soares WL, Cunha L, Porto MF

Tabela 3. Despesa com agrotóxicos e lucratividade do estabelecimento agropecuário classificado segundo a sua atividade
principal

Classificação da atividade
econômica principal do Despesa com
estabelecimento agrotóxicos Total de receitas Despesa total Lucro total
Algodão 1.378.244.406 8.698.561.158 4.882.496.782 3.816.064.376
Cana-de-açúcar 3.795.965.517 39.525.374.583 46.416.184.477 -6.890.809.894
Soja 18.153.464.333 120.867.067.940 85.657.724.231 35.209.343.709
Café 1.063.155.454 11.054.807.700 8.548.573.455 2.506.234.245
Cultivo de cereais 1.784.515.669 17.626.031.580 11.547.054.034 6.078.977.546
Total (algodão, cana, soja, café, cereais) 26.175.345.379 197.771.842.961 157.052.032.979 40.719.809.982
Total (todas atividades agropecuárias) 32.469.724.480 345.240.415.282 249.276.506.837 95.963.908.445

Fonte: Elaboração própria com base nos microdados do Censo agropecuário 201710.

Nota-se que esses cinco produtos representam industriais e estão fora do levantamento
cerca de 57% da receita e 42% do lucro da agro- censitário.
pecuária, mas correspondem a 80% da despesa Quando se compara a redução do lucro
com agrotóxicos incorrida pelos estabelecimen- dos produtores com atividade principal soja,
tos em todas as suas atividades agropecuárias; café, cana, algodão e cereais em função de um
fato esperado pela predominância do modelo aumento de 15% nos preços dos agrotóxicos,
químico-dependente pautado na monocultura considerando o repasse integral da indústria
extensiva. Isso evidencia a desproporcionalidade dos tributos (ICMS e IPI), observa-se uma
entre gastos com agrotóxicos e a lucratividade queda no lucro de R$ 3,9 bilhões (-9,6%) na
dessas atividades em particular e das demais tabela 4, ao passo que, no estudo do Sindiveg,
atividades agropecuárias no País. um aumento de 14,2% proporciona uma
Em relação ao cultivo da cana-de-açúcar, redução de R$ 16,5 bilhões. Pelo Sindiveg,
a soma dos resultados operacionais dos es- nesse mesmo cenário, ocorreria uma redução
tabelecimentos classificados nessa atividade de 13,52% apenas no algodão e que aqui a lu-
econômica principal se mostrou deficitária. cratividade do produtor reduziria 5,4% nos
Porém, muitos desses estabelecimentos são estabelecimentos classificados nessa cultura.
produtores e fornecedores de cana-de-açúcar Já no café, os resultados são de 13,52% contra
integrados ao setor sucroalcoleiro, e, portanto, 6,4%; na soja, 10,85% contra 7,7%. Portanto, os
não têm receita de venda da cana-de-açúcar, o números mostram grandes diferenças com im-
que pode explicar o prejuízo observado, já que pactos menos expressivos a partir das análises
a produção de açúcar e álcool são atividades dos dados censitários.

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Fim dos benefícios fiscais aos agrotóxicos, sustentabilidade da agricultura e a saúde no Brasil 243

Tabela 4. Impacto de um aumento de 15% dos agrotóxicos sobre a lucratividade do estabelecimento agropecuário,
classificado segundo a sua atividade principal

Despesa Redução Redução


Classificação da atividade econômica com Total de Despesa no Lucro no Lucro
principal do estabelecimento agrotóxicos receitas total Lucro total % (R$ bilhões)
Algodão 1.585 8.698 5.089 3.609 -5,4 (-0,2)
Cana-de-açúcar 4.365 39.525 46.985 -7.460 -7,6 (-0,6)
Soja 20.876 120.867 88.381 32.486 -7,7 (-2,7)
Café 1.223 11.055 8.708 2.346 -6,4 (-0,2)
Cultivo de cereais 2.052 17.626 11.815 5.811 -4,4 -(0,3)
Total (algodão, cana, soja, café, cereais) 30.102 197.772 160.978 36.793 -9,6 (-3,9)
Total (todas atividade agropecuárias) 37.340 345.240 254.146 91.093 -5,1 (-4,8)

Fonte: Microdados do censo agropecuário11.

O Sindiveg ainda avalia os impactos dos disso, deve-se considerar que um aumento
tributos sobre os preços dos alimentos na in- no custo de produção pode desestimular a
flação. Porém, o estudo dele assume que as oferta desses produtos em virtude do menor
relações de demanda e oferta não se alteram lucro e impactar os preços internacionais no
com o aumento dos preços (elasticidade-preço médio prazo.
da demanda por agrotóxicos é nula).
Ademais, boa parte dos agricultores, prin- O fim dos benefícios fiscais,
cipalmente familiares, sequer sofrerá impacto transição agroecológica e a cesta
nos seus custos, na lucratividade, tampouco básica
mudarão o preço do seu produto agrícola.
No Brasil, está se falando da maioria dos es- Uma questão relevante diz respeito a como
tabelecimentos agropecuários, cerca de 3,2 a tributação do s agrotóxicos afetará o preço
milhões (64%), que não utilizam agrotóxicos. dos alimentos, em especial da cesta básica.
No entanto, eles só representam 28% do total Como se observa na tabela 4, um aumento
da receita gerada da agropecuária. Isso signifi- de 15% nos agrotóxicos poderia causar uma
ca que apenas 36% dos estabelecimentos e 72% redução de 5,1% na lucratividade dos pro-
do total da receita agropecuária – representada dutores agrícolas brasileiros. Contudo, para
basicamente pelo agronegócio exportador – aqueles que produzem exclusivamente soja,
serão afetados por essas novas medidas fiscais. algodão, cana-de-açúcar, café e cereais, essa
Por último, os impactos seriam pouco sen- redução seria de 9,6%. Seriam justamente esses
tidos uma vez que, de acordo com os dados do produtores os principais prejudicados de um
Ibama6, apenas seis produtos agrícolas respon- eventual aumento dos preços dos agrotóxicos
dem por 85% das vendas dos agrotóxicos no decorrentes do fim da desoneração tributária
Brasil (soja, cana-de-açúcar, algodão, milho e, dessa forma, estariam elevando o impacto
safrinha, milho, trigo, café). São commodi- médio na lucratividade da agricultura brasi-
ties agrícolas, e, nesses casos, os produtores leira. Ao mesmo tempo, é importante ressalvar
são tomadores de preços, e não formadores. que tais produtores representam a parcela eco-
Isso significa que seus preços são ditados nomicamente mais poderosa do agronegócio
pelo mercado internacional, e não pela for- brasileiro que, em grande medida, exportam
mação de custos no mercado local. Apesar commodities para fora do País. Isso significa

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244 Soares WL, Cunha L, Porto MF

que, por serem tomadores de preços, e não reduzido em 1,9%, valor muito distante da
formadores, já que seus preços são ditados pelo média encontrada no estudo do Sindiveg7.
mercado internacional, e não pela formação Reforçando, mesmo que os defensores dos
de custos no mercado local, os consumidores benefícios fiscais aos agrotóxicos aleguem
dessas commodities não seriam afetados pelo que a quantidade utilizada pelos agriculto-
aumento do custo dos agrotóxicos. Em última res não será influenciada pelo preço desse
instância, o impacto maior seria na lucrativi- insumo, já que permaneceria a mesma, a ‘tec-
dade do agronegócio. nicamente necessária’, o lucro do produtor,
Já os agricultores com atividade principal principalmente das grandes monoculturas
classificada, por exemplo, como cultivo do como soja, algodão e cana-de-açúcar, redu-
feijão, provavelmente, teriam um impacto ziria sensivelmente. Talvez isso, em médio
na lucratividade bem menor e seus preços e longo prazo, o faça racionalizar mais seu
seriam menos majorados. Por exemplo, os consumo de agrotóxicos, até mesmo o enco-
demais estabelecimentos não classificados rajando a buscar alternativas economicamente
nessas cinco grandes commodities agrícolas viáveis e ecologicamente mais sustentáveis.
teriam, em média, uma redução de 1,7% na Possivelmente, esse efeito possa ser ainda mais
lucratividade, muitas delas com elevado peso rápido e intenso no produtor diversificado, o
na cesta básica brasileira, como as culturas pequeno e médio agricultor, menos impactado
alimentícias de feijão, mandioca, hortaliças, pela tributação dos agrotóxicos. Por menor que
frutas e legumes em geral. seja o aumento no custo dos agrotóxicos, o seu
Esse resultado é corroborado por um estudo negócio ainda permite, no curto prazo, procu-
de impacto nas principais lavouras do estado rar soluções tecnológicas de controle de pragas
de Santa Catarina realizado pelo Centro de e doenças que viabilizem a transição para uma
Socioeconômica e Planejamento Agrícola da agricultura mais sustentável e saudável. A sua
Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão demanda por agrotóxicos estaria mais sensível
Rural (Cepa/Epagri). Segundo o estudo, que a aumentos nos preços dos agrotóxicos do
teve um universo de 97,4% do valor da produ- que a um grande monocultor, ou seja, nesse
ção agrícola daquele estado, o efeito no custo caso específico, o tributo aplicado teria uma
de produção de uma elevação no ICMS de função extrafiscal ao reduzir a demanda por
0% para 17% teria como consequência uma agrotóxicos, ao mesmo tempo incentivando
redução na renda do produtor variando de uma transição agroecológica, por exemplo.
0,4% (mandioca e banana) a 4,3% (uva). Nesse A indústria também argumenta que o fim
estudo, todas as culturas tiveram impactos dos benefícios fiscais aumentaria os custos de
na renda menor do que os 5,1%, que repre- alguns insumos utilizados na agroecologia e na
senta a média calculada no presente artigo produção orgânica, uma vez que a maioria das
com base nos dados censitários para o Brasil. substâncias que permitem o controle biológico
As estimativas da Epagri, empresa pública são classificadas como agrotóxicos e, portan-
vinculada ao governo do estado de Santa to, valem-se também dessas benesses. Para
Catarina, mostra que as culturas alimentícias esse caso, um exemplo a seguir é o da França,
constituintes da cesta básica e destinadas ao onde há uma taxa reduzida para produtos per-
mercado doméstico terão impactos muito pe- mitidos na agricultura orgânica, enquanto a
quenos naquele estado: tomate (3,2%), feijão maior taxa é para agrotóxicos cujas substân-
(2,7%), maçã (2,7%), trigo (1,9%), cebola (1,7%), cias ativas são consideradas mutagênicas e
milho (1,5%), arroz (1,4%), alho (1,3%) e batata- carcinogênicas. Nesse país, as receitas obtidas
-inglesa (1,1%)8. Mesmo a soja, cultura menos com a taxação também são direcionadas dire-
expressiva em Santa Catarina em relação aos tamente às operações de tratamento de corpos
demais da região Sul, teve seu rendimento d’água contaminados por agrotóxicos e outra

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Fim dos benefícios fiscais aos agrotóxicos, sustentabilidade da agricultura e a saúde no Brasil 245

parte é redirecionada ao programa nacional utilizados para potencializar os benefícios


de redução ao uso de agrotóxicos. No caso sociais à sociedade16. No entanto, quando
da França, ainda há o banimento total para eles são concedidos aos agrotóxicos, há um
substâncias nocivas às abelhas. estímulo ao custo social relacionado com o
Esse último ponto é importante para a pro- seu uso, fato que é contrassenso do prescrito
dutividade agrícola, pois, diferentemente do na literatura internacional17,18. Esses custos
caso francês, aqui no Brasil, os mesmos agentes (externalidades negativas) são refletidos
econômicos que advogam pela manutenção dos nas políticas públicas da seguridade social e
incentivos fiscais aos agrotóxicos demonstram do meio ambiente19-22. Portanto, conclui-se
pouca importância para a polinização de suas que a concessão de benefícios fiscais distor-
lavouras, preocupando-se mais com a qualida- ce a eficiência econômica dos agrotóxicos
de das sementes ou mudas, fertilização do solo percebida pelos agricultores. Isso ocorre
e aplicação de produtos químicos do que com tanto por causa da desoneração fiscal quanto
os polinizadores, responsáveis por boa parte pela não internalização dos danos sociais,
da produtividade agrícola. Lamentavelmente, ambientais e à saúde.
os benefícios econômicos da polinização são A sistemática constitucional já apresentou
pouco percebidos pelos agricultores brasileiros casos semelhantes de sobreposição de direitos
e instituições que apoiam o agronegócio. e princípios em que o STF precisou decidir
Para se ter uma ideia da sua importância qual valor será mais importante que o outro
econômica, os serviços ecossistêmicos de poli- em cada situação. Contudo, a partir do ponto
nização para a produção de alimentos no País de vista técnico, científico e jurisdicional,
foram estimados em R$ 43 bilhões em 2018, considerando apenas os direitos elencados
valor ‘gratuito’, despercebido pelos produtores, acima, é evidente que os benefícios fiscais aos
e supera em mais de R$ 10 bilhões o total de agrotóxicos são inconstitucionais. A literatu-
gastos com a compra de agrotóxicos no Brasil. ra internacional especializada já construiu
O agronegócio também deveria avaliar quais amplo consenso que isenções em tributos do
são os impactos dos agrotóxicos nos serviços tipo Imposto sobre Valor Agregado (IVA) não
de polinização e, consequentemente, na pro- são eficientes, aumentam a regressividade
dutividade, lucratividade, competitividade do dos tributos, não são refletidos nos preços e
setor; e até mesmo no preço dos alimentos e da distorcem a eficiência econômica dos bens
cesta básica, tendo em vista que cerca de 76% beneficiados, o que influencia a tomada de
das plantas cultivadas no País são dependentes decisão do agente econômico23,24. Portanto,
de polinizadores e polinização14. não há um benefício concreto refletido no
Além disso, os custos para concessão de preço dos alimentos que corrobore o argu-
benefícios fiscais adotados como estratégia mento dos incentivos fiscais devido à essen-
nos casos do ICMS e IPI não se resumem ao cialidade do produto.
que se deixa de arrecadar, mas também aos Nota-se que o essencial a ser a buscado
custos de comando e controle para a verifi- seriam alimentos baratos e de qualidade, e
cação da eficácia desses incentivos. Porém, não a redução isolada dos custos de um insumo
conforme auditoria realizada pelo Tribunal notoriamente danoso, principalmente nas
de Contas da União (TCU), um dos achados condições de vulnerabilidade social e insti-
foi exatamente o não acompanhamento dos tucional que dificultam seu controle25. Por
efeitos decorrentes dos incentivos fiscais aos isso, o correto seria desonerar os alimentos
agrotóxicos no âmbito da União15. e a própria cesta básica, ou então aplicar
Os incentivos fiscais representam uma mecanismos de distribuição de renda para
forma de intervenção do poder público aquisição delas para os grupos socialmente
nas relações econômicas, e deveriam ser mais vulneráveis23.

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246 Soares WL, Cunha L, Porto MF

Considerações finais o custo da certificação do produtor orgânico.


Trata-se de um processo em pleno andamento,
De acordo com a teoria econômica predomi- que proporcionou o crescimento de quase
nante, a alteração do preço de equilíbrio no 1.000% dos estabelecimentos certificados
mercado derivada da tributação é absorvida como orgânicos quando se comparam os dois
pela demanda e pela oferta de acordo com censos agropecuários, de 2006 contra 2017.
a elasticidade de ambas as curvas. Ou seja, Infelizmente, o Programa Nacional de Redução
quanto mais sensível ao preço é o agente eco- de Agrotóxicos (Pronara), que mesmo durante
nômico, menor será sua parcela de absorção o governo Dilma Rousseff foi sistematicamente
do montante de alteração do preço decorrente barrado pelo Ministério da Agricultura dirigi-
da tributação. do, à época, por Katia Abreu, foi efetivamente
A análise dos impactos do fim dos sub- inviabilizado nos governos que se seguiram
sídios aos agrotóxicos para o preço dos desde então.
alimentos e a cesta básica precisa consi- Observa-se que a discussão jurisdicional
derar diversos fatores. Dependendo da da admissibilidade dos benefícios fiscais
cultura, haverá um impacto maior ou menor concedidos aos agrotóxicos estabelecerá
relacionado com a quantidade de uso de limites a alguns direitos em detrimento de
agrotóxicos nela. Uma análise mais precisa outros, seja a essencialidade dos bens ou o
exigiria detalhar para cada cultura relevante meio ambiente equilibrado e a saúde. Trata-
como as transações de venda de agrotóxicos se, portanto, de um debate político sobre a
ocorrem nos vários momentos da cadeia e primazia da lógica econômica em detrimen-
afetam o custo final, bem como os diversos to da vida e do meio ambiente. A primazia
relacionamentos de oferta e demanda que econômica dominante gera um desequilíbrio
influenciam o preço final dos alimentos. que atenta contra o Estado Democrático de
Os resultados encontrados neste trabalho Direito, a vida e as futuras gerações. Nesse
revelam que os produtores de commodities sentido, a continuidade dos subsídios aos
serão os mais prejudicados, tendo em vista que agrotóxicos como política pública oficial
o aumento de custos reduziria sua competiti- sem que sejam avaliados e debatidos seus
vidade, principalmente em curto prazo, consi- efeitos demonstra claramente a perma-
derando que o maior custo-produção não seria nência e até mesmo o agravamento de uma
repassado ao preço da commodity. Todavia, democracia de baixa intensidade no País.
a recente desvalorização cambial aumentou Independentemente do resultado do jul-
a competitividade desses produtores rurais, gamento da ADI 5553, o problema das ex-
de modo que o aumento da carga tributária ternalidades negativas decorrentes do uso
não prejudicará a pujança do agronegócio de agrotóxicos não se esgota com o fim dos
brasileiro, um dos setores mais poderosos da incentivos fiscais e eles, pois dependem da
economia brasileira. formulação de uma política pública consis-
Por outro lado, deve-se esperar no curto tente e abrangente. Tal objetivo exigiria uma
prazo algum impacto sobre as olericulturas que coordenação de esforços voltado à construção
utilizam bastante agrotóxicos. Felizmente, as de uma política pública mais equilibrada no
verduras têm potencial para serem produzidas âmbito do setor agropecuário que garantisse
com técnicas sustentáveis, mas dependem a defesa da saúde da população e a sustenta-
de um conjunto de políticas públicas que es- bilidade ambiental. Diante das assimetrias
timulem a transição agroecológica, como a decorrentes do poder econômico e político do
implementação dos sistemas participativos agronegócio, em especial do setor exportador,
de garantias e controle social da produção esse objetivo é difícil de ser alcançado sem
orgânica de forma a desonerar e flexibilizar mudanças importantes na sociedade.

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Fim dos benefícios fiscais aos agrotóxicos, sustentabilidade da agricultura e a saúde no Brasil 247

Colaboradores análise e discussão dos resultados e para a


elaboração e revisão textual. Porto MF (0000-
Soares WL (0000-0001-7993-7418)* contri- 0002-9007-0584)* contribuiu para a discussão
buiu para o desenvolvimento da metodologia, dos resultados, elaboração da introdução e
cálculo, análise e discussão dos resultados, conclusão do manuscrito, assim como sua
e produção textual do manuscrito. Cunha L revisão final. s
(0000-0002-4442-613X)* contribuiu para a

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biental: aplicações, políticas e teoria. São Paulo: Cen-
Recebido em 17/08/2020
gage Learning, 2016. p. 91-112. Aprovado em 21/01/2021
Conflito de interesses: inexistente
Suporte financeiro: este trabalho foi parcialmente financiado pelo
18. Thomas JM, Callan J. Soluções Econômicas para Instituto Ibirapitanga em parceria com a Associação Brasileira de
Saúde Coletiva (Abrasco)
Problemas Ambientais: A Abordagem de Mercado.
In: Thomas JM, Callan J. Economia ambiental: apli-
cações, políticas e teoria. São Paulo: Cengage Lear-
ning, 2016. p. 113-140.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 236-248, JUN 2022


ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE 249

Territórios Saudáveis e Sustentáveis (TSS)


no Distrito Federal: agroecologia e impacto
dos agrotóxicos
Healthy and Sustainable Territories (TSS) in the Federal District:
agroecology and the impact of pesticides

André Luiz Dutra Fenner1, Vicente Eduardo Soares de Almeida1, Karen Friedrich2, Ana Paula
Andrade Silva Milhomem1

DOI: 10.1590/0103-11042022E217

RESUMO O modelo agrícola predominante no Brasil apresenta disparidades sociais, econômicas e ambientais
acentuadas. Tal cenário consiste em um grande desafio para o avanço da agroecologia, um dos caminhos
apontados pelas Nações Unidas para o alcance dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e o
desenvolvimento territorial de forma sustentável. Assim, o presente estudo teve como objetivo analisar
os limites e os desafios na implantação de estratégias territoriais sob a ótica dos Territórios Saudáveis
e Sustentáveis (TSS), tendo como eixo estruturante a controvérsia agroecologia x agrotóxicos. O artigo
enfoca sua análise na Região Integrada de Desenvolvimento do Distrito Federal e Entorno (Ride-DF),
na forma de pesquisa do tipo prospectiva, com revisão de literatura e recolha documental pertinente.
Conclui-se que, a despeito do seu potencial, são escassas as informações sobre a temática, especialmente
na efetividade e eficácia da estratégia de implantação dos TSS e o uso da agroecologia como suporte. O
estudo depreende ainda que há a necessidade de aprofundar a realização de novas pesquisas e a construção
de estratégia de intervenção territorial sob a ótica dos TSS.

PALAVRAS-CHAVE Território sociocultural. Agroecologia. Agrotóxicos.

ABSTRACT The predominant agricultural model in Brazil presents marked social, economic, and environ-
mental disparities. This scenario consists of a great challenge for the advancement of Agroecology, one of the
ways pointed out by the United Nations for the achievement of the Sustainable Development Goals (SDGs)
and the territorial development in a sustainable way. Thus, the present study aimed to analyze the limits and
challenges in the implementation of territorial strategies from the perspective of Healthy and Sustainable
Territories (TSS), having the agroecology vs. agrochemicals controversy as a structuring axis. The essay
focuses its analysis on the Integrated Development Region of the Federal District and Surroundings (Ride-
DF), in the form of prospective research, with literature review and pertinent documentary collection. It is
concluded that, in spite of its potential, information on the theme is scarce, especially on the effectiveness
and efficiency of the TSS implementation strategy and the use of Agroecology as a support. The study also
concludes that there is a need to deepen the accomplishment of new research and the construction of new
1 Fundação Oswaldo Cruz territorial intervention strategies from the perspective of the TSS.
(Fiocruz) – Brasília (DF),
Brasil.
andre.fenner@fiocruz.br KEYWORDS Sociocultural territory. Agroecology. Agrichemicals.

2 Fundação Oswaldo Cruz

(Fiocruz), Escola Nacional


de Saúde Pública Sergio
Arouca (Ensp) – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil.

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 249-261, JUN 2022
250 Fenner ALD, Almeida VES, Friedrich K, Milhomem APAS

Introdução que perpassam por grande parte das vertentes


desse movimento.
Os desafios para implantação de um modelo de Atualmente, a temática dos agrotóxi-
desenvolvimento ambientalmente equilibrado, cos surge como símbolo dessa disputa de
socialmente justo e economicamente viável modelos. De um lado, o agronegócio, que
está na agenda dos debates e construção de sintetiza o grande latifúndio monocultor e
políticas públicas e privadas em todo o globo1,2. exportador de commodities agrícolas, pro-
A agroecologia, por sua vez, é considerada motor da devastação ambiental e gerador
como um dos caminhos referenciais para o de doenças. De outro, a agroecologia, as-
avanço dessa agenda, especialmente na busca sociada à produção de pequena escala das
do atingimento das metas estabelecidas nos populações do Campo, da Floresta e das
Objetivos de Desenvolvimento Sustentável Águas (CFA), ambientalmente sustentável
(ODS), com destaque para a promoção da se- e saudável8-11.
gurança e soberania alimentar e nutricional, Controvérsias ainda mais recentes sobre o
além da biodiversidade e combate ao aqueci- uso de sementes transgênicas e aumento do
mento global3. uso de agrotóxicos são apresentadas neste
Na dimensão econômica, sabe-se que sis- nesse contexto de embate de modelos de
temas agroecológicos são mais viáveis que desenvolvimento, acompanhadas de análise
os tradicionais, capazes de gerar mais renda, da atuação do Estado e dos movimentos de
empregos e menores custos operacionais. É resistência12.
o que demonstra um estudo4, comparando É nesse bojo internacional e nacional
o Valor Adicionado sobre o Valor Bruto de que a agroecologia se apresenta no Brasil;
Produção (VA/VBP), que seria o resultado sobrevivendo e resistindo às investidas e
do valor obtido sobre os custos de produção, retrocessos, mas também anunciando e
observando melhor desempenho econômico apontando caminhos para um desenvolvi-
de propriedades de base agroecológica em 17 mento sustentável mais justo e inclusivo.
experiências na Europa. Dessa forma, os Territórios Saudáveis e
Esse movimento, normalmente crítico ao Sustentáveis (TSS) inserem-se como uma
modelo vigente de desenvolvimento, também estratégia ampla de articulação entre os seg-
pode espelhar a chamada ‘nova economia de mentos do Estado e sociedade civil organiza-
recursos naturais’, agregando ao seu contex- da, em que a promoção do desenvolvimento
to os serviços ambientais e ativos culturais e local perpassa o eixo da agroecologia como
sociais de determinados territórios5. De forma uma das ferramentas estruturantes desse
mais ampla, a dinâmica agroecológica pode ser processo 13, e o combate aos impactos dos
inserida ainda na perspectiva de dinâmicas agrotóxicos, como um tema transdisciplinar
ecossociais, aqui entendidas como experi- desse sistema, como se verá adiante.
ências sociais com forte conteúdo ecológico, Assim, o presente estudo tem como ob-
que trazem em seu bojo soluções inovadoras jetivo analisar os limites e os desafios para
e inclusivas de desenvolvimento cultural, implantação do TSS, tendo por base em-
econômico e social, no campo e nas cidades6. pírica a análise das controvérsias entre os
No Brasil, o processo de adoção social da modelos e propostas de desenvolvimento
agroecologia data oficialmente da década de territorial pautados na dicotomia agroeco-
1970 e perpassa por diversas etapas de orga- logia x agrotóxicos.
nização e constituição conceitual e de lutas Como estudo de caso, adotou-se o território
sociais e econômicas7, com destaque para os da Região Integrada de Desenvolvimento do
embates sobre o modelo de desenvolvimento Distrito Federal e Entorno (Ride-DF), que
agrário do País, que são abordagens críticas compreende o núcleo administrativo central

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 249-261, JUN 2022


Territórios Saudáveis e Sustentáveis (TSS) no Distrito Federal: agroecologia e impacto dos agrotóxicos 251

do Brasil e mais 32 municípios, abrangendo os histórica da comercialização de agrotóxicos


territórios de Brasília-DF, e parte dos estados no País, notou-se o aumento desse comércio,
do Goiás-GO e de Minas Gerais-MG14. passando de 623.353.689 quilogramas em 2007
O presente texto está dividido em quatro para 1.552.998.056 quilogramas em 2014, o que
partes, sendo a primeira uma descrição mais representou um aumento de 149,14%17.
detalhada dos impactos dos agrotóxicos para O consumo per capital, ou seja, quilos (kg)
saúde e ambiente, especialmente no Brasil, de agrotóxicos por hectare (ha) plantado,
no DF e entorno; a segunda parte tratará da também se intensificou em cerca de 124%
agroecologia e da necessidade de adoção de entre os anos de 2000 e 2012, indicando ainda
metas sustentáveis para o modelo de desen- a concentração do uso desses produtos em
volvimento global, nacional e local; a terceira commodities agrícolas na ordem de 44,31%
retrata a construção conceitual e metodológica (soja), 13,07% (milho) e 7,41% (algodão)15.
da abordagem dos TSS como estratégia de Esse quadro de elevação do consumo, não
promoção do desenvolvimento saudável e sus- raramente, é acompanhado da incidência
tentável local por meio da agroecologia como maior de registro de casos de intoxicação.
eixo estruturante; a quarta parte apresenta Destaca-se a região Centro-Oeste, principal
uma análise sintética e transdisciplinar dos celeiro de produção de grãos no País.
limites e desafios para implantação do desen- Neste contexto, vários estudos têm eviden-
volvimento territorial saudável e sustentável ciado a contaminação ambiental e a intoxicação
à luz dos itens anteriores. Por último, uma de populações rurais em todo Brasil, expondo
conclusão, contendo os limites do presente em detalhes os mecanismos e as consequências
ensaio e as sugestões de novos estudos. desse processo de contaminação ampliada e
suas interações, limites e desafios com as po-
líticas de promoção da saúde no campo18-21.
Revisão de literatura Estudos brasileiros têm demonstrado a con-
taminação ambiental de agrotóxicos, mesmo
em regiões distantes dos locais de pulveriza-
Impactos dos agrotóxicos na saúde e ção, incluindo parques nacionais e reservas
ambiente: um modelo envenenado indígenas19,22.
Dentre os 400 Ingredientes Ativos (IA) de
A cada ano, cerca de 26 milhões de casos de agrotóxicos identificados com algum potencial
intoxicação por agrotóxicos são registrados de danos à saúde e ao ambiente sendo utiliza-
no mundo. Destes, 3 milhões de casos re- dos no Brasil, cerca de 52 IA foram classifica-
querem hospitalização; sendo 750 mil com dos pela agência americana como prováveis23
registro de casos de intoxicação crônica e ou possíveis cancerígenos para seres humanos;
220 mil casos fatais15. e 24, com evidências sugestivas do potencial
Nos Estados Unidos da América (EUA), são cancerígeno para seres humanos, alguns sem
registrados de 10 a 15 mil novos casos de câncer informações suficientes para avaliar o poten-
por ano associados ao uso de agrotóxicos. Os cial cancerígeno para seres humanos24.
custos decorrentes da contaminação por agro- Segundo Almeida et al.15, analisando o uso
tóxicos ultrapassam o valor de US$ 1 bilhão/ comparativo de agrotóxicos autorizados em
ano, distribuídos em hospitalização, tratamento, diversos países, no Brasil, alguns IA também
mortes e perdas de capacidade laboral16. foram classificados quanto à desregulação
No Brasil, por sua vez, o padrão de endócrina, sendo que 17 deles receberam clas-
consumo de agrotóxicos tem se intensifi- sificações com potencial para seres humanos
cado. Documento oficial do Ministério da ou vida selvagem. Ressalta-se que alguns IA
Saúde (MS) aponta que, ao se analisar a série ficaram simultaneamente em mais de uma

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 249-261, JUN 2022


252 Fenner ALD, Almeida VES, Friedrich K, Milhomem APAS

categoria (Alacloro, Atrazina, 2,4-D e Malatiol). Segundo o estudo em tela, os principais IA


Na lista dos 77 agrotóxicos candidatos a serem responsáveis pela intoxicação dos agricultores
substituídos (CPS) da Comunidade Europeia foram: methamidofos (11), piretroides (15) e
(CE), 68% estão autorizados no Brasil. glifosato (19). Os principais sintomas relatados
pelos trabalhadores se referem a distúrbios
IMPACTO DOS AGROTÓXICOS NA RIDE-DF neurológicos, cefaleias, pruridos, náuseas, ir-
ritabilidades, eczemas, espasmos abdominais,
A Ride foi instituída pela Lei Complementar dermatites, depressão, tremores, entre outros.
nº 94/1998, compreendendo o DF, 19 muni- Acidentes rurais ampliados com intoxicação
cípios do estado de Goiás e 3 municípios do de dezenas de trabalhadores rurais foram re-
estado de Minas Gerais. Em seguida, a Lei gistrados em matérias jornalísticas de jornais
Complementar nº 163, passou a incluir mais de grande circulação nacional, envolvendo
10 municípios na região, chegando ao estado ainda processos judiciais contra multinacio-
atual de 32 municípios14,25. nais, como a Du Pont29.
No DF, os registros de casos de contami- No que se refere aos corpos d’água, estudo
nação da água e intoxicação da população recentemente publicado aponta presença
por agrotóxicos não diferenciam do quadro de vários herbicidas na Bacia do Rio São
nacional. Agravante da situação é o fato de Marcos (Rio Samambaia), na divisa do DF
que a contaminação da população é desigual, com o estado de Goiás, acusando a presença
e parece seguir uma lógica inversamente pro- de herbicidas banidos em vários países, como
porcional à renda, mas diretamente ligada ao atrazina, associado principalmente a toxidade
lugar de moradia, situado nas regiões admi- reprodutiva e desregulação endócrina – bem
nistrativas onde predominam o monocultivo como a presença de glifosato, considerado
e o plantio de grãos, especialmente da soja26. provavelmente cancerígeno e com uso restrito
No entanto, essa realidade não é privilé- na CE. Os autores ainda alertam que tais subs-
gio apenas da área produtora de grãos, mas tâncias foram detectadas em níveis superiores
também na região olerícola tradicional do DF. ao limite de quantificação30.
Estudo feito com agricultores produtores de Ainda quanto às questões ambientais
morango em sistema convencional indica o relacionadas com o uso de agrotóxico no
uso compulsivo de agrotóxicos por cerca de DF, é necessário o registro da reunião or-
93% dos entrevistados, sendo que a maioria dinária nº 917, da Câmara Especializada de
dos agrotóxicos utilizados foram considerados Agronomia (CEAgro), do Conselho Regional
extremamente ou altamente tóxicos27. de Engenharia e Agronomia (Crea-DF); que,
Nesse sentido, a pesquisa realizada com reunida em Brasília, em 2 de julho de 2020, por
dados de 382 trabalhadores do DF e Entorno meio de videoconferência, ao discutir o uso do
(que envolve trabalhadores da Ride-DF) agrotóxico Fipronil e a causa de mortandade
atendidos no Ambulatório de Toxicologia de abelhas no País e considerando ser o órgão
Ocupacional do Centro de Referência em decisório da estrutura básica do Crea-DF que
Saúde do Trabalhador do Distrito Federal tem por finalidade apreciar e decidir os assun-
(Cerest), entre 2009 e 2013, apresentou re- tos relacionados à fiscalização do exercício
sultados preocupantes com a situação dessa profissional, constituindo a primeira instância
população. Quase 70% apresentaram alteração de julgamento no âmbito de sua jurisdição,
na atividade de butirilcolinesterase, marcador conforme art. 50 do Regimento Interno do
de exposição de agrotóxicos organofosforados Crea-DF; considerando que são atribuições
e carbamatos, com mais de 57% dos trabalha- das Câmaras Especializadas conforme art. 46
dores oficialmente considerados intoxicados, da Lei nº 5.194/66, emitiu a decisão CEAgro nº
e, destes, mais de 61% eram agricultores28. 00154/2020, que determina a necessidade de:

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 249-261, JUN 2022


Territórios Saudáveis e Sustentáveis (TSS) no Distrito Federal: agroecologia e impacto dos agrotóxicos 253

1) à Secretaria de Relações Institucionais/ Institucionais/Coordenadoria de Comunicação


Coordenadoria de Comunicação Social que Social e a Superintendência Técnica / Gerência
informe aos profissionais e empresas responsá- de Fiscalização informe à CEAgro sobre os an-
veis pelo uso de agrotóxicos no Distrito Federal damentos dos trabalhos para acompanhamento
publicando o seguinte texto elaborado pela dos conselheiros31.
CEAgro nos diversos meios de comunicação
disponíveis ao Conselho: ‘É crescente o número Dessa feita, observa-se que, tanto pelo
de casos de mortandade de colmeias, o que aspecto da saúde coletiva, como sob a ótica
tem preocupado muitos apicultores em todo econômica e agronômica, o DF insere-se em
o País. E o problema também afeta os consu- um contexto de grande preocupação pelos
midores de mel, própolis e pólen produzidos impactos decorrentes do uso de agrotóxicos,
pelas abelhas. Além do prejuízo ocasionado podendo afetar, por sua vez, eventuais esfor-
aos apicultores e consumidores, os agricultores ços na promoção do desenvolvimento de TSS.
também são impactados, pois é sabido que os Adere-se a esse contexto, no caso em especí-
polinizadores contribuem para a produtivida- fico, a redução de ações de fiscalização como
de de várias culturas de interesse econômico, bem demarcado na ata de reunião da nº 867,
como a fruticultura e as grandes culturas. de 3 de agosto de 2017.
Até pouco tempo não se sabia a causa desse Segundo o documento, houve uma queda
problema, mas depois do laudo emitido pela considerável na fiscalização entre 2016 e 2017,
Companhia Integrada de Desenvolvimento principalmente na área de agrotóxicos, fato que
Agrícola de Santa Catariana – Cidasc, no final perdura até o presente momento, conforme
de 2019, confirmou-se a presença do agrotóxico apurou o presente autor em entrevista com alguns
Fipronil em 93% das colmeias atingidas pela dos atuais membros e ex-membros da referida
mortandade de abelhas naquele Estado. Esse câmara técnica. Abaixo, o excerto da ata:
agrotóxico tem registro junto ao Ministério da
Agricultura para o controle de insetos e cupins 6.0.0 - Assuntos para apreciação -. 6.1.0 -
por meio de aplicação foliar e tratamento de Departamento de Fiscalização - Apresentação
semente. Por ser um produto altamente tóxico do Relatório 1º trimestre/2017 - O conselheiro
para as abelhas, é recomendado não o aplicar Kleber Santos informou que a CEAGRO, dentro
durante a floração das culturas agrícolas. Os do prazo estipulado, fez observações a respeito
Engenheiros Agrônomos e Florestais têm um da minuta do Manual de Fiscalização; entretan-
papel importante para evitar esses danos eco- to, até o momento, não recebeu resposta da
nômicos e ambientais. Ao prescreverem esse Diretoria de Fiscalização sobre as observações
agrotóxico devem destacar a recomendação da Câmara Especializada e sobre a situação de
no Receituário Agronômico para que os agri- tramitação do Manual de Fiscalização; logo, a
cultores não apliquem esse produto durante a Câmara Especializada de Agronomia demanda
floração. Os profissionais e as empresas que a devida resposta. Percebeu que a fiscalização
comercializam o agrotóxico serão orientados caiu consideravelmente em relação ao ano an-
pelo CREA-DF o qual também observará essa terior, principalmente na área dos agrotóxicos.
questão nas ações de fiscalização’; Observa que o Relatório da Fiscalização durante
o primeiro trimestre de 2017 está superficial
2) à Superintendência Técnica/Gerência de e dificulta análise qualitativa da Fiscalização,
Fiscalização, considerando o texto acima ela- inclusive a respeito da tipificação da fiscalização
borado pela CEAgro, providencie ‘a fiscaliza- na Agronomia32.
ção’ e orientação aos profissionais e empresas
quanto ao uso do agrotóxico em referência. Assim sendo, em nível regional, os impac-
Solicita também que a Secretaria de Relações tos na saúde e ambiente promovidos pelo uso

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 249-261, JUN 2022


254 Fenner ALD, Almeida VES, Friedrich K, Milhomem APAS

de agrotóxicos configura-se como obstáculo No entanto, a partir de 1980, esse conceito


ao desenvolvimento sustentável de regiões e passou a ter outra conotação, sendo entendida
territórios consideráveis do País. Em xeque, como uma ciência em construção, cujos prin-
portanto, o modelo agrícola vigente, definido cípios e bases epistemológicas permitem, de
pelo presente autor como um ‘modelo agrícola certa forma, inserir a inclusão social, reduzir os
envenenado’, em que poucos são os privilegia- danos ambientais e fortalecer a segurança ali-
dos, e, muitos, incluídas as demais espécies mentar e nutricional, com a oferta de alimentos
de vida do planeta, negativamente afetados33. sadios e maior sustentabilidade dos sistemas
produtivos, envolvendo abordagens inter e
O modelo de desenvolvimento global transdisciplinares. Nesse sentido, podem-se
e sua interface com a agroecologia mencionar as contribuições da sociologia
(Sevilla Guzmán, Woodgate, Redclift), da
A crise ambiental reporta-se à necessária economia ecológica (Martinez-Alier, Xavier
adoção de modelos mais sustentáveis para Simon), da antropologia (Palenzuela, Escobar),
promoção do desenvolvimento econômico e da história (González de Molina) e de outras
inclusivo que perpassam por objetivos e metas disciplinas (Caporal; Altieri).
que, em tese, podem dialogar diretamente ou Assim, vê-se a agroecologia como uma
indiretamente com os princípios e diretrizes
da agroecologia, tais como: Objetivo 2. Acabar importante ferramenta para a promoção das
com a fome, alcançar a segurança alimentar complexas transformações sociais e ecológicas
e melhoria da nutrição e promover a agri- necessárias para assegurar a sustentabilidade
cultura sustentável; Objetivo 8. Promover o da agricultura e das estratégias de desenvol-
crescimento econômico sustentado, inclusi- vimento rural36(37).
vo e sustentável, emprego pleno e produtivo
e trabalho decente para todos; Objetivo 11. No Brasil, o movimento agroecológico
Tornar as cidades e os assentamentos humanos emergiu fortemente nos anos 1980, por meio
inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis; dos Encontros Brasileiros de Agricultura
Objetivo 12. Assegurar padrões de produ- Alternativa (EBAA), chegando a seu declínio
ção e de consumo sustentáveis; Objetivo 13. nos anos 1990, com o avanço do programa de
Tomar medidas urgentes para combater a reformas neoliberais e a extinção da Empresa
mudança climática e seus impactos; Objetivo Brasileira de Extensão Rural (Emater) em
15. Proteger, recuperar e promover o uso sus- vários estados, sendo retomada sua articulação
tentável dos ecossistemas terrestres, gerir de no início dos anos 2000.
forma sustentável as florestas, combater a Assim, no ano de 2003, teria sido realizado
desertificação, deter e reverter a degradação o I Congresso Brasileiro de Agroecologia, e, em
da terra e deter a perda de biodiversidade; 2004, a constituição da Associação Brasileira
Objetivo 17. Fortalecer os meios de implemen- de Agroecologia (ABA), que congrega os
tação e revitalizar a parceria global para o quadros técnicos envolvidos com trabalhos
desenvolvimento sustentável1. em distintas esferas no campo da agroecologia,
Nesse contexto, faz-se necessário apresentar bem como a criação da Articulação Nacional
um breve resgate conceitual do termo agroeco- de Agroecologia (ANA) envolvendo as ONG e
logia, com sua origem associada inicialmente movimentos sociais37.
no emprego do zoneamento agroecológico, que Foi neste contexto de retomada do movi-
é a demarcação territorial da área de explo- mento agroecológico que o conceito de ‘tran-
ração possível de uma determinada cultura, sição Agroecológica’ emergiu como sendo um
em função das características edafoclimáticas movimento gradual de dimensões internas
necessárias ao seu desenvolvimento34,35. e externas aos sistemas produtivos, rumo à

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 249-261, JUN 2022


Territórios Saudáveis e Sustentáveis (TSS) no Distrito Federal: agroecologia e impacto dos agrotóxicos 255

sustentabilidade dos sistemas. Do ponto um consenso de que seus interesses na


de vista interno, tem-se três estágios de promoção dos Organismos Geneticamente
modulação para transição, sendo: Passo 1 – Modificados (OGM) refletem os interes-
Redução e racionalização do uso de insumos ses da sociedade, embora falsos axiomas
químicos; Passo 2 – Substituição de insumos; como a diminuição do uso de agrotóxicos
Passo 3 – Manejo da biodiversidade e rede- e o aumento da produtividade40.
senho dos sistemas produtivos. No aspecto Corroborando a análise acima, os dados
externo, trata-se de confrontar a concentra- de alteração no padrão de consumo de agro-
ção fundiária, mercado, políticas públicas, tóxicos no mundo e no Brasil sofreram sig-
pesquisa e extensão rural, por exemplo36. nificativa elevação em termos absolutos e
Como referência da dimensão externa da relativos, mesmo com a narrativa de redução
agroecologia, destacam-se a criação da Lei no volume de agrotóxicos após a adoção das
da Agricultura Familiar (Lei nº11.326, de sementes transgênica, o que reforça, por
24 de julho de 2006) e a Política Nacional um lado, o simbolismo dos agrotóxicos na
de Assistência Técnica e Extensão Rural agricultura como um mote de um enredo
(PNATER) (Lei nº12.188, de 11 de janeiro de desenvolvimentista adicto e desigual; e por
2010), que têm como foco a promoção do outro, a capacidade do movimento agroe-
desenvolvimento rural sustentável. Porém, cológico de resistência e anúncio de alter-
embora os anos 2000 tenham se destacado nativas a esse modelo41,42.
no avanço de vários elementos em torno da
implantação da agroecologia como referên-
cia ao desenvolvimento sustentável rural TSS como estratégia de
no Brasil, controvérsias relacionadas com a promoção da agroecologia
liberação das sementes transgênicas davam
conta que o modelo agrícola dependente de
e do desenvolvimento
insumos, especialmente agrotóxicos, estava sustentável
por se revigorar.
Também nessa década, o Brasil se tornou Os TSS são estratégias de desenvolvimento
e permanece como maior consumidor de saudável e sustentável territoriais integrais
agrotóxicos do planeta38. O confronto entre que articulam no mesmo plano os diversos
a ‘bio-hegemonia’ x movimentos de resis- seguimentos da sociedade, tais como: agentes
tência agroecológicos se instala no cenário públicos, academia e movimentos sociais13.
das disputas pelas políticas e na mobilização Segundo os autores acima, a abordagem
da sociedade e do próprio Estado39. conceitual do TSS se propõe a entender o
A autora acima apresenta um olhar so- “significado da territorialidade e da sustenta-
ciológico refinado sobre esse embate, à luz bilidade nas políticas de desenvolvimento”13,
do construto conceitual da bio-hegemonia, enfrentando ainda sua inserção nas políticas de
dissecando o modus operandi de uma reno- saúde coletiva, em que a produção sustentável
vada aliança das elites ruralistas envolvendo de alimentos se insere como eixo estruturante
o poder material, institucional e discursivo do processo. Nesse contexto, os autores apro-
de grandes corporações, decisores políti- ximam esse conceito (TSS) do campo da saúde
cos, elites agrárias e especialistas, para os e consideram que o território é a base sobre a
quais a fome é apenas uma ‘oportunidade’ qual as determinações sociais de reprodução
manipulável por grandes corporações da humana se efetivam, ou mesmo passam a cons-
indústria agrobioquímica. Aponta, ainda, tituir no objeto de análise social. Isso porque,
que essa elite busca não só fazer prevalecer ainda segundo eles, os territórios geram trans-
sua narrativa, mas, especialmente, construir formações e são transformados por processos

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256 Fenner ALD, Almeida VES, Friedrich K, Milhomem APAS

de desenvolvimento local, regional e global. metodologia a aplicação de uma matriz


Assim, é importante esclarecer como os de análise da efetividade do TSS como
referidos autores definem os TSS, ipsis litteris: estratégia de desenvolvimento – ‘Matrix
for the Analysis of the Effectiveness of
Territórios Saudáveis e Sustentáveis (TSS) Territorialized Sustainable Development
podem ser definidos como: ‘espaços relacionais’ Strategies’. A matriz avalia cerca de 56
e de pertencimento onde a ‘vida saudável’ é indicadores, distribuídos em 10 parâme-
viabilizada, por meio de ações comunitárias e tros e 3 dimensões, sendo estas: Dimensão
de políticas públicas, que interagem entre si e se Equidade (Diversidade, vulnerabilidade e
materializam, ao longo do tempo, em resultados integralidade); Dimensão Sustentabilidade
que visam a atingir o ‘desenvolvimento’ global, (Ecologia de saberes, territorialização, in-
regional e local, em suas dimensões ambientais, tersetorialidade, inclusão produtiva e redes
culturais, econômicas, políticas e sociais13. de solidariedade) e Dimensão Autonomia
(Participação e empoderamento). Segundo
Nota-se que, em termos epistemológicos, os autores, a estratégia adotada contribuiu
o TSS compreende a ‘vida saudável’ como para elevação do padrão de governança am-
condição sine qua non para reprodução social biental e sustentabilidade local43.
comunitária, em que o seu desfecho busca a Na literatura pesquisada, poucos são
promoção do ‘desenvolvimento’ em sentido os estudos sobre a eficácia dessa aborda-
amplo, envolvendo várias dimensões da vida, gem (TSS), o que reforça a necessidade de
tais como: a ambiental, cultural, econômica, aprofundamento e de mais pesquisas sobre
política e social. Insere-se, portanto, nesse o tema, tendo em vista o seu potencial de
âmbito, o movimento agroecológico em sua intervenção territorial no Brasil.
perspectiva integral, vinculando não só aos
aspectos tecnológicos, mas, sobretudo, na
perspectiva de desenvolvimento territorial. Limites e desafios do TSS
Outra abordagem conceitual próxima aos
TSS teria sido implantada em comunidades Os elementos das publicações especializadas
tradicionais no Brasil, aparentando ser uma trazidas ao debate no presente ensaio de-
experiência embrionária exitosa dessa abor- monstram a importância do enfrentamento
dagem de desenvolvimento43. da temática articulada sobre os agrotóxicos
TSS é um conceito que se encontra em e agroecologia no contexto do debate sobre
construção, busca integrar um conjunto de as estratégias de desenvolvimento territorial
ações territorializadas e contextualizadas, conduzidas sobre os principais fundamentos
tendo como princípio orientador os saberes metodológicos dos TSS em curso.
e as práticas do campo da saúde coletiva, A literatura presente aponta que, tratar da
visando contribuir para o debate acadêmico controvérsia dos agrotóxicos X agroecologia,
sobre as experiências e vivencias da socieda- é discutir a sustentabilidade dos modelos de
de civil, a construção de políticas públicas e desenvolvimento postos; os movimentos de
mediadas por processos formativos13. resistência e, sobretudo, a construção de novas
Esses autores avaliaram a efetividade estratégias socioterritoriais saudáveis e sus-
da implantação do TSS em comunidades tentáveis, especialmente em países onde há
tradicionais na região sudeste do Brasil, desigualdade social e econômica, como nos
mais precisamente nos estados do Rio de países da América Latina39,44.
Janeiro (RJ) e São Paulo (SP), envolvendo Por outro lado, a temporalidade dos efeitos
três diferentes grupos étnicos (Caiçaras, danosos do uso de agrotóxicos também atinge
Quilombolas e Indígenas), utilizando como gerações futuras, o que exige forte debate

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Territórios Saudáveis e Sustentáveis (TSS) no Distrito Federal: agroecologia e impacto dos agrotóxicos 257

geracional sobre o tema, além dos até aqui replicabilidade, tendo em vista o grande
levantados. A contaminação por agrotóxico desafio geopolítico e estratégico da agri-
do Aquífero Guarani pelas atividades agrícolas cultura no País, e seu impacto na dinâmica
químico-dependente afetará, por exemplo, as socioeconômica de várias regiões do Brasil.
futuras gerações que dependerão dessas águas,
considerando que esse manancial se tornará
uma fonte estratégica de abastecimento Conclusões
humano diante da escassez de água que já
se anuncia em diversas regiões do Brasil45. O presente artigo buscou apontar a relevância
A contaminação do leite materno por do debate científico sobre os limites e desa-
exposição de mulheres lactantes aos agro- fios na construção de estratégias de desen-
tóxicos, afetando tanto a sua saúde como a volvimento territorial rural sustentável, sob
de seus filhos desde a tenra idade, é outro o arcabouço metodológico e conceitual dos
exemplo geracional dos efeitos promovidos TSS, tendo ainda como base de análise crítica
pelo uso desses produtos químicos46. a controvérsia gerada pelo impacto ambiental
Apesar disso, a adoção da agroecologia e à saúde, promovido pelo uso de agrotóxicos
em determinados territórios no Brasil sofre no Brasil, em contraposição à agricultura de
limitações por fatores de ordem econômica, base agroecológica.
técnica e política47. O artigo aponta ainda que a temática dos
Em verdade, um novo contexto de contro- agrotóxicos na América Latina, especialmente
vérsias sobre o modelo de desenvolvimento no Brasil, representa uma construção con-
no campo, envolvendo a temática ambien- ceitual que carreia um conjunto de valores
tal (agroecologia) e o uso de agrotóxicos e princípios que apontam para manutenção
(modelo hegemônico), debruça-se sobre de um modelo de desenvolvimento centrado
a nova revolução biotecnológica, que re- nas disparidades ambientais, econômicas e
presenta a renovação de aliança das elites sociais prevalecentes, inclusive em sua nova
ruralistas envolvendo o poder material, etapa biotecnológica, com a implantação dos
institucional e discursivo de grandes cor- transgênicos no Brasil.
porações, decisores políticos, elites agrárias Aponta-se ainda no presente artigo o em-
e especialistas que representam o continu- poderamento conceitual e historiográfico
ísmo das disparidades sociais e econômicas da agroecologia como uma ciência capaz de
no Brasil. apresentar os elementos necessários para um
O sistema político agrário não suportaria, modelo produtivo e territorial mais inclusivo e
por exemplo, a dissidência nem a existên- inovador, especialmente em territórios rurais
cia de pesquisas continuadas sobre os im- e comunidades tradicionais.
pactos ambientais e na saúde promovidos O TSS, por sua vez, tem apresentado grande
pelos OGM. A perseguição aos cientistas capacidade como ferramenta metodológica
no campo da agroecologia, saúde coletiva para implantação e avaliação da eficácia de
e meio ambiente, por exemplo, são expres- estratégias de desenvolvimento territorial
sões dessa conduta de um modelo fechado saudáveis e sustentáveis, bem como íntima
e reducionista, já registrado largamente na articulação com os princípios e diretrizes do
literatura40. movimento agroecológico e da Agenda 2030
Por sua vez, os TSS, como estratégia de dos ODS.
implantação de territórios efetivamente O estudo evidenciou também que, embora
mais saudáveis e sustentáveis, carecem haja um alinhamento claro dessas temáticas,
de maior aporte acadêmico e maior re- limites conceituais ainda podem ser aper-
flexão e análise sobre sua efetividade e feiçoados, assim como um maior número de

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258 Fenner ALD, Almeida VES, Friedrich K, Milhomem APAS

investigações científicas sobre os TSS e sua Colaboradores


articulação com a agroecologia e propostas
de desenvolvimento territorial. Fenner ALD (0000-0002-6217-3893)*, Almeida
Notadamente, no território do DF e Entorno, VES (0000-0001-8201-3718)*, Friedrich K
são escassas as informações, mesmo havendo (0000-0002-3661-6179)* e Milhomem APAS
projetos e propostas institucionais para im- (0000-0002-4640-8824)* contribuíram igual-
plantação de TSS em sua região. Isso demanda mente para a elaboração do manuscrito. s
ainda mais a necessidade de novos estudos,
pesquisas e a construção de novas estratégia
de investigação local.

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262 ENSAIO | ESSAY

Saúde coletiva e agroecologia: necessárias


conexões para materializar sistemas
alimentares sustentáveis e saudáveis
Collective health and agroecology: necessary connections to build
healthy and sustainable food systems

Natália Ferreira de Paula1, Islandia Bezerra2, Nilson Maciel Paula1

DOI: 10.1590/0103-11042022E218

RESUMO O artigo traz uma discussão sobre a conexão entre saúde coletiva e agroecologia como pro-
motoras de saúde, como expressão de sistemas alimentares sustentáveis e saudáveis orientados pelo
princípio de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (SSAN). A noção de regime alimentar
corporativo ou neoliberal orienta a interpretação das transformações do sistema alimentar no contexto
da ordem global neoliberal, a partir da qual é possível detectar suas fragilidades. Assim, é dada atenção a
tendências contra-hegemônicas impulsionadas por movimentos sociais e formas alternativas de produção
e abastecimento alimentar. O regime alimentar neoliberal concentrado no poder das grandes corporações,
capazes de capturar o aparelho de Estado, é marcado por práticas desiguais e destrutivas, que expulsam
povos dos seus territórios, expropriam a natureza, contaminam solos, água, ar e alimentos, adoecem e
matam pessoas e o ambiente. Em oposição, entendem-se a agroecologia e a saúde coletiva como campos
contra-hegemônicos que promovem sistemas alimentares sustentáveis e saudáveis. Dessa forma, apoiado
nessa análise, é necessário construir uma base de conhecimento interdisciplinar que dê solidez conceitual
e visibilidade a outro sistema alimentar coeso e sustentado nos princípios da SSAN, no direito humano à
alimentação adequada, na valorização da vida humana e respeito à natureza.

PALAVRAS-CHAVE Segurança Alimentar e Nutricional. Política nutricional. Saúde. Produção de alimentos.


Agricultura sustentável.

ABSTRACT The connection between collective health and agroecology is discussed in this article as an
expression of a sustainable and healthy food system oriented by the principle of nutritional food sovereignty
and security. The notion of the corporate or neoliberal food regime is the basis for analyzing the transforma-
tions undergone by the food system in the context of the neoliberal global order, whose fragilities are stressed.
Attention is given to counter-hegemonic trends impelled by social movements and alternative structures of
food supply. The neoliberal food regime is anchored in the power of large corporations, able to control the state,
shaped by unfair and destructive practices that evict local populations from their territories, deplete nature,
poison soil and water flows, air and food, and sicken or kill people and the environment. On the other side,
agroecology and collective health are regarded counter-hegemonic fields, in which sustainable and healthy
1 Universidade
food systems are built. Based on this analysis, it is necessary to build an interdisciplinary knowledge that
Federal do
Paraná (UFPR) – Curitiba provides a conceptual strength and promote visibility to a coherent food system, resting on the principles of
(PR), Brasil. nutritional food sovereignty and security, the human right to adequate food, the valorization of human life
nataliafesr13@gmail.com and respect to nature.
2 Universidade Federal de

Alagoas (Ufal), Faculdade KEYWORDS Food security. Nutrition policy. Health. Food production. Sustainable agriculture.
de Nutrição (Fanut) -
Maceió (AL), Brasil.

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 262-276, JUN 2022 meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado.
Saúde coletiva e agroecologia: necessárias conexões para materializar sistemas alimentares sustentáveis e saudáveis 263

Introdução seguros e nutritivos, bem como estruturas


produtivas com base na agricultura familiar e
Neste artigo, é analisada a conexão entre a práticas agrícolas que respeitem o ambiente.
saúde coletiva e a agroecologia como pro- Trata-se assim de uma agenda alternativa para
motora de saúde, por meio da construção de reverter tendências dominantes, respaldada
sistemas alimentares sustentáveis e saudá- por atores políticos que propagam os prin-
veis orientados pela noção de Soberania e cípios da SSAN, e dão visibilidade a sistemas
Segurança Alimentar e Nutricional (SSAN), alimentares orientados pela sazonalidade e
explorada com base no arcabouço teórico do particularidades territoriais. Ao destacar essa
regime alimentar corporativo, ou neoliberal. contratendência, entende-se que há fissuras
Inicialmente, é destacada incompatibilidade no interior do capital agroindustrial, de forma
entre aquela noção e a dinâmica do sistema que suas estruturas, moldadas pelos grandes
alimentar hegemônico, conduzido por estraté- mercados, não são uniformes e coesas, apesar
gias de corporações transnacionais centradas de sua extensa capilaridade sob uma pode-
na acumulação de capital, na expansão dos rosa coordenação global. As perspectivas de
mercados e controle das cadeias globais de ruptura desse sistema, ou de aprofundamento
valor. Essa noção de regime alimentar explicita de suas contradições, estão sediadas nas forças
os conflitos imersos nas relações de poder no contra-hegemônicas forjadas por organizações
campo regulatório das relações econômicas sociais movidas pelos princípios da alimenta-
e das regras que involucram a trajetória do ção adequada sob a ótica do direito humano.
sistema alimentar desregulando o comércio Tendo como referência inicial a interface entre
agroalimentar mundial e o sistema financei- o sistema alimentar hegemônico e o fenômeno
ro, na esteira da liberalização dos mercados. da insegurança alimentar, essa discussão é
Impulsionado pelas inovações biotecnológicas, pautada em um viés analítico que vislumbra
tal processo tem aumentado a fragilidade de fendas abertas na ordem alimentar contempo-
segmentos sociais envolvidos na produção rânea por forças contra-hegemônicas engaja-
de alimentos, a destruição ambiental, a fome das na construção de um sistema alternativo
e má nutrição, além de precarização das con- orientado pelos princípios da alimentação
dições de saúde de massivos segmentos da adequada como direito humano.
população. Tais desdobramentos são agravados Na primeira parte deste artigo, a evolução
pela disseminação e imposição ao consumo do sistema alimentar é descrita sob a ótica
de produtos comestíveis por parte das indús- dos regimes alimentares, com ênfase no papel
trias de alimentos e redes varejistas, em cuja das forças hegemônicas que soldaram estru-
retaguarda habitam investidores do mercado turas comerciais, industriais, financeiras em
financeiro, agroexportadores vinculados aos torno de uma dinâmica global. Em seguida,
mercados globais, grandes supermercados e as análises sobre o terceiro regime alimentar,
redes de fast-food. no contexto do capitalismo neoliberal, são
No entanto, movimentos de resistências cotejadas com a emergência de movimentos
têm contestado essas regras do jogo e, mais sociais pautados por princípios que prezam
especificamente, as ações do Estado em favor pela valorização da vida humana e em sintonia
dos negócios agroindustriais sob o comando com a preservação da natureza. Por isso, na
das corporações alimentares globais. Além terceira parte, esta análise explora a sinergia
disso, políticas contra-hegemônicas têm sido entre saúde coletiva e agroecologia como pa-
adotadas para atender a necessidades alimen- râmetros de sistemas alimentares sustentáveis
tares e nutricionais, em particular, de popu- e saudáveis. Por fim, as considerações finais
lações vulneráveis, para estimular emprego e trazem constatações sobre a agroecologia que
renda que viabilizam o acesso aos alimentos movimenta as forças contra-hegemônicas que

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destacam o que está em curso no Brasil, e as alimentos às formas de acumulação específicas


possibilidades de sua reverberação em outros de cada período das transformações estrutu-
países, especialmente na América Latina. rais do capitalismo. Friedmann e McMichael1
demarcaram dois regimes alimentares na evo-
lução do sistema agroalimentar: o primeiro
A trajetória do sistema se refere ao período entre a década de 1870 e
alimentar hegemônico e sua a década de 1930, quando predominava uma
divisão de trabalho entre regiões coloniais
insustentável coesão exportadoras de commodities alimentares e
matérias primas; já o segundo teve início após
O entendimento de que a alimentação está o final da Segunda Guerra Mundial, quando
imersa na sinergia entre atividades e estruturas a agricultura foi transformada pela força do
produtivas, comerciais e financeiras situadas capital industrial, cuja dinâmica deslocou a
em todos os estágios de transformação dos indústria processadora se tornou o núcleo do
alimentos da produção ao consumo propiciou sistema alimentar.
a superação de abordagens baseadas em uma Em um processo contra determinação, à luz
visão setorial das estruturas socioeconômi- da noção de regime alimentar, o sistema ali-
cas. As interfaces entre os diferentes setores mentar evoluiu como suporte para sustentação
desse encadeamento resultaram em uma do poder hegemônico no capitalismo. Nesses
diluição de suas individualidades e coesões termos, durante o primeiro regime alimentar,
internas na medida em que novas sinergias se a estratégia do hegemon britânico conectou
formaram. Mais ainda, um sistema alimentar a riqueza de um capitalismo industrial com
de dimensões globais emergiu da interação zonas produtoras de alimentos, particularmen-
entre nações industrializadas e periféricas te no Hemisfério Sul. Já no segundo regime, os
predominantemente agrícolas em uma única Estados Unidos da América (EUA) usaram de
engrenagem cuja evolução foi traduzida pela ajuda alimentar para estabelecer laços, merca-
noção de regime alimentar. Assim, a organi- dos e oportunidades para manter e fomentar
cidade do sistema alimentar e sua contínua seu modelo agrícola de alta escala, gerador
metamorfose refletem o arcabouço regulatório de excedentes exportáveis, articulado a cor-
do capitalismo prevalecente em cada momento porações transnacionais de processamento
histórico. industrial e de distribuição de alimentos2. Com
As bases do sistema alimentar que emergiu base nessa referência conceitual, a alimentação
no final do século XIX pavimentaram a conso- não está relacionada apenas com a extensão
lidação da hegemonia estadunidense ao longo dos circuitos comerciais e com as repercussões
do século XX perante um sistema de Estados das políticas que regem o sistema alimentar,
nacionais ampliado com a descolonização de mas, sobretudo, a uma ordem mundial em
vários países. Paralelamente, a transforma- constante mudança2, para a qual contribuiu
ção industrial da agricultura conduzida por a agenda de livre comércio do Acordo Geral
grandes corporações sediadas naquele país de Tarifas e Comércio (GATT) e outras insti-
redefiniu a essência da alimentação. Desse tuições multilaterais.
modo, as relações comerciais, bem como os Nas décadas de 1960 e 1970, a simulta-
aspectos de um processo de acumulação de neidade da difusão internacional de um
alcance transnacional, limitaram a autonomia modelo de produção e consumo por meio da
dos governos nacionais na organização de seus Revolução Verde e da internacionalização do
sistemas produtivos e comerciais1. À luz dessa capital agroindustrial, ambos capitaneados
trajetória, o conceito de regime alimentar ar- por corporações multinacionais, ampliou as
ticula as relações de produção e consumo de dimensões globais do sistema alimentar. Mais

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do que a confluência entre atividades agrí- um ambiente social crescentemente desigual.


colas, industriais, comerciais e financeiras Todavia, destaque foi dado às iniciativas para
voltadas aos alimentos, como detectado por liberalização do comércio agrícola, respal-
sucessivas formulações conceituais (comple- dada pelos organismos multilaterais, como
xos, sistemas, cadeias produtivas etc.), aquele a Organização Mundial do Comércio (OMC)
contexto revelava as forças dominantes de e o Fundo Monetário Internacional (FMI),
uma estrutura historicamente determinada cuja agenda preconizava o fim de políticas
de acordo com o processo de acumulação de nacionais de proteção e estímulo à produção,
capital e sua relação com a força de trabalho. cabendo ao livre comércio o equilíbrio entre
Nesses termos, além de uma imbricação entre oferta e demanda, como forma de evitar even-
agricultura e indústria, alavancada pela disse- tuais crises alimentares. Essa reestruturação
minação de novas tecnologias e de relações de indicava a transição da regulação nacional do
trabalho capitalistas no meio rural, o sistema sistema agroalimentar para estratégias globais
alimentar repercutia a permeabilidade dos de corporações transnacionais organizadas
Estados nacionais às estratégias de capitais em torno da indústria de insumos, do cultivo,
multinacionais agroindustriais e dos interes- do processamento e distribuição, às quais
ses geopolíticos das nações hegemônicas, em pequenos agricultores e agricultoras, pelas
particular, dos EUA. vias comerciais, vinculam-se como força de
A partir dos anos de 1980, o jogo de forças trabalho global mediante relações contratuais2.
envolvido na reconfiguração do sistema ali- Como sintetizado por Holt Giménez e
mentar após o esgotamento do modelo até Shattuck4, o regime corporativo está susten-
então vigente fez emergir um novo regime tado pelo poder de mercado e lucratividade das
alimentar sob uma ordem neoliberal, res- corporações envolvidas em todas as atividades
tringindo o papel do Estado e convertendo agroalimentares, pela revolução varejista dos
governos, empresas e indivíduos à falácia do supermercados, pela liberalização comercial,
mercado autorregulado. Nesse contexto, além agricultura de alta escala, atribuindo um status
da proeminência das grandes corporações menos relevante à natureza. Tendo em vista
atuantes nas rotas comerciais, exploração dos a prevalência do neoliberalismo como ordem
recursos produtivos, disseminação de inova- política e econômica global, quando a obses-
ções tecnológicas e influência na formulação são pelo crescimento econômico sepultou a
de políticas nacionais, novos atores e instâncias agenda desenvolvimentista, emergiu o Estado
de mercado entraram em cena. Com isso, se- neoliberal, deslocando suas atribuições para
guindo seu caráter histórico adaptável às novas o mercado, o que sugere a denominação de
circunstâncias globais, a noção de regime ali- regime alimentar corporativo neoliberal.
mentar foi ajustada com novas rotulações para Enquanto espaços do movimento geral
expressar o sentido das mudanças em curso do capital em suas diferentes expressões,
no mundo da alimentação a partir do final as atividades de produção, processamento
do século XX, sugerindo a conformação do e distribuição de alimentos não são exclu-
terceiro regime alimentar. sivas de empresas aí formadas. O escopo de
Sob a denominação de regime alimentar oportunidades que surgem nesse ambiente de
corporativo, McMichael3 manteve em evidên- negócios se ampliou largamente pela sinergia
cia as forças hegemônicas das grandes corpora- entre as indústrias alimentares, químicas e
ções comerciais, agroindustriais e financeiras, farmacêuticas, em um dinamismo que gerou
acopladas a uma estrutura agrária centrada na maior diversificação de produtos comestíveis,
prevalência de monoculturas de larga escala e estendeu seus espaços comerciais e redefi-
das inovações biotecnológicas, bem como de niu o significado da alimentação. Com isso,
uma alimentação alheia às tradições locais, em novas frentes de consumo foram abertas por

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intermédio de práticas mercadológicas que no mundo real das mercadorias, mas de sua
fortalecem a capacidade competitiva das miscigenação com as práticas rentistas.
empresas da indústria alimentícia, crescen- A expansão das redes varejistas em escala
temente oligopolizada5. Essa apropriação da global é outro aspecto estruturante do regime
alimentação por todas as vertentes do capital alimentar corporativo neoliberal, como in-
não apenas redefiniu o que, onde, como e para tegrantes do bloco hegemônico situados no
quem produzir, mas também metamorfoseou interior das cadeias produtivas componentes
a essência dos alimentos artificializando-os do sistema alimentar industrial. Os super-
segundo a lógica industrial e esterilizando- mercados já não são meros intermediários
-os nos circuitos financeiros. Como um traço passivos nas relações comerciais, assumindo
adicional do regime corporativo neoliberal, o agora um papel ativo que subordina produtores
mercado financeiro invadiu o sistema alimen- e influenciam decisões de consumo, transmu-
tar em uma íntima interface com o sistema tados em fábricas que vendem produtos com
produtivo ao mesmo tempo que passou a sua própria marca. Mais ainda, por estarem
incluir as próprias commodities alimentares em sintonia imediata com os consumidores,
no jogo especulativo. detêm o elo entre a demanda e as fontes globais
Segundo Kaufman6, no início dos anos de de suprimento enquanto captam mais facil-
1990, os alimentos foram tomados pela abs- mente as preferências de consumo formadas
tração financeira quando a Goldman Sachs em cada espaço social. Nessa posição, adotam
converteu gado, café, cacau, milho, suínos etc. práticas de rastreabilidade, arregimentan-
em uma fórmula matemática, simplificada em do quem produz segundo as exigências de
um algoritmo negociável em Wall Street. Mais quem consome, fazendo com que a ideia de
ainda, terra agricultável se tornou um alvo do alimento oriundo de qualquer lugar (food from
capital financeiro. A afirmação do especulador nowhere), para descrever o sistema alimentar,
George Soros de que, diante da perspectiva de seja adicionada à de alimento de algum lugar
aumento dos preços de alimentos, a aquisição específico (food from somewhere)9.
de terra se tornou um excelente investimen- Por outro lado, ainda na esfera do varejo,
to é referendada pelo disseminado interesse a rede de serviços de alimentação, como lan-
de agentes financeiros, incluindo fundos de chonetes e restaurantes, está diretamente co-
pensão, bancos, fundos de private equity, na nectada às mudanças nos hábitos alimentares
propriedade de terras7. Portanto, como suge- que materializam a noção de dieta neoliberal.
rido por Burch e Lawrence8, a penetração do O modelo de consumo no contexto do regime
capital financeiro no sistema alimentar poten- alimentar neoliberal tem se propagado em
cializou o sistema alimentar hegemônico de toda a extensão do espectro social, inclusive
produção industrial, tornando-se a face proe- nos segmentos mais vulneráveis, sobretudo
minente do regime alimentar da ampliação das nos países em desenvolvimento, em que há o
possibilidades de lucro enquanto subordinam consumo de fast-food e produtos alimentícios
as estruturas produtivas e mercantis à lógica ultraprocessados, mais baratos e acessíveis,
financeira. Assim, as estratégias competitivas produzidos a partir de milho, soja e canola
das empresas agroalimentares não estão mais (transgênicos), ricos em calorias, sal, açúca-
restritas à comercialização de seus produtos, res, gorduras, aditivos químicos e pobres em
mas envolvem decisões a serem tomadas no nutrientes.
mercado financeiro e uma captura de instân- Nesse cenário, os alimentos in natura,
cias governamentais ao interferirem na formu- grãos integrais, carnes magras não proces-
lação de políticas públicas. A rentabilidade do sadas (alimentos saudáveis), por serem mais
capital envolvido nas atividades agroalimen- caros, estão acessíveis à população com renda
tares já não depende só da competitividade mais alta, principalmente aquelas que residem

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nos países ricos10. Esse cotidiano alimentar Carrefour, Walmart), além do capital filantró-
desigual reflete a lógica dominante da globa- pico (Bill & Melinda Gates), da financeirização
lização e liberalização do comércio, na qual das commodities alimentares e do mercado de
a circulação dos alimentos reflete os dese- terras, constitui a força hegemônica do sistema
quilíbrios sociais, de forma que produtos de alimentar, cuja consequência tem sido um
melhor qualidade nutricional tendem a ser aprofundamento da insegurança alimentar
mais consumidos pelos que detêm maior poder e nutricional da população4-12. Assim, como
de compra enquanto os grupos sociais mais destacado por Yardak13, esse arranjo estrutural
vulneráveis aderem a uma alimentação que orientado pela busca de oportunidades pro-
eleva os índices de sobrepeso, obesidade e porcionadas pela liberalização dos mercados
doenças crônicas não transmissíveis10. e pela conversão desenfreada de governos e
agentes econômicos ao credo neoliberal não
está sintonizado com as necessidades alimen-
O papel das forças não tares da população nem com as expectativas
hegemônicas na ruptura do de sobrevivência de produtores agrícolas fa-
miliares de pequena escala.
sistema alimentar global Embora McMichael3 explicite as propen-
sões globalizantes incontroláveis do sistema
A dinâmica do sistema alimentar conduzida alimentar, além das contenções que se manifes-
por forças hegemônicas, segundo a definição tam entre seus componentes, movimentos de
do regime alimentar corporativo neoliberal resistência atuantes tanto local quanto interna-
acima exposta, não pode ser traduzida como cionalmente têm atuado para inibir decisões de
uma avalanche unidirecional incontida de governos e corporações. Desse modo, frentes
transformações. Por mais avassalador que contra-hegemônicas são impulsionadas pela
seja esse movimento, agricultores familiares defesa da agricultura familiar, criação e/ou
e produtores de baixo rendimento econômico, fortalecimentos de redes locais e/ou regionais
incapazes de seguir as normas competitivas e de abastecimento, estímulo à produção e ao
as exigências dos grandes compradores, ou vo- consumo de alimentos ecologicamente sus-
luntariamente imersos em sistemas alimenta- tentáveis, reivindicação por políticas públicas
res locais alternativos, conseguem sobreviver, em sintonia com princípios de SSAN e pela
ainda que não estejam imunes à voracidade valorização de uma ciência cidadã que inclua
destrutiva de um paradigma produtivista e de os saberes dos povos em toda sua diversidade.
livre mercado. A abertura dos mercados, com- Com isso, longe de expressar um movimento
binada com atitudes protecionistas dos EUA e coeso, a noção de regime alimentar corporati-
da Europa – dominantes no estabelecimento vo neoliberal incorpora um embate inerente
das regras do jogo do comércio internacional, nas relações de poder em torno da regulação
sob a guarda das instituições multilaterais, das atividades e das relações econômicas
em particular, a OMC e o FMI –, aprofundou que definem a trajetória do sistema alimen-
a fragilidade competitiva de vastos setores tar. A orientação dominante de maximização
produtivos agrícolas, assim como restringiu a dos lucros, favorecida pela desregulação do
efetividade de políticas de segurança alimen- mercado mundial de alimentos e do sistema
tar. O amálgama da agenda dessas instituições financeiro, pelo controle das inovações bio-
com a ação de grandes corporações agroali- tecnológicas, tem resultado na fragilidade de
mentares, (Cargill, Monsanto/Bayer, ADM), segmentos sociais envolvidos na produção
da indústria de processamento de alimentos de alimentos, na destruição ambiental e na
e bebidas (Nestlé, PepsiCo, Anheuser-Busch piora das condições de saúde em função da
InBev, JBS) e das redes varejistas (Tyson, proliferação de hábitos alimentares pouco

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saudáveis. Não apenas movimentos de re- locais de produção-consumo de alimentos que


sistência emergem para contestar as regras respeitem a sazonalidade e potencializem as
do jogo, mas também conflitos são formados particularidades territoriais. Todavia, em que
entre os próprios integrantes do sistema he- pese a limitada potência dessa contratendência,
gemônico. Políticas nacionais favoráveis aos seu avanço está condicionado ao papel de insti-
interesses dos negócios agroindustriais e à tuições governamentais e organizações sociais
estabilização do consumo alimentar no âmbito locais e internacionais alinhadas a estratégias
nacional são questionadas e removidas por de transformação16.
representarem obstáculos às estratégias de A proeminência do capital industrial não
corporações alimentares globais. tem resultado na uniformidade das formas de
Em uma descrição sintética desse regime, produzir, comercializar e consumir alimentos,
McKeon14 ressalta os efeitos da proteção aos a partir dos desígnios dos grandes mercados.
direitos de propriedade, a centralização dos O avanço do capitalismo no campo da alimen-
capitais do agronegócio, as políticas de subsí- tação não é absoluto e uniformizador, uma vez
dios, a disseminação de um padrão de consumo que formas pretéritas ou alternativas de pro-
engendrado por redes varejistas globais, am- dução e de consumo persistem à sua margem,
paradas por um modelo agroexportador que mesmo que conectadas, em graus distintos
conecta agricultores a grandes supermercados às estruturas hegemônicas. A capacidade de
e redes globais de fast-food e assemelhados. agregar sistemas produtivos locais e suas redes
Ou seja, o poder das grandes corporações está de suprimento sob uma coordenação global fa-
no centro da evolução do sistema alimentar, cilitada por um sofisticado aparato de informa-
estabelecendo as condições de produção e ções logísticas sobre toda a gama de produtos3
consumo. As oportunidades de investimento não garante, todavia, uma coesão absoluta do
na exploração de matérias-primas, na mon- sistema alimentar. A voracidade do capitalismo
tagem de redes e infraestrutura de comer- sobre produção, processamento, distribuição
cialização e abastecimento emergiram mais e consumo de alimentos tem sido acolhida por
claramente como reflexo da liberalização dos uma ordem política que negligencia a corrosão
mercados, propiciando a liberdade necessária dos ecossistemas e a desvinculação das fontes
para comercializar e investir e difundir pro- de abastecimento alimentar das necessida-
dutos de inovação protegidos por direitos à des humanas2. A globalização do alimento,
propriedade privada15. traduzido em sua conversão em mercadoria,
Diante dessas contradições, os governos na- exposto continuamente nas prateleiras das
cionais têm sido pressionados para adotar polí- redes varejistas, contrasta com o estado de
ticas contra-hegemônicas e, em alguma medida, insegurança alimentar e nutricional, em parti-
democráticas, orientadas pelas necessidades cular, de grupos sociais mais vulneráveis tanto
alimentares e nutricionais das populações, em países considerados desenvolvidos quanto
alinhadas à preservação dos valores culturais nos mais pobres ou em desenvolvimento. Ou
e ambientais, à geração de oportunidades ao seja, com base nessa trajetória, a alimentação
trabalho e renda que viabilizem o acesso aos enquanto condição de vida, estranhamente,
alimentos seguros e nutritivos, bem como às não compõe a essência do sistema alimen-
práticas agrícolas que respeitem o ambiente. tar. Tal constatação é mais incontroversa no
Esses aspectos compõem uma agenda alternati- contexto atual de aumento das desigualdades
va para reverter as tendências globais, por meio sociais, subproduto da ordem econômica neo-
da ampliação da participação democrática e for- liberal, quando as renovadas expectativas de
talecimento de atores políticos orientados pelos desenvolvimento se divorciaram do Estado e
princípios da SSAN (que mencionaremos mais foram preponderantemente depositadas na
adiante), para a qual são essenciais sistemas engrenagem dos mercados globais.

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Saúde coletiva e a [...] como resistências ao discurso hegemônico


agroecologia: diálogos que apregoa uma normatização e homogeneização
das diversas esferas da vida e que conclamam,
necessários para a diante da crise alimentar e climática, por novos
construção de sistemas paradigmas18(434).
alimentares sustentáveis e
saudáveis Ainda segundo essas autoras, destaque deve
ser dado ao consumo para uma compreensão
Refletir sobre sistemas alimentares sustentá- mais consistente dos sistemas alimentares sus-
veis e saudáveis implica problematizar dis- tentáveis e saudáveis.
tintas e complexas variáveis que, em alguma
medida, influenciam nas dimensões do pro- A produção e o consumo do alimento agroecológico
duzir, colher, processar, distribuir, alimentar acionam diferentes redes de sentido, como a
a si e aos demais, comer individual e coleti- integração e a dependência com o espaço; e o
vamente, e nutrir ‘nutricionalmente falando’, conceito ampliado de saúde, que envolve um bem-
mas também simbolicamente. Outrossim, para -estar que se completa na tomada de consciência
debater sobre esse tema, torna-se imperativo em relação à necessidade de integração socieda-
ampliar a noção de sistema alimentar para de-natureza. São discussões em que o alimento é
além dos sentidos material e econômico, cuja referido como comida de verdade, potencialmente
dinâmica industrial é sustentada por práticas produtiva de significados que extrapolam a função
destrutivas que expulsam povos dos seus terri- biológica e nutricional. É nessa perspectiva que se
tórios, expropria a natureza, contamina solos, traz o conceito do bem viver e seus desdobramen-
água, ar e alimentos, adoece e mata pessoas e o tos imediatos, como o bem e bom comer18(434).
ambiente. Dessa forma, alinhados aos aspectos
enaltecidos por Friedmann16 e McMichael2 A crise climática que resulta de um sistema
destacados acima, Larson et al.17(42) definem alimentar de produção industrial que expulsa,
o sistema alimentar, embora em um viés nor- expropria, contamina e mata também difunde e
mativo, como impulsiona uma alimentação baseada em produ-
tos comestíveis de alta densidade energética com
[...] um conjunto de regras ou princípios da elevadas concentrações de açúcares e gorduras,
própria alimentação, entrelaçados entre si, que pobre em micronutrientes e de baixo custo, cau-
de uma forma organizada contribuem para que sando doenças relacionadas com obesidade e des-
a produção e o consumo de alimentos estejam nutrição. O termo ‘Sindemia Global’ expressa essa
extintos de risco. complexa relação e favorece a reflexão acerca de
fenômenos distintos, mas que convergem entre si,
Segundo essa reflexão, para que tais sistemas quando associados à determinação social, política
alimentares sejam sustentáveis, e econômica do processo saúde-doença que os re-
colocam no centro do debate. Segundo a comissão
[...] a agricultura deve produzir mais em menos The Lancet (iniciativa interdisciplinar que inclui
superfície, reduzir seu impacto nos ecossistemas líderes de ciências da saúde, negócios, finanças e
naturais e transformados, e usar de maneira mais políticas públicas para formular recomendações
eficiente a água e a umidade, assim como a ferti- sobre os mais distintos temas), o termo ‘Sindemia
lidade dos solos17(43). Global’19 foi cunhado como referência à simulta-
neidade no espaço e no tempo de três pandemias:
Com base nessa interpretação, a agroecologia obesidade, desnutrição e mudanças climáticas,
e a saúde coletiva são vistas como explicitado:

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[...] o conceito aponta que as três pandemias dinamizam os territórios, exatamente pela sua
interagem umas com as outras, compartilham capacidade de romper com paradigmas destru-
determinantes e, portanto, exercem uma influência tivos da sociedade e da natureza. Em essência,
mútua em sua carga para a sociedade. Suas causas a construção de conhecimentos que preze pela
passam pelos interesses comerciais que orientam saúde e o bem-estar da sociedade e da natureza
o modelo hegemônico do sistema agroalimen- é essencial. Segundo documento de criação
tar global, pela falta de vontade das lideranças ‘Unión de Científicos Comprometidos con la
políticas e pela frágil e insuficiente ação da so- Sociedad y la Naturaleza de América Latina’22
ciedade em geral19(2). (UCCSNAL), em 2015,

É a partir dessa compreensão que a abordagem [...] o conhecimento científico e tecnológico, em


teórica e epistemológica da saúde coletiva, assim particular aquele desenvolvido em um contexto
como da agroecologia, é necessária para debate e reducionista, sem o devido controle social, tem
proposição de alternativas. Tais pandemias vêm contribuído para criar problemas ambientais e de
afetando significantemente a saúde humana e do saúde, com alcances muitas vezes catastróficos
ambiente ao longo das últimas décadas, sendo e irreversíveis22(2).
que obesidade e desnutrição, associadas a outras
comorbidades, têm sido responsáveis por 19% do Para Massarini23, a expansão do agronegócio
adoecimento e das mortes prematuras no mundo. é um dos principais pilares dos processos de ex-
Para além do seu caráter de denúncia, o referido ploração e expropriação nos territórios que vem
relatório contém sugestões para a criação e/ou culminando na convergência das crises social,
fortalecimento de estratégias para enfrentamento ambiental, de saúde e sanitária atuais. No entanto,
desse fenômeno. como ressalta o documento, a América Latina
Os sistemas alimentares sustentáveis e sau- tem, nos últimos anos, testemunhado a formação
dáveis, capazes de promover ‘o bem e o bom de vários coletivos da sociedade civil organizada,
comer’, passam, portanto, pela necessidade movimentos sociais e grupos e/ou organizações
de reconstrução e aprofundamento de conhe- de pesquisa que vêm denunciando os inúme-
cimentos. Também estão alinhados ao que se ros impactos e danos à saúde (das pessoas, dos
preconiza como sendo ‘comida de verdade’, uma solos, da água, do ambiente em geral) decorrentes
vez que esta possui de forma explícita o atributo do sistema alimentar industrial de produção e
da saudabilidade. Tanto o ‘Guia Alimentar da consumo que reverbera nas mais distintas viola-
População Brasileira’20 como o relatório The ções de ser/estar/existir. A autora menciona ainda
Lancet19 evocam a necessidade de mudanças nos que esses mesmos atores visibilizam experiências
hábitos alimentares de forma prática e cotidiana, agroecológicas transformadoras que convergem
para as quais são necessárias outras dimensões na concretização cotidiana do diálogo entre saúde
do produzir-comer. e agroecologia nos territórios, já que estes cons-
Para Giraldo e Rosset21, a ciência agroecoló- troem resistências e resiliências mediante um
gica traz elementos fundamentais para repensar caminho solidário de recuperação e construção
a relação produção-consumo, já que a conexão de saberes e práticas. Segundo Wallace24(529),
produzir-comer está imbricada na sociedade e,
portanto, na natureza. A agroecologia permite O surgimento de patógenos ao longo dos circuitos
um questionamento da ordem alimentar neo- de produção é reproduzido de modos diversos
liberal em curso, visto que, enquanto ciência- de acordo com cada região e, apesar de diferen-
-prática-movimento, traz concepções e visões tes em suas particularidades, os circuitos locais
de mundo localizadas no tempo e no espaço, de produção operam por meio da mesma rede
heranças culturais, saberes e conhecimentos de expropriação global, com impactos ambien-
locais e territoriais além dos movimentos que tais subjacentes. [...] a exploração madeireira,

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Saúde coletiva e agroecologia: necessárias conexões para materializar sistemas alimentares sustentáveis e saudáveis 271

a mineração e a agricultura intensiva, dirigidas pelo acesso a outras necessidades essenciais, tendo
capital simplificam a complexidade natural. [...] como base práticas alimentares promotoras de
nessas fronteiras neoliberais, enquanto diversos saúde que respeitem a diversidade cultural e que
patógenos morrem como resultado do desapare- sejam ambiental, cultural, econômica e social-
cimento de espécies de hospedeiros, um subcon- mente sustentáveis27.
junto de infecções que antes era interrompido de
forma relativamente rápida nas florestas, agora se Sobre o Direito Humano à Alimentação
propaga com maior amplitude24(529). Adequada (DHAA), é importante destacar que o
Estado brasileiro assinou o Pacto Internacional de
Por isso, para os sistemas alimentares serem Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Pidesc),
efetivamente sustentáveis e saudáveis, precisam no qual a alimentação é considerada um direito
ser pautados nos princípios da agroecologia, que, humano. A materialização deste, no entanto,
em sua essência, preza pela saúde e direito das segundo Bezerra e Isaguirre28(197),
pessoas e da natureza. De acordo com documento
da Fundação Oswaldo Cruz12, a agroecologia é [...] requer uma compreensão do sistema social,
político e econômico dominante para suscitar
[...] compreendida enquanto um conjunto novos caminhos para o processo de tomada de
de princípios e práticas que orientam nossas decisões que configura o(s) modelo(s) de SAN
formas de habitar e conviver, circunscrita por a ser(em) adotado(s) por cada país ou região.
dimensões, como a cultural, a ecológica, a
econômica, a social e a política. A alimentação é vital para a existência, não
sendo suficiente apenas produzir e comer qual-
A esse entendimento, podem ser acoplados quer alimento, mas aqueles produzidos segundo
os princípios de soberania alimentar e direito princípios de sustentabilidade e respeito à natu-
humano à alimentação adequada, os quais, reza e com características saudáveis e adequadas,
segundo Maluf26(259) “[...] foram fundados em sob a ótica da DHAA. Essas são exigências não
direitos, que devem orientar os programas atendidas pelo modelo de produção de monocul-
e as ações públicas voltadas para promover a turas em larga escala incrustado na dinâmica do
Segurança Alimentar e Nutricional”. Tem-se sistema alimentar hegemônico.
assim os parâmetros para captar a extensão das Embora, como destacado acima, tenha las-
distintas violações e seus impactos nas condições treado o sentido de segurança alimentar, a con-
de saúde (das pessoas e do ambiente), mas, sobre- cepção de soberania alimentar foi concebida em
tudo, para propor estratégias de enfrentamento 1996 pela Via Campesina Internacional (VCI) e
e fortalecer processos transformadores nos mais referendada no Fórum Mundial de Soberania
distintos territórios (físicos e geográficos, do Alimentar em 2001:
intelecto e simbólicos), assim como nas narra-
tivas formuladas em torno da saúde coletiva e [...] é o direito dos povos de definir suas pró-
da agroecologia. No mesmo sentido, a definição prias políticas agropecuárias e de alimentação,
de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), bem como proteger e regulamentar a produção
segundo a Lei Orgânica de Segurança Alimentar agropecuária e o mercado nacional objetivando
e Nutricional (Losan), dá um respaldo institucio- alcançar o desenvolvimento sustentável. [...] a
nal e normativo a essa argumentação, definindo soberania alimentar não nega o comércio inter-
SAN como nacional, porém defende a opção de formular
políticas e fomentar práticas comerciais que
[...] a realização do direito de todos ao acesso sirvam aos direitos das populações disponibili-
regular e permanente a alimentos de qualidade, zando métodos e produtos alimentícios inócuos,
em quantidade suficiente, sem comprometer o nutritivos e ecologicamente sustentáveis29.

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272 Paula NF, Bezerra I, Paula NM

Da mesma forma, Bezerra30,31 articula esses manifestam de forma concreta e contínua nas
princípios à concepção de SAN, incorporando violações dos direitos humanos e da natureza,
outras dimensões da vida em sociedade em siner- com impactos devastadores em suas práticas
gia com a natureza, de forma a direcionar ações produtivas e sociais. Desse modo, as análises dos
do Estado por meio de estratégias territoriais sistemas alimentares sustentáveis e saudáveis
sustentáveis em toda a extensão do circuito da devem não apenas adotar uma abordagem proble-
alimentação pautadas pelo direito dos povos. matizadora e crítica, mas também ser propositiva
Mais ainda, a junção da noção de soberania à de e fundadora de novos modelos de produção e
segurança alimentar é resultado do protagonis- consumo de alimentos.
mo individual e coletivo das populações rurais A agroecologia, por sua vez, enquanto ciên-
e urbanas ao mesmo tempo que, ao garantir o cia-prática-movimento, promove e, ao mesmo
acesso aos recursos necessários para produção tempo, materializa processos transformadores
e acesso aos alimentos, proporciona o DHAA. nos territórios nas mais distintas dimensões.
Para tanto, é essencial que os sistemas alimen- Para Laranjeira34, os princípios que movem a
tares agroecológicos, com práticas e processos agroecologia vêm de uma “[...] abordagem inter-
sintonizados aos direitos humanos e da natureza disciplinar, sistêmica e participativa, com base
que promovam saúde, estejam na base de uma no diálogo de saberes”, o qual é necessário para
sociedade na qual prevaleça a justiça social, cul- a construção do conhecimento agroecológico, na
tural, ambiental e alimentar30. forma de um alinhamento entre o tradicional, ou
No mesmo sentido, Salcido32 afirma que a popular, e o científico, base para a formação de
concepção de soberania alimentar contém a sistemas alimentares sustentáveis e saudáveis no
objetividade de ser política e social, já que, no âmbito de seus territórios. Na mesma linha, para
contexto do atual sistema alimentar de produção Mota35, agroecologia, diferentemente de outras
industrial, a noção de SAN desconsidera o poder ciências, contém elementos transformadores
excessivo que grandes empresas agroalimentícias que se traduzem em novos paradigmas, essen-
acumulam, especialmente na oferta global de ciais para uma sociedade mais justa e solidária.
produtos comestíveis (ultraprocessados) a preços Essa concepção é fundamental para vislumbrar a
acessíveis. Com isso, a sociedade, em diferentes construção de sistemas alimentares sustentáveis
partes do mundo, vivencia os efeitos da obesidade e saudáveis alinhados às raízes epistemológicas
e de suas comorbidades, e ainda são diretamente da saúde coletiva.
afetadas pela crise climática e pela prática de
dumping (exploração nas relações comerciais)
que agravam ainda mais desigualdades sociais. Considerações finais
Por fim, a elevação do custo de manutenção dos
sistemas de saúde como efeito do uso indiscri- As reflexões apresentadas nesta análise sobre
minado de agrotóxicos, que contamina, polui a dinâmica nefasta do sistema alimentar hege-
e mata (pessoas e natureza), representa uma mônico de produção industrial – e suas impli-
inquestionável negligência de governos e demais cações sociais, ambientais e de saúde – acabam
agentes públicos a sistemas agroecológicos sus- evidenciando as limitações da ação do Estado
tentáveis e saudáveis, além de fortes incentivos para corrigir aqueles efeitos. Tem-se assim que, ao
ao modelo hegemônico de produção. se converter em um suporte do capitalismo neo-
A partir dessa compreensão, toma-se então, liberal, o Estado é capturado pelas estratégias das
como fundamento teórico no campo da saúde grandes corporações ao mesmo tempo que seu
coletiva, a perspectiva da epidemiologia crítica, papel regulador e de mitigador das mazelas do
a qual, segundo Breilh33, é fundamental para a mercado perde relevância. A extinção de instân-
problematização dos processos destrutivos em cias de controle social como o Conselho Nacional
seus diversos níveis e temporalidades. Estes se de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea),

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Saúde coletiva e agroecologia: necessárias conexões para materializar sistemas alimentares sustentáveis e saudáveis 273

que, historicamente, promove o enfrentamento contra-hegemônica visando à desconstrução dos


do modelo que eleva a sociedade brasileira a uma sistemas dominantes por meio de ações como a
condição de vulnerabilidade social, econômica e Campanha Permanente contra Agrotóxicos e pela
alimentar e que vinha em intensos processos de Vida, que, ao longo dos últimos anos, esclarece a
construção coletiva propondo ações e estratégias sociedade sobre os riscos à saúde (das pessoas e
concretas de SSAN, ilustra bem essa assertiva. do ambiente) do uso indiscriminado de agrotóxi-
De forma similar, também ilustra as inúmeras cos e de sementes transgênicas. Processos trans-
decisões políticas tomadas pelo próprio governo formadores têm sido estimulados por intermédio
brasileiro em 2019, cuja agenda de proteção da de anúncios e eventos, a exemplo das Jornadas
saúde coletiva se desvanece. de Agroecologia ocorridas em vários estados
Dessa forma, há uma fragilização de institui- com o apoio de inúmeras organizações como
ções envolvidas na democratização do acesso aos o MST. Para tanto, é fundamental a formação
meios de produção e reprodução social (terra, de uma base de conhecimento que dê solidez
água, recursos financeiros), na garantia dos di- conceitual e visibilidade a um sistema alimentar
reitos de povos e comunidades tradicionais para coeso e sustentado nos princípios da SSAN, no
a manutenção dos seus saberes e práticas nos DHAA, na valorização da vida humana e respeito
seus territórios, e no fortalecimento da agricul- à natureza. Nesse caminho, algumas organizações
tura familiar e camponesa, guardiã da transição têm se destacado, como a Associação Brasileira
agroecológica. Embora limite, essa situação não de Agroecologia (ABA), a Articulação Nacional
impede que os movimentos sociais continuem de Agroecologia (ANA), o Fórum Brasileiro de
engajados no fortalecimento e na disseminação Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional
de práticas agroecológicas nos seus territórios (FBSSAN), a Rede Brasileira de Pesquisa em
(rurais e urbanos), rejeitando o cultivo de se- Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional
mentes geneticamente modificadas, democrati- (RedePenSSAN), a Associação Brasileira de
zando o acesso a alimentos em quantidade e de Saúde Coletiva (Abrasco), a Aliança pela
qualidade, preservando sementes crioulas entre Alimentação Adequada e Saudável, a Fundação
outras práticas. Como é o caso do Movimento Oswaldo Cruz (Fiocruz) e, ainda, a recém-cria-
dos Trabalhadores e Trabalhadoras Sem Terra da Ação Coletiva Comida de Verdade, que con-
(MST) e do Movimento dos Trabalhadores Sem grega uma rede de organizações, entre tantas
Teto (MTST) que têm protagonizado a luta no outras. O protagonismo dessas organizações
campo e na cidade, pelo direito a terra e moradia, é capaz de destituir a ordem alimentar atual
mas também por uma produção agroecológica e de sua proeminência e conectar a sociedade
pelo acesso universal e equitativo à alimentação a um modelo de alimentação social, cultural e
saudável e sustentável. Esses temas se entrelaçam ambientalmente sustentável e saudável.
na compreensão teórica e, sobretudo, assumem
um caráter prático no âmbito das políticas pú-
blicas e da ação estratégica de coletivos e/ou Colaboradores
organizações da sociedade civil com vistas à
construção de sistemas alimentares sustentáveis Paula NF (0000-0002-5205-2369)*, Bezerra
e saudáveis nos quais a saúde (das pessoas e do I (0000-0002-0513-3545)*, Paula NM (0000-
ambiente) é uma dimensão prioritária de ação/ 0002-2143-5172)* contribuíram igualmente
feitura, atenção e cuidado. Paralelamente, tais para a elaboração do manuscrito. s
ações devem estar sintonizadas com uma agenda

*Orcid (Open Researcher


and Contributor ID).

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uma ecologia de saberes: trajetória da construção

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ENSAIO | ESSAY 277

Vozes e fazeres do semiárido: convites à


descolonização do campo científico, rumo a
outras práxis
Voices and actions in the semi-arid region: invitations to decolonize
science, towards other praxis

Raquel Maria Rigotto1, Mayara Melo Rocha2, Saulo da Silva Diógenes1, Rafaela Lopes de
Sousa3, Andrezza Graziella Veríssimo Pontes4, Luana Carolina Braz de Lima1, Andréa Machado
Camurça1, Maiana Maia Teixeira1

DOI: 10.1590/0103-11042022E219

RESUMO As fronteiras do capital neoextrativista avançam sobre territórios de populações tradicionais,


provocando conflitos socioambientais, agravando a crise civilizatória, ameaçando a sustentação da vida no
planeta. A pedagogia do território, a práxis acadêmica no Núcleo Tramas, traz pistas para que os sujeitos
da universidade incidam na assimetria de forças presente nos territórios em conflito ambiental. Duas
experiências iluminam as reflexões deste ensaio. Na luta pela construção do seu território camponês, as
vivências das comunidades de Apodi/RN anunciam a agroecologia como forma de resistir ao Projeto da
Morte. Por sua vez, o Núcleo de Reflexões, Estudos e Experiências em Agroecologia e Justiça Ambiental
revelam o protagonismo das mulheres na construção da agroecologia e na defesa de seus territórios.
Sob a perspectiva decolonial, discutem-se as bases teórico-epistemológicas, que incitam metodologias
insurgentes e fomentam o diálogo de saberes, ressignificando os sujeitos cognoscentes. A mediação entre
as vozes dos povos do semiárido e o campo científico da saúde coletiva provoca a reflexão: quais são os
recados desses povos para a academia? Enquanto ainda se buscam possibilidades, os camponeses já têm,
há muito, anunciado a agroecologia como alternativa para produzir, existir harmonicamente na natureza,
promover saúde e resistir aos efeitos da colonialidade.

PALAVRAS-CHAVE Agricultura sustentável. Saúde pública. Saúde ambiental. Educação em saúde.

ABSTRACT Neoextractive capitalism advances over territories of traditional populations. The consequence
is the increase in environmental conflicts and the deepening of the civilization crisis threatening life on the
1 UniversidadeFederal do
planet. Pedagogia do território (territory pedagogy), as an academic practice in the Núcleo Tramas, pres-
Ceará (UFC) – Fortaleza ents possibilities for the university to contribute to the reduction of the existing inequality in the context
(CE), Brasil. of environmental conflicts. Two reports help to reflect on this essay. In the struggle for the construction of
raquelrigotto@gmail.com
peasant territory, the communities in the city of Apodi present agroecology as a way to resist the Projeto
2 Universidade Federal da Morte (Death Project). In turn, the Center for Reflections, Studies, and Experiences in Agroecology and
do Recôncavo da Bahia Environmental Justice reveals the action of women in the construction of agroecology and in the defense of
(UFRB) – Cruz das Almas
(BA), Brasil.
their territories. Based on decolonial theories, we discuss our theoretical and epistemological bases, which
encourage insurgent methodologies and foster the dialogue of different knowledges. The mediation between
3 UniversidadeEstadual do the voices of semi-arid territories and the scientific field of collective health leads us to think: what are the
Ceará (Uece) – Fortaleza
(CE), Brasil.
messages from these peoples to the academy? While we are looking for possibilities, peasants are announc-
ing agroecology as an alternative to produce, live harmoniously with nature, promote health, and resist the
4 Universidadedo Estado effects of coloniality.
do Rio Grande do Norte
(UERN) – Mossoró (RN),
Brasil. KEYWORDS Sustainable agriculture. Public health. Environmental health. Health education.

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 277-292, JUN 2022
278 Rigotto RM, Rocha MM, Diógenes SS, Sousa RL, Pontes AGV, Lima LCB, Camurça AM, Teixeira MM

Introdução conformou complexos problemas de saúde


para os quais não construiu respostas efe-
Enquanto grupo acadêmico do Sul tivas 3. Como núcleo acadêmico inserido
global, nordeste do Brasil, formado por no Programa de Pós-graduação em Saúde
pesquisadoras(es) que construíram suas Pública da Universidade Federal do Ceará
trajetórias no diálogo entre saúde, traba- (UFC), nossa proposta com este ensaio é
lho e ambiente – em uma teia de produção compartilhar pistas epistemológicas e me-
de conhecimentos articulada por acade- todológicas identificadas em nossa práxis
mia, territórios em conflitos ambientais e que possam ser significativas para o campo
movimentos sociais –, vimos pesquisando da saúde coletiva.
e incidindo sobre questões que estão no “Eles usam muito veneno! Os trabalha-
âmago da crise ambiental que levou a hu- dores estão adoecendo! A gente diz, mas as
manidade a um contexto limítrofe no qual autoridades não nos levam a sério!”. Essa
a sustentação fundamental da vida – água, denúncia nos foi trazida pelo Movimento
ar, solo, clima, biodiversidade – encontra- dos(as) Trabalhadores(as) Rurais Sem Terra
-se ameaçada. Atualmente, enfrentamos (MST) e pela Comissão Pastoral da Terra
uma pandemia que expõe os limites das (CPT), em 2006, no contexto da implan-
sociedades capitalistas que, assentadas na tação de empresas nacionais e transnacio-
articulação entre o racismo, o patriarcado nais da fruticultura irrigada na Chapada
e o colonialismo, aprofundam as formas de do Apodi/Ceará. Sentindo a assimetria de
dominação da natureza e da exploração do poderes configurada na desconsideração
trabalho humano – normalidade para a qual de seus saberes, esses sujeitos políticos nos
não podemos voltar1. solicitaram um estudo para evidenciar os
Acompanhamos um processo de subor- problemas percebidos, e assim fortalecer
dinação econômica dos países da América suas lutas. Acolher esse desafio significou
Latina pelo aprofundamento do denominado para o Núcleo Trabalho, Ambiente e Saúde
neoextrativismo2. Associados a poderosos – Tramas/UFC um ponto de inflexão em
grupos econômicos transnacionais, empre- nossa trajetória acadêmica. Foi tão fecundo
endimentos minerários, energéticos e do produzir conhecimento com movimentos
agro-hidronegócio expandem a produção sociais e moradores(as) de territórios do se-
de commodities, desconsiderando as ne- miárido em conflito com empreendimentos
cessidades dos seres vivos, humanos e não do agronegócio que elegemos esse caminho
humanos. Incidem em múltiplas dimensões como princípio ético-político do grupo.
do processo saúde-doença ao comprome- A escuta sensível e a convivência com
ter o acesso aos bens comuns; ao alterar esses sujeitos em seus espaços de vida e de
as formas de organização das economias articulação política, orientada por princí-
locais e os sentidos do trabalho; ao gerar pios de solidariedade e horizontalidade,
fluxos migratórios compulsórios; ao instalar mostraram-nos a potência do diálogo de
processos produtivos poluentes; ao desqua- saberes. O reconhecimento de suas expe-
lificar e invisibilizar os diferentes saberes riências e a criação de espaços nos quais
e modos de viver e produzir. acontecessem as trocas de conhecimentos
Enquanto campo científico, somos possibilitaram tanto a definição de pro-
chamados(as) à reflexão sobre o papel da blemas de estudo mais próximos da com-
ciência e da tecnociência na efetivação do plexidade do contexto a nós apresentado
projeto moderno-colonial ao longo da his- quanto a construção dinâmica de novas
tória. Ao lado das contribuições para o de- metodologias de pesquisa. Tais espaços de
senvolvimento humano, a ciência moderna diálogos foram decisivos para definir que a

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Vozes e fazeres do semiárido: convites à descolonização do campo científico, rumo a outras práxis 279

equipe do ‘Estudo epidemiológico da popu- moderna e da universidade, ressignificando o


lação da região do Baixo Jaguaribe exposta tripé universitário – ensino, pesquisa e exten-
à contaminação ambiental em área de uso são – em novas articulações entre ‘formação’,
de agrotóxicos’ (Edital MCT-CNPq/MS- ‘construção compartilhada de conhecimento’
SCTIE-DECIT/CT-Saúde – nº 24/2006) e ‘co-labor-ação social’6 com os sujeitos dos
seria necessariamente interdisciplinar. Isso territórios. Atribuímos a essa última centra-
foi facilitado pela presença de pessoas com lidade para delinear o sentido e o processo de
distintas formações (agronomia, geogra- trabalho na universidade. A partir das neces-
fia, medicina, enfermagem, serviço social, sidades daqueles sujeitos, valorizando seus
psicologia, sociologia, pedagogia, biologia, saberes em processos dialógicos, construímos
economia, comunicação, direito e ciências conhecimentos úteis à defesa dos seus direi-
ambientais), potencializando a abordagem tos. A ‘co-labor-ação’ social é fonte de ricas
das diferentes dimensões do problema de experiências que contribuem para a formação
estudo. No trajeto, percebemos o quanto de docentes, pesquisadoras(es) e estudantes
estudantes e pesquisadoras(es) aprendiam para se tornarem reflexivos(as), críticos(as) e
nas reuniões com as associações comuni- autônomos(as). Compartilhamos alguns cami-
tárias e/ou de agricultores(as), nos semi- nhos da pedagogia do território para facilitar
nários, nos trabalhos de campo com os(as) a compreensão das experiências narradas e
moradores(as) e lideranças: a compreensão que, quiçá, possam ser úteis a outros coletivos. 
de conceitos era iluminada, inter-relações
complexas tornavam-se óbvias, a indigna- a) Processos de construção
ção era acionada, e nosso senso de justiça e compartilhada de conhecimentos a
solidariedade era convocado a se expandir partir das demandas dos territórios
para além do intelecto – o ‘sentipensar’4. em conflito
A partir dessa pesquisa, seguimos um
caminho de abertura teórica e metodológica, Movidos(as) pela consciência de que o conhe-
compreendendo que as repercussões sobre a cimento é um bem comum da humanidade e
saúde das populações não eram provocadas disputando a compreensão da função social da
apenas pelos agrotóxicos, pois o processo de universidade7, buscamos acolher as demandas
des-re-territorialização5 imposto pelo agro- de produção de conhecimentos formuladas por
negócio perpassa diferentes dimensões da comunidades em conflito ambiental ou por
vida das comunidades. Tornou-se necessário entidades e movimentos sociais comprometi-
ampliar as redes de parceria e agregar novos dos com essa luta; e, a partir delas, definimos
temas e sujeitos, como as juventudes, as mu- nossos projetos de investigação. As pistas trazi-
lheres e as perspectivas de resistência – entre das pelo pensamento pós-colonial e a ecologia
elas, a agroecologia. Percebemos que articular de saberes nos impulsionam a ressignificar os
as lutas por justiça ambiental com as lutas sujeitos cognoscentes e com eles organizar
em defesa da agroecologia possui potencial processos de construção compartilhada de
mobilizador, tanto nos territórios em confli- conhecimentos8.
tos ambientais quanto nos debates no campo
científico. b) Metodologias participativas de
Reconhecendo a potência e os aprendizados pesquisa promovendo o diálogo de
do diálogo com os territórios, sistematizamos, saberes
como método de trabalho acadêmico no Núcleo
Tramas, a pedagogia do território. Ela busca Em contraposição ao epistemicídio engen-
apoiar práxis acadêmicas emancipatórias ao drado pelo pensamento abissal, a ‘ecologia
disputar os rumos hegemônicos da ciência de saberes’ 8, por meio da ‘sociologia das

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ausências’, vai ao encontro de conheci- d) Buscando novas formas de


mentos dotados de critérios diferentes de compartilhar o conhecimento
validade, explorando tanto “a pluralidade
interna da ciência, isto é, as práticas cien- O compromisso de compartilhar o conhe-
tíficas alternativas que se têm tornado visí- cimento coproduzido com as comunidades
veis através das epistemologias feministas não é cumprido apenas com a publicação de
e pós-coloniais”8(57), como promovendo a livros ou artigos científicos, pois são pouco
“interação e a interdependência entre os acessíveis: é necessária uma mediação de
saberes científicos e outros saberes” 8(57). natureza político-pedagógica para esse justo
Assim, valorizamos os encontros no campo retorno aos territórios. Com a participação
empírico como espaços de formação mútua ativa dos sujeitos dos territórios em todo
e de incidência na assimétrica correlação processo de elaboração, orientados pela
de poder, e somos desafiados(as) a revisitar educação popular, construímos produtos
diferentes possibilidades metodológicas em diversas linguagens, como cordel, alma-
para encontrar ou criar abordagens que naque, caderno de formação e videodocu-
possibilitem espaços de diálogo entre os mentário. Isso fomenta práticas coletivas de
diferentes saberes em nossas pesquisas. Por reflexão que favorecem a apropriação dos
isso, o desenho metodológico de cada estudo debates realizados ao longo das pesquisas,
pode integrar um leque variado de técnicas ampliando a capacidade de análise crítica
e instrumentos de pesquisa. e ação sobre as questões pautadas.

c) Experimentando a função e) Validando de outras formas o


social da ciência: ao lado das conhecimento produzido: a Banca
comunidades e movimentos Acadêmica e Popular
sociais, a universidade como
sujeito social e político Se afirmamos o reconhecimento dos saberes
dos sujeitos que constroem os territórios
A relação de colaboração com os territórios nos onde realizamos pesquisas e nos dispomos
convoca, enquanto sujeitos políticos no campo a dialogar com eles, por que os alijar do
social, a nos posicionarmos solidariamente momento público de avaliação dessa trajetó-
com os movimentos sociais nos territórios em ria? Se defendemos que a universidade deve
lutas emancipatórias. A assimetria de poder se voltar para as necessidades de conheci-
entre esses sujeitos, de um lado, e os grandes mento dos grupos sociais vulnerabilizados
empreendimentos e o Estado, que os serve, de e cuidar para que as pesquisas contribuam
outro, demanda-nos a aportar o capital sim- para a transformação dos problemas que
bólico da universidade em posicionamentos enfrentam rumo à dignidade e à garantia de
públicos, baseados nos conhecimentos cons- direitos, por que não acolher a visão deles
truídos coletivamente. Tal compromisso nos sobre nossos trabalhos? Como uma rever-
leva a uma participação engajada nos processos beração da ecologia de saberes em nossos
de disputa em que estamos inseridos(as), ex- processos de avaliação e validação dos co-
pressando-se nos depoimentos em audiências nhecimentos produzidos, e inspirados(as)
públicas, na elaboração de laudos e pareceres, em outras experiências, passamos a in-
na participação em debates promovidos por tegrar nas comissões de doutores(as)
redes e movimentos sociais ou por instituições pessoas dos territórios nos quais ocorreu
públicas, nas entrevistas e documentários, nas o estudo, formando a Banca Acadêmica e
controvérsias científicas com especialistas, Popular. Semelhantemente aos(às) demais
entre outros. examinadores(as), os membros populares

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Vozes e fazeres do semiárido: convites à descolonização do campo científico, rumo a outras práxis 281

recebem previamente o texto, compõem a Vivências e vozes nos


mesa e expressam sua avaliação na defesa territórios: a experiência
pública, participando igualmente da decisão
da banca sobre o trabalho e assinando a ata
de Apodi do Rio Grande do
da sessão. Norte (RN)

f) A formação em coletivo
– colaboração e construção Do cativeiro ao território camponês
compartilhada de conhecimentos
O território camponês em Apodi/RN foi
Inserindo-se no processo histórico de cada conquistado a partir da luta por outro modo
território, participando de reuniões com os de viver e produzir. No tempo do ‘cativeiro’,
movimentos sociais da região, conhecendo como se recordam, trabalhavam de meeiros
os sujeitos das comunidades, ajudando na nas grandes fazendas de algodão, quando não
organização de seminários e audiências, ou cavavam açudes ‘públicos’ nas terras de coro-
contribuindo com a realização da pesquisa néis e políticos. Enfrentavam as ameaças da
de campo de colegas, o(a) pesquisador(a) seca e da fome, a exploração e a humilhação
vai construindo elementos para propor ao no trabalho. Tais questões foram discutidas em
coletivo e à comunidade um problema de ‘reuniões escondidas’, a partir de Comunidades
estudo – o qual, afastado da suposta neu- Eclesiais de Base, que fomentaram a criação
tralidade científica, nasce embalado em da Associação dos Mini-Produtores dos Sítios.
sentimentos de indignação, solidariedade Forjaram assim espaços de realização de outra
e compromisso. política, a dos ‘pequenos’:
É no território que os conceitos estudados
ganham concretude e que diferentes olhares A gente começou a discutir se não tinha outro
são compartilhados desde o ponto de vista modelo que pudesse a gente se apropriar da
da formação disciplinar, na medida em que água. O meu município, por exemplo, é muito
o contexto vivido demanda, convoca e ar- rico em água, mas a gente não tinha acesso!
ticula os saberes de cada um(a). O diálogo Quem tinha acesso era só os poderosos, só os
interdisciplinar passa a ser uma necessidade políticos, só os patrão. E a gente começou essa
experimentada com agradável surpresa e luta... Juntemos 5 comunidades e comecemos
respeito pelas contribuições dos diferentes a participar das Comunidades Eclesiais de Base
campos do conhecimento. e comecemos a discutir que era necessário sair
Para narrar alguns desdobramentos daquela de não ter só duas latas d’água para
desse processo, apresentaremos duas ex- sobreviver – e sim ter água pro mínimo possível,
periências: as vivências com comunidades aí a gente conseguiu, em 5 comunidades, perfu-
de Apodi/RN na construção de um territó- rar um poço raso, pra você achar (água) depois
rio camponês contra o Projeto da Morte; de 10 metros... E a gente conseguiu resolver o
e o projeto Reeaja – Núcleo de Reflexões, problema do povo9(267,268).
Estudos e Experiências em Agroecologia e
Justiça Ambiental. A riqueza dessas vivên- No crescente processo organizativo, iden-
cias com os movimentos sociais é alimentada tificaram outras necessidades: as sementes e
e retroalimenta estudos teóricos e refle- a terra para plantar alimentos. Com o apoio
xões epistemológicas em nosso coletivo, da CPT e de instituições internacionais,
que apresentamos no segundo item, para organizaram um banco de sementes e ad-
fundamentar ‘recados’ aos campos da saúde quiriram 50 hectares de terra, cultivados
coletiva e da agroecologia. em mutirão:

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Na seca de 1987, nós plantemos, trabalhemos mel do País. Tudo isso, preservando as áreas
mais de 80 pessoas, 80 famílias, em mutirão de matas e pastagens naturais10.
plantando feijão, deixava de ir pras áreas de Tais conquistas fazem de Apodi um dos
emergência, deixava de fazer açude pra ir municípios com o Índice de Desenvolvimento
trabalhar lá, todo mundo ia, era bom demais, Humano mais elevado da região e incidem
sabe?9(271,272). positivamente sobre a saúde humana. Contudo,
essa construção histórica vem sendo ameaça-
Percebendo que muitas famílias continua- da, desde o final dos anos 2000, pelo projeto
vam sem acesso à terra, ajudaram na criação de do Perímetro Irrigado Santa Cruz do Apodi
associações em outras comunidades e lutaram (Pisca), denominado por camponesas(es) como
para tomar a direção do sindicato, ‘para ser só Projeto da Morte.
do trabalhador rural’, e fortalecer a luta pela
terra, no que foram vitoriosos. Resistência ao Projeto da
Morte: intercâmbios produzindo
Essa Chapada era de 15 donos, de 15 proprie- conhecimento autônomo
tários. Aí lá pelos anos 90, a gente começou a
ocupar terra, a fazer reunião, a gente conseguiu Os perímetros irrigados integram as estratégias
com que desapropriassem 15 fazendas, e essas da Política Nacional de Irrigação, objetivando
15 fazendas hoje tem mais ou menos 600 fa- estimular a modernização da agricultura e a
mílias assentadas, e vivendo, mantendo, até o competitividade do agronegócio12. Por volta
dia de hoje9(273). de 2008, nas audiências públicas para o licen-
ciamento ambiental do Pisca, os camponeses
Ao longo de três décadas, essas famílias questionaram para quem a água iria e o porquê
construíram sistemas coletivos de manejo da desapropriação de famílias para sua cons-
da água, resgataram sementes crioulas, con- trução: “por que a água chega e a gente tem
quistaram terra, reafirmaram sua cultura. que sair?”12(144).
Construindo agroecossistemas tradicionais O intercâmbio com a realidade de outros
na região semiárida, combinaram o roçado perímetros irrigados em atividade no Ceará
de sequeiro, a criação de animais e os quintais “foi um primeiro processo de construção
produtivos, nos quais as mulheres associavam da resistência, no qual as pessoas de Apodi
o plantio de hortas, plantas medicinais e fru- ficaram impactadas com a miséria que estava
tíferas e a criação de aves. As formas de orga- fora das fazendas do agronegócio”12(148). Em
nização coletiva se ampliaram, e, atualmente, uma dessas visitas, algumas pessoas entraram
existem 63 Associações Comunitárias que se no ônibus rumo ao Ceará defendendo o Pisca,
articulam, no âmbito municipal, além de 256 mas voltaram com outra opinião:
pescadores organizados em colônias ou coo-
perativas10, assim como grupos de mulheres O que eu vi é que eu fiquei muito partido de
e de jovens. pena daquela situação do povo contando e o
O trabalho desses(as) camponeses(as) fez que eu vi: o projeto esmagando até casa de
do município de Apodi um dos maiores pro- morar, a igreja, as cisternas – que a gente, ó,
dutores agrícolas do RN, respondendo pela eu tô desse jeito aqui porque a gente estava
maior parte do arroz cultivado, sendo o maior fazendo uma cisterna aqui, comecemos hoje,
produtor de feijão, milho e ovinos, o único uma luta muito grande, como você sabe. Eu
produtor de quantidades relevantes de pro- fui até pra rádio aqui defendendo o projeto (de
dutos extrativistas, como a cera de carnaúba e irrigação), mas quando eu vi aquela situação,
sementes de oiticica, o segundo maior criador meu amigo, aí eu fiquei partido. Eu fui porque eu
de caprinos e o segundo maior produtor de mesmo gosto do movimento, mas tinha gente

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Vozes e fazeres do semiárido: convites à descolonização do campo científico, rumo a outras práxis 283

com raiva de mim porque eu sempre defendia socialização da pesquisa do Núcleo Tramas
a proposta (do projeto de irrigação), né? Mas supracitada:
aí quando eu cheguei lá, que eu vi a situação
do povo [...] E hoje eu ainda tô na mesma: de- A partir dessa pesquisa do grupo Tramas e
fendendo o projeto da maneira que vem eu não depois desse trabalho, dessa parceria, desse
defendo não!9(160). diálogo, nós começamos a procurar mais e in-
formar mais sobre essa questão dos agrotóxicos
O intercâmbio possibilitou organizar infor- na saúde humana12(148).
mações relevantes sobre o projeto, formular
contrainformação e estimular processos for- As ações de resistência englobaram seminá-
mativos. Com a ajuda de parceiros, entre eles rios sobre as sementes crioulas e os impactos
o Núcleo Tramas, aprofundaram diferentes dos agrotóxicos; audiência com o Ministro
temas, produziram e divulgaram sua contra- da Integração, questionando as prioridades
narrativa sobre o Projeto da Morte. políticas da irrigação; atos públicos e reuniões
para discutir o agronegócio; articulação em
A gente já fez intercâmbio pra lá, mostrando redes, como a Campanha Permanente Contra
pras famílias o futuro, o que vai ser a Chapada os Agrotóxicos e Pela Vida e a Rede Brasileira
amanhã! Isso aí todo mundo já viu, quem foi de Justiça Ambiental. Essas iniciativas con-
lá dessa juventude foi e viu. A luta que eles quistaram a solidariedade internacional do
têm hoje pra viver, pra sobreviver! Voltaram à movimento de mulheres, pautando as mani-
escravidão novamente, hoje vivem refém das festações mundiais do 8 de março com o lema
multinacionais, das grandes empresas. Produz ‘Somos todas Apodi’; e, entre outras ações,
e não consome. Então é muito louco! Eu sempre elaboraram 2 mil cartas de mulheres, escritas à
digo: que sistema de desenvolvimento é esse mão, à presidenta da república, questionando
que querem implantar aqui na Chapada, que vai tal projeto11.
matar uns de fome e envenenado e vai matar A despeito desses esforços, as obras do
outros envenenado e de barriga cheia?9(159). Pisca foram iniciadas; e, embora não tenham
sido concluídas, empresas do agronegócio se
Desde então, participamos de diversos pro- instalaram entre – ou sobre – as comunida-
cessos, tanto no próprio território como nas des e assentamentos. Nesse contexto, os(as)
articulações com as lutas na porção cearense camponeses(as) apresentaram uma formu-
da Chapada do Apodi, em redes nacionais dos lação crítica ao conteúdo do direito humano
campos da agroecologia, da saúde coletiva e à água, à Política Nacional de Irrigação e à
da justiça ambiental, buscando acolher soli- Política Nacional de Recursos Hídricos em
dariamente as necessidades de visibilização relação a dois de seus instrumentos: as outor-
do conflito e de produção de conhecimento. gas e a cobrança pelo uso da água; destacaram
desafios à garantia do acesso à água para os
Conflito ambiental e (r)existências9 povos do semiárido, além da relevância da
de camponeses e camponesas autonomia e da diversidade do modo de vida
camponês na construção territorial do direito
O projeto do Pisca obteve a licença ambien- à água9.
tal em 2010. O governo federal decretou a Enquanto grupo acadêmico da saúde cole-
desapropriação de 13.855,13 hectares, onde tiva, a relação com esse território nos instiga a
viviam comunidades camponesas, para ins- considerar: qual o lugar dos povos do campo
talar o perímetro nos municípios de Apodi e em nossas análises? Em que medida eles são
Felipe Guerra/RN. O movimento de resistên- plenamente reconhecidos enquanto sujeitos
cia foi potencializado, a partir de 2011, com a de sua saúde? O que esta experiência tem a

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dizer sobre a determinação social do processo caderno de formação produzidos com as mu-
saúde-doença? E sobre a promoção da saúde? lheres. O resultado desse diálogo foi a criação
do Reeaja, apoiado pelo Edital MDA/CNPq
nº 39/2014.
Vivências e vozes nos A partir do Reeaja, articulamo-nos com a
territórios: Reeaja – Rede Nordeste de Núcleos de Agroecologia
(Renda), ampliando nossas estratégias de co-
Núcleo de Reflexões, municação popular, desdobrando-se em uma
Estudos e Experiências parceria com o Sindicato dos Trabalhadores
em Agroecologia e Justiça e Trabalhadoras Rurais (STTR) de Apodi/
Ambiental do Baixo RN e a Cáritas de Limoeiro do Norte para a
realização da formação ‘Comunicação Popular
Jaguaribe/CE e Agroecologia’.
Ampliando as articulações, o Reeaja desen-
A gente quer passar um rio a nado, e passa; volveu o processo formativo ‘Agroecologia,
mas vai dar na outra banda é num ponto Saúde e Justiça Ambiental: mulheres em diá-
muito mais embaixo, logos de saberes e experiências’. Mais de 70 mu-
bem diverso do que em primeiro se lheres participaram, sendo elas da Assistência
pensou13. Técnica e Extensão Rural (Ater), agricultoras,
pescadoras, marisqueiras e artesãs de diversas
As pesquisas realizadas pelo Núcleo Tramas organizações e movimentos sociais do CE e
na porção cearense da Chapada do Apodi, do RN. No módulo ‘Agroecologia, Mulheres e
desde 2006, em um movimento de ação-re- Saúde: desafios e perspectivas para a promoção
flexão, possibilitaram tanto a utilização de da saúde, soberania e segurança alimentar’, o
seus resultados nos processos de denúncia diálogo entre elas visibilizou a potência dos pro-
quanto de anúncio de resistências ao modelo cessos construídos por elas em seus territórios:
agroexportador. O Núcleo Tramas iniciou o
‘Estudo sobre exposição e impactos dos agro- Só pra compreender e entendermos o poder
tóxicos na saúde das mulheres camponesas que nós mulheres temos nas mãos e quando
da região do Baixo Jaguaribe, Ceará’, apoiado uma mulher valoriza a agricultura, quando a
pela Chamada MCTI/CNPq/SPM-PR/MDA mulher ela tá inserida na terra, com a terra,
nº 32/2012, para investigar a vulnerabilização com a pesca, ela também tá na resistência, na
das mulheres que vivem em área de expansão luta, contra o agronegócio, o capital, sabe, ela
agrícola, reconhecendo que as desigualdades tá se movimentando, ela tá protagonizando
de gênero e as transformações territoriais pro- todo esse sistema que vem desmontando a
movidas pelo agronegócio atingem de forma nossa história, os nossos princípios [...] O quê
desproporcional a saúde delas. Estabelecemos que são os povos quando você pesca, quando
diálogos com temáticas ainda embrionárias você valoriza a pesca, quando você valoriza a
para o grupo, como o feminismo e a agroe- agricultura você tá valorizando seus princípios
cologia; bem como reflexões e intercâmbios e a gente vê que a cada dia, a cada instante
promovidos pela Rede Brasileira de Justiça esse sistema que tá aí vem destruindo nossos
Ambiental e outros coletivos. princípios éticos e morais, principalmente das
Esses processos culminaram na realiza- mulheres. E eu sempre trago essa reflexão que
ção do seminário ‘Agroecologia e Justiça é muito bonito a resistência e a organização das
Ambiental: diálogo entre saberes, experiências mulheres, tanto na agricultura, quanto na pesca,
e resistência’, em 2016, no qual socializamos os quanto na resistência e mobilização de luta, a
resultados das pesquisas por meio de vídeo e conquista do assentamento foi mobilizada por

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Vozes e fazeres do semiárido: convites à descolonização do campo científico, rumo a outras práxis 285

mulheres, o ponta pé inicial, o início da luta do A gente quis destacar no nosso território,
acampamento hoje, da praia foi iniciado pelas os sinais de vida, por isso a nossa legenda
mulheres e naquele momento da conquista traz as esperanças, e tá aqui no símbolo, que
do assentamento, o quê que a gente lutava? tem repercussão na nossa vida de mulheres.
A gente lutava por uma agricultura, por uma A iniciativa da economia solidária que está
ocupação de terra pra gente trabalhar, pro nosso muito presente no nosso território, a agroeco-
sustento, da década de 80, a nossa luta pela logia também é algo muito forte na Ibiapaba,
praia hoje é pra dizer, nós precisa pescar, os o Movimento Ibiapabano de Mulheres, a
nossos pescadores precisam de espaço livre, Escola Família Agrícola, a resistência e auto-
nós precisa desse chão [...]14. -organização do povo indígena Tapuia-Cariri
e também a resistência e a auto-organização
As experiências evidenciaram que as mu- do quilombo Dos Três Irmãos em Croatá, nós
lheres estavam, quase sempre, à frente dos temos também como sinal de vida as Casas
processos de mobilização e que elas, em seus de Semente [...] a cisterna representa um
quintais ou na pesca, davam sustentação ao símbolo de convivência com o semiárido da
modo de vida de suas comunidades. O encon- ASA que inclui barreiras outras tecnologias
tro entre os saberes acadêmicos e populares para o semiárido, as feiras das mulheres e a
mostrou que muitas das questões levantadas gente colocou aqui como um sinal de vida que
pela agroecologia já estavam vivas nos terri- é a água do [açude] Jaburu, mas que agora
tórios camponeses: está ameaçado pelos parques de energia
eólica que estão subindo a serra, com o uso
Engraçado, essa palavra agroecologia surgiu, intensivo de agrotóxicos em torno do açude14.
apareceu aí, os livros começaram a falar dessa
palavra, desse conceito, mas nós mulheres agri- A cartografia social evidenciou que havia
cultoras já fazemos esse negócio que vocês resistências em meio aos conflitos, isso assi-
chamam de agroecologia há muito tempo. Isso nala o caráter emancipatório da “cartogra-
me chamou muita atenção, certo gente, e o fia feita pelos de baixo”15(12). As mulheres
que vocês tão mostrando aqui de uma forma identificaram riquezas naturais e elementos
muito geral é aquilo que, na síntese, o conceito que explicitam seus modos de viver e produ-
de agroecologia fala14. zir, revelando aspectos invisibilizados nos
mapas tradicionais. A consolidação aconte-
Posteriormente, o módulo ‘Agroecologia, ceu por meio da categorização temática em
Mulheres e Justiça Ambiental: perspectivas e um debate em que elas negociaram senti-
desafios’ debateu as políticas públicas para mu- dos e geraram sínteses, nomeando o mapa
lheres, a partir das metodologias da pedagogia geral (figura 1) de ‘Resistência Feminista
feminista, além de dar continuidade ao processo das Mulheres’.
de cartografia social iniciado no módulo anterior.

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286 Rigotto RM, Rocha MM, Diógenes SS, Sousa RL, Pontes AGV, Lima LCB, Camurça AM, Teixeira MM

Figura 1. Mapa geral ‘Resistência Feminista das Mulheres’

O avanço dos grandes empreendimentos em suas práticas cotidianas elementos que


sobre os bens comuns ultrapassa a exploração configuram resistência e afirmação de outros
da natureza e se estende sobre os corpos das modos de viver e produzir.
mulheres, sobretudo, das negras, empobre-
cidas, quilombolas, marisqueiras e campo- Sobre os aportes epistemológicos,
nesas. São as mulheres que têm seus modos teóricos e metodológicos à saúde
de viver e produzir mais atingidos, como na coletiva
destruição das lagoas, local de trabalho delas
na captura de pescado, na poluição de mangue- Realizamos uma breve sistematização do
zais e rios, onde realizam à cata; no aumento esforço reflexivo de ‘mediação’ entre as vozes
de adoecimentos devido ao contato direto de territórios do semiárido e o campo científi-
com agrotóxicos nas empresas e no trabalho co da saúde coletiva: quais são os seus recados
doméstico, pela lavagem de roupas contami- para nós? Apresentamos também algumas im-
nadas por agrotóxicos, além de sofrimentos plicações desse percurso experiencial e teórico
e adoecimentos psíquicos decorrentes das sobre a pedagogia do território.
transformações territoriais. Ao elegerem e  “Eles vão acabar com nós... vai ficar só
debaterem a pergunta ‘o que nos une?’, elas mesmo o que tá escrito nas pesquisas” –
concluíram que os processos de resistência e disse o Presidente do STTR de Apodi/RN,
luta são os elos. São mulheres que se constroem durante o ‘Encontro de Saberes: Comunidades
como sujeitos em/da transformação, tendo Camponesas e Academia construindo

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Vozes e fazeres do semiárido: convites à descolonização do campo científico, rumo a outras práxis 287

Resistência na Chapada do Apodi’, realizado Um conhecimento cuja validade reside na ob-


em Apodi/RN, em setembro de 2019. As vivên- jetividade de que decorre a separação entre
cias das várias faces do Projeto da Morte têm teoria e prática, entre ciência e ética; um pa-
trazido aos povos do semiárido a angustiante radigma que tende a reduzir o universo dos
sensação de que serão extintos ao assistirem observáveis ao universo dos quantificáveis e o
à crescente e acelerada espoliação de seus rigor do conhecimento ao rigor matemático do
territórios e dos bens comuns que sustentam conhecimento, do que resulta a desqualificação
seus modos de vida. Essa é a percepção local (cognitiva e social) das qualidades que dão
e situada da injustiça e do racismo ambien- sentido à prática ou, pelo menos, do que nelas
tal que descortina uma ‘crise civilizatória’, não é redutível, por via da operacionalização,
articulando complexamente as crises ética, a quantidades23(34).
econômica, política, ambiental, alimentar e
energética20, demarcando o antropoceno, ou Temos evidências, trazidas especialmente
melhor, o capitaloceno, enquanto nova era pela ciência pós-normal, de que não é possível
geológica16. prosseguirmos na crença de que o conheci-
Testemunhando e registrando as consequên- mento científico permite controlar, com se-
cias desse processo nos corpos sertanejos e em gurança e eficiência, o mundo natural, já que
seus territórios – como as crianças com más- estão configurados novos tipos de problemas
-formações congênitas ou puberdade precoce17, em que o controle e a previsibilidade da ciência
ou os cânceres associados aos agrotóxicos18,24, sobre os riscos estão questionados:
ou o desgaste das mulheres no trabalho das
packing house nas fazendas de fruticultura19, Os problemas atuais de saúde — ao nível in-
ou a elevada pegada hídrica do agronegócio dividual, comunitário e ambiental — têm ca-
que seca os poços dos ‘pequenos’20, ou ainda racterísticas comuns que os distinguem dos
a contaminação pelos venenos das águas do problemas científicos tradicionais. Sua escala
Aquífero Jandaíra21 –, somos impelidos a refletir é planetária e seu impacto, de longa duração.
sobre o papel da ciência moderna: Os fenômenos são novos, complexos, variáveis
e, com frequência, mal compreendidos. Dados
Vivemos um mundo em que os maiores perigos sobre seus efeitos, e dados para determinar as
já não mais advêm da peste ou da fome, mas, linhas de base de sistemas ‘não perturbados’
sim, das próprias intervenções feitas por meio mostram-se totalmente inadequados. Em geral,
do sistema técnico-científico. O efeito estufa, a ciência não fornece teorias bem fundamen-
a ampliação da camada de ozônio, a erosão tadas em experimentos para explicar e prever
genética e de solos, a doença da vaca louca, esses problemas novos3(222).
a gripe asiática (Sars), o vírus ebola, a doença
do frango, [e atualizaríamos com a pandemia  De fato, “o modelo de ciência especializada
pelo coronavírus], o DDT, o ascarel, o amianto, que participou da criação dos principais riscos
o césio, o pentaclorofenato de sódio (o pó da ambientais modernos não será o mesmo que os
China), o agente laranja (Tordon 45), entre resolverá”24(36). Importa reconhecer que essa
tantos riscos que se nos apresentam, não são racionalidade científica não é despojada de
obras da natureza e, sim, efeitos de nossa valores nem é eticamente neutra, comprome-
ação por meio de poderosos meios técnicos e tendo a qualidade do conhecimento produzido
científicos22(122,123). e, portanto, das decisões políticas que embasa.
Falta reflexividade às instituições e atores
 Cabe então argumentar que a crise ci- científicos, cuja expertise é frequentemente
vilizatória está acompanhada de uma crise “utilizada para legitimar práticas espaciais
epistemológica: tidas por ambientalmente danosas”25(85).

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 277-292, JUN 2022


288 Rigotto RM, Rocha MM, Diógenes SS, Sousa RL, Pontes AGV, Lima LCB, Camurça AM, Teixeira MM

A revolução tecnológica não é externa às rela- Se a ciência moderna tende a fragmentar e


ções sociais e de poder, é parte delas, e por isto simplificar os problemas de estudo, “destrói
temos esta revolução tecnológica que aí está e os conjuntos e as totalidades e isola todos os
não outra, entre as muitas revoluções técnicas seus objetos do seu meio ambiente”29(12), o
possíveis. É preciso desnaturalizar a técnica, e paradigma da complexidade, necessariamente
libertá-la dessa visão que fala de uma revolução interdisciplinar, compreende a realidade de
tecnológica em curso sem se perguntar quem a modo multidimensional, assumindo o desafio
põe em curso. Afinal, as técnicas não caminham de tentar apreender simultaneamente unidade
por si mesmas22(106). e diversidade em uma perspectiva sistêmica29.
Mais que um dispositivo metodológico, re-
A ‘injustiça cognitiva’, componente conhecemos no diálogo de saberes – já propos-
central da crise epistemológica, é resul- to por Freire30 e Leff31, e formulado enquanto
tante do postulado colonial da “necessá- ecologia de saberes8 – um princípio ético-
ria superioridade dos conhecimentos que -político de uma ciência emancipatória. Além
essa sociedade [liberal-capitalista] produz de confrontar a injustiça cognitiva, amplia a
(‘ciência’) em relação a todos os outros co- qualidade e a utilidade social do conhecimento
nhecimentos”26(13). Ao negar a contribuição coproduzido, como demonstra o campo da
da filosofia, das artes, das teologias e dos agroecologia ou experiências como a nossa
saberes tradicionais e populares, cometem- com os movimentos sociais nos territórios
-se epistemicídios8. A negação dos saberes do semiárido.
e fazeres de povos e comunidades tradicio- Reconhecendo o potencial da produção
nais, frequentemente, leva o campo científi- compartilhada de conhecimentos, a justiça
co a posturas arrogantes e autoritárias que ambiental, posteriormente incorporada pela
inviabilizam o contato com cosmovisões e ecologia política6,32, mostra-se fecunda na
experiências que poderiam contribuir para leitura dos contextos vividos no semiárido.
encetar diálogos e troca de conhecimentos A proposta da epistemologia política24 busca
úteis à defesa da vida. integrar o paradigma da complexidade e a
Compreendemos que o campo científico ciência pós-normal no que
está sendo chamado a colocar a crise civiliza-
tória no centro de suas reflexões e práticas, já se refere à explicitação das incertezas e dos
que a vida está em risco iminente27. Os sinais valores em jogo, assim como ao papel da pro-
do colapso socioambiental28 são cada vez mais dução de conhecimentos na conformação de
incisivos e urgentes, acelerados na América processos decisórios e políticas públicas24(32).
Latina pela combinação de rentismo, neoex-
trativismo e neoliberalismo, como aponta a Articula os referenciais da justiça ambien-
ecologia política6. tal e incorpora “estratégias de visibilização
Precisamos de ‘narrativas insurgentes’, que das vozes ocultas de populações afetadas
anunciem “novos modos de resistência, que na sua condição humana”24(32). Tais aportes
recusam o esquecimento da capacidade de podem ser reunidos no que foi denominado de
pensar e de agir conjuntamente exigido pela ‘ciência orientada pelo ativismo’, com a qual
ordem pública”27(71). É por meio do engaja- nos identificamos:
mento em um processo coletivo de reflexão e
criação de saídas para a crise civilizatória que Uma dialética e dinâmica relação impulsiona
poderemos reunir elementos para a superação as interações entre acadêmicos e ativistas
da crise epistemológica, partindo do pressu- focados em conflitos ecológicos distributivos.
posto ético-político de que o conhecimento é Há um processo interativo entre a produção
um bem comum da humanidade7. de conhecimento e o uso do conhecimento,

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 277-292, JUN 2022


Vozes e fazeres do semiárido: convites à descolonização do campo científico, rumo a outras práxis 289

em que uns promovem os outros graças às que floresceram em novas formulações teó-
relações construídas ao longo do tempo entre rico-metodológicas, para um fazer científico
acadêmicos e ativistas6(17). [tradução nossa]. implicado com os processos de construção de
‘inéditos viáveis’33.
As crises civilizatória e epistemológica, bem Diante de uma crise sistêmica – que tem
como o chamado à construção ético-política seus contornos perversos evidenciados e agra-
de narrativas insurgentes, portam convites ao vados pela pandemia da Covid-19 –, vivemos
campo da saúde coletiva, já que estruturam o no Brasil o recrudescimento dos conflitos am-
contexto determinante do processo saúde- bientais e da utilização de práticas genocidas
-doença, e podem ser referências para nos e colonialistas contra povos indígenas e qui-
situarmos no campo social, construirmos os lombolas, entre outros povos tradicionais. Uma
problemas de estudo, compreendermos os pro- crise que lança sobre os povos racializados
cessos de vulnerabilização, fundamentarmos o ônus da falência de um projeto de moder-
a criação de caminhos metodológicos mais nidade que não cumpriu suas promessas de
abrangentes, além de nos orientar acerca de desenvolvimento e que segue se traduzindo em
proposições para a sociedade e para o Estado. espoliação, desterritorialização, precarização
Assim, dialogam com os estudos em políticas do trabalho, crescimento da violência e da
públicas, ciências sociais em saúde, epidemio- fome. Nesse contexto, compreendemos que
logia, saúde do trabalhador, saúde e ambiente, é urgente possibilitar a emergência de práxis
mudanças climáticas, saúde mental, saúde científicas e acadêmicas insurgentes.
indígena, nutrição, gênero, raça, educação Reconhecemos potências no campo da
popular, vigilância em saúde, promoção da saúde coletiva para contribuir com esse debate,
saúde, além de um amplo leque de associações uma vez que ele possibilita o entrelaçamento
científicas e de redes e movimentos sociais. de várias áreas de conhecimento em uma teia
Acreditamos que o modo que nos organiza- ampla e complexa dos sentidos de produção da
mos, a partir da pedagogia do território, ainda saúde. Sabemos que ainda há muito a aprender
que apresente limites e que não seja facilmen- com as vozes historicamente silenciadas ao
te ‘replicável’, é potente para a formação de reconhecer que seus modos de viver e produzir
pessoas capazes de atuar no campo científico e saúde nos informam sobre suas resistências
na docência de forma autônoma, crítica e soli- e alimentam novos paradigmas, tais como a
dária. A pedagogia do território nos tem levado agroecologia, que são sementes de um processo
a uma ressignificação do trabalho acadêmico, coletivo de criação de futuros desejáveis e
trazendo a ele novos sentidos e motivações, possíveis. 
rumo a um trabalho-poiese.

Colaboradores
Considerações finais
Rigotto RM (0000-0002-7460-3221)*, Rocha
A modernidade engendrou crises às quais MM (0000-0002-4203-4044)* e Diógenes
seu modelo de ciência não tem conseguido SS (0000-0001-8584-3936)* participaram da
solucionar. O reconhecimento disso nos leva concepção e do planejamento; da elaboração
a compreender a relevância de aprender com do rascunho e revisão crítica do conteúdo; e
os saberes e fazeres de inúmeros povos que da aprovação da versão final do manuscrito.
existem e resistem. O compromisso ético- Sousa RL (0000-0003-4459-9599)*, Pontes
-político nos territórios com os quais nos ar- AGV (0000-0002-3889-2484)*, Lima LCB
ticulamos – a partir da pedagogia do território (0000-0002-4748-1580)* e Teixeira MM
– fez brotar diversos processos e experiências (0000-0003-0389-6458)* participaram da

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 277-292, JUN 2022


290 Rigotto RM, Rocha MM, Diógenes SS, Sousa RL, Pontes AGV, Lima LCB, Camurça AM, Teixeira MM

concepção, planejamento, análise e interpreta- análise e interpretação dos dados; elaboração


ção dos dados; elaboração do rascunho e apro- do rascunho; aprovação da versão final do
vação da versão final do manuscrito. Camurça manuscrito. s
AM (0000-0003-3714-8829)* participou da

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Vozes e fazeres do semiárido: convites à descolonização do campo científico, rumo a outras práxis 291

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292 Rigotto RM, Rocha MM, Diógenes SS, Sousa RL, Pontes AGV, Lima LCB, Camurça AM, Teixeira MM

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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 277-292, JUN 2022


ENSAIO | ESSAY 293

Toxicologia crítica aplicada aos agrotóxicos –


perspectivas em defesa da vida
Critical toxicology applied to pesticides – perspectives in the defense
for life

Karen Friedrich1, Aline do Monte Gurgel2, Marcia Sarpa3, Cheila Nataly Galindo Bedor4, Marília
Teixeira de Siqueira5, Idê Gomes Dantas Gurgel2, Lia Giraldo da Silva Augusto2

DOI: 10.1590/0103-11042022E220

RESUMO A toxicologia é aplicada aos processos regulatórios tendo como base central a linearidade das
relações entre a dose e o efeito e a possibilidade de estabelecer condições de exposição seguras. Isso ocorre
apesar das limitações apontadas pela literatura cientifica. A concepção, a definição das metodologias e a
condução da avaliação de risco dos agrotóxicos acabam por atender aos interesses econômicos e à definição
de cenários de segurança distantes da realidade. As limitações metodológicas dos estudos exigidos para
fins de registro de um agrotóxico envolvem: a desconsideração das interações entre as misturas utilizadas;
a não previsão de curvas dose-resposta não lineares (horméticas); a compartimentalização dos desfechos
analisados; a exposição nos períodos críticos do desenvolvimento; e a desconsideração do contexto,
das diversidades individuais, coletivas e dos territórios expostos aos agrotóxicos, entre outros aspectos
discutido nesse ensaio. A toxicologia crítica propõe que a avaliação toxicológica parta da integralidade
do problema no contexto apresentando propostas que podem ser adotadas nos processos de regulação
de agrotóxicos e outras substâncias potencialmente perigosas.
1 Fundação Oswaldo Cruz
(Fiocruz), Escola Nacional PALAVRAS-CHAVE Medição de risco. Toxicologia. Agroquímicos. Marcos regulatórios.
de Saúde Pública Sergio
Arouca (Ensp), Centro ABSTRACT Toxicology is applied to regulatory processes based on the linear basis of the relationship between
de Estudos da Saúde do
Trabalhador e Ecologia dose and effect and the possibility of establishing safe exposure conditions. This occurs despite the limitations
Humana (Cesteh) – Rio de pointed out by the scientific literature. The conception, definition of methodologies, and the conduct of risk
Janeiro (RJ), Brasil. assessment of pesticides ends up meeting economic interests and the definition of security scenarios that
karenfriedrich@hotmail.com
are far from reality. The methodological limitations of the studies required for the purpose of registering a
2 Fundação Oswaldo Cruz pesticide involve: disregarding the interactions between the mixtures used; the failure to predict non-linear
(Fiocruz), Instituto Aggeu dose-response curves (hormetical); compartmentalization of the analyzed outcomes; exposure in critical
Magalhães (IAM) – Recife
(PE), Brasil. periods of development; and disregarding of the context, individual and collective diversity and the territo-
ries exposed to pesticides, among other aspects discussed in this essay. Critical toxicology proposes that the
3 Instituto
Nacional de toxicological assessment should start from the integrality of the problem in the context, presenting proposals
Câncer José Alencar
Gomes da Silva (Inca) – Rio that can be adopted in the regulation processes of pesticides and other potentially dangerous substances.
de Janeiro (RJ), Brasil.

4 Universidade
KEYWORDS Risk assessment. Toxicology. Agrochemicals. Regulatory frameworks.
Federal
do Vale do São Francisco
(Univasf) - Petrolina (PE),
Brasil.

5 Universidade de

Pernambuco (UPE) – Recife


(PE), Brasil.

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 293-315, JUN 2022
294 Friedrich K, Gurgel AM, Sarpa M, Bedor CNG, Siqueira MT, Gurgel IGD, Augusto LGS

Por que se faz necessária tornando-as menos protetoras para a saúde


uma toxicologia crítica? humana e o ambiente, e mantenedoras de
desigualdades e vulnerabilidades.
Realizar uma avaliação epistêmica e ontológica
da toxicologia como disciplina emerge como
uma necessidade por esta ser apropriada em Biopoder, biopolítica e a
favor da tolerância com as contaminações am- complexidade do processo
bientais e as exposições a produtos nocivos
à saúde. Também é relevante tratar como os
saúde-doença
interesses do mercado se imiscuem no Estado
e influenciam a produção técnico-científica, A compreensão das práticas sociais voltadas à
minimizando ou ocultando os perigos e riscos gestão e regulação dos processos vitais humanos
das exposições. e das práticas políticas contemporâneas pode
Parte-se do entendimento de que aborda- ser realizada mediante o conceito de biopoder,
gens teóricas e práticas críticas podem reduzir haja vista os saberes construídos em favor de
as nocividades para a saúde e o ambiente interesses conflitantes. Biopoder é entendido
diante da exposição a agentes químicos como como um conjunto de mecanismos e processos
os agrotóxicos. Uma perspectiva crítica aponta em que as características biológicas fundamentais
também caminhos para o campo da saúde co- da espécie humana passam a ser tratadas em
letiva, contribuindo assim para a promoção da uma estratégia política de poder sobre a vida1,2.
saúde, a justiça socioambiental, a soberania e a Sabe-se que diversos campos de conhecimento
segurança alimentar e nutricional e os territó- vêm sendo utilizados como instrumentalizadores
rios sustentáveis. Pode auxiliar na construção do biopoder, como estatística, epidemiologia,
de novos modelos compreensivos e de atuação toxicologia, engenharia genética, entre outros,
perante as nocividades do modo produtivo da contribuindo para maior controle da população,
agricultura químico-dependente. sendo sustentados por uma forma empirista do-
Tomando a complexidade da saúde, própria minante de produzir conhecimento. Isso dificulta
da saúde coletiva, como ponto de partida para o diálogo com outros campos do conhecimento,
uma revisão crítica da toxicologia, no seu modo ao mesmo tempo que não se debruçam sobre os
positivista dominante, busca-se, inicialmente, contextos reais com toda a sua complexidade.
analisar as implicações do biopoder nos pro- Algumas características fundamentais do
cessos regulatórios dos agrotóxicos. Integrar modo positivista do conhecimento merecem
os contextos de vulnerabilidade e suas inte- destaque, tais como: i) a exclusão e a separação
rações nos sistemas e processos biológicos é do sujeito perante o objeto de estudo, levando à
fundamental para proteger o fazer científico crença de que a ciência é neutra; ii) a fragmen-
dos interesses que promovem a manipulação tação do todo em partes, com exclusão das in-
da ciência e assim construir as bases para o terações, levando à inversão de complexidade,
desenvolvimento de uma toxicologia crítica, submetendo a compreensão do mais geral (o
a partir da saúde coletiva. todo) a uma simples análise de componentes
A recente flexibilização das legislações sem conexão3 ou apenas justapostos; iii) o uso
trabalhistas, previdenciárias e ambientais, do positivismo científico voltado à criação de
incluindo todo o arcabouço que regula o re- uma ‘ciência oficial’ subordinada ao biopoder, em
gistro e uso de agrotóxicos no Brasil, coloca a que a seleção dos instrumentos e procedimentos
urgência da abordagem crítica da toxicologia. se impõem à sociedade, sem a devida crítica,
Busca-se uma profunda revisão das premissas dificultando as ações de proteção da saúde e de
basilares que permitem que a toxicologia seja resistência às nocividades geradas nos proces-
utilizada para a flexibilização das normativas, sos de produção e consumo2; e iv) os limites do

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 293-315, JUN 2022


Toxicologia crítica aplicada aos agrotóxicos – perspectivas em defesa da vida 295

conhecimento frequentemente são ocultados e perturbam os fenômenos; o sujeito-observador


os resultados obtidos em processos de validação surpreende sua própria face no objeto observado;
internos do método de investigação são estabe- as antinomias vagam no curso do raciocínio7.
lecidos como verdades para o todo. Os fenômenos da saúde são complexos,
Em oposição, uma atitude crítica permite emergem em diferentes planos e possuem in-
identificar os limites do conhecimento científico, terfaces hierárquicas interdependentes, com
apontando a necessária autonomia do Estado e da grande quantidade e diversidade de informa-
Academia, salvaguardando direitos fundamentais ção. Esses planos contêm subsistemas em dife-
e evitando a ocultação dos danos e a opressão das rentes níveis de integração – microestrutural,
estruturas de biopoder2. microssistemas, subindividual, epidemiológico,
A interferência no Estado representa uma ecossocial, econômico, político e simbólico – e
estratégia fundamental para a consolidação de estão subsumidos hierarquicamente, em que o
práticas de biopoder voltadas para atender aos mais complexo supera e conserva o de menor
interesses do capital financeiro, e a manipulação complexidade e o ressignifica3.
da ciência permite essas aproximações e justifi- Essas ferramentas cognitivas permitem com-
ca a adoção de medidas que, não raro, resultam preender as interações e as mediações existentes
em danos à saúde e ao ambiente. Marques4(506) nos processos de determinação, como condicio-
aponta que os Estados foram tomados pelos in- nantes econômicos, sociais, ambientais, políticos
teresses das corporações capitalistas por não e culturais, considerando os diferenciais de vul-
terem poder para impor as regras do jogo nem nerabilidades, de suscetibilidades e de resiliências
contrabalançar as “forças cegas do mercado”. não contemplados nos efeitos observáveis em
Segundo o autor, “recai, assim, sobre os ombros análises laboratoriais. Os fenômenos biológicos
da sociedade civil a tarefa imensa de confrontá- são vistos nos diferentes planos de interação, ex-
-las”. É com base nessa constatação que se insere trapolando a relação dose-resposta. Em situações
a necessidade de uma ciência crítica, que atue de complexas, predições não podem se basear em
forma ética na proteção da saúde. conhecimentos de um só ramo da ciência, sendo
A adoção de legislações protetivas, que necessário o amplo entendimento da sua relação
postulem a proibição de agrotóxicos devido a com a sociedade8.
efeitos graves como mutagênese, carcinogênese,
desregulação endócrina, teratogênese e toxici-
dade reprodutiva, é conflitante com interesses Críticas ao modelo
gananciosos das indústrias. O biopoder se vale dominante: limitações da
então de mecanismos diversos, desde atuar na
definição de conceitos que lhe favoreçam, como
toxicologia clássica
criar critérios muito específicos para definir o
que são desreguladores endócrinos5; pressionar a A toxicologia estuda a interação entre os agentes
realização, interpretação e divulgação de estudos; químicos, biológicos e físicos com os organismos
até perseguir cientistas independentes que di- vivos e ecossistemas, incluindo a prevenção e
vulguem achados contrários a seus interesses6. o tratamento dos efeitos e danos resultantes,
Desvelar os fenômenos promotores de noci- bem como a avaliação das probabilidades de sua
vidades que se sustentam nos mecanismos de ocorrência. Um de seus principais paradigmas
biopolítica e biopoder demanda compreender é a crença na relação linear de dose-resposta,
a complexidade do processo saúde-doença. A que sustenta que um efeito será mais expressivo
complexidade não é passível de simplificação, quanto maior for a dose de exposição, permi-
e surge onde a unidade produz emergências; as tindo calcular a dose ‘segura’ de exposição que
distinções e as clarezas de identidades e causa- não afetará a saúde humana, estabelecendo-
lidades se perdem; as desordens e as incertezas -se um ‘risco aceitável’. Essa tese baseia-se em

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296 Friedrich K, Gurgel AM, Sarpa M, Bedor CNG, Siqueira MT, Gurgel IGD, Augusto LGS

imprecisões na tradução do texto original de financiados pela indústria, assinaram sua autoria
Paracelsus (1492-1541), as quais subvertem seu para conferir credibilidade às publicações), inter-
sentido9. O equívoco da premissa da existência de feriu no processo de revisão por pares em artigos
‘limites seguros de exposição’ encontrou amparo submetidos à periódicos científicos, influenciou
na toxicologia e sustenta processos regulatórios, na criação de um site pretensamente acadêmico
a partir da avaliação de risco10. São estabeleci- para defender seus produtos e perseguiu ins-
dos assim “padrões negociados”, resultantes da tituições e pesquisadores independentes que
incorporação-integração de limites de natureza publicaram estudos revelando a toxicidade do
não científica, mas de ordem tecnológica, econô- glifosato6,14,15.
mica, social ou política11. Essas ações diretas sobre o processo científico,
As metodologias adotadas e a condução da alterando ou suprimindo descobertas científi-
avaliação de risco atendem aos interesses do cas e distorcendo as conclusões para obtenção
mercado, que propõe a existência de cenários de vantagens, representam o “abuso político
supostamente seguros a partir de dados apresen- da ciência”16, frequentemente evidenciado no
tados como seguros pelas indústrias, que podem processo de regulação de substâncias perigosas.
ter origem em fontes não isentas ou selecionadas Busca-se assegurar que os processos de regulação
de forma tendenciosa, insuficientes para identi- de substâncias perigosas sejam considerados
ficar potenciais danos10. como sustentados por um pretenso rigor técnico
Um exemplo é o processo de reavaliação do e científico, neutro e sem vieses, mas que objetiva
glifosato, iniciado em 2008 e finalizado em 2019, atender aos interesses do mercado17.
pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária Em países com instrumentos contratuais e de
(Anvisa), que decidiu pela sua manutenção no tutelas sociais mais frágeis, como o Brasil, onde
País12,13. Há evidências de que estudos de pes- a estrutura legal e a organização dos serviços de
quisadores independentes tiveram menor peso vigilância da saúde e de assistência social são
na tomada de decisão. A conclusão oficial de que bastante precárias, os níveis de educação são
o glifosato não apresenta características mu- baixos e de desemprego são altos, criam-se con-
tagênicas, teratogênicas e carcinogênicas, não dições para uma cultura de aceitação de perigos
é desregulador endócrino nem é tóxico para a e riscos e de negociação de padrões de exposição,
reprodução se amparou nas conclusões apresen- fortemente determinados pelo setor regulado, em
tadas pela força-tarefa (task force) de reavaliação que a influência dos trabalhadores, sindicatos e
do glifosato. As força-tarefa são grupos formados sociedade é praticamente inexistente11.
pelas empresas registrantes para atuarem nas As estratégias de manipulação da toxicologia
agências reguladoras nos processos regulatórios pela tecnociência, em particular na regulação sa-
de seus produtos, e, no caso do glifosato, descon- nitária, criam artifícios para aceitação dos perigos.
sideraram os estudos utilizados pela Agência A abordagem crítica anuncia meios de supera-
Internacional de Pesquisa em Câncer (Iarc) que ção, a partir da saúde coletiva, cujos corolários
classificou esse agrotóxico como provável carci- apontam as interações, as mediações, os planos e
nógeno para humanos. as interfaces dos fenômenos, permitindo operar a
Contudo, ficou comprovado, mediante a toxicologia e dar-lhe consequência interpretativa
divulgação judicial de documentos internos para a proteção da saúde e da vida.
da Monsanto, uma das maiores produtoras de
agrotóxicos formulados com glifosato, que a
transnacional não avaliou adequadamente a to- Avaliação de risco:
xicidade de seus produtos, ocultou estudos com definição e prática
resultados desfavoráveis à empresa, contratou
‘escritores fantasma’ (pesquisadores renomados A avaliação de risco é um procedimento
que, embora não tenham participado dos estudos para estimar a probabilidade de um agente

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 293-315, JUN 2022


Toxicologia crítica aplicada aos agrotóxicos – perspectivas em defesa da vida 297

em produzir efeitos adversos na população definição de limites seguros, da linearidade


em determinadas condições de exposição, das curvas dose e efeito e da determinação dos
devendo agregar informações qualitativas ‘riscos aceitáveis’. Levando em conta fórmulas
e quantitativas, mas, principalmente, des- para extrapolação de doses testadas em con-
crever as incertezas e as variabilidades do dições controladas, são feitos os cálculos de
processo. Autores do principal livro texto probabilidade que estimam quem morre, quem
da toxicologia na atualidade reconhecem adoece e o custo-benefício para os setores
que muitos usuários igualam a avaliação privados com a socialização dos danos10.
de risco a um processo quantitativo, produ- Contudo, a determinação do maior nível de
zindo um número excessivamente preciso dose a que, supostamente, uma pessoa pode se
da estimativa de risco, ao mesmo tempo expor sem que sejam observados efeitos signi-
que ignoram informações cruciais sobre as ficativos contraria a perspectiva da adoção de
incertezas da avaliação de risco, modos de medidas mais protetoras para a saúde e o am-
ação e os tipos de efeitos sobre as espécies biente. Para isso, seria necessário um esforço
ou os contextos18. para eliminar ou reduzir ao máximo os níveis
No Brasil, a Anvisa é o órgão responsável de exposição a substâncias tóxicas, partindo da
pelo processo de avaliação de risco para a menor dose19. O processo de avaliação de risco,
saúde humana diante da exposição a agrotó- permeado por variadas limitações, é dividido em
xicos, cujo processo é feito a partir da análise quatro etapas: identificação do perigo, avaliação
dos resultados dos estudos realizados pelo da exposição, avaliação dose-resposta e caracte-
registrante. Para isso, a Agência se vale da rização do risco, como visto na figura 1.

Figura 1. Etapas e conceitos da avaliação e principais limitações

ETAPAS DA AVALIAÇÃO DE RISCO

Identificar os danos Caracterização da Medida da relação entre Incidência estimada de efeitos


observados nos exposição segundo a exposição (dose) e efeitos adversos na(s) populações-alvo,
estudos in vivo e fonte, o tipo, a (resposta), através da sob condições de exposição controlada
in vitro apresentados magnitude, a duração avaliação de estudos (descrição da natureza e da
pelas empresas e pelas diferentes vias de experimentais in vitro e potencialidade do risco).
estudos científicos entrada no organismo in vivo e epidemiológicos, Análise, integração e sumarização
disponíveis na (oral, dérmica inalatória) quando disponíveis das etapas 1, 2 e 3 para cálculo
literatura. e conclusões do risco

AVALIAÇÃO DA
1 IDENTIFICAÇÃO
DO PERIGO 2 EXPOSIÇÃO 3 AVALIAÇÃO DOSE
RESPOSTA 4 CARACTERIZAÇÃO
DO RISCO

LIMITAÇÕES DA AVALIAÇÃO DE RISCO


PERSPECTIVA CRÍTICA DA TOXICOLOGIA

Não investiga efeitos Baixas


que podem ocorrer transparência,
em baixas doses assimetria e
controle social em
relação aos estudos
da indústria

Baixo poder
preditivo para
danos crônicos (ex:
neurológicos, Limitações e
endócrinos, câncer) incertezas dos testes
experimentais não
explicitados

Desconsidera Efeitos das


irreversibilidade e misturas, diferentes
especificidade dos Resultados
vias e fontes e falso-negativos
danos em períodos outros estressores
críticos do desconsiderados
socioambientais
desenvolvimento não avaliados

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298 Friedrich K, Gurgel AM, Sarpa M, Bedor CNG, Siqueira MT, Gurgel IGD, Augusto LGS

Em uma perspectiva crítica, para proteger e fora do contexto em que efetivamente se dá


a saúde, a avaliação de risco deveria partir do a exposição.
conhecimento de como os produtos e proces-
sos produtivos, nos contextos socioambien-
tais em que se inserem, podem representar Limitações metodológicas
perigos, diferenciais de vulnerabilidades, no processo regulatório
de exposição e de efeito. Deve incorporar
dimensões temporais, espaciais, culturais,
econômicas, éticas e políticas, que podem Limitação dos testes exigidos para
modificar a possibilidade de ocorrência de avaliação toxicológica
eventos negativos, como adoecimento, morte,
sofrimentos e perdas materiais e simbólicas. A avaliação toxicológica voltada à regulação de
Esses elementos devem estar integrados em diferentes produtos utiliza os resultados dos
planos hierárquicos, desde os níveis molecu- testes toxicológicos descritos em diretrizes
lar, celular, clínico, epidemiológico, social, internacionais, como as da Organização para
cultural, ambiental, nos quais estão envolvidas a Cooperação e Desenvolvimento Econômico
de forma interdependente a microestrutura (OCDE) (quadro 1). As diretrizes são elabora-
biológica e as macroestruturas sociais, eco- das por diferentes organismos internacionais
nômicas, culturais e políticas, orientando a e determinam os desenhos metodológicos dos
tomada de decisão. É necessário superar os testes que são apresentados pelo setor privado
modelos de avaliação baseados na observa- como exigência para terem seus produtos auto-
ção fragmentada e na quantificação isolada rizados, em que os resultados dos estudos ex-
de eventos, representando meras abstrações perimentais determinam a segurança humana
probabilísticas medidas de forma a-histórica e ambiental20.

Quadro 1. Relação das diretrizes da OCDE preconizadas para avaliação de efeitos sobre a saúde humana classificadas
segundo tipo de teste de toxicidade

Tipo de teste Número da Diretriz (Ano de publicação) (via de exposição/espécie)


Agudo TG 420 (2002) (Oral - TG 403 (2009) (Inalatória/ TG 402 (2017) (Dérmica/
Dose Fixa/roedores) ratos) ratos)
TG 436 (2009) (Inalatória/ TG 433 (2018) (Inalatória –
ratos) Dose Fixa/ratos)
Subagudo TG 407 (2008) (Oral/ TG 412 (2018) (Inalatória/ TG 410 (dérmica 21/28-
roedores) roedores) dias/ratos, coelhos ou
porquinhos-da-índia)
Subcrônico TG 409 (1998) (Oral/não TG 411 (1981) (Dérmica/ TG 413 (2018) (Inalatória/
roedores) ratos, coelhos ou porqui- ratos)
TG 408 (2018) (Oral/ nhos-da-Índia)
roedores)
Crônico TG 453 (2018) (oral, dér- TG 452 (2018) (oral, dér- TG 451 (2018) (carcinoge-
mica ou inalatória/ crônico mica ou inalatória/crônico/ nicidade/roedores)
e carcinogenicidade/ roe- roedores)
dores)
Sensibilização dérmica TG 427 (2004) (ratos) TG 429 (2010) (in vivo/ TG 442D (2018) (in vitro)
TG 406 (1992) (porqui- camundongos) TG 442E (2018) (in vitro)
nho-da-Índia) TG 442B (2018) (in vivo/ TG 442C (2020) (in che-
TG 442A (2010) (in vitro) camundongos); mico)

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Toxicologia crítica aplicada aos agrotóxicos – perspectivas em defesa da vida 299

Quadro 1. (cont.)

Tipo de teste Número da Diretriz (Ano de publicação) (via de exposição/espécie)


Reprodutiva e Desenvolvi- TG 416 (2001) (oral/duas TG 421(2016) (oral/teste TG 443 (2018) (Via de
mento gerações/roedores) de triagem reprodutiva e administração depende das
TG 414 (2018) (oral/pré- desenvolvimento/ratos) informações disponíveis/
-natal/ratos e coelhos) TG 422 (2016) (oral/teste Uma geração estendida/
de triagem combinado ratos)
reprodutiva e desenvolvi-
mento/ratos)
Genotoxicidade TG 486 (1997) Síntese TG 478 (2016) (oral ou TG 473 (2016) (aberração
de DNA não programada intraperitoneal/dominância cromossômica em mamífe-
(UDS) com células de letal/roedores) ros/in vitro)
mamíferos in vivo TG 476 (2016) (mutação TG 488 (2020) (mutação
TG 485 (1986) (oral, genética em células de em células somáticas e
intubação, intraperitoneal/ mamífero/in vitro) germinativas em roedores
Ensaio de translocação TG 474 (2016) (Via mais transgênicos)
hereditária/camundongos) adequada ao tipo de ex- TG 487 (2016) (teste de
TG 471 (2020) (mutação posição/Micronúcleo em micronúcleo em célula de
reversa em bactérias) eritrócito de mamífero/ mamífero/in vitro)
TG 489 (2016) (via mais Roedores)
adequada ao tipo de ex- TG 490 (2016) (mutação
posição/teste de cometa/ genética em células de
roedores) mamíferos)

Neurotoxicidade TG 424 (1997) (Oral/28, TG 418 (1995) (Oral/ TG 419 (1995) (Oral/
90 ou crônico/Roedores) Neurotoxicidade tardia de Neurotoxicidade tardia de
TG 426 (2007) (Oral/ organofosforados/aguda/ organofosforados/28 dias/
Neurotoxicidade do desen- galinhas) galinhas)
volvimento/ratos)
Irritação/ Corrosão dér- TG 435 (2015) (Teste de TG 430 (2015) (Corrosão TG 439 (2020) (Irritação
mica barreira de membrana para dérmica: Resistência elétri- dérmica epiderme recons-
corrosão dérmica/in vitro) ca transcutânea/in vitro) truída humana)
TG 404 (2015) (Aguda/
Irritação/corrosão/coelho)
Desregulação endócrina TG 493 (2015) (Afinidade TG 456 (2011) (Ensaio de TG 455 (2016) (Detecção
de ligação a receptor de Esteroidogênese in vitro) de agonistas e antagonistas
estrogênio/in vitro) TG 441 (2009) (Oral ou de receptor de estrogênio
TG 440 (2007) (Oral ou subcutânea/Teste de Her- in vitro)
subcutânea/Teste de ute- shberger/ratos)
rotrópico em ratos)
Dano ocular TG 491 (2020) (exposição TG 460 (2017) (Identifica- TG 494 (2020) (Teste
de curto prazo in vitro para ção de corrosivos oculares Vitrigel para identificar
identificar dano ocular) e irritantes severos) irritação ocular)
TG 437 (2020) (Teste de TG 496 (2020) (Teste TG 492 (2020) (Epitélio
permeabilidade e opacida- macromolecular in vitro humano reconstruído para
de em córnea bovina para para identificação de dano identificar dano ocular) TG
identificação dano ocular) ocular) 438 (2018) (Teste de olho
TG 405 (2020) (Irritação, isolado de frango para iden-
corrosão ocular aguda/ tificação de dano ocular)
coelho)
Fototoxicidade TG 432 (2020) Teste de fototoxicidade TG 495 (2020) (teste de fotorreatividade
in vitro com espécies reativas de oxigênio)
Toxicocinética TG 417 (2010) (Oral/Toxicocinética/ratos) TG 428 (2004) (absorção dérmica/in
vitro)
Fonte: Elaboração própria a partir de Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico. OECD Guidelines for the Testing of
Chemicals, Section 4: Health Effects, 202020.

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300 Friedrich K, Gurgel AM, Sarpa M, Bedor CNG, Siqueira MT, Gurgel IGD, Augusto LGS

Entre as 70 diretrizes da OCDE vigentes, mas que raramente são apresentadas na bula,
15 são destinadas à classificação de efeitos como outros ingredientes ativos, surfactantes,
agudos, subagudos, subcrônicos e crônicos, contaminantes e impurezas significativas do
que não aprofundam a investigação de deter- ponto de vista toxicológico, e que podem estar
minados desfechos, em especial de funções que associados a graves danos à saúde ou ao am-
não são alvo de diretrizes específicas, como biente. Estudos independentes e documentos
desregulação hormonal, imuno, nefro, hepato internos da Monsanto revelaram que produtos
e cardiotoxicidade. formulados com glifosato demonstram ser
Os estudos exigidos nas diretrizes interna- mais tóxicos que o Ingrediente Ativo (IA)
cionais e utilizados com fins regulatórios são isolado, demandando novos debates sobre
pautados em ensaios experimentais in vivo questões científicas e regulatórias6,15,22.
(animais de laboratório), in vitro (culturas de Embora os produtos formulados não passem
células) ou in silico (modelos computacionais), por todos os testes toxicológicos aos quais os
e seus resultados sustentam a avaliação de ingredientes ativos são submetidos23, para-
risco. Os estudos independentes, em geral, doxalmente, as pesquisas independentes que
não se restringem às metodologias propos- os testam e que apresentam resultados mais
tas nessas diretrizes, que limitam a escolha próximos da realidade de exposição têm menor
do número de doses, de modelos e são redu- peso na toxicologia regulatória, que centraliza
cionistas quanto aos desfechos observados. a análise no IA.
Assim, abordam outros aspectos relevantes,
identificando repercussões sobre diferentes Descaracterização dos contextos de
funções fisiológicas e investigando interações exposição
entre substâncias.
Embora os testes tenham metodologias A avaliação de risco adotada na prática para o
padronizadas internacionalmente, a lista dos registro de agrotóxicos, em geral, favorece os
exigidos para fins de regulação pode diferir interesses do biopoder ao apresentar desenhos
entre países. Aqueles que exigem menos testes experimentais limitados e insuficientes para
são alvos preferenciais no mercado de produ- detectar toda a diversidade de danos à saúde
tos associados a danos à saúde e ao ambiente, e que um agente químico pode causar nos reais
que não teriam seu registro aprovado em países cenários de exposição24,25.
mais rígidos quanto à segurança sanitária e Os estudos epidemiológicos seguem diretri-
ambiental. É facultado às agências reguladoras zes éticas e metodológicas rígidas, inerentes
exigir a complementação dos estudos, mas, no às pesquisas envolvendo seres humanos. Na
Brasil, solicitações dessa natureza nem sempre regulação de agrotóxicos, as agências regula-
são atendidas pelas empresas. Isso reitera a doras consideram majoritariamente na análise
fragilidade do Estado diante de setores eco- estudos realizados com populações compro-
nômicos poderosos, muitas vezes organizados vadamente expostas ao agrotóxico em teste,
em grandes grupos como as forças-tarefa, re- às vezes exigindo a comprovação analítica
centemente observadas no País na reavaliação que não havia outra exposição. Obviamente,
do glifosato e do 2,4-D13,21. os desenhos dos estudos epidemiológicos ra-
ramente atendem a essas exigências, pois a
Desconsideração dos produtos realidade concreta é de exposições múltiplas
formulados na avaliação do a diferentes agrotóxicos. Por exemplo, um
ingrediente ativo estudo epidemiológico que mostrou altera-
ções na fertilidade masculina após a exposição
Os agrotóxicos são formulados com subs- ao herbicida 2,4-D foi considerado limitado
tâncias que podem aumentar sua toxicidade, pela força-tarefa 2,4-D no Parecer Técnico de

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Toxicologia crítica aplicada aos agrotóxicos – perspectivas em defesa da vida 301

Reavaliação da Anvisa por não ter sido possível influenciam a biotransformação, a depura-
descartar a presença de outros agrotóxicos21. ção (clearance) renal e determinam aspectos
A indústria de venenos também desqualifica sobre os metabólitos produzidos, incluindo o
sistematicamente esses achados, ampliando tempo necessário para excreção27. Como não
artificialmente as incertezas e as deslocan- é possível minimizar o impacto das diferenças
do em favor dos seus interesses, ignorando o entre os padrões laboratoriais e o mundo real,
princípio da precaução17,26. simplificam-se os pressupostos para tradu-
Esses exemplos ilustram como as certezas zir a exposição dos animais a equivalentes
e a pretensa neutralidade dos atores que têm humanos29.
interesse financeiro na venda desses produ- Também são desconsiderados em estudos
tos são superestimadas. Ao mesmo tempo, com animais os fatores comportamentais
os estudos das indústrias são mantidos sob (como hábito de fumar ou beber, que interfe-
sigilo, não sendo permitidas a avaliação e a rem na absorção), a diversidade genética e a
interpretação dos seus achados por cientistas variabilidade de outros fatores endógenos em
independentes e outros atores envolvidos na humanos, que seriam mais bem representados
defesa do interesse público. em estudos epidemiológicos27,28.
Existem situações não reproduzíveis em
Ocultação das incertezas e condições experimentais, sendo não raro
vulnerabilidades nos modelos dos consideradas fatores de confundimento ou
estudos experimentais interferentes6, como saneamento básico ina-
dequado, aspectos nutricionais, adensamentos
A extrapolação dos resultados dos estudos em habitacionais, desigualdade social, violência
animais para humanos, particularmente para e dificuldade de acesso a políticas públicas.
estabelecer doses seguras de exposição, parte Enquanto o ambiente controlado dos
de assunções relacionadas com similaridades estudos em animais pode ser útil para identi-
toxicocinéticas e toxicodinâmicas interespé- ficar relações causais, estudos com humanos
cie, com taxas de absorção, metabolização e são melhores para avaliar exposição a misturas
de eliminação semelhantes27. A extrapolação e interações entre diferentes agentes e caracte-
requer supor que as exposições são equivalen- rização do status real do adoecimento28. Logo,
tes, ignorando questões que podem resultar em os resultados dos estudos epidemiológicos em
estimativas de risco distintas entre espécies. pessoas expostas a essas substâncias nas con-
Ainda, diferenças nas taxas de respiração, ta- dições reais de uso reduzem o impacto das in-
manhos de órgãos, metabolismo basal, taxas de certezas inerentes à extrapolação dos dados de
renovação celular e duração de vida dificultam estudos em animais29. No entanto, isso só seria
a comparabilidade interespécie28,29. possível após a concessão do registro, quando
Há uma grande variação na dose, frequên- as substâncias já estariam liberadas. Por essa
cia e condições de exposição em exposições razão, a revisão periódica do registro é crucial,
ambientais e ocupacionais, sendo impossível devendo, nesse momento, dar mais peso aos
mimetizá-las em laboratório, um ambiente resultados dos estudos epidemiológicos.
controlado, artificial e distante da realidade. Outra limitação reside na interpretação
A administração de um único produto feita em dos estudos quantitativos que investigam a
laboratório, desconsiderando entradas simul- associação entre exposição e efeito. Quando
tâneas por diferentes vias de exposição (oral, estes não alcançam a significância estatística
inalatória, dérmica), tem pouco em comum estipulada na metodologia, aceita-se a hipótese
com um cenário de exposições múltiplas nula, de não associação30.
por múltiplas vias a que os humanos estão Essas questões apontam que é justamente a
expostos29. As vias de entrada no organismo aproximação da realidade, com incorporação

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 293-315, JUN 2022


302 Friedrich K, Gurgel AM, Sarpa M, Bedor CNG, Siqueira MT, Gurgel IGD, Augusto LGS

das incertezas e subjetividades, que confere Os estudos de imunotoxicidade são expres-


maior confiabilidade aos achados dos estudos sivos desde 1970; ainda assim, a compreensão
epidemiológicos em humanos, evidenciando de sua magnitude e a incorporação desses
o real comportamento das substâncias ante a efeitos na avaliação de risco são limitadas.
multiplicidade de condições que interferem na Mesmo estudos realizados por grupos inde-
contaminação ambiental ou exposição humana. pendentes têm se voltado mais à investigação
de manifestações alérgicas do que a alterações
Negligenciamento da integração dos que aumentam a suscetibilidade a infecções e
eixos neurológico, imunológico e doenças como câncer e respostas inflamató-
endócrino rias35. As diretrizes da OCDE incluem poucos
testes específicos para a investigação de imu-
Em geral, os estudos experimentais conside- notoxicidade, a maioria voltados a identificar
rados para fins regulatórios são pouco sensí- respostas locais como sensibilização dérmica.
veis para detecção de desfechos precursores A imunotoxicidade abrange danos resul-
de doenças neurológicas, reações ou doenças tantes do estímulo e da inibição das respos-
autoimunes, diminuição das respostas imunoló- tas imunológicas. No primeiro caso, reações
gicas (imunossupressão), alterações das funções alérgicas, de hipersensibilidade, sensibilidade
relacionadas com os hormônios (desregulações dérmica e autoimunidade podem estar asso-
endócrinas) e outras manifestações crônicas. ciadas a exposições a substâncias químicas
Os testes de neurotoxicidade preconizados como agrotóxicos. O comprometimento da
pela OCDE preveem a observação de parâme- capacidade de resposta imunológica pode
tros comportamentais, por vezes subjetivos, levar à imunossupressão, reduzindo as defesas
dos animais de laboratório (quadro 1). Embora contra infecções e a capacidade de eliminar
medidas como definir o mesmo observador células potencialmente neoplásicas36. A imu-
para avaliar os grupos estudados possam nossupressão é considerada pela Iarc um dos
dirimir alguns vieses, a subjetividade durante mecanismos precursores para o desenvolvi-
a observação e interpretação dos achados não mento de câncer em humanos37, ocasionando
está descartada. A neurotoxicidade atua me- tumores mesmo que estes não tenham sido
diante diversos mecanismos que resultam em observados nos testes usualmente realizados
variadas doenças. Estudos experimentais e nos modelos experimentais.
epidemiológicos correlacionam a exposição A identificação dos principais mecanis-
a alguns agrotóxicos e desordens neurodege- mos de ação dos desreguladores endócrinos
nerativas, como Alzheimer e Parkinson17,31, e também é limitada nas diretrizes disponíveis.
prejuízos ao desenvolvimento e maturação Os principais mecanismos de ação de desregu-
neurocomportamental32-34. lação endócrina podem ser reunidos em dez
Muitas desordens neurodegenerativas não grupos de características-chave (quadro 2).
são devidamente investigadas e incorporadas Nessas características, podem estar inseridos
na avaliação de risco. Como exemplo, estudos componentes dos eixos hormonais que atuam,
experimentais para avaliar uma possível asso- por exemplo, sobre crescimento, desenvolvi-
ciação entre a exposição a agrotóxicos organo- mento sexual, amamentação, processos meta-
fosforados e parkinsonismo foram realizados bólicos, apetite, sono, humor, comportamento,
somente três décadas após o registro do pri- estresse, temperatura corporal38, apontando
meiro caso suspeito em humanos17. a amplitude das interferências.

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Toxicologia crítica aplicada aos agrotóxicos – perspectivas em defesa da vida 303

Quadro 2. Características-chave compartilhadas por substâncias químicas desreguladoras endócrinas para seres
humanos

Diretrizes que podem identificar a


Características-chave Breve descrição característica
1. Interação ou ativação Os hormônios atuam por meio da ligação a recep- TG 493 (2015) Ligação ao receptor
de receptores de hor- tores. A interação ou a ativação inadequada do de estrogênio (ratos)
mônios receptor podem causar danos que dependem da TG 455 (2016) Ativação transcricio-
função desempenhada pelo hormônio relacionado nal do receptor de estrogênio
TG 458 (2020) Ativação transcricio-
nal de receptor de androgênio
TG 440 (2007) Uterotrópico (ratos)
TG 441 (2009) Hershberger
2. Antagonismo de A inibição ou o bloqueio das ações hormonais por TG 455 (2016) Ativação transcricio-
receptor de hormônio meio da ligação ao receptor de hormônios podem nal de receptor de estrogênio
levar a danos como infertilidade e retardo no TG 458 (2020) Ativação transcri-
desenvolvimento de parâmetros reprodutivos etc. cional de receptor de androgênio
(humano)
TG 441 (2009) Hershberger
3. Alteração da expres- A expressão de receptores influencia na função Não foram encontradas diretrizes
são de receptores de dos hormônios e, quando alterados, pode reper-
homônimo cutir nas suas funções. Além da expressão gênica
estar alterada, a internalização ou a degradação
desses receptores também podem ocorrer inter-
ferindo na atuação adequada e tempestiva dos
hormônios
4. Alteração na transdu- A ligação do hormônio ao receptor desencadeia Não foram encontradas diretrizes
ção de sinais em células respostas intracelulares específicas que variam de
responsivas a hormônios acordo com o receptor, propriedades específicas
do tecido e da célula-alvo
5. Indução de modifi- Os hormônios podem exercer efeitos permanen- Não foram encontradas diretrizes
cações epigenéticas na tes – especialmente durante o desenvolvimento e
produção ou na resposta a diferenciação – modificando os processos epige-
das células a hormônios néticos, incluindo modificações no DNA, histonas
e expressão de RNA não codificante
6. Alteração na síntese A síntese hormonal é regulada por via intracelular TG 456 (2011) Esteroidogênese
de hormônios e por mecanismos de retroalimentação (feed- (humano)
back). Após transcrição e tradução, proteínas e
hormônios peptídicos são armazenados
7. Alteração do transpor- Hormônios lipofílicos podem se mover através Não foram encontradas diretrizes
te de hormônio por meio das membranas de forma passiva; outros, apenas
de membranas celulares de forma seletiva, dependendo de transportadores
específicos. Alterações nos canais de transporte
também impactam suas funções
8. Alteração da distri- Dependendo de sua estrutura, os hormônios Não foram encontradas diretrizes
buição de hormônios podem circular de forma ‘livre’ (sem ligantes)
ou níveis de hormônio ou conjugados a proteínas. Interferências nesse
circulante processo de circulação, como a degradação dos
ligantes, impactam na chegada dos hormônios
nas células-alvo
9. Alteração do meta- Após a secreção e a função desempenhada, os Não foram encontradas diretrizes
bolismo ou liberação hormônios são degradados por proteases ou
hormonal inativados, tornando-os mais hidrossolúveis,
facilitando sua excreção. Interferências nesse
processo podem levar à degradação inadequada
dos hormônios

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304 Friedrich K, Gurgel AM, Sarpa M, Bedor CNG, Siqueira MT, Gurgel IGD, Augusto LGS

Quadro 2. (cont.)

Diretrizes que podem identificar a


Características-chave Breve descrição característica
10. Altera o destino de Hormônios desempenham suas funções, afetando Não foram encontradas diretrizes
células produtoras ou a estrutura e a organização do tecido por meio da
responsivas a hormônios proliferação celular, migração e diferenciação e
morte celular programada ao longo da vida
Fonte: Elaboração própria, modificado de Merrill et al., 202039; Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico. OECD
Guidelines for the Testing of Chemicals, Section 4: Health Effects, 202020.

As funções do eixo neuro-imuno-endócrino características, somadas à diversidade e à com-


também compartilham outras características, plexidade e distribuição tecidual das estruturas
como maior vulnerabilidade à toxicidade em desses sistemas que são potenciais alvos para a
períodos críticos para o desenvolvimento, que interação de agentes tóxicos, tornam o modelo
podem levar à manifestação de doenças na fase de avaliação de risco tradicional insuficiente
adulta40, a danos causados a partir da exposi- para identificação de danos.
ção a baixas doses e curvas dose-resposta não
lineares38,41. Considerando a relação entre Negligenciamento dos
esses eixos, o potencial de desencadeamento mecanismos de genotoxicidade e
de efeitos severos, persistentes, potencial- carcinogenicidade
mente irreversíveis e que podem afetar gera-
ções futuras, a identificação de danos a esses Os agrotóxicos contribuem para a carcinogê-
sistemas, muitos deles inclusive já previstos nese de diversas maneiras, considerando-se
em testes preconizados por diretrizes inter- todas as vias intermediárias de mecanismos
nacionais, deveriam ser obrigatórios para fins moleculares e bioquímicos (quadro 3). Esses
regulatórios. mecanismos podem ser agrupados em cate-
Desreguladores endócrinos também podem gorias relativas a dez mecanismos de ação
prejudicar o sistema nervoso e o imunológico, carcinogênica: 1) ativação metabólica ou
e vice-versa. A comunicação bidirecional entre eletrofilicidade; 2) genotoxicidade; 3) insta-
os sistemas, que se inicia no período embrio- bilidade genômica; 4) capacidade de causas/
nário e permanece ao longo da vida, é esta- alterações epigenéticas; 5) estresse oxidativo;
belecida pelo compartilhamento de ligantes 6) inflamação crônica; 7) imunossupressão;
(como neurotransmissores, neuropeptídeos, 8) modulação de receptor; 9) imortaliza-
fatores de crescimento, citocinas, hormônios), ção celular; e 10) alteração da proliferação
mecanismos de transporte (proteínas carrea- celular37. As chances para aparecimento de
doras, canais de entrada ou saída nas células e câncer aumentam quando os agrotóxicos estão
núcleos) e receptores compartilhados40. Essas associados a um ou mais eventos.

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Toxicologia crítica aplicada aos agrotóxicos – perspectivas em defesa da vida 305

Quadro 3. Características-chave compartilhadas por substâncias químicas reconhecidamente cancerígenas para seres
humanos

Características chave Breve descrição


1. Eletrofilicidade com ou Composto original ou seu metabólito TG 442C (2020) Sensibilização dérmica in che-
sem ativação metabólica possuem estrutura eletrofílica, forma- mico – TG 442D (2018) Sensibilização dérmica
prévia ção de adutos de DNA/ de proteínas in vitro
2. Genotoxicidade Dano ao DNA (quebra nas fitas de TG 485 (1986) Ensaio de translocação hereditária
DNA, ligações cruzadas de DNA-pro- em camundongo
teína, síntese de DNA não programa- TG 486 (1997) Síntese de DNA não programada
da), intercalação, mutações gênicas, (UDS) com células hepáticas de mamíferos in vivo
alterações citogenéticas (ex.: aberra- TG 471 (2020) (mutação reversa em bactérias)
ções cromossômicas, micronúcleo) TG 490 (2016) (mutação genética em células de
mamíferos)
TG 489 (2016) Ensaio Cometa Alcalino Mamífe-
ros in vivo
TG 487 (2016) Micronúcleo em células de mamí-
feros in vitro
TG 483 (2016) Aberração cromossômica em
espermatogonias de mamíferos
TG 475 (2016) Aberração cromossômica em
medula óssea de mamíferos
TG 474 (2016) Micronúcleo em eritrócitos de
mamíferos
TG 473 (2016) Aberração cromossômica em
mamíferos in vitro
TG 478 (2016) (oral ou intraperitoneal/dominân-
cia letal/roedores)
TG 476 (2016) (mutação genética em células de
mamífero/in vitro)
TG 488 (2020) (mutação em células somáticas e
germinativas em roedores transgênicos)
3. Alteração reparo do Alterações na replicação ou reparo TG 486 (1997) Síntese de DNA não programada
DNA ou da instabilidade (ex.: Topoisomerase II, excisão de (UDS) com células hepáticas de mamíferos in vivo
genômica base, quebra da dupla fita) TG 489 (2016) Ensaio Cometa Alcalino Mamífe-
ros in vivo
TG 471 (2020) (mutação reversa em bactérias)
4. Indução alterações Metilação do DNA, modificação de Diretrizes não identificadas
epigenéticas histona, microRNA
5. Indução do estresse Estresse oxidativo, espécies reativas TG 495 (2020) (teste de fotorreatividade com
oxidativo de oxigênio, dano oxidativo a macro- espécies reativas de oxigênio)
moléculas (ex.: DNA, lipídio)
6. Indução de inflamação Aumento de leucócitos, atividade Diretrizes não identificadas
crônica da mieloperoxidase, produção de
citocinas
7. Imunossupressão Diminuição da imunovigilância, ca- TG 407 (2008) 28 dias dose repetida (Oral/
pacidade de combate a patógenos e roedores)
células com potencial de malignidade, TG 443 (2018) Toxicidade reprodutiva de uma
disfunção do sistema imunológico geração estendida
8. Modulação de efeitos Ativação ou inativação de receptor TG 455 (2016) Ativação transcricional do recep-
mediados por receptor (por exemplo, de estrogênio, andró- tor de estrogênio
genos) ou modulação de ligantes TG 458 (2020) Ativação transcricional de recep-
endógenos (incluindo hormônios) tor de androgênio
TG 493 (2015) (Afinidade de ligação a receptor
de estrogênio/in vitro)

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Quadro 3. (cont.)

Características chave Breve descrição


9. Imortalidade celular Inibição do envelhecimento celular e Diretrizes não identificadas
transformação celular
10. Alteração de proli- Aumento de proliferação celular, TG 489 (2016) Ensaio Cometa Alcalino Mamífe-
feração, morte celular diminuição da apoptose, mudanças ros in vivo
ou fornecimento de em fatores do crescimento, vias de
nutrientes sinalização relacionadas a replica-
ção ou controle do ciclo celular e da
angiogênese
Fonte: Elaboração própria, adaptado de Smith et al., 201637 e Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico. OECD
Guidelines for the Testing of Chemicals, Section 4: Health Effects, 202020.

O 2,4-D, por exemplo, classificado como tempo pode desencadear efeitos tóxicos não
possível carcinógeno humano (2B), apresenta previstos, mesmo em baixas doses; em espe-
uma forte associação com a indução de estresse cial, se os agentes envolvidos atuarem por
oxidativo42. Contudo, na reavaliação do 2,4-D, meio de mecanismos de ação semelhantes
a Anvisa desconsiderou as evidências apresen- ou que se inter-relacionam de alguma forma.
tadas pela Fundação Oswaldo Cruz, um ano A interação entre essas substâncias pode
antes da publicação da decisão da Iarc, sobre aumentar a potência dos efeitos tóxicos, ou
o potencial de indução de estresse oxidativo iniciar efeitos não observados para exposições
desse herbicida43. O malation, utilizado no País únicas. A exposição múltipla abrange outros
para controle de transmissores de arboviroses, estressores biopsicossocioambientais, como
classificado como provável cancerígeno (2A), patógenos, radiação ultravioleta, calor, aditivos
está associado a cinco dos dez mecanismos de alimentares, entre outros, que interferem na
ação carcinogênica37. toxicidade44. Dependendo do dano causado
Identificar a incidência de efeitos como e do intervalo entre as exposições, os danos
indução de inflamações crônicas, imunossu- podem ser magnificados27.
pressão e a modulação de receptores, incluindo Como exemplo, as interações toxicológicas
hormonais, que são mediados por componentes envolvendo a mistura de inseticidas, mesmo
do sistema imunológico e endócrino e podem em baixas doses, provocaram efeitos sinérgicos
ser desencadeados a partir da exposição a doses e aditivos após a administração de diferentes
muito baixas, é indispensável para a adoção de doses e combinações de agrotóxicos como
medidas que possam prevenir o câncer e outras acetamiprido, clorpirifós, deltametrina e
doenças crônicas. Alguns desses efeitos, como o fipronil45,46.
estresse oxidativo, também podem estar associa- Mesmo que ocorra a eliminação dos agro-
dos a doenças neurodegenerativas, cardiovascu- tóxicos e dos seus metabólitos do organismo
lares e inflamações crônicas37, e cuja ocorrência (toxicocinética), alguns efeitos moleculares,
simultânea pode dificultar a recuperação dos bioquímicos e enzimáticos (toxicodinâmica) e
afetados. danos tóxicos aos tecidos e células podem ser
de longa duração e/ou irreversíveis, e os inter-
Desconsideração das interações valos entre as exposições para a recuperação
entre misturas da homeostasia podem não ser suficientes27.
Essa abordagem também pode ser extrapo-
A exposição a múltiplos agrotóxicos dife- lada para os danos ambientais, em que os com-
rentes no mesmo momento ou ao longo do ponentes são interdependentes. A sequência

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Toxicologia crítica aplicada aos agrotóxicos – perspectivas em defesa da vida 307

de contaminações pode afetar diferentes seres Avaliação insuficiente da exposição


de um mesmo habitat, como microrganismos humana em períodos críticos para o
presentes no solo, polinizadores, répteis an- desenvolvimento intra e extrauterino
fíbios e outros, levando a um desequilíbrio
irreversível47. Estudos ambientais, epidemiológicos e expe-
rimentais têm apontado que a exposição aos
Negligenciamento das curvas dose- agrotóxicos e a outros contaminantes pode pro-
resposta não lineares duzir nocividades em diferentes períodos do
desenvolvimento50-52. A exposição intrauterina
A definição dos limites de segurança e dos ou nos primeiros anos de vida a contaminan-
valores seguros de exposição, mediante tes ambientais influencia no desempenho das
identificação da maior dose na qual não funções fisiológicas e no risco de desenvolvi-
são observados efeitos adversos (tóxicos), mento de doenças na vida adulta50,53.
central nos processos de avaliação de risco, Os danos podem ser permanentes e graves,
apresenta uma validade externa questioná- dependendo do efeito e do momento em que
vel e raramente verificada nas condições ocorrem. Alterações nos níveis de hormônios
reais de exposição. Essa etapa se baseia específicos, por exemplo, podem ter conse-
unicamente no pressuposto de que as re- quências irreversíveis caso ocorram em mo-
lações entre a dose e o efeito são lineares mentos críticos do desenvolvimento45, mesmo
(monotônicas), ou seja, aumentando a dose, que logo em seguida retornem a níveis consi-
a resposta também aumenta de forma pre- derados normais.
visível, e vice-versa. São considerados períodos de exposição
Essa lógica assume inequivocamente que mais críticos50-52:
nenhum efeito adverso pode ocorrer abaixo
da maior dose em que não foram observados i) Período do desenvolvimento das células
efeitos (Noael, do inglês no observed adverse germinativas masculina e feminina: inicia-se
effect level). No entanto, diversas substâncias e na vida intrauterina e amadurece na puber-
misturas se comportam apresentando efeitos dade ou continua a diferenciação durante a
em baixas doses e inibição em doses elevadas, vida adulta. Efeitos sobre esses processos
fenômeno denominado de hormese, indicando podem levar à infertilidade ou a problemas
que o paradigma hegemônico é falho e precisa congênitos nas gerações seguintes.
ser revisado e incorporado na avaliação de
risco e nos processos regulatórios27,48,49. ii) Intrauterino: o desenvolvimento embrio-
Destaca-se que o fundamento científico nário e fetal ocorre rapidamente, e danos nos
que estabelece a linearidade da relação dose- primeiros dias após a concepção podem levar
-resposta baseia-se em um erro na extrapo- à perda fetal e, posteriormente, a anomalias
lação de resultados de alguns estudos. Esse congênitas, crescimento inadequado e danos
entendimento foi consolidado e convertido fisiológicos e funcionais, que podem se ma-
em política pública, sustentando o modelo de nifestar até a vida adulta.
avaliação de risco nas assunções feitas a partir
desse equívoco49. iii) Infância: período em que ocorre o desen-
Ao desconsiderar a hormese, a ciência volvimento e a maturação do sistema nervoso
tende a ignorar danos nas exposições a baixas e imunológico, quando a exposição a substân-
doses, podendo levar à definição inadequada cias químicas pode levar a danos motores e
de limites de exposição considerados seguros, cognitivos, maior propensão a manifestações
como aqueles admitidos para a contaminação alérgicas, reações autoimunes ou diminuição
de água e alimentos. da resposta à vacinação e a patógenos.

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308 Friedrich K, Gurgel AM, Sarpa M, Bedor CNG, Siqueira MT, Gurgel IGD, Augusto LGS

iv) Puberdade: período de maior expressão A legislação europeia também prevê a


do desenvolvimento físico e maturação dos obrigatoriedade de registro de produtos com
órgãos sexuais, podendo ocorrer efeitos na menor toxicidade57. No processo de renovação
reprodução. de registro do glifosato, o parlamento europeu
acatou a determinação da agência reguladora,
Nessas fases, marcos importantes de de- porém concluiu que a Comissão e os estados-
senvolvimento podem sofrer atrasos devido às -membros buscassem alternativas de menor
exposições, como brincar, interagir, sentir, ex- risco na reavaliação seguinte58. As avaliações
pressar vontades e sentimentos, comer, andar, das alternativas também teriam a função de
falar. A interação com outras pessoas e seres indicar as áreas com necessidade de pesquisa
vivos, fatores psicossociais, culturais e eco- e desenvolvimento de opções mais seguras54.
nômicos que terão importância na formação A adoção de alternativas que não incluam
como indivíduo e sua inserção na sociedade produtos químicos enfrenta resistências tanto
também podem ser afetados devido aos danos por parte dos setores regulados como dos re-
provocados por contaminantes ambientais50,54. guladores. As principais etapas no processo de
avaliação das alternativas incluem: a) definir
Alternativas na perspectiva da o escopo de utilização, formular o problema e
toxicologia crítica identificar alternativas para consideração; b)
identificar danos e avaliar a exposição com-
As limitações dos processos de regulação parativa; c) avaliar a viabilidade técnica; d)
vêm sendo apontadas na literatura científica avaliar a viabilidade econômica; e) considerar
e abordam a utilização e a interpretação dos outros aspectos e grupos impactados (mudan-
estudos toxicológicos, voltados à compreensão ças climáticas, ecossistemas etc.); f ) definir os
de fenômenos reais19,41, revelando a necessida- caminhos para a tomada de decisões55.
de da busca de alternativas menos danosas19,55. A Agência Europeia de Substâncias
A literatura científica e as organizações Químicas (Echa) preconiza que devem ser
internacionais apresentam metodologias es- incorporadas análises socioeconômicas para
truturadas (frameworks) para comparar os avaliar custos e benefícios para a sociedade,
impactos para a saúde e para o ambiente entre incluindo: grupos e setores envolvidos ao
as opções disponíveis19,55. Essas avaliações de longo da cadeia produtiva; disponibilidade
alternativas diferem da avaliação de risco, pois de emprego; impactos econômicos; questões
se voltam a comparar o agente em processo locais, regionais, nacionais e internacionais;
de autorização com outras opções, fomen- análise e distribuição (espacial e populacional)
tando que alternativas menos danosas sejam dos custos e benefícios59.
priorizadas. No Brasil, produtos biológicos destinados à
A legislação brasileira de agrotóxicos prevê produção orgânica devem ser considerados na
que somente sejam registrados produtos apreciação comparativa no processo de avalia-
menos tóxicos que outras opções já existentes ção de registro de novos produtos agrotóxicos.
com a mesma finalidade agronômica, ainda No entanto, a menor quantidade de produtos
que não aponte que aqueles já registrados, biológicos na lista de monografias autorizadas
para os quais já se tenham alternativas, devam da Anvisa pode ser mais uma consequência do
ser proibidos56. A assimetria de informações, que uma causa para a preferência por produ-
a pouca transparência nos processos e os cri- tos químicos. Por essa razão, o financiamento
térios adotados para classificar os produtos de pesquisa e desenvolvimento de produtos
como ‘menos tóxicos’ podem representar en- biológicos deve entrar na agenda das políticas
traves para a substituição por produtos menos públicas, dos órgãos reguladores, assim como
danosos. existe o incentivo do setor privado, incluindo

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Toxicologia crítica aplicada aos agrotóxicos – perspectivas em defesa da vida 309

instituições públicas para o desenvolvimento Outro aspecto indispensável é a multiplicida-


de novas funções para moléculas já existentes de de formação dos profissionais envolvidos
ou novos produtos agrotóxicos. que deve ser a mais diversa, e não somente de
As propostas de avaliação das alternati- várias pessoas com formações semelhantes.
vas relatadas na literatura citada mostram Os modelos para uma perspectiva crítica
avanços importantes no processo de tomada requerem uma triangulação metodológica,
de decisão voltados a autorizar ou não a expo- em um processo de integração-diferen-
sição a agentes tóxicos. Apesar disso, algumas ciação-integração 8. O contexto do uso do
limitações do modelo de avaliação de risco agrotóxico visto em sua integralidade seria
vigente não parecem totalmente superadas o ponto de partida da investigação, em que
nesses modelos, em especial, relacionadas com a análise toxicológica é um dos momentos
a avaliação toxicológica ou ecotoxicológica de diferenciação especializada, culminando
para identificar potenciais danos à saúde e ao na tomada de decisão. No nível do contexto,
ambiente, e que são pouco protetivas na pers- devem-se considerar todos os condicionan-
pectiva atual. A abordagem da complexidade tes que podem modificar a toxicidade do
dos fenômenos de adoecimento em decorrên- produto e como o produto pode produzir
cia da exposição aos agentes químicos também danos que afetam retroativamente a saúde, a
não parece totalmente contemplada a partir da economia, o ambiente e outros aspectos re-
avaliação socioeconômica, pois não explicita levantes. Os estudos analíticos toxicológicos
como contextos de vulnerabilidade podem ser devem produzir resultados significados a
incorporados na avaliação das alternativas. partir dessa complexidade, e suas limitações
precisam ser apresentadas de forma clara
Propostas para uma abordagem e independente.
crítica da toxicologia Em uma perspectiva crítica para a toxico-
logia, o quadro 4 apresenta alguns elementos
A investigação interdisciplinar pressupõe o necessários para uma avaliação mais integral
compartilhamento de marcos epistêmicos, das nocividades de produtos e processos e
conceituais e metodológicos entre os diferen- das suas consequências diante da demanda
tes atores envolvidos na análise do problema. de registro de um novo IA agrotóxico.

Quadro 4. Elementos necessários para avaliação das nocividades de ingredientes ativos e produtos agrotóxicos sob a
perspectiva da toxicologia crítica

A) Nível de contexto (momento de compreensão integral do problema – interdisciplinar)


Conhecer as aplicações agronômicas para registro do Ingrediente Ativo (IA) ou produto e as declaradas pelo setor
agrícola nacional e o contexto de mercado no qual está inserido
Conhecer o histórico dos processos regulatórios do IA ou produto em outros países, as recomendações, restrições e se
há proibições
Conhecer as culturas a que se destina o IA ou produto
Conhecer ecologia das espécies-alvo e não-alvo a que se destina o IA ou produto
Caracterizar grupos populacionais potencialmente expostos segundo suas vulnerabilidades e susceptibilidades, in-
cluindo incidência e prevalência de agravos e doenças
Caracterizar vulnerabilidades da biodiversidade e das dinâmicas hídricas, do solo, dos ventos, climáticas
Conhecer o contexto socioambiental onde será utilizado o IA ou produto, incluindo características climáticas, incidên-
cia de outros processos produtivos e seus respectivos contaminantes
Avaliar possíveis impactos ecossistêmicos segundo particularidades dos territórios, considerando o princípio da precaução

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Quadro 4. (cont.)

Avaliar os possíveis impactos para a saúde humana, considerando ao princípio da precaução


Conhecer o perfil de morbimortalidade e estabelecer a medidas mínimas necessárias a vigilância longitudinal de futu-
ros agravos à saúde
Prever processos de reparação sociais e mitigação ambiental para possíveis danos
B) Nível dos Estudos Analíticos (momento de diferenciação)
Revisão da literatura, sistemática e crítica, sobre possíveis danos à saúde e ao ambiente
Analisar criticamente a metodologia da avaliação de risco realizada e a mais adequada ao contexto e a aplicação pre-
tendida
Priorizar os resultados de estudos científicos realizados de forma independente
Usar metodologias validadas por pares independentes para conduzir as etapas de avaliação/reavaliação toxicológica,
priorizando realização de estudos duplo-cego e interlaboratoriais
Incluir a possibilidade de efeitos não-lineares ao definir condições de segurança
Conhecer os vieses de resultados e interpretações
Avaliar as interações entre as substâncias químicas comuns nos contextos de exposição esperados
Avaliar a toxicidade observada em diferentes órgãos e funções fisiológicas de forma integrada, assim como, e suas
interrelações para manutenção da qualidade de vida e da saúde
Avaliar a toxicidade de acordo com as vias múltiplas de exposição
Possibilitar mudanças na estratégia de avaliação de risco:
a) criar estruturas (frameworks) avaliativas para determinar danos abaixo dos limiares toxicológicos tradicional-
mente estabelecidos;
b) criar estruturas (frameworks) para alterar quantitativamente a magnitude dos fatores de incerteza no processo
de avaliação de risco
c) analisar, definir e comunicar a população as limitações inerentes as avaliações realizadas
C) Nível da tomada de decisão (momento da reintegração – interdisciplinar)
Reconhecer os conflitos de interesse e acautelar frente a possíveis relações conflituosas/entre agentes públicos e
privados
Considerar que mesmo estudos independentes não são neutros, guiando análises pelo pensamento crítico e por uma
metodologia centrada no reconhecimento da complexidade e das interdependências dos processos
Garantir que as incertezas sejam consideradas para a tomada de decisões precaucionárias, de modo a prevenir efeitos
nocivos
Considerar os contextos de maior vulnerabilidade socioambientais nas análises de perigo, a multifatorialidade e a
determinação social como condicionantes do processo saúde-doença, que devem ser ajustados às características dos
locais de maior uso e suas especificidades territoriais
Priorizar a participação da sociedade civil, em especial das populações mais vulnerabilizadas a serem expostas, es-
pecialmente mediante consultas públicas direcionadas, estimulando a adoção de uma pedagogia do consentimento
verdadeiramente esclarecido, o que requer a utilização de métodos de transparência e de ampla e correta informação e
comunicação social
Fonte: Elaboração própria.

As práticas de base agroecológica devem ser e análises socioeconômicas, incluindo a incor-


consideradas nas avaliações das alternativas, poração da subjetividade sobre a determinação
tendo em conta o potencial de danos à saúde, social da saúde. Nesse sentido, metodologias es-
ao ambiente e aos ecossistemas, menor demanda pecíficas que permitam a avaliação comparativa
energética, de água, desmatamento e mudanças entre modos de cultivo convencionais e de base
climáticas, distribuição dos custos e benefícios agroecológica podem ser adotadas.

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Toxicologia crítica aplicada aos agrotóxicos – perspectivas em defesa da vida 311

Conclusões favor liberação de substâncias tóxicas. Essa


estratégia reduz a ocultação ou minimização
A toxicologia é um campo que está sob dis- de riscos e dificulta a manipulação dos pro-
putas epistêmicas, metodológicas e éticas. A cessos decisórios para atender aos interesses
perspectiva de uma toxicologia crítica consi- de mercado. Nessa perspectiva, este ensaio
dera a integralidade do problema no contexto introduz elementos que objetivam a cons-
socioeconômico, político, cultural em que se trução de uma toxicologia crítica, de forma
dá a exposição, reduzindo vieses decorrentes inaugural, como ferramenta de elucidação
da tomada de decisões regulatórias com base de processos de exposição, adoecimento e
apenas em estudos realizados e ou financiados morte observados em contextos de expo-
pela indústria ou sustentados por paradigmas sição a contaminantes ambientais, como
cientificistas estruturados em uma perspectiva os agrotóxicos.
acrítica, e propondo uma abordagem sistêmica
para sua operação.
A toxicologia não deve ser aplicada fora Colaboradoras
dos contextos de exposição, com todos os
diferenciais que se observam na realidade As autoras Friedrich K (0000-0002-3661-
de vida e trabalho. A perspectiva crítica 6179)*, Gurgel AM (0000-0002-5981-3597)*,
possibilita ao tomador de decisão a cons- Sarpa M (0000-0001-8976-4653)*, Bedor
ciência do biopoder presente nos conflitos CNG (0000-0002-1614-7539)*, Siqueira MT
de interesse e observados nos processos re- (0000-0003-0016-4673)*, Gurgel IGD (0000-
gulatórios do Estado. A participação efetiva 0002-2958-683X)* e Augusto LGS (0000-
da sociedade é um mecanismo garantidor 0002-2771-7592)* contribuíram igualmente
de processos mais equânimes para redução para concepção, elaboração e revisão do ma-
das práticas de abuso da própria ciência em nuscrito. s

*Orcid (Open Researcher


and Contributor ID).

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 293-315, JUN 2022


312 Friedrich K, Gurgel AM, Sarpa M, Bedor CNG, Siqueira MT, Gurgel IGD, Augusto LGS

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316 ENSAYO | ESSAY

Soberanía Alimentaria, una estrategia


terapéutica para recuperar la salud ante el
avance del extractivismo agroindustrial
Food Sovereignty, a therapeutic strategy for reclaiming health in the
face of the agroindustrial extractivism thrust

Damián Verzeñassi1, Lucía Enríquez1, Alejandro Vallini1, Gabriel Keppl1

DOI: 10.1590/0103-11042022E221

RESUMEN Las formas de extractivismos se multiplican y diversifican, transformando de manera radical


los territorios donde se instalan, como expresión del pensamiento de la modernidad insostenible y del
pensamiento colonialista. Esto nos ha llevado a una crisis ambiental-civilizatoria con diversas expresiones
en sus distintos campos. Dentro de los mismos, se encuentran las tensiones y desafíos al interior del campo
del conocimiento científico académico. En el artículo se describen y analizan los aportes de la perspectiva
de la Ecología Política Latinoamericana y la Salud Colectiva, a través de las categorías de Territorio, Salud
Socioambiental, y Soberanía Alimentaria para la comprensión de los procesos salud-enfermedad-aten-
ción-cuidado en los contextos actuales.

PALABRAS-CLAVE Salud socioambiental. Impactos del extractivismo. Soberanía Alimentaria. Territorio.

ABSTRACT Extractivism is spreading and diversifying, radically transforming the territories where it
settles, as an expression of the thinking of both unsustainable modernity and colonialism. This has led us to
an environmental-civilizational crisis with various expressions in different fields. Among these, we can find
the tensions and challenges in the field of academic scientific knowledge. The present article describes and
analyzes the contributions of Latin American Political Ecology and Collective Health, through the categories
of Territory, Socio-Environmental Health and Food Sovereignty for the understanding of the health-disease-
care processes in current contexts.

KEYWORDS Socio-enviromental health. Impacts of extractivism. Food Soverignity. Territory.


1 Universidad
Nacional de
Rosario (UNR) – Santa Fe,
Argentina.
damianverze@yahoo.com.ar

Este es un artículo publicado en acceso abierto (Open Access), bajo licencia de Creative
Commons Attribution, que permite el uso, distribución y reproducción en cualquier
SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 316-326, Jun 2022 medio, sin restricciones, siempre que el trabajo original sea correctamente citado.
Soberanía Alimentaria, una estrategia terapéutica para recuperar la salud ante el avance del extractivismo agroindustrial 317

Introducción Extractivismo
agroindustrial y la
La Crisis Ambiental es expresión de una Crisis
Civilizatoria1 que surge de la pretensión de des-
Geopolítica de la
conectar, fragmentar y aislar a los sujetos entre Enfermedad
sí y de los territorios en los que viven, llevando al
extremo el individualismo y los mecanismos de En el proceso de globalización, las formas
despojo, propios del pensamiento liberal. Ante de extractivismos se multiplican y diversi-
este panorama, se hace necesario reconocer que fican, transformando de manera radical los
nuestro cuerpo es el primer territorio que habi- territorios donde se instalan. La categoría de
tamos y que debemos descolonizar, tal como lo Territorio adquiere entonces, un rol central
plantean las corrientes ecofeministas. Como tal, para comprender los procesos salud-enfer-
es atravesado por los mismos procesos malsanos medad-atención-cuidado de los grupos socia-
que afectan a ese gran territorio geopolítico les. El territorio, en el paradigma de la salud
en el cual transitamos nuestros ciclos vitales. colectiva, se conceptualiza como un espacio
Se torna entonces necesario reconstruir esas producido socialmente en el que los diferentes
relaciones en la comprensión de que la salud actores sociales se apropian de él, lo represen-
humana, la salud de nuestros suelos, la salud tan y lo dotan de sentido4. Es en este espacio,
de plantas y animales, son, en realidad, una sola “se dan las relaciones entre los procesos na-
salud: la salud de la Madre Tierra, la salud de turales y los procesos sociales, denominado
los ecosistemas. como metabolismo sociedad-naturaleza”5(45).
Desde el paradigma biocéntrico, se com- Para analizar los procesos de salud-en-
prende la existencia humana como vida dentro fermedad de quienes transitamos nuestros
de la vida, compartiendo con las demás es- ciclos vitales en el centro de la denominada
pecies un territorio común que tiene límites ‘República Unida de la Soja’ (así presentada
biofísicos. Esto nos lleva a asumir la insoste- en publicidades de las corporaciones del agro-
nibilidad de la forma de vida impuesta por la negocio), resulta fundamental comprender
modernidad. Una forma de vida que nos ha los procesos generales que participan en su
llevado al límite de la posibilidad de subsis- determinación. Dentro de este enfoque, se
tencia como especie humana. destaca el avance intempestivo de la frontera
Desde la conquista de América Latina, se agropecuaria para habilitar espacios al modelo
ha instalado ininterrumpidamente en nuestros agroindustrial de commodities transgénicos
territorios la lógica de invasión y dominación, veneno-dependientes, que se encuadra en la
sometiendo a fuerza de hierro a las comunida- decisión de transferir las industrias sucias
des que se ubican por debajo de la línea de hu- de los países centrales a los empobrecidos,
manidad2. Este pensamiento colonialista ubica configurando lo que nosotros llamamos una
al sujeto de la modernidad (hombre blanco ‘geopolítica de la enfermedad’ Esta es comple-
europeo) por fuera de la naturaleza, quien mentaria de los procesos de ‘acumulación por
puede, así, dominarla y utilizarla a su antojo despojo’ que, de acuerdo a los designios del
con fines economicistas. En el modelo extrac- poder económico mundial, definió transformar
tivista, ese imaginario se reproduce3. La colo- a nuestros países del sur en las nuevas ‘áreas
nización de nuestros territorios sigue vigente de sacrificio’ del planeta, como otra forma de
aunque ahora se exprese de otras formas, dominación, colonialismo y entrega de sobe-
principalmente con el despojo indiscriminado ranía, entendiendo que cuando predomina la
de los bienes comunes, la destrucción de las enfermedad, lo que se debilita es la libertad6.
relaciones ecosistémicas y la profundización A principios de los años 90, luego de la
de inequidades socioeconómicas. llamada primera Revolución Verde que

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 316-326, Jun 2022


318 Verzeñassi D, Enríquez L, Vallini A, Keppl G

sentó las bases de la actual matriz del agro- monocultivo de soja que, como señala Javier
negocio veneno-dependiente, se produjo un Souza Casadinho11, va en contra de la natu-
nuevo salto tecnológico con la posibilidad de raleza, porque no nutre adecuadamente a
la manipulación genética de semillas y con los suelos, ni contribuye a la complejidad y
ello, la Revolución de la Biotecnología. Esta relaciones que se establecen en los sistemas
nueva etapa tuvo un fácil y rápido ingreso en naturales, por lo cual dependen de la aplica-
el cono sur, particularmente en Argentina, ción permanente y creciente de plaguicidas,
teniendo como punta de lanza la creación, en incluidos los herbicidas. Esta dependencia de
el año 1991, de la Comisión Nacional Asesora agrotóxicos es tan brutal que, en Argentina,
de Biotecnología Agropecuaria, conocida para el año 2005, se aplicaban 160 millones
por sus siglas como CONABIA7, y con ella de litros12, mientras que en el 2013, según
la autorización del ingreso de transgénicos datos de la Cámara de Sanidad y Fertilizantes
para experimentación en el campo argenti- (CASAFE), se utilizaron 285 millones de
no. La resolución Nº 16 de la Secretaría de litros, y esto solo representaba el 80 a 85%
Agricultura, Pesca y Ganadería autoriza, en del mercado. Siguiendo en esta tendencia en
el año 1996, la liberación para comercializa- franco ascenso, en el período 2018/2019 se
ción del primer evento transgénico, la soja habrían aplicado al menos 525 millones de
RR (por ‘Roundup Ready’, ‘lista’ para resistir litros por año13. En el resto de América Latina
al glifosato). La aprobación, realizada en el esta situación se repite: en Bolivia, el uso de
tiempo récord de 81 días, fue fundamentada agrotóxicos se triplicó de 12 kg/l por hectárea
exclusivamente en 108 estudios científicos en 1999 a 36 kg/l en la actualidad; Paraguay
presentados por Monsanto8, la empresa in- aumentó para el año 2011 un 264% más que en
teresada en la autorización, y no consideró el año 2001; Brasil pasó de utilizar 314 millones
ningún trabajo independiente. de kg/l en el año 2000 a 887 millones en 201514.
Enmarcando, habilitando y justificando este A pesar de la increíble expansión, la agroin-
sistema se encuentran tanto los gobiernos y dustria a nivel global, con la concentración de
organismos internacionales como el sistema más del 75% de la tierra, y más del 80% del
tecnocientífico. Respecto a los primeros, más agua y de los combustibles de uso agrícola,
allá del posicionamiento ideológico general solamente alimenta al equivalente del 30%
con diferencias en los modos de distribución, de la población mundial15.
se plantea al extractivismo como único camino.
En palabras de Emiliano Terán Mantovani,
en ese punto no hay grietas: “derechas, ex- Impactos del extractivismo
tremas derechas, centros o izquierdas: todas agroindustrial
nos ponen más y más extractivismo en el
horizonte”9. Históricamente, las dirigencias La aceleración en la acumulación de capital
políticas en América Latina han seguido como por el agronegocio requiere, necesaria-
directriz la concepción productivista del de- mente, de una expansión en el consumo de
sarrollo, que sumada a la refractariedad al recursos, que se ve reflejada en la progre-
pensamiento ambiental, determinan que las sión exponencial de superficie destinada
problemáticas socioambientales se perciban a la producción de commodities: de los 2
como secundarias o hasta sacrificables10. Esta millones de hectáreas que la soja ocupaba
falaz dicotomía entre desarrollo y salud de los en 1980 16, ha crecido hasta abarcar más
ecosistemas sostiene y perpetúa el modelo, y de 16 millones en 2020, según los datos
parece no admitir posibilidad de réplica. del cierre de campaña de dicho año de la
Desde entonces, se desencadena la ex- Bolsa de Cereales de Buenos Aires. Si bien
pansión de un modelo de agricultura del esta cifra ya resulta impactante, algunos

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Soberanía Alimentaria, una estrategia terapéutica para recuperar la salud ante el avance del extractivismo agroindustrial 319

trabajos plantean que ésta, en realidad, Diversos estudios encienden la alarma sobre
rondaría los 20 millones de hectáreas 17,18. la contaminación de las aguas superficiales:
Para América Latina, según el informe Atlas uno muy contundente es la contaminación por
del Agronegocio 17, la superficie ocupada agrotóxicos como glifosato y clorpirifos en las
con cultivos transgénicos asciende a más de aguas y sedimentos del lecho del Paraná, evi-
84,7 millones de hectáreas sumando áreas denciados por las investigaciones del Centro
de Brasil, Argentina, Paraguay, Bolivia y de Investigaciones de Medio Ambiente de
Uruguay. la Universidad Nacional de La Plata24,25.
Esta expansión territorial se hace a ex- Asimismo, en los suelos, el monocultivo de
pensas del sacrificio de bosques nativos, soja produce balances negativos de carbono y
como demuestran los 7,8 millones de nitrógeno que conducen a la disminución de
hectáreas deforestadas solo entre 1990 y su contenido de materia orgánica26.
2015 en Argentina18. Estos territorios, en Los Campamentos Sanitarios, desarrollados
muchas oportunidades, son arrebatados a desde el ciclo de Práctica Final de la Carrera de
sus habitantes originarios, que desprovistos Medicina de la Facultad de Ciencias Médicas
entonces de los medios de subsistencia se de la Universidad Nacional de Rosario (UNR),
ven obligados a la migración a la ciudad, en el período 2010-2019, constituyen una ex-
convirtiéndose en verdaderos refugiados periencia concreta de espacios académicos
ambientales19. que trabajan en el acompañamiento de las
Asimismo, la maquinaria extractiva supone comunidades en sus contextos territoriales.
un gran consumo energético, lo cual se utiliza El objetivo de los mismos era la construcción
para justificar la instalación de represas en de perfiles de salud-enfermedad-atención a
ríos de llanura, la reaparición de proyectos través de una lógica de participación y em-
de centrales nucleares, la aceleración de la poderamiento comunitarios.
extracción de gas y petróleo por métodos Cuarenta localidades, de cuatro provincias
cruentos como el fracking, y la extensión de de Argentina, en el centro de la ‘República
la producción de organismos genéticamente Unida de la Soja’ fueron censadas a partir de
modificados dependientes de agrotóxicos los Campamentos Sanitarios, entrevistando a
para producir agrocombustibles, cerrándose la comunidad en sus domicilios y recuperando
así el círculo vicioso del modelo. información de más de 120.000 personas, lo
En simultáneo, se generan masivamente que representa un 65,4% del total de la po-
desechos y gases de efecto invernadero que blación de esas comunidades. A través de los
contribuyen al cambio climático, el cual datos obtenidos, fue posible evidenciar la alta
altera aún más los territorios generando prevalencia de hipotiroidismo, enfermeda-
gran variación térmica y alteraciones de des respiratorias, alergias de diversos tipos,
los ciclos hidrológicos, entre otros fenóme- trastornos neurológicos y patologías reuma-
nos20. La estructura inequitativa de nues- tológicas. En esa construcción colectiva, se
tras sociedades puede evidenciarse ante identificó también el incremento, a lo largo del
las mencionadas repercusiones del cambio tiempo, de los abortos espontáneos, las anoma-
climático, donde se configuran grupos lías congénitas morfológicas, así como de las
desigualmente vulnerables a sus efectos a enfermedades oncológicas, y sus diferencias
causa de roles y relaciones políticas, eco- con los datos de los registros nacionales27.
nómicas y sociales21. Entre estos grupos se Estos hallazgos se complementan con
pueden mencionar a personas en situación una creciente bibliografía científica, que da
de pobreza y marginalidad, comunidades cuenta de las relaciones entre la exposición a
con lazos débiles, niñas y niños, mujeres y los agrotóxicos utilizados en el modelo agroin-
disidencias22,23. dustrial de OGMs, y problemas neurológicos,

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320 Verzeñassi D, Enríquez L, Vallini A, Keppl G

endocrinos y del sistema inmune, así como con ni a voluntades políticas o personales, sino
daños genéticos28,29. al servicio de las comunidades. Desde ese
A estas problemáticas se suman las eviden- lugar, podemos señalar como un anteceden-
cias de la relación entre los sistemas alimenta- te de jerarquía, la creación, en el 2015, de la
rios actuales con el surgimiento de epidemias Unión de Científicos Comprometidos con la
y pandemias. La homogeneidad genética de los Sociedad y la Naturaleza en América Latina
animales de cría industrial, el hacinamiento (UCCSNAL), con raíces en el Pensamiento
al que se ven sometidos, además del cambio Ambiental Latinoamericano. Este colectivo
del uso de los suelos que genera presiones en plural y transnacional se organiza bajo el pre-
el contacto de animales salvajes con animales cepto de que
domésticos y poblaciones humanas son los
principales factores que favorecen el surgi- Es imprescindible que todo proceso de genera-
miento y diseminación de enfermedades emer- ción y aplicación de tecnologías en la sociedad
gentes30,31. Como señala Silvia Ribeiro32(15), en sea convalidado por la licencia social y ambien-
el contexto de la actual pandemia tal correspondiente, fruto de legítimos procesos
participativos que tengan como eje el respeto
Aunque hay discusión sobre el origen del coro- por las culturas, los territorios, los mecanismos
navirus SARS-CoV-2 que causó la pandemia de de decisión y los sistemas sociales locales35(2).
COVID-19, en todos los escenarios, el sistema
alimentario agroindustrial tiene un papel im- La UCCSNAL reconoce la necesidad de
portante: crea vulnerabilidad en la salud de las construir y fortalecer una ciencia que siste-
personas, magnifica la diseminación de virus matice los resultados de prácticas productivas
infecciosos, mantiene las condiciones ideales saludables, agroecológicas, reconociendo el
para la mutación de nuevos patógenos que se valor de las culturas campesinas, indígenas
siguen gestando mientras aún estamos bajo el y urbanas, para la reconstrucción de los vín-
azote de la actual pandemia. culos sociales que, desde la diversidad como
elemento constituyente de nuestros pueblos,
Al mismo tiempo, el uso intensivo de anti- hagan nacer nuevas formas de organizaciones
bióticos en el sistema productivo compromete en las cuales la solidaridad, el mutualismo y la
su eficacia como medida terapéutica frente a cooperación sean la columna vertebral.
enfermedades infecciosas que afectan a los Ante el avance del modelo agroindustrial,
seres humanos, con el surgimiento de cepas que reproduce las lógicas de la modernidad
de microorganismos resistentes33. colonial insostenible y que profundiza las
A la par de la expansión del modelo agroin- inequidades de género, etnia y clase social,
dustrial y sus efectos perjudiciales sanitarios, vincularse con los movimientos sociales, con
ambientales y sociales, se multiplican también los pueblos y comunidades campesinas e in-
experiencias de resistencia de diferentes movi- dígenas, habilita en los espacios académicos
mientos sociales, de alcance local o regional34. el desarrollo de preguntas nacidas a partir
de oír a las voces de la tierra y aprender
de los ritmos de la naturaleza para com-
Descolonizar la ciencia prender los procesos que hacen posible la
vida. Así confluyen los movimientos sociales
En acompañamiento a estos movimientos con los ámbitos académicos en la búsqueda
sociales y en un proceso de descolonización de alternativas saludables frente al avance
del saber científico, se despliegan experien- del modelo agroindustrial. Entre ellas, la
cias que entienden la ciencia, no en subor- agroecología es uno de los enfoques teóricos
dinación a los poderes macroeconómicos más promisorios.

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Soberanía Alimentaria, una estrategia terapéutica para recuperar la salud ante el avance del extractivismo agroindustrial 321

Agroecología como la atmósfera terrestre generados por la acti-


estrategia terapéutica ante vidad antrópica, sumen 250.000 defunciones
adicionales entre el 2030 y 205039. Frente a
la crisis civilizatoria este panorama, urge adoptar medidas de mi-
tigación y adaptación. Los sistemas agroeco-
Por todos estos motivos, se torna indispen- lógicos generan una huella de carbono menor
sable un viraje de nuestros sistemas de pro- que la de los sistemas agroindustriales. En
ducción de alimentos hacia el paradigma de primer lugar, al no depender de plaguicidas,
la Soberanía Alimentaria. Esta se define, en los sistemas agroecológicos no presentan el
palabras de la Vía Campesina36(19), como gasto de combustibles fósiles asociados a su
fabricación y aplicación. Al mismo tiempo, los
El derecho de cada pueblo y de todos los pueblos sistemas agroecológicos plantean una lógica de
a definir sus propias políticas y estrategias de producción de cercanía, pensada en función de
producción, distribución y consumo de alimen- las necesidades locales, por lo que disminuye
tos, a fin de garantizar una alimentación cultural la huella de carbono asociada a los denomina-
y nutricionalmente apropiada y suficiente para dos ‘alimentos kilométricos’. Se ha estudiado
toda la población. también cómo las formas de producción agro-
ecológica presentan mayores mecanismos de
Incluye la lucha por el derecho a la tierra de resiliencia frente a eventos climáticos extre-
cada campesino y campesina, la lucha contra mos en contrapartida a la vulnerabilidad de
los organismos genéticamente modificados, los monocultivos industriales40,41.
el reconocimiento del agua potable como ali-
mento básico para la producción y la vida, Exposición a agrotóxicos
el apoyo a la agroecología, la lucha contra el
cambio climático, y la crítica a la expansión Los sistemas agroecológicos disminuyen la
de los biocombustibles36. carga química a la que están expuestos di-
Si pensamos en recuperar nuestra salud rectamente los trabajadores, pero también las
como herramienta clave para la lucha por la poblaciones rurales y, a través de los residuos
libertad de nuestros pueblos, necesitamos re- de pesticidas en los alimentos, los consumido-
componer nuestros sistemas inmunológicos, res. Los estudios que evalúan el impacto del
tanto a nivel individual como colectivo. La consumo de alimentos producidos orgánica-
integridad de nuestros sistemas inmunológicos mente comparados con el consumo de alimen-
depende de la salud de nuestros alimentos37. tos producidos con pesticidas son escasos, pero
La agroecología es el enfoque teórico y meto- resulta importante destacar la investigación
dológico que, utilizando varias disciplinas cientí- desarrollada por Baudry, que demuestra que
ficas, pretende estudiar la actividad agraria desde el consumo de alimentos orgánicos se asocia
una perspectiva integradora de las dimensiones a un menor riesgo de desarrollar cáncer de
ecológica, económica y social38. mama, linfoma no Hodgkin y otros linfomas42.
En contraposición al modelo extractivista,
dependiente de OGMs y plaguicidas, el enfoque Calidad nutricional
agroecológico presenta numerosos beneficios
tanto para la salud individual como colectiva: Un aspecto crucial lo constituye la menor
calidad nutricional de los alimentos produ-
Cambio climático cidos agroindustrialmente. Esto se ve de-
mostrado en el permanente decrecimiento, a
Según las previsiones de la OMS, se espera través de los años, de los contenidos de calcio,
que los cambios en la temperatura media de fósforo, hierro y vitaminas en verduras y frutas

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322 Verzeñassi D, Enríquez L, Vallini A, Keppl G

producidos tradicionalmente43,44. El propio de la población mundial en estimaciones per


Ministerio de Agricultura, Ganadería y Pesca cápita. Incluso, la fijación de nitrógeno en los
de Argentina, a través de su publicación pe- suelos que producen las plantas leguminosas
riódica, Alimentos Argentinos, presenta en permitiría reemplazar el uso de fertilizantes
su página oficial los beneficios nutricionales artificiales52.
comparativos de la producción agroecológi- Es importante la reformulación de los análi-
ca contra la tradicional45. Si consideramos la sis económicos que sólo consideran la relación
íntima relación existente entre nuestra situa- de costos y productividad por aquellos que
ción nutricional y nuestro sistema inmune y incorporen en sus lógicas los beneficios que
la ya citada amenaza de nuevas pandemias y los modelos agroecológicos representan para el
epidemias, los modelos de producción agro- ambiente y la salud. Es sumamente necesario,
ecológicos permiten favorecer la inmunidad a partir de las nuevas epistemologías, la cons-
colectiva. trucción de nuevos indicadores que incluyan
las externalidades negadas por el sistema, que
Aspectos sociales logren superar la visión de sustentabilidad
ecológica y la racionalidad económica como
Por otra parte, los sistemas agroecológicos, conceptos opuestos:
al ser el producto de una co-evolución entre
los sistemas sociales y los sistemas naturales, en un intento de ‘ecologizar’ la economía,
no sólo generan impactos positivos sobre los romper el divorcio existente entre ambas
ecosistemas, sino que también permiten forta- ciencias y lograr compatibilizar los objeti-
lecer las redes sociales, a través de una mayor vos ecológicos, sociales y económicos de la
inserción social y participación ciudadana46. sustentabilidad53(76).
Esto es especialmente importante para grupos
sociales históricamente postergados, como las La implementación de los modelos agro-
comunidades originarias47. ecológicos a mayor escala, en contextos de
Los argumentos de que los modelos agroin- extractivismo, enfrenta numerosos desa-
dustriales son económicamente más eficientes fíos: los regímenes de tenencia de la tierra
y, por lo tanto, la única forma de garantizar cultivable; la necesidad de construcción de
alimentos para la creciente población mundial, sistemas de conocimientos y desarrollos
son fácilmente contrarrestados a partir de los técnicos que permitan la colectivización de
análisis de las experiencias existentes48-50. las experiencias desarrolladas actualmente
En líneas generales, el reemplazo de insumos en una escala local; las barreras económicas
externos por procesos ecológicos permite dis- que el sistema actual impone a campesinos
minuir sustancialmente el uso de los primeros, y campesinas que quedan atrapados en en-
y con ello bajar los costos y mejorar el margen deudamientos para adquirir los insumos
bruto, respecto al modelo convencional de necesarios para su actividad. A estas difi-
la zona, al tener rendimientos por hectárea cultades, hay que sumar el impacto negativo
similares51. que los campos agroecológicos reciben por
Un estudio de la Universidad de Michigan, la cercanía con producciones agroindustria-
que compara 293 ejemplos de países capita- les que, a través de la deriva ambiental de los
listas-centrales y periféricos, demuestra las plaguicidas que emplean, contaminan sus
ventajas económicas de la agricultura orgá- cultivos y sus suelos54. Para superar estas
nica en cuanto a rendimiento. Pero además, situaciones, resulta necesaria una acción
demuestra que con la cantidad de superficie intersectorial y una profunda transforma-
destinada a la producción agroindustrial actual ción de las políticas agrícolas nacionales y
es posible producir alimentos para la totalidad de cooperación internacional.

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Soberanía Alimentaria, una estrategia terapéutica para recuperar la salud ante el avance del extractivismo agroindustrial 323

Reflexiones finales con mirada ecosistémica. Y es justamente en


ese punto donde nos debemos, como sociedad,
Hasta aquí, presentamos un breve resumen el debate respecto a la necesidad de políticas
de una problemática compleja que de una u que sostengan y acompañen a las mujeres y
otra forma atraviesa a todos los grupos socia- hombres dispuestos a producir la comida sa-
les, y que pone en tensión las inequidades e ludable y segura, es decir a quienes produzcan
insostenibilidades de los modelos productivos alimentos de verdad accesibles a la totalidad
actuales. de la población. Revalorizar esta función es un
La Soberanía Alimentaria debería confi- pilar insoslayable de la construcción de una
gurarse entonces, como un eje transversal de sociedad saludable, libre y soberana.
políticas públicas para garantizar modos de
producción agroecológicos, que promuevan
la salud de los territorios y que representen Colaboradores
trabajos de calidad para las campesinas y cam-
pesinos, mientras se produzcan verdaderos Verzeñassi D (0000-0001-6098-8100)*,
alimentos. Estos alimentos son los que permi- contribución sustancial a la concepción y
ten apoyar y enriquecer los procesos vitales planificación o al análisis e interpretación
de los sujetos y las sociedades, incluyendo de los datos;  contribución significativa a
la resiliencia y los sistemas inmunológicos la redacción o revisión crítica del conteni-
individuales y colectivos. do; y participación en la aprobación de la
Desde nuestra mirada, las y los produc- versión final del manuscrito. Enriquez L
tores de alimentos agroecológicos rurales y (0000-0002-1345-4365)*, Vallini A (0000-
urbanos deben considerarse como los primeros 0002-5907-486X)* y Keppl G (0000-0003-
trabajadores y trabajadoras de la salud, que 2757-3725)*, contribución significativa la
contribuyen a cuidarla en su sentido amplio y redacción o revisión crítica del contenido. s

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orgánicos. Alimentos Argentinos. 2018; (67):13-18 duction system. Agri. Ecosyst. Env. 2021; (313).

50. Juan E, Kiehr EC. Producción Agroecológica de ce-


Recibido en 31/07/2021
reales y carne bovina en un Establecimiento Agrope- Aprobado en 31/10/2021
Conflicto de intereses: inexistente
cuario Extensivo (650 Has) en el sudeste de la Pro-
Apoyo financiero: no hubo
vincia de Buenos Aires de la República Argentina.
El caso de “La Aurora” una experiencia de 25 años.
Buenos Aires: FAO; 2018. [acceso en 2020 mar 20].
Disponible en: http://www.fao.org/3/a-be861s.pdf.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 316-326, Jun 2022


ENSAIO | ESSAY 327

Saúde mental, direitos humanos e justiça


ambiental: a ‘quimicalização da vida’ como
uma questão de violação de direitos humanos
decorrente da intoxicação institucionalizada
Mental health, human rights and environmental justice: the
chemicalization of life as a matter of violation of human rights due to
institutionalized intoxication

Eduardo Torre1, Paulo Amarante1

DOI: 10.1590/0103-11042022E222

RESUMO Este trabalho tematiza o problema das consequências sociossanitárias e ambientais do círculo
vicioso que liga violação de direitos humanos, insegurança alimentar e intoxicação institucionalizada,
principalmente em relação aos efeitos sobre a saúde mental decorrentes dos contaminantes ambientais e
dos agrotóxicos. O modelo predatório do capitalismo pós-industrial nasceu vinculado a fatores centrais,
como: a agricultura químico-dependente, a medicalização social e a transição nutricional, associadas à
mercantilização perversa dos recursos naturais. A expansão de monoculturas de larga escala com uso de
agrotóxicos e outros contaminantes ambientais, a expansão da indústria farmacêutica e da tecnificação
médica, e a expansão do modelo de alimentação industrial aditivada são consequências associadas a esses
fatores que estão interligados. Além disso, esse processo é estimulado e reproduzido de forma institu-
cionalizada e legalizada e vem produzindo múltiplas violações de direitos humanos e o aprofundamento
de diversas formas de intoxicação e adoecimento: esse modelo pode ser denominado de ‘paradigma da
quimicalização da vida’.

PALAVRAS-CHAVE Saúde mental. Agrotóxicos. Direito à saúde. Saúde e ambiente. Segurança alimentar
e nutricional. Direitos humanos.

ABSTRACT This work thematizes the problem of socio-sanitary and environmental consequences of the
vicious circle that links human rights violations, food insecurity, and institutionalized intoxication, mainly
in relation to the effects on mental health resulting from environmental contaminants and pesticides. The
predatory model of post-industrial capitalism was born linked to central factors, such as: chemical-dependent
agriculture, social medicalization, and nutritional transition, associated with the perverse commodification
of natural resources. The expansion of large-scale monocultures using pesticides and other environmental
contaminants, the expansion of the pharmaceutical industry and medical technology, and the expansion
of the industrial additivated food model are consequences associated with these interconnected factors. In
addition, this process is stimulated and reproduced in an institutionalized and legalized way and has been
1 Fundação Oswaldo Cruz
(Fiocruz), Escola Nacional
producing multiple human rights violations and the deepening of various forms of intoxication and illness:
de Saúde Pública Sergio this model can be called the ‘paradigm of the chemicalization of life’.
Arouca (Ensp), Laboratório
de Estudos e Pesquisas em
Saúde Mental e Atenção
KEYWORDS Mental health. Agrochemicals. Right to health. Environmental health. Food security. Human
Psicossocial (Laps) – Rio rights.
de Janeiro (RJ), Brasil.
eduardo.torre33@gmail.com

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 327-344, Jun 2022
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Introdução – saúde mental, a sobrevivência dos sistemas naturais e de


direitos humanos e justiça manutenção da vida, está associada a graves
retrocessos políticos e ameaças à democracia
ambiental: o debate no e aos direitos sociais e culturais. E de forma
campo da saúde coletiva similar, especialmente no Brasil, com uma
desregulação ampla e perda de conquistas e
Nas últimas décadas, tem avançado muito o avanços históricos, em um sistema de flexi-
debate sobre os agrotóxicos e contaminantes bilização e destruição de todo o arcabouço
ambientais e seus efeitos à saúde e ao ambien- jurídico-institucional de proteção ambiental
te. Tais estudos em diferentes áreas no campo e social, nos últimos anos, principalmente a
da saúde coletiva e afins têm demonstrado partir de 2019, com a posse do atual governo.
uma série de relações entre modelo produtivo, Observa-se, no Brasil (mas também em outros
condições sociais e de saúde – incluindo a contextos, em particular, em países perifé-
saúde mental – e modelos de alimentação, ricos), o enfraquecimento das políticas de
que levam a uma discussão ética e científica regulação de substâncias perigosas, com fra-
de grande importância atualmente1-3. Nesse gilização dos grupos vulneráveis, e liberação de
sentido, propõe-se, no presente estudo, o con- agrotóxicos e transgênicos de forma acelerada
ceito de ‘paradigma da quimicalização da vida’, e sem precedentes, combinada com expansão
como expressão que se refere a um modelo de da degradação ambiental descontrolada, desfi-
pensamento dominante no capitalismo, que nanciamento e privatização do Sistema Único
atravessa diferentes dimensões da sociedade, de Saúde (SUS) e deslegitimação da ciência.
e que liga a intensa exploração ambiental e Nesse cenário, estudos fundamentais para o
do trabalho, exposição a múltiplos efeitos à campo de investigação das relações entre saúde e
saúde e à saúde mental nas populações, modelo agrotóxicos são as pesquisas de Larissa Bombardi,
alimentar industrial dependente do uso de no livro ‘Geografia do Uso de Agrotóxicos no
insumos químicos, precarização social e o Brasil e Conexões com a União Europeia’4; e de
poder de grandes corporações transnacionais. Flávia Londres, na obra ‘Agrotóxicos no Brasil:
O paradigma da ‘quimicalização da vida’, um guia para ação em defesa da vida’5. Em tais
apoiado nos pilares da agricultura químico- estudos, expõem-se a situação das políticas de
-dependente, da medicalização social e da envenenamento massivo no País, as discussões
transição nutricional, aponta para uma reno- e os avanços em torno das experiências interna-
vação das formas contemporâneas da ‘indús- cionais de regulação e enfrentamento da questão;
tria da doença’, produzindo injustiça social e os caminhos para a mudança nesse cenário
e ambiental, com danos sociais e ambientais de contaminação descontrolada e produção de
graves e violação ao direito à saúde e ao direito vulnerabilidade.
à alimentação – e desse modo, colocando em
risco as democracias e conquistas dos movi-
mentos sociais nas últimas décadas. Todavia, Saúde mental e
a produção de conhecimento e a articulação agrotóxicos – o caso
das lutas e da militância em diversas esferas
e envolvendo múltiplos atores e instituições
emblemático da ‘tríade
vêm produzindo novas possibilidades e formas perversa’: impotência
de enfrentamento dessa verdadeira ‘fábrica’ sexual-depressão-suicídio
de morte e adoecimento que é o ‘paradigma
da quimicalização da vida’. Para o campo da saúde coletiva, na atualidade,
Tal crise civilizatória, que é também tem se apresentado uma série de evidências e
ética e socioambiental, além de ameaçar problemas documentados que relacionam os

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 327-344, Jun 2022


Saúde mental, direitos humanos e justiça ambiental: a ‘quimicalização da vida’ como uma questão de violação de direitos humanos decorrente da intoxicação institucionalizada 329

múltiplos impactos do modelo alimentar vezes, tem como causa a ingestão intencional
industrial e químico-dependente sobre a do próprio veneno utilizado na lavoura5,8-13.
saúde mental e física dos trabalhadores e
da sociedade como um todo. Isso permite Há uma série de estudos que indicam
afirmar a necessidade do questionamento haver forte relação entre o uso de certos
da legalidade e viabilidade de tal modelo, agrotóxicos e o alto índice de suicídio entre
do ponto de vista do ‘Direito à Saúde’ como agricultores. Algumas substâncias podem
direito fundamental nas sociedades demo- afetar o sistema nervoso central, provocando
cráticas6; bem como leva à constatação de transtornos psiquiátricos como ansiedade,
que diversos modos de resistência e enfren- irritabilidade, insônia ou sono conturbado
tamento têm sido produzidos7. (com excesso de sonhos e/ou pesadelos),
Nesse contexto, destaca-se um problema depressão e, muitas vezes, levar a pessoa in-
que vem se apresentando no cenário inter- toxicada ao ato extremo de eliminar a própria
nacional e exigindo um aprofundamento vida – comumente, bebendo o veneno usado
das pesquisas e debates de forma urgente: na lavoura5(52).
a ‘tríade perversa’ impotência sexual, de-
pressão e suicídio, que vem se repetindo As alterações neurológicas e compor-
em trabalhadores do campo que manipulam tamentais têm sido confirmadas em sua
os agrotóxicos, e que pode ser considerada relação com a intoxicação aguda ou su-
como um problema de grande relevância baguda, com consequências dramáticas,
para o campo da saúde mental5. como em um estudo pioneiro de importan-
Os impactos à saúde da intoxicação por te repercussão sobre o uso de agrotóxicos
agrotóxicos são bastante conhecidos, mas organofosforados na cultura do fumo no
temos, nesse caso, um ‘efeito dominó’, com Brasil, causando distúrbios neurológicos,
consequências biopsicossociais, na medida sintomas do Mal de Parkinson e suicídio
em que a manipulação do agrotóxico por em agricultores14, além de outros estudos
parte de trabalhadores, mesmo com uso de com resultados similares5,15.
Equipamentos de Proteção Individual (EPI), Dessa forma, diversas pesquisas vêm
tem gerado impotência sexual e depressão, apontando a necessidade de tematizar e
como quadros diretamente associados à ex- integrar os estudos sobre as relações entre
posição intensiva, inclusive levando ao sui- a contaminação ambiental e a intoxicação
cídio5. Tal ato também tem sido observado química com os seus impactos à saúde
como consequência da intoxicação química, mental. Altos níveis de exposição, incluindo
quando aguda e intensa, ou como decorrente envenenamento, resultam em um elevado
da depressão por intoxicação crônica, as- risco de danos múltiplos, com contaminação
sociada a diversos fatores, incluindo crise na agricultura e sequelas neuropsiquiátricas,
sexual e conjugal e insegurança econômica, inclusive envolvendo o uso de agrotóxicos
e em muitos casos associado a ameaças e como causa de suicídio. O envenenamento
pressões sofridas pelos trabalhadores5. por agrotóxicos altera o cérebro e leva ao
O uso de certos agrotóxicos está direta- incremento de ansiedade e depressão; e a
mente relacionado com um alto índice de sui- exposição a agrotóxicos organofosforados
cídio entre agricultores em diversos países, provoca depressão, impulsividade e dis-
pois afeta diretamente o sistema nervoso túrbios de humor, o que explica a elevada
central provocando transtornos psiquiátri- associação entre exposição a organofosfo-
cos e também suicídio, que inclusive, muitas rados e suicídio5.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 327-344, Jun 2022


330 Torre E, Amarante P

Agrotóxicos e serviços sociais, e agricultura que permita aos


contaminantes ambientais: pesquisadores relacionar a exposição ambien-
tal a agrotóxicos e as ‘desordens do espectro
neurotoxicidade e causas autista’ (Autism Spectrum Disorders – ASDs)
ambientais do autismo em crianças. Um estudo enfocou autismo em
e das ‘desordens do crianças cujas mães viviam, durante a gestação
neurodesenvolvimento’ e época do nascimento, perto de locais bem de-
finidos de aplicação de agrotóxicos, incluindo
Os efeitos neurocomportamentais e no desen- os comumente usados dicofol e endosulfan, na
volvimento cognitivo da exposição a agrotóxi- produção de algodão, frutas, vegetais, feijões,
cos estão associados à neurotoxicidade, tanto nozes, amplamente aplicados na região do
em trabalhadores adolescentes ou adultos Vale Central da Califórnia, apresentando forte
quanto em população não trabalhadora como associação com autismo17,18.
as crianças. Tal associação tem sido investigada Diversos outros estudos investigam as causas
de várias formas, inclusive com a avaliação de ambientais do autismo e outras ‘desordens do
dados experimentais para ‘neurotoxicidade neurodesenvolvimento’ (‘Neurodevelopment
do desenvolvimento’ por agrotóxicos, com a Disorders – NDDs’), com produtos químicos e
maioria dos componentes neurotóxicos incluí- misturas amplamente distribuídos no ambien-
dos entre os organofosforados, organoclorados, te que são suspeitos de causar neurotoxicidade
carbamatos e piretroides, que interferem no do desenvolvimento e outros efeitos19-23. Para
desenvolvimento normal do sistema nervoso além da pesquisa genética, os estudos am-
central. A investigação incide não apenas sobre bientais apontam a enorme sensibilidade do
o potencial de toxicidade dos agrotóxicos para cérebro humano em desenvolvimento a ele-
crianças e adolescentes, mas também durante a mentos químicos tóxicos, principalmente nos
gestação, com especial foco para a neurotoxici- períodos embriogênico e fetal, considerados
dade para o desenvolvimento (‘developmental ‘janelas de vulnerabilidade’19.
neurotoxicity’) e a análise dos efeitos potenciais Uma importante questão é a associação etio-
de longo período sobre a vida16. lógica entre exposição pré-natal e desordens
Estudos sobre neurotoxicidade do desen- do neurodesenvolvimento, que relacionam
volvimento demonstram os desafios para autismo e perda de cognição com medicamen-
entender o efeito da exposição a agrotóxi- tos (talidomida, misoprostol e ácido valproico)
cos sobre a saúde ao longo do tempo de vida, e infecção por rubéola, no primeiro trimestre
isto é, nos vários estágios no curso da vida; e da gravidez; e também com a exposição ao
especialmente importantes têm sido evidên- inseticida organofosforado clorpirifós, além
cias sobre déficits neurocomportamentais em de chumbo, metilmercúrio, organofosforados,
crianças expostas a agrotóxicos no período organoclorados, ftalatos, arsênico, manga-
pré-natal, bem como mudanças neurocom- nês, Hidrocarbonetos Aromáticos Policíclicos
portamentais em adolescentes que trabalham (HAP), bisfenol A, retardadores de chama
aplicando agrotóxicos organofosforados – e a bromados e componentes perfluorinados19.
associação de suicídio, depressão e exposição Esses agentes podem causar danos ao cérebro
a organofosforados em trabalhadores rurais16. humano em desenvolvimento, por meio da to-
Uma das questões mais preocupantes é a xicidade direta e de interações com o genoma.
da relação entre autismo e agrotóxicos, em Portanto, uma parte significativa das desor-
que tem sido apontada a urgente necessidade dens neurocomportamentais pode ser causada
de integrar fontes de dados para vigilância diretamente por exposição ambiental tóxica,
e pesquisa, como por meio de uma grande ou por interações entre fatores ambientais
convergência de dados sobre nascimentos, (definidos de forma ampla) e suscetibilidades

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 327-344, Jun 2022


Saúde mental, direitos humanos e justiça ambiental: a ‘quimicalização da vida’ como uma questão de violação de direitos humanos decorrente da intoxicação institucionalizada 331

herdadas, considerando mecanismos de inte- para outras doenças como Parkinson e


ração gene-ambiente e modificações epigené- Alzheimer, que há 50 anos eram quase des-
ticas, que podem ser causadas por elementos conhecidas. Em apenas 10 anos, o consumo de
químicos tóxicos19. ‘Round Up’ (glifosato) nas fazendas dos EUA
As abordagens de pesquisa dos tipos biomé- cresceu mais de 80%; e atualmente, mais de 80
dico e experimental, dominantes em estudos mil toneladas são usadas no milho transgênico,
toxicológicos e clínicos, têm caráter reducio- soja e outros cultivos, em um envenenamento
nista, e contrastam com as análises sistêmicas, sem precedentes24.
sociológicas e transdisciplinares, em relação a As investigações e os estudos também têm
protocolos de pesquisa de maior abrangência sido realizados com relação aos efeitos e con-
e profundidade crítica, inclusive considerando sequências à saúde de diversos outros conta-
as ‘causas ambientais’. minantes ambientais e poluentes, além dos
Um dos mais importantes trabalhos que agrotóxicos, como HAP, e a exposição a par-
indicam a associação entre os agrotóxicos e os tículas finas (PM 2.5) representando um risco
casos de autismo infantil, relacionados com o para crianças. Os HAP e PM 2.5 são gerados
uso de glifosato, foi realizado em pesquisas de primariamente pela combustão de produtos do
Stephanie Seneff do Massachusetts Institute petróleo, carvão, madeira, tabaco, lixo, gordura
of Technology nos Estados Unidos da América e outras substâncias. Ademais, a produção
(MIT/EUA)24. A previsão é que, a partir do ano de bifenilas policloradas (‘Polychlorinated
de 2025, metade das crianças nascidas nos EUA Biphenyls’ – PCBs), já usadas amplamente
será diagnosticada com autismo. Essa pesqui- em transformadores elétricos, plásticos e
sadora também não considera o autismo como outros produtos, foram banidas nos EUA
um distúrbio neurológico apenas genético, mas desde os anos 1970. No entanto, quase todos
causado ainda por fatores ambientais, especial- os norte-americanos têm níveis mensuráveis
mente a exposição ao ‘Round Up’ (glifosato) de PCB, porque os componentes persistem no
da multinacional Monsanto e a um coquetel ambiente e se acumulam no organismo: efeito
de metais tóxicos, incluindo o alumínio25-28. conhecido como ‘bioacumulação’17. Estudos
A pesquisadora S. Seneff tem sofrido pres- epidemiológicos têm relacionado exposição
sões movidas pela indústria farmacêutica e pré-natal à PCB com problemas no neuro-
pela agricultura industrial contra a divulgação desenvolvimento em crianças e bebês. Em
de suas pesquisas, que unem computação com estudos animais, a exposição pré-natal causou
estudos da biologia e toxicologia. Segundo diminuição dos níveis de hormônios da tireoi-
os estudos, a combinação entre alumínio e de, como Tiroxina (T4), que são essenciais ao
glifosato, especificamente, interrompe o fun- neurodesenvolvimento. Dezenas de químicos
cionamento da glândula pineal, induzindo ambientais foram medidos em amostras de
danos neurológicos, inclusive com evidên- sangue de 285 mulheres grávidas em estudo de
cias de relação com o autismo. Além disso, o coorte em Salinas Valley, Califórnia, incluindo
glifosato interfere em caminhos importantes 34 congêneres das PCB. Por fim, tem grande
da absorção de aminoácidos no sistema gas- relevância a referência ao uso do DDT, desde
trointestinal, destruindo a flora intestinal, que os anos 1960, com evidências de sua relação
é essencial à saúde e responsável pelo sistema com câncer de mama em mulheres e com
imunológico, com efeitos nefastos e envelhe- câncer em geral17.
cimento precoce25. Considerando que, nos últimos 50 anos,
Em um período de cinco anos, o índice de mais de 80 mil novas substâncias químicas
autismo aumentou de 1/150 para 1/50 nos EUA, sintéticas foram desenvolvidas, e que pelo
e há suspeitas de que os estudos de causas menos 3 mil são de grande volume de pro-
ambientais apontem associações semelhantes dução e têm grande potencial de risco para

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 327-344, Jun 2022


332 Torre E, Amarante P

exposição humana, as gestantes e as crianças órgãos de combate e prevenção à fome no


estão em uma situação de maior impacto, bem Brasil, e para atender ao ‘lobby’ da bancada
como os trabalhadores envolvidos nos pro- ruralista, por influência dos latifun Com o
cessos produtivos e de trabalho. Pelo menos processo recente de ataques aos avanços
200 dessas substâncias mais consumidas são conquistados e tentativa de desmonte da
encontradas no sangue de toda a população legislação que regula os agrotóxicos no
norte-americana. As consequências para a Brasil, importantes posicionamentos sobre
saúde infantil e para a gravidez ainda não mudanças no marco regulatório brasileiro
são totalmente conhecidas. Além disso, uma vieram de uma série de notas técnicas de di-
grande quantidade do total de substâncias versas entidades, ainda em 2018. Entre elas:
químicas ainda não recebeu avaliação mínima instituições de pesquisa, como Fundação
em seu potencial de toxicidade, e apenas um Oswaldo Cruz (Fiocruz) e Instituto Nacional
quarto foi testada para potencial de toxicidade do Câncer (Inca); sociedades científicas,
durante o desenvolvimento inicial da vida19. como Associação Brasileira de Saúde
Coletiva (Abrasco) e Sociedade Brasileira
para o Progresso da Ciência (SBPC);
A intoxicação órgãos técnicos das áreas de saúde e am-
institucionalizada e os biente, como Ministério da Saúde, Agência
Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa),
efeitos à saúde humana: o Conselho Nacional de Secretários de Saúde
caso do Brasil (Conass), Conselho Nacional de Secretarias
Municipais de Saúde (Conasems) e Instituto
O Brasil é o maior consumidor mundial de Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
agrotóxicos desde 2008, em quantidade e Naturais Renováveis (Ibama); órgãos do
em tipos de agroquímicos utilizados, com Poder Judiciário (Ministério Público
comprovada utilização de agrotóxicos que Federal, Ministério Público do Trabalho,
não são permitidos por lei – e mesmo entre Defensoria Pública da União); órgãos de
aqueles legalizados, muitos foram banidos controle social (Conselho Nacional dos
em dezenas de países 4,8. O controle dos Direitos Humanos, Conselho Nacional de
agrotóxicos pelo Estado brasileiro, tanto Saúde, Conselho Nacional de Segurança
no registro dessas substâncias quanto no Alimentar, Fórum Nacional e Estaduais de
banimento das que são proibidas, ainda Combate aos Impactos dos Agrotóxicos); e
precisa avançar muito, pois nem a Agência entidades da sociedade civil organizada30.
Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) O Projeto de Lei (PL) nº 6.299/2002, que
tem tido tal capacidade de controle8. propõe modificações no sistema de regula-
O Brasil tem, cada vez mais, uma legisla- ção de agrotóxicos, denominado por diver-
ção permissiva com relação à lista de agrotó- sas entidades, órgãos e movimentos como
xicos com autorização de comercialização, e ‘Pacote do Veneno’, colocou em pauta o des-
baixa capacidade de fiscalização e regulação monte completo do sistema normativo re-
do setor, que gera mais de US$ 5 bilhões por gulatório de agrotóxicos no Brasil, de forma
ano de lucro líquido. Ocorre que, especial- inconstitucional, visando reduzir o custo do
mente nos anos recentes, com uma escalada setor, com graves retrocessos considerando
do setor, adotou-se uma política sistemática os impactos à saúde e ao ambiente29,30.
de liberação de agrotóxicos no País, visce- Isso coloca o Brasil como o país mais
ralmente ligada ao agronegócio brasilei- intoxicado por agrotóxicos do planeta e
ro 29. Esse processo se deu como parte de com pouca proteção contra os ‘lobbys’ do
um desmonte estrutural das instituições e agronegócio. Apesar da legislação ambiental

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Saúde mental, direitos humanos e justiça ambiental: a ‘quimicalização da vida’ como uma questão de violação de direitos humanos decorrente da intoxicação institucionalizada 333

considerada muito avançada, existe um envenenamento massivo, na forma de um


modelo de desenvolvimento baseado nas movimento social ativo e reconhecido. Por
commodities e na exploração intensiva da meio de um movimento de lutas com par-
terra por monoculturas, com vistas à exporta- ticipação de atores e entidades múltiplas, e
ção de matérias-primas, que ocasiona a expul- uma ampla mobilização e enfrentamentos
são de comunidades tradicionais e populações em prol dos direitos humanos, da justiça
vulneráveis de territórios sob especulação do ambiental e social, o País já realizou cinco
agronegócio. Os grandes alavancadores desse Conferências Nacionais de Segurança
modelo têm sido a soja e o milho transgêni- Alimentar e Nutricional (Cesan), nas últimas
cos, bem como o eucalipto para produção de décadas, que foram momentos fundamentais
celulose e insumos, entre outros8. para a defesa do direito à alimentação, com
A situação atual, portanto, pode ser defi- mobilização e debate na sociedade acerca do
nida como de uma ‘intoxicação institucio- controle social e popular sobre as políticas
nalizada’, comprometendo a qualidade dos do setor35. A ‘Campanha Permanente contra
alimentos e da água para consumo humano, o Agrotóxico e pela Vida’ (www.contraosa-
com clara violação do direito à alimentação grotoxicos.org)36, conduzida por dezenas de
e nutrição adequada, o que deveria estar ga- instituições signatárias, destaca-se como
rantido conforme a Emenda Constitucional uma das frentes de luta do atual panorama
nº 64/2010; e especialmente nociva é a brasileiro.
prática de pulverização de biocidas, que Outros destaques na militância no Brasil são
contaminam largas regiões com graves im- o protagonismo do Grupo de Trabalho (GT)
pactos sobre a biodiversidade8. ‘Saúde e Ambiente’ da Abrasco; a criação da
Nesse cenário, destacam-se estudos e Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA),
investigações abrangentes no País, como e do Fórum de Combate aos Impactos dos
em ‘Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil: Agrotóxicos (Nacional e Estaduais), coorde-
o mapa dos conflitos’31, e o ‘Dossiê Abrasco: nado pelo Ministério Público do Trabalho; o
um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos lançamento do ‘Mapa de Conflitos envolvendo
na saúde’ 8, bem como outros estudos de Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil’37; e o
referência sobre os agrotóxicos e contami- lançamento dos documentários ‘O Veneno está
nantes ambientais e suas consequências so- na Mesa’ (2011), ‘O Veneno está na Mesa 2’
ciossanitárias e danos à biodiversidade32-35. (2014) e ‘Brasil Orgânico’ (2013), entre outros.
Em Mato Grosso, o estudo sobre conta- Por fim, um outro trabalho inovador de
minação de leite materno com agrotóxicos referência foi importante para o movimento
e prejuízos no desenvolvimento infantil, de lutas e produção de conhecimento. Em
conduzido por Wanderley Pignati e Danielly decorrência do maior desastre ambiental
Cristina Palma, que teve grande impacto na ocorrido no País, o rompimento da barragem
mídia nacional, denunciou uma situação da ‘Samarco’ em Minas Gerais, em novembro
extremamente grave, levando esses pesqui- de 2015, a ‘Caravana Territorial da Bacia do
sadores a sofrer pressões e ameaças, susci- Rio Doce’ percorreu em abril de 2016, com
tando o debate no campo da saúde coletiva pesquisadores e ativistas, o trajeto de mais de
no Brasil sobre a criação de mecanismos de 600 km, revelando os inúmeros efeitos gerados
proteção a cientistas ameaçados por grupos de grave sofrimento mental e físico, vulne-
de interesses comerciais e industriais do rabilização social e situação de emergência
agronegócio8. para muitas populações de cidades ao longo da
No entanto, existem, atualmente no bacia, destruição/extermínio de fauna e flora
Brasil, diversas formas de resistência ao e contaminação com rejeitos de mineração de
processo de intoxicação por agrotóxicos e todo o complexo hidrográfico38.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 327-344, Jun 2022


334 Torre E, Amarante P

A ‘Revolução Verde’ reféns os produtores em geral, que foram sendo


e o ‘paradigma da obrigados a comprar o ‘pacote’ de semente
modificada/‘defensivo’ para conseguir pro-
quimicalização da duzir e combater as pragas8.
vida’: da intoxicação Ainda assim, o que é chamado pela indús-
institucionalizada à tria do agronegócio de ‘defensivo agrícola’
medicalização social ou ‘pesticida’ nada mais é que o veneno, isto
é, o agrotóxico: são substâncias tóxicas e que
Uma profunda mudança nos padrões de agri- causam graves danos ao ambiente e à socieda-
cultura e cultivo foi decorrente do fato de a de, sob pretextos diversos, como o de acabar
indústria química bélica ter sido reorientada com a fome ou ‘melhorar’ a alimentação, mas
no pós-guerra, principalmente a partir dos que na realidade, geram lucro e maximização
anos 1970, para a produção dos assim chama- para elites minoritárias e grupos de interesse
dos ‘defensivos agrícolas’ (agrotóxicos). Isso do capital, com consequências sociais e am-
representou uma renovação de mercado, com a bientais perversas.
consequente introdução dos insumos químicos Uma última questão atual, ainda tendo
associada ao monopólio sobre as sementes. como exemplo o Brasil, que ainda tem pouca
As sementes ‘crioulas’ (não transgênicas), visibilidade, mas extremamente grave, é a uti-
que sempre estiveram, em grande parte, em lização de resíduos industriais para a produção
posse dos agricultores e disponíveis, foram de micronutrientes na agricultura, de forma a
sendo substituídas pela semente genetica- diminuir custos e maximizar ganhos. Trata-
mente modificada, patenteada pelas empresas se de uma clara violação de acordos interna-
transnacionais responsáveis por essa mudança. cionais sobre meio ambiente e de princípios
Ironicamente chamada de ‘Revolução Verde’, amplamente consolidados de saúde humana
essa mudança foi tida pelo discurso oficial da e direitos constitucionais. São os interesses
época como modernização e grande avanço da indústria de fundição e siderurgia, em que
produtivo e tecnológico, em substituição da empresas nacionais e multinacionais fazem
agricultura familiar e campesina. Assim nasce pressão sobre o Estado, no sentido de legali-
um novo paradigma produtivo, o da agricultura zar os chamados ‘resíduos perigosos’ para o
intoxicada. agronegócio8. No entanto, a Anvisa comprovou
Diversas autoras são fundamentais para as nocividades para a saúde humana e a am-
discutir a ‘Revolução Verde’ de forma crítica, pliação da situação de insegurança alimentar
como, por exemplo, a pesquisadora indiana e contaminação, caso o uso dos resíduos peri-
reconhecida internacionalmente, Vandana gosos para a agricultura seja aprovado8.
Shiva 39,40; a cineasta e escritora Marie- O modelo de alimentação industrial asso-
Monique Robin, que dirigiu o filme que virou ciado ao uso de agrotóxicos é mantido por
livro ‘O Mundo segundo a Monsanto’41; e pela interesses que têm promovido diversas formas
relevância, uma das obras pioneiras que tem de pressão e influência para induzir as insti-
destaque é ‘Primavera Silenciosa’, de Rachel tuições a legalizarem este tipo de negócio no
Carson42. Brasil; e enquanto isso não ocorre, a utilização
A semente transgênica e o uso do chamado ilegal em curso vem sendo documentada há
‘defensivo agrícola’ são inseparáveis, isto é, a décadas. As importações ilegais de resíduos
semente transgênica foi modificada genetica- tóxicos de outros países, como EUA, Canadá,
mente para suportar o uso do veneno agrícola, México, Espanha, Holanda e Inglaterra,
matando as ‘pragas’ (e qualquer outro ser vivo), burlam a Convenção de Basileia (1989), de
e com a promessa de manter a lavoura com ‘Controle de Movimentos Transfronteiriços
produção em escala – e, portanto, tornando de Resíduos Perigosos e seu Depósito’, a

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Saúde mental, direitos humanos e justiça ambiental: a ‘quimicalização da vida’ como uma questão de violação de direitos humanos decorrente da intoxicação institucionalizada 335

legislação ambiental e a Receita Federal, que vezes, são as que produzem medicamentos. A
faz apreensões em grandes portos brasileiros8. indústria agroquímica e a indústria farmacêu-
Para a agricultura químico-dependente, tica estão visceralmente ligadas: Basf, Bayer,
é necessária a correção das deficiências dos Novartis, Monsanto, Syngenta são produtoras
solos com diversos produtos, pois os solos da indústria química de ‘defensivos agrícolas’
envenenados ficam empobrecidos, e os mi- (agrotóxicos) e, ao menos em parte, de me-
cronutrientes a partir de minérios da natu- dicamentos e insumos farmacêuticos. Esse
reza (boro, cobalto, cobre, ferro, manganês, não é um fenômeno ao acaso, os interesses
molibdênio, níquel e zinco, por exemplo) são ligados ao agrotóxico estão associados aos
importantes para essa correção. Contudo, o mesmos interesses que induzem a expansão
fato é que, desde o final dos anos 1970, as indús- da medicalização social – são aqueles ligados
trias formuladoras de micronutrientes, com ao ‘paradigma da quimicalização da vida’.
interesse em matéria-prima de baixo custo, Os ganhos com medicamentos oncológicos e
recorrem a resíduos industriais perigosos de psiquiátricos, por exemplo, são muito altos43.
forma ilegal. O problema é que, desde a década Especialmente, medicamentos psicotrópicos
de 1980, as investigações demonstram que os são de interesse da indústria farmacêutica, que
resíduos industriais perigosos possuem outros têm relação com a disseminação na sociedade
elementos químicos inorgânicos e orgânicos de uma visão psicopatológica ampliada, vin-
(arsênio, mercúrio, chumbo, cádmio, cromo, culada à ‘hiperinflação diagnóstica’, à divul-
organoclorados, furanos e dioxinas), que não gação dos manuais diagnósticos como o DSM
são utilizados no metabolismo das plantas e (‘Diagnostical and Statistical Manual of Mental
que, além disso, são extremamente tóxicos, Disorders’), e à expansão dos diagnósticos
acumulando-se nos alimentos, nos solos e psiquiátricos. Portanto, com o consequente
na água, com graves riscos e prejuízos, e até uso massivo de gerações de antidepressivos,
mesmo danos irreversíveis8. antipsicóticos e anticonvulsivantes, antes mais
Cabe destacar os efeitos da ingestão ou restritos aos pacientes institucionalizados, e
intoxicação progressiva por metais tóxicos atualmente funcionando como ‘panaceia’ dos
sobre o sistema nervoso central e o compor- sofrimentos mentais e incentivado pela fantasia
tamento humano, que podem provocar danos da ‘pílula mágica’. Também pode-se denominar
neurológicos e induzir síndromes relacionadas esse processo de medicalização social ou me-
com demências, além de irritabilidade, agita- dicalização da vida, ou ainda de patologização
ção, déficit cognitivo e agressividade, como já dos comportamentos, fenômeno amplamente
investigado nas últimas décadas5,8. discutido no campo da saúde mental por di-
Outro aspecto relevante que se percebe é versos autores, como Robert Whitaker, Marcia
que os interesses industriais tentam fechar o Angell, Allen Frances e Peter Gotzsche43-48.
ciclo contaminante, ligando os rejeitos indus- A mercantilização do sofrimento mental
triais a serem transformados em insumos para está ligada à produção de saber e políticas pela
a agricultura envenenada, ignorando qualquer indústria farmacêutica e psiquiátrica, que visa
limite ético e legal. produzir mais internações, mais procedimen-
No entanto, o fechamento do ciclo do en- tos e exames, e uso contínuo e ininterrupto de
venenamento programado e da ‘quimicali- medicamentos, com consequente efeito de de-
zação da vida’ não termina aí. Um dos mais pendência química crônica e desenvolvimento
importantes pontos-chave na discussão das de tolerância aos medicamentos48. Exatamente
relações entre contaminantes ambientais e como na agricultura químico-dependente, em
saúde mental está no fato de que as mesmas que quantidades cada vez maiores de veneno
corporações que criaram e que mantêm o são necessárias para os mesmos efeitos, pois
modelo da agricultura intoxicada, muitas as ‘pragas’ se tornam resistentes.

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Esse paradigma biomédico e psiquiátrico urbanização) e da transição epidemiológica


alopático é centrado no indivíduo e na doença, (sobreposição de doenças crônico-degene-
e não na promoção de saúde. Baseia-se em rativas com doenças infecciosas reemergen-
exames e procedimentos de alta densidade tes, e problemas de saúde materno-infantil
tecnológica, têm características institucio- e relacionados com a desigualdade social e
nalizantes e custos crescentes. Não é capaz, vulnerabilidade), temos a transição nutri-
portanto, de efetivamente produzir saúde48. cional (mudança nos modos de alimentação,
Por isso a ‘epidemia’ de prescrição de me- na produção e consumo), gerando múltiplos
dicamentos psicotrópicos para todo tipo de impactos.
comportamento considerado ‘desviante’ ou As mudanças demográficas e epidemioló-
indesejável, e a ‘patologização’ da vida cotidia- gicas se devem a fatores intrincados e mul-
na. Por tal motivo, discute-se em saúde mental tifacetados. No entanto, algumas mudanças
que, à indústria psiquiátrica, interessa reforçar foram induzidas por interesses do capital;
o lugar da doença, a ideia de incurabilidade por exemplo, com a agricultura intoxicada,
do transtorno mental, a ideia de cronificação há uma precarização da vida e do trabalho
e tratamento interminável43-48. no campo, e também, por isso, o aumento/
incremento do êxodo rural e consequente
reforço na ‘favelização’ das cidades. De modo
A ‘tripla carga de doenças’ mais abrangente, fundamentalmente, ocorre
e a transição demográfica, a mudança no modelo de alimentação da so-
ciedade, que passa a sofrer um processo de
epidemiológica e massificação da alimentação, com o conceito
nutricional: a produção de ‘fast-food’, consumindo alimentos indus-
social da doença e o modelo trializados e ultraprocessados, e com inúmeros
de alimentação industrial aditivos alimentares, excesso de sal, açúcares
e gorduras50.
Os padrões de morbimortalidade nas últimas É óbvio que o modelo de alimentação in-
décadas sofreram enormes modificações, bem dustrializada está diretamente relacionado
como as condições de vida e de saúde da popu- com a ‘epidemia’ de hipertensão e diabetes,
lação, o que é estudado em saúde coletiva por bem como de obesidade. Da mesma forma, os
meio do conceito de transição demográfica e estudos vêm comprovando que há um efeito
epidemiológica. Esse conceito explica por que cumulativo no organismo das substâncias
ocorreram mudanças no padrão de distribui- químicas, como aditivos e agrotóxicos, que
ção de doenças, relacionadas com as mudanças se relaciona com o aumento vertiginoso de
históricas e sociais, e associadas a mudanças casos de câncer e câncer infantil, e doenças
urbanas e nos estilos de vida, desde os anos e agravos associados à alimentação. Os perfis
1970, tais como: aumento da expectativa de de morbimortalidade constituídos pelas três
vida, envelhecimento da população, diminui- grandes primeiras causas de morte e adoeci-
ção da taxa de fecundidade feminina, ascensão mento (infarto, doenças cardiovasculares e
das doenças crônicas não transmissíveis, entre metabólicas e câncer, entre outras causas de
outros fatores, que impactam a distribuição de adoecimento, como depressão e obesidade),
doenças na coletividade. inexoravelmente, têm sido associados à tran-
Percebe-se atualmente um novo fenôme- sição nutricional, tanto nos países avançados
no, que torna ainda mais complexo o quadro como naqueles em desenvolvimento ou peri-
sanitário, chamado de ‘tripla transição’ ou féricos, ainda que de modos muito diversos.
‘tripla carga de doenças’49. Além da transição Pode-se considerar que a transição nutri-
demográfica (mudança nos modos de vida e cional, como componente fundamental dos

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Saúde mental, direitos humanos e justiça ambiental: a ‘quimicalização da vida’ como uma questão de violação de direitos humanos decorrente da intoxicação institucionalizada 337

perfis de morbimortalidade, não só foi pro- associada a fatores como alimentação inade-
duzida socialmente por interesses industriais quada, obesidade, dislipidemias, tabagismo e
e econômicos como também introduziu um inatividade física51, mas também a questões
modelo alimentar industrial e intoxicado alta- sociais e políticas mais amplas.
mente adoecedor. Portanto, é resultado de um Finalmente, a questão dos aditivos alimen-
modelo de alimentação produtor de doenças, tares constitui outro exemplo do monopólio
assim como a intoxicação da sociedade e do da alimentação por parte de interesses que
meio ambiente por agrotóxicos é resultado violam o direito à saúde:
do agronegócio e seu modelo de agricultura
químico-dependente. Nesse sentido, esses Diversos estudos apontam reações adversas
modelos, como componentes do ‘paradigma da aos aditivos, quer seja aguda ou crônica, tais
quimicalização da vida’, constituem algumas como reações tóxicas no metabolismo desen-
das principais formas contemporâneas de cadeantes de alergias, de alterações no com-
renovação da ‘indústria da doença’. portamento, em geral, e carcinogenicidade, esta
Isso não significa uma ‘demonização’ da última observada a longo prazo51(1654).
indústria química e das ciências e engenharias
associadas a ela, por exemplo, que podem ser Além disso, a tecnologia aplicada pela in-
utilizadas para produzir benefícios sociais, dústria de alimentos, para aumentar o tempo
mas se refere aos processos de intoxicação de vida útil dos produtos, tem sido questio-
generalizada, destruição ambiental massiva e nada em relação à segurança dos aditivos
produção de injustiças sociais, que são condu- alimentares, especialmente os corantes e real-
zidas por interesses econômicos e de poder, em çadores de sabor. Os efeitos adversos e cumu-
detrimento da busca por uma sociedade mais lativos não permitem justificar a utilização
justa com proteção à biodiversidade. Nessa de parâmetros de Ingestão Diária Aceitável
direção, a proposição de uma crítica radical (IDA), critério aceito pela Organização
ao amplo ‘paradigma da quimicalização da Mundial da Saúde (OMS), principalmente
vida’, como um componente central da lógica pelo impacto do consumo na saúde infan-
‘necropolítica’29 contemporânea, pretende til51. Do mesmo modo, a regulação do uso de
embasar e aprofundar uma discussão que visa agrotóxicos segue parâmetros de ‘quantidades
a sua substituição por paradigmas agroecoló- máximas permitidas’, acompanhando uma
gicos, de justiça social e direitos humanos, que lógica semelhante8.
rompam com os processos de uma lógica ainda
dominante de intoxicação institucionalizada
e uso indiscriminado de substâncias químicas Soberania alimentar
gerando contaminações múltiplas. e agroecologia: da
Sobre a transição nutricional, como um
aspecto fundamental de discussão, ocorreu
‘quimicalização da vida’
uma profunda mudança no hábito alimentar da a um novo paradigma em
população nas últimas décadas, que preocupa saúde mental e ambiente
os órgãos reguladores e a comunidade científi-
ca, devido à substituição de alimentos in natura Diante de um contexto de intoxicação ge-
por alimentos processados, com consequente neralizada, modelo alimentar produtor de
empobrecimento da dieta. Isso, por sua vez, adoecimento e medicalização da vida, di-
contribui para o aparecimento de doenças versos novos modos de pensar a saúde e a
crônicas não transmissíveis, principalmente alimentação vêm sendo produzidos a partir de
doenças do aparelho circulatório, diabetes autores e investigações em campos de estudos
e neoplasias, com etiologia multifatorial os mais variados.

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Um dos mais importantes temas para a documentários: ‘Food Matters’ (EUA, 2008);
saúde e segurança alimentar e nutricional, ‘Super Size Me’ [‘A Dieta do Palhaço’] (EUA,
em sua relação com os direitos humanos, é o 2004); ‘A Carne é Fraca’ (Brasil, 2005); ‘The
debate sobre a soberania alimentar dos países, Future of Food’ (EUA, 2004); ‘Le monde selon
pois ela está sob o domínio das transnacio- Monsanto’ [‘O mundo segundo a Monsanto’]
nais que controlam as sementes e o mercado (França, 2008); ‘RoundUp Faces It’s Judges’
agroquímico8,39. [‘Tribunal Internacional Monsanto – o making
A Declaração de Nyélény (de 28 de fevereiro of’] (2017); ‘Cowspiracy’ (EUA, 2014); ‘What
de 2007), do Foro Mundial pela Soberania the Health’ (EUA, 2017); ‘Forks Over Knives’
Alimentar52, um dos mais importantes do- (EUA, 2011); e ‘The 11th Hour’ [‘A Última
cumentos sobre a questão, define soberania Hora’] (EUA, 2007).
alimentar como

direito dos povos a alimentos nutritivos e cul- Pandemia e ‘quimicalização


turalmente adequados, acessíveis, produzidos da vida’: novos desafios
de forma sustentável e ecológica, e seu direito
de decidir seu próprio sistema alimentar e
para a saúde coletiva e a
produtivo. saúde mental

Propõe ainda que seja garantida a segurança Uma possível linha de investigação futura
alimentar acima dos interesses dos mercados sobre essas questões no campo da saúde co-
e empresas, defendendo o direito de acesso e letiva e das ciências sociais poderá ocorrer por
gestão da terra, dos territórios e da biodiver- meio de análises complexas, como tem surgido
sidade, e construindo novas relações sociais a partir dos estudos sobre a pandemia do novo
livres de opressão e desigualdades. coronavírus e suas consequências sociais. A
Para o campo da saúde mental, analisar suas eclosão desta pandemia é um agravante de-
relações com os direitos humanos e a justiça am- cisivo, resultado de uma profunda crise civi-
biental tem grande importância para uma nova lizatória e ambiental sem precedentes, com
visão sobre o sofrimento mental e os processos efeitos paradoxais de amplificação crítica
de adoecimento psíquico e vulnerabilização do esgotamento social e ecossistêmico. Tais
psicossocial. É preciso alargar o ponto de vista, efeitos são decorrentes de uma combinação
estando atento para não ser capturado pelo bio- ‘sindêmica’ entre as desigualdades sociais,
logicismo e pela medicalização do sofrimento destruição ambiental e contaminações múl-
psíquico, elementos dominantes na intervenção tiplas, se considerarmos um contexto mais
psiquiátrica tradicional, e portanto, buscando amplo, e especialmente no Brasil, também
um pensamento complexo ancorado na noção desregulação estatal, desmonte das políticas
de ‘determinação social da saúde’48. de proteção social e ambiental, crise econô-
Por tudo que foi discutido, existe hoje mica e extremização política. Assim como a
uma grande mobilização mundial em torno combinação das pandemias da fome, da obesi-
da agroecologia e da produção de alimentos dade e das mudanças climáticas são discutidas
orgânicos, que busca a erradicação da indústria atualmente como uma ‘sindemia’ global, isto
dos agrotóxicos, associada à luta por direitos e é, um fenômeno de sobreposição de múlti-
fortalecimento dos movimentos sociais, contra plos fatores de adoecimento e morte que se
o envenenamento institucionalizado mantido agravam mutuamente, também é preciso um
pelos grandes interesses do agronegócio53,54. olhar complexo sobre os processos de saúde e
Para completar, destacam-se alguns filmes doença na investigação dos efeitos ligados ao
muito importantes no cenário atual, como os ‘paradigma da quimicalização da vida’, a partir

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Saúde mental, direitos humanos e justiça ambiental: a ‘quimicalização da vida’ como uma questão de violação de direitos humanos decorrente da intoxicação institucionalizada 339

dessas sobreposições de fatores em interação, e assim contribuindo para desenvolver uma


considerando a determinação social da saúde: perspectiva teórica conhecida como antro-
pologia médica crítica. Por meio do conceito
Sindemia Global é a combinação sinérgica entre de ‘sindemia’, entende-se “como a conside-
as pandemias de obesidade, desnutrição e mu- ração de fatores sociais, como as disparida-
danças climáticas, as três decorrentes, prin- des sociais, permite diferenciar os processos
cipalmente, do sistema agroalimentar global, sindêmicos de uma concepção biomédica de
além de outros fatores sociais em comum. [...] ‘comorbidade’ [...]”, o que permite também
Sindemia é uma sinergia de pandemias que “compreender a abordagem sindêmica como
coexistem no tempo e no espaço, interagem uma das que superam duas limitações das
entre si e compartilham fatores fundamentais abordagens biomédicas convencionais da
comuns [...]. E, com o aumento considerável doença – reducionismo e dualismo mente-
nas últimas décadas no consumo de alimentos -corpo”58(3). Porém, esse conceito tem sido
ultraprocessados, estes passaram a moldar o considerado como inovador em um campo de
sistema alimentar e a influenciar os padrões estudos transdisciplinar de questionamento
alimentares populacionais, impactando nega- dos efeitos críticos sincrônicos relacionados
tivamente a qualidade da alimentação, saúde, com saúde, meio ambiente e condições sociais,
cultura e do meio ambiente55. tendo ganhado ainda mais relevância com a
pandemia do novo coronavírus.
O documento ‘A Sindemia Global da Por isso, destaca-se outro importante docu-
Obesidade, Desnutrição e Mudanças mento que foi lançado recentemente, indican-
Climáticas: relatório da comissão Lancet’56, do novas possibilidades analíticas, apontando
de 2019, resultado de três anos de trabalho no sentido de concepções transdisciplinares
do projeto liderado por mais de 30 especia- e modelos críticos que buscam análises com-
listas de diversos países (entre eles, o Brasil), plexas da sobreposição de fatores interatu-
investiga e expõe a coexistência destes três antes, ou poderíamos dizer, ‘sindêmicos’. É o
importantes problemas de saúde pública no relatório ‘Agronegócio e pandemia no Brasil:
mundo: obesidade, desnutrição e mudanças uma sindemia está agravando a pandemia de
climáticas, e que representa um dos maiores Covid-19?’59, lançado pelo GT em ‘Saúde e
desafios do século XXI, tendo como causas os Ambiente’ da Abrasco, em colaboração com a
interesses comerciais e políticos que orientam ‘International Pollutants Elimination Network’
o sistema agroalimentar global. (Ipen). Em um momento em que o Brasil ul-
O conceito de ‘sindemia’, recentemente trapassou bem mais de meio milhão de mortes
utilizado como combinação de sinergia e pan- por Covid-19, compreende-se que não apenas
demia, foi criado pelo antropólogo Merrill a doença é mais letal para populações vulne-
Singer57, na década de 1990, para se referir rabilizadas (negros, indígenas, trabalhado-
aos fenômenos em que duas ou mais doenças res pobres e precarizados), como, ao mesmo
interagem causando danos maiores que a sua tempo, aprofunda as desigualdades sociais.
soma. Originalmente, em seus estudos, buscou
compreender a interação mutuamente agra- Neste fluxo que se retroalimenta (a pandemia,
vante entre problemas de saúde em populações a iniquidade e a morte), pesquisadores do GT
em seu contexto social e econômico, e especi- Saúde e Ambiente da Abrasco, em parceria com
ficamente o entrelaçamento entre a síndrome a International Pollutants Elimination Network
da imunodeficiência adquirida e a violência (Ipen) acrescentam mais um fator: o agrone-
em cidades norte-americanas, investigando gócio. [...] além da agroindústria aumentar as
as relações entre abuso de substâncias, HIV/ chances de novas zoonoses – com destruição
Aids, disparidades em saúde e minorias sociais, de habitats naturais –, também deixa as pessoas

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mais vulneráveis a doenças do tipo. Isto é Isso significa que o uso e o consumo de
porque o uso de agrotóxicos nos alimentos afeta agrotóxicos e aditivos alimentares, associa-
o sistema imunológico, enquanto o consumo de dos a fatores muito diversos de contaminação
ultraprocessados intensifica doenças e agravos ambiental, como as incontáveis formas de po-
não transmissíveis60. luição sobrepostas, exposição a riscos e estresse,
exposição à violência, alimentação insegura
ou subnutrição, e muitos fatores de insegu-
rança social e precariedade de condições de
Considerações finais: vida, conduzem a quadros complexos que se
o ‘paradigma da relacionam a muitas doenças ou agravos. São
exemplos: hipertensão, diabetes, infarto, AVC,
quimicalização da vida’ obesidade, alergias infantis e adultas, depressão,
como institucionalização da ansiedade, insônia, impotência sexual, suicídio,
intoxicação múltipla câncer, infertilidade reprodutiva, e até mesmo
suspeitas de relação com o autismo. São doenças
Os estudos na área da saúde coletiva têm papel complexas e multifacetadas, mas que não se
fundamental no enfrentamento dos interesses esgotam na dimensão biológica, podendo ter
ligados ao ‘paradigma da quimicalização da causas ambientais e psicossociais. Como na
vida’, em especial investigando a relação entre ‘tríade perversa’ em homens jovens, em casos de
saúde mental e os efeitos e consequências dos intoxicação por agrotóxicos, que têm sofrido e
contaminantes ambientais, agrotóxicos e adi- sido vitimados da sequência impotência sexual,
tivos alimentares. Tais estudos denunciam a depressão, suicídio; acreditava-se que eram
relação entre a poli-intoxicação e quimicali- casos pontuais, mas vêm se revelando como si-
zação da população e as diversas formas de tuações de repetição sistemática, em um quadro
adoecimento mental. preocupante e subnotificado, tanto em países
Esse campo de estudos de enorme impor- desenvolvidos como em países em desenvolvi-
tância, em que se busca discutir as relações mento e periféricos, ainda que considerando as
entre os contaminantes ambientais e a saúde diferenças entre contextos sociais.
mental, leva a problematizar os efeitos de ado- Em última análise, o que se configura é a
ecimento mental na população decorrentes da institucionalização da intoxicação múltipla,
insegurança alimentar e da injustiça ambiental, gerando violações ao direito à saúde e ao
por sua vez oriundas daquilo que poderíamos direito à alimentação, com graves impactos à
chamar de ‘indústria da intoxicação múltipla’, saúde física e à saúde mental, bem como aos
ou ‘indústria do envenenamento’. Da mesma direitos sociais e culturais e à proteção da vida.
forma, é possível se referir à ‘indústria da
doença’ como aquela ligada aos interesses em
torno da mercantilização do sofrimento e da Colaboradores
privatização da saúde. Ademais, especialmente
no contexto da pandemia do novo coronavírus, Os colaboradores Torre E (0000-0003-1676-
revela-se um cenário crítico de sobreposição 1317)* e Amarante P (0000-0001-6778-2834)*
das crises climática, social e sanitária, apro- contribuíram igualmente para a elaboração
fundando tais processos. do manuscrito. s

*Orcid (Open Researcher


and Contributor ID).

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ENSAIO | ESSAY 345

Bases teóricas para promoção da saúde e


resistência camponesa: um novo horizonte
metodológico
Theoretical bases for peasant health promotion and resistance: a new
methodological horizon

Pedro Henrique Barbosa de Abreu1, Herling Gregorio Aguilar Alonzo2

DOI: 10.1590/0103-11042022E223

RESUMO O agronegócio vem historicamente promovendo a submissão da produção, economia e vida


das famílias camponesas, gerando graves danos sanitários a essa parcela da população brasileira. No
entanto, a resistência do campesinato perante esse secular processo evidencia que a organização das
famílias e comunidades camponesas e o resgate participativo dos conhecimentos agroecológicos locais
podem fundamentar estratégias de promoção da saúde que busquem mudanças concretas nesse contexto
sanitário vulnerável. O objetivo deste trabalho foi apresentar pilares que fundamentaram o processo ca-
pitalista de submissão camponesa no Brasil e abordagens teórico-prático-epistemológicas que permitem
sua superação. Para isso, foram apresentados tanto referenciais para pesquisas e ações que subsidiem
famílias e comunidades camponesas em um processo social de autorreconhecimento, autovalorização e
utilização dos seus conhecimentos e suas práticas para uma transição agroecológica emancipatória, quanto
a experiência ampliada de promoção da saúde desenvolvida por meio desses referenciais em Lavras-MG.
A estrutura metodológica participativa apresentada permitiu o desenvolvimento, nesse município, dos
passos iniciais e fundamentais de um processo social de organização camponesa em torno de seu modo
de vida e economia, tendo a agroecologia como fator determinante para a saúde e para a construção de
um contexto mais justo, favorável e promissor.

PALAVRAS-CHAVE Promoção da saúde. Trabalhadores rurais. Salutogênese. Agroecologia.

ABSTRACT Agribusiness has historically promoted the submission of production, economy, and life of
peasant families, causing serious health damage to this portion of the Brazilian population. However, the
peasantry’s resistance to this secular process shows that the organization of families and communities and
the participatory rescue of local agroecological knowledge can support health promotion strategies that
seek concrete changes in this vulnerable health context. The objective of this work is to present bases that
founded the capitalist process of peasant submission in Brazil and also theoretical-practical-epistemological
approaches that allow its overcoming. For this, references for research and actions that subsidize peasant
families and communities in a social process of self-recognition, self-valorization, and use of their knowledge
and practices for an emancipatory agroecological transition are presented, as well as the health promotion
1 Universidade
expanded experience developed through these references in Lavras-MG, Brazil. The participatory method-
Federal de
Ouro Preto (Ufop) – Ouro ological structure presented allowed the development of the initial and fundamental steps of a social process
Preto (MG), Brasil. of peasant organization around their way of life and economy, with agroecology as a determining factor for
pedro.abreu@ufop.edu.br health and for the construction of a fairer, more favorable, and more promising context.
2 Universidade Estadual

de Campinas (Unicamp) – KEYWORDS Health promotion. Rural workers. Salutogenesis. Agroecology.


Campinas (SP), Brasil.

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 345-362, Jun 2022
346 Abreu PHB, Alonzo HGA

Introdução No entanto, movimentos organizados de


camponeses e camponesas passaram, a partir
O termo ‘agricultura familiar’ foi instituciona- da década de 1990, a disputar (pela negação)
lizado no Brasil em 1995, quando da promulga- esse entendimento conceitual e político.
ção do Programa Nacional de Fortalecimento Expoente dessa organização e disputa, o
da Agricultura Familiar (Pronaf )1,2. Segundo Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA)
Picolotto2, o reconhecimento formal desse se posiciona de forma contrária à dicotomia
termo veio como a culminância de um processo inerente ao conceito de agricultura familiar,
de disputa – que se desenrolou durante as “onde o camponês é atrasado e o agricultor
décadas de 1980 e 1990 – entre setores acadê- familiar é moderno”9. Para autores intrínse-
micos, sindicatos rurais e o Estado brasileiro, cos desse movimento social, a transformação
para estabelecer conceitualmente quem era a conceitual e prática do(a) camponês(a) em
família-trabalhadora proprietária de peque- agricultor(a) familiar tem tido como inten-
nas áreas de terra que se mantinha social e ção e consequência o “desmonte da cultura
economicamente ativa (apesar das profundas e da identidade das famílias camponesas”9.
dificuldades) ante o processo histórico de de- Tal identidade apresenta elementos práticos
senvolvimento capitalista da agricultura. e subjetivos, como a ligação com a terra; o
Como consequência desse processo de sentimento de pertencimento a um território
conceituação, que resumiu a complexidade do (povoado ou comunidade); a relação direta
campesinato brasileiro aos aspectos referentes com a natureza; a relação próxima com vi-
a seu modo de produção e à sua ‘moderniza- zinhos; os valores comunitários; o trabalho
ção’ sob parâmetros externos, a agricultura familiar; e uma lógica autônoma (baseada em
familiar passou a ser oficialmente definida e recursos locais e interesses/demandas fami-
entendida pelo Estado sob um caráter puramen- liares) de produção de alimentos, o chamado
te produtivo-mercadológico3. O rompimento, sistema camponês de produção4.
portanto, desse complexo, geracional, cultural e É nesse sentido, portanto, que pesquisas e
autônomo modo de vida e economia, por meio ações em saúde coletiva voltadas para a pro-
da introjeção conceitual, política e prática da moção da saúde de populações camponesas
‘agricultura familiar’ – como reprodutora de um impactadas pela submissão de seu modo de
‘pequeno agronegócio’ – nas unidades campo- produção e vida pelo agronegócio (e, conse-
nesas de produção4, tem trazido importantes quentemente, pelo uso de agrotóxicos) pre-
danos sanitários a essa parcela da população cisam tanto apreender as bases históricas,
brasileira. Assim, aos já amplamente identifi- teórico-práticas e epistemológicas que fun-
cados, documentados e divulgados impactos à damentaram a construção de tal submissão,
saúde da população camponesa decorrentes do quanto buscar referenciais transformadores,
uso de agrotóxicos5-8 (uma das tecnologias do participativos e resolutivos para a construção
pacote produtivo do modelo do agronegócio), de novas bases teóricas, metodológicas e epis-
somam-se os danos que ocorrem como con- temológicas de pesquisa e ação.
sequência da retirada da autonomia familiar Para isso, tais bases inovadoras devem
sobre os aspectos da produção e economia da estruturar caminhos de pesquisa-ação que
unidade produtiva; da desestabilização causada subsidiem a família e a comunidade camponesa
pela dependência técnica, tecnológica, de co- em um processo social de autorreconheci-
nhecimentos, de produtos e créditos externos; mento, autovalorização e utilização dos seus
e da dominação e supressão das tradições gera- conhecimentos e suas práticas produtivas,
cionais e bases culturais camponesas (que en- econômicas e culturais – tradicionalmente
volvem a produção de alimentos em equilíbrio sustentáveis dos pontos de vista agrícola,
com o meio ambiente local). ecológico e sanitário. Foi nesse sentido que o

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Bases teóricas para promoção da saúde e resistência camponesa: um novo horizonte metodológico 347

artigo ‘Salutogênese-Camponês a Camponês: um processo estruturado de transferência de


uma metodologia para promoção da saúde de pacotes tecnológicos das indústrias químicas
populações expostas a agrotóxicos’10 – um e mecânicas dos países dominantes para os
relato da experiência das cinco primeiras ati- campos agrícolas dos países dominados12,13,
vidades dos trabalhos de campo da pesquisa teve como antecedentes constitutivos no
de doutorado ‘Construção de um processo Brasil: a construção do camponês (em toda
participativo de Promoção da Saúde para a sua diversidade) como ‘ser inferior’ (Jeca Tatu,
superação do modelo do agronegócio: a experi- bicho do mato, capiau, caipira da roça etc.)
ência camponesa a partir da Salutogênese e da por intelectuais pertencentes às oligarquias/
Agroecologia em Lavras – MG’11, buscou apre- burguesias agrárias e à nascente burguesia
sentar caminhos e instrumentos de estrutura- urbana; e, também, a construção do controle
ção e desenvolvimento de uma metodologia ‘por dentro’ (por meio da intrusão direta da
fundamentada no referencial teórico-prático ciência e técnica agrária capitalista) do modo
do paradigma salutogênico de promoção da de produção camponês, do trabalho familiar
saúde e da metodologia social de dissemina- e do conhecimento local e intergeracional.
ção horizontal e autônoma da agroecologia A partir dos primeiros anos do século XX,
conhecida como camponês a camponês. começou a ser trabalhada a unificação das
Assim, neste ensaio, entendendo-se a im- diferenças e, principalmente, das semelhanças
portância e a relevância da continuidade, que envolviam a autonomia de vida e produção
ampliação e aprofundamento do tema11, são da diversa população camponesa brasileira
apresentados tanto os precedentes históricos sob uma única ‘caricatura’14. Os principais
sobre as quais foram construídas a submis- responsáveis por essa construção ideológica do
são da produção, economia, vida e saúde das campesinato autônomo como atrasado e infe-
famílias camponesas brasileiras ao modelo rior; como responsável pelos problemas sociais
capitalista do agronegócio, quanto bases e sanitários do País; e como parasita da terra e
teórico-práticas complementares e poten- do Estado – visão que fundamentou, a partir de
cializadoras utilizadas para a implantação de então, as políticas e ações públicas e privadas
um novo horizonte metodológico de promoção – foram os intelectuais e escritores brasileiros
da saúde com camponeses e camponesas no de origem oligárquica-burguesa, educados na
município de Lavras, em Minas Gerais. ou sob as bases de conhecimento da Europa
Ocidental capitalista14,15. Nesse sentido, tanto
Klanovicz15 quanto Darcy Ribeiro14 descrevem
Os pilares capitalistas da o ‘intelectual-fazendeiro’14 Monteiro Lobato
submissão camponesa como peça-chave para a construção do campo-
nês como ‘ser inferior’. Segundo Klanovicz15,
para Lobato,
A caricatura inferiorizada do
camponês O atraso da nação se devia aos parasitas cabo-
clos, aos lavradores ignorantes, pobres, infelizes
Como todo processo, a ‘modernização’ dos e, principalmente, doentes. Lobato, membro da
modos de vida e economia camponesa nos elite paulista do início do século XX e articulista
moldes e interesses coloniais capitalistas teve, d´O Estado de São Paulo, criou em 1914 o per-
antes de estar plenamente estruturada e com sonagem Jeca Tatu com o intuito de representar
ações e rumos totalmente definidos, etapas a população lavradora nacional sob a ótica da
precedentes de construção. Dessa forma, o doença. [...] Ele vivia a maior parte do tempo
que foi chamada Revolução Verde, a partir de cócoras, ‘sem disposição para o trabalho’;
do final da década de 1960, e que consiste em era ignorante e sua mulher não passava de

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348 Abreu PHB, Alonzo HGA

uma ‘sarcopta [sic] fêmea cheia de filhos’. A A (re)produção da ciência agrária


rigor, Jeca Tatu era a elaboração patronal do capitalista
brasileiro pobre do início do século XX e nessa
perspectiva, figura detestável, horrível, repug- Paralelamente, vinham sendo construídas,
nante, porém necessária para a manutenção das desde o final do século XIX, as primeiras es-
próprias elites51(46). [Grifos do autor]. truturas de (re)produção de conhecimentos e
práticas das ciências agrícolas no Brasil, que,
[...] Talvez seja por isso que Lobato afirmava alguns anos mais tarde, fundamentariam as
que o Jeca Tatu [...] era um urupê de pau podre teorias e as práticas do processo ‘modernizador’
e sua vida resumia-se ao convívio com poucos do campesinato. Essa ciência, oriunda e baseada
animais domésticos numa propriedade rural nas formas de produção que atendiam e repre-
de alguns alqueires de terra mal-aproveitados sentavam os interesses mercantis dos países
economicamente15(51). centrais do capitalismo e da elite periférica
brasileira, teve como primeira experiência con-
Essa imagem histórica (caricata e depre- creta a fundação do Instituto Agronômico de
ciativa) do camponês e seus modos de vida e Campinas (IAC)17. No entanto, os resultados ini-
produção, construída como arcaica, improduti- ciais apresentados pelo IAC desagradaram em
va e negativa tanto para o desenvolvimento do grande parte seus mantenedores. Isso porque
País quanto para a própria saúde e economia Franz Wilhelm Dafert, químico austríaco con-
familiar camponesa, disseminou-se, então, por tratado como diretor do IAC pelos Barões do
diversos meios de comunicação e entreteni- Café do estado de São Paulo, mesmo buscan-
mento ao longo do século XX, sendo hoje a do a otimização dos resultados produtivos e
base e o pano de fundo das atuais estratégias econômicos de seus financiadores, apontou
de marketing para ‘popularização’ e avanço como causas dos problemas de produtividade
continuado do agronegócio. Como exemplo e dos impactos à capacidade de regeneração e
e essência geral dessas estratégias, o modelo manutenção do solo o uso predatório da terra
de produção capitalista-latifundiário é apre- nos extensos latifúndios, o trabalho escravo e
sentado como tecnologia superior ao sistema o distanciamento dos donos em relação à pro-
produtivo camponês de base socioecológica dução, já que estes viviam nas cidades17.
(‘Agro é Tech’); como modelo fundamental de Tais críticas e questionamentos inconve-
produção, ‘voltado para a vida e alimentação nientes às bases da ordem econômica, social e
da população’ (‘Agro é Pop’); e como modo política da oligarquia-burguesia latifundiária
totalizante da sociedade, da cultura e da eco- que comandava o País não foram repetidos
nomia do País (‘Agro é Tudo’)16. nas escolas agrícolas com raízes e inspirações
O campesinato brasileiro (abarcando peque- estadunidenses (fundadores, pesquisadores e
nos proprietários, trabalhadores rurais sem posse professores) instaladas no início do século XX
de terra – empregados temporários, parceiros, em Minas Gerais. Tanto a Escola Agrícola de
meeiros, posseiros etc. – indígenas aldeões e Lavras (atual Universidade Federal de Lavras
quilombolas), juntamente aos seus conhecimen- – Ufla), fundada em 1908 por missionários-
tos produtivos geracionais (repletos, inclusive, -professores da Igreja Presbiteriana do Sul dos
de constantes inovações), à sua cultura e à sua Estados Unidos18, quanto a Escola Superior de
economia, foi, portanto, ideologicamente estabe- Agricultura e Veterinária (atual Universidade
lecido, por meio de um processo ativo de deter- Federal de Viçosa – UFV), “criada por um ame-
minação social, como ser inferior, passível e até ricano apaixonado pelas possibilidades civili-
necessitado de ações e intervenções do Estado, zatórias de uma escola científico-técnica para
da ciência e do setor privado para modernizar o melhoramento da agricultura no Brasil”17(49),
seu modo de vida ‘atrasado’. em 1922, não apresentavam em seus programas

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 345-362, Jun 2022


Bases teóricas para promoção da saúde e resistência camponesa: um novo horizonte metodológico 349

curriculares e em seus projetos de pesquisa capitalista (ao mercado, aos créditos e à produ-
temas que questionassem e buscassem formar tos e tecnologias como insumos e máquinas),
profissionais com pensamento crítico em precisava ser colocada em prática de modo a
relação às estruturas latifundiárias e mono- alterar e comprometer ‘por dentro’ a autono-
cultoras17,18. Analisando a trajetória inicial da mia do trabalho familiar camponês. Tal solução
Escola Superior de Agricultura e Veterinária, prática, que permitiria à ciência agrária ca-
Coelho17 aponta que: pitalista desenvolver efetivamente seu papel
colonial, ao passar a controlar e subjugar o
À medida que o mundo social não era questio- trabalho e os conhecimentos camponeses, já
nado, o conhecimento técnico comprometia-se vinha sendo realizada nos Estados Unidos. De
com o aprimoramento da ordem existente sem lá, então, foi adaptada e trazida ao Brasil, em
tocar nas bases estruturais latifundistas [...]. As 1948, por Nelson Rockefeller, por intermédio
possibilidades abertas pelas mudanças técnicas da Associação Internacional Americana (AIA),
eram interessantes, desde que não tocassem na a Extensão Rural19.
capacidade de controle político das oligarquias Sobre os primórdios estadunidenses,
sobre a terra e o trabalho no campo. Por isso, Fonseca19 relata que a Extensão Rural:
pode-se dizer que esse arranjo institucional
permitiu a construção de forte identidade de [...] fornecia uma proposta teórico-metodoló-
propósitos entre a escola e as elites agrárias17(49). gica para se conseguir, em menor prazo, que
os habitantes de ‘áreas tradicionais ou sub-
Nesse mesmo sentido, além de (re)produ- desenvolvidas’ modificassem seus comporta-
zir ciência-técnica para o desenvolvimento mentos pela adoção de práticas consideradas
produtivo e econômico dos cultivos das elites cientificamente válidas para a solução de seus
latifundiárias, as principais escolas agrícolas problemas e consequentemente o alcance do
do Brasil foram criadas para que os filhos desenvolvimento econômico-social19(46). [Grifo
desta mesma elite – além de outros poucos do autor].
que haviam ascendido socialmente por meio
da escolaridade em um País majoritariamente Convém lembrar mais uma vez que, nesta
analfabeto – formassem-se para aplicar os co- perspectiva, o desenvolvimento econômico-
nhecimentos técnicos adquiridos nas terras -social é entendido como uma passagem da
de seus pais e/ou patrões17. Dessa forma, até a sociedade do tipo tradicional [...] para um
década de 1940, a ciência agrária ‘nacional’ e a tipo de sociedade onde predominam padrões
construção ideológica e social do campesinato de lucro, neutralidade afetiva, universalismo,
brasileiro como um ser/povo inferior vinham especialização e soluções técnico-científicas
fortalecendo a estrutura e a economia capitalis- para os problemas comuns19(46).
ta dos grandes concentradores de terra do País,
mas ainda não haviam, de maneira substancial, Não por coincidência, Nelson Rockefeller
permitido a modernização-conversão capita- escolheu Minas Gerais para ser a experiência
lista da produção, economia e vida camponesa. e a referência brasileira em extensão dos co-
nhecimentos acadêmicos-científicos para o
A assistência técnica rural como meio rural. As Escolas Agrícolas de Lavras e
método de invasão cultural de Viçosa, após algumas décadas de existência,
vinham não apenas (re)produzindo conheci-
Uma solução efetiva para desestruturar e mentos e técnicas alinhadas aos interesses
dominar os modos de produção e vida cam- do mercado e das empresas capitalistas (em
ponesa, fazendo com que estas fossem atre- especial as estadunidenses) como também
ladas e submetidas por completo à economia vinham realizando experiências prévias de

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350 Abreu PHB, Alonzo HGA

disseminação dessa ciência, por meio de expo- em que se fundamentou (e a qual aprofundou
sições nacionais e da publicação e distribuição radicalmente) a Revolução Verde.
de revistas, livros e cartilhas agropecuá-
rias17,18. Com o estabelecimento, então, nesse
estado, da tríade pesquisa-ensino-extensão Referenciais teórico-
rural capitalista, a Associação de Crédito e práticos para novas
Assistência Rural (Acar – MG) pôde – sendo
“uma instituição cuja prática tinha em vista a
abordagens metodológicas
difusão de produtos e métodos de cultivos exi- em promoção da saúde
gidos pela chamada, na época, de ‘agricultura camponesa
moderna’”17(85) e contando, para isso, com todo
aparato estatal e empresarial capitalistas – dar
início ao processo de introjeção, ao modo de Agroecologia
produção camponês, de artifícios de ‘melhoria
e desenvolvimento’ que desconsideravam e A Carta de Ottawa21 trouxe, em 1986, as bases
subjugavam suas técnicas e conhecimentos conceituais da promoção da saúde, como um
tradicionais e sua autoexploração equilibra- campo de conhecimento e prática capaz de
da do trabalho familiar20. Assim, a Extensão dar sustentação a processos de melhoria das
Rural logrou atrelar, enfim, em grande parte, condições de vida e saúde de populações
o trabalho, a economia e a vida camponesa subjugadas e destituídas do controle de seus
à economia capitalista, por meio do círculo próprios contextos, recursos e autonomia.
vicioso da compra de tecnologia externa/ No entanto, a promoção da saúde carece, em
crédito para pagar seus custos. qualquer contexto e população com a qual se
Klanovicz15 aponta como a Extensão Rural intencione seu desenvolvimento, de uma busca
no Brasil, sob o discurso da modernização do e operacionalização teórico-metodológica que
inferiorizado camponês e como componente possibilite a concretização e os efeitos sanitá-
prático de intrusão das teorias e técnicas da rios resolutivos de seu conceito democrático
ciência capitalista, completou as ferramen- e horizontal22.
tas de desestruturação e submissão do povo No caso de populações camponesas sub-
camponês, permitindo o acesso do poder capi- metidas à subjugação e impactos da lógica,
talista ao trabalho autorregulado e autônomo estrutura e ações do agronegócio capitalista,
da produção camponesa familiar20 e, também, a base teórica e operacional de estruturação
a seus conhecimentos geracionais. Segundo de uma estratégia de promoção da saúde deve
o autor, viabilizar um processo de construção da au-
toapreensão camponesa de seu contexto e da
os ‘jecas’ sucessivamente redefinidos por insti- valorização e utilização de seus conhecimentos
tuições de assistência técnica e extensão rural e recursos no processo de mudança das condi-
não passavam de agricultores coagidos pelo ções de dominação, exploração e adoecimento
Estado a inserir suas propriedades na economia de seu modo particular de vida, produção e
capitalista, transformar técnicas de produção e economia10. Para isso, o conceito da promoção
éticas de trabalho15. [Grifo do autor]. da saúde deve ser entrelaçado com a teoria, a
prática e a práxis de um modelo de produção e
Dessa forma, a construção precedente e conhecimento que seja coerente com o modo
interconectada da “inferioridade camponesa” de vida e economia camponesa, permitindo
e do controle do trabalho e dos conhecimentos sua reestruturação e potencialização. Ou seja,
familiares e comunitários por meio da ciência- uma estratégia metodológica de promoção da
-extensão rural capitalistas formou a estrutura saúde que se intencione resolutiva (profunda

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Bases teóricas para promoção da saúde e resistência camponesa: um novo horizonte metodológico 351

e amplamente), buscando a emancipação do para mudanças práticas, reais e profundas e


pensamento e vida camponesa, deve estrutu- que permitam uma interpretação científica/
rar, viabilizar e apoiar um processo de transi- filosófica descolonizada e descolonizadora28.
ção para o modelo agroecológico.
Autores como Navolar et al.23, Azevedo Método Analético
e Pelicioni 24,25 e o próprio Ministério da
Saúde do governo brasileiro (2016) – por Ao propor o Método Analético como filosofia e
meio das ‘Diretrizes nacionais para a vigi- prática científica para a estruturação de cami-
lância em saúde de populações expostas a nhos para a libertação/emancipação do povo
agrotóxicos’26 – indicam tanto a agricultura latino-americano, Enrique Dussel29 reforça
e o sistema agroalimentar como fatores in- a importância e a necessidade do Método
dissociáveis à conformação das condições Dialético de Marx30 para a superação – pelos
de vida das populações rurais quanto a trabalhadores e trabalhadoras organizados
agroecologia como área que intercomple- – das relações e formas de dominação e ex-
menta e fortalece o conceito, as estratégias ploração impostos pela burguesia capitalista.
e as práticas em promoção da saúde. Isso Complementarmente, entretanto, ele afirma
porque esse modelo de produção agrícola ser necessário o desenvolvimento de um
(e, também, modo de vida) permite o (re) momento anterior (o momento analético),
desenvolvimento do equilíbrio camponês em que os que vivem e trabalham sob a co-
em relação ao meio ambiente local, ao seu lonialidade do poder capitalista31 – ou seja,
modo de economia familiar e às suas relações aqueles que são subjugados e explorados tanto
sociais e culturais, promovendo, assim, a pela burguesia local dependente (periférica)
autonomia dessas populações subjugadas quanto pelos países e corporações dominantes
pelo agronegócio e expostas, direta ou in- (que negam, desde sua posição central no ca-
diretamente, a agrotóxicos23-25. pitalismo, a cultura e o modo de vida ‘inferior
Segundo Wezel27, o Brasil é o país onde a e atrasado’ da periferia do mundo, impondo a
agroecologia vem sendo mais nítida e decisi- sua ‘modernidade’) – precisam se autorreco-
vamente definida e utilizada como movimen- nhecer como não organicamente pertencentes
to e ação social (política), prática (técnicas (exteriores, ainda que invariavelmente inter-
agroecológicas) e produção de conhecimento nalizados pela dominação colonial do sistema)
e tecnologia (ciência). Assim, entendida como à totalidade da sociedade capitalista, para, a
práxis que promove o diálogo horizontal e a partir daí, negar a negação imposta (momento
ação conjunta entre indivíduos, comunidades dialético) pelo capitalismo burguês29.
e entidades camponesas, acadêmicas e insti- No caso e exemplo do campesinato brasi-
tucionais28, a agroecologia no Brasil dispõe leiro, o momento analético, como proposto
de fundamentação, experiências e potencial por Dussel29, deve trabalhar inicialmente o
para a emancipação do pensamento e do autoentendimento da família camponesa como
modo de vida camponês; e, ao mesmo tempo, tal (sua cultura; seu modo de vida e economia;
para construção e viabilização de processos seu modo de produção próprio e seus conheci-
sociais, culturais, ecológicos e sanitários mentos tradicionais/geracionais; seus direitos
para a superação do modelo dominante do e desejos; as explorações que sofrem; e as suas
agronegócio. pautas para a mudança do contexto de explora-
Nesse sentido, um trabalho de pesquisa ção), a partir de sua própria palavra e percep-
científica que pretenda desenvolver um pro- ção. Isso é fundamental, segundo o autor, para
cesso coletivo de resgate, implementação e dis- que os trabalhadores e trabalhadoras possam,
seminação da agroecologia deve se basear em de fato, autodefinir-se e, a partir daí, definir
métodos que direcionem a promoção da saúde os rumos de sua ampla descolonialidade29.

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352 Abreu PHB, Alonzo HGA

Sendo esse, portanto, um método que inten- saúde como “[...] um conceito positivo, que en-
ciona mudanças práticas, reais e profundas, fatiza os recursos sociais e pessoais [...]”21(20),
que permitam uma interpretação científica/ são insuficientes para dar sustentação teórica e
filosófica que promova e dissemine essa au- operacional a tais processos de transição agro-
têntica emancipação; e, também, sendo esse ecológica com camponeses que vêm sofrendo o
o caminho escolhido para fundamentar, im- processo ativo de subalternização de seu modo
plementar e analisar um processo de pesquisa de vida, cultura e economia. Isso porque, de modo
e ação de promoção da saúde de populações geral, essas orientações e programas sanitários
camponesas dominadas e impactadas pelo buscam caracterizar pessoas e comunidades por
modelo capitalista do agronegócio, faz-se meio de seus problemas, debilidades e incompe-
necessária a estruturação de um processo tências, e não mediante promoção e visibilização
que se utilize de metodologias camponesas, das experiências, conhecimentos e inovações
paradigmas sanitários e desenhos de estudo (incluindo as agroecológicas) disponíveis entre
que viabilizem a operacionalização do que os próprios camponeses e camponesas.
é cientificamente definido por Dussel como Foi com o intuito metodológico, portanto, de
“saber situar-se para que, das condições estruturar e desenvolver um caminho (funda-
de possibilidade da revelação, pudéssemos mentado teórica e praticamente) de promoção
aceder a uma reta interpretação da palavra do da saúde de famílias e comunidades rurais que
outro”29(208), sendo que, “o tema a ser pensado, vivem em contextos de exploração e impactos
a palavra reveladora a ser interpretada ser-lhe- gerados do modelo do agronegócio que o artigo
-ão dados na história do processo concreto da ‘Salutogênese-Camponês a Camponês: uma
própria libertação”29(198). metodologia para promoção da saúde de po-
pulações expostas a agrotóxicos’10 apresentou
tanto a sinergia quanto a complementariedade
Salutogênese e Metodologia entre o paradigma salutogênico e a Metodologia
social Camponês a Camponês a Camponês (CaC) de disseminação
da agroecologia. Conforme abordado no artigo10,
Camponês a Salutogênese apresenta-se como paradigma
de promoção da saúde que busca disponibilizar
Entendendo a agroecologia e o Método Analético práticas, características e conhecimentos positi-
como referenciais teórico-práticos para a edi- vos próprios (recursos de saúde) das pessoas de
ficação de processos sociais de emancipação/ uma determinada população e localidade, por
libertação por meio do autorreconhecimento e meio da identificação e da apropriação, pessoal
disponibilização de experiências, saberes e práti- e comunitária, desses recursos. Tal processo,
cas de famílias camponesas e de suas comunida- segundo Antonovsky32,33, tem a capacidade de
des, fica nítido que uma transição agroecológica gerar componentes cognitivos, comportamentais
não pode acontecer pela simples transmissão e motivacionais (sentidos de compreensão, de
hierarquizada de práticas e tecnologias por manejo e de significação respectivamente) que,
meio das ‘vias clássicas’ de assistência técnica sendo fortalecidos “retroalimentam a capacida-
e extensão rural, de pesquisas científicas e de de das pessoas de identificar e de se apropriar
ações públicas que desvalorizam saberes tra- de novos recursos presentes em seu ser e em
dicionais e que não permitem o protagonismo sua comunidade”10. Além disso, como modo de
camponês no processo. Nesse mesmo sentido, operacionalização do paradigma salutogênico
tanto as orientações patogênicas de prevenção de de promoção da saúde no contexto em questão,
doenças e proteção da saúde quanto os programas a Metodologia CaC – que tem como origem e base
de promoção da saúde que não se baseiam em conceitual-prática as concepções e métodos da
conteúdos teóricos que buscam desenvolver a educação popular de Paulo Freire34 – apresenta

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 345-362, Jun 2022


Bases teóricas para promoção da saúde e resistência camponesa: um novo horizonte metodológico 353

instrumentos e tecnologias sociais capazes de da agroecologia em pequenas e grandes escalas


desenvolver processos de transição agroecológica em comunidades e regiões rurais de diferentes
horizontais e autônomos e, consequentemente, países da América Latina e do mundo, sendo
de promover a emancipação camponesa34-37. identificada pela organização internacional de
Por meio de princípios, passos e métodos35 (su- movimentos sociais do campo Via Campesina
marizados no quadro 1) que permitem o desen- como “a melhor forma das famílias camponesas
volvimento do intercâmbio e do apoio mútuo desenvolverem e compartilharem suas próprias
entre camponeses e camponesas, a CaC vem tecnologias e seus próprios sistemas de agricul-
viabilizando a implementação e disseminação tura ecológica”38(13).

Quadro 1. Princípios, passos estruturantes e métodos (atividades e ferramentas/instrumentos) da Metodologia CaC

Princípios Passos Métodos*


Começar devagar e em pequena Iniciando o caminho Assembleia de integrantes da organi-
escala (começa-se a metodologia nas ro- zação camponesa
(facilita a avaliação, a reflexão e a ças com o diagnóstico rápido dos
retificação de erros, assim como problemas-chave, para, em seguida, Oficinas de socialização de experiên-
diminui a magnitude dos possíveis estabelecer prioridades e identificar cias e construção de novos conheci-
riscos) as melhorias que possam ser base mentos
para iniciar as mudanças)
Limitar a introdução de tecnologias Intercâmbio de experiências Diagnóstico Rápido Participativo
(é mais rápido dominar uma a uma (realiza-se o intercâmbio de co-
as inovações, consolidando-as e nhecimentos entre um grupo de Visitas de trocas de saberes
integrando-as pouco a pouco. Deve- camponeses e um promotor que,
-se começar por aquelas técnicas provavelmente, já tinha soluções Intercâmbios de vivências
que enfrentam e resolvem os maiores para o problema. Aqueles que estão
problemas produtivos; que têm os com o problema começam a experi-
menores custos iniciais; que são mentação em pequena escala, para
fáceis de realizar; e que levam de comprovar se a técnica do promotor
maneira mais rápida a um resultado) funciona também em suas próprias
roças. Observam êxitos e estabele-
cem compromissos. São importantes
a reciprocidade e a continuidade
depois do intercâmbio)
Obter êxito rápido e identificável Capacitação sobre ferramentas me- Demonstrações didáticas
(o entusiasmo é gerador de novas todológicas (presenciais em roças ou por meios
ideias, e as vitórias obtidas são o (o conhecimento destas ferramentas audiovisuais)
estímulo mais eficaz) permitirá a utilização em diferentes
atividades: oficinas, intercâmbios, Exibição de produtos, sementes,
jornadas de capacitação e/ou visitas matérias e inovações
a roças de outros agricultores)
Experimentar em pequena escala Oficina sobre técnicas agroecológicas Dinâmicas de apresentação, anima-
(permite comprovar as tecnologias (é necessário experimentar tecnolo- ção e avaliação
que servem ou não, proporcionando gias para garantir que funcionem e
segurança e confiança) deem bons resultados, até dispor de Experiência de Banes
um maior espectro de tecnologias) (identificação participativa de práti-
Desenvolver um efeito multiplicador Encontro para reforço geral cas agroecológicas existentes e dese-
(a multiplicação, entre e pelos pró- (faz-se uma revisão de todo o pro- jadas/necessárias)
prios camponeses, dos resultados e cesso, a fim de analisar conquistas e
experiências obtidas é a única forma dificuldades, identificando as priori- Outras (representações teatrais,
de poder chegar à extensão e massifi- dades seguintes) poesias, canções, desenhos, mapas,
cação deste sistema de produção) fotografias, audiovisuais etc.)
Fonte: Adaptação de Sosa MA, Jaime AMR, Lozano DRA, et al.35.
*Os métodos podem ser utilizados em distintos momentos e composições ao longo do desenvolvimento dos passos da Metodologia CaC,
conforme o contexto e as necessidades identificadas.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 345-362, Jun 2022


354 Abreu PHB, Alonzo HGA

No entanto, a continuidade dos trabalhos Pesquisa-Ação-Participativa


de campo da pesquisa11, entre outubro e de-
zembro de 2017 – por meio de atividades Um trabalho de pesquisa científica que pre-
(posteriores às atividades que embasaram o tenda desenvolver um processo coletivo de
artigo anteriormente publicado10) que tanto promoção da saúde salutogênica e analisar a
aprofundaram o processo de autorreconhe- efetividade desse desenvolvimento por meio
cimento dos camponeses e camponesas en- da escuta da palavra e do protagonismo dos
volvidas como promoveram os passos iniciais próprios camponeses não pode ter um desenho
do processo de organização camponesa em de estudo fundamentado em uma prática cien-
Lavras –, evidenciou a necessidade de um tífica que se impõe como ‘superior’.
aprofundamento teórico e de uma ampliação Baseando-se, então, na insuficiência de
do alcance da transformação social promo- desenhos metodológicos positivistas para o
vida por meio da estrutura metodológica desenvolvimento de uma ciência socialmente
que estava em desenvolvimento. compromissada, útil e efetivamente participa-
Dessa forma, foi incorporado à estrutura tiva, Orlando Fals-Borda39,40 apresenta as bases
metodológica o Método Analético. Assim, científicas da Pesquisa-Ação-Participativa.
utilizando-se os métodos práticos disponi- Desenvolvida a partir das experiências ad-
bilizados pela CaC35 para desenvolver uma quiridas por meio da realização de pesquisas
promoção da saúde salutogênica com popu- científicas que buscavam a construção coletiva
lações camponesas submetidas ao modelo de de melhorias sociais (e sua sistematização)
produção ‘moderno’/colonizador do agro- com e a serviço de comunidades exploradas
negócio, o potencial de descolonialidade do e subalternizadas (em especial, comunidades
modo de vida e economia camponesa pôde camponesas de países como Colômbia, México
ser desenvolvido, escutado, discutido, siste- e Nicarágua), a Pesquisa-Ação-Participativa
matizado, analisado (por meio de categorias se fundamenta em elementos que apresentam
salutogênicas) e devolvido por intermédio de intrínseca relação conceitual e operativa com
métodos/instrumentos que operacionaliza- o Método Analético, a CaC e a Salutogênese.
ram: o entendimento do contexto de subju- Nesse sentido, o primeiro elemento apre-
gação do modo de produção dos camponeses sentado por Fals-Borda39 é o rompimento da
pela lógica colonial da Revolução Verde e, relação dominante sujeito-objeto. Nas ‘ciências
também, o entendimento das possibilidades, clássicas’, a relação sujeito-objeto estrutura-se
viabilidades e benefícios gerais (incluindo na desigualdade entre o pesquisador (com seu
os sanitários) da agroecologia (sentido de conhecimento científico metódico, superior
compreensão); a identificação dos recur- em sua formação acadêmica e com capacida-
sos agroecológicos e demais experiências de de entender e interpretar a realidade e de
positivas existentes em suas propriedades definir ações a partir das informações extraí-
e comunidades e a crença de que eles estão das do contexto em estudo) e as comunidades
disponíveis para a realização da transição de estudadas (seres incapazes de compreender, de
um modelo de produção colonial para um fato, sua realidade e de agir para melhorar seu
modelo emancipatório (sentido de manejo); contexto de vida a partir de seus próprios re-
e a motivação em querer utilizar e comparti- cursos, definições e vontades). Assim, o rompi-
lhar seus próprios conhecimentos e práticas mento dessa relação vertical viabiliza o ‘saber
e em se organizar para a mudança e melhoria situar-se para aceder à palavra do outro’ do
do contexto de vida, economia, produção Método Analético29. Essa viabilização prática
e saúde de sua família e sua comunidade se dá porque a Pesquisa-Ação-Participativa
(sentido de significação)32. apenas poderá ser desenvolvida e chamada

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 345-362, Jun 2022


Bases teóricas para promoção da saúde e resistência camponesa: um novo horizonte metodológico 355

como tal caso a metodologia e os métodos de Com relação a esse papel do pesquisador
atuação propostos permitam ao pesquisador (como elemento externo, porém em atuação
se posicionar e agir horizontalmente (sem horizontal com a comunidade) de captar
dominações ou geração de dependências) em (escutar, observar e perceber) e sistemati-
relação à população com quem trabalha. zar as informações disponibilizadas durante
Já o elemento de reconhecimento e valo- processos como os citados anteriormente, a
rização da ciência popular como válida e rica Pesquisa-Ação-Participativa lança mão do
em conhecimentos, técnicas e definições, sem princípio da redundância39. Segundo esse
estar em desigualdade de importância no pro- princípio, o pesquisador deve desempenhar
cesso social estabelecido, quando da associação continuamente sua responsabilidade de devo-
desta com a ciência acadêmica descolonizada lução e debate dos conhecimentos (resultados
(e sem desconsiderar os momentos em que e conclusões) que pôde gerar por meio de aná-
cada uma realiza seu ‘papel de destaque’ neste lises das informações captadas, até se tornar,
processo)39, permite ao pesquisador exercer no tempo mais curto possível, redundante ao
a sua função na medida da necessidade que processo coletivo. Ou seja,
esse processo coletivo e horizontal exige, sem
sobreposições epistemológicas. Além disso, no debe ser ni necesario ni indispensable en el
e mais importante para a efetividade de pro- proceso, por la sencilla razón de que lo ha reto-
cessos de libertação-autonomia em relação a mado la propia gente, con sus propios cuadros
dominações externas, esse elemento permite à o intelectuales orgánicos39(26).
sabedoria popular ocupar o seu devido espaço
como racionalidade científica. Indicando, por- Nesse sentido, um desenho de estudo baseado
tanto, que esse nivelamento de racionalidades na Pesquisa-Ação-Participativa permite, de
favorece a ação conjunta de ambos os sujeitos certo modo, corrigir a verticalidade do pesqui-
nesses processos, Fals-Borda39 afirma que “no sador que se utiliza do paradigma salutogênico
podemos aceptar, desde el punto de vista de la de promoção da saúde como este é, maiormente,
ciencia misma, que la ciencia popular no tenga concebido e aplicado. Ao invés da aplicação
su propia racionalidad, porque lo demuestra de questionários22,41,42 para a identificação
todos los días en la experiencia”. das capacidades de compreensão, manejo e
É nesse sentido, então, que o pesquisador significação, com a posterior apresentação de
exerce seu papel acadêmico horizontal ao um score sobre a autopercepção da saúde indi-
acessar e apreender uma metodologia social vidual e de suas possíveis implicações pessoais
genuinamente camponesa (como a CaC), e em uma comunidade32, essas capacidades
adaptá-la inicialmente para as condições de (na presente experiência, captadas por meio
um contexto específico de dominação pelo de instrumentos da CaC) podem ser utiliza-
agronegócio e colocá-la à disposição da práxis das, a partir das relações e posicionamentos
camponesa. O autorreconhecimento de suas horizontais sujeito-sujeito e ciência técnica-
sabedorias e práticas e de sua capacidade de -ciência popular, como categorias para analisar
organização para utilização e compartilhamen- as falas geradas em um processo de mudança
to dos seus recursos permite aos camponeses, social. As análises (a serem apresentadas em
por meio da apropriação e valorização de sua publicação futura) por meio dessas categorias
própria ciência, tanto criar as condições para a e suas subcategorias emergentes, indicadoras
superação de seu contexto de injustiça quanto de autonomia em processos que promovem a
construir coletivamente sua ampla autonomia saúde, permitem, assim, a devolução de infor-
(inclusive em relação ao próprio pesquisador, mações e conhecimentos sistematizados que
ao desenrolar da Metodologia CaC e a seu podem gerar uma crescente autopercepção
processo organizativo). de características pessoais e coletivas positivas

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 345-362, Jun 2022


356 Abreu PHB, Alonzo HGA

(recursos) – visibilizadas e disponibilizadas por agroecológicas; opiniões; críticas; decisões; mo-


meio de processos sociais participativos – e, tivações etc.) de camponeses e camponesas de
consequentemente, o controle sobre os deter- comunidade rurais do município de Lavras-MG.
minantes (e suas determinações) de saúde e o O pesquisador, de modo horizontal e partici-
protagonismo no gerenciamento das melhorias pativo, pôde, por meio das mesmas atividades,
das condições de vida nessas comunidades. realizar a captação, a escuta e a interpretação
Ao mesmo tempo, a visão salutogênica desses de recursos e aspectos salutogênicos presentes
processos pode evitar que a pesquisa-ação es- nessas falas. Esses recursos e aspectos positivos
tabeleça sua centralidade, como alguns autores do sujeito camponês e suas comunidades, uma
têm enfatizado43-45, na identificação e solução vez analisados (sob as categorias salutogênicas
dos ‘problemas’ que afetam uma localidade. dos sentidos de compreensão, manejo e signi-
Assim, contando com a teoria da Salutogênese, a ficação), possibilitaram a indicação do desen-
estrutura da pesquisa-ação prioriza estratégias volvimento, ao longo desse processo social, da
metodológicas que caracterizam e permitem a construção coletiva e da apropriação, por esses
autoconstrução comunitária das possibilidades, atores, de possibilidades, modos e estruturas de
modos e estruturas de tomada autônoma de tomada autônoma de decisão em relação aos
decisão a partir de seus recursos positivos. seus determinantes de saúde (em especial, os
relacionados com o modo de vida, produção,
economia e organização camponesa).
A experiência metodológica Assim, todo o trabalho de campo foi con-
camponesa em Lavras-MG: cebido como o momento analético (dividido
em duas fases: momento analético inicial e
um novo horizonte intermediário de transição para o momento
dialético) de um processo contínuo de des-
Identificados os referenciais teórico-prático- colonialidade em relação ao modo capitalista
-epistemológicos que se propõem radicais em de exploração dos camponeses e camponesas
termos de transformação social, de protago- lavrenses, buscando criar as condições subje-
nismo da classe trabalhadora (camponesa) tivas e as práticas para a construção coletiva
e de resolutividade e utilidade popular da da organização camponesa no município e,
ciência-técnica, apresentamos a estrutura- consequentemente, o meio social para o desen-
ção metodológica que identificamos como volvimento continuado, progressivo e autôno-
Pesquisa-Ação-Participativa Analética de pro- mo da transição agroecológica. Dessa forma,
moção da saúde de populações camponesas, a organização e a CaC se tornaram o tecido
desenvolvida por meio da Metodologia CaC e o instrumento social que têm permitido o
e analisada sob a perspectiva e categorias da desenrolar camponês-de-fato (protagonismo e
Salutogênese. Essa experiência metodológica interesses) do momento dialético de superação
foi construída e documentada na pesquisa de da dominação do agronegócio capitalista pela
doutorado11, sendo os resultados obtidos, ana- agroecologia camponesa (momento poste-
lisados e discutidos a partir dessa metodologia, rior ao recorte apresentado neste ensaio e na
e disponibilizados em publicação futura. própria tese11).
Essa experiência de Pesquisa-Ação- Para dar sustentação e operacionalização
Participativa foi executada por meio de ativida- a tais proposições, intenções e desenvolvi-
des práticas baseadas em instrumentos da CaC, mento prático, a metodologia desenvolvida
tendo estas atividades criado as condições de foi composta por fases e atividades (subdivi-
possibilidade para a revelação da palavra (falas didas em modos operacionais) com objetivos
com conteúdo referente aos entendimentos e conformações definidos, como apresentado
de contexto; conhecimentos gerais; técnicas no quadro 2.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 345-362, Jun 2022


Bases teóricas para promoção da saúde e resistência camponesa: um novo horizonte metodológico 357

Quadro 2. Fases de trabalho, atividades de campo e modos operacionais que compuseram a estrutura metodológica do
estudo. Lavras, 2017

Fases de trabalho Onde se buscou o desenvolvimento progressivo das Capacidades de Compreensão, Manejo
e Significação (SOC) do sujeito camponês:
Fase I: desenvolvimento da Analética em seu momento inicial de autorreconhecimento de
seu contexto, da agroecologia que já conhecem e praticam e das possibilidades (benefícios,
viabilidades e dificuldades) da transição agroecológica. As atividades realizadas nesta fase
foram orientadas para o despertar e o fortalecimento do SOC;
Fase II: desenvolvimento da Analética em seu momento intermediário de transição para
a dialética, por meio da práxis fundacional das condições/motivações para a organização
camponesa local e dos primeiros passos da CaC protagonizados pelos camponeses. As
atividades realizadas nesta fase foram orientadas para a aplicação do SOC.
Atividade de campo Onde nove instrumentos e atividades da CaC, adaptados ao contexto e às características
dos camponeses e comunidades rurais de Lavras e às condições da pesquisa, foram coloca-
dos em prática ao longo das duas fases de trabalho. As atividades foram planejadas, orga-
nizadas e realizadas – conforme o objetivo de desenvolvimento progressivo dos três com-
ponentes que compõe o SOC dos camponeses – em dois modos operacionais com funções
distintas (para a Pesquisa-Ação-Participativa), porém, com finalidades complementares e
interdependentes.
Modos operacionais Encontros de Promoção da Saúde (EPS): apresentaram funções práticas de estabelecer o
diálogo entre o sujeito camponês e o sujeito acadêmico (utilizando-se dos diferentes ins-
trumentos da CaC que compõem cada atividade) e de captar as falas (dados de análise)
que indicaram o despertar, o fortalecimento e a aplicação do SOC do sujeito camponês no
processo.
Momentos de Potencialização do SOC (MPSOC): conformaram os momentos de ensino-
-aprendizagem e de troca de conhecimentos do sujeito camponês com ‘parceiros externos’
(camponeses e acadêmicos) à Pesquisa-Ação-Participativa. As funções práticas destas
atividades, que não envolveram a captação de falas, foram promover e desenvolver as capa-
cidades de compreensão, significação e manejo das camponesas e camponeses, estimulan-
do-os para os diálogos, reflexões e ações dos EPS seguintes.
Fonte: Elaboração prória.

A partir dessa composição, segue, no quadro dos dois modos operacionais (planejamento,
3, a esquematização da estrutura metodológica organização e realização) das atividades de
desenvolvida em Lavras-MG, apresentando campo: os Encontros de Promoção da Saúde
as duas fases que conformaram os trabalhos; (EPS) e os Momentos de Potencialização
as atividades de campo (desenvolvidas por das Capacidades de Compreensão, Manejo e
meio de instrumentos e métodos da CaC); além Significação (MPSOC).

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 345-362, Jun 2022


358 Abreu PHB, Alonzo HGA

Quadro 3. Estruturação metodológica da Pesquisa-Ação-Participativa Analética de promoção da saúde de população


camponesa, desenvolvida por meio de métodos da Metodologia Camponês a Camponês e analisada sob a perspectiva e
categorias da Salutogênese. Lavras, 2017

Fase Atividade Modo operacional


I – Momento Analético Inicial: 1 – Demonstração didática audiovisual: entendi- Primeiro encontro de promoção
despertar e fortalecimento mento do contexto e motivação para mudá-lo da saúde
das capacidades de compre- 2 – Primeiro passo da experiência de banes:
ensão, manejo e significação mapeamento dos recursos de saúde
3 – Intercâmbio camponês: visita para troca de Primeiro momento de potenciali-
entendimentos, motivações e técnicas zação do senso de coerência
4 – Testemunhos do intercâmbio camponês: Segundo encontro de promoção
multiplicação das compreensões, crenças e da saúde
motivações
5 – Concretização da experiência de banes:
construção coletiva do repertório de recursos de
saúde
II – Momento Analético Inter- 6 – Oficina sobre Organização Camponesa: Segundo momento de potenciali-
mediário: palestras com parceiros institucionais externos zação do senso de coerência
aplicação das capacidades 7 – Diagnóstico Rural Participativo Terceiro momento de potenciali-
de compreensão, manejo e zação do senso de coerência
significação
8 – Encontros para reforço geral: as reuniões Terceiro encontro de promoção
regionais organizativas da saúde
9 – Encontro de intercâmbio de experiências e de Quarto encontro de promoção
organização camponesa da saúde
Fonte: Elaboração prória.

A estrutura metodológica apresentada, que autônoma de decisões; e os passos iniciais da


aprofundou, ampliou e atualizou a metodo- organização camponesa em Lavras-MG.
logia ‘Salutogênese-Camponês a Camponês’,
anteriormente publicada10, permitiu desenvol-
ver os passos iniciais e fundamentais de um Considerações finais
processo social de emancipação camponesa
ante o modelo capitalista de agricultura em Na lógica da colonialidade do poder capita-
Lavras-MG. Tal abordagem, fundamentada lista31, a atuação histórica e permanente de
teórica, prática e epistemologicamente nos controle e submissão do modo de vida e eco-
conceitos da agroecologia, da Salutogênese, nomia familiar camponesa se justifica devido
da filosofia da libertação, da Metodologia à resistência desse ator social que, ao mesmo
social CaC e da Pesquisa-Ação-Participativa, tempo, é proprietário e trabalhador da terra20.
permitiu a operacionalização de um processo No entanto, mesmo com grande potência e
social (gradual e contínuo) que apresentou (e violência econômica, ideológica e política
segue apresentando) resultados que envol- corporativas/estatais, a Revolução Verde e
vem: a compreensão dos camponeses sobre seus processos antecedentes-estruturais não
seu contexto de dominação e exploração pela chegaram, apesar dos profundos e gerais im-
racionalidade e atuação do agronegócio capi- pactos causados, a apagar e desarticular por
talista; a autoconstrução e a (re)apropriação, completo os modos de produção de alimentos,
por esses sujeitos, de possibilidades, modos e conhecimentos, sociabilidade e cultura dos
estruturas familiares/comunitárias de tomada camponeses do Brasil. Essa afirmação pode

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Bases teóricas para promoção da saúde e resistência camponesa: um novo horizonte metodológico 359

ser evidenciada pelos 24% de terras ainda sob cultura e prática agroecológica camponesa.
propriedade e uso pela agricultura camponesa Assim, criando-se as possibilidades para que
(o que corresponde a 84,4% das proprieda- os camponeses visualizem, identifiquem e
des rurais); pelos 40% da produção geral de se apropriem processualmente dos recursos
alimentos do País que vêm do trabalho e das agroecológicos existentes em suas proprieda-
terras familiares (totalizando 70% dos alimen- des e comunidades, a agroecologia – mesmo
tos consumidos pela população brasileira); e em momentos iniciais e intermediários ainda
pelos 74% da mão de obra do campo emprega- pré-transição entre um modelo de produção
dos nas propriedades camponesas, composta tóxico (biológica, cultural, econômica e so-
em sua maior parte pela própria família46. cialmente) e um modelo de produção saudável
Essa resistência camponesa apontou o – passa a ser a base, o meio e o constructo
caminho para a elaboração de uma estrutura prático e motivacional para a promoção da
metodológica participativa de promoção da saúde camponesa.
saúde em Lavras-MG, que permitiu desenvol- Em conclusão, afirmamos que a agroecologia
ver os passos iniciais e fundamentais de um é o modelo de produção que permite a (re)cons-
processo social de emancipação camponesa trução efetiva da autonomia do modo de vida e
diante do modelo capitalista de agricultura. economia camponesa e o (re)posicionamento
Esta experiência, juntamente ao marco refe- do sujeito camponês nas relações e disputas
rencial deste trabalho, permite-nos afirmar de poder, que influenciam tanto os fatores de-
que os conceitos e modos de operação da terminantes de sua saúde quanto as possibli-
Revolução Verde e do agronegócio (vertica- dades de autoconstrução de um contexto mais
lizantes, totalizantes, invasivos, subalterni- justo, favorável e promissor. Ademais, para seu
zantes, descredibilizadores, externamente desenvolvimento desde a perspectiva e ação
dominantes etc.) são diametralmente opostos da área da promoção da saúde e do campo da
aos conceitos da promoção da saúde, que está saúde coletiva, bases teóricas, metodológicas e
fundamentada na construção participativa da epistemológicas radicalmente horizontais, par-
autonomia, do entendimento, da apropriação ticipativas e emancipatórias (como o Método
e do controle sobre o contexto e os determi- Analético, a Salutogênese, a Metodologia CaC
nantes/determinações de saúde individuais e a Pesquisa-Ação-Participativa) devem ser
e comunitários22,23,47. Nesse mesmo sentido, priorizadas e entrelaçadas.
desde a perspectiva da saúde coletiva/saúde
ambiental e em coerência com autores como
Porto48, podemos apontar que, por estruturar Colaboradores
tal processo de emancipação e por ter como
centralidade teórico-prática a busca metódica Abreu PHB (0000-0002-2262-4100)* foi res-
pelo protagonismo, pelo saber, pela cultura e ponsável substancialmente pela concepção e
pela autonomia camponesa, a metodologia o planejamento, pela análise e a interpretação
aqui apresentada pode, também, ser con- dos dados; contribuiu significativamente para
siderada como uma proposta de promoção a elaboração do rascunho e revisão crítica do
emancipatória da saúde48. conteúdo; participou da aprovação da versão
Dessa forma, toda e qualquer pesquisa e final do manuscrito. Alonzo HGA (0000-0002-
ação pública que vise a uma promoção, de 3366-0983)* orientador desta pesquisa, atuou
fato, emancipatória da saúde de camponeses na concepção e no planejamento, análise e a
e/ou territórios camponeses impactados pelo interpretação dos dados; contribuiu signifi-
modelo do agronegócio deve estruturar-se cativamente para a elaboração do rascunho
em metodologias que permitam o desen- e revisão crítica do conteúdo e participou da *Orcid (Open Researcher
volvimento e/ou o resgate participativo da aprovação da versão final do manuscrito. s and Contributor ID).

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Conflito de interesses: inexistente
66.
Suporte financeiro: não houve

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ENSAIO | ESSAY 363

Agroecologia e saúde coletiva na construção


dos agrotóxicos como problema de saúde
pública no Brasil
Agroecology and Collective Health in the construction of pesticides as
a public health problem in Brazil

Bráulio Silva Chaves1,2, Lucas Araújo Dutra Rodrigues2, Denise Nacif Pimenta2

DOI: 10.1590/0103-11042022E224

RESUMO A publicação do ‘Dossiê Abrasco: um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde’, a partir
de 2012, movimentou um amplo debate público sobre o enquadramento dos agrotóxicos como problema de
saúde pública. Este artigo teve por objetivo analisar o papel dessa publicação como um ponto de inflexão
ao promover uma arena de debate que reposiciona diversos atuantes que pactuam um consenso, ainda que
instável e profundamente combatido por setores dominantes, sobre os efeitos dos agrotóxicos na saúde.
Argumenta-se que o documento hibridizou seus sentidos ao visibilizar pesquisas e dados sobre o assunto
e, também, ao se constituir como um documento-manifesto. Tal efeito é problematizado a partir do papel
que a agroecologia assumiu no texto, apropriada como um lugar de reunião de forças diante da disputa
travada com os arranjos vitais da formação econômica, agroexportadora e dependente do Brasil. Assim,
por meio da abordagem dos estudos de Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS), discute-se o tortuoso e
complexo processo de construção histórica e sociológica de um problema de saúde pública e como o
‘Dossiê’ contribuiu para reconfigurar um campo de batalha que tem na agroecologia um espaço próprio
que congrega cientistas e movimentos sociais para transformarem a realidade juntos.

PALAVRAS-CHAVE Agroquímicos. Agroecologia. Saúde pública.

ABSTRACT The publication of the ‘Dossiê Abrasco: an alert on the impacts of pesticides on health’, since
2012, sparked a wide public debate on the classification of pesticides as a public health problem. This article
aims to analyze the role of that publication as an inflection point, by promoting an arena of debate that reposi-
tions different actors who agree on a consensus, albeit unstable and deeply fought by dominant sectors, on
the effects of pesticides on health. It is argued that the document hybridized its senses, making research and
data on the subject visible and also constituting itself as a document-manifest. This effect is problematized
based on the role that Agroecology assumed in the text, appropriate as a place of gathering forces in the
face of the dispute with the vital arrangements of Brazil’s agro-export and dependent economic formation.
Thus, through the STS (Science, Technology, and Society) studies approach, we discuss the tortuous and
complex process of historical and sociological construction of a public health problem and how the ‘Dossier’
1 Centro Federal de contributed to reconfigure a battlefield that has in Agroecology a space that brings together scientists and
Educação Tecnológica de social movements to transform reality together.
Minas Gerais (Cefet-MG)
– Belo Horizonte (MG),
Brasil. KEYWORDS Agrochemicals. Agroecology. Public health.
brauliosc1@gmail.com

2 Fundação Oswaldo

Cruz (Fiocruz), Instituto


René Rachou (IRR) – Belo
Horizonte (MG), Brasil.

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 363-376, Jun 2022
364 Chaves BS, Rodrigues LAD, Pimenta DN

Introdução forma, tal movimento fornece materialida-


de a grupamentos, interações e trocas em
A proposta deste artigo é abordar questões que a relação entre cientistas e movimen-
que se consideram fundamentais na relação tos sociais produz espaços de contato que
entre saúde, agrotóxicos e agroecologia. A ganham força com a agroecologia. Desse
partir dos estudos de Ciência, Tecnologia e argumento principal, decorrem-se outros:
Sociedade (CTS)1, busca-se contribuir para
compor a tessitura de questões históricas e 1. O agrotóxico é um artefato tecnocien-
sociológicas para a compreensão da força tífico. Como tal, sua produção e seus
material e simbólica dos agrotóxicos. Hoje, usos sociais estão em compasso com um
eles são usados de forma exponencial, em projeto de sociedade capitalista. Vê-lo nos
que pese um conjunto de pesquisas e traba- emaranhados da tecnociência implica sua
lhos dos mais diversos campos que apontam compreensão dentro das formas de produ-
o seu impacto trágico na saúde humana, ção da ciência, tecnologia e inovação, na
como um problema de saúde pública. emergência da modernidade, notadamente
Na contramão dessa percepção, cabe a partir do século XVI. Essa demarcação é
refletir como se sedimenta um arcabouço necessária para a percepção de um proces-
robusto de trabalhos que também emanam so descontínuo, mas que é marcado pelo
de campos variados que buscam a maior ascenso de uma visão pragmática, utili-
‘eficiência’ e ‘eficácia’ do seu uso e impacto tária, pautada pelo inovacionismo como
‘positivo’ na produção. Assim, é importante razão de ser do conhecimento3. Em parte,
questionar: quais são os registros sociais um projeto que ganha forma com Francis
de uma onda suicidógena que dá força aos Bacon ao ‘fundamentar a ciência como
agrotóxicos e que vem acompanhada de tecnologia’4 e que se estende a outras de-
uma agenda pautada no colapso ambiental mandas sociais posteriores. A tecnociência
e no desmonte da saúde como bem público? encontra no neoliberalismo pós-década de
As operações discursivas em torno deles 1970 seu momento privilegiado 5. Sendo
– nomeados como ‘defensivos’, ‘fitossani- assim, é possível enquadrar o agrotóxico
tários’ – indicam uma ‘batalha’ hegemô- nas metamorfoses que caracterizam um
nica que remonta aos arranjos mais vitais novo metabolismo social do capital6.
da elite brasileira, que ora se empenha na
naturalização de seu uso por meio de um 2. Os agrotóxicos estão vinculados às es-
forte aparato econômico, legal, legislativo, truturas básicas da dominação hegemônica
jurídico, midiático e científico. no contexto brasileiro, fundadas na terra e
O argumento central do artigo é o de que potencializadas no paroxismo neoliberal.
o ‘Dossiê Abrasco: um alerta sobre os impac- Logo, suas dinâmicas de circulação social
tos dos agrotóxicos na saúde’2 (doravante estão envolvidas em processos históricos
‘Dossiê’), com seu lançamento em 2012, de produção e reprodução do capital no
constitui-se como um ponto de inflexão no Brasil, de elo com as estruturas agrárias
enquadramento dos agrotóxicos no Brasil. engendradas no período colonial e, mais
Desse processo, decorre sua repercussão recentemente, com o agronegócio dentro
e capacidade de reconfigurar um campo dos novos padrões cumulativos. Os agro-
de forças em torno da crítica ao uso dos tóxicos ganham sua materialidade na re-
agrotóxicos, estabelecendo um lugar de alidade brasileira com a ideia basilar das
fronteiras entre os campos da saúde coletiva forças produtivas de ‘impulso ilimitado e
e de outros que se aglutinam, sobretudo, desmedido’7, sintetizada no modelo agro-
em torno da agroecologia. Dito de outra exportador por uma necessidade inflexível

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 363-376, Jun 2022


Agroecologia e saúde coletiva na construção dos agrotóxicos como problema de saúde pública no Brasil 365

de mais produção. Tal visão encontra esteio Agrotóxico: artefato


em referenciais ideológicos como o de que tecnocientífico
não seria possível alimentar as pessoas sem
o uso dos agrotóxicos, sua inevitabilidade Os agrotóxicos são substâncias que têm por
ganharia assim ares de um fictício altru- finalidade o controle de organismos considera-
ísmo das elites. dos nocivos para os produtos agropecuários e
para a saúde pública, quando utilizados em am-
3. Os agrotóxicos exigem em torno de si, bientes rurais, urbanos, hídricos e industriais.
para o seu enfrentamento como problema Sua produção e seu uso foram aumentados em
de saúde pública, um campo de forças cons- larga escala a partir da década de 1940 com o
tantemente reconfigurado e que encontra na processo de implantação da revolução verde
agroecologia lugar de aglutinação. A partir em várias partes do mundo.
da revolução verde e da década de 1940, os A chamada revolução verde foi um processo
agrotóxicos emergem como força motriz de transformação da atividade agrícola e impo-
de uma superprodução que estaria calcada sição tecnológica, que assumiu a narrativa de
nas transformações técnicas e tecnológicas. enfrentar a questão da fome no mundo. Ela se
As décadas subsequentes significaram o constituía por mecanização da produção, uso
dispêndio de energia material e intelectual de sementes híbridas, fertilizantes e agrotóxi-
em emoldurar os agrotóxicos como solução cos, sendo financiada pelo Estado por meio de
para escassez e manutenção da produção de pesquisa, assistência técnica e crédito. No dis-
excedente. O que se tem nas últimas quatro curso, pretendia-se aumentar a produtividade
décadas é o incremento dessa lógica, an- com insumos modernos e adaptação genética
corada em pesquisas, centros de estudos e das plantas; e, a partir disso, a ‘modernização’
cientistas forjados em um ethos tecnocientí- do meio rural ganhava tom de urgência, pois
fico8 capaz de dar substância e legitimidade a produção de até então seria ineficaz para
ao uso dos agrotóxicos, aceitando de forma atender à demanda mundial de alimentos11,12.
tácita ou deliberada a sua inexorabilidade No Brasil, a utilização massiva de agrotóxi-
na produção. A agroecologia torna-se esse cos na agricultura ocorreu com o processo da
espaço de reunião de forças, não sem dis- revolução verde, ocorrida, em grande medida,
sensos e contradições, mas que, ao operar nas décadas de 1950 a 1970. Política agrícola
outras relações sociais fundamentadas no oficial dos governos da ditadura civil-militar,
resgate do trabalho como atividade humana pode-se compreender a projeção da revolu-
fundadora, viva e concreta, funciona como ção verde a partir da criação da Associação
‘zona de fronteira’, de troca9, entre vários Brasileira de Crédito e Assistência Rural, do
campos. Sistema Abcar, em 1956, e do Plano Nacional
de Desenvolvimento Agrícola que, em 1976,
Dessa forma, o presente texto busca promoveu o Plano Nacional de Defensivos
identificar e analisar o itinerário instado Agrícolas. Essas políticas promoveram crédito
a partir do ‘Dossiê’. No entanto, ele não é rural e assistência técnica para agricultores
considerado como pedra angular, pelo con- de todo o País, consistindo na implantação do
trário, é visto na sua capacidade de propiciar pacote tecnológico nas lavouras e criações. O
resgates importantes que remontam, inclu- crédito condicionava o agricultor que fizesse
sive, à Reforma Sanitária e aos princípios parte do programa a utilizar somente as téc-
da participação popular e controle social no nicas e tecnologias agrícolas do pacote tecno-
Sistema Único de Saúde (SUS), encontrando lógico, entre elas, os agrotóxicos12,13. Então,
na agroecologia um campo para a realização com isso, foi-se formatando um modelo de
de uma ‘agência material recíproca’10. produção agrícola dependente desses insumos.

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Esses são alguns vestígios da gênese do Cunha e Porto20, que a classificam como ‘in-
agronegócio no Brasil, pois é o momento de justificável’ e ‘insustentável’. A desoneração
aumento da integração entre o capital indus- fiscal dos agrotóxicos apresenta contradições,
trial e o agrícola, que operaram na transfor- pois, apesar das isenções, o custo privado dos
mação das mediações estruturais de controle agricultores com agrotóxicos aumentou ao
do capital sobre o meio rural11,13. A partir da longo dos anos. Essa política de subsídios aos
década de 1980, ocorreu a diminuição dos agrotóxicos, ao incentivar sua utilização, po-
créditos públicos, e a agricultura capitalista tencializa os danos e prejuízos causados por
viveu um momento de abertura ao processo essas substâncias à saúde e ao meio ambiente.
de concorrência em que as grandes empresas O Estado deixa de arrecadar com os impostos
passaram a ‘engolir’ as pequenas, adquirin- e é obrigado a despender recursos para prote-
do os seus capitais, que circularam por meio ção à saúde e ao meio ambiente. Segundo os
de investimentos em ações reais ou virtuais, autores, 85% dos agrotóxicos consumidos no
em um ritmo crescente. Tal transformação Brasil se destinaram a seis commodities, ou
levou a um processo de alta financeirização seja, a isenção não se relaciona com política
da economia que envolvia os setores agrário, de subsídio à segurança alimentar, como seus
industrial e bancário11. defensores alegam. Por fim, as isenções fiscais
Nesse contexto, de estabelecimento da ainda contribuem para a distorção dos custos
hegemonia neoliberal no mundo, iniciado na dos diferentes métodos de produção agrícola,
década de 1970, a posição do Brasil na divisão o que, da perspectiva econômica, favorece o
internacional do trabalho permaneceu, desde uso dos agrotóxicos.
os tempos coloniais, como a de exportador de O modelo químico-dependente que perdura
commodities agrícolas e minerais14,15. Dessa no Brasil correspondeu ao incentivo cons-
forma, esse espaço da elite agrária, como fração tante e incisivo para o uso dos agrotóxicos.
de classe da burguesia brasileira, continuou a Na década de 2000, houve um aumento sig-
exercer sua hegemonia11,16. Pode-se entender nificativo do seu consumo. Nesse momento,
o agronegócio como o País se tornou o maior consumidor dessas
substâncias no ano de 2008 e, no ano de 2009,
Uma nova forma de territorialização do capital ultrapassou a marca de 1 milhão de tonela-
no campo, forjada num contexto de políticas das consumidas2. Na década de 2010, o Brasil
neoliberais e de intensificação dos processos também ganhou destaque como destino de
de concentração e centralização do capital em agrotóxicos banidos no exterior, mas que são
múltiplas escalas, especialmente mundial17(68). utilizados no seu modelo agrícola14,19, denúncia
feita por movimentos sociais em torno do tema.
Em relação aos agrotóxicos, estes são es- Para Gurgel et al.21, nesse contexto de des-
senciais à produção do agronegócio e estão regulamentação econômica e de ataque aos
presentes em todas as etapas: desmatamen- direitos sociais, há um avanço dos interesses
to, agricultura, pecuária, armazenamento e ligados aos agrotóxicos com intuito de regis-
agroindústria, o que o coloca como um modelo tro de utilização dessas substâncias no Brasil.
de produção agrícola ‘químico-dependente’2,18. Ainda, para as autoras, esse avanço ocorre por
Londres19 destaca que as isenções fiscais e meio de: questionamento da ciência crítica ao
tributárias sobre os agrotóxicos que passa- uso dos agrotóxicos para que se escape das
ram a ocorrer a partir da década de 1990, no regulações das leis sanitárias; proposições de
contexto de implementação de políticas ne- mudança na autorização de agrotóxicos, em
oliberais no Brasil, foram fundamentais na que se desconsideram as áreas da saúde e do
escalada da utilização dessas substâncias. Essa meio ambiente, sendo papel único e exclusivo
política de isenções foi avaliada por Soares, da área da agricultura20. Rigotto22 também

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Agroecologia e saúde coletiva na construção dos agrotóxicos como problema de saúde pública no Brasil 367

aponta as contradições do Estado neoliberal trabalhadora, especialmente a parte organi-


que, por um lado, é ‘eficiente’, ‘moderno’ e ‘ágil’ zada em movimentos sociais do campo e da
para financiar, perdoar as dívidas, oferecer cidade, e a parcela institucionalizada no campo
infraestrutura e isentar ou diminuir impostos científico aliam-se na proposição de alterna-
para o agronegócio e, por outro, é ‘moroso’ e tivas à utilização dos agrotóxicos.
‘incompetente’ para fazer a reforma agrária,
para controlar, registar e monitorar a utilização
de agrotóxicos no Brasil e seus impactos para Agrotóxico: um problema
a saúde e o meio ambiente. de saúde pública
Por isso, no entendimento dos agrotóxi-
cos como artefato tecnocientífico, tem-se em Costa26, ao refletir sobre a expressão ‘problema
conta que as tecnologias são determinadas de saúde pública’, aborda alguns referenciais
socialmente, o que, na sociedade capitalista, que explicariam por que uma ‘condição’ in-
implica que são permeadas pela luta de classes. vestigada deve ser considerada como tal. São
Ainda, sobre esse entendimento, considera-se fatores importantes a carga de mortalidade,
que o fetiche da tecnologia23 está relacionado morbidade e o sofrimento gerado por essa con-
com o afastamento que há da percepção da dição, que devem ser percebidos do ponto de
necessidade de trabalho para a produção de vista individual e do seu impacto na sociedade.
artefatos tecnológicos; e, como isso, limita a Para o caso das doenças, é fator primordial o
compreensão de como a produção científica seu potencial epidêmico. A movimentação
e tecnológica participa da construção da so- de recursos públicos e privados também é
ciedade. Ignora-se, muitas vezes, os circuitos representativa.
globais complexos pelos quais transitam os A coletânea de textos dirigida por Gilbert e
artefatos e os saberes produzidos em labora- Henry, intitulada ‘Comment se construisent les
tórios24. Os agrotóxicos, por serem uma tec- problèmes de santé publique’27, traz elementos
nologia que não é destinada à utilização direta importantes. Por meio dela, percebe-se que a
da população, somente uma parte dela – os transformação de uma questão de saúde em
empresários e trabalhadores rurais – passa problema requer relações que concernem às
por dois processos de deslocamento do seu vítimas, às críticas à capacidade de intervenção
entendimento como construção humana: o das autoridades públicas, as reivindicações de
afastamento da percepção de que há trabalho proteção à saúde das populações, questiona-
para produção de tecnologias, e o afastamento mentos e demandas à gestão e aos especia-
dado pela suposta dicotomia entre o rural e o listas em saúde pública. As ciências sociais
urbano. Dessa forma, a realidade é mistificada, e humanas contribuem para um percurso de
o que dificulta a tomada de consciência de que decodificação dessas mobilizações em várias
são as tecnologias promovidas e engendradas instâncias, inclusive o impacto midiático que
pela dinâmica de produção capitalista que elas possuem, em uma forma indissociada
causam as crises ambientais e sanitárias que entre elementos de ordem discursiva, cogni-
se manifestam25. tiva, social e política. As configurações que os
Os interessados na manutenção da utiliza- atores estabelecem entre si tornam possível
ção dos agrotóxicos também buscam manter um problema emergir na cena pública, ser
a posição de dependência do Brasil na ordem colocado nas agendas, impor-se.
mundial e influenciam significativamente as Agregando-se às definições técnicas no
instituições internacionais e nacionais que campo da biomedicina, as ciências sociais
definem as normas e regulamentos a respei- e humanas em saúde e o campo CTS nos
to da produção, comercialização e utiliza- ajudam a considerar as dimensões dessa cons-
ção dos agrotóxicos. Do outro lado, a classe trução. Nesse caso, entram em cena os jogos

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368 Chaves BS, Rodrigues LAD, Pimenta DN

societários e determinadas interações entre No caso do projeto de sociedade capitalista,


os seres sociais e a natureza. Os agrotóxicos o domínio das forças produtivas no Brasil é
são um caso emblemático da realização de preponderante em definir como os agrotó-
um ‘agenciamento material recíproco’ entre xicos são enquadrados: a força mobilizadora
sujeitos e objetos, quando diversos atores mo- colocada a serviço deles, os usos sociais da
bilizam e são mobilizados por esses produtos tecnologia para a produção agroalimentar;
químicos, em uma relação que é material, mas o vasto arsenal de pesquisas e de produção
também simbólica. A ideia de agenciamento substâncias sintetizadas em laboratórios em
busca superar dicotomias (internalismo x ex- cursos de agronomia, química e outros em
ternalismo; realismo x relativismo) e perceber compasso com certos anseios políticos e eco-
como a ciência se realiza na prática, com seu nômicos. Porém, outros caminhos e projetos
registro nas significações e sentidos por meio de sociedade são possíveis e necessários.
da linguagem. Esses agenciamentos ajudam a
perceber as posições diversas de cientistas em
torno de um mesmo objeto: os agrotóxicos. O Dossiê Abrasco: o ponto
O ‘Dossiê’ aponta que de inflexão de uma zona de
Considerando as evidências científicas sistema-
fronteira
tizadas neste dossiê, a Abrasco propõe ações
concretas, viáveis e urgentes voltadas para o O ‘Dossiê Abrasco: um alerta sobre os impactos
enfrentamento da questão do agrotóxico como dos agrotóxicos na saúde’2 é uma produção
um problema de saúde pública2(86). científica realizada pela Associação Brasileira
de Saúde Coletiva (Abrasco). Como denota o
Entre as várias medidas, a primeira delas próprio título da obra, o seu intuito é fazer
é “priorizar a implantação de uma Política um alerta sobre a questão dos agrotóxicos, ou,
Nacional de Agroecologia em detrimento do como dito em suas páginas, é um novo grito
financiamento público do agronegócio”2(86). contra o silêncio2. É um novo alerta, pois a
As discussões acima sobre a construção de publicação é reivindicada como a atualiza-
um problema de saúde pública nos ajudam ção do debate proposto na década de 1960 no
a perceber como ele não está dado, é, antes livro ‘Primavera Silenciosa’28. Se, nesse livro,
de tudo, um objeto de disputa que se dá na o silêncio referido é o da morte dos animais
contingência histórica. Mesmo com a legiti- impactados pela utilização de agrotóxicos, no
midade da publicação nos coletivos da ciência, ‘Dossiê’, o silêncio é aquele promovido pelos
a afirmação categórica não indica consenso, grupos sociais envolvidos com o agronegócio e
muito menos uma agenda pública contundente que ocorre a partir da ‘ocultação’, ‘justificação’
em torno do combate ao uso dos agrotóxicos. e ‘desqualificação’ a respeito do uso dessas
Como explicar o fato de os agrotóxicos ainda substâncias e seus impactos na saúde2.
não se constituírem em um problema de saúde Lançado em 2012, o ‘Dossiê’ alcançou de
pública? Tal processo é difuso e, como se ar- forma ampla vários âmbitos da sociedade
gumenta neste artigo, envolve estruturas pro- brasileira e internacional, pois ocorreu em
fundas, complexas, que exigem uma reunião três eventos importantes sobre a temática da
de forças robusta – mas que é possível – para saúde e meio ambiente: no Congresso Mundial
a sua contraposição. Considerando as batalhas de Nutrição, na Cúpula dos Povos Rio+20 por
perdidas do ponto de vista legal em relação aos Justiça Social e Ambiental e no X Congresso
agrotóxicos e sua flexibilização, significa dizer Brasileiro de Saúde Coletiva da Abrasco2. O
que esses agenciamentos são pendulares e que lançamento da obra em formato de livro, em
o movimento depende de inúmeros fatores. 2015, reuniu as quatro partes que o compõem

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Agroecologia e saúde coletiva na construção dos agrotóxicos como problema de saúde pública no Brasil 369

e aumentou ainda mais a sua divulgação, como inteligência popular e o protagonismo de su-
foi destacado no site da Abrasco29, em que foi jeitos individuais e coletivos, especialmente os
elaborada uma lista com vários veículos de im- vulnerabilizados na civilização do capital2(265).
prensa que noticiaram o lançamento por todo o
Brasil. A escolha de que a edição do ‘Dossiê’ em Para realização dessa proposta, os pesqui-
formato de livro fosse realizada pela editora da sadores envolvidos partem de dois elementos
Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio como pressupostos. O primeiro é o entendi-
(EPSJV) e pela editora Expressão Popular foi mento de que a ciência não é neutra, e, sim,
relevante, pois são importantes na divulgação determinada socialmente, estabelecida pelas
de ideias para transformação da sociedade. disputas que ocorrem na sociedade, inclusi-
Outra forma de ampliar o seu alcance é o fato ve sobre a definição da própria ciência e do
de estar disponível gratuitamente na internet. fazer científico. O segundo é de que a cons-
Ao realizar a publicação do ‘Dossiê’ dessa trução do conhecimento deve ter por base a
maneira, os seus autores e organizadores de- prática social, em outras palavras, a atividade
marcam sentido democrático e popular para o de conhecer deve propiciar que a teoria seja
ato de divulgação científica do produto de seus integrada à prática e a prática seja imbuída
trabalhos. Isso, de certa forma, reflete o caráter de teoria2.
do campo da saúde coletiva, que, desde sua for- Esses pressupostos se materializam
mação, é marcado pela atuação política de seus efetivamente na elaboração da obra desde
integrantes no contexto de redemocratização. os momentos iniciais. Como narram
Essas atuações políticas pela Reforma Sanitária Carneiro et al. 2, os grupos sociais que se
brasileira e a formação e a criação do campo mobilizaram em torno da produção per-
da saúde coletiva ocorrem, simultaneamente, tenciam a diversos espaços da sociedade e
sendo lideradas pela Abrasco e pelo Centro se envolveram da motivação às pesquisas
Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes)30. Tais e escritas. São esses grupos pertencentes
movimentos ocorrem em espaços de tensões aos espaços das instituições científicas,
importantes, como as que existem entre: ‘ins- entidades de associativismo acadêmico e
trumentalidade da ação’, o ‘saber acadêmico’ movimentos sociais que se reuniram, entre
e a ‘militância política’31. 2009 e 2011, na preparação do Encontro
Nesse sentido, reflete-se que, além do ato Nacional de Diálogos e Convergências em
de divulgação da ciência por meio do ‘Dossiê’, Agroecologia, Justiça e Saúde Ambiental,
sua produção se deu de forma militante e ‘en- Soberania Alimentar, Economia Solidária e
gajada’, na compreensão profunda das impli- Feminismo. Desse encontro, em que estava
cações de origem sistêmica dos impactos dos envolvida a Abrasco, estabeleceram-se rela-
agrotóxicos na saúde. Para isso, os autores ções que ensejaram a produção, de fato, do
utilizaram como referencial teórico o con- ‘Dossiê’ em 2011, motivada pela constatação
ceito de ‘ecologia de saberes’32, do sociólogo da magnitude da questão dos agrotóxicos
Boaventura de Sousa Santos. Nas palavras dos e pelo desejo de contribuir com a então,
autores, isso quer dizer que: recém-lançada, Campanha Permanente
Contra os Agrotóxicos e Pela Vida (dora-
Estamos nos propondo um exercício de aproxi- vante Campanha).
mação do que vem sendo chamado de ciência Lançada em 2011, a Campanha pode ser
cidadã, ciência militante, ou ainda ciência para entendida como um esforço da sociedade
a justiça ambiental. Queremos participar dos que envolve diversas entidades ligadas ao
fluxos de uma ‘contraepistemologia’, que acolha campo e movimentos sociais na luta contra
e valorize a diversidade de conhecimentos os agrotóxicos e o anúncio de modelos de
das diferentes culturas e povos, integrando a produção baseados na agroecologia como

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alternativa ao agronegócio33. Sua proposta é – ou tentativa – desse problema. Na quarta


de ser uma ferramenta de luta que aglutina parte, realizada com certa distância temporal
diversas iniciativas existentes que, de alguma das outras três, os autores retomam algumas
forma, relacionam-se criticamente com a análises feitas nas outras, atualizando os
questão dos agrotóxicos. Por envolver grupos dados e buscando analisar os impactos do
sociais organizados institucionalmente e em próprio ‘Dossiê’2. Também é uma seção em
movimentos sociais, a Campanha procura que se destaca o relato das lutas sociais
articular esses diferentes campos, estabe- contra os agrotóxicos e são demonstradas
lecendo com a academia uma relação que aproximações e articulações entre a agroe-
se dá a partir de intelectuais que produzem cologia e a saúde coletiva, como analisado
conhecimento para transformar a realidade e por Burigo e Porto34.
não somente para interpretá-la. Dessa forma, Na perspectiva de Motta35, ao analisar o
busca articular o conhecimento científico fenômeno de mobilização social em torno
que atesta os malefícios dos agrotóxicos aos dos transgênicos no Brasil, é possível corre-
saberes dos sujeitos que se inserem nos mo- lacioná-lo ao dos agrotóxicos, no fato de o
vimentos sociais2. poder material das empresas que controlam
Retomando o processo de produção do o mercado dos agrotóxicos não ter sido ainda
‘Dossiê’, na elaboração de sua primeira parte, contido pelas mobilizações contrárias. Após
que trata das questões de segurança alimen- a criação da Campanha e da publicação do
tar e nutricional e saúde, foi acionada uma ‘Dossiê’, o Brasil continua como um dos países
equipe multidisciplinar de pesquisadores que mais consomem agrotóxicos no mundo; e
da área da saúde coletiva, em que se evi- segue contaminando o meio ambiente e a vida.
denciou a dinâmica coletiva da realização Nesse sentido, seria possível citar uma série
desse trabalho, propiciada pela interação de exemplos que envolvem manobras legais
entre grupos de trabalho da Abrasco e destes ou ilegais das empresas do setor, alteração ou
com pesquisadores de diversas instituições. tentativa de alteração de legislações relaciona-
Na segunda parte, que trata das questões das com a temática dos agrotóxicos, redação
da saúde, ambiente e sustentabilidade, o de recomendações técnicas de instituições
campo da saúde coletiva necessitou acionar técnico-científicas sobre a utilização de de-
parcerias acadêmicas extracampo, para terminados venenos agrícolas, perseguição e
que se pudesse realizar as análises sobre desqualificação de cientistas críticos a essas
modelo de desenvolvimento agrário brasi- substâncias, entre outras. Entretanto, também
leiro e suas implicações socioambientais e é possível citar uma série de iniciativas críticas
na saúde. Outrossim, se para realização das contrárias à utilização de agrotóxicos decor-
duas primeiras partes é o campo científico rentes da mobilização feita pela Campanha
o notadamente mobilizado, para a terceira, e pelo alcance do ‘Dossiê’. São ações que se
emergem os movimentos sociais no interior manifestam por meio de encontros, seminá-
da Campanha. É nessa parte que a publica- rios e congressos populares e/ou científicos,
ção explora a discussão dos aspectos sociais passeatas e manifestações, bem como de pro-
da ciência e da produção de conhecimento, jetos de pesquisa e extensão universitários que
recorrendo às comunidades atingidas pelos promovem a agroecologia. Foram feitas ações
agrotóxicos e àquelas que constroem a agro- que efetivam leis de proibição de pulveriza-
ecologia em seus territórios. Na construção ção aérea e de utilização de agrotóxicos em
dessa parte, essas comunidades refletiram determinados territórios, assim como políti-
e expuseram as situações de contaminação cas públicas realizadas no âmbito da Política
que vivenciam e os saberes que utilizam e Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica
produzem em seus contextos para superação e, também, do SUS2,36,37.

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Agroecologia e saúde coletiva na construção dos agrotóxicos como problema de saúde pública no Brasil 371

Agroecologia: trocas um movimento ambiental supostamente apar-


de saberes, ‘zonas de tado da política. A agroecologia, diferente-
mente dessas representações equivocadas e
fronteiras’ e trabalho vivo ideologicamente comprometidas, desloca-se
das relações de consumo para as relações de
É significativo que a edição de 2015 do ‘Dossiê’ trabalho, em seu sentido mais fundamental:
reserve um espaço considerável para a agroe- vai ao encontro da produção e reprodução
cologia em sua Parte 4: ‘A crise do paradigma humanas, atingindo as raízes das estruturas
do agronegócio e as lutas pela agroecologia’. de dominação e poder. A agroecologia se faz
A publicação pode ser entendida como uma nas práticas e na atividade intelectual, nas me-
hibridização de gêneros textuais ao trazer diações estabelecidas entre os seres humanos
documentos, dados, estatísticas, gráficos, e a natureza por meio do trabalho, visto em
assumindo também o caráter de documento- sua face ontológica, originária, ao fundar a
-manifesto ao convocar para o enfrentamen- sociedade. Em entrevista, Fernando Carneiro,
to dos agrotóxicos como problema de saúde um dos organizadores do ‘Dossiê’, explicita
pública e se colocar ao lado dos movimentos tais intencionalidades:
sociais, fazendo um chamamento para que
cientistas atuem de forma militante. Ao longo do dossiê, vamos desmontando cada
O título da Parte 4 e seu conteúdo colocam a um desses mitos [que pregam a necessidade
agroecologia para a contraposição ao paradig- de usar agrotóxicos]: o de que a agroecologia
ma do agronegócio. Não é das tarefas menores, não é capaz de alimentar o mundo, o de que
pela força das estruturas agrárias brasileiras, o agroecologia não é ciência, o mito de que a agro-
capitalismo dependente, os vínculos à terra na ecologia é ideologia. Tudo isso é desmontado,
composição da formação econômica. A cons- sempre com referências científicas, inclusive
trução do ‘Dossiê’, nesse sentido, afiança na com trabalhos internacionais, como o recente
agroecologia um espaço capaz de promover relatório da FAO, que mostra que a agroecolo-
certa aglutinação. Ela conseguiria reunir em gia é, sim, capaz de alimentar o mundo, com
torno de si a natureza dialética das nossas qualidade e distribuindo renda, garantindo um
estruturas sociais classistas, desigualdades modelo socialmente mais justo, de distribuição
expostas e veladas no modelo produtivo, tra- de renda38.
zendo os grupos sem apagar o conflito e as
diferenças entre eles, buscando não produzir A segunda é a agroecologia ser trazida em
hierarquias e direcionando-os para a prática, sua capacidade de ampliar o campo de atu-
para a ação. Cabe, nesse sentido, aprofundar antes, produzir ‘zonas de fronteira’ em torno
o argumento que identifica na agroecologia o do combate ao uso dos agrotóxicos. Tal inter-
lugar de intercâmbios, interferências e fron- venção se faz no envolvimento de diversos
teiras. Para que isso pudesse ser realizado, saberes, técnicas e tecnologias e, por suposto,
apontam-se quatro apropriações em torno da de várias áreas do conhecimento. Para o caso
agroecologia na construção textual do ‘Dossiê’. dos agrotóxicos, incluem-se no campo médico
A primeira é a compreensão da agroeco- a epidemiologia, toxicologia, psiquiatria, entre
logia como campo de produção científica e outros, como também o campo da química,
tecnológica, desvencilhando-a de imagens várias engenharias, agronomia, biologia, eco-
caricaturais, como se ela fosse um conjun- logia, além das ciências sociais e humanas em
to de práticas pautadas em um empirismo saúde. Nesse segundo fluxo, a agroecologia é
destituído de abstrações, um emaranhado de mobilizada em seu alcance de ampliar o au-
técnicas de cultivo, a proposta restritiva de ditório em torno das pautas estabelecidas por
um consumo alimentar consciente ou mesmo setores da saúde coletiva, criando um consenso

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372 Chaves BS, Rodrigues LAD, Pimenta DN

– ainda que provisório, instável e em disputa – uma agenda pública em torno dos agrotóxi-
do agrotóxico como problema de saúde pública cos que envolveria o SUS. Nesse caso, há um
e levando-o à ampla divulgação. resgate, inclusive, de seus princípios quanto
A terceira tem na agroecologia um lugar de à participação popular e papel de controle
interações capazes de aproximar os saberes social por parte da sociedade civil. A Reforma
acadêmicos e populares, conhecimentos ins- Sanitária, incompleta42, ganharia força na
tituídos e aqueles que são frutos das tradições agroecologia em um contexto em que essas
e ancestralidades. A publicação sinaliza para aproximações se fazem ainda mais necessárias,
os meandros do produtivismo acadêmico “re- em razão de uma outra ‘agenda conservadora
conhecendo no campo científico elementos da saúde’43, que inclui desmonte, perseguições
do produtivismo taylorista-fordista”2(233). aos pesquisadores da área de saúde coletiva
Para além disso, os últimos anos colocam (algo mencionado pelo próprio ‘Dossiê’) e à
em xeque a figura do intelectual como um própria Fundação Oswaldo Cruz.
agitador público, sua capacidade de debater Como se calar diante de dados que apontam
temas universais39, propor mudanças, pro- para intoxicação, casos de câncer e suicí-
vocar contraposições. Movida por critérios dios vinculados ao uso dos agrotóxicos? De
quantitativos de agências de fomento, pres- outra parte, como convencer cientistas e
tígios, determinações do mercado, a ciência outros setores da sociedade a atuarem juntos
assume sua face também flexível, toyotista na tomada de posição diante do assunto?
e, mais recentemente, uberizada, com a pla- Novamente, é importante tentar decodifi-
taformização do trabalho. O resultado é um car o sentido que a agroecologia atribui ao
cientista que pende ao burocrata, vinculado trabalho, a materialidade que ela manifesta
a iniciativas individuais, cedido tácita ou de- epistemologicamente e nas práticas. As apro-
liberadamente ao neoliberalismo, fenômeno priações feitas pelo ‘Dossiê’ em torno dela são
que Boaventura de Sousa Santos nomeia como possíveis em razão de um compromisso que
um ‘capitalismo universitário’40. Tal figura do ela tem com o trabalho vivo, concreto, útil. Se
intelectual demonstra certa falência da sua o materialismo histórico e dialético pode nos
condição de fazer circular o conhecimento fornecer uma compreensão histórica da natu-
como bem público, pelo contrário, desvincula- reza dúplice do trabalho44, a agroecologia se
-se de muitas demandas sociais emergentes e contrapõe à sua face abstrata, morta, pretérita,
urgentes. Na contramão, a agroecologia aciona de onde derivam a alienação e a exploração do
um outro lugar para o cientista. Em diálogo trabalho. Em um outro lugar, o do encontro,
com outros saberes, insta-o a uma reconfigu- do intercâmbio, das interfaces, da interdisci-
ração, alocando ensino, pesquisa e extensão plinaridade, da percepção do conhecimento
para o território da resolução dos problemas como algo não compartimentalizado, ela atua
sociais. Neste momento, a agroecologia agita na diluição de divisões criadas na modernidade
os ‘especialistas’ e ‘não especialistas’ ao en- e no projeto societário capitalista, contradi-
xergar o Estado como espaço de disputa41 e ções entre o trabalho manual e o intelectual,
os ‘pacotes de veneno’ como objeto de con- o campo e a cidade, as desigualdades raciais
traposição. Não por acaso, ao final da Parte 4, e de gênero.
arrolam-se diversos documentos vinculados Pode-se afirmar que ‘o trabalho é a agência
aos movimentos sociais. por excelência, é uma ação interativa recípro-
A quarta apropriação está relacionada com ca’10. Esse lugar do trabalho é uma abertura
o fato de a agroecologia reunir uma disposição para pensar, inclusive, na relação entre sujeito
agregadora em torno de si, fazendo sujeitos e e objeto, compreender os agrotóxicos como
coletivos com marcadores sociais distintos se produtos químicos e seu movimento dentro
unirem como sociedade civil para reivindicar dos laboratórios e fora deles. Nesse sentido,

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 363-376, Jun 2022


Agroecologia e saúde coletiva na construção dos agrotóxicos como problema de saúde pública no Brasil 373

as afetações que os objetos produzem nos fortalecimento do agronegócio, a mobilização


sujeitos, que encarnam o desejo de muitos desses grupos sociais encontra dificuldades em
cientistas empenhados na busca da melhor propor o debate público sobre os agrotóxicos.
substância como solução pragmática, útil eco- Vale destacar que, no ano de 2019, liberou-se o
nomicamente, envolvem ensejar a produção registro de 503 novos agrotóxicos; e, em 2020,
de outros estímulos, provocações, modificar do início até 28 de julho, foram liberados 15045.
o ponto de partida de onde as perguntas são A agenda conservadora da saúde também não
feitas aos objetos. Tal ato não envolve a corro- foi perdida por causa da emergência sanitária
são da ciência, da técnica e da tecnologia, não gerada pelo novo coronavírus, a atuação dos
é uma recusa tecnofóbica, mas acontece na ‘aparelhos privados’ continua forte, as cor-
emergência da produção intelectual a partir de porações mantêm a pauta política que tende
outras práticas, com outros pontos de contato, a enfraquecer o SUS: a pandemia revela a
outras percepções de mundo comprometidas fragilidade do complexo da saúde no Brasil.
com a realidade brasileira e suas agruras. Não O artigo analisou a força mobilizadora do
se faz aqui uma redenção dos agrotóxicos, ‘Dossiê’ e reforça os outros horizontes pos-
pelo contrário, pensa-se em qual parte cabe síveis que ele traz. A ciência como produtora
à química ou à agronomia, como exemplos, de bens públicos, as instituições conscientes
para uma produção científica e tecnológica da sua função social, o diálogo permanen-
que corresponda à produção de bens públi- te, o protagonismo dos movimentos sociais
cos, com função social. É nesse trajeto que quando necessário e o resgate do trabalho
a agroecologia se torna um campo de forças. vivo tornam-se imperativos de sobrevivência
Diferentemente do que se pode pensar, ela não social e negação da barbárie. Nesse sentido,
se converte em panaceia, mas como lugar de a agroecologia é um dos campos de força
produção de energia por onde a transformação em que a superação do capital representa a
é complexa e árdua, mas possível. possibilidade da nossa soberania alimentar
e sobrevivência.

Considerações finais
Colaboradores
A construção dos agrotóxicos como um proble-
ma de saúde pública depende da articulação de Chaves BS (0000-0003-4364-5944)*,
diversos grupos sociais envolvidos na inserção Rodrigues LAD (0000-0003-1173-319X)* e
e promoção dessa pauta na agenda política Pimenta DN (0000-0003-3248-9472)* con-
no Brasil. Atualmente, em meio à pandemia tribuíram igualmente para a elaboração do
da Covid-19, no contexto de retrocessos e de manuscrito. s

*Orcid (Open Researcher


and Contributor ID).

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ENSAIO | ESSAY 377

Da pandemia à agroecologia: redes de


solidariedade na construção de um novo
paradigma socioecológico
From the pandemic to agroecology: building a new socio-ecological
paradigm

Carolina Burle de Niemeyer1, Vicente Carvalho Azevedo da Silveira2

DOI: 10.1590/0103-11042022E225

RESUMO A pandemia da Covid-19 exacerbou as crises social e ambiental em andamento. Neste ensaio crítico,
enfatiza-se o impacto do neoextrativismo e, em especial, do agronegócio nesse processo, e reivindica-se
a urgência de uma transição para novas ontologias socioecológicas como caminhos fundamentais para
a manutenção da vida e do futuro (próximo) do planeta. A partir do questionamento sobre a validade
do retorno à (a)normalidade, lançado pelo ‘Pacto Social, Ecológico, Econômico e Intercultural para a
América Latina’, procurou-se mostrar como movimentos sociais de viés agroecológico do Brasil vêm
transformando a crise em oportunidade para o fortalecimento da ‘solidariedade ativa’ entre o campo e a
cidade, contribuindo para o avanço em direção ao paradigma ecossocial.

PALAVRAS-CHAVE Agroecologia. Movimentos sociais. Agronegócio. Covid-19. Neoextrativismo.

ABSTRACT The Covid-19 pandemic exacerbated the ongoing social and environmental crises. In this critical
essay, we emphasize the impact that neo-extractivism – with particular attention to agribusiness – has had in
this process, and stress that a change towards socioecological ontologies is the only way to guarantee life and
the (near) future of the planet. Departing from an inquiry about the validity of returning to (ab)normality,
launched by the ‘Social, Ecological, Economic, and Intercultural Pact for Latin America’, we seek to show
how agroecological social movements in Brazil are turning the crisis into an opportunity to reinforce the
‘active solidarity’ between rural and urban people, making a contribution towards a new eco-social paradigm.

KEYWORDS Agroecology. Social movements. Agribusiness. Covid-19. Neo-extractivism.

1 Fundação Oswaldo Cruz


(Fiocruz), Escola Nacional
de Saúde Pública Sergio
Arouca (Ensp) – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil.
carolina.niemeyer@gmail.
com

2 Universidade Federal

Rural do Rio de Janeiro


(UFRRJ) – Seropédica (RJ),
Brasil.

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 377-390, JUN 2022
378 Niemeyer CB, Silveira VCA

Introdução a ‘normalidade’. Na América Latina, a crise


sanitária evidencia as contradições e limites
As iniquidades1 que marcam a pandemia da do ‘consenso dos commodities’9, baseado na
Covid-19 no Brasil são uma confirmação per- exportação de bens primários em larga escala,
versa do abismo social que distancia o Norte no crescimento econômico e na expansão do
e o Sul metafóricos do País. Sem uma política consumo. O termo designa uma nova fase de
nacional de saúde, em maio de 2021 o Brasil acumulação do capital, em que o (neo)ex-
ultrapassou 422 mil óbitos pela doença2. trativismo se torna o motor do crescimento
O atual governo subverte a democracia econômico na América Latina, impulsionado
e responde à crise sanitária com uma ne- pela expansão da demanda por commodities,
cropolítica3 calcada na violação de direitos principalmente por parte da China9.
sociais e ambientais, que patrocina, direta ou Com base em um ideal comum de progresso
indiretamente, a grilagem, o desmatamento, pautado na expansão da produção material à
a destruição de biomas, a expropriação e a custa dos recursos naturais e dos povos locais,
invasão de terras indígenas, quilombolas e essa estratégia é adotada por governos iden-
favelas4. Apesar do contexto de opressão, é tificados tanto à direita como à esquerda, a
desses lugares e territórios que surgem as ex- despeito dos impactos sociais e ambientais
periências mais exitosas ao enfrentamento da derivados das suas atividades, que englobam:
pandemia, como as ações de solidariedade e a mineração nos rios e a céu aberto, a expan-
agroecologia mobilizadas por redes e movi- são da fronteira petrolífera, a construção de
mentos sociais, para garantir o abastecimento grandes represas e a generalização do modelo
e a segurança alimentar no campo e na cidade. de agronegócio na região9.
Desde a América Latina e mais especificamen- Entre as atividades neoextrativistas, o agro-
te doo Brasil, neste ensaio crítico, pretendemos negócio merece destaque no Brasil pelo poder
abordar algumas questões. Partimos de uma econômico e capacidade de articulação política
problematização das causas sociais e ambientais dos seus principais atores, que incluem desde
da pandemia da Covid-19, que busca analisar as antigas oligarquias rurais até o capital finan-
o papel do neoextrativismo e, em especial, do ceiro transnacional10, além da mídia corpora-
agronegócio nesse contexto, evidenciando os tiva11, como é o caso da Organizações Globo
processos macroestruturais e as relações de poder que é membra da Associação Brasileira de
que sustentam o modelo e garantem a sua he- Marketing Rural & Agronegócio (ABMR&A).
gemonia. Seguimos com um questionamento Com a campanha ‘Agronegócio, a indústria-
sobre a validade do retorno à (a)normalidade, -riqueza do Brasil’, a Globo difunde as ideias
lançado pelo ‘Pacto Social, Ecológico, Econômico falaciosas de que a agricultura familiar é parte
e Intercultural para a América Latina’, para, em integrante do agronegócio, que além de su-
seguida, mostrar como algumas redes e movi- postamente produtivo, moderno e eficiente,
mentos sociais de perfil agroecológico do Brasil ainda alimentaria a nação12.
têm feito da crise oportunidade para o forta- O poder político da bancada ruralista13 atra-
lecimento da solidariedade entre o campo e a vessa governos dos mais diferentes espectros
cidade, contribuindo para o avanço em direção políticos; e sua organicidade e influência na
ao paradigma ecossocial. câmara e no senado são cada vez maiores. Nas
eleições de 2018, 99 dos 218 deputados e 18 dos
27 senadores dessa bancada foram reeleitos.
Agro(negócio) Os interesses que mobilizam o agronegócio
vão além do campo e do Brasil: envolvem o
É necessário assumir as causas sociais e am- sistema agroalimentar industrial, que contro-
bientais da pandemia da Covid-195-8 e repensar la a produção, a distribuição, o comércio e o

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Da pandemia à agroecologia: redes de solidariedade na construção de um novo paradigma socioecológico 379

consumo de alimentos em escala global. Uma organofosforados banidos na China em 2007


cadeia que engloba as empresas transnacionais tem sido enviado ao Brasil19. Muitos agro-
de sementes e agroquímicos, as redes globais tóxicos usados na agricultura, no ambiente
de supermercados, as agroindústrias e o capital doméstico e em campanhas de saúde pública
financeiro14. como inseticida são altamente tóxicos e com-
O agronegócio é apresentado à sociedade provadamente causam câncer, esterilidade,
“como vetor crucial do crescimento econômi- malformação fetal, alterações neuromotoras,
co”15 devido a sua participação no PIB; contudo, disfunções hormonais, depressão e agravos
esse cálculo não considera os subsídios diretos respiratórios20.
e indiretos concedidos pelo Estado nem os Além dos alimentos, os resíduos tóxicos
impactos negativos de ordem social, ambiental contaminam o solo e as águas. De acordo com
e sanitária da atividade. Com o agronegócio, uma pesquisa realizada com dados coletados
avançam a concentração de terra, a expansão pelas próprias empresas de abastecimento
da fronteira agrícola em direção à Amazônia entre 2014 e 2017, a água que supre 1 em cada
legal, o uso abusivo de agrotóxicos e culturas 4 cidades brasileiras está contaminada por
transgênicas, a grilagem de terras públicas, um “coquetel tóxico” de 27 agrotóxicos21.
a invasão e expropriação de territórios indí- Justamente, a mais nova frente de disputa
genas e quilombolas, além do incremento da nas dimensões políticas e econômicas da saúde
violência estatal e paraestatal e o assassinato envolve essas empresas, a partir da publica-
de lideranças – tendências que se acirraram ção do novo Marco Legal do Saneamento22.
após o golpe de 2016 e se intensificaram mais Com a justificativa de universalizar e tornar
no governo Bolsonaro, inclusive durante a mais eficiente o acesso aos ‘serviços de água
pandemia16. e esgoto’, criam-se regras que instituem a
Por meio de fusões e aquisições, a indústria livre concorrência entre empresas públicas
mundial de agrotóxicos e sementes está cada e privadas. Além dos conflitos de interesses
vez mais concentrada e se encontra hoje em na gestão de bens comuns, cabe questionar o
poder de apenas quatro empresas: ChemChina, controle da qualidade e eficiência dos serviços
Dow & Dupont, Bayer & Monsanto e Basf, as prestados, uma vez privatizados.
mesmas que dominam o bilionário mercado Algumas das maiores empresas do agrone-
brasileiro, que cresceu 100 vezes mais do que gócio brasileiro, como a ADM, a BRF (Brasil
o mercado mundial, no período entre 2002 e Foods), a Bunge e a Amaggi, operam em toda
201213. Essa dinâmica se intensificou na gestão a cadeia produtiva, desde a fabricação de pro-
Temer, quando 474 agrotóxicos foram libera- dutos alimentícios até serviços portuários:
dos17 para comercialização, e se exacerba no exportam para diversos países e mantêm
atual governo Bolsonaro, com 624 agrotóxicos escritórios fora do Brasil; algumas possuem
registrados em um ano e meio de mandato, portos próprios e prestam serviço de logística
sendo 150 em plena pandemia18. para outras empresas do ramo. A 3G Capital,
A liberação de agrotóxicos no Brasil é uma empresa brasileira de capital fechado que
questão política e econômica que envolve o teve origem na Ambev, controla algumas das
modelo de desenvolvimento e da estrutura maiores corporações de alimentos e bebidas
fundiária. A fusão de interesses da antiga do mundo. Por meio de fusões e aquisições,
oligarquia rural e do capital transnacional tornou-se a maior empresa de cerveja do
contribui para explicar por que agrotóxicos mundo, a terceira maior operadora de res-
banidos em outros países continuam permiti- taurantes fast-food e a quinta maior empresa
dos no Brasil. Dos 50 produtos mais utilizados de alimentos14. Esses dados revelam o poder
nas lavouras brasileiras, 22 são proibidos na econômico, a abrangência e a capilaridade
União Europeia, e grande parte do estoque de dessas empresas, o que explica sua influência

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380 Niemeyer CB, Silveira VCA

em governos nacionais e organizações inter- de agricultura hegemônico responde pelas


nacionais na definição de políticas públicas e doenças relacionadas direta e indiretamente
regimes internacionais nos domínios da agri- com o uso de agrotóxicos. Ambos contaminam
cultura, da alimentação e do meio ambiente. o meio ambiente, aceleram o aquecimento
A partir de uma perspectiva sistêmica sobre global e não produzem ‘comida de verdade’29.
Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), o A esse quadro, soma-se o processo de ‘finan-
relatório ‘The Global Syndemic of Obesity, ceirização dos alimentos’30 a partir da liberali-
Undernutrition, and Climate Change’23 alerta zação do mercado financeiro, cujas mudanças
para uma ‘Sindemia global’ formada pela as- estruturais impulsionaram o investimento em
sociação entre três pandemias: obesidade, commodities agrícolas e terras agriculturáveis
desnutrição e mudança climática, que “in- principalmente a partir dos anos 2000. Os
teragem umas com as outras, compartilham novos atores financeiros incluem companhias
determinantes e, portanto, exercem uma influ- de seguros e fundos de pensão, cujo único
ência mútua em sua carga para a sociedade”24. interesse nesses ativos é a especulação31. Além
O relatório aponta que esses são fenômenos dessas, as maiores empresas de comércio de
complexos e correlacionados, e que têm como grãos – Archer Daniels Midland, Bunge, Cargill
causa comum o modelo industrial de agricultu- e Louis Dreyfus – estão hoje fortemente envol-
ra, somado ao controle da cadeia agroalimentar vidas com o mercado de derivativos agrícolas
por megaempresas de alimentação. e estabeleceram um braço para gerenciar seu
Por meio de estratégias agressivas de envolvimento nesses mercados.
marketing e publicidade, somadas à falta de Essa dinâmica especulativa impulsionou
regulação, à pouca informação disponível uma alta exponencial do preço dos alimentos
para os consumidores e ao baixo preço dos e das terras agriculturáveis, o que estimulou
seus produtos, essas empresas têm promo- a expulsão de camponeses e populações tra-
vido a substituição de formas tradicionais de dicionais de suas terras e territórios, o aque-
alimentação por um padrão alimentar não cimento global, a erosão do solo, a perda de
saudável, baseado em comidas semiprontas, biodiversidade e a destruição de biomas e
ultraprocessadas, hiperpalatáveis e ricas em florestas30.
açúcares e gorduras25. A consequência é o A deflorestação e o desmatamento também
aumento da obesidade e de outras doenças favorecem o surgimento de novas doenças,
crônicas e não transmissíveis, como doenças porque facilitam a transferência dos vírus dos
cardiovasculares, diabetes tipo 2 e alguns tipos animais para as pessoas. Importantes cientistas
de cânceres23,26. críticos ligados ao campo ecológico afirmam
Esse contexto ameaça cada vez mais o direito que cerca de 70% dos patógenos que afetam
humano à alimentação adequada e saudável, o ser humano, como a Sars-Covid-19, o Sars-
porque a obesidade tornou-se uma pandemia CoV-2, o HIV, o ebola e o Mers, têm como
global que vai em par com a desnutrição, em principal hipótese que seu surgimento está
uma associação que atinge principalmente os relacionado com a invasão de ecossistemas
países com maior insegurança alimentar, visto florestais8,32.
que os alimentos mais calóricos e ultraproces- Outras doenças já são inequivocamente
sados são mais baratos do que frutas, verduras associadas ao modelo de agricultura e pecu-
e carnes27. Essa situação tende a se agravar com ária industrial. A H1N1, conhecida como gripe
a crise sanitária por Covid-19, devido à queda suína, resulta da mutação de um vírus surgido
na renda das famílias28. Se as indústrias globais em porcos ‘produzidos’ em regime de confina-
de produção e distribuição de alimentos são as mento, à base de altas doses de medicamentos
principais responsáveis pela relação perver- e promotores de crescimento7. Além disso,
sa entre obesidade e desnutrição, o modelo a carne (porcos, aves e gado) produzida no

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sistema industrial permanece impregnada com Diversos estudos5,6,25,28,34 enfatizam a de-


baixas doses dessas substâncias, cujo consumo sigualdade estrutural e o viés sistêmico da
constante tem gerado, nos seres humanos, dis- crise alimentar na América Latina e no Brasil,
túrbios hormonais, resistência a antibióticos e e concluem que a erradicação da pobreza na
levado ao surgimento de superbactérias, como: região exige a adoção de modelos produtivos
Pseudomonas aeruginosa, Escherichiacoli, inclusivos e eficientes que promovam uma
Staphylococcus aureus e Salmonella33. agricultura mais resiliente e sustentável do
Com tudo isso, o sistema agroalimentar ponto de vista ambiental, além de socialmente
hegemônico não é capaz de acabar com a justa – o que remete à agroecologia, desde que
fome no mundo, não só porque a sua vocação construída em diálogo com os conhecimentos
é produzir commodities, mas também porque indígenas, quilombolas e camponeses, entre
a fome não é meramente uma questão técnica outras formas antrópicas de ser e de estar no
de produção; ela é resultado da distribuição mundo em harmonia com a natureza.
desigual entre países, regiões, classes sociais,
raças e gênero. Na América Latina, assim como
no Brasil, a fome deriva da pobreza, em parti- Agro(ecologia)
cular da extrema pobreza. A fome é também
negra e ameríndia, maior na zona rural do que De acordo com a Lei estadual nº 8.625/201937,
na urbana e atinge mais as mulheres do que do Rio de Janeiro, agroecologia é “simultanea-
os homens27,34,35. mente um campo do conhecimento científico,
Em um estudo sobre Covid-19 e insegurança movimento político popular e prática social”.
alimentar na região, a Comissão Econômica Por meio de um processo de luta impulsionado
para a América Latina e o Caribe – Cepal27 por movimentos sociais em distintas escalas,
aponta a tendência de piora desse quadro com entrou para a agenda política e hoje está pre-
a pandemia, pela queda de renda das famí- sente em discursos e normas internacionais
lias e o risco de desabastecimento mundial e consolidada em leis, inclusive no Brasil38.
de alimentos. Apesar de grande exportador A despeito do reconhecimento institucional,
de produtos agrícolas, o Brasil não tem uma é uma proposta subversiva39, no sentido que
política nacional de abastecimento alimentar, desafia os limites do sistema hegemônico, ao
nem estoques públicos de alimentos, muito reconhecer validade epistêmica e cognitiva a
menos um sistema de abastecimento que formas de conceber o mundo assentadas em
garanta acesso contínuo às populações de uma perspectiva não dualista, mas relacional
baixa renda e aos mais vulneráveis25. do ser humano com a natureza40.
A partir de setembro de 2020, o País re- A sua potencialidade deriva da riqueza de
gistrou alta expressiva dos produtos da experiências, conhecimentos e saberes teó-
cesta básica36. Isso evidencia a necessidade ricos, práticos e contextuais desenvolvidos
de uma Política Nacional de Abastecimento em todo o mundo; os quais, a despeito da sua
Alimentar (PNAA) multidimensional, orien- pluralidade, compartilham a ideia de que o ser
tada pela Segurança e Soberania Alimentar e humano é parte da natureza e precisa agir em
Nutricional (SSAN) e pelo Direito Humano à harmonia com ela, deixando de tratá-la como
Alimentação (DHA), que abranja ações que um mero recurso a ser explorado.
articulem consumo e produção, A partir da América Latina e, mais especifi-
camente, do Brasil, a nossa proposta é refletir
com a perspectiva de ampliar o acesso a ali- sobre o protagonismo de organizações e mo-
mentos adequados e saudáveis oriundos de vimentos sociais no contexto da Covid-19. São
modelos de produção socialmente inclusivos coletivos ligados à agroecologia, que fizeram
e ambientalmente sustentáveis25(4). do alimento um canal de acesso a territórios

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periféricos, por meio de ações políticas con- Embora o paradigma ecossocial não cor-
jugadas com ações econômicas e de um traba- responda à tendência para o futuro próximo,
lho de base que promove uma ‘solidariedade existem experiências concretas pavimentando
ativa’41 entre o campo e a cidade. o caminho nessa direção em todo o mundo.
Em um país onde reina a necropolítica3, as Falamos em ‘experiências’ no sentido usado
principais vítimas da pandemia são a maioria por Thompson46, em que os sujeitos estão
formada pelas ‘minorias sociais’ – negros, mu- constantemente refletindo sobre suas ações
lheres, pessoas em situação de rua, quilombolas, e criando conhecimentos, em um diálogo
indígenas, ‘povos do campo, da floresta e das construtivo entre as consciências subjetivas
águas’ –, que vivem em lugares historicamen- e a consciência social.
te marcados pela desigualdade social e pela Tendo como referência a América Latina,
violação de seus direitos. A Covid-19 chegou podem-se mencionar os movimentos indígenas
de avião trazida pelas elites e logo se espalhou e os movimentos pela soberania alimentar e pela
pelas mansões e festas dos bairros nobres, agroecologia – os quais propõem alternativas ao
antes de se interiorizar nas periferias, favelas modelo capitalista dominante que vão além da
e bairros populares. Enquanto poucos puderam mera reforma do sistema, porque partem de um
se resguardar em casa, muitos se arriscaram nas questionamento de natureza ontológica, e não
ruas em busca de trabalho para escapar à fome. apenas epistemológica. Por meio de sua práxis,
Como alertou Krenak, o vírus está discriminan- esses movimentos colocam em xeque a compre-
do a humanidade, pois não mata pássaros nem ensão do mundo a partir de uma única ontologia,
ursos. E mesmo entre nós, mata mais aqueles a racional moderna. Em lugar, propõem múltiplas
que já são discriminados, essa espécie de “sub- ontologias, holísticas e relacionais, que comparti-
-humanidade que vive numa grande miséria, lham entre si a ideia de que o ser humano é parte
sem chance de sair dela”42. integrante da natureza40,42,47.
A dimensão multiescalar, totalizante e inter- Em um baque sem precedentes, as de-
dependente da pandemia levou pensadora/es terminações em favor do isolamento social
críticos da América Latina5, 43 a questionarem levaram ao fechamento de feiras orgânicas e
a (a)normalidade pré-covid e interpretarem agroecológicas, empórios e armazéns, o que
a crise como oportunidade para colocar na gerou impactos para o campo e a cidade. No
agenda a proposta de uma outra globalização intuito de garantir a continuidade do acesso
pautada pelo cuidado e pela solidariedade dos centros urbanos a produtos frescos e sau-
entre os países e as sociedades. Um mundo dáveis, assim como o escoamento da produção
no qual as políticas públicas sejam orientadas familiar de viés agroecológico, estabeleceram-
a um ‘Pacto Social, Ecológico, Econômico e -se parcerias entre produtores rurais e traba-
Intercultural’44 que conjugue justiça social lhadores urbanos, mediadas por organizações
e ambiental. e movimentos sociais, que desenvolveram e
Em diálogo com esse debate, Bringel 45 coordenaram alternativas para a comerciali-
identifica três cenários em disputa: o da zação e/ou doação desses alimentos.
‘recuperação’, que objetiva um retorno
à normalidade por meio da recuperação
das economias nacionais e do crescimento Redes de agroecologia e
econômico; o da ‘adaptação’, que propõe solidariedade
reformar o capitalismo, tendo em vista a
redução do aquecimento global; por fim, No debate sobre produção camponesa, as di-
uma mudança paradigmática na direção de ficuldades na comercialização dos alimentos
uma matriz ecossocial guiada pelo antica- frescos e beneficiados têm levado organiza-
pitalismo e pela justiça social e ambiental. ções, movimentos sociais e pesquisadores a

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discutirem estratégias de estímulo à produção por parte dos autores. O Coletivo Terra é um
e consumo locais apoiadas em circuitos ou dos atores centrais em pesquisa de mestrado
canais curtos de comercialização48. Em con- ainda em curso, na qual foi realizada pesquisa
traste com o modelo hegemônico do agrone- de campo etnográfica em duas experiências
gócio, novos arranjos de distribuição devem de doação de alimentos das quais esse coletivo
ser capazes de aproximar produtores e consu- participa. Posteriormente, os dados etnográ-
midores, campo e cidade, gerando vantagens ficos foram complementados por entrevista
econômicas pela eliminação de intermediários realizada com um de seus integrantes. O MPA
e atravessadores, mas também ganhos sociais, é um movimento acompanhado por ambos os
em função de novas relações de confiança e de autores: além de compor a mesma pesquisa de
trocas de saberes entre os diferentes atores49. mestrado, foi objeto também de pesquisa de
Esses processos de construção social de doutorado em ocasião anterior. Além disso,
mercados50 podem ser compreendidos como em diferentes momentos, os autores se enga-
a ressignificação de valores econômicos dentro jaram ativamente nas ações protagonizadas
de relações sociais, culturais e éticas, dotadas pelo movimento.
de uma ordem moral que tem na sobrevivência, Devido a essa proximidade com esses
no desenvolvimento familiar e comunitário, na coletivos, ambos foram incluídos em outra
sustentabilidade ecológica e nos princípios da pesquisa com a qual colaboramos, realizada
economia solidária seus fundamentos comuns51. pela Organização Não Governamental (ONG)
A agroecologia propõe o resgate de formas tra- ‘AS-PTA – Agricultura Familiar e Agroecologia’,
dicionais de produção de alimentos, aliado a ainda no prelo, e que trará discussões mais apro-
inovações organizacionais que, somados, pro- fundadas acerca de alguns temas desenvolvidos
movam maior controle social do abastecimento neste artigo. Outros atores foram contemplados
por parte dos agricultores e maior autonomia nesse último trabalho, dos quais seleciona-
ante o mercado52. Nesse sentido, busca con- mos a rede de organizações do Centro-Sul do
tribuir para superar a ‘condição camponesa’ Paraná, com a qual um dos autores realizou
de marginalização e dependência53 diante do conversas e entrevistas que alimentam os dados
sistema agroalimentar hegemônico. empíricos aqui apresentados54. Por fim, aqui
Na sequência, trazemos exemplos dessas nos restringimos a exemplos das regiões Sul e
dinâmicas que foram potencializadas durante Sudeste, embora existam evidências na mídia
a pandemia. São ações em rede movidas por de que fenômenos similares estão ocorrendo
articulações entre movimentos e organizações em todo o País.
sociais nas regiões Sul e Sudeste: a distribuição O Coletivo Terra é formado por cerca de 30
de cestas agroecológicas pelo Coletivo Terra, camponeses residentes, em sua maioria, no
na Região Metropolitana do Rio de Janeiro; os assentamento Terra Prometida, regularizado
projetos de comercialização de sementes e de em 2009 no Instituto de Terras e Cartografia
alimentos por cooperativas e entidades parcei- do Estado do Rio de Janeiro (Iterj) e localizado
ras na região Centro-Sul do Paraná; a ‘Cesta na divisa entre os municípios de Duque de
Camponesa’ e os ‘Mutirões contra a Fome’, Caxias e Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense.
coordenados pelo Movimento dos Pequenos Se, antes, parte de seus membros eram vincu-
Agricultores (MPA) no Rio de Janeiro. Sem a lados ao Movimento dos Trabalhadores Rurais
pretensão de realizar uma análise aprofun- Sem Terra (MST), hoje se identificam como
dada dessas experiências, nossa intenção é uma associação de pequenos agricultores que
ilustrar com casos concretos o debate teórico busca vias coletivas de comercialização para
apresentado até então. seus produtos, mas que segue em movimento
A escolha desses casos se justifica por tra- na construção de um campo político para a
balhos já finalizados ou ainda em andamento agroecologia e a reforma agrária.

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Uma vez assentados, os agricultores iden- transformou o Raízes do Brasil, sua base de
tificaram a comercialização como o principal moradia e de ações culturais e políticas na
desafio para sua permanência na terra. Desde capital do estado, em uma central de distri-
então, participaram de chamadas públicas via buição de alimentos para comercialização via
Programa Nacional de Alimentação Escolar feiras e, principalmente, cestas por encomen-
(PNAE) e Programa de Aquisição de Alimentos da, que tiveram um crescimento exponencial,
(PAA), organizaram uma feira agroecológica no com 2 mil novos clientes cadastrados desde o
centro de Duque de Caxias e a venda de cestas início da pandemia.
para consumidores diretos, via Instagram, Além do investimento no sistema de cestas,
além de participarem de projetos coordena- o MPA vem articulando a campanha dos
dos por ONG. Com a interrupção de circuitos ‘Mutirões contra a Fome’, com ações de doação
de abastecimento no início da pandemia, as de alimentos agroecológicos a populações de
cestas por encomenda se tornaram a principal baixa renda em 13 estados. No Rio de Janeiro,
estratégia de comercialização, principalmen- a ação está atualmente organizada em dez
te a partir da articulação com o Movimenta territórios, entre favelas e ocupações urbanas,
Caxias, que viabilizou a compra para doação que recebem alimentos frescos produzidos na
de 10.400 cestas agroecológicas em 4 meses, serra de Teresópolis, a uma hora de carro da
as quais foram distribuídas nas periferias da capital, além de alimentos secos e produtos
Região Metropolitana fluminense. beneficiados vindos da Baixada Fluminense
O Movimenta Caxias é um movimento social e de outros estados.
de jovens das periferias urbanas de Duque de Nesse processo, o MPA propõe um novo
Caxias, fundado em 2017 com reivindicações arranjo de ‘sistema popular de abastecimen-
em temas de acesso a serviços públicos e vio- to’55, em que a compra e a doação são con-
lência urbana. Com a iminência da pandemia, jugadas segundo os princípios da economia
anteciparam-se aos impactos econômicos do solidária, de modo que parte das vendas para os
confinamento social e conseguiram recursos consumidores das cestas e doações de pessoas
na ordem de R$ 5 milhões com o Instituto físicas e jurídicas fomentam a produção no
Unibanco, além de outros doadores minori- campo e a distribuição na cidade. Para além
tários, para a distribuição de cestas básicas e da doação, essa iniciativa visa incentivar a
agroecológicas. organização política nos territórios contempla-
A opção por agregar o Coletivo Terra ao dos mediante a criação de Comitês Populares
projeto veio de contatos prévios entre seus do Alimento. Isso explica a doação regular
integrantes, assim como este também se arti- de alimentos a cerca de 300 famílias fixas,
culou com outras organizações na intenção de com as quais se discutem questões sociais e
escoar sua produção. Aqui destacamos as ações se estimula a realização de hortas urbanas e
que envolvem a Rede Ecológica, o Centro de cozinhas comunitárias.
Integração da Serra da Misericórdia (CEM) Seja nas entregas do Movimenta Caxias,
e a AS-PTA, no Complexo da Penha (Zona seja nos Mutirões Contra a Fome, as ações são
Norte do Rio de Janeiro). Ademais, a parceria articuladas com organizações locais parceiras,
com o Movimento dos Pequenos Agricultores desde associações de moradores até coletivos
(MPA), que além de comercializar regular- e ONGs, com a intenção de criar pontes entre
mente produtos do Coletivo, colaborou com territórios marcados pela pobreza e pela vio-
o fornecimento de hortaliças para as cestas lência, dois elementos centrais da necropolí-
distribuídas pelo Movimenta Caxias. tica3. A novidade, nesse caso, está em trazer a
O MPA é um movimento nacional fundado agroecologia como bandeira de luta para esses
em 1996 e que atua no estado do Rio de territórios, promovendo a SSAN e associan-
Janeiro desde 2013. Devido à Covid-19, o MPA do esses alimentos a boas práticas de saúde,

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à preservação da natureza e a princípios de uma parceria com a ONG Terra de Direitos e


economia popular e solidária, contribuindo a Fundação Heinrich Böll para a realização de
assim para a construção de um novo paradigma um projeto que selecionou 18 mulheres guardi-
ecossocial. ãs de sementes, responsáveis pela distribuição
No Paraná, observamos um conjunto de or- de 4.800 pacotes de sementes e 1.400 mudas
ganizações, em que se destacam a Cooperativa de plantas medicinais, flores e árvores da Mata
de Famílias de Agricultores Ecológicos de São Atlântica a 2 mil famílias em 10 comunidades
Mateus do Sul (Cofaeco), o Coletivo Triunfo e a diferentes. Uma parceria recém-firmada com o
Rede de Sementes da Agroecologia (ReSA), que Ministério Público do Trabalho no Paraná vai
abriram diversas frentes de comercialização possibilitar a replicação desse projeto, com um
em pequenos municípios do Centro-Sul: uma volume maior de participantes e de produtos
região marcada por monocultivos de soja e comercializados.
de milho transgênicos, que têm pressiona- Em todos os casos apresentados, a articula-
do comunidades tradicionais faxinalenses e ção em redes foi fundamental para que a crise
camponesas e contaminado seus solos, águas sanitária não se transmutasse em crise alimen-
e sementes. tar28, seja pela doação direta de alimentos, seja
Em resposta à industrialização da agricultu- pela geração de renda para produtores e traba-
ra, essas comunidades tradicionais conservam lhadores contratados para as entregas; como
e ampliam a biodiversidade de seus territórios no caso do MPA, em que se fez uma parceria
por meio de práticas e projetos que integram com uma companhia de taxi muito afetada
as diferentes etapas do processo produtivo – pelos efeitos econômicos da pandemia. Além
desde a produção de sementes e mudas pela disso, a abertura ou a expansão dos canais de
ReSA, passando pela organização da produção comercialização fomentaram a inclusão de
e distribuição, por meio de associações e coo- novos agricultores aos coletivos e organizações
perativas como a Cofaeco e o Coletivo Triunfo, preexistentes, o que pôde ser observado nos
até a Unidade Agroindustrial do Milho Crioulo, três casos aqui relatados.
inaugurada em dezembro de 2019 e gerida por O aporte de recursos públicos e privados
um conjunto de cooperativas com a proposta propiciou que as organizações se estruturas-
de beneficiar o milho agroecológico da região. sem melhor e investissem no desenvolvimento
A pandemia afetou especialmente a Cofaeco de redes agroalimentares alternativas e popula-
e a ReSA. A primeira teve que fechar sua loja res, movidas pela cooperação entre produtores
física e viu as feiras frequentadas por seus e consumidores e mediados por movimentos
cooperados serem suspensas. Com isso, houve sociais e organizações sem fins lucrativos. Em
uma migração da demanda em direção às um cenário em que o Estado assuma parte da
cestas por encomenda, que passaram de uma responsabilidade pelo fomento a essas redes,
média de 25 por semana, antes da pandemia, acreditamos no avanço de processos de tran-
para mais de 70 por semana em julho de 2020. sição agroecológica em grande escala, aliados
Além disso, a Cofaeco participou de dois pro- a princípios de justiça social.
jetos: um financiado pela ONG alemã Pão Para
o Mundo; e o outro, pela Fundação Banco do
Brasil, em que adquiriram um total de 1.600 Considerações finais
cestas para serem doadas na região.
Por sua vez, a ReSA tinha como principal Este artigo buscou articular a denúncia ao
canal de comercialização as feiras de semen- anúncio; ao trazer dados e subsídios que
tes. Em 2020, foram suspensas as 30 feiras contribuam para provar que em lugar de
previstas, com um público esperado de 50 mil alternativas de desenvolvimento, necessita-
pessoas. Isso levou a ONG AS-PTA a firmar mos de alternativas ao desenvolvimento, que

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concedam primazia à saúde do ambiente e das viés agroecológico para a “promoção emanci-
pessoas e tenham como meta o “bem viver”56, patória da saúde”57, por meio da coprodução
em lugar da “vida boa” apoiado no consumo de alimentos saudáveis em territórios susten-
conspícuo e no status. táveis, em práticas agropecuárias integradas
A dimensão pragmática e a consistência à natureza, em que a terra dá sustento ao ser
das lutas anticapitalistas e pela justiça social humano ao mesmo tempo que este contribui
e ambiental dessas redes de agroecologia e para o sustento dela.
solidariedade são o que nos leva a afirmar a Nesse sentido, a questão não é voltar à (a)
sua contribuição para um novo paradigma normalidade, mas interpretar a crise sani-
ecossocial. O ponto de inflexão está na crise ali- tária como uma oportunidade para abalar
mentar intensificada no contexto da pandemia, subterraneamente as estruturas do sistema
em que estes atores viram um potencial para dominante, como ‘água mole em pedra dura’.
a construção de novos laços de solidariedade Uma metáfora que remete a dinâmicas difusas
entre trabalhadores urbanos e rurais mediante e graduais que, como água, movimentam-se a
arranjos de doações de alimentos. Assim, a partir de diferentes lugares e brotam de inú-
iminência da crise alimentar se mostrou uma meras fontes; correndo entre veios e fendas
oportunidade de avanço da agroecologia em formam córregos e rios até se encontrarem no
territórios urbanos periféricos, intensificando mar. Interpretamos a agroecologia como uma
processos produtivos já em curso e inovando dessas dinâmicas fluidas com forte potencial
nas formas de distribuição dos alimentos. disruptivo e, ao mesmo tempo, agregador.
Embora a escala dos processos seja ainda
pequena, as experiências dos sujeitos envol-
vidos geram novas formas de conhecimento Colaboradores
teórico e prático, que são apropriadas, ressig-
nificadas e sistematizadas por outros atores, Niemeyer CB (0000-0003-0269-3413)* é
como movimentos sociais, ONGs e cientistas. responsável pela estruturação do artigo e
A crise sanitária revelou a potência dessas construção do debate teórico. Silveira VCA
redes para o abastecimento das cidades em (0000-0003-1407-293X)* pelos dados empí-
um contexto de excepcionalidade como o de ricos trazidos da sua pesquisa de mestrado.
isolamento social. Essa conjuntura evidenciou Ambos participaram na elaboração da versão
o papel estratégico da agricultura familiar de final do manuscrito. s

*Orcid (Open Researcher


and Contributor ID).

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ENSAIO | ESSAY 391

Contrapontos e inconsistências do discurso


da produtividade do agronegócio e suas
externalidades sob a ótica do biopoder
Counterpoints and inconsistencies in the discourse of agribusiness
productivity and its externalities from the perspective of biopower

Rafaela Corrêa Pereira1, Paula Bernardes Machado2, Michel Cardoso de Angelis-Pereira2

DOI: 10.1590/0103-11042022E226

RESUMO Este ensaio se propõe à análise crítica do agronegócio, buscando construir um modelo teórico
compreensivo, tendo como referência o conceito de biopoder de Foucault. Pretende ainda contribuir para
as discussões de alternativas sustentáveis e de combate às ações que promovem e flexibilizam o uso de
agrotóxicos. Argumenta-se que o agronegócio, apesar de ter tido sua imagem construída por discursos
que ressaltam sua eficiência e produtividade, impõe barreiras que impedem a garantia da segurança ali-
mentar e nutricional. Pelo uso intensivo de agrotóxicos, também não disponibiliza alimentos seguros e de
qualidade, ao mesmo tempo que impacta o meio ambiente e compromete a saúde da população, somado
aos seus impactos políticos, econômicos, sociais e culturais. A análise sob a ótica do biopoder destaca
que a atuação das indústrias agrícola, agroquímica e de alimentos, enquanto normatizadoras e geradoras
de consumo, desconsideram princípios morais e éticos, infringem direitos humanos e a autonomia dos
sujeitos. Paralelamente, propõe-se que, por meio da educação popular e a educação alimentar e nutri-
cional, consegue-se, em longo prazo, construir sujeitos e coletividades autônomos e críticos, capazes de
transformar as estruturas de poder vigentes e de agir em prol de políticas públicas que fomentem práticas
justas, saudáveis, sustentáveis e éticas.

PALAVRAS-CHAVE Agronegócio. Biopoder. Agroecologia. Educação da população. Política pública.

ABSTRACT This essay proposes a critical analysis of agribusiness, seeking to build a comprehensive theoretical
model based on Foucault’s concept of biopower. It also proposes to contribute to the discussions of sustainable
alternatives and to combat actions that promote and make the use of pesticides more flexible. It is argued
that agribusiness, despite having its image built by speeches that emphasize its efficiency and productivity,
imposes barriers that prevent the guarantee of food and nutritional security. Due to the intensive use of
pesticides, it also does not provide safe and quality food, while it impacts the environment and compromises
the health of the population, added to its political, economic, social, and cultural impacts. The analysis from
the perspective of biopower highlights the performance of the agrochemical and food industries, as standards
and generators of consumption, disregards moral and ethical principles, infringes human rights and the
autonomy of the subjects. At the same time, it is proposed that, through long term popular education and
1 Instituto
food and nutrition education, it is possible to build autonomous and critical subjects and collectives, capable
Federal de Minas
Gerais (IFMG) – Bambuí of transforming the existing power structures and acting in favor of public policies that promote practices
(MG), Brasil. that are fair, healthy, sustainable, and ethical.
2 Universidade Federal

de Lavras (Ufla) – Lavras KEYWORDS Agrobusiness. Biopower. Agroecology. Popular education. Public policy.
(MG), Brasil.
deangelis@ufla.br

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 391-406, JUN 2022
392 Pereira RC, Machado PB, Angelis-Pereira MC

Introdução Sistema agroalimentar


atual: um modelo que
Os modelos de produção agroalimentar,
para que consigam efetivamente garantir
garante a segurança
a Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), alimentar e nutricional?
o Direito Humano à Alimentação e Nutrição
Adequada (DHANA) e a soberania alimen- O modelo agroalimentar predominante no
tar, devem abranger a produção sustentá- Brasil, atualmente, consolida-se no agrone-
vel e a conservação da biodiversidade e ser gócio, que ganhou dominância global com
capazes de promover o consumo variado, a Revolução Verde5. No entanto, somente a
respeitando preparações e hábitos culturais partir da década de 1990 que, no Brasil, passou-
tradicionais. Precisam, ainda, ser seguros, -se a investir na construção ideológica do que
isentos de contaminantes físicos, químicos se entende hoje por agronegócio, sendo esse
ou biológicos que causem malefícios a todos conceito formalmente materializado em 1993,
os envolvidos nessa cadeia1. pela Associação Brasileira de Agribussiness
Nesse sentido, a discussão sobre alimen- (Abag)6. Esse período foi acompanhado pela
tação saudável e promoção da saúde no consolidação do neoliberalismo no País,
âmbito da saúde pública precisa envolver, marcado pela prática do livre comércio, in-
intuitivamente, a discussão dos modelos de centivo à exportação e menor subordinação
produção agroalimentar em prática global- dos mercados ao Estado, uma vez que se
mente, incluindo seus aspectos políticos, assume que a regulação pelo mercado é o
econômicos, ambientais, sociais e culturais. modo mais eficiente de controlar as atividades
Diante da constatação da dominância econômicas7,8.
do agronegócio como modelo de produ- Formada por grandes empresas do setor
ção hegemônico, suas falhas em garantir a agropecuário, incluindo cooperativas de
SAN e suas externalidades negativas2, ao grande porte, a Abag buscava assim a moder-
mesmo tempo que se depara com políticas nização conservadora da imagem do agrone-
de flexibilização do uso de agrotóxicos ou gócio, associando esse formato de atividade
das legislações de conservação e preserva- agrícola como um modelo sofisticado, eficiente
ção do meio ambiente3,4, propõe-se neste e produtivo, que incorporava os aparatos e
ensaio a análise crítica desse modelo por avanços tecnológicos da Revolução Verde e
meio de uma revisão bibliográfica de artigos da sociedade industrial capitalista, o que, in-
científicos. clusive, é exaltado ainda hoje em propagandas
A partir disso, busca-se a construção de veiculadas pelo setor em diversos canais de co-
um modelo teórico compreensivo tendo municação e sustentado por alguns discursos
como eixo de análise o conceito de biopoder científicos. Esses aparatos incluíam os latifún-
de Foucault, para entender as formas de dios agroindustriais de alta complexidade tec-
atuação dos principais atores desse con- nológica, uso intensivo da terra e da produção
texto e os impactos associados, trazendo de escala, de fertilizantes químicos, sementes
assim contribuições para as discussões de transgênicas, agrotóxicos e antibióticos, além
alternativas de modelos sustentáveis, de do transporte entre longas distâncias5,6,9-11.
entraves a serem superados e de possibili- Acompanhado dos avanços nas tecnologias
dades de atuação. de processamento de alimentos, e da imagem

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 391-406, JUN 2022


Contrapontos e inconsistências do discurso da produtividade do agronegócio e suas externalidades sob a ótica do biopoder 393

construída pelos seus atores e de ser uma es- alimentos. Contrariamente, o agronegócio tem
trutura de grande produtividade e de baixa se associado cada vez mais às suas externalida-
dependência sazonal, capaz de modificações des negativas, principalmente seus impactos
e adaptações em suas diferentes fases, conco- sociais, ambientais e sanitários4,16.
mitantemente à diminuição da penosidade do A fome e as falhas dos mecanismos de ga-
trabalho4,12, o agronegócio foi proposto como rantia da SAN atuais são, portanto, decorrentes
solução ao problema de produzir alimentos do modelo do agronegócio, juntamente da
em quantidades suficientes para atender às ausência ou inoperância de políticas públi-
demandas populacionais no presente e no cas sociais, resultantes do processo histórico
futuro e, portanto, garantir a SAN13. e social de construção do sistema alimentar
Esse modelo hegemônico, no entanto, além brasileiro. Isso envolve, entre outros fatores,
das diferentes externalidades negativas, não o mau uso da terra, a apropriação de recursos
tem se mostrado sustentável, eficiente e pro- naturais, a exploração do trabalho, as rela-
dutivo, com capacidade de garantir acesso ções de poder desiguais, a comoditização da
aos alimentos em quantidade e qualidade comida, a oferta indiscriminada de alimentos
suficientes para a população, ou mesmo per- ultraprocessados e a incapacidade de merca-
mitir acesso democrático aos recursos para dos livres gerarem bens públicos de forma
produção de alimentos2. satisfatória17,18.
A última edição do relatório anual 14 É diante dessas constatações que ganha
da Organização das Nações Unidas para força o debate sobre a necessidade de um
Alimentação e Agricultura (FAO) sobre o sistema alimentar que promova saúde e justiça
estado da SAN no mundo, por exemplo, des- social, garanta maior resiliência ecológica ao
tacou que o número de pessoas que passam planeta e esteja alinhado aos objetivos do de-
fome tem aumentado na última década; e como senvolvimento sustentável19,20.
resultado, mais de 690 milhões de pessoas
ainda passavam fome em 2019. Além disso,
mais de 3 bilhões de pessoas não conseguiram Contrapontos no discurso
ter acesso a alimentos seguros e nutritivos, da produtividade do
de forma regular e em quantidade suficiente
naquele ano, enquanto as taxas de sobrepeso
agronegócio
e de obesidade continuaram crescentes em
todas as faixas etárias. A organização estimou Dentre as várias explicações para o fato de
ainda que, com a pandemia de Covid-19, mais que o modelo agroalimentar regido na lógica
de 130 milhões de pessoas podem passar fome do agronegócio é ineficaz para a garantia da
crônica até o final de 202015. SAN, destacam-se, inicialmente, a estrutura
Diante desse cenário, não se confirmam agrária concentrada e o uso intensivo da terra.
as promessas propagandeadas até hoje pelo De fato, o Brasil está entre os países com maior
agronegócio e por parte da comunidade cien- grau de concentração de terra no mundo; e os
tífica, especialmente a que recebe financia- resultados do Censo Agropecuário de 201721
mento pelas multinacionais que concentram indicam que a estrutura agrária no Brasil se
o mercado de agrotóxicos e de sementes concentrou ainda mais desde o último levan-
transgênicas5. Ancorado na lógica do capital tamento, em 2006. Em 2017, 14,8% da área
financeiro e da apropriação da tecnologia, na produtiva agrícola brasileira se concentrava
prática, o agronegócio preconiza objetivos em 0,04% dos estabelecimentos rurais do País.
distantes do que se compreende por SAN, tam- Esses estabelecimentos se destinam à pro-
pouco tem se mostrado eficiente e produtivo dução de mercadorias agrícolas não alimentí-
para atender às demandas populacionais por cias (biocombustíveis e celulose, por exemplo),

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 391-406, JUN 2022


394 Pereira RC, Machado PB, Angelis-Pereira MC

ou de grandes volumes de commodities para escala a esses produtos, ocasionada pela alta
exportação (soja e milho particularmente), frequência de aplicação26.
que também têm como destino a pecuária e
a industrialização4 e, portanto, não são di-
retamente convertidas em alimentos para a Agronegócio e alimentos
população. ultraprocessados
A utilização dessas commodities como com-
ponentes de ração animal, em especial, passou Com a produção predominante de grãos e
a ser um mecanismo eficiente e lucrativo para cereais, parte dela passou a ser destinada à
lidar com a superprodução dos grãos e cereais, industrialização, sendo matéria-prima para
especialmente após as campanhas de incentivo fabricação de alimentos ultraprocessados, de
ao consumo de carne, sobretudo bovina, pelos baixo valor nutricional, que dominam os supri-
consumidores11. Certamente, o aumento anual mentos de alimentos de vários países desenvol-
do consumo de carne mundial foi notável no vidos e que estão cada vez mais difundidos em
período de expansão da Revolução Verde. Em países em desenvolvimento, sendo consumidos
países em desenvolvimento, por exemplo, amplamente pela população, principalmente
entre 1967 e 1997, a demanda por carnes passou de baixa renda4,10,27.
de 11 kg para 24 kg/capita/ano, atingindo taxa Desde 2014, no entanto, a FAO reconhece
de crescimento anual de mais de 5% ao final que o declínio da qualidade da dieta obser-
desse período22, números que continuam cres- vado nos últimos anos é reflexo do aumento
cendo até hoje, chegando à média de 34 kg/ na venda e consumo de alimentos e bebidas
capita em 201923. industrializados e ultraprocessados28. Outros
Como consequência, houve expansão das estudos mostram ainda que dietas monótonas,
áreas destinadas à pecuária e aumento da ren- com elevado consumo de carnes e produtos
tabilidade dos canais produtivos. Por outro ultraprocessados pioram o quadro de SAN e
lado, os desfechos negativos à saúde associados levam à maior incidência de Doenças Crônicas
ao alto consumo de carne24 e ao meio ambiente, não Transmissíveis (DCNT)29-31.
devido ao seu elevado impacto ambiental25, Todos esses contextos conduzem ainda à
com o encarecimento do preço dos alimen- representação de situações paradoxais, como
tos, trouxeram prejuízos diretos à população, o fato de que a maioria dos que sofrem de
principalmente nas camadas mais pobres11. Insegurança Alimentar Nutricional (IAN)
Cabe ressaltar ainda que a produtividade são agricultores de subsistência dedicados ao
dessas culturas não tem sido crescente, como trabalho agrícola – particularmente em países
se hipotetizava no início da Revolução Verde, de baixa renda5. Outro exemplo é o da África,
o que era, inclusive, uma das principais razões que, ao favorecer as exportações agrícolas
para justificar o uso de insumos perigosos, em detrimento de sua soberania alimentar,
como os agrotóxicos. O fato é que, nos últimos precisa importar um terço de suas demandas
anos, passou-se a observar a desaceleração do por alimentos mesmo s endo grande exporta-
crescimento da produtividade, acima de tudo dora de frutas e produtos tropicais32.
nas culturas de cereais como arroz e trigo2, Com as altas taxas de perdas ou des-
o que representa outra barreira para que o perdício de alimentos ao longo da cadeia
agronegócio consiga atender às demandas produtiva, estimada em 25% – 30% 33, essas
futuras por alimentos de uma população em evidências comprovam que os sistemas de
crescimento. A desaceleração da produtividade produção e distribuição desiguais são as
veio acompanhada da necessidade de volumes grandes barreiras que impedem o acesso
cada vez maiores de agrotóxicos, como conse- aos alimentos dos que deles necessitam e a
quência do aumento da resistência em larga garantia da SAN5.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 391-406, JUN 2022


Contrapontos e inconsistências do discurso da produtividade do agronegócio e suas externalidades sob a ótica do biopoder 395

Externalidades ambientais alterações moleculares específicas que, em


e para a saúde – agrotóxicos médio e longo prazo, podem estar associados
a condições cada vez mais incidentes na po-
A produção de alimentos nos moldes do agro- pulação, em especial as DCNT, que, até então,
negócio é, reconhecidamente, um dos maiores são muito pouco associadas ao consumo de
impulsionadores das mudanças ambientais alimentos contaminados com resíduos de
globalmente, contribuindo para mudanças agrotóxicos ao longo da vida37-39.
climáticas, aumento na emissão de gases do No meio ambiente, por sua vez, o desequi-
efeito estufa, perdas de biodiversidade, uso líbrio ocasionado pelo uso de agrotóxicos se
de água potável, desmatamento e exploração deve, sobretudo, à contaminação do solo, dos
ilegal de áreas protegidas, interferência nos lençóis freáticos, do ar, da flora e da fauna,
ciclos globais de nitrogênio e fósforo e con- porque, além de eliminar agentes indesejáveis,
taminação química34. os agrotóxicos podem ser tóxicos para uma
Entre essas externalidades, os impactos série de outros organismos, incluindo micror-
advindos do uso dos agrotóxicos são especial- ganismos, pássaros, peixes, insetos, agentes
mente preocupantes já que são amplamente polinizadores e plantas não-alvo40.
utilizados, apesar de seus evidentes efeitos Dessa forma, além das barreiras que
tóxicos sobre os seres vivos e o meio ambiente. impedem o acesso aos alimentos em quanti-
Com a expansão das commodities agrícolas na dade suficiente dos que deles necessitam, o
Revolução Verde, seu mercado foi impulsiona- agronegócio, pelo uso intensivo de agrotóxicos,
do no Brasil, que hoje se configura como um também não garante a disponibilidade de ali-
dos maiores consumidores de agrotóxicos do mentos seguros e de qualidade para a popu-
mundo5. O País também apresenta políticas lação, ao mesmo tempo que impacta o meio
de incentivo ao uso de agrotóxicos, manten- ambiente e compromete a saúde da população.
do e fortalecendo a liberalização do uso de
muitos produtos comprovadamente perigosos,
ao mesmo tempo que é frágil para monitorar Externalidades
e controlar seus danos4. sociopolíticas e culturais
Além das consequências à saúde advindas
da exposição aguda e direta, mais intensa em Do ponto de vista sociopolítico, o modelo do
trabalhadores rurais e moradores de áreas agronegócio e de industrialização de alimentos
próximas à aplicação de agrotóxicos, todas também tem contribuído fortemente para ex-
as pessoas são inevitavelmente expostas aos ternalidades negativas, particularmente para
agrotóxicos via contaminação ambiental, pelo o êxodo rural como consequência do aumento
ar, pela água e pelos alimentos35. A ingestão de da concentração fundiária e de renda. As legis-
alimentos contaminados por resíduos de agro- lações e políticas públicas em vigor no Brasil,
tóxicos, sejam eles in natura, minimamente porém, respaldam esse modelo, favorecendo
processados, processados e ultraprocessados, as estruturas patriarcais e as grandes corpo-
é considerada a principal via de exposição rações que representam parcela minoritária e
à maioria dos agrotóxicos pela população36. privilegiada da população, colaborando para
O que a literatura científica mostra, no perpetuar injustiças sociais e aumentar sig-
entanto, predominantemente as publicações nificativamente os danos ao meio ambiente
em que não há conflito de interesse declara- e comprometendo o bem-estar e a saúde da
do, é que a exposição a essas condições pode população41,42.
trazer efeitos negativos à saúde. Dentre eles, De fato, é o setor privado que domina as
destacam-se distúrbios dos sistemas nervoso, principais pesquisas agrícolas, os investimen-
digestivo, cardiovascular e urinário além de tos na negociação de sementes e a capacidade

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396 Pereira RC, Machado PB, Angelis-Pereira MC

produtiva, usando patentes para proteger abordagem reducionista, focada unicamente


seus direitos de propriedade intelectual. na maximização da produção e, consequen-
Argumenta-se, no entanto, que essa parti- temente, dos lucros.
cipação, principalmente nas pesquisas com Diante dessas constatações, insere-se o
biotecnologias emergentes, configura-se como conceito de biopoder, que ganhou destaque
uma forma de biopoder, podendo influenciar com as obras de Michel Foucault (França,
as direções estratégicas da ciência e distanciar 1926 – 1984), a partir da década de 1970, após
dos interesses públicos, sobretudo no que se uma série de cursos ministrados no Collège
refere à utilização das inovações para aumen- de France, nos quais o filósofo examinou as
tar a disponibilidade de alimentos, ao mesmo diversas estruturas políticas engendradas pelas
tempo que se garanta a SAN e o DHANA2. sociedades ocidentais, desde a antiguidade
Essas externalidades, além de não serem greco-romana até a contemporaneidade44.
incorporadas pela cadeia produtiva, ocasionam Nessa análise, Foucault argumenta que, a
graves consequência para a sociedade, espe- partir do século XVIII, passou a predominar
cialmente para os grupos populacionais em na sociedade um novo tipo de poder, mais sutil,
maior situação de vulnerabilidade – de classe, dotado de flexibilidade e elasticidade de suas
gênero, grupo étnico ou de inserção em terri- estruturas, como garantia de sua perpetua-
tórios e setores econômicos particulares9,41. ção na medida em que, mesmo que admita as
Por fim, ressalta-se ainda a contribuição formas de contestação, são mais facilmente
do agronegócio e da indústria de alimentos incorporadas e redirecionadas por todo o
para aumentar o já constatado distanciamento corpo social45.
humano em relação aos alimentos, marcado, Assim, diferentemente do poder soberano,
sobretudo, pela ruptura espacial e temporal que buscava aumento progressivo da rigidez
da produção e do acesso ao alimento, como de seus mecanismos, não se busca mais ter o
resultado da produção em larga escala e da poder sobre a vida, mas, sim, sobre a forma de
industrialização43. vida e sobre a qualidade de vida, para, dessa
forma, governar a vida posta em prática46.
Nas palavras de Foucault, isso significa obter
Compreendendo o sistema a subjugação dos corpos e o controle de
agroalimentar atual sob a populações47.
Foucault também estabelece que o poder
ótica do biopoder reprime, mas também produz efeitos de saber
e verdade. Assim, exercer o poder torna-se
Como argumentado anteriormente, os con- possível mediante saberes que lhe servem de
ceitos de SAN e do DHANA não se limitam a instrumento e justificação, que legitimam e via-
proporcionar à população acesso à alimentação bilizam a gestão dos corpos e dos desejos48,49.
em termos estritamente quantitativos, mas Tal estratégia precisa calcular, antecipar, medir
deve vincular a essa condição a necessidade e prever o que pode colocar a vida em risco, por
de que os alimentos sejam também seguros, de isso o biopoder tem nos mecanismos de pre-
qualidade e estejam disponíveis em condições visão, estatística e probabilidade ferramentas
permanentes, com respeito à soberania ali- importantes de mapeamento e diagnóstico já
mentar de cada região17. Complementarmente, que números, porcentagens e probabilidades
destaca-se que a IAN não é resultado apenas produzem discursos potentes50.
de baixa produtividade agrícola, mas predomi- É diante dessa análise que se propõe neste
nantemente das dimensões socioeconômicas ensaio a análise do sistema agroalimentar nos
e políticas envolvidas nessa dinâmica, que, moldes do agronegócio sob a ótica do bio-
muitas vezes, não garantem o DHANA pela sua poder, como caminho para compreensão de

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Contrapontos e inconsistências do discurso da produtividade do agronegócio e suas externalidades sob a ótica do biopoder 397

sua nocividade e das alternativas sustentáveis relações de poder em Foucault, das evidências
possíveis. Um modelo teórico dessa análise, sobre o agronegócio e seus impactos, obtidas
incluindo os aspectos sociais, políticos, eco- na revisão bibliográfica discutida anterior-
nômicos, ambientais e culturais associados, mente, e das possibilidades oferecidas por
é apresentado na figura 1. Esse modelo foi modelos sustentáveis.
construído por meio das interpretações das

Figura 1. Modelo de compreensão de sistemas agroalimentares sustentáveis e insustentáveis sob a ótica do biopoder e os
aspectos sociais, políticos, econômicos, ambientais e culturais decorrentes dessas relações.

Resistência ao Relações de poder


poder Biopoder

– Inclusão social – Êxodo rural

Modelos agroalimentares insustentáveis


– Redução da pobreza Aspectos sociais – Exploração do trabalho
Modelos agroalimentares sustentáveis

– Consciência crítica – Perpetuação de injustiças

– Aprofundamento da democracia – Estrutura patriarcal


e da participação popular – Domínio de grandes corporações
– Discussões em prol dos Aspectos políticos – Conflitos de interesse em espaços
Moralidade e ética

interesses públicos decisórios

Capital e lucro
– Reforma agrária e redistribuição – Aumento da concentração fundiária
da propriedade fundiária – Maximização da produção
– Expansão e fortalecimento da Aspectos econômicos – Maior rentabilidade dos canais
agricultura familiar produtivos

– Acesso aos recursos naturais e – Diminuição da biodiversidade


uso responsável deles – Exploração ilegal de áreas
– Conservação da biodiversidade
Aspectos ambientais
protegidas e de recursos naturais
– Resiliência ecológica

– Ruptura espaço-temporal dos


– Conservação do sistema de valores, sentidos e significados
práticas e símbolos de identidades Aspectos culturais da alimentação
– Garantia da soberania alimentar – Comoditização da comida

Autonomia Subjugação
Criticidade Controle dos corpos Submissão

Fonte: Elaboração própria.

Para Junges 51, o poder simbólico do prática atualmente, também existam manifes-
mercado, que suscita crescentes demandas tações de biopoder. Nesse caso, fortalecidas
de consumo, é um exemplo típico de biopoder. pela atuação das indústrias agrícola, agroquí-
No âmbito da saúde, por exemplo, o autor argu- mica e de alimentos, enquanto normatizadoras
menta que as multinacionais de biotecnologia e geradoras de necessidades por produtos,
comercializam produtos com um marketing desconsiderando suas externalidades negati-
simbólico que produz subjetividade, apresen- vas e sobrepondo princípios morais e éticos,
tando o consumo desses produtos como uma infringem-se direitos básicos e a autonomia
necessidade, levando à exigência jurídica ao dos sujeitos no que tange a suas práticas ali-
acesso a eles como um direito52. mentares, sua soberania alimentar e seu direito
De forma análoga à saúde, propõe-se que, à saúde ou, de forma mais ampla, seus direitos
no âmbito do sistema agroalimentar posto em humanos.

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398 Pereira RC, Machado PB, Angelis-Pereira MC

A partir desses conceitos, argumenta-se A Nota Técnica nº 42/2020, emitida


que os discursos produzidos no campo agro- pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e
alimentar colocam, frente a frente, conflitos Abastecimento (Mapa)54 para justificar a ne-
de interesse, que, nas palavras de Ferreira et cessidade de revisão do Guia Alimentar para
al.53, materializam-se em disputas políticas a População Brasileira editada pelo Ministério
travestidas de discussões epistemológicas abs- da Saúde em 201455, também é um exemplo de
tratas, estratégias de sedução e normatização, biopoder e confronto por interesses políticos
traduzindo instâncias de poder em confronto, e econômicos. Com embasamento científico
interesses econômicos, conflitos estruturais e limitado e contraditório, a apresentação de
embates políticos. críticas à classificação de alimentos de acordo
No Brasil, historicamente, isso esteve muito com o nível de processamento utilizada pelo
presente nas estratégias de consolidação do Guia (classificação NOVA) levou à manifes-
agronegócio como modelo sofisticado, efi- tação de vários membros e representantes da
ciente e produtivo da década de 1990, como sociedade e instituições de ensino e pesquisa
citado anteriormente. Segundo Sauer6, diante na área de alimentação e nutrição. Essas dis-
da dinâmica sociopolítica do meio rural bra- cussões destacaram a prevalência dos interes-
sileiro na época, marcada por disputas entre ses econômicos do Mapa em sobreposição aos
grandes proprietários e setores marginaliza- interesses da saúde pública ao desconsiderar a
dos, estabeleceu-se oposição imediata entre abordagem inovadora e os avanços que o Guia
os conceitos de agronegócio e de agricultura propõe na forma de lidar com os problemas
familiar considerada por esses grupos minori- atuais ligados à alimentação e à nutrição56,57,
tários como uma forma arcaica ineficiente de bem como os estudos que reconhecem que o
produção e cultivo da terra, especialmente pela elevado consumo de produtos ultraprocessa-
não incorporação de tecnologias. As estratégias dos pioram o quadro de SAN e levam à maior
de legitimação posteriores resultaram no uso incidência de DCNT37-39.
corrente e dominante do termo agronegócio No que tange à ruptura espacial e temporal
como um processo de modernização tecnológi- da produção e do acesso ao alimento, como
ca, simbolicamente e politicamente antagônico resultado da produção em larga escala e da
à agricultura familiar ou camponesa. industrialização e ultraprocessamento, argu-
Atualmente, várias outras situações podem menta-se que também existam novas dispo-
ser caracterizadas como formas de biopoder. sições nas relações de poder – características
Por exemplo, o domínio do mercado agrícola de biopoder – que dificultam a percepção da
e de alimentos por um grupo cada vez mais origem e/ou dos ingredientes que compõem
restrito de corporações, desde à produção de determinado alimento, mudando o caráter das
sementes até o varejo, passando pelos agro- interações no sistema alimentar e impedindo
tóxicos e outros insumos, que buscam, sobre- a autonomia dos sujeitos58.
tudo, aumento da rentabilidade e redução de Há ainda os conflitos de interesse na ciência,
custos pela padronização do que se produz e que levam à aprovação de medidas contro-
se consome globalmente. Essas corporações, versas em espaços decisórios públicos, como
por sua vez, assumem participação crescen- aconteceu em 2019 em um painel publicado
te no setor de pesquisa e desenvolvimento e pela ‘Annals of Internal Medicine’59 que reco-
na propriedade de tecnologias emergentes mendava que o consumo de carne vermelha
e de inovações, que, como argumentado an- e de produtos cárneos processados poderiam
teriormente, podem influenciar as direções ser mantidos devido à baixa qualidade das
estratégicas da ciência e das políticas públicas evidências disponíveis que trata dos benefícios
para objetivos diferentes das demandas da para a saúde de reduzir o consumo de carne.
população2. Mais tarde, essa publicação foi corrigida e

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Contrapontos e inconsistências do discurso da produtividade do agronegócio e suas externalidades sob a ótica do biopoder 399

retratada após o conselho editorial ser notifi- Educação como forma de


cado que o autor principal não havia declarado resistência ao biopoder
o recebimento de auxílio financeiro de uma
indústria do setor agrícola60. Se, por um lado, o conceito de biopoder permite
Outro exemplo são os dispositivos político- reconhecer a hegemonia capitalista e suas
-jurídicos de flexibilização do uso de agrotóxi- barreiras sobre a autonomia do sujeito, por
cos ou da legislação ambiental para permitir a outro, o pensamento de Michel Foucault traz
produção agrícola em terras indígenas5, além contribuições ao enfatizar o papel do sujeito
da escassez de subsídios para a agricultura e das coletividades nas lutas de transforma-
familiar e orgânica, em comparação à oferta ção das estruturas de poder vigentes, ou nas
de recursos alocados para o agronegócio. resistências ao poder. Sob certas condições, a
Ancorado pela lógica do capital financeiro, força dos grupos tem o potencial de contestar
percebe-se que o Estado vem mantendo e for- os sistemas hegemônicos de poder e de ter
talecendo os setores do agronegócio, além de êxito em modificá-los, quando opera e age
dar respaldo aos modelos de industrialização e segundo métodos e motivos bem definidos58.
comercialização de alimentos4,41 mesmo diante Nesse raciocínio, e tomando como referência
das evidências consistentes de seus efeitos o pensamento de Foucault de que exercer o
danosos sobre a saúde e o meio ambiente. poder torna-se possível mediante conhecimen-
De fato, algumas políticas públicas têm sido tos que lhe servem de instrumento e justifica-
mais voltadas para atender aos interesses de ção, é útil se preocupar com a forma como a
setores de produção do que às necessidades população é gerida e como se pode resistir aos
fundamentais da população, que, na prática, efeitos que essa gestão tem sobre ela49. Apesar
entende-se configurar a subjugação dos corpos da impossibilidade de eliminar totalmente as
e o controle de populações em Foucault47. relações de poder que regem a vida em socie-
Desse modo, é figurado o processo de moder- dade, argumenta-se que é possível aprimorá-las
nização da agricultura como conservador e ex- e se defender de seus efeitos nocivos mediante
cludente, ao tornar a posse da terra e a riqueza a educação dos sujeitos em prol da construção
cada vez mais concentrada, ao passo que apro- de autonomia e criticidade, abrindo-se, assim,
funda as desigualdades, sendo esses impactos novas possibilidades de ação.
ainda mais severos em grupos populacionais O Relatório da Comissão Internacional
em maior situação de vulnerabilidade61. sobre Educação para o século XXI para
Cabe ressaltar que a condição de vulnera- a Organização das Nações Unidas para a
bilidade, na ótica do biopoder, não se refere Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco)62
apenas aos grupos de maior exposição às ex- relata uma preocupação nesse aspecto ao
ternalidades, mas também a todos que têm apontar que:
dificuldades de reconhecer o problema, de
torná-lo público, de enfrentar as nocividades […] cabe à educação simultaneamente encon-
e de influenciar os processos decisórios que trar e assinalar as referências que impeçam as
os afetam9. Isto é, dificuldades de reconhecer pessoas de ficarem submergidas nas ondas de
e enfrentar as relações de biopoder. informações, mais ou menos efêmeras, que
Junges51 cita que o biopoder da atual tec- invadem os espaços públicos e privados e as
nologia em gerar habilidades no domínio da levem a orientar-se para projetos de desenvol-
vida é o desafio fundamental da bioética em vimento individuais e coletivos. À educação
sua tarefa de defender e proteger a vida. Os cabe fornecer, de algum modo, os mapas de
exemplos acima, no entanto, indicam que este um mundo complexo e constantemente agitado
seja também o desafio fundamental da saúde e, ao mesmo tempo, a bússola que permita
pública. navegar através dele.

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400 Pereira RC, Machado PB, Angelis-Pereira MC

A educação popular, nesse caso, apresenta- Na mesma perspectiva, a Educação


-se com potencial de transformação social, Alimentar e Nutricional (EAN) se coloca como
partindo do princípio do desenvolvimento estratégia essencial para promover o debate,
da consciência crítica, a qual preza pelo pro- atuar perante os modelos hegemônicos de
cesso de educação participativa, dialogada e produção e consumo de alimentos e viabili-
afetiva, valorizando seus saberes preexisten- zar movimentos de promoção da SAN e do
tes63. Alinhada aos princípios da educação de DHANA. Por envolver os aspectos biológi-
Paulo Freire, a educação popular vislumbra cos da alimentação e da nutrição juntamente
efeito conscientizador por meio da reflexão com fatores psicológicos, sociais, políticos,
coletiva a partir de elementos da própria vi- econômicos, culturais, espirituais/religiosos
vência e cultura, possibilitando a educação e éticos que formam os sujeitos68, a EAN, ao
transformadora e humanizadora, a partir do propor abordagens pedagógicas com parti-
debate sobre suas próprias circunstâncias64,65. cipação ativa, contextualizadas à realidade
No âmbito da presente discussão, isso inclui dos sujeitos, com luz à interação dos conhe-
a reflexão sobre os sistemas agroalimentares cimentos científicos e populares69, mostra-
hegemônicos e contra hegemônicos e suas -se, no campo da saúde pública, sobretudo na
externalidades, os conflitos de interesse que atenção básica, como uma potente estratégia
permeiam os processos decisórios, os agentes de atuação para educação e reflexão crítica
influenciadores das práticas alimentares de dos sistemas agroalimentares.
sujeitos e coletividades, além do reconheci- O próprio Marco de Referência de EAN para
mento da alimentação e da saúde como direitos as Políticas Públicas70 reforça essa discussão
humanos básicos e que requerem movimentos ao propor os princípios da EAN na promoção
em defesa do DHANA, da SAN e da soberania da alimentação adequada e saudável, em que
alimentar. se refere, entre outros fatores, à satisfação
No Brasil, um marco importante que contri- das necessidades alimentares sem o sacrifício
buiu para avanços nessa discussão foi a insti- de recursos naturais e que envolva relações
tucionalização da educação popular em saúde econômicas e sociais estabelecidas a partir da
na Política Nacional de Educação Popular em ética, da justiça, da equidade e da soberania.
Saúde (PNEP) em 2013, constituindo elemen- O ‘Guia Alimentar para a População
to norteador para ações participativas entre Brasileira’55 também se coloca como instru-
serviços de saúde, movimentos populares e mento importante nesse aspecto. Em uma de
espaços acadêmicos, na concepção da partici- suas orientações, a alimentação adequada e
pação social, valorização de diferentes saberes saudável é colocada como aquela derivada
e educação emancipatória66. de sistema alimentar social e ambientalmente
Alguns exemplos de sucesso incluem as sustentável, que diverge do modelo convencio-
políticas públicas relacionadas com os agrotó- nal predominante atualmente, principalmente
xicos no âmbito do SUS, como a Vigilância em no que se refere às técnicas de cultivo, uso de
Saúde de Populações Expostas a Agrotóxicos fertilizantes, controle biológico, conservação e
(VSPEA), que integra a Política Nacional de biodiversidade do meio ambiente, capilaridade
Vigilância em Saúde, e tem o objetivo de do mercado e distanciamento do consumidor.
executar Cabe colocar, no entanto, que ainda
existem aspectos estruturais que impedem a
ações de saúde integradas, compreendendo a verdadeira construção de sujeitos e coletivi-
promoção à saúde, à vigilância, à prevenção e ao dades críticas e autônomas, e, consequente-
controle dos agravos e das doenças decorrentes mente, a implantação efetiva de mecanismos
da intoxicação exógena por agrotóxicos67(7). de combate ao biopoder como os citados an-
teriormente. Dentre eles, merece destaque o

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Contrapontos e inconsistências do discurso da produtividade do agronegócio e suas externalidades sob a ótica do biopoder 401

próprio modelo educacional, ainda restrito De fato, a produção de alimentos oriundos


em concepções pedagógicas tradicionais que de base agroecológica ou orgânica têm re-
não promovem diálogo e problematização, cebido cada vez mais interesse e adesão dos
desde o ensino fundamental até o superior, consumidores, juntamente com o consumo de
impedindo a construção de sujeitos capazes alimentos in natura e minimamente proces-
de entender e contrapor esses discursos sados oriundos da agricultura familiar. Essas
hegemônicos. opções são vantajosas, não apenas consideran-
do a relevância nutricional e a capacidade de
garantir a SAN, mas também por sua represen-
Caminhos para a tação social, econômica, política, ambiental e
construção de modelos cultural, indo de encontro às recomendações
e orientações dadas pelos principais órgãos
sustentáveis e entidades voltadas para a saúde pública
mundial no que se refere a adoção e manu-
Entendendo que as condições existentes de tenção de práticas alimentares saudáveis e
desigualdade e pobreza são decorrentes da sustentáveis34,55.
ausência e inoperância de políticas públicas Ademais, ao contrário do que se argumenta,
sociais que assegurem o DHANA, a SAN e a além de serem viáveis para atender às deman-
soberania alimentar como fundamentos para das da população, os alimentos produzidos
a garantia do direito à cidadania17, cada nação por esses sistemas também podem ser mais
tem de estabelecer políticas que garantam baratos. O último Censo Agropecuário, de
acesso à terra, a serviços públicos adequados e 2017, por exemplo, aponta que, no Brasil, a
à proteção aos serviços extrativistas. Também agricultura familiar, mesmo sem os incentivos
deve fomentar práticas alimentares locais e governamentais, ainda produz a maior parte
o desenvolvimento sustentável, pautado na dos alimentos in natura que compõem a base
integridade dos recursos naturais, na resi- da alimentação dos brasileiros, como feijão
liência econômica, no bem-estar social e na (70%), mandioca (87%), milho (46%), arroz
boa governança71. (34%), café (38%), trigo (21%) e leite (60%). Por
Nesse cenário, a atuação profissional ética outro lado, o sistema agroindustrial entrega
e crítica tem papel importante não apenas na apenas 30% dos alimentos, mas usa 80% da
denúncia dos impactos negativos para a saúde terra arável e 70% da água para o uso agrícola21.
e o meio ambiente ocasionados pelo sistema Quanto ao preço, uma pesquisa realizada
agroalimentar hegemônico, mas também, ao pela Embrapa traz indícios de que os preços
mesmo tempo, no fortalecimento dos discursos dos produtos orgânicos em feiras livres são
sobre a necessidade de repensar as formas mais baixos ou iguais aos dos convencionais.
de produção e de consumo atuais, além do Na pesquisa realizada em Campinas, a média
apoio aos modelos sustentáveis e justos, como dos preços, analisados por unidade, tipo de
a agroecologia5,72. produto e local de venda, indicou que ali-
A agroecologia pode ser entendida como, mentos orgânicos adquiridos em feiras foram
aproximadamente 43% mais baratos que os
Um conjunto de conhecimentos sistematizados, adquiridos em supermercados. Para os alimen-
baseados em técnicas e saberes tradicionais tos convencionais, essa diferença foi de 2,6%74.
(dos povos originários e camponeses) que É importante ressaltar, porém, que essas
incorporam princípios ecológicos e valores evidências e iniciativas ainda são limitadas
culturais às práticas agrícolas, [hoje desca- e pontuais, precisando ser acompanhadas
racterizadas pelo agronegócio]73(59). por esforços e investimentos governamen-
tais, de instituições públicas e privadas e da

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402 Pereira RC, Machado PB, Angelis-Pereira MC

sociedade civil para promoção, aperfeiçoa- mesmo tempo que desconsideram princípios
mento e divulgação dessas experiências. É morais e éticos, infringem direitos humanos
diante dessas considerações que se reforça, básicos e a autonomia dos sujeitos, particular-
portanto, a necessidade de os profissionais das mente no que se refere às suas práticas alimen-
áreas da ciência agronômica, de alimentos e tares, à soberania alimentar e ao DHANA. O
da nutrição se fundamentarem cientificamen- biopoder do agronegócio, portanto, se coloca
te e, de forma crítica, compreenderem com como um dos maiores desafios a ser superado
maior abrangência os fatores que envolvem pela saúde pública em sua tarefa de promoção
a produção, o processamento e o consumo de e manutenção da saúde da população.
alimentos, possibilitando a atuação em prol da Por outro lado, essa análise permite trazer
verdadeira promoção da SAN, do DHANA e contribuições ao enfatizar que, por meio da
da soberania alimentar. educação, em especial a educação popular e a
EAN para a promoção da autonomia e da criti-
cidade, consegue-se, em longo prazo, construir
Considerações finais sujeitos e coletividades capazes de transformar
as estruturas de poder vigentes e de agir em
O agronegócio, apesar de, historicamente, ter prol de políticas públicas que fomentem prá-
tido sua imagem construída por discursos ticas justas, saudáveis e sustentáveis, dentro
que ressaltam sua sofisticação, eficiência e dos princípios da ética e da moralidade.
produtividade, além de suas externalidades
negativas sobre a saúde e o meio ambiente, não
tem se mostrado capaz de garantir a SAN da Colaboradores
população. Além das barreiras que impedem o
acesso aos alimentos em quantidade suficiente, Pereira RC (0000-0001-8795-6109)* contri-
o agronegócio, sobretudo pelo uso intensivo de buiu para a concepção, planejamento, análise
agrotóxicos, também não garante a disponibi- e interpretação dos dados, para a elaboração
lidade de alimentos seguros e de qualidade, ao do rascunho e revisão crítica do conteúdo, e
mesmo tempo que impacta o meio ambiente e para a aprovação da versão final do manus-
compromete a saúde da população, somado aos crito. Machado PB (0000-0001-7754-0134)*
seus impactos políticos, econômicos, sociais contribuiu para a análise e interpretação dos
e culturais. dados, para a elaboração do rascunho e para
A análise desse sistema agroalimentar sob a aprovação da versão final do manuscrito.
a ótica do biopoder destaca que a atuação das Angelis-Pereira MC (0000-0001-9203-0036)*
indústrias agrícola, agroquímica e de alimen- contribuiu para a concepção e planejamento,
tos, enquanto normatizadoras e geradoras de revisão crítica do conteúdo e aprovação da
consumo, domina os investimentos, a tecno- versão final do manuscrito. s
logia e o controle da capacidade produtiva, ao

*Orcid (Open Researcher


and Contributor ID).

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 391-406, JUN 2022


Contrapontos e inconsistências do discurso da produtividade do agronegócio e suas externalidades sob a ótica do biopoder 403

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Conflito de interesses: inexistente
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Suporte financeiro: não houve

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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 391-406, JUN 2022


ENSAIO | ESSAY 407

Exposição a agrotóxicos e desenvolvimento


de câncer no contexto da saúde coletiva:
o papel da agroecologia como suporte às
políticas públicas de prevenção do câncer
Exposure to pesticides and cancer development in the context of
public health: the role of agroecology as a support for public cancer
prevention policies

Marcia Sarpa1, Karen Friedrich2

DOI: 10.1590/0103-11042022E227

RESUMO Atualmente, a agricultura brasileira é caracterizada pelo crescente consumo de agrotóxicos e fer-
tilizantes químicos, inserindo-se no modelo de produção baseado nos fundamentos do agronegócio. As novas
técnicas de cultivo baseadas no agronegócio resultaram na expansão das monoculturas sobre os ecossistemas
naturais, com o consequente desmatamento, desequilíbrio e perda da biodiversidade; e o aumento da conta-
minação do solo, da água e do ar pelos agrotóxicos. No que tange à saúde humana, a literatura científica tem
demonstrado que a contaminação química decorrente do uso de agrotóxicos na agricultura implica adoecimento
dos trabalhadores rurais expostos ocupacionalmente aos agrotóxicos, dos moradores da área rural, além de
consumidores de alimentos contendo resíduos de agrotóxicos. Entre os efeitos sobre a saúde humana associados
à exposição a agrotóxicos, os mais preocupantes são as intoxicações crônicas, caracterizadas por infertilidade,
abortos, malformações congênitas, neurotoxicidade, desregulação hormonal, imunotoxicidade, genotoxicidade
e câncer. Sendo assim, neste ensaio, apresenta-se uma revisão narrativa com dados presentes na literatura
científica nacional e internacional referentes à associação entre a exposição a agrotóxicos e o desenvolvimento
de câncer no contexto da saúde coletiva e o papel da alimentação saudável e da agroecologia como suporte às
políticas públicas de prevenção do câncer.

PALAVRAS-CHAVE Agroquímicos. Carcinogênese. Doenças Crônicas Não Transmissíveis. Agricultura


sustentável. Política de saúde.

ABSTRACT Currently, Brazilian agriculture is characterized by the growing consumption of pesticides and
chemical fertilizers, forming part of the production model based on the fundamentals of agribusiness. The new
farming techniques based on agribusiness resulted in the expansion of monocultures over natural ecosystems,
with the consequent deforestation, imbalance, and loss of biodiversity; and the increased contamination
of soil, water, and air by pesticides. With regard to human health, the scientific literature has shown that
1 Instituto
Nacional de
chemical contamination resulting from the use of pesticides in agriculture implies the illness of rural workers
Câncer José Alencar occupationally exposed to pesticides, of rural residents, in addition to consumers of food containing pesticide
Gomes da Silva (Inca) – Rio residues. Among the effects on human health associated with exposure to pesticides, the most worrying
de Janeiro (RJ), Brasil.
marciasarpa@gmail.com
are chronic intoxications, characterized by infertility, abortions, congenital malformations, neurotoxicity,
hormonal dysregulation, immunotoxicity, genotoxicity, and cancer. Therefore, in this essay, we will present
2 Fundação Oswaldo Cruz
a narrative review with data from national and international scientific literature regarding the association
(Fiocruz), Escola Nacional
de Saúde Pública Sergio
between exposure to pesticides and the development of cancer in the context of public health and the role of
Arouca (Ensp), Centro healthy eating and agroecology as a support for public cancer prevention policies.
de Estudos de Saúde do
Trabalhador e Ecologia
Humana (Cesteh) – Rio de
KEYWORDS Agrochemicals. Carcinogenesis. Chronic non-communicable diseases. Sustainable agriculture.
Janeiro (RJ), Brasil. Health policy.

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 407-425, Jun 2022
408 Sarpa M, Friedrich K

Introdução na formulação8. Desse modo, estima-se que


o processo de identificar produtos agrotóxi-
A definição de agrotóxicos, segundo a legisla- cos capazes de aumentar o risco de Doenças
ção brasileira, inclui produtos aplicados para a Crônicas Não Transmissíveis (DCNT), incluin-
agricultura, jardinagem amadora, preservantes do o câncer, seja inadequado e insuficiente.
de madeiras, uso domissanitário e em medidas Em especial, para substâncias carcinogênicas
públicas para controle de vetores1. Antes da que podem atuar por meio de diferentes me-
aprovação e dependendo do uso pretendido, canismos, as misturas de agrotóxicos podem
o agrotóxico deve ser avaliado pelos órgãos da ter resultados determinantes na incidência
saúde, meio ambiente e agricultura. de câncer.
No Brasil, em 2019, ocorreram mudan- Por essa razão, ainda que efeitos mutagêni-
ças nas resoluções da Agência Nacional de cos e carcinogênicos sejam critérios proibitivos
Vigilância Sanitária (Anvisa) relacionadas com de registro de agrotóxicos, a exposição a esses
a regulação dos agrotóxicos. As alterações produtos representa um fator de risco real e
realizadas incluem rotulagem, avaliação de relevante para o desenvolvimento de câncer.
risco dietético, classificação toxicológica e
critérios para autorização ou cancelamento
de registro2-4. Câncer e fatores de risco
O sistema de classificação toxicológica para
fins de rotulagem considera apenas efeitos A Organização Mundial da Saúde (OMS)
agudos, sendo um limitante importante para afirma que o câncer é a segunda causa de óbitos
orientar a adoção de medidas de proteção efe- da população no mundo, sendo um grave pro-
tivas uma vez que danos crônicos não estão blema de saúde pública, que vem aumentando
incluídos nos critérios utilizados. Agrotóxicos ao longo dos anos, afetando, principalmente,
classificados como pouco tóxicos, em longo países da África, da Ásia e da América Latina,
prazo, podem ter potencial de causar danos especialmente por mortes prematuras9. De
crônicos graves como câncer, malformações acordo com dados do Instituto Nacional de
fetais e alterações hormonais, mesmo em Câncer (Inca), estima-se que, no triênio 2020-
níveis de dose baixos. Um exemplo é o herbi- 2022, ocorram 625 mil casos novos anualmente
cida glifosato, classificado como pouco tóxico de câncer no Brasil10.
para seres humanos (Classe IV)5, mas que foi O câncer é um conjunto de doenças carac-
categorizado pela Agência Internacional de terizadas pelo crescimento desordenado de
Pesquisa em Câncer como provavelmente células anormais que se formaram a partir
capaz de causar câncer em seres humanos de alterações genéticas acumuladas e pro-
(Grupo 2A)6. gressivas e com potencial de invadir outros
A revisão das normas não incluiu soluções tecidos. Danos nos mecanismos de regulação
para a inexistência de previsibilidade mínima do ciclo celular levam à proliferação celular
para revisão de registro de agrotóxicos em desordenada por causa da alteração de genes
uso. A publicação de novos estudos científicos que controlam o ciclo celular11. Essa perda
que revelam efeitos graves sobre a saúde nem de controle celular ocorre devido a altera-
sempre determinam mudanças regulatórias ções nas funções de genes que, por sua vez,
tempestivas. Mesmo quando a reavaliação to- podem acontecer por predisposições genéticas
xicológica é iniciada, não existe tempo máximo hereditárias e exposições a fatores de riscos
para sua conclusão7. ambientais11.
O processo de avaliação de registro de agro- Entre os 10 tipos de câncer mais incidentes
tóxicos não prevê a investigação das interações em homens e mulheres no Brasil (figura 1), en-
entre os diferentes componentes presentes contram-se aqueles também relacionados com

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 407-425, Jun 2022


Exposição a agrotóxicos e desenvolvimento de câncer no contexto da saúde coletiva: o papel da agroecologia como suporte às políticas públicas de prevenção do câncer 409

a exposição a fatores de risco ambientais, como físicos (radiações) e químicos (medicamentos,


agentes biológicos (vírus, bactérias, parasitas), benzeno, amianto, agrotóxicos etc.)9.

Figura 1. Distribuição proporcional dos dez tipos de câncer mais incidentes no Brasil estimados para o ano de 2020 por
sexo, exceto pele não melanoma

Fonte: Elaboração própria a partir de Instituto Nacional de Câncer, 202010.

Sendo assim, observar o contexto ambiental e/ou os hábitos de vida que incluem tabaco,
do sujeito acometido por câncer, identificando abuso de álcool, alta ingestão calórica e de
os diferentes fatores envolvidos no adoeci- alimentos processados, ultraprocessados e
mento, é fundamental para adotar medidas de contaminados, obesidade e sedentarismo são
prevenção eficazes. Apesar disso, a abordagem determinantes socioambientais para o processo
reducionista da monocausalidade considera de formação do câncer (figura 2). A redução
que fatores como o gene, o oncogene ou um dos principais fatores de risco por meio de
determinado fator de risco sejam o principal ou estratégias de prevenção poderia evitar cerca de
único responsável pela doença, impondo, assim, 40% de todos os casos de câncer13; por isso, as
grandes desafios para a adoção de medidas de políticas e os programas públicos de prevenção
prevenção mais efetivas12. A OMS reconhece devem estar voltados para direção, pois são
que, além dos fatores de risco listados, o modo mais eficazes e mais econômicas9.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 407-425, Jun 2022


410 Sarpa M, Friedrich K

Figura 2. Fatores de risco ambientais para o câncer

Fonte: Elaboração própria a partir de Silva et al., 201614.

A complexidade e a alta tecnologia envolvida O número de maneiras pelas quais agentes


no diagnóstico, acompanhamento e tratamento como micro-organismos, radiações, solventes,
dos casos de câncer representam custo finan- agrotóxicos, entre outros, contribuem para
ceiro cada vez mais elevado para o Sistema a formação de câncer é extenso e complexo,
Único de Saúde (SUS). Em torno de R$ 500 envolvendo diferentes mecanismos molecu-
milhões foram gastos anualmente entre 2002 lares e bioquímicos. Smith e colaboradores18
e 2004 com internações por neoplasias15; e, no reuniram todos esses mecanismos em dez ca-
ano de 2019, somente o Inca teve uma execução tegorias, que incluem: 1) ativação metabólica
orçamentária de cerca de R$ 422 milhões com ou eletrofilicidade; 2) genotoxicidade; 3) ins-
material de consumo, serviços e outros16. tabilidade genômica; 4) capacidade de causas
A perda de produtividade da força de traba- alterações epigenéticas; 5) estresse oxidativo;
lho também é um aspecto relevante sob o viés 6) inflamação crônica; 7) imunossupressão;
econômico como aponta um estudo que avaliou 8) modulação de receptor; 9) imortalização
o impacto das mortes prematuras, entre 15 e celular; e 10) alteração da proliferação celular.
65 anos, por câncer nos países do Brics (Brasil, Diferentes produtos agrotóxicos usados
Rússia, Índia, China e África do Sul), em que, concomitantemente ao longo do processo de
no Brasil, levaram a perdas de R$ 15 bilhões cultivo, assim como outros fatores inerentes ao
somente no ano de 201817. contexto de utilização desses produtos, podem
A eficácia das medidas de prevenção pri- desencadear um ou mais desses mecanismos
mária voltadas a diminuição ou eliminação de ação carcinogênica, aumentando as chances
da exposição a fatores de riscos ambientais de adoecimento. Desse modo, promover sis-
contribui para reduzir custos financeiros para temas alimentares saudáveis e sustentáveis,
diferentes setores da sociedade e o sofrimento que têm como expressões relevantes a forma
das pessoas envolvidas. de produção orgânica dos alimentos e de base

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 407-425, Jun 2022


Exposição a agrotóxicos e desenvolvimento de câncer no contexto da saúde coletiva: o papel da agroecologia como suporte às políticas públicas de prevenção do câncer 411

agroecológica, é uma forma de prevenção em documentos oficiais, incluindo políticas


estrutural de doenças como o câncer, tanto públicas nacionais e internacionais, de pos-
no sentido da proteção da biodiversidade, do síveis interfaces das práticas agroecológicas
(re)equilíbrio ecológico, da saúde do campo com a prevenção de câncer.
e da cidade, bem como pela possibilidade de
aumentar a disponibilidade e o consumo de
alimentos saudáveis. Agrotóxicos e câncer
Diante do exposto, o objetivo deste ensaio
é apresentar dados da literatura científica na-
cional e internacional referentes à associação Cenário internacional – Iarc e US EPA
entre a exposição a agrotóxicos e o desen-
volvimento de câncer no contexto da saúde A Iarc da OMS é uma agência especializa-
coletiva, assim como discutir as relações da da em pesquisa de agentes químicos, físicos
agroecologia como política pública de promo- e biológicos que possam ter relação com o
ção da saúde e prevenção do câncer. câncer. As monografias produzidas são ela-
Para isso, foi realizada uma pesquisa do- boradas a partir da compilação e análise de
cumental nas bases de dados da Agência estudos científicos internacionais, com seres
Internacional de Pesquisa em Câncer (Iarc) e humanos e animais e demais aspectos rele-
da Agência de Proteção Ambiental dos Estados vantes, como a patologia do tumor, fatores
Unidos (US EPA) para identificar os agro- genéticos, metabolismo, toxicidade do agente
tóxicos classificados como carcinogênicos; e, principalmente, os dez mecanismos de ação
um levantamento dos agrotóxicos associa- carcinogênica, citados anteriormente. Essas
dos ao câncer na coorte americana chamada avaliações buscam auxiliar na implementação
Agricultural Health Study (AHS), por meio da de políticas de prevenção ao câncer e no trei-
pesquisa dos artigos publicados entre os anos namento de pesquisadores em todo o mundo20. 
de 2016 e 2020 no sítio eletrônico da pesqui- No ano de 2015, a Iarc reavaliou e classificou
sa19; uma revisão narrativa da literatura cien- oito Ingredientes Ativos de Agrotóxicos (IAA)
tífica para identificar estudos epidemiológicos (quadro 1). Na monografia da Iarc volume 1126,
realizados no Brasil, usando os descritores: foram avaliados quatro inseticidas organofos-
câncer, estudos epidemiológicos e agrotóxicos; forados e o herbicida glifosato.
e a identificação, por intermédio da pesquisa

Quadro 1. Ingredientes Ativos de Agrotóxicos (IAA) recentemente classificados pela Iarc quanto ao seu potencial
carcinogênico

IAA Uso Evidências em humanos Evidências em animais Mecanismo de evidência Grupo


Lindano Inseticida Suficiente (linfoma não Suficiente (tumores Imunossupressão 1
Hodgkin) hepáticos)
DDT Inseticida Limitado (câncer de fí- Suficiente (DDT e seus Imunossupressão, 2A
gado, testículo e linfoma metabólitos DDE – tu- estresse oxidativo, pro-
não Hodgkin) mores em diversos liferação celular, efeito
sítios) estrogênicos
Glifosato Herbicida Limitada (linfoma não Suficiente (induz tumo- Capaz de induzir danos 2A
Hodgkin) res em diversos tecidos no DNA e cromossomas
em roedores) em células humanas e
de roedores

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 407-425, Jun 2022


412 Sarpa M, Friedrich K

Quadro 1. (cont.)

IAA Uso Evidências em humanos Evidências em animais Mecanismo de evidência Grupo


Malationa Inseticida Limitado (câncer de Suficiente (induz tumo- Genotoxicidade, danos 2A
(domiciliar e próstata e linfoma não res em diversos tecidos cromossômicos, sinali-
campanhas Hodgkin) em roedores) zação hormonal
de saúde
pública)
Diazinona Inseticida Limitado (linfoma Suficiente. (hepatocarci- Danos no DNA e cro- 2A
nãoHodgkin, câncer de noma em camundongos mossomas em células
pulmão e leucemia) e leucemia e linfoma humanas e de roedores
nãoHodgkin em ratos)
2,4-D Herbicida Limitada (linfoma não Suficiente. (induz sarco- Estresse oxidativo, imu- 2B
Hodgkin) ma e astrocitomas em nossupressão (in vivo e
animais) in vitro)
Parationa Inseticida Limitada Suficiente (adenoma Capaz de alterar a pro- 2B
bronquioalveolar, ade- liferação celular, morte
noma de célula folicular celular e suplementação
da tireoide, carcinoma de nutrientes
de células pancreáticas,
adenoma ou carcinoma
da adrenal)
Tetraclor- Inseticida Limitada Suficiente(induz ade- Capaz de induzir geno- 2B
vinfós noma e carcinoma toxicidade e alteração da
hepatocelular, adenoma proliferação celular
de células C da tireoide,
adenoma da adrenal)
Fonte: Elaboração própria a partir de Anvisa5 e Iarc20,21.

O herbicida glifosato e os inseticidas malationa mundialmente, existem evidências de carcino-


e diazinona foram classificados como prová- genicidade limitadas em humanos para o desen-
veis carcinógenos para humanos (Grupo 2A). volvimento de LNH, evidência convincente de
Tetraclorvinfós e parationa foram classificados causar câncer em animais de laboratório, danos
como possíveis carcinógenos para humanos cromossômicos e no DNA de células humanas e
(Grupo 2B), baseado em evidências convin- aumento de biomarcadores sanguíneos de danos
centes de que esses agentes causam câncer em cromossômicos (micronúcleo) em residentes de
animais de laboratório. O inseticida malationa, áreas próximas a utilização de glifosato.
usado na agricultura e para o controle de vetores Na monografia da Iarc volume 11321, foram
no ambiente doméstico e por meio da aplica- avaliados os inseticidas lindano, DDT (1,1,1-tri-
ção Ultrabaixo Volume (‘fumacê’), apresentou cloro-2,2-bis(4clorofenil) etano) e o herbicida
evidências limitadas de carcinogenicidade em 2,4-D (ácido 2,4-diclorofenoxiacético).
humanos de desenvolvimento de Linfoma não O lindano foi classificado como carcinogênico
Hodgkin (LNH) e câncer de próstata, além de para humanos (Grupo 1). O inseticida DDT foi
causar danos cromossômicos, danos ao DNA classificado como provavelmente carcinogêni-
e desregulação endócrina. Para o inseticida co (Grupo 2A), com evidências limitadas em
diazinona, foi encontrada evidência limitada humanos associadas ao câncer testicular, câncer
de carcinogenicidade em humanos para o de- de fígado e LNH. Estudos realizados em animais
senvolvimento de LNH e câncer de pulmão e de laboratório indicam evidências suficientes
fortes evidências de danos cromossômicos e ao para o desenvolvimento de tumores benignos
DNA. Para o glifosato, agrotóxico mais usado e malignos de fígado e aumento significativo da

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 407-425, Jun 2022


Exposição a agrotóxicos e desenvolvimento de câncer no contexto da saúde coletiva: o papel da agroecologia como suporte às políticas públicas de prevenção do câncer 413

incidência de adenoma do córtex adrenal, além em camundongos fêmeas, tendência positiva na


de desencadear imunossupressão, estresse oxi- incidência de astrocitomas cerebrais raros de
dativo em células humanas, ações estrogênicas, ratos machos, estresse oxidativo e imunossu-
antagonista de receptor androgênicos e ativadora pressão, com base em estudos in vivo e in vitro21.
de receptor de progesterona. Além da Iarc, a US EPA também utiliza um
O 2,4-D foi classificado como ‘possivelmente sistema de classificação de agentes carcinogê-
carcinogênico para os seres humanos’ (Grupo 2B) nicos. Os IAA, registrados no Brasil e avaliados
pela Iarc por causa de evidências inadequadas em pela agência americana e suas respectivas clas-
humanos (LNH e algumas leucemias), aumento sificações, são apresentadas no quadro 2.
da incidência de sarcoma de células reticulares

Quadro 2. Classificação dos Ingredientes Ativos de Agrotóxicos (IAA) registrados no Brasil quanto ao potencial
cancerígeno segundo a Usepa

Classificação Composto
Agência de Proteção Ambiental Americana (Usepa) – potencial cancerígeno
Grupo B – Provável cancerígeno para seres Daminozida (1991), Diurom (2004), Etridiazol, (terrazole) (1999),
humanos Hidróxido de Fentina (1990), Mancozebe (1999), Metiram (1999),
Procimidona (1991), Propargito (1992), Tiodicarbe (1996)
Provavelmente carcinogênico para seres Bentiavalicarbe Isopropílico (2005), Carbaril (2002), Clorotalonil
humanos (1997), Cresoxim-metílico (1999), Diclofope-metílico (2000), Epoxi-
conazol (2001), Espirodiclofeno (2004), Hexitiazoxi (2009), Imazalil
(1999), Iprodiona (1998), Iprovalicarbe (2002), Isoxaflutol (1997),
Metam-sódico (2009), Oxadiazona (2001), Oxifluorfem (2010), Pime-
trozina (1999), Piraflufem-etílico (2002), Pirimicarbe (2005), Propine-
be (2013), Tiacloprido (2012), Tiofanato-metílico (1999)
Provavelmente carcinogênico para seres Captana (2004)
humanos: com exposição a altas doses e
prolongadas; provavelmente não é carcino-
gênico para seres humanos em doses que
não causam citotoxicidade e hiperplasia
celular regenerativa
Provavelmente carcinogênico para seres Alacloro (1997), Lactofem (2006), Tiabendazol (2002)
humanos: em altas doses; provavelmente
não é carcinogênico para seres humanos em
baixas doses
Grupo C – Possível cancerígeno para seres Acefato (1985), Alfa-Cipermetrina (2012), Asulam (2001), Bifentrina
humanos (2003), Bromacila (1993), Carbendazim (1989), Cipermetrina (1988),
Dimetenamida (1995), Dimetoato (2002), Fipronil (1995), Linurom
(2001), Metidationa (1988), Pendimetalina (1992), Propiconazol
(1992), Tebuconazol (1993), Triadimefom (1996), Triadimenol (1988),
Trifluralina (1986), Zeta-Cipermetrina (1988)
Evidência sugestiva de potencial carcino- Acetocloro (2007), Amitraz (2006), Benzovindiflupir (solatenol)
gênico (2014), Ciflumetofem (2013), Clodinafope-Propargil (2006), Diclorana
(2006), Difenoconazol (2007), Ditianona (2006), Etiprole (2010),
Fenoxaprope-etílico (2013), Fluensulfona (2014), Ortossulfamurom
(2006), Picoxistrobina (2011), Sulfoxaflor (2012), Tembotriona (2007),
Tiazopir (2007)
Evidência sugestiva de carcinogenicidade, Bioaletrina (2003), Boscalida (2002), Buprofezina (2000), Clorfenapir
mas não o suficiente para avaliar o potencial (2003), Fluazinam (2001), Fosmete (1999), Malationa (2000), Penox-
de carcinogenicidade em humanos sulam (2011)

Fonte: Modificado de Friedrich et al.22.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 407-425, Jun 2022


414 Sarpa M, Friedrich K

Coorte americana – Agricultural entre a exposição ocupacional e ambiental aos


Health Study agrotóxicos e o desenvolvimento de alguns
tipos de câncer adulto e infantil, como LNH,
A relação entre a exposição a agrotóxicos e o leucemias, câncer de mama, câncer de prósta-
desenvolvimento de câncer tem sido estudada ta, câncer de bexiga, câncer de cérebro, entre
por pesquisadores independentes de diver- outros23. O quadro 3 apresenta os principais
sos países mediante estudos epidemiológicos resultados das associações entre agrotóxicos
(como coortes e relatos de caso), metanálises e e o desenvolvimento de câncer encontrados
revisões sistemáticas. Esses dados epidemioló- na coorte norte-americana AHS em estudos
gicos internacionais suportam forte associação publicados entre os anos de 2016 e 2020.

Quadro 3. Agrotóxicos associados a câncer segundo estudos de coorte da Agricultural Health Study (AHS)

IA Agrotóxico Tipo de câncer relatado RR (Risco Relativo) ou HR (razão de perigo)


2,4,5-T Mama25 HR=1,6; (IC95%=0,8-3,1; p-valorNS)
CCR26 RR=2,92 (IC95%=1,65-5,17; p-valor=0,001)
Alacloro Laringe27 RR=4,68 (IC95%=1,95-11,23; p-valor 0,001) (2º quartil)
RR=6,04 (IC95%=2,44 a 14,99; p-valor 0,001) (3º quartil)
RR=7,10 (IC 95% IC=2,58 a 19,53; p-valor 0,001) (4ºquartil)
LM27 RR=1,82 (IC 95%=0,85-3,87; p-valor=0,17 NS) (4º quartil)
Atrazina CCR26 RR=1,43 (IC 95%=1,00-2,03; p-valor =0,02) (4º quartil)
Benomil Mama25 HR=1,6 (IC 95%=0,9-2,7)
Clordano MM28 RR=2,71 (IC95%=1,12-6,55 p-valorNI)
Cianazina CCR26 RR=1,61 (IC95%=1,03-2,50 p-valor 0,02) (4º quartil)
Clordano CCR26 RRT=2,06 (IC95%=1,10-3.87 p-valor=0,02)
Coumafós Mama29 HR=1,5 (IC95%=0,9-2,5 p-valorNI)
Deltametrina LLC30 HR=1,48 (IC95%=1,06–2,07 p-valorNI)
Dicamba Fígado e DBI31 RR=1,80 (IC95%=1,26–2,56 p-valor<0,001) (4º quartil)
LLC31 RR=1,20 (IC95%=0,96–1,50 p-valor=0,01) (4º quartil)
Dimetoato Próstata32 HR=1,37 (IC95%=1,04-1,80 p-valor)
fonofos Mama29 HR=1,7 (IC95%=1,0-2,7)(esposas de aplicadores)
Glifosato LMA 33 RR=2,44 (IC95%=0,94-6,32 p-valor=0,11 NS)
RR=2,32 (IC95%=0,98-5,51; p-valor=0,07) (4º quartil 5 anos)
RR=2,04 (IC95%=1,05-3,97; p-valor 0,04) (3º tercil 20 anos)
Glifosato LBD34 RR=1,36 (IC95%=1,00–1,85 p-valorNI)
Heptaclor Mama29 HR=1,5 (IC95%=0,7-2,9 p-valorNI, NS)
Imazaquim Bexiga35 RR=1,54 (IC95%=1,05-2,26 valor<0,05)
Imazetapir Bexiga35 RR=3,03 (IC95%=1,46-6,29 p-valor=0.005) (4º quartil)
Lindano Glioma28 RR=4,45 (IC95%=1,36-14,55 p-valorNI)
Pâncreas28 RR=3,70 (IC95%=1,15-12,0 p-valorNI)
Heptaclor Bexiga35 RR=1,30 (IC95%=0,98-1.74)
DDT Bexiga35 RR=1,40 (IC95%=1,10-1,80)
Organoclorados Glioma28 RR=3,52 (IC95%=1,72-7,21 p-valorNI)
Clorpirifos Mama29 HR=1,4 (IC95%=1,0-2,0 p-valorNI)
CCR26 RR=1,51 (IC95%=1,02-2,22 p-valor=0,03)

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Exposição a agrotóxicos e desenvolvimento de câncer no contexto da saúde coletiva: o papel da agroecologia como suporte às políticas públicas de prevenção do câncer 415

Quadro 3. (cont.)

IA Agrotóxico Tipo de câncer relatado RR (Risco Relativo) ou HR (razão de perigo)


Paraquat CCR26 (IC95%=1,03-3,70; p-valor=0.04)].
Terbufos LNH30 meta-HR=1,18, IC95%=1,00–1,39);
Terbufos Mama29 HR=1,5 (IC95%=1,0-2,1)
Pendimentalina Pulmão36 HR=1,50 (IC95%=0,98-2,31 p-valor 0,003 (15 anos)
Dieldrin Pulmão36 HR=1,93 (IC95%=0,70-5,30)
Clorimuron etílico Pulmão36 HR=1,74 (IC95%=1,02-2,96)
Parationa Pulmão36 HR=1,17 (IC95%=0,51-2,68 p-valor 0,073 (4º quartil tempo)
HR=1,20 (IC95%=0,58-2,47p-valor 0,049 (4º quartil intensidade)
Fonte: Elaboração própria a partir de Agricultural Health Study, 201919.

Nas populações estudadas no AHS, ou seja, Trabalhadores expostos a agrotóxicos no


relacionadas com a aplicação de agrotóxicos, estado do Rio de Janeiro38 também apresen-
incluindo familiares, a mortalidade geral é di- taram risco de morte por câncer de cérebro
minuída quando comparada com a população elevado; ademais, segundo os autores, a ex-
geral24. No entanto, a mortalidade por alguns posição a agrotóxicos desempenhou papel
tipos de câncer específicos (próstata, linfo- importante no desenvolvimento da doença.
-hematopoiéticos e LNH) e doenças crônicas Outro estudo comparativo avaliou a taxa de
(Parkinson, Alzheimer e glomerulonefrite mortalidade por câncer de cérebro entre 1996 e
crônica) é mais elevada, indicando que, ao 2010 em adultos residentes na Região Serrana
mesmo tempo que a vida no campo traz bene- (rural) e na Região Metropolitana do estado
fícios para a saúde, a exposição a agrotóxicos é do Rio de Janeiro que tiveram variação anual
um fator prejudicial a essas populações. de mortalidade por câncer de cérebro de 3,8%
e -0,2% respectivamente38.
Estudos sobre exposição a A mortalidade por câncer de estômago entre
agrotóxicos e câncer realizados no agricultores entre 1996 e 2005 em indivíduos
Brasil com idade maior ou igual a 20 anos, residentes
no estado do Rio de Janeiro, foi avaliada em
No Brasil, não existem dados sistematizados outro estudo39. Os trabalhadores agrícolas
nem estudos epidemiológicos de coortes re- apresentaram um aumento no risco de morte
lativos a agrotóxicos e o desenvolvimento de por câncer de estômago (OR=1,42; IC 95%:
câncer; mas estudos de mortalidade, ecológicos 1,33-1,78) ajustada por sexo, idade, etnicidade
e de caso-controle vêm sendo desenvolvidos e e educação, associado ao aumento no uso de
apresentam resultados semelhantes aos des- agrotóxicos39.
critos na literatura científica internacional. Um estudo caso-controle baseado na morta-
Um estudo ecológico nos municípios da lidade por câncer de esôfago avaliou a associa-
Região Serrana do estado do Rio de Janeiro ção entre trabalho na agricultura e óbitos por
observou aumentos significativos da mor- essa doença em agricultores do Sul, no período
talidade por câncer de próstata, esôfago, entre 1996 e 2005. Os resultados indicaram
estômago, fígado, laringe e testículos em que, no geral, os trabalhadores da agricultura
agricultores expostos a agrotóxicos, entre tiveram um maior risco de morrer por câncer
os anos de 1979 e 199837. de esôfago (OR=1,37; IC 95%: 1,21-1,55)40. O

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 407-425, Jun 2022


416 Sarpa M, Friedrich K

câncer de esôfago não é comumente listado de Minas Gerais (Brasil) foi realizada a partir
entre os tipos de câncer associados à expo- de um estudo epidemiológico observacional
sição a agrotóxicos. De acordo com o Inca, do tipo caso-controle de base hospitalar45.
o consumo de bebidas muito quentes, como As informações sobre a exposição ocupacio-
mates, chás e cafés, pode aumentar a chance nal a substâncias químicas de pacientes com
do desenvolvimento de câncer de esôfago; e cânceres hematológicos e sem câncer foram
na região Sul, os homens têm de 2,5 a 5 vezes analisadas, sendo encontradas associações
mais chance de desenvolver esse tipo de câncer positivas estatisticamente significativas entre
devido ao hábito de consumir chimarrão com cânceres hematológicos e a exposição a agro-
alta temperatura41. No entanto, nesse estudo, a tóxicos (OR=3,976; IC 95%: 2,2-6,9), isto é, os
partir dos resultados encontrados, os autores trabalhadores que declararam ter tido exposi-
sugeriram que o câncer de esôfago deve ser ção a agrotóxicos apresentaram um risco quase
incluído entre os tipos de câncer etiologica- quatro vezes maior de desenvolver câncer
mente associados à agricultura40. hematológico45.
A prevalência de câncer de pele e lesões Estudo caso-controle de pacientes com
precursoras, entre 2010 e 2011, foi avaliada LNH em tratamento no Inca, no período
em moradores do município de Nova Palma de 2012 a 2016, encontrou um aumento de
(RS), onde os trabalhos agrícola e pecuário casos relacionados com exposição a agrotó-
foram identificados como principais atividades xicos quando comparados a pessoas sem a
econômicas. Os trabalhadores apresentaram doença. A chance de os expostos a agrotóxi-
maiores prevalências de lesões cutâneas pré- cos desenvolverem LNH foi maior do que a
-neoplásicas em relação às demais ocupações42. chance dos controles não expostos (OR=1,91;
No estado do Ceará, no período de 2000 a IC 95%=1,09-3,33; p-valor=0,05), ajustada
2010, um estudo apresentou a construção de por sexo, idade, local de residência, renda
séries históricas de indicadores de morbimor- familiar, nível de escolaridade, tabagismo
talidade e o cálculo das razões das taxas de e consumo de bebida alcoólica46.
morbimortalidade entre os municípios com As tendências de morbimortalidade por
alta exposição a agrotóxicos (Limoeiro do câncer infanto-juvenil associada ao uso
Norte, Quixeré e Russas) e municípios com de agrotóxicos no estado de Mato Grosso
histórico de pouco uso de agrotóxicos. Foi foram avaliadas em um estudo ecológico da
observada tendência de aumento significativo média das séries históricas de morbidade
(p = 0,026) da taxa de internação por neo- (2000–2005) e mortalidade (2000–2006)
plasias nos municípios com alta exposição a por câncer na faixa etária de 0 a 19 anos
agrotóxicos43. e o uso de agrotóxicos nos municípios do
Na fruticultura irrigada do Vale do São estado47. A média de uso de agrotóxicos nos
Francisco, onde o modelo tecnológico empre- municípios apresentou associação estatisti-
gado utiliza grande quantidade de agrotóxicos, camente significativa tanto para morbidade
o perfil clínico-epidemiológico dos pacientes (p=0,021) como para mortalidade (p=0,005)
com câncer em tratamento em um centro de por câncer infanto-juvenil (IC 95%).
oncologia de Juazeiro foi analisado. O perfil Também foi realizado um estudo para
clínico dos trabalhadores acometidos por avaliar as tendências de morbimortalidade
câncer seguiu um padrão próximo ao descrito por câncer infanto-juvenil, indicando que
para as regiões agrícolas, com prevalência de a exposição a agrotóxicos está associada
cânceres hematológicos44. à morbimortalidade por câncer infanto-
A avaliação de possíveis associações entre -juvenil em um polo da fruticultura irriga-
os cânceres hematológicos e a exposição ocu- da entre os residentes de Petrolina (PE) e
pacional a agentes cancerígenos na região sul Juazeiro (BA)48. Uma tendência significativa

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 407-425, Jun 2022


Exposição a agrotóxicos e desenvolvimento de câncer no contexto da saúde coletiva: o papel da agroecologia como suporte às políticas públicas de prevenção do câncer 417

no aumento das taxas de internação e no Importância da


aumento das taxas de mortalidade por neopla- agroecologia e do consumo
sias em crianças e adolescentes, em Petrolina e
Juazeiro, também foi observada em um estudo
de alimentos orgânicos na
quantitativo, ecológico e retrospectivo por promoção da saúde e na
meio da coleta de dados secundários conti- prevenção do câncer
dos no Sistema de Informação de Internação
Hospitalar (SIH) e Sistema de Informação No Brasil, um dos maiores mercados globais
de Mortalidade (SIM), no período de 2004 de uso de agrotóxicos, políticas públicas volta-
a 201348. das à redução ou à substituição do uso dessas
Ressalta-se que os resultados apresentados substâncias são medidas estratégicas de pre-
acima são apenas os dados de alguns estudos venção primária de câncer49, devendo incluir
ecológicos e de mortalidade conduzidos no a promoção da alimentação adequada e de
Brasil, nos quais a avaliação da exposição a sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis
agrotóxicos e o desenvolvimento de câncer se como aqueles de base agroecológica.
deram por meio da avaliação de determinados Os alimentos de origem vegetal apresentam
desfechos, isto é, mortalidade por câncer, taxa compostos funcionais e nutricionais que têm
de internação por neoplasias ou mediante com- importante papel na prevenção, inibição ou
paração entre municípios que utilizam muito reversão de alguns tipos de câncer, tais como
agrotóxicos com municípios que usam pouco de boca, faringe, laringe, pulmão e colorretal50.
agrotóxicos. Outros artigos sobre o tema foram Entretanto, pesquisas conduzidas nas últimas
publicados no Brasil indicando uma associação décadas apontam que os teores de compostos
positiva entre os estados com elevada venda bioativos e nutrientes específicos presentes
(consumo) de agrotóxicos e mortalidade por nesses alimentos podem variar de acordo
câncer, que não foram incluídos nesta breve com seu modo de produção51,52. O sistema
revisão. Estudos que avaliaram a incidência de de produção orgânico, livre de agrotóxicos,
alterações genéticas também não foram incluí- parece favorecer maiores teores de compos-
dos nesta pesquisa; tampouco foram incluídos tos funcionais em alimentos in natura e mi-
estudos de câncer em animais experimentais, nimamente processados cultivados no Brasil.
mesmo aqueles com evidências relevantes Alguns agrotóxicos atuam como inibidores
das principais características mecanísticas enzimáticos, podendo alterar o metabolismo
dos agentes cancerígenos (dez mecanismos secundário da planta e diminuir a produção
de ação carcinogênica). Portanto, os resulta- de compostos fenólicos, por exemplo53. Esses
dos apresentados acima não esgotam todas as compostos fenólicos podem inibir alguns tipos
informações sobre exposição a agrotóxicos e de câncer, como o de cólon, esôfago, pulmão,
evidências de câncer existentes no Brasil ou fígado, mama e pele, segundo estudos in vitro54.
os estudos mais relevantes associados aos pro- De acordo com um estudo de metanálise rea-
dutos mais utilizados no País para a produção lizado na Grã-Bretanha, alimentos orgânicos
de alimentos e commodities agrícolas. Apesar apresentam maiores teores de antioxidantes,
disso, estudos dessa natureza já apontam locais que são protetores contra o câncer, quando
prioritários para a capacitação e estruturação comparados àqueles produzidos de forma
do SUS local para diagnóstico e tratamento dos convencional51.
casos, de orientações aos agricultores voltadas O estudo de Reiss e colaboradores55 estimou
a medidas de proteção, mas, principalmente, que, anualmente, cerca de 20 mil casos de
a orientações técnicas agrícolas direcionadas câncer podem ser evitados aumentando-se
à promoção de práticas agrícolas saudáveis e o consumo de frutas e vegetais. Baudry et
sustentáveis. al.56, após um estudo de coorte com 68.946

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 407-425, Jun 2022


418 Sarpa M, Friedrich K

participantes, relataram que uma alta frequ- Ações Estratégicas para o Enfrentamento das
ência no consumo de alimentos orgânicos foi Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT)
associada à redução do risco de câncer. no Brasil 2011-2022 tem como objetivo:
Os sistemas agroecológicos estão em des-
tacada vantagem ante os sistemas agrícolas Promover o desenvolvimento e a implementa-
convencionais para a prevenção de DCNT, ção de políticas públicas efetivas, integradas,
inicialmente por garantirem a produção de sustentáveis e baseadas em evidências para a
alimentos sem o uso de agroquímicos e trans- prevenção e controle das DCNT e seus fatores
gênicos e, em seguida, por se articularem a de risco e fortalecer os serviços de saúde vol-
estratégias de promoção da saúde e de justiça tados para cuidados crônicos59(7).
socioambiental, considerando todo o caminho
do alimento do campo à mesa. Aspectos dos sis- O Plano inclui a vigilância ambiental e o
temas agrícolas convencionais, como o plantio acompanhamento de populações expostas a
de monoculturas, em especial as transgênicas, contaminantes ocupacionais e ambientais e
e a criação intensiva de animais, estimulam apresenta diversas ações relacionadas com
o uso de agroquímicos; o elevado processa- o combate ao uso de agrotóxicos, como: 1) o
mento dos alimentos contribui para adição de apoio a estudos de mapeamento de exposição a
gorduras trans, aditivos e conservantes; parte riscos ocupacionais e ambientais relacionados
também justificada pela extensão da cadeia com doenças crônicas; 2) o desenvolvimento e
que, em geral, tem a participação de grande a implementação de metodologias e estratégias
número de intermediários para o abasteci- de educação e de comunicação de risco sobre
mento de grandes redes varejistas; por fim, na os agravos decorrentes da exposição humana
ponta, tem-se hábitos não saudáveis, dificul- aos contaminantes ambientais, em especial, os
dade de acesso e encarecimento de produtos agrotóxicos; 3) a implementação de estratégias
vegetais e menos processados e alimentação continuadas de educação e comunicação em
não diversificada gerando doenças e crises saúde sobre as DCNT e seus fatores de risco
ambientais57. no âmbito dos serviços de saúde.
A Política Nacional para a Prevenção e
Políticas nacionais de promoção da Controle do Câncer60 determina o:
saúde e prevenção de doenças e
sistemas alimentares saudáveis e Fomento à eliminação ou redução da exposição
sustentáveis aos agentes cancerígenos relacionados ao tra-
balho e ao ambiente, tais como: benzeno, agro-
Diante do quadro de doenças crônicas e tóxicos, sílica, amianto, formaldeído (Art. 9º, I).
agravos não transmissíveis, incluindo o câncer,
o Ministério da Saúde estabeleceu diversas Ainda temos, no Brasil, a Política Nacional
políticas e planos relacionados com o en- de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora61, a
frentamento das doenças crônicas, em que Política Nacional de Alimentação e Nutrição62,
foram definidas estratégias a fim de eliminar a Política Nacional de Saúde Integral das
ou reduzir a exposição a agentes químicos, Populações do Campo, da Floresta e das
entre eles, os agrotóxicos. Águas63 e a proposta de Programa Nacional
A Política Nacional de Promoção à Saúde, de Redução de Agrotóxicos64, que também
por exemplo, foi lançada em 2006 e prevê se encontram fortemente alinhadas ao tema
o enfrentamento dos impactos dos agrotó- agrotóxicos e agravos crônicos à saúde.
xicos na saúde humana e no ambiente, por Por sua vez, a Política Nacional de Segurança
meio de práticas de promoção da saúde com Alimentar e Nutricional (Decreto nº 7.272, de
caráter preventivo e sustentável58; o Plano de 25 de agosto de 2010)65 visa:

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Exposição a agrotóxicos e desenvolvimento de câncer no contexto da saúde coletiva: o papel da agroecologia como suporte às políticas públicas de prevenção do câncer 419

Promover a segurança alimentar e nutricional, enfrentamento de problemas nos territórios.


bem como assegurar o direito humano à ali- Considerando os eixos de atuação dessas
mentação adequada em todo território nacional políticas, que dialogam com múltiplas dimen-
(Art. 2º) tendo como uma de suas diretrizes a sões dos processos da determinação social
promoção do abastecimento e estruturação de DCNT, promover os sistemas agroecoló-
de sistemas sustentáveis e descentralizados, gicos, considerando a multicausalidade de
de base agroecológica, de produção, extração, doenças como o câncer, é estratégico para a
processamento e distribuição de alimentos (Art. prevenção. Nesse sentido, as lições aprendi-
3º, II)65. das com a Política Nacional de Controle do
Tabaco67 no Brasil podem ser aplicadas ao
A Política Nacional de Agroecologia e enfrentamento da problemática em torno da
Produção Orgânica (PNAPO) foi instituída produção convencional de alimentos. Na ex-
por meio do Decreto nº 7.794, de 201266, com periência do controle do tabaco, o aumento de
o objetivo de: impostos sobre produtos à base de tabaco foi
responsável por uma diminuição significativa
Integrar, articular e adequar políticas, programas da prevalência de fumantes no Brasil e, conse-
e ações indutoras da transição agroecológica e quentemente, redução no número de doenças
da produção orgânica e de base agroecológica, crônicas tabaco-relacionadas69. Outro aspecto
contribuindo para o desenvolvimento susten- fundamental nessa política foi o investimento
tável e a qualidade de vida da população, por em estratégias de informação e comunicação
meio do uso sustentável dos recursos naturais acerca dos danos causados pelo fumo69.
e da oferta e consumo de alimentos saudáveis
(Art. 1º).
Considerações finais
A agricultura orgânica, de acordo com a
Lei nº 10.831, de 23 de dezembro de 200367, Os sistemas alimentares convencionais são
emprega métodos culturais, biológicos e caracterizados pelo uso de agrotóxicos, seja
mecânicos, dispensando o uso de materiais em aplicações individuais, seja em misturas,
sintéticos, organismos geneticamente modi- aumentando o potencial de desenvolvimen-
ficados (transgênicos) e radiações ionizantes, to de câncer. Os agrotóxicos carcinogênicos
em qualquer fase do processo de produção, atuam por meio de mecanismos celulares e
processamento, armazenamento, distribuição moleculares, como estresse oxidativo, imunos-
e comercialização. Por essa razão, é apontada supressão, inflamação crônica, entre outros.
como uma alternativa de produção no Brasil Estudos in vitro, in vivo e epidemiológicos dão
menos danosa que a agricultura convencional robustez a esse conjunto de informações. Os
que utiliza agroquímicos e organismos gene- trabalhadores do setor, assim como residentes
ticamente modificados. de áreas próximas de aplicação, apresentam
A agroecologia se diferencia de outras abor- maior risco de desenvolvimento de câncer
dagens de desenvolvimento sustentável por se de cérebro, de mama, de cólon, de estômago,
basear em processos territoriais que se voltam cânceres hematológicos, entre outros, como
a promover soluções contextualizadas aos mostrado em estudos ecológicos, relatos de
problemas locais68. Além disso, ela também caso, de coortes e organismos internacionais.
favorece o diálogo entre diferentes formas de A Iarc se baseia no conjunto de resulta-
conhecimento, científico, tradicional, prático dos dos ‘estudos epidemiológicos’ com seres
e local, promovendo assim a autonomia, a humanos, ‘estudos experimentais com animais
capacidade adaptativa e de proposição de de laboratório e estudos mecanísticos in vivo
soluções integradas e de longo prazo para o e in vitro’ encontrados na literatura científica

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 407-425, Jun 2022


420 Sarpa M, Friedrich K

aberta para classificar os agentes químicos com agroecologia como forma de garantir a pre-
relação ao seu potencial de causar câncer; em servação da biodiversidade, a promoção de
que a falta de evidências científicas suficientes direitos fundamentais e de promover a saúde
em seres humanos não significa a ausência de de forma sistêmica nos territórios.
risco. À luz do conhecimento científico atual, Os sistemas agroecológicos incorporam di-
a implementação de medidas precaucionarias mensões sociais e de direitos humanos, como
e preventivas é justificada e necessária. questões de gênero, da juventude e dos idosos
Medidas eficazes de prevenção do câncer e e de comunidades e povos tradicionais; assim,
de outras DCNT têm como um dos grandes de- o conceito de saúde vai além da produção de
safios o paradigma reducionista da monocau- alimentos sem agentes tóxicos que causam
salidade que muitas vezes orienta as diretrizes doenças no ambiente de trabalho e para os
regulatórias. Outro reducionismo comum ao consumidores, diminuindo ou neutralizando
debate é o da linearidade entre a dose e qual- outros estressores envolvidos na determinação
quer tipo de efeito, ainda que não seja possível socioambiental do processo saúde-doença.
determinar doses seguras para agrotóxicos Promover o desenvolvimento de sistemas ali-
genotóxicos, por exemplo. Por fim, a falta de mentares e sustentáveis pode ser uma medida
esclarecimento adequado sobre as incertezas estratégica de prevenção de câncer.
inerentes ao processo de avaliação de risco e Ante o exposto, torna-se relevante definir
de extrapolação para o contexto de exposição estratégias de prevenção do câncer e de outros
humana, incluindo o cenário de misturas de danos crônicos relacionados com a exposição
substâncias tóxicas em diferentes fontes, tem a agrotóxicos, promover políticas públicas em
outras implicações. Comprometem o direito à nível local, regional e nacional, com vistas à
informação e o debate qualificado na sociedade eliminação do uso de agrotóxicos nas lavou-
sobre o modo de produção predominante e os ras do Brasil e em busca de uma alimentação
sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis segura e saudável.
que podem ser estimulados, incluindo por
meio das escolhas diárias de consumo.
A relação entre câncer e agrotóxicos em Colaboradoras
pessoas expostas ambiental e ocupacional-
mente a esses produtos químicos no Brasil Sarpa M (0000-0001-8976-4653)* e Friedrich
e no mundo é preocupante. Por outro lado, K (0000-0002-3661-6179)*, contribuíram
a literatura também aponta a diminuição do igualmente para concepção, elaboração e
risco de doenças em grupos que consomem revisão do manuscrito. s
alimentos orgânicos, assim como o papel da

*Orcid (Open Researcher


and Contributor ID).

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Exposição a agrotóxicos e desenvolvimento de câncer no contexto da saúde coletiva: o papel da agroecologia como suporte às políticas públicas de prevenção do câncer 425

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Recebido em 28/09/2020
68. Food and Agriculture Organization of the United Aprovado em 31/05/2021
Conflito de interesses: inexistente
Nations. The 10 elements of Agroecology. Guiding
Suporte financeiro: não houve
the transition to sustainable food and agroecosyste-

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426 ENSAIO | ESSAY

Covid-19 e a fome: reflexões sobre um futuro


agroecológico
Covid-19 and hunger: reflections about an agroecological future

Letiane de Souza Machado1, Edna Linhares Garcia1

DOI: 10.1590/0103-11042022E228

RESUMO A pandemia de Covid-19 gerou grande impacto sobre a sociedade e a economia, desnudando
as faces da desigualdade no Brasil e traçando um caminho em direção à fome e à insegurança alimentar e
nutricional. Desde fevereiro de 2020, com notificação do primeiro caso no País, as medidas de isolamento
social e lockdown aumentaram as taxas de desemprego e desalento, assim como o fechamento de feiras
locais, que concediam acesso aos alimentos frescos às periferias, elevando o preço dos gêneros in natura
e aumentando o consumo de produtos industrializados. Essas questões trazem a reflexão da fragilidade
das cadeias de produção e consumo, que são longas, dependentes de insumos externos e de infraestrutura
para o transporte. Na perspectiva de subsidiar estratégias de enfretamento da fome, acesso à comida e
mudanças na lógica da produção alimentícia, foi realizada uma revisão da literatura científica e de textos
jornalísticos do período pandêmico. Este texto disserta sobre políticas de proteção social e de Segurança
Alimentar e Nutricional (SAN), relacionando com a potencialidade das práticas agroecológicas nesse
contexto, entendendo que a agroecologia tem em seus princípios a liberdade, a autonomia e a saúde,
dialogando com os conceitos de soberania alimentar e da luta pela equidade.

PALAVRAS-CHAVE Covid-19. Segurança alimentar e nutricional. Fome. Agroecologia. Abastecimento.

ABSTRACT The Covid-19 pandemic had a major impact on society and the economy, stripping the faces of
inequality in Brazil, and tracing a path towards hunger and food and nutritional insecurity. Since February
2020, with the notification of the first case in the country, social isolation and lockdown measures have
increased unemployment and discouragement rates, as well as the closing of local fairs, which granted
access to fresh food to the peripheries, raising the price of unprocessed food and increasing the consumption
of industrialized products. These issues reflect on the fragility of the production and consumption chains,
which are dependent on external inputs and transport infrastructure. A review of the scientific literature
and journalistic texts of the pandemic period was carried out with the perspective of subsidizing strategies
to fight hunger, access to food, and changes in the logic of food production. This text discusses policies of
social protection and Food and Nutritional Security, relating the potential of agroecological practices in this
context, understanding that agroecology has in its principles freedom, autonomy, and health, dialoguing with
the concepts of food sovereignty and the struggle for equity.

KEYWORDS Covid-19. Agroecology. Food and nutrition security. Hunger. Supply.

1 Universidadede Santa
Cruz do Sul (Unisc) – Santa
Cruz do Sul (RS), Brasil.
letianemach@gmail.com

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 426-437, Jun 2022 meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado.
Covid-19 e a fome: reflexões sobre um futuro agroecológico 427

Introdução Alimentação Adequada (DHAA), que reco-


nhece o direito fundamental de toda pessoa
Em fevereiro de 2020, a Covid-19 chegava a estar livre da fome9. No Brasil, alguns pro-
ao Brasil1, gerando impactos socioeconômi- gramas foram criados na busca pelo combate
cos, sobrecarregando o sistema de saúde e à fome, como o Programa de Aquisição de
mudando a forma como os brasileiros se rela- Alimentos (PAA)10 e o Programa Nacional de
cionam. O isolamento social e as políticas de Alimentação Escolar (PNAE)11. Contudo, com
distanciamento, com o fechamento temporário a pandemia, esses programas passaram por
de comércios e da indústria, culminaram na instabilidades e fragilizações, precisando de
elevação da taxa de desemprego de 11,2% no frentes de lutas sociais e políticas para serem
primeiro trimestre de 2020 para 12,6% no desempenhados parcial ou plenamente12,13.
segundo, e um aumento do número absoluto de Ambos os programas exercem um papel duplo
desalentados que chegou a 4,8 milhões nesse no enfrentamento da Insan, tanto para dispo-
período2. A pandemia vem expondo, agravan- nibilização e extensão do acesso aos alimentos
do as desigualdades sociais e enfraquecendo para os escolares e a comunidade quanto de
as redes de segurança social, ameaçando a fomento à agricultura familiar, como fonte de
saúde das populações vulnerabilizadas, que são renda para os pequenos produtores locais14-18.
também as mais afetadas pelo Sars-CoV-23,4. A pandemia trouxe reflexões acerca da fra-
A agricultura familiar também sofre a influ- gilidade do sistema de produção de alimentos
ência, pois, conforme a Articulação Nacional industriais, com longas cadeias e altamente
da Agroecologia (ANA), o fechamento do co- dependente de insumos externos e que, diante
mércio de alimentos prontos, a suspensão de uma crise, mostrou-se propenso ao colapso19,20.
feiras e a interrupção da alimentação escolar É fato que, há anos, os agroecologistas já
representam uma grande queda na renda ressaltavam a insustentabilidade e a depen-
dessas famílias5. dência da agroindústria como inevitáveis.
Segundo a Comissão Econômica para a A agroecologia surge como uma ferramenta
América Latina e o Caribe (Cepal) e confor- potente para o futuro, na busca por relações
me a Organização das Nações Unidas para a mais próximas e autônomas com a comida,
Alimentação e a Agricultura (FAO), devido à em um sistema alimentar justo, acessível e
Covid-19, em 2020, a extrema pobreza poderia equânime, com o olhar na saúde e atenuação
atingir 83,4 milhões de habitantes latino-ame- das desigualdades19.
ricanos, impactando diretamente os níveis de A busca pela autonomia dos povos emerge
fome e Insegurança Alimentar e Nutricional da luta pela soberania alimentar e Segurança
(Insan)4,6. Como um agravante à situação de Alimentar e Nutricional (SAN), na urgência da
extrema pobreza, foi possível identificar os manutenção de políticas públicas de fomento
reflexos da pandemia no aumento dos preços à agricultura familiar e transição agroecoló-
de alimentos in natura e minimamente pro- gica no campo, assim como pela modificação
cessados, assim como uma inflação menor do dos modos de produção visando reforçar as
que a média para os produtos ultraprocessa- formas locais de comercialização20,21. Dessa
dos7. Por conseguinte, há a precarização de forma, a partir desse breve levantamento e das
acesso a alimentos de qualidade, acarretando considerações iniciais, este texto visa proble-
o aumento do consumo de alimentos indus- matizar a relação entre a pandemia e a Insan,
trializados pela população que constituía a trazendo como ponto de reflexão as práticas
base da pirâmide de distribuição de renda8. agroecológicas, a autonomia, a liberdade e a
O acesso à alimentação adequada saudá- saúde. A condução do manuscrito compre-
vel é previsto na Declaração Universal de enderá uma análise crítica, com abordagem
Direitos Humano, com o Direito Humano à compreensiva-interpretativa, lançando mão de

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428 Machado LS, Garcia EL

políticas públicas de saúde, literatura científica vida impactam na capacidade de compra de


e registros jornalísticos do período pandêmico. alimentos baratos e de qualidade. O Auxílio
Emergencial instituído pelo governo federal
não garante as necessidades básicas da popu-
Pandemia e os impactos no lação mais pobre, e possui barreiras operacio-
acesso a alimentação nais para cadastro e recebimento21. As regiões
periféricas sofreram com o fechamento de
O contingente de famintos no mundo chegava feiras urbanas e mercados locais, distancian-
à marca de 820 milhões de pessoas em 201422, do o consumidor dos alimentos in natura e
condição essa que se agravará devido à atual minimamente processados. Tal fato cria uma
pandemia segundo pesquisas. Estima-se que o dependência das comunidades pobres a co-
número de pessoas vivendo abaixo da linha da mércios formais (por exemplo, supermerca-
pobreza cresça em 420-580 milhões nos pró- dos), que, possivelmente, são mais caros e com
ximos meses, o que equivale a um retrocesso necessidade de deslocamento pela distância,
de 30 anos na luta contra a fome6. No Brasil, acarretando maior exposição à doença8,25. Em
estima-se que o número de habitantes em situ- suma, essas populações ficam à mercê de um
ação de Insan grave chegou a 10,3 milhões em sistema alimentar de cadeia longa, que atua
201723. A extrema pobreza pode ser considera- na lógica capitalista da produção em escala,
da um fator de risco para a doenças infecciosas, da industrialização, concentração e controle
uma vez que a falta de consumo de alimentos dos meios de produção19,21,24.
nutritivos repercute nas condições imunes e de O Ministério da Economia lançou uma
saúde dos sujeitos22 – assim, causando maiores lista dos setores mais afetados pela pande-
prejuízos à saúde das populações pobres, so- mia, estando o transporte aéreo em segundo
cioeconomicamente vulnerabilizados e que lugar, e o setor da alimentação, em sétimo26.
ocupam regiões periféricas. Em tempos pandêmicos, as fragilidades das
O cenário pandêmico gerou uma crise no cadeias longas de abastecimento e distribuição
sistema neoliberal, desnudando as desigual- de alimentos são potencializadas pela inter-
dades socioeconômicas abismais, as políticas rupção do transporte e das importações, por
públicas insuficientes, a precarização do tra- bloqueios sanitários, afastamento da mão de
balho e os enfraquecimentos dos serviços e obra em grupo de risco e condições insalu-
equipamentos públicos. A sociedade, cooptada bres de trabalho que acarretam surtos19,21.
por esse modelo econômico, impôs à maioria Estima-se que, para abastecer uma cidade de
da população uma situação de vulnerabilidade 10 milhões de pessoas, necessita-se de 6 mil
ao Sars-CoV-2 e pouco ou nenhum acesso à toneladas de alimentos por dia e de um trajeto
saúde, potenciando o número de vítimas da de mil quilômetros de distância27. Com o con-
doença e agravando ainda mais as desigualda- tingenciamento do tráfego área e rodoviário,
des21,24. São esses indivíduos que têm maior a capacidade de importação e distribuição de
taxa de contaminação do vírus, impedidos de alimentos frescos foi limitada, em especial, às
exercer medidas de prevenção e isolamento áreas rurais e distantes de centros urbanos.
social na necessidade do trabalho informal e O setor pecuário, principalmente os aba-
presencial, habitando regiões de alta densidade tedouros de aves, é mais um exemplo da fra-
populacional, com maior número de pessoas gilidade da indústria. No Brasil e no mundo,
por moradia e problemas sanitários como o diversos abatedouros apresentaram surtos de
suprimento irregular de água25. Covid-19 entre os funcionários, devido à con-
Na dimensão do acesso ao alimento, a formação de trabalho ombro a ombro em estei-
perda do poder de compra, o aumento dos ras de produção, impossibilitando o isolamento
preços de produtos alimentícios e do custo de e colocando a saúde dos trabalhadores em

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Covid-19 e a fome: reflexões sobre um futuro agroecológico 429

risco. Na região Sul, os frigoríferos foram as- responsáveis pelo acesso contínuo aos ali-
sumidos como super-spreaders, ou seja, centros mentos com qualidade33. Não há dúvidas sobre
de propagação do novo coronavírus. Os surtos a limitação da ótica produtivista, que explica a
repercutiram no fechamento e/ou instauração fome apenas pela produção insuficiente de ali-
de férias coletivas, entre outras medidas, limi- mentos para suprimento global. Outros fatores
tando a distribuição desse alimento28. Essas também estão implicados, como a distribuição
informações ratificam e evidenciam a insta- desigual de renda e de alimentos, o prolonga-
bilidade do sistema de produção de alimentos mento da cadeia de produção que encarece o
de cadeia longa, os quais são insustentáveis e custo e prejudica a qualidade, o desperdício de
propensos ao colapso em eventos como uma alimentos pela indústria, as políticas públicas
pandemia19,20. sucateadas, entre outros19,34,35.
Em setembro de 2020, o preço dos alimen- A agricultura familiar e a agroecologia
tos atingiu o maior valor em seis meses, mesmo emergem como um caminho para melhoria
período em que se apresentaram os primeiros do acesso e da qualidade dos alimentos, e pela
contágios por Sars-CoV-229. Em contrapartida, necessidade do encurtamento das cadeias de
a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária produção. A pandemia do novo coronavírus
(Embrapa) afirma que, em 2020, as exporta- provocou a reflexão sobre a insustentabilidade
ções não foram afetadas e ainda expressaram dos modos de consumo atuais, bem como a
um aumento de 13,3% em comparação ao ano necessidade da independência da cadeia de
de 201930. O crescimento das exportações abastecimento local das grandes indústrias.
atingiu diretamente o consumidor brasilei- Fomentar um sistema que preze pelas relações
ro: em setembro de 2020, o preço do arroz econômicas justas, pela alimentação adequada
alcançou a maior alta acumulada desde 2008 e saudável é uma luta que vem sendo travada
em São Paulo. Sem uma política de controle pelos agroecologistas há décadas19-21.
das exportações e com a escassez do produto
no mercado, as importações dispararam em
310%31. Como alternativa ao comércio conven- Fome e políticas públicas
cional, o Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra (MST), que é o maior produtor de O contexto político brasileiro atual, de enfra-
arroz orgânico da América Latina, manteve quecimento de políticas de proteção social e
os preços de venda, mesmo com o aumento de SAN, a exemplo da extinção do Conselho
da demanda pelo produto32. As iniciativas de Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional
produção orgânica e agroecologia estão inti- (Consea), agrava o estado de saúde e nutri-
mamente ligadas ao sistema alimentar local, cional da população socioeconomicamente
em que o produtor/cooperativa distribui os vulnerabilizada. Quando abordada a temática
alimentos localmente, sem atravessamentos Segurança Alimentar (SA), deve-se ter um
das indústrias, chegando às comunidades em olhar crítico sobre os momentos históricos e
menor tempo, com melhor qualidade, melhor as instituições que se relacionam com a sua
custo-benefício para população e remuneração origem. Durante a primeira e a segunda guerra
para os agricultores12,19,20. mundial, associava-se seu conceito com capa-
A agricultura familiar ocupa a linha de cidade de cada país produzir seus alimentos;
frente no enfrentamento da derrocada eco- e após a criação da Organização das Nações
nômica e da Insan agravadas pela pandemia20. Unidas (ONU), com a disponibilidade suficien-
Mesmo com as políticas públicas insuficientes te de alimentos. Esses preceitos subsidiaram a
que priorizam a exportação, 80% dos alimen- chamada Revolução Verde, que era alicerçada
tos produzidos no País são provenientes dessas na necessidade de alta produção da agroin-
famílias, sendo, assim, uma das principais dústria, lançando mão de novas estratégias de

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430 Machado LS, Garcia EL

produção, como o uso de variedades genéticas, cultura alimentar, contribuem para uma ali-
aplicação de insumos químicos e técnicas in- mentação balanceada e diversa, impulsionam
tensivas de utilização de solo visando ampliar as economias locais, preservam a agrobiodiver-
a produtividade. Contudo, apesar da intensi- sidade e fazem uso sustentável dos recursos
ficação da Revolução Verde e do crescimento naturais33. No Brasil, mais de 15 milhões de
de estoques de alimentos, paradoxalmente, o pessoas são produtoras rurais, em um total
número de famintos não diminuía, uma vez de 5 milhões de estabelecimentos, nos quais
que o crescimento da produção não resultou no 73% dos trabalhadores possuíam laço familiar
aumento da garantia de acesso aos alimentos36. com produtor39.
Por fim, nas décadas de 1980 e 1990, o A agroecologia faz interlocução direta com a
conceito de SA passou a incorporar também SAN e com o DHAA. Sua inserção nas políticas
aspectos sanitários, de qualidade (nutricional, públicas teve início com Lei da Agricultura
biológica e tecnológica); e, como um impor- Familiar (Lei nº 11.326/2006)40, que deter-
tante posicionamento, incluiu preceitos da minou linhas de crédito para as famílias e
produção sustentável, equilibrada, cultural- previu o manejo sustentável do ambiente. Em
mente adequada e o acesso à informação. Essa 2012, com a instituição da Política Nacional de
visão corrobora o DHAA conforme previsto na Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO),
Declaração Universal de Direitos Humanos, e em 2013, com a criação do Plano Nacional de
que reconhece o direito de todos à alimenta- Produção Orgânica e Agroecologia (Planapo), o
ção adequada e o direito fundamental de toda governo firmou um compromisso de fomento a
pessoa a estar livre da fome. Na Conferência desenvolvimento sustentável, transição e pro-
Internacional de Nutrição, em 1992, foi agrega- dução agroecológica. Esses documentos foram
do o aspecto nutricional e sanitário à definição, o resultado da luta dos movimentos sociais
a qual passa a ser denominado SAN9,36. em parceria com órgãos governamentais, que
No Brasil, o conceito de SAN foi consolida- dialogaram na luta, na oferta e no consumo de
do na II Conferência Nacional de SAN, com alimentos de qualidade, com produção pautada
um direito regular e permanente ao acesso a na justiça social, na saúde da população e na
alimentos de qualidade, assim como a prática soberania alimentar41.
agrícola sustentável. Foram criados, em 2006, O movimento agroecológico se alicerça na
a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e busca pelo fortalecimento da agricultura fa-
Nutricional (Losan) e o Sistema Nacional de miliar, na criação de comunidades que visem a
Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan), emancipação e sistemas participativos justos,
em que se reafirmou esse conceito e tornou a para proteção e promoção da saúde da popu-
promoção e a garantia do DHAA como objeti- lação e do ambiente34,35,42. Esses pilares sus-
vos e metas da Política Nacional de Segurança tentam a perspectiva de que a agroecologia se
Alimentar e Nutricional (PNSAN). Em 2010, configura como uma alternativa aos sistemas
aprovou-se a Emenda Constitucional nº 64, agrícolas convencionais, construindo siste-
a qual introduz a alimentação como direito mas resistentes que suportem crises, surtos
social36-38. de pragas e pandemias. Para isso, a agricultura
A erradicação da fome e a garantia de SAN deve ser reconstruída pautada no consumo
estão diretamente ligadas a modos de produção local, na territorialização, livre de insumos
diversos, sustentáveis e seguros, advindos da químicos, aliada à produção e consumo sus-
agricultura familiar, que se configura como tentáveis e que respeitem a comunidade e o
importante chave para o alcance de SAN22. ambiente19-21.
Por se tratar de núcleos familiares pequenos, Na conjuntura atual, com as incertezas
detentores de recursos próprios e força de geradas pela pandemia e com a necessidade
trabalho, tendem a perpetuar e preservar a de reivindicações emergenciais para promoção

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Covid-19 e a fome: reflexões sobre um futuro agroecológico 431

da SAN das populações vulnerabilizadas, assim fechamento dos comércios e isolamento


como proteção da renda das famílias rurais, social, a pandemia ocasionou uma crise dos
foram organizadas frentes de negociação para canais de comercialização, necessitando de
o fortalecimento das políticas públicas exis- uma rede local que interligasse o agricultor
tentes, como, por exemplo, o PAA e o PNAE. à população15.
Ambos os programas preveem um incentivo Como estratégia econômica, o programa se
aos produtores orgânicos e agroecológicos, destaca por ser uma ferramenta já existente e
permitindo um acréscimo de até 30% no valor operante, de efeitos rápidos e de alta capilari-
dos alimentos em relação aos produtos de agri- zação do sistema alimentar, sendo um potente
cultura convencional, tendo como objetivo a instrumento para a mitigação dos efeitos da
promoção e a valorização da biodiversidade, pandemia na SAN das populações urbanas e
dos hábitos alimentares saudáveis em nível rurais. O programa promove a estruturação
local e regional10,11. de cadeias produtivas curtas e o acesso do
Para o entendimento da importância da produtor a novos mercados, além da expan-
construção e da manutenção dessas políticas são do poder de compra das famílias rurais
públicas no Brasil e de como sua implemen- que auxilia no desenvolvimento da economia
tação impactou diretamente na redução dos local, apresentando-se como uma estratégia
níveis de Insan no País, faremos uma incursão central contra o desabastecimento, na garantia
nos dados coletados pelo Instituto Brasileiro de renda ao produtor e combate à Insan no
de Geografia e Estatística (IBGE). Do ano de campo e na cidade14,43.
2004 a 2013, houve uma redução significativa Apesar de representar uma forte alternativa
do número de pessoas em Insan, passando para mitigação da fome no Brasil, o PAA vem
de 45% da população para 25,8%. Quanto à perdendo investimento nos últimos anos. A
população em Insan grave, pode-se observar partir de 2013, houve um declínio nos investi-
uma queda de 8,2% para 3,6% nesses anos. mentos; e, em 2015, de maneira mais abrupta.
Contudo, em 2017, no contexto de enfraqueci- No ano de 2018, o programa recebeu em torno
mento de políticas públicas, os níveis de Insan de R$ 253 milhões, valor menor do que o em-
dos brasileiros alcançou o maior grau desde pregado no seu ano de estreia (2003). Para
2004. Em suma, os dados de 2017 apontam 2020, a ordem dos recursos previstos era ainda
que 41% dos brasileiros estavam em diferentes menor, cerca de R$ 101 milhões43. Em res-
níveis de Insan, e, aproximadamente, 5% da posta aos cortes e da emergência de medidas
população, em Insan grave; na população rural, de proteção à saúde da população durante a
essa taxa sobe para 8,4%23. As famílias rurais pandemia, 877 entidades civis assinaram um
são as mais atingidas pela fome, chegando a manifesto pressionando o governo a ampliar
índices de Insan grave até 190% maior quando os recursos para garantia de renda e segurança
comparada à população urbana. financeira aos agricultores familiares, além
O PAA, que está inserido na PNSAN, é um da instituição de um sistema de regulação de
programa central no combate à Insan, uma preços e disponibilidade dos alimentos. Entre
vez que proporciona um benefício de mão as demandas das entidades, estão o reestabe-
dupla à população vulnerabilizada do campo lecimento do PAA e a distribuição de cestas
e da cidade. Tem como principais objetivos básicas proveniente do programa para famílias
apoiar os pequenos produtores rurais na em situação de vulnerabilidade social12.
comercialização e escoamento da produção, Como resposta à pressão política, o governo
além de garantir o acesso à alimentação e à federal publicou, em 2020, a Medida Provisória
nutrição em qualidade e quantidade adequadas nº 957, que financiaria um aporte suplementar
à população. Esse programa é um dos focos de R$ 500 mil ao PAA44. Segundo Sambuichi15,
das reivindicações sociais, uma vez que, pelo com esse valor, poderiam ser adquiridas 199

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432 Machado LS, Garcia EL

mil toneladas de alimentos de mais de 84 mil A paralisação do PNAE ante a Covid-19 re-
agricultores do País, fomentando a economia fletiu na queda da renda dos pequenos produ-
de, aproximadamente, 2.600 municípios e ali- tores, haja vista a interrupção do repasse de
mentando 9,3 milhões de pessoas. O estudo verba para a manutenção da cadeia produtiva
aponta a medida como insuficiente, uma vez local. Diante desse cenário, os agricultores
que está distante dos valores aplicados no sofreram perda de produção, além das in-
ápice do programa em 2012. O valor corri- certezas sobre futuras safras, planejamento
gido e correspondente ao ano de pico seria de plantio e aquisição de insumos5,13. Como
de R$ 1 bilhão, o que beneficiaria 12 milhões estratégia excepcional para o enfrentamento
de consumidores com a compra de 420 mil da pandemia, o governo federal sancionou a
toneladas de alimentos, beneficiando 208 mil Lei nº 13.987/2020, em que autoriza a distri-
agricultores de 3.366 municípios brasileiros. buição de gêneros alimentícios às famílias
Esse investimento funcionaria como estra- com filhos matriculados na rede pública de
tégia para combater a Insan, estimulando as educação. Assim, até julho de 2020, mais de
economias locais e a cadeia de produção de 10 milhões de kits de alimentos foram entre-
alimentos saudáveis. gues aos escolares17. Cabe ressaltar que os
Outro programa de importância fundamen- municípios e as regiões não são obrigados,
tal na garantia da SAN durante a pandemia, e pela nova lei, a manter a execução do PNAE
que vem enfrentando diversos desafios pela durante a pandemia. Ainda, a lei não dispõe
suspensão das aulas na rede pública de ensino, de regras específicas para elencar a população
é o PNAE. Anualmente, o PNAE alimenta 41 que pode acessar esse benefício, bem como
milhões de crianças brasileiras, estendendo-se sobre a obrigatoriedade da compra de gêneros
aos alunos em todas as etapas da educação alimentícios provenientes da agricultura fami-
pública e filantrópica. Com o fechamento liar, conferindo ao Conselho de Alimentação
das escolas para contenção da Covid-19, a ali- Escolar (CAE) essa tarefa16.
mentação escolar, que, por vezes, configura-se Entende-se que cada território tenha
como principal e/ou única fonte de alimentos, demandas específicas para sua população,
foi interrompida, precarizando o acesso à ali- baseadas nas características geográficas,
mentação e prejudicando o orçamento das socioeconômicas e culturais. Entretanto, o
famílias mais vulnerabilizadas13,18. acesso aos alimentos é um direito garantido
O PNAE é a política pública de SAN mais por lei, que deveria ser impresso em caráter
antiga do Brasil e garantia do DHAA. O pro- universal para todas as populações, em espe-
grama objetiva ofertar alimentação escolar cial, aquelas contempladas pelo PNAE. Assim,
adequada que favoreça o desenvolvimento dos alguns critérios de distribuição de alimentos
escolares, facilite a aprendizagem e melhore o no contexto da pandemia poderiam ser pre-
rendimento escolar dos estudantes. Ainda, be- vistos em nível federal, como a inclusão das
neficia a economia e a estruturação produtiva famílias que recebem Auxílio Emergência
da agricultura familiar, uma vez que determina e Bolsa família, aumento dos recursos para
que 30% dos recursos destinados aos estados cidades com baixo ou muito baixo com Índice
e municípios para alimentação escolar seja de Desenvolvimento Humano (IDH), entre
empregado na compra direta de alimentos outros. Outro ponto é a demanda por acréscimo
provindos da agricultura familiar local, priori- do valor repassado aos municípios e estados,
zando as comunidades assentadas da reforma compreendendo as dificuldades logísticas, o
agrária, indígenas e quilombolas. Ademais, aumento dos preços dos alimentos e a crise
visando estimular o desenvolvimento susten- financeira agravada durante a pandemia14,16.
tável, prioriza e acresce em 30% o valor pago Os dados discutidos neste subtítulo refor-
por produtos orgânicos e/ou agroecológicos11. çam a necessidade da luta pelo investimento

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 426-437, Jun 2022


Covid-19 e a fome: reflexões sobre um futuro agroecológico 433

em políticas públicas capazes de promoveram e da globalização econômica uma vez que


a SAN, combatendo a fome e a Insan e propor- questiona as posições de poder, configurando-
cionando à comunidade rural qualidade de -se como uma alternativa aos modelos con-
vida e melhoria da sua renda. Cabe ressaltar vencionais, pautada na ecologia, na questão
que a pandemia jogou luz nas desigualdades político-social e na pluralidade. O movimento
abissais do País, principalmente quando se agroecológico é essencial na luta pelo fortale-
observam os indicadores de saúde e do direito cimento da autonomia da agricultura familiar,
à uma alimentação adequada e saudável14,15. da liberdade, equidade e da garantia de saúde,
Como possibilidade para mitigação dos im- assim como no enfrentamento da expansão de
pactos da pandemia e dos últimos cinco anos grandes empresas agrícolas. Nesse sentido,
de retrocesso dos direitos sociais, evidenciam- conecta-se com a dimensão social reafirmando
-se as práticas agrícolas pautadas na susten- seu caráter popular e social35.
tabilidade, na soberania e na autonomia dos A soberania alimentar dos povos é um dos
povos, assim como na qualidade dos alimentos. princípios que alicerçam a agroecologia, cujo
Estudos apontam o fomento da agricultura conceito abrange o reconhecimento do direito
familiar e da agroecologia como chave para das famílias e das comunidades a elegerem
um futuro mais justo, buscando aproximação suas estratégias de produção e consumo de
e autonomia da relação com a comida, levando alimentos. Sob a perspectiva da soberania ali-
em conta as diferenças e as desigualdades das mentar, as práticas ecológicas sustentáveis
populações19-21. se fazem primordiais para a preservação da
sociobiodiversidade e para a promoção da
SAN, na medida em que reconhecem os saberes
O futuro agroecológico, tradicionais, a importância das relações co-
para concluir munitárias e da estruturação de sistemas
alimentares locais34,42. Perante a pandemia
A fundamentação do conceito da agroecologia de Covid-19, que culminou em uma crise
se alicerça na incorporação dos saberes popu- mundial, compreende-se que a emergência
lares tradicionais agrícolas com a área técnica de um sistema agroalimentar com alicerces na
de manejo dos recursos ambientais. Sendo SAN e soberania alimentar dos povos se faça
assim, a produção de alimentos de base agro- necessária para enfrentamento das futuras
ecológica não se restringe à negação do uso de crises19-21.
agrotóxicos, mas é construída na promoção do A Covid-19 afetou o setor de produção de
uso de recursos naturais de forma sustentável alimentos, em especial, os agricultores fami-
e na perpetuação de práticas socioculturais liares que sofreram prejuízos econômicos pela
dos agricultores. É um campo de estudo que interrupção das aulas escolares, fechamento
engloba não só as ciências biológica e ambien- de feiras, restaurantes, entre outros. Agravou
tal como também o resgate das práticas socio- as desigualdades sociais, a fome e a Insan das
produtivas e a participação em movimentos populações mais vulnerabilizadas, desencade-
sociais. A articulação interdisciplinar entre ando a perda na qualidade de vida, o aumento
áreas busca o fortalecimento das comunidades, do risco de contaminação pela doença e a
a emancipação da agricultura familiar para redução das possibilidades de superação da
sistemas participativos e justos, que promovam doença5,25. Munido dos preceitos agroecoló-
a saúde do ambiente e das pessoas34,35,42. gicos, vem crescendo o movimento de autores
A agroecologia se apresenta como uma que apontam as práticas agroecológicas como
ferramenta de questionamento político e das um caminho para mitigar os impactos econô-
relações econômicas, sociais e culturais. Parece micos e alimentares da pandemia de Covid-19,
ser uma via de contraposição ao neoliberalismo assim como a reestruturação da agricultura

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 426-437, Jun 2022


434 Machado LS, Garcia EL

pós-pandemia. Entre os principais argumen- menor dependência de insumos industriais,


tos, elencam a segurança do alimento livre contribuindo para a sustentabilidade dos
de agrotóxicos para a saúde humana e que sistemas alimentares agroecológicos, já
as práticas agroecológicas têm um potencial que as safras não são prejudicadas pelas
de ampliação da distribuição de alimentos paralizações na indústria ou na logística
in natura nos diversos territórios. Ainda, de transporte. Nesse sentido, entendendo
ressaltam que o manejo sustentável do meio a necessidade de estruturação dos sistemas
ambiente pode evitar novos surtos e pragas, os agrícolas convencionais, a agroecologia se
quais têm origem no desequilíbrio ambiental. apresenta como uma ciência transformadora
Sendo assim, o incentivo à agroecologia se que se compromete com um futuro mais
configura como uma estratégia de promoção justo e sustentável. É reconhecida como uma
da saúde e prevenção de agravos em situações potente estratégia para a superação da crise
de epidemia19-21. alimentar e reestruturação de um sistema
Do ponto de vista econômico, os sistemas agroalimentar mais resiliente, diverso e
alimentares locais estimulam a economia equitativo no pós-Covid-1919-21.
municipal em um processo cíclico, em que
o dinheiro investido permanece na própria
cidade. A territorialização possibilita a ca- Colaboradoras
pilarização da distribuição de gêneros, es-
tratégia que evitaria uma interrupção geral Machado LS (0000-0002-2054-3278)* e
do fornecimento e do acesso aos alimen- Garcia EL (0000-0002-9542-6340)* con-
tos. Em adição, o agricultor agroecológico tribuíram igualmente para a elaboração do
possui maior autonomia, uma vez que tem manuscrito. s

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436 Machado LS, Garcia EL

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438 ENSAIO | ESSAY

Os agrotóxicos no contexto da Saúde Única


Pesticides in the context of One Health

Edaciano Leandro Losch1, Caroline Bedin Zanatta1, Giuliano Pereira de Barros1, Marília Carla de
Mello Gaia1, Patrizia Ana Bricarello1

DOI: 10.1590/0103-11042022E229

RESUMO A industrialização da agricultura e da pecuária, além de gerar um ambiente propício à disse-


minação de agentes infecciosos, é responsável pelo uso generalizado de diversas substâncias tóxicas que
afetam a saúde humana, animal e ambiental. O objetivo deste estudo foi promover a reflexão sobre o uso de
agrotóxicos e medicamentos veterinários como elementos de debate na construção da Saúde Única. Para
isso, foi realizada uma revisão exploratória literária de artigos, livros e documentos oficiais disponíveis
em plataformas de banco de dados. A discussão inclui as problemáticas do uso de substâncias tóxicas em
plantas e animais. Aborda, também, como os resíduos oriundos de sua utilização impactam a qualidade
de alimentos, ar, solo, água com consequências à saúde humana. Embora essa discussão seja escassa na
temática de Saúde Única, é fundamental que, além da participação da sociedade civil organizada, gestores
públicos assegurem, por meio de políticas públicas, maior segurança e controle na utilização de substâncias
tóxicas na agricultura e na pecuária.

PALAVRAS-CHAVE Substâncias tóxicas. Saúde. Agropecuária. Agroecossistemas.

ABSTRACT The industrialization of agriculture and livestock, in addition to generating an environment


conducive to the spread of infectious agents, is responsible for the widespread use of various toxic substances
that affect human, animal, and environmental health. This study aims to promote reflections on the use of
pesticides and veterinary drugs as elements of debate in the construction of One Health. For that, an exploratory
literature review of articles, books, and official documents available on database platforms was carried out.
The discussion includes the problems of the use of toxic substances in plants and animals. It also addresses
how the waste arising from its use impacts the quality of food, air, soil, and water, with consequences for
human health. Although this discussion is scarce on the theme of One Health, it is essential that, in addition
to the participation of organized civil society, public managers ensure, through public policies, greater security
and control in the use of toxic substances in agriculture and livestock.

KEYWORDS Toxic products. Health. Livestock. Agroecosystems.

1 Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC) –
Florianópolis (SC), Brasil.
edacianoleandro@hotmail.
com

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 438-454, JUN 2022 meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado.
Os agrotóxicos no contexto da Saúde Única 439

Introdução a poluição ambiental, que, por conseguinte,


maximizam as mudanças climáticas6-8. O
A combinação de fatores como o desenvolvi- ciclo de uso dessas substâncias impulsiona
mento industrial no século XVIII, a migração a ocorrência e a distribuição geográfica de
da população rural para os centros urbanos1 e agentes infecciosos9,10. Além disso, alterações
a indústria química no período bélico (século ambientais globais favorecem a disseminação
XX) impulsionou o desenvolvimento dos fer- e a falta de controle de algumas epizootias,
tilizantes sintéticos na agricultura. A Guerra particularmente epidemias destrutivas ou
do Vietnã, em especial, favoreceu o uso dos zoonoses (gripe aviária, coronavírus, ebola,
ingredientes ativos 2,4-D e o 2,4,5-T, conhe- chikungunya, dengue e zika)11. Contaminantes
cidos popularmente como ‘Agente Laranja’2. e toxinas também podem impactar nas inte-
O progresso vislumbrado permitiu que, com rações patógeno-hospedeiro e suas relações
o passar dos anos, o uso de agrotóxicos fosse com os surtos de doenças12, na transmissão de
adotado em ampla escala. patógenos13-15 e na resistência a antibióticos16.
No Brasil, a primeira regulamentação de O risco tóxico está implicado em distin-
agrotóxicos ocorreu pelo Decreto nº 24.114, tos níveis, na fisiologia, nas respostas imu-
de 1934, em que foram criadas políticas vol- nológicas e endócrinas dos organismos e na
tadas para incentivo à compra e utilização de biodiversidade17. Se, por um lado, a situação
agrotóxicos. Somente em 1982, a proibição aponta para o declínio e a intoxicação do
do uso de organoclorados e a obrigatoriedade ambiente, por outro, a compreensão da dinâ-
do receituário agronômico foram adotadas, mica do ecossistema permite avaliar o grau
cabendo aos estados brasileiros as primeiras em que as alterações antrópicas levam ao
legislações proibitivas3. desenvolvimento de eventos infecciosos em
Desde 1982, considerando o histórico da larga escala18. Estratégias e acordos multila-
utilização de agrotóxicos realizado pelo Censo terais que minimizem os impactos antrópicos
Agropecuário, o Brasil atingiu patamares no ecossistema são conhecidos. A criação da
crescentes principalmente em grandes áreas Convenção da Diversidade Biológica (CDB)19
cultivadas por commodities4. Segundo o Censo, e os próprios objetivos do milênio20 apontam
de 2005 a 2015, a média de novos registros de para um caminho que pode produzir algumas
agrotóxicos por ano ficou em 140,5. Porém, a melhorias no que tange a uma maior expectati-
partir de 2016, o número cresceu para 277; e, va de sustentabilidade humana no ecossistema.
em 2019, atingiu 474 novos registros. A maior Além disso, o conceito One Health, em
parte dos agrotóxicos liberados entre os anos tradução, Saúde Única, ajuda a entender as
de 2016 e 2019 são produtos equivalentes ela- interações entre os animais, os seres humanos
borados a partir de ingredientes ativos já auto- e o meio ambiente. Na prática, fornece uma
rizados. Apenas 11% do total de autorizações estrutura integrada para observar e melho-
nesse período é oriundo de ingredientes ativos rar os problemas de saúde envolvendo esses
novos5. A ampliação das autorizações produz três núcleos. Pode ser aplicado, em particular,
como resultados a diminuição dos custos, a para problemas relacionados com os agravos
possibilidade de escolher por uma varieda- à saúde humana, relativos aos agrotóxicos e
de de produtos com os mesmos ingredientes aos produtos veterinários21-22.
ativos, estimulando o uso e o acesso a eles. Nesse sentido, os princípios de Manhattan23
Em perspectiva ampliada, é possível e de Berlin24 também fornecem elementos que
apontar que essa lógica, pautada no uso de permitem identificar decisões de um ponto
substâncias tóxicas, como agrotóxicos e me- de vista mais amplo e em longo prazo. São
dicamentos veterinários, favorece a destrui- fundamentos que permitem compreender
ção e a fragmentação de habitats, bem como que a biodiversidade de fato é essencial para

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manter os ambientes saudáveis e​​ os ecossis- agrotóxicos e medicamentos veterinários


temas funcionais. A implementação de polí- como elementos de debate na construção da
ticas públicas e o investimento na educação Saúde Única.
e na conscientização da população mundial
colocam o ser humano no papel principal de
agente de transformação dessa mudança23,24. Metodologia
O cenário exposto nos permite refletir
sobre três aspectos: 1) a integração com base Foi utilizada como metodologia uma pesqui-
em políticas públicas permitem reconhecer sa exploratória literária25, que adota como
a relação entre a saúde dos componentes do pergunta norteadora ‘quais os impactos dos
ecossistema, incluindo o Homem; 2) a falta agrotóxicos na saúde humana, animal e am-
da implementação de tratados internacionais biental e a contextualização do conceito de
pode dificultar a implementação de políticas Saúde Única?’. Para isso, foram utilizados
públicas; e 3) considerando que o conceito artigos científicos, livros, documentos ofi-
Saúde Única é suficiente como norteador de ciais e informações publicadas de acesso geral,
práticas que promovam a equidade entre as obtidos por meio dos bancos de dados da Web
relações do ecossistema, quais seriam as ati- of Science e Scientific Electronic Library
tudes práticas transformadoras para mitigar (SciELO), Biblioteca Virtual em Saúde (BVS),
o impacto dos agrotóxicos ante a desfragmen- Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
tação dos ecossistemas? de Nível Superior (Capes), Google Acadêmico
Dessa forma, este trabalho tem como ob- e trabalhos nacionais e internacionais publi-
jetivo promover a reflexão sobre o uso de cados nos últimos 23 anos (figura 1).

Figura 1. Etapas de obtenção e coleta dos dados

Categorias Base de dados Termos de busca Critérios de inclusão

Saúde única
Saúde Única – Que abordavam os termos de busca;
Web of Science, SciELO, Agrotóxicos: – Ano (1994-2021);
Biblioteca Virtual em – Impacto ambiental (plantas, – Estudos nacionais e internacionais;
Saúde (BVS), Capes, solo, água) – Artigos experimentais;
Google Acadêmico. – Redução da biodiversidade – Artigos de revisão;
– Toxicologia humana;
Agrotóxicos – Medicamentos veterinários.

Documentos oficiais
Produtos formulados; – Agrotóxicos mais utilizados
brasileiros: Relatórios e
Agrotóxicos registrados; (2019-2020);
registros oficiais, leis e
Histórico de comercialização. – Agrotóxicos liberados.
resoluções

Fonte: Elaboração própria.


Nota: Duas categorias compostas pelos termos Saúde Única e Agrotóxicos foram pesquisadas em bases de dados. Para compreender o
panorama nacional, o termo agrotóxicos também foi buscado em documentos oficiais nacionais.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 438-454, JUN 2022


Os agrotóxicos no contexto da Saúde Única 441

A Saúde Única como desenvolvida a ação ‘Um Mundo, Uma Saúde,


estratégia nas decisões Um futuro’24.
O conceito de Saúde Única propõe uma
que envolvem o tema abordagem teórico-metodológica passível
agrotóxicos de ser utilizada para projetar e implementar
programas, políticas públicas, legislações e
O termo One Health, traduzido no Brasil como pesquisas em saúde, de forma a acomodar toda
Saúde Única, foi sugerido para demonstrar a a complexidade natural da dinâmica saúde-
indissociabilidade da saúde humana, animal -doença e suas relações com o meio ambien-
e ambiental. Conceitualizado em 2004, no te. Muitas doenças podem ser prevenidas e
simpósio ‘Construindo pontes interdisciplina- combatidas por meio da atuação integrada
res para a saúde em um mundo globalizado’, entre os diversos setores ligados à promoção da
em que foram elaborados os 12 princípios de saúde coletiva22. Enfatiza também os desafios
Manhattan e a iniciativa ‘Um Mundo – Uma relacionados com a promoção da saúde e da
Saúde’, ou simplesmente ‘Uma Saúde’23, segurança alimentar, as quais exigem uma ação
foram criados os princípios de Berlim (uma integralizada e holística desses três compo-
atualização dos princípios de Manhattan) e nentes21,26 (figura 2).

Figura 2. Modelo explicativo entre as interações que compõe a Saúde Única em sua totalidade

Saúde
animal

Saúde
Segurança e Soberania Saúde Única Saúde
Alimentar e Nutricional; humana ambiental
Biodiversidade;
Controle de zoonoses;
Resistência a antibióticos;
Resíduos tóxicos. Estratégias de abordagens
teórico-metodológicas
para projetar e
implementar programas,
políticas, legislações e
pesquisas; Atuação
integrada entre os setores
ligados a promoção da
saúde coletiva.

Fonte: Elaboração própria.


Nota: Ao lado esquerdo do colchete estão os fatores de interação. A seta guia indica para os fatores de proteção ao lado direito.

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Algumas iniciativas internacionais têm livre de agrotóxicos, busca-se desenvolver


surgido no âmbito da Saúde Única. Em 2015, a produção rural orgânica, sustentável e
a Convenção sobre Diversidade Biológica de base agroecológica, com ampliação de
(CDB) apoiou a proposta ‘Meio ambiente tecnologias que permitam a produção pri-
saudável, pessoas saudáveis’ do Programa mária e a atividade extrativa em equilíbrio
das Nações Unidas para o Meio Ambiente ambiental32.
(Unep)27. Nesse mesmo ano, a Organização Desse modo, algumas iniciativas embrio-
das Nações Unidas (ONU) aprovou os seus 17 nárias começam a surgir no cenário nacio-
Objetivos de Desenvolvimento Sustentável nal. No entanto, a agricultura, em especial a
(ODS), vinculados às metas internacionais produção vegetal, ainda não teve o destaque
da Agenda 203028. necessário nessa discussão. Muitos proble-
Dentre esses objetivos, destaca-se o ODS mas de saúde humana e animal (e ambiental)
2 – “acabar com a fome, alcançar a segu- são causados ​​ou agravados pelos modelos
rança alimentar e melhoria da nutrição e agrícolas predatórios praticados atualmente.
promover a agricultura sustentável” 28(17). O uso de agrotóxicos e suas implicações
“Assegurar uma vida saudável e promover negativas à saúde de todos os organismos
o bem-estar para todos, em todas as idades” são assunto escasso na ampla discussão de
são descritos no ODS 328(18). Esses objetivos Saúde Única.
estão diretamente relacionados com o tema A Segurança Alimentar e Nutricional
de uma saúde global. Atualmente, a CDB (SAN) e o fornecimento de comida sufi-
vem dedicando-se à temática da biodiver- ciente e livre de resíduos de agrotóxicos e
sidade para a alimentação e nutrição, con- contaminantes para todos estão estritamen-
templando tópicos referentes à integração, te relacionados com o segundo princípio
à conservação e ao uso da biodiversidade de de Manhattan, o qual cita que “é preciso
alimentos e na nutrição19,27. reconhecer que as decisões relativas ao uso
No Brasil, discussões sobre a temática da terra e da água têm implicações reais
podem ser observadas no Plano Nacional para a saúde”23(259). E complementado por:
de Agroecologia e Produção Orgânica
(Planapo) 29. A parceria entre a Fundação alterações na resiliência dos ecossistemas e
Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o Ministério mudanças nos padrões de surgimento e pro-
da Saúde vem promovendo a iniciati- pagação de doenças se manifestam quando
va Biodiversidade e Saúde 30. A chamada deixamos de reconhecer essa relação23(259).
para o Programa de Pesquisa Aplicada à
Saúde Única, desenvolvido no estado do A problemática dos agrotóxicos e o modelo
Paraná (Brasil), também promove projetos hegemônico de agricultura devem receber
de pesquisa que incentivem a formação e uma atenção especial, principalmente após a
a melhoria da qualidade das políticas pú- formulação dos princípios de Berlin. No item
blicas ambientais no contexto dos ODS, 4, é assegurado
com enfoque no meio ambiente e na saúde
humana e animal31. reconhecer que as decisões sobre o uso da
Em Florianópolis (Santa Catarina, Brasil), terra, ar, mar e água doce impactam direta-
foi aprovado o Projeto de Lei nº 17.538/2018 mente a saúde e o bem-estar dos humanos,
e sancionada a Lei nº 10.628, de 8 de outubro animais e ecossistemas e que estas alterações
de 2019, que institui e define como zona livre em conjunto com a resiliência diminuída geram
de agrotóxicos a produção agrícola, pecuá- mudanças no surgimento, exacerbação e dis-
ria, extrativista e as práticas de manejo dos seminação de doenças transmissíveis e não
recursos naturais no município. Com a zona transmissíveis24(3).

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 438-454, JUN 2022


Os agrotóxicos no contexto da Saúde Única 443

Agrotóxicos e regulados de maneira diferente dos princípios


medicamentos veterinários: ativos; assim, os efeitos tóxicos de longo prazo
são geralmente ignorados e, portanto, ausentes
um panorama dos efeitos dos procedimentos de avaliação de risco de
nos vegetais, animais, agrotóxicos35.
humanos e ambiente Novos agrotóxicos surgem regularmente
no mercado com a finalidade de melhorar os
O uso de agrotóxicos na agricultura é a princi- tratamentos químicos e reduzir as quantidades
pal estratégia no controle de pragas e doenças de aplicações e os efeitos tóxicos ao ecossiste-
em plantas e animais. Porém, o espectro de ma. Em levantamento realizado pelos autores
atuação desses produtos não se limita apenas do artigo nas bases de dados fornecidas pelo
a lavouras. Partículas oriundas de agrotóxicos governo brasileiro, foi observado que, somente
podem ser encontradas em diversos ambientes no ano de 2019, foram liberados 474 novos
e formas de vida33. agrotóxicos no mercado nacional, um recorde
Nas formulações comerciais de agrotóxicos, se comparado aos anos anteriores5. Os dados
além do princípio ativo, outros compostos e mais recentes sobre os ingredientes ativos
moléculas são adicionados para que os produ- mais vendidos no Brasil datam de 2019, os
tos possam ter sua eficiência aumentada: os quais podem ser visualizados no quadro 136.
adjuvantes e surfactantes34. Os adjuvantes são

Quadro 1. Os dez principais ingredientes ativos comercializados no Brasil no ano de 2019 e sua classificação toxicologia
e periculosidade ambiental

Ingrediente ativo/ Classificação Quanto a Periculosidade


Nome Comum Denominação Classificação Toxicológica Ambiental
Glifosato e seus Herbicida Variação da Categoria 2 – Produto Al- Produto Perigoso ao Meio Ambiente
sais tamente Tóxico/ Categoria 5 – Produto
Improvável de Causar Dano Agudo*
2,4 D Herbicida Categoria 4 – Produto Pouco Tóxico* Produto perigoso ao meio ambiente
Mancozeb Fungicida Categoria 5 – Produto Improvável de Produto Pouco Perigoso ao Meio Am-
Causar Dano Agudo* biente
Acefato Inseticida Categoria 4 – Produto Pouco Tóxico* Produto Muito Perigoso ao Meio Am-
biente
Atrazina Herbicida Categoria 5 – Produto Improvável de Produto Perigoso ao Meio Ambiente
Causar Dano Agudo*
Clorotalonil Fungicida Categoria 3 – Produto Moderadamente Produto Perigoso ao Meio Ambiente
Tóxico**
Dicloreto de Herbicida Classe I – Extremamente Tóxico Produto Perigoso ao Meio Ambiente
paraquate***
Malationa Inseticida Categoria 4 – Produto Pouco Tóxico* Produto Perigoso ao Meio Ambiente
Enxofre Fungicida Categoria 5 – Produto Improvável de Produto Perigoso ao Meio Ambiente
Causar Dano Agudo*
Clorpirifós Inseticida Categoria 3 – Produto Moderadamente Produto Muito Perigoso ao Meio Am-
Tóxico** biente
Fonte: Elaboração própria.
*Diário Oficial da União. Ato nº 58, de 27 de agosto de 2019.
**Diário Oficial da União. Ato nº 70, de 2 de outubro de 2019.
***Resolução RDC nº 177, de 21 de setembro de 2017. Venda proibida no Brasil a partir de 22 de setembro de 2020.

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444 Lösch EL, Zanatta CB, Barros GP, Gaia MCM, Bricarello PA

Em relação aos Herbicidas a Base de lavouras. Estudos demonstram que a perda


Glifosato (HBG), ingrediente ativo mais da diversidade biológica e a maior pressão de
vendido no Brasil, sua utilização é crescente seleção dos agrotóxicos, em especial os herbi-
e constantemente motivada principalmente cidas, promovem um quadro de evolução da
pelas variedades transgênicas resistentes ao resistência em espécies espontâneas, em que
princípio ativo. Somente o glifosato representa mecanismos moleculares de expressão envol-
em torno de 40% do consumo de agrotóxicos vidos na resposta de toxicidade celular ainda
no País37. Os HBG estão presentes em apro- são pouco conhecidos41. Assim, a resistência
ximadamente 750 produtos diferentes, para adquirida dessas plantas é uma habilidade
aplicações em diversos setores; e são produ- herdada como resposta à necessidade, à so-
zidos e comercializados em maior quantidade brevivência e à reprodução, após a exposição
do que os demais herbicidas38. a uma dose de herbicida normalmente letal
As preocupações que incidem sobre os para a população natural49.
riscos da utilização dos agrotóxicos incluem os Devido à pressão de seleção e à adaptação
aspectos sociais e éticos, o acesso a recursos ge- dos patógenos e artrópodes aos agrotóxicos,
néticos e a perda de tradições, principalmente em alguns casos, em apenas uma nova geração,
associada à manutenção de sementes. Também esse tóxico perde a eficácia, ou seja, as gerações
estão abrangidos os riscos ambientais, como futuras desses patógenos são mais resistentes
o impacto do fluxo gênico e os efeitos sobre que seus antepassados. Nesse caso, é necessário
organismos não-alvo, bem como a evolução da procurar um substituto, que, em alguns casos,
resistência de artrópodes e plantas daninhas pode possuir maior toxicidade ao ambiente e
e todas as problemáticas relacionadas com a à saúde humana50. Além disso, a aplicação de
saúde humana39. agrotóxicos para o controle de patógenos causa
Nos vegetais, a supressão química dos um desequilíbrio nutricional e metabólico
agentes etiológicos causadores de enfermi- à planta, deixando-a mais vulnerável a um
dades tem como premissa permitir que a planta novo ataque, como também perdas devido às
consiga manter seu desenvolvimento e máxima condições do ambiente hostil, causado pelos
produtividade40. No entanto, a aplicação dos agentes químicos51. A resistência adquirida dos
produtos químicos pode acarretar toxicidade patógenos não é recente, sendo e, de fato, uma
às plantas, que pode resultar tanto na redução das preocupações para a produção agrícola em
dos teores de clorofila e proteína quanto na escala industrial50.
menor eficiência fotossintética41-46. Os agrotóxicos podem ocasionar severos
Como exemplo, em produtos à base de gli- danos às populações de organismos não pa-
fosato, devido à propriedade do ingrediente togênicos do solo, como fungos, nematoides,
ativo ser um quelante de metal, podem existir bactérias, minhocas, besouros, entre diver-
vários efeitos secundários ou indiretos na fi- sas outras espécies52. Além disso, de maneira
siologia das plantas, como: privar as plantas de direta, esses produtos podem atingir outros
importantes nutrientes, alterar a fotossíntese, organismos não-alvo, como: polinizadores,
o estado oxidativo e hormonal. A alteração aves e animais silvestres; e, de maneira geral,
desses processos celulares poderia estar dire- ocorre uma redução geral das espécies na
tamente ligada aos efeitos deletérios do glifo- lavoura e entorno53.
sato observados no crescimento dos vegetais47. Entre os insetos mais prejudicados, en-
Além disso, podem acarretar propriedades contram-se as abelhas. Produtos comerciais
tóxicas ao produto final ou, ainda, afetar o à base de Sulfoxaflor estão relacionados com a
metabolismo da planta48. morte de milhões de abelhas54. Outros produ-
Cenário semelhante pode ser observado tos também são classificados como potenciais
no controle das espécies espontâneas nas agentes causadores da morte das abelhas e

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 438-454, JUN 2022


Os agrotóxicos no contexto da Saúde Única 445

outros insetos; dentre os quais, destacam- comumente utilizados na prática veterinária64.


-se os pertencentes à classe dos neonicoti- O uso irracional de antimicrobianos favorece o
noides, como exemplo, o Imidacloprido e desenvolvimento de resistência intrínseca ou
Dinotefuran 55,56. Alguns produtos como adquirida pelos micro-organismos65.
Triclorfon, Cihexatina, Abamectina, Acefato, Atualmente, existem aproximadamente 240
Carbofuran, Forato, Fosmete, Lactofen, substâncias farmacologicamente ativas regis-
Parationa Metílica e Thiram, por apresentar tradas como componentes de medicamentos
diversos problemas à saúde humana e impac- veterinários no Brasil66. Todavia, a RDC nº
tos ambientais, não possuem aprovação para 53/2012, da Agência Nacional de Vigilância
serem comercializados na União Europeia e Sanitária (Anvisa), prevê Limites Máximos de
nos Estados Unidos ou estão em processo de Resíduos (LMR) somente para 24 substâncias,
reavaliação57. das quais apenas 8 estão em conformidade
A toxicidade dos produtos químicos também com os limites recomendados pelo Codex
é evidenciada nos animais, sejam eles de Alimentarius67.
criação zootécnica ou animais de companhia. A problemática dos resíduos de produ-
Nesse sentido, os medicamentos veterinários tos veterinários em alimentos destinados
para controle de doenças em animais apresen- ao consumo humano fomentou a criação de
tam substâncias potencialmente nocivas tanto dois programas nacionais: o Plano Nacional
para os animais que estão submetidos ao trata- de Controle de Resíduos e Contaminantes
mento como para os humanos e o ambiente22. (PNCRC), o qual é coordenado pelo Ministério
A principal causa de intoxicação em animais da Agricultura, Pecuária e Abastecimento
de companhia é a medicamentosa58,59. A in- (Mapa) e inclui programas setoriais para
toxicação intencional ou acidental de cães e análise de carne, leite, ovos, mel e pescado;
gatos por organoclorados, organofosforados, e o Programa de Análise de Resíduos de
carbamatos e piretroides tem sido reportada Medicamentos Veterinários em Alimentos
no Brasil60. A autoprescrição por parte dos (PAMVet), da Anvisa, que analisa leite UHT,
tutores, sem orientação do médico veterinário; leite em pó e leite pasteurizado68.
o acesso à compra de produtos sem o controle O PAMVet foi responsável pela realização
de prescrição (receituário); a propaganda de de alguns estudos de abrangência nacional
medicamentos para leigos; a falta de fiscaliza- que objetivaram a mensuração do nível de
ção dos estabelecimentos que vendem essas contaminação dos alimentos em prateleira
medicações; e o livre acesso a medicamentos por Resíduos de Medicamentos Veterinários
veterinários vendidos em lojas agropecuárias (RMV). A realização desses estudos possibi-
e no comércio digital são evidenciados como litou uma avaliação de risco real na qual foi
causas para a intoxicação58. relatada a presença de RMV acima do tolerável
Em animais de produção, não existe um em produtos cárneos, peixes, mel e leite68.
panorama claro para os casos de intoxicações Diante de todo esse cenário, é possível
relacionadas com o uso irracional de medi- chegar a um consenso de que, como conse-
camentos veterinários61,62. Todavia, existe a quência da exposição das plantas e animais
possibilidade de que quantidades mínimas aos produtos químicos, o ser humano, por ser
de moléculas químicas e seus metabólitos parte da cadeia trófica, também está submetido
ou resíduos nos produtos de origem animal, a contaminações diretas e indiretas. 
como carne, leite, ovos e mel, acarretem A ingestão de alimentos ou de produtos
riscos severos à segurança alimentar63. Além contaminados que contêm resíduos de agro-
disso, é necessário regularmente controlar tóxicos e a exposição crônica podem ser um
a sensibilidade a agentes antimicrobianos e fator de risco potencial para a saúde humana69.
fiscalizar os resíduos desses medicamentos A relação entre alguns problemas de saúde e

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 438-454, JUN 2022


446 Lösch EL, Zanatta CB, Barros GP, Gaia MCM, Bricarello PA

os produtos utilizados no manejo sanitário de pela exposição de agricultores aos agrotóxicos


animais e vegetais representa um interesse na região Nordeste somam aproximadamente
emergente da pesquisa acadêmica70,71. Ainda 10 mil casos75. O perfil dos indivíduos envol-
que os efeitos deletérios sejam mais percebidos vidos em intoxicações demostra que a maior
nos casos de intoxicações agudas (que são prevalência ocorre em adultos do sexo mas-
aqueles casos geralmente relacionados com culino76. Não existem trabalhos científicos
acidentes de trabalho), em que o indivíduo demonstrando uma dose de ingestão dessas
entra em contato com grande quantidade do substâncias que seja segura para a saúde
produto em curto espaço de tempo72, também humana ou animal.
ocorrem prejuízos à saúde humana por meio O contato humano direto com um agrotóxi-
da exposição crônica a pequenas quantida- co pode causar diversos danos à saúde; dentre
des desses tóxicos37. Esse tipo de prejuízo é os quais, destacam-se: endócrinos; neurológi-
causado, principalmente, devido ao fator de cos; respiratórios; hepáticos; alergias; hiper-
bioacumulação que acontece nos organismos tensão; diabetes; diarreias; dores no corpo e
superiores73. vertigens77. Além dos riscos ocasionados pelo
Um exemplo desses efeitos se materializa contato direto com os agrotóxicos, há uma
nas alterações teratogênicas e de desenvol- vasta alteração genética no organismo humano,
vimento embrionário ocorridas em animais que não resulta em sintomas imediatos, mas
experimentais que foram expostos ao contato em médio e longo prazo, conforme pode ser
com estas substâncias74. No Brasil, registros de observado no quadro 2.
1999 e 2009 demonstram que as intoxicações

Quadro 2. Potenciais riscos à saúde humana associados à exposição aos principais ingredientes ativos presentes nos
agrotóxicos comercializados no Brasil

Grupo químico Ingrediente ativo Potencial risco associado à exposição


Glicina substituída Glifosato Câncer de mama78
Autismo79
Osteoporose e osteomalácia80
Ácido ariloxialcanoico 2,4-D (*) Câncer de próstata81
Bipiridílio Paraquate Alzheimer82
Mal de Parkinson83
Organoclorado 2, 3, 7, 8-tetraclorodibenzo-p-dioxina Câncer de próstata84
(TCDD)
Alquilenobis (ditiocarbamato) Mancozebe Câncer colorretal85
Sulfóxido de tiocarbamato Mal de Parkinson86
Organofosforado Diazinon Linfoma não Hodgkin (NHL)87
Acefato Alteração da mobilidade, viabilidade
e integridade funcional do esperma88)
Triazina Atrazina Cânceres infantis89
Neonicotinoide Imidacloprido Diminuição dos níveis de testoste-
rona90
Inorgânico Oxicloreto de cobre Diferentes tipos de câncer91

Fonte: Elaboração própria.


Nota: Numerais sobrescritos correspondem às referências.
*Mistura de ácido 2,4-diclorofenoxiacético (2,4-D), ácido 2,4,5-triclorofenoxiacético (2,4,5-T), picloram e ácido cacodílico (Agente Laranja).

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Os agrotóxicos no contexto da Saúde Única 447

Produtores de tabaco expostos aos agro- as principais bases químicas utilizadas no


tóxicos glifosato, flumetralina, carbofurano, controle parasitário dos animais de produ-
clomazone, imidacloprid, sulfentrazone, ção representam um grande perigo ecotoxi-
ipridiona, deltametrina, paraquat, butralina, cológico para a saúde ambiental107.
cloridrato de propamocarbe, mancozebe, 2,4 O uso irracional desses medicamentos
D e dimetilamina, na região sul do Brasil, nos agroecossistemas é responsável pela
tiveram distúrbios relacionados com os eliminação da vida de inúmeros invertebra-
mecanismos de defesa celular e alterações dos benéficos ao meio ambiente108. Devido
nas atividades de telômeros92, transtornos a sua ação inespecífica sobre os mecanis-
mentais72, doença do tabaco93 e sibilância94. mos de sinalização celular colinérgicos, eles
Em outro estudo, fumicultores relataram acabam sendo letais para uma ampla gama
sintomas como dores de cabeça, náuseas de artrópodes e invertebrados residentes
e dor de estômago quando expostos aos dos agroecossistemas109. Como exemplo, os
agrotóxicos usados na cultura95. Também metabólitos da ivermectina possuem uma
se constataram dores lombares 96, disúria meia-vida de 127 dias no ambiente após
e diagnóstico médico de gastrite/epigas- sua excreção via fezes de animais tratados,
tralgia, depressão, ansiedade e mialgia 97, podendo persistir por até 188 dias quando
irritabilidade e cólicas abdominais98. em condições ambientais favoráveis110.
A exposição aos ingredientes ativos Efeitos para além do ambiente lavoura
Glifosato, Mancozeb, Procimidona, Iprodione também são observados, como é o caso da
e Abamectina foi associada a alterações celu- contaminação química e biológica dos re-
lares em trabalhadores rurais produtores de servatórios aquíferos e leitos de captação
flores99. O uso de produtos dos grupos quími- de água. As moléculas presentes nos agro-
cos piretroides, organofosforados, ditiocarba- tóxicos, após entrarem em contato com o
matos e carbamatos pode estar relacionado solo, podem se deslocar para camadas mais
com problemas do sistema nervoso central e profundas, nas quais alcançam o lençol freá-
periférico95. Além disso, trabalhadores rurais tico ou, ainda, são carreadas para rios, lagos
expostos aos agrotóxicos têm maior risco de e oceanos pela ação da chuva111.
morrer por suicídio100. De acordo com o levantamento realiza-
Alterações no sistema reprodutivo do por diferentes instituições com base no
masculino (antiandrogênicos) e feminino Sistema de Informação de Vigilância da
(efeito estrogênico) foram relacionados Qualidade da Água para Consumo Humano –
pela exposição a organoclorados101. Além de Sisagua, cerca de 25% das cidades brasileiras
todos esses efeitos já observados, diversos analisadas nos estudos apresentavam ao
agrotóxicos podem, também, estar relacio- menos 27 agrotóxicos na água de abasteci-
nados com alterações no binômio mãe-feto, mento domiciliar, sendo que as análises da
como malformações congênitas102-105, nas- água amostrada em 99% dos casos indicaram
cimentos prematuros e índices de apgar a presença de um coquetel, ou seja, mais
insatisfatórios106. de um agrotóxico entre os anos de 2014 e
Concomitantemente às problemáticas evi- 2017112. Estes dados são preocupantes, pois a
denciadas nas plantas, animais e humanos, legislação brasileira permite concentrações
os riscos de contaminações do ambiente elevadas de agrotóxicos na água, podendo
(ar, solo e água) são crescentes. Substâncias atingir a quantidade até 500 ug/L, como é
químicas aplicadas em plantas (agrotóxicos) o caso do Glifosato, o que representa 5 mil
entram diretamente em contato com o solo vezes a mais ao que é permitido em países
e, por sua vez, com a água e em animais da União Europeia, na qual a quantidade é
(medicamentos veterinários). Nesse sentido, de apenas 0,1 ug/L113.

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448 Lösch EL, Zanatta CB, Barros GP, Gaia MCM, Bricarello PA

Considerações finais meio de políticas públicas, maior segurança e


controle na utilização de substâncias tóxicas na
A Saúde Única é um tema estratégico que agricultura e na pecuária. Apesar do banimento
aproxima diversos segmentos que consti- total desses produtos parecer algo utópico,
tuem a sociedade. O interesse nas discussões iniciativas apontadas nesta revisão mostram
relacionadas com o uso de agrotóxicos e me- potenciais respaldos tanto no cenário nacional
dicamentos veterinários é crescente, porém quanto internacional.
escasso na construção de uma saúde global.
De forma concreta e prática, modelos de agri-
cultura de base ecológica, como a orgânica ou Colaboradores
agroecológica, possibilitam produzir alimentos
saudáveis e menos tóxicos, além de preservar Lösch EL (0000-0002-4937-2169)*, Zanatta
os ecossistemas. A agroecologia, por exemplo, CB (0000-0003-0876-2416)*, Barros GP
pode auxiliar na permeabilidade da temática (0000-0002-1212-6749)*, Gaia MCM (0000-
Saúde Única no campo da agricultura. 0003-2105-8968)* e Bricarello PA (0000-
Assim, coloca-se como fundamental que, 0002-6789-0074)* contribuíram igualmente
além da participação da sociedade civil or- para a elaboração do manuscrito. s
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454 Lösch EL, Zanatta CB, Barros GP, Gaia MCM, Bricarello PA

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ENSAIO | ESSAY 455

Tão perto e tão longe: trajetória da


agroecologia na agenda brasileira de
políticas públicas
So close and so far: trajectory of agroecology on the Brazilian public
policy agenda

João Mendes da Rocha Neto1

DOI: 10.1590/0103-11042022E230

RESUMO Entendida como uma mudança paradigmática, a agroecologia foi incluída na agenda de políticas
públicas do Estado brasileiro só muito recentemente. Em meio a disputas, cumpriu uma interessante
trajetória, constituindo um arranjo de governança e construindo instrumentos relevantes, mas, desde o
ano de 2016, não foi capaz de reunir condições para seu fortalecimento, com indícios que sugerem a sua
extinção. Diante do exposto, o objetivo do artigo foi discutir essa trajetória de ascensão e extinção da po-
lítica de agroecologia, tomando por base suportes teóricos e elementos do ambiente político-institucional
que sugerem a fragilização como etapa antecedente da extinção. Para a elaboração do artigo, foi realizada
revisão bibliográfica com autores de diversos campos do conhecimento que possibilitaram problematizar
o objeto. Além disso, foi feito um levantamento nas fontes oficiais no sentido de caracterizar a política
da agroecologia, seus instrumentos de gestão e governança, e, por fim, documentos oficiais e outros
acontecimentos recentes que indicam seu enfraquecimento. Nesse sentido, o artigo concluiu que o curto
percurso feito pelo arranjo institucional da agroecologia se mostrou uma experiência exitosa, mas não o
suficiente para resistir a agendas conservadoras dos governos recentes.

PALAVRAS-CHAVE Política pública. Agricultura sustentável. Governança. Programas governamentais.


Governo federal.

ABSTRACT Understood as a paradigm shift, agroecology was included in the public policy agenda of the
Brazilian State only very recently. It had an interesting trajectory, in the midst of disputes, constituting a
governance arrangement and building relevant instruments, but has not been able to meet the conditions
for its strengthening, since 2016, with signs that point to the extinction of agroecology as a policy. Given the
aforementioned, the objective of the article is to discuss such a trajectory of ascension and extinction, based on
theoretical supports and elements of the institutional political environment that suggest fragility as a precedent
stage of extinction. For the preparation of the article, a bibliographic review was carried out with authors
from different fields of knowledge that allowed to problematize the object, in addition, a survey was carried
out with official sources in order to characterize the agroecological policy, its management and governance
instruments, and finally, official documents and other recent events that indicate its weakening. In this sense,
the article concluded that the short path traveled by the institutional arrangement of agroecology turned out
to be a successful experience, but not enough to resist the conservative agendas of recent administrations.

KEYWORDS Public policy. Sustainable agriculture. Governance. Government programs. Federal government.
1 Universidade de Brasília
(UnB) – Brasília (DF), Brasil
jmdrn@uol.com.br

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 455-466, JUN 2022
456 Rocha Neto JM

Considerações iniciais sobre a extinção de políticas e instituições.


Para ilustrar essa trajetória, foi realizado
O debate sobre sustentabilidade, apesar de um levantamento nas fontes oficiais, como
amplamente levado ao conhecimento da a Presidência da República, a Secretaria de
população brasileira, ainda é um desafio Orçamento Federal, com a finalidade de carac-
quando se trata de formular políticas públicas. terizar a política, que reuniu a legislação que
Historicamente, o Estado brasileiro se orien- instituiu as políticas, os planos e os programas,
tou por modelos de desenvolvimento mais bem como as informações sobre a gestão da
preocupados com o crescimento econômico do política e seus arranjos de governança e dis-
que propriamente com o desenvolvimento em ponibilidade de recursos orçamentários. Esses
sua essência. Isso se refletiu em uma agenda elementos possibilitaram a reflexão sobre o
de políticas públicas bastante conservadoras e atual momento vivenciado pela PNAPO, que
pouco permeáveis a inovações paradigmáticas. indica um processo de extinção em curso, com
Entretanto, nos últimos anos, um dos temas o desaparecimento do tema na agenda de po-
objeto dessas mudanças mais substantivas foi líticas públicas federais, mas também sobre a
a incorporação da agroecologia na agenda de possibilidade de amplificar análises da mesma
políticas públicas a partir da institucionaliza- natureza a partir do framework escolhido.
ção que visibilizasse o modelo agroecológico
voltado para produção orgânica. Isso indicava
uma perspectiva alternativa ao agronegócio, Breve aparte sobre políticas
que domina a pauta de exportações e o imagi- públicas
nário de grande parte da população brasileira
como um modelo bem-sucedido de agricultura. O conceito de políticas públicas é compre-
No entanto, desde 2016, a pauta vem pas- endido em uma perspectiva polissêmica,
sando por um paulatino enfraquecimento, que poderia ser amplamente discutido, mas
sugerindo a possibilidade de ser extinta em também pode ser balizado pelo entendimento
um futuro muito próximo, a se considerar de alguns autores, tais como Lynn1, que as
os elementos, de toda ordem, que sinalizam define como um conjunto de ações do governo
para esse cenário. Dessa forma, verifica-se que que irão produzir efeitos.
existe um período de ascensão e visibilidade Para Souza2, a políticas públicas seriam o
do tema e seu arranjo institucional, seguido resultado do governo atuando para solucionar
por uma desestruturação, por intermédio de problemas. Essa linha de raciocínio é seguida
movimentos políticos. por Peters3, que as entende como uma somató-
Assim, o objetivo do artigo é discutir a tra- ria das ações governamentais por intervenção
jetória da Política Nacional de Agroecologia e direta ou delegando atividades que influencia-
Produção Orgânica (PNAPO), considerando-a rão a vida dos cidadãos. Já Rua4(2) entende as
em um contexto de inovação na agenda de po- políticas públicas como um conjunto de deci-
líticas públicas, bem como nos elementos que sões e ações relativas à alocação imperativa de
indicam forte possibilidade de sua extinção. valores, cujo aspecto central “[...] é o fato de que
Para a elaboração do artigo, foi realizada as decisões e ações são revestidas da autoridade
revisão bibliográfica com autores de diversos soberana do poder público [...]”. Isso significa
campos do conhecimento que possibilitaram dizer que as ações – sejam elas normativas ou
o entendimento da questão e que compõem as operacionais – emanadas do Estado são res-
secções iniciais. Cabe destacar que o percurso postas às demandas e às reivindicações dos
se orientou pelo debate de políticas públicas diferentes grupos sociais e corporações.
e inovação, além de reflexões com base na As reflexões anteriores servem para de-
literatura, ainda pouco explorada no Brasil, monstrar que não existe um único conceito de

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Tão perto e tão longe: trajetória da agroecologia na agenda brasileira de políticas públicas 457

política pública. Ademais, entre as concepções de Desenvolvimento Sustentável à atuação


existentes sobre o tema, não se pode afirmar governamental. No Brasil, percebe-se que o
que uma seja melhor ou pior que a outra2. Cabe tema Desenvolvimento Sustentável entra na
enfatizar a concordância dos autores quanto agenda de gestão pública quando é incluído,
ao fato de as políticas públicas comportarem de forma expressa, nos objetivos de ações go-
vários olhares e que, pela característica intrín- vernamentais em diferentes órgãos de governo
seca a elas, a pluralidade de pontos de vista é ou diferentes políticas públicas, ou nos discur-
necessária e vital para o progresso desse campo sos internacionais dos presidentes do Brasil,
de conhecimento. ainda que separados por projetos diferentes
Da mesma forma, não há um caminho de governo7,8.
único a ser seguido em políticas públicas, mas A adoção do paradigma agroecológico como
existem algumas divisões que intencionam política pública, mas não como prioridade,
facilitar esse processo: formulação, imple- sinaliza para mudanças, mesmo que pontual-
mentação e avaliação. Ressalte-se que essa mente, pois não é possível entender a admi-
divisão, mais simplista, serve para facilitar o nistração pública como um bloco monolítico
entendimento, já que, segundo Saravia5(29): “As capaz de absorver modificações simultanea-
modernas teorias do caos são as que mais se mente, considerando aspectos complexos e
aproximam de uma visualização adequada da subjetivos que devem ser incorporados às aná-
dinâmica social”. Pode-se considerar que po- lises dessa capacidade de aceitar e promover
líticas públicas são, também, estratégias, agre- inovações. A profundidade das mudanças, em
gando componentes para realizar uma ação tese, pode vir da adoção de políticas públicas e
indispensável e exequível em determinado de outras iniciativas que incentivem a inova-
momento para atingir determinado objetivo5,6. ção, mas não asseguram que sua difusão ocorra
Mais importante do que tentar chegar a ao mesmo tempo nem com a mesma profun-
um consenso acerca de um conceito único didade, considerando a trajetória histórica de
ou homogêneo, é preciso compreender que o alguns órgãos e suas culturas organizacionais.
processo de política pública não possui uma Nesse sentido, cumpre dar lugar a
racionalidade manifesta. Não se trata, portan- Schumpeter9, que desenvolveu reflexões sobre
to, de um processo em que há uma ordenação a inovação voltadas para o mercado, mas que
bem definida na qual cada ator social conhece tem sido cada vez mais utilizado em processos
e desempenha o papel esperado. Além disso, inovativos na administração pública, tomando
cabe salientar que, embora possa haver ele- por base sua teorização no debate sobre as
mentos comuns relativos às características das mudanças paradigmáticas dos últimos anos.
políticas públicas, o formato concreto delas Para Lynn10, a inovação no governo estaria
dependerá de cada sociedade específica, do devidamente definida como uma transforma-
estágio de maturidade de cada uma delas, e do ção fundamental, disruptiva e original das
grau de participação dos grupos interessados tarefas essenciais da organização. No enten-
e das instituições inseridas nesse contexto. dimento do autor, a inovação muda estruturas
profundas, modificando-as permanentemente.
Ou seja, seriam aquelas transformações que
Um alvissareiro sinal: a demarcam fases ou mesmo que promovem
agroecologia como inovação novos arranjos, mas também podem ser o fim
de instituições, de culturas organizacionais,
A partir dos acordos internacionais, no âmbito de políticas públicas e de marcos normativos.
das convenções mundiais em torno do tema da Sob esse aspecto, pode-se entender que
sustentabilidade, os formuladores de políticas a proposta de incorporar a produção orgâ-
públicas brasileiros introduziram diretrizes nica e a agroecologia na agenda de políticas

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458 Rocha Neto JM

públicas brasileira estaria situada em uma A adoção do paradigma agroecológico, por-


posição intermediária. Se, por um lado, a tanto, visto como inovação na agenda, poderia
mudança radical situa-se na formalização de ser resultante desse percurso, em que compro-
instrumentos de planejamento e governança missos internacionais assumidos pelo Estado
voltados para o tema, por outro, a cultura de brasileiro em relação às questões ambientais
algumas organizações governamentais mais são traduzidos na forma de ações de governo.
conservadoras e a ausência de decisões mais
tempestivas revelam a persistência de alguns
grupos de interesse e suas coalizões como A fase da extinção no
obstáculos ao alcance de resultados. ciclo de políticas públicas
Adicionalmente, o debate de Tidd, Bessant
e Pavitt11 mostra-se relevante ao tratar a ino-
ainda pouco discutida e a
vação em quatro categorias, sendo uma delas agroecologia nesse contexto
a inovação de paradigma, que teria foco em
mudanças nos modelos mentais subjacentes A título de ampliação do conhecimento, os
que orientam o trabalho da organização. Ainda debates sobre extinção de políticas públi-
segundo os autores, a inovação se distingue cas adquirem musculatura em meados do
segundo o grau de novidade envolvido em século passado nos Estados Unidos. Artigo
sua difusão. Quando se limita a uma única de Wilkson e Biggs13 faz um histórico das or-
organização, a inovação pode ser vista como ganizações públicas e políticas extintas pelo
incremental, que deseja melhorias de desem- governo norte-americano nas décadas de 1940
penho; quando se espraia e promove modi- e 1950 e, ao focar nas questões indígenas, faz
ficações significativas, pode ser classificada uma análise que até hoje serve ao debate.
como radical. Anteriormente, foram expostas as fases ou
Em alguns casos, trata-se de modificações etapas do ciclo de políticas públicas, mas vale
substantivas, em outros, mais incrementais, aqui ressaltar que quase toda a literatura nacio-
dependendo de um conjunto de fatores que vão nal ainda negligencia um importante momento
desde a capacidade de implantação, financia- em seus estudos, que pode ocorrer durante
mento e engajamento do corpo social no tema. a avaliação ou ainda a qualquer momento: a
Tal realidade é corroborada por Mulgan12, ao extinção. Nesse sentido, vale resgatar Secchi e
comentar que o processo de inovação no setor Souza14, citando Bardach, Kaufman e De Leon
público deve evidenciar ideias eficazes para como os precursores dos estudos sobre extin-
criar valor público, sendo necessário que se ção de políticas e programas governamentais:
mostrem mais do que meras melhorias in-
crementais e sejam úteis e viáveis quanto à [...] a extinção da política pública pode ocorrer
implantação. de forma previsível e gradual, em que uma su-
Quando tais mudanças impõem inovações, cessão de decisões incrementais ao longo do
os desafios se ampliam, e entram em cena as- tempo vão esvaziando sua capacidade regulató-
pectos que constituem a gênese das sociedades ria ou esvaziando os recursos financeiros que a
contemporâneas: os interesses divergentes e as sustentam [...] a extinção pode ser repentina, na
corporações, que repercutem na agenda de po- qual uma decisão autoritária ou politicamente
líticas públicas. Assim, pode-se entender que hábil acaba com a política pública de forma
a mudança implica rupturas paradigmáticas e inesperada14(72).
um processo de sensibilização e aprendizagem
para operar a partir dessas novas orientações, Essa contribuição permite entender que,
o que é um fator de resistência de indivíduos assim como as fases anteriores, a extinção
e instituições. de uma política pública ocorre carregada de

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Tão perto e tão longe: trajetória da agroecologia na agenda brasileira de políticas públicas 459

intencionalidades. Dessa forma, abre-se um [...] as organizações públicas, funções governa-


amplo leque de possibilidades que permite mentais, políticas públicas e programas repre-
analisar a alternância de governos e seus sentam separadamente os aspectos diferentes
projetos, bem como da atuação de grupos de do processo político. A extinção de um não
interesse ou mesmo da necessidade, dentro de significa, necessariamente, o fim do outro14(79).
determinados contextos históricos, de manu-
tenção de algumas iniciativas e organizações Por um lado, as razões que levam à extin-
do poder público. Sobre tal aspecto: ção de uma política pública podem advir do
desparecimento do problema, da solução da
En la dinámica de formación de la agenda podemos questão ou do ambiente político; sendo este
considerar tres características generales que per- último, desdobrado em outros aspectos que
miten que un determinado tema o cuestión reciba consideram: a) pressão da mídia e da opinião
la atención necesaria de los poderes públicos para pública; b) mudança na administração e no
integrarse em el programa de actuación. Em primero governo; c) ideologia política; d) imperativos
lugar, valorar el grado de apoyo que el tema o cues- financeiros; e e) eficiência organizacional13.
tión puede recabar o, lo que es lo mismo, valorar el Por outro lado, o autor identifica aspectos que
impacto general de la cuestión. En segundo lugar, se constituiriam em obstáculos à extinção de
valorar su significación, es decir, su nivel de impacto uma política pública e elenca: a) relutância
sobre la realidad, y en tercer lugar, la viabilidad de intelectual; b) permanência institucional; c)
la solución anticipada o previsible15(208). coalizões contrárias à extinção; e d) comple-
xidade e custos iniciais elevados.
De forma complementar, a estruturação
da agenda de governo é fator determinante
para inovações com a formulação de novos Agroecologia no Brasil: uma
programas governamentais, mas também con- agenda inconclusa
diciona à inclusão ou não daquelas iniciativas
que não interessam mais ao projeto político Embora a agenda mundial que sugere a adoção
do momento. de modelos sustentáveis de agricultura tenha
Embora esse seja um tema ainda pouco sido formalizada em 2015, a PNAPO16 lançada
explorado, como seus precursores comenta- em 2012 pela presidente Dilma Rousseff já se
ram, trata-se de uma abordagem que pode ser antecipava, por intermédio da adoção de uma
reveladora. Secchi e Souza14(77), citando De estratégia de desenvolvimento rural que con-
Leon, concluem que isso se deve: siderava modelos alternativos de agricultura,
mais sustentáveis e menos dependentes de
[...] à conotação negativa dada ao objeto de insumos externos.
estudo e à inviabilidade de um fenômeno que No ano seguinte, foi finalizado e publicado
muitas vezes é percebido como ajustes incre- o Plano Nacional de Agroecologia e Produção
mentais de políticas passadas. Orgânica (Planapo)17, que incorporou um
conjunto de outras políticas e programas que
As caraterísticas que revelam a extinção de dialogam com o tema e que, portanto, fazem-
uma política pública nem sempre são de fácil -se presentes no Plano, por meio de distintas
entendimento, segundo o debate realizado iniciativas, tais como: Pronaf Agroecologia;
por Secchi e Souza14 com base em De Leon e Pronaf Mais Alimentos; Pronaf Eco;
Bardach. Logo, é necessário entender que mais Cadastro Nacional de Produtores Orgânicos;
do que uma decisão, a implantação de uma Programa Ecoforte – Ecoforte Redes e ao
política pública exige uma multiplicidade de Ecoforte Extrativismo; Programa Nacional
ações estrategicamente selecionadas. Assim: de Sementes e Mudas para a Agricultura

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460 Rocha Neto JM

Familiar (PNSMAF); Programa Nacional de do Planapo, não foi implantada a iniciativa


Aproveitamento de Fontes Renováveis de específica de realização de estudos e testes
Energia para a Agricultura Familiar; Programa voltados ao estabelecimento de especificações
Nacional de Universalização do Acesso e de referência para registro simplificado de
Uso da Água – Água para Todos; Programa produtos fitossanitários. As principais difi-
Nacional de Apoio à Captação de Água de culdades encontradas na execução dessa ação
Chuva e Outras Tecnologias Sociais de Acesso relacionaram-se à baixa disponibilidade de
à Água – Programa Cisternas; Programas de recursos financeiros e de pessoal para a reali-
Recuperação Ambiental (PRA); Pronatec Bolsa- zação das diferentes atividades que perpassam
Verde Extrativismo; Programa de Formação a regulamentação dos produtos.
Agroecológica e Cidadã; e Política Nacional Quanto à formação técnica, persiste a ne-
de Desenvolvimento Sustentável de Povos e cessidade de definir prioridades que atendam
Comunidades Tradicionais (PNDSPCT). à diversidade da agricultura familiar no que
O Plano foi aprovado pelo arranjo de gover- tange ao alcance regional, bem como de desen-
nança – Comissão Nacional de Agroecologia e volver uma estrutura logística mais adequa-
Produção Orgânica (CNAPO), composta por da às características regionais que favoreça a
28 integrantes, sendo 14 do segmento gover- participação de agricultores(as) das diferentes
namental e 14 da sociedade civil; e a Câmara regiões do País. Também se apresenta como
Interministerial de Agroecologia e Produção desafio do Planapo a estruturação de iniciati-
Orgânica (Ciapo), composta por somente vas que fortaleçam e ampliem os processos de
órgãos do governo federal –, após a realização construção e socialização de conhecimentos
de consultas e diálogos com a sociedade civil. em agroecologia e produção orgânica por meio
No entanto, na implantação do Planapo da pesquisa e da aproximação dos saberes
2013-2015, identificou-se um conjunto expres- popular e científico, e da maior articulação
sivo de limitações ao avanço do crédito para entre pesquisadores, formadores, extensio-
agroecologia e produção orgânica, relativas nistas e agricultores no compartilhamento de
ao desconhecimento do tema por parte dos conhecimentos.
agentes financeiros, à inexistência de linhas O processo de elaboração do Planapo II se
de financiamento exclusivas para a produção iniciou com a incidência do tema agroecolo-
agroecológica que pudessem conferir escala ao gia e produção orgânica no Plano Plurianual
segmento, às dificuldades de monitoramento (PPA) 2016-201918. Com base no que havia
dos recursos alocados, entre outras questões, sido proposto ao PPA, a Ciapo elaborou o do-
que estavam associadas ao pequeno número cumento síntese de contribuições ao Planapo
de contratos de financiamento para sistemas 2016-2019, analisado pela Articulação Nacional
agroecológicos e orgânicos e ao reduzido valor de Agroecologia (ANA). O Planapo 2016-2019
financeiro total desembolsado. visa a dar continuidade ao primeiro Plano; para
Adicionalmente, a disponibilidade e o tanto, ratifica seu objetivo geral:
acesso dos agricultores a produtos fitossani-
tários adequados à produção orgânica e de base [...] implementar programas e ações induto-
agroecológica têm sido um fator limitante para ras da transição agroecológica, da produção
a expansão de tais sistemas. Uma alteração orgânica e de base agroecológica, que contri-
substancial desse quadro exige, especialmente, buam para o desenvolvimento sustentável e
investimentos em estudos e pesquisas, ajustes possibilitem a melhoria de qualidade de vida
no aparato legal, apoio ao registro de produtos da população, por meio da oferta e consumo
fitossanitários de baixo impacto e fortaleci- de alimentos saudáveis e do uso sustentável
mento da rede de produção e distribuição dos recursos naturais17(83).
desses produtos. Durante o primeiro ciclo

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Tão perto e tão longe: trajetória da agroecologia na agenda brasileira de políticas públicas 461

Observa-se ainda um arranjo de coorde- mas que parece não resistir a orientações
nação horizontal, em que o Plano procura conservadoras dos últimos governos, como
dialogar com a estrutura programática es- se verifica na seção subsequente.
tabelecida no âmbito do processo de plane-
jamento e orçamento do governo federal; e,
verticalmente, com as demais unidades da fe- Elementos (em curso) de
deração, notadamente, os governos estaduais, um processo de extinção
a destacar: Rio Grande do Sul; Paraná; Bahia;
Distrito Federal e Minas Gerais. As experiên- A observação dos aspectos que definem a ex-
cias estaduais foram amplamente estudadas tinção de uma política pública e sua associa-
em uma coletânea organizada por Sabourin, ção ao momento do tema da agroecologia na
Guéneau, Colonna et al.19 e demonstram que agenda de políticas públicas sugere que há um
os estados marchavam em ritmo acelerado processo que sinaliza para seu desaparecimen-
para a constituição de uma rede voltada para to. Além de questões de ordem ideológica ou
a agroecologia. mesmo políticas, uma das razões possivelmen-
A elaboração do segundo Plano, assim como te reside na incompreensão da agroecologia
o primeiro, foi tarefa construída coletivamen- como um campo de conhecimento científico,
te, mediante uma estratégia coordenada que como bem alertam Caporal e Costabeber20.
permitiu a participação dos diversos atores Em primeiro lugar, não existe questão a ser
com vistas ao processo de transição agroeco- superada, e, se houvesse, os indícios mostram
lógica, sendo seus eixos principais: Produção, que a inclusão da agroecologia na agenda
Uso e Conservação dos Recursos Naturais; sequer ganhou musculatura, o que demons-
Conhecimento, Comercialização e Consumo; tra uma trajetória de pouco fôlego diante das
Terra e Território; e Sociobiodiversidade. Tais disputas e sectarismos que a enfraqueceram
eixos orientam 190 iniciativas, distribuídas em nos últimos anos, principalmente dos setores
30 metas que articulam as políticas públicas do agronegócio. Esse cenário é descrito no
do governo federal. estudo de Sambuichi, Spínola, Mattos et al.21,
Já se encontra implantado o Portal que que avaliou a PNAPO e assinala para a forte
serviu para promover interação entre o poder influência do agronegócio que a seu dispor
público e a sociedade civil. Trata-se de um tinha: “[...] o crédito, a PGPM e a política de
ambiente que traz documentos relevantes ciência, tecnologia e inovação”21(37), meios com
ao tema e permite estreitar a comunicação os quais a agroecologia não contava.
entre os atores que estão diretamente ligados Quanto à pressão midiática, o artigo de
à PNAPO e ao Planapo, além de ser acessível a Capella e Brasil22 discute o papel dos meios
toda a sociedade. Os canais de transparência de comunicação de massa na formação da
governamental da PNAPO e do Planapo foram agenda e inscreve que:
concebidos em duas perspectivas: 1) Dinâmica,
com a participação da sociedade civil no pro- [...] não apenas os temas selecionados pela
cesso de implantação das ações e seu efetivo mídia importariam, mas também a forma como
acompanhamento, por intermédio da CNAPO; são caracterizadas e apresentadas ao público,
e 2) Estática, com a disponibilização das di- ou seja, a maneira como são enquadradas as
versas ações nos portais institucionais que questões22(129).
tratam do monitoramento.
Com se verifica, apesar da sua recente in- Sob tal aspecto, cumpre destacar que, além
clusão na agenda, a agroecologia foi capaz de da agenda dos dois últimos presidentes não
rapidamente estruturar um arcabouço teórico focar nas políticas sociais nem em modelos
que ofereceu suporte ao arranjo institucional, alternativos de desenvolvimento, há a primazia

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462 Rocha Neto JM

do agronegócio na grande mídia, que a todo práticas. O Decreto nº 8.026, de 6 de junho de


momento o sacraliza como ‘salvador’ das crises 201324, instituiu limites diferenciados para as
econômicas pelas quais o País passa, a exemplo aquisições de produtos exclusivamente orgâni-
do slogan difundido por uma grande emissora cos, agroecológicos ou da sociobiodiversidade
nacional: ‘agro é tech, agro é pop, agro é tudo’. como mecanismo de incentivo.
Não se pode deixar de considerar que a pauta Já no PPA 2016-2019, as iniciativas estavam
dos grandes veículos de comunicação espelha integradas ao Programa Agropecuário
aquilo que é capaz de gerar notícias e, portanto, Sustentável, cujo objetivo 1.048 declarava a
é assunto que integra a agenda do governo. intenção de:
Ainda existem alguns suspiros de dissemina-
ção do tema, mas muito localizados na mídia Promover e induzir a transição agroecológica
alternativa, que não alcança sua potência como e a produção orgânica e de base agroecológi-
elemento de mudança estrutural. ca, por meio do uso sustentável dos recursos
Da mesma forma, se não há visibilidade, naturais e da oferta e consumo de alimentos
não há pressão da opinião pública, hoje muito saudáveis18(215).
mais preocupada em resistir a uma agenda de
orientação neoliberal que se instala, secunda- Apesar de trazer um conjunto de ações ro-
rizando toda e qualquer iniciativa orgânica bustas, que iam do apoio técnico e financeiro
para defender a agroecologia. Adicionalmente, às organizações produtivas e instituições de
a pauta da agroecologia esteve vinculada aos ensino, pesquisa e extensão, para a implantação
governos de centro-esquerda que comanda- e qualificação de unidades de produção, às cam-
ram o País entre 2003 e 2016, e suas pautas panhas nacionais para a promoção dos produtos
carregam um preconceito dos sucessores. e disseminação de tecnologias apropriadas,
A ideologia dos dois governos não reconhe- passando por capacitação, entre outras que
ce a agricultura familiar e sua importância, indicavam a consolidação do tema na agenda.
tampouco valoriza práticas alternativas ao No entanto, o que se observa é o desapa-
modelo de desenvolvimento imposto. Tal fato recimento de instituições e deslocamento da
é agravado na atual gestão em face da postura agenda, com alterações de mandatos e reposi-
negacionista do presidente Jair Bolsonaro nas cionamento das prioridades. No seu surgimen-
questões ambientais. to, a PNAPO e suas instâncias de governança
Adicionalmente, os entes subnacionais que estiveram próximas ao centro de governo, na
também vinham em um percurso de constru- Secretaria Geral da presidência da República,
ção de suas políticas, a exemplo do Rio Grande com o Ministério do Desenvolvimento Agrário
do Sul, de Minas Gerais e do Paraná, sofre- (MDA), cumprindo as funções de secretaria
ram retrocessos, como denunciou o estudo executiva da Câmara. No governo de Michel
realizado por Guéneau, Sabourin, Colonna Temer, o tema foi deslocado para a Secretaria
et al.19, acompanhando a mesma orientação Nacional de Articulação Social, da Secretaria
conservadora do governo central. de Governo da Presidência, e a sua secretaria
O espaço do tema no principal documento executiva foi realocada na Secretaria Especial
de orientação do governo federal, o PPA, foi de Assuntos Fundiários (Seaf ), que deu lugar
esmaecendo ao longo dos anos. Quando se ao MDA.
verifica o PPA 2012-201523, o tema integrava o No atual governo, houve reposiciona-
Programa Segurança Alimentar e Nutricional mento da agenda para um departamento
e se articulava a outros grandes programas do Ministério da Agricultura, Pecuária e
de governo, como o Programa de Aquisição Abastecimento (Mapa) pelo Decreto nº
de Alimentos (PAA), que possuía metas de 10.253, de 20 de fevereiro de 202025, incor-
produção orgânica como forma de estímulo às rendo na extinção da Seaf. Hoje, a pauta está

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Tão perto e tão longe: trajetória da agroecologia na agenda brasileira de políticas públicas 463

diluída entre a Secretaria de Agricultura comercialização de produtos agroecológicos,


Familiar e Cooperativismo e a Secretaria de bem como incentivar outras atividades não
Desenvolvimento Rural, Inovação e Irrigação. agrícolas, como turismo e artesanato, em as-
Além disso, os últimos governos são marca- sentamentos de reforma agrária. A mesma
dos pelo afastamento da sociedade civil e pelo lógica era seguida pelo Programa Ecoforte,
enfraquecimento continuado das instâncias mais vocacionado aos povos e comunidades
de diálogo e participação. Para a PNAPO, isso tradicionais. Ambos os programas tiveram
foi particularmente problemático, pois, com suas últimas chamadas públicas em 2016, não
a edição do Decreto nº 9.784, de 201926, tanto havendo chamamentos posteriores para apoio
o Conselho como a Comissão foram extintos, de projetos.
assim como outras tantas instâncias colegiadas Na Política Nacional de Redução dos
na esfera federal. Agrotóxicos (PL 6.670/2016), reside um dos
Ademais, a postura beligerante do governo maiores pontos de conflito entre a agenda agro-
em relação aos movimentos sociais natural- ecológica e o agronegócio, que tem ao seu lado
mente afasta a coalizão que advoga pelo tema, uma portentosa frente parlamentar, além de
que agora encontra poucos espaços institu- instituições associativas, como a Confederação
cionais para dialogar e reestabelecer espaço Nacional da Agricultura, e de grandes corpo-
na agenda. A exceção a tal cenário fica por rações do setor. Trata-se de uma disputa que
conta da Frente Parlamentar da Agroecologia, possui outros elementos, mas que teve clara-
instalada como resposta ao Requerimento mente um posicionamento contrário dos dois
719/201927, proposto pelo deputado Leonardo últimos governos, que corroboraram o quadro
Monteiro (PT-MG) durante o Seminário Terra de fragilização institucional da agroecologia.
e Territórios: alimentação saudável e redução Isso fica evidente quando se vê o enaltecimento
de agrotóxicos. do agronegócio e dos insumos que asseguram
Por outro lado, o teto dos gastos impôs limi- aumento da produtividade, a exemplo dos fun-
tações e tem servido como justificativa para o gicidas, que só no ano de 2019 somaram 479
esvaziamento de algumas agendas e extinção autorizações de uso segundo dados do Mapa.
de estruturas que coordenavam tais temas Do ponto de vista orçamentário e de dispo-
no âmbito da administração pública. Desde nibilidade de quadros para tratar do tema, o
a criação da PNAPO, seu funcionamento se que se verificou foi um rápido declínio no orça-
alicerçou em dois programas: o Terra Forte, mento, bem como nas condições institucionais
que tinha por objetivo implantar e modernizar para sua implantação. Embora a PNAPO e o
empreendimentos coletivos agroindustriais Planapo fossem conduzidos pela Presidência
em Projetos de Assentamento da Reforma da República até 2018, com quadros exclusivos
Agrária, criados ou reconhecidos pelo Instituto já bastante reduzidos, sua potência se dava
Nacional de Colonização e Reforma Agrária com as parcerias intragovernamentais, nota-
(Incra) em todo o território nacional. Sua damente o MDA, o Incra, o Ministério do Meio
gestão se dava na forma colegiada, e os in- Ambiente (MMA) e o Mapa. O gráfico abaixo
vestimentos eram direcionados a cooperativas mostra como declinou o orçamento das ações
e associações de produção ou de comerciali- de governo voltadas para a agroecologia. Vale
zação com foco na agroecologia. ressaltar que o PAA teve seu funcionamen-
Ainda há que se mencionar o Programa to prejudicado com a extinção do Conselho
Terra Sol, criado em 2004 como parte do Nacional de Segurança Alimentar (Consea)
Plano Nacional de Reforma Agrária, cujo ob- e atualmente se limita a liquidar os Restos a
jetivo era fomentar a agroindustrialização e a Pagar inscritos nos exercícios anteriores.

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464 Rocha Neto JM

Gráfico 1. Evolução orçamentária - ações voltadas para a agroecologia - 2016 a 2019

10

0
Pró-Orgânico Fortalecimento e Assistência Técnica e
Dinamização da Agricultura Extensão Rural para
Familiar Agricultura Familiar

2016 2017 2018

Alguns sinais dessa dissidia institucional são movimentos sequenciados de enfraquecimento


reforçados ao se consultar o site concebido es- e esvaziamento.
pecialmente para tratar da agroecologia, já men- O artigo fez uma breve discussão sobre os
cionado, e verificar que, desde 2018, não ocorrem elementos que demarcam esse ciclo a partir de
reuniões das instâncias colegiadas extintas em um referencial conceitual que tomou a inovação
abril de 2019, além de sequer haver atualização de e a extinção como partes do percurso feito pelas
informações ou sua migração para o portal ‘gov. políticas na agenda de governo.
br’, que atualmente recepciona todas as iniciativas Igualmente, procurou trazer elementos con-
do governo federal. junturais, bem como posições políticas ideo-
Esse conjunto de fatores remete ao debate lógicas que convergem para a extinção, se não
feito por Adam, Bauer, Knil et al.28 ao reconhecer de forma peremptória, em fases que levam ao
que existem muitas razões que, ao convergirem, esquecimento do tema e sua posição secundária,
facilitam a extinção de uma política pública ou com uma permanência institucional quase débil.
de uma organização. Os apontamentos feitos Perante as disputas já mencionadas e a uma
pelos autores possibilitam compreender que a agenda de governo que possui abordagem liberal,
política de agroecologia se encontra em trajetória além de se orientar pelo conflito com a socieda-
descendente, o que não quer dizer que, em outro de civil organizada, políticas públicas que con-
cenário, sua reconstituição não venha a acontecer. substanciem mudanças estruturais passam a ser
objeto de esvaziamento. Dessa forma, lançar mão
do arcabouço teórico sobre a extinção das políti-
Considerações finais cas e organizações passa a ser uma necessidade
dos diversos campos de conhecimento que, ao
A agenda de políticas públicas, muitas vezes, é discutirem tal abordagem, podem fornecer à so-
a expressão dos grupos que apoiam as gestões ciedade elementos para compreender o elemento
e, portanto, pod em alternar temas, conferindo- ideológico no funcionamento dos governos.
-lhes espaço privilegiado, mas também lhes
dando importância secundária, chegando até,
no limite, a extinguir políticas e instituições. Colaborador
No caso específico da agroecologia, sua curta
trajetória emergiu em 2012 com a institucionali- Rocha Neto JM (0000-0002-2306-992X)* é
*Orcid (Open Researcher
zação da PNAPO e seus instrumentos, e parece responsável pela elaboração do manuscrito. s
and Contributor ID). estar terminando nos últimos quatro anos, com

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Tão perto e tão longe: trajetória da agroecologia na agenda brasileira de políticas públicas 465

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466 Rocha Neto JM

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regulamenta o Programa de Aquisição de Alimentos; of Public Organizations: Theoretical Perspectives to
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bre a criação do Programa de Garantia de Preços para niz Rev. 2007; 7:221-236.
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de 2011, que regulamenta o Programa de Fomento às
Atividades Produtivas Rurais; e dá outras providên-
cias. Diário Oficial da União. 7 Jun 2013.
Recebido em 12/09/2020
Aprovado em 14/06/2021
Conflito de interesses: inexistente
25. Brasil. Decreto nº 10.253, de 20 de fevereiro de 2020.
Suporte financeiro: não houve
Aprova a Estrutura Regimental e o Quadro Demons-
trativo dos Cargos em Comissão e das Funções de

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ENSAIO | ESSAY 467

O caráter pandêmico dos desastres


socioambientais e sanitários do agronegócio
The pandemic nature of agribusiness’ socio-environmental and
sanitary disasters

Wanderlei Antonio Pignati1, Mariana Rosa Soares1, Marcia Leopoldina Montanari Corrêa1, Luís
Henrique da Costa Leão1

DOI: 10.1590/0103-11042022E231

RESUMO O processo de produção do agronegócio químico-dependente é um dos maiores geradores


de riscos, desastres socioambientais e sanitários de caráter pandêmico. Ele atua na determinação social
da saúde-doença-danos ambientais, levando a situações críticas, riscos e vulnerabilidades, exploração
humana, intoxicações agudas e crônicas e degradações ecológicas como efeitos de suas formas danosas
de estabelecer inter-relações entre produção-ambiente-sociedade. O setor tem contribuído diretamente
para a crise ecológica e sanitária globalizada ao dar origem a sindemias, insegurança alimentar, contami-
nação das águas, alimentos além de produzir doenças infecciosas novas e/ou reemergentes. Neste ensaio
crítico, com base nos estudos do Núcleo de Estudos Ambientais e Saúde do Trabalhador da Universidade
Federal de Mato Grosso, demonstram-se diferentes elementos ameaçadores, destrutivos, degradantes e
violadores do direito à saúde dos trabalhadores e ambiental nos principais elos da cadeia produtiva do
agronegócio. Em seguida, utilizando também análises de documentos públicos, normativas do Estado e
dados de sistemas de vigilância em saúde, evidenciam-se os processos de contaminação de alimentos e
água decorrentes dos agrotóxicos, bem como apresenta-se uma crítica às tendências políticas que giram
em torno do agronegócio. Por fim, destaca-se a necessidade premente de uma transição agroecológica
enquanto resposta às doenças e às sindemias do agronegócio.

PALAVRAS-CHAVE Agronegócio. Pandemia. Poluição ambiental. Agrotóxico.

ABSTRACT The production process of the chemical-dependent agribusiness is one of the largest generators
of risk, socio-environmental, and sanitary disasters of a pandemic nature. It acts on the social determination
of health-disease-environmental damages, leading to critical situations, risks and vulnerabilities, human
exploitation, acute and chronic poisoning, and ecological degradations as the effects of their harm to establish
interrelations between production-environment-society. The sector has contributed directly to the global-
ized ecological and sanitary crisis by giving rise to syndemics, food insecurity, water and contamination,
besides producing new and/or reemergious infectious diseases. In this critical essay, based on the studies
of the Nucleus for Environmental Studies and Workers Health of the Federal University of Mato Grosso,
different elements that are menacing, destructive, degrading, and violators of workers’ right to health and
environmental health are demonstrated in the main links in the production chain of agribusiness. Next, using
public document analyses, state regulations, and data from health surveillance systems, the processes of
food and water contamination arising from agrochemicals are exposed, as well as a criticism of the political
tendencies that revolves around agribusiness. Finally, we highlight the pressing need of an agroecological
transition as a response to the diseases and syndemics of agribusiness.
1 Universidade
Federal de
Mato Grosso (UFMT) – KEYWORDS Agribusiness. Pandemics. Environmental pollution. Agrochemicals.
Cuiabá (MT), Brasil.
pignatimt@gmail.com

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 467-481, JUN 2022
468 Pignati WA, Soares MR, Corrêa MLM, Leão LHC

Introdução econômicas e sanitárias impulsionado pela


chamada ‘Revolução Verde’, a partir da década
As cadeias produtivas globais do mercado in- de 1950, e da modernização da agricultura,
ternacional neoliberal têm influência direta que segue sua marcha em renovadas alianças
no processo de produção social de doenças entre capital e biotecnologias1-7.
e emergências sanitárias devido ao fluxo de O agronegócio, como descrito acima, con-
materiais, serviços, produtos e pessoas que tribui diretamente para a crise ecológica e
causam impactos ambientais, dominação sanitária globalizada, posto que a produção de
cultural, controle de territórios e de fontes commodities tem mantido uma iníqua distri-
naturais (água, ar, solo, minérios etc.), imi- buição e processos violentos de expropriação
gração forçada, formas contemporâneas de da terra, exploração de recursos naturais e da
escravidão, privatizações econômicas e pro- força de trabalho humana, acesso desigual à
cessos de pauperização de populações, criando água e fortes pressões sobre populações tradi-
desequilíbrios ecológicos-sociossanitário e cionais e originárias, desrespeito às tradições
pandemias1-9. Duas grandes cadeias produtoras e culturas, como indígenas, quilombolas, agri-
de commodities são responsáveis pelos maiores cultores familiares, camponeses, assentados,
danos ambientais, impactos na saúde humana trabalhadores imigrantes, entre outros14,15.
e injustiça fiscal, ou seja, a do agronegócio e a Nesse cenário, buscamos evidenciar que o
da mineração1,10. problema do agronegócio se apresenta como
O atual estágio da agricultura moderna, relevante e urgente por ser um dos maiores
imerso em um modelo produtivo químico- geradores de situações de risco e desastres
-dependente, pode ser considerado um dos socioambientais e sanitários de caráter pan-
polos geradores de graves situações para a dêmico8-16. Com esse objetivo, desenvolvemos
saúde dos trabalhadores, do ambiente e das este ensaio crítico, compreendendo que o pro-
populações. De fato, na contemporaneidade, cesso de produção do agronegócio atua na
existe uma permanente produção de pan- determinação social da saúde-doença-danos
demias e desastres socioambientais que são ambientais e que seus problemas não se con-
derivados do modelo de produção-consumo figuram como situações isoladas, pontuais,
do capitalismo globalizado e têm impactos naturais e estáticas da produção agrícola. Ao
de dimensão, extensão e gravidade como o contrário, trata-se de uma questão histórico-
processo produtivo do agronegócio quando -crítica relativa a um processo de desenvolvi-
consideramos toda sua cadeia, que vai desde mento de situações de riscos, vulnerabilidades,
desmatamento, indústria da madeira, pecuária, acidentes e danos ambientais como efeitos
agricultura, transporte e agroindústria1,10,11. cumulativos das formas agressivas de inter-
Esse setor, que, hegemonicamente, organi- -relações humanas com a natureza.
za-se em monoculturas com uso de grandes Essas situações estão na origem de muitas
extensões de terra, recebendo apoio, isenções formas de adoecimento e morte das popula-
e incentivos de governos e aparatos do Estado, ções, dos desiquilíbrios ambientais, sociais
além de desmatar florestas, faz uso de moder- e sanitários que dão origem às mais diversas
nas máquinas agrícolas com intensa utilização pandemias, sejam elas dos desastres ambien-
de fertilizantes químicos, agrotóxicos e se- tais, insegurança alimentar, fome, aciden-
mentes transgênicas, aumentando a exposição tes de trabalho, contaminação das águas e
aos riscos e, consequentemente, produzindo dos alimentos e várias doenças infecciosas
severos danos ao ambiente e à saúde física e novas e reemergentes, como malária, febre
mental dos trabalhadores e populações1,10-13. amarela, síndromes respiratórias agudas
Trata-se de um modelo de produção que in- graves (SAR’s), peste suína e Covid-19.
terliga esferas políticas, sociais, ecológicas, Por isso, essas degradações ambientais,

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 467-481, JUN 2022


O caráter pandêmico dos desastres socioambientais e sanitários do agronegócio 469

fragilizações sociais, condições agudas e elementos para vislumbrar as tendências po-


crônicas, que ocorrem em interação, podem líticas que giram em torno do agronegócio.
ser classificadas como contínuas sindemias. Por fim, chamamos atenção para a urgente
Por sindemia, compreende-se justamente necessidade de uma transição agroecológica
a ocorrência simultânea de duas ou mais como uma resposta às doenças e sindemias
doenças que interagem umas com as outras e do agronegócio, capaz de apontar caminhos
determinadas pelas mesmas bases sociais17. reais de superação das atuais condições de
Assim, de modo específico, para funda- produção social das sindemias desse modelo
mentar a argumentação deste ensaio crítico, de produção agropecuária.
tomamos como base as produções científicas
do Núcleo de Estudos Ambientais e Saúde do
Trabalhador (Neast) da Universidade Federal Aspectos da cadeia
de Mato Grosso (UFMT), que, ao longo de destrutiva do agronegócio
duas décadas, constituiu-se uma instância
articuladora de uma ciência crítica sobre as No Brasil, existe uma forte tendência em
relações saúde-trabalho-ambiente no con- setores da sociedade para apresentar a cadeia
texto do agronegócio em Mato Grosso. Esse produtiva do agronegócio como o melhor
grupo interdisciplinar, engajado no compro- negócio para o País. Essa prática discursiva
misso com a produção de conhecimento e a ressalta que esse setor tem alta incorporação
transformação social, desenvolveu métodos tecnológica e produtos de qualidade, aquece
de produção e saber-ação em saúde coletiva negócios em setores relacionados (serviços,
que consideram a integração dos diferentes equipamentos e insumos agrícolas), aumenta
aspectos da complexidade dos impactos am- o Produto Interno Bruto (PIB) e salva econo-
bientais, sociais, econômicos e sanitários do mia das suas crises. De fato, o Brasil é um dos
agronegócio, bem como variados instrumen- maiores produtores agropecuários do mundo
tos metodológicos, conectando planejamento, e o segundo maior exportador de commodities,
ciências sociais e epidemiologia crítica, com mas a que custos social e ambiental?6,14-16.
participação comunitária, intersetorial e pers- Toda essa pujança econômica se assenta em
pectiva dialógica dos sujeitos e dos grupos um padrão de produção agropecuário químico-
sociais dos territórios afetados18. -dependente (sementes transgênicas, agrotó-
Lançamos mão ainda de publicações mais xicos, fertilizantes químicos, ração animal e
recentes que analisam o agronegócio e sua conservantes químicos de alimentos) resultado
relação com a pandemia de Covid-19. Assim, de alianças do capital internacional, grandes
fazemos uma breve descrição dos principais corporações com as oligarquias nacionais e
elos da cadeia do agronegócio para elencar as- grupos que atuam dentro das instâncias de
pectos ameaçadores, destrutivos, degradantes poder no Estado, fortalecendo o latifúndio e
e violadores do direito à saúde dos trabalhado- reatualizando opressões em um acordo tácito,
res e ambiental. Em seguida, concentramo-nos um verdadeiro pacto genocida.
em delinear a degradação de duas das princi- A análise integrada em saúde-trabalho-am-
pais fontes de energia, saúde e vida humana e biente feita por Pignati1 traz uma exposição
natural: alimentos e água. Para isso, além de clara do que está por trás do agronegócio como
pesquisas do Neast, fizemos uso de análises de mostra a figura 1, que evidencia os impactos na
documentos públicos, normativas do Estado e saúde dos trabalhadores, agravos na população
dados secundários de sistemas de vigilância do e danos ambientais em todos os elos dessa
Ministério da Saúde (MS), que nos fornecem cadeia produtiva.

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470 Pignati WA, Soares MR, Corrêa MLM, Leão LHC

Figura 1. Etapas do processo produtivo do agronegócio e seus impactos na saúde do trabalhador, na população e no
ambiente

Fonte: Pignati1.

O que se ressalta nessa figura é que as ati- maior produtor de madeiras do mundo e o
vidades de cada elo da produção agropecuária maior desflorestador com as consequentes
geram riscos e agravos, como desmatamentos, queimadas dos ‘restos’ desflorestados, para
poluições, acidentes de trabalho, mutilações, depois se plantarem pastagens para o gado
sequelas, intoxicações, doenças crônicas e con- bovino ou soja, milho, algodão e cana naquele
taminações humana e ambiental. Esses aciden- processo de monoculturas descritos acima.
tes e agravos são um dos problemas de maior Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas
relevância para a saúde do(a) trabalhador(a), Espaciais (Inpe), pelo projeto Prodes, o des-
da população e do ambiente no Brasil e no matamento na Amazônia Legal aumentou em
mundo em um processo pandêmico no qual 17% nos últimos três anos, principalmente nos
a produção agropecuária se faz em monocul- estados do ‘Arco do Desmatamento’ e na região
turas extensivas, como Argentina, Estados do Agronegócio no Matopiba (Mato Grosso,
Unidos da América, Índia e China. Tocantins, Piauí e Bahia)19-21.
As etapas e os elos dessa extensa cadeia Estudos de Pignati e Machado22 indicaram
do agronegócio podem ser sequenciais como que os trabalhadores nesses dois elos produti-
descritas na figura 1 ou acontecerem ao mesmo vos tornaram o Brasil campeão mundial de mu-
tempo, dependendo do território, tempo de tilados e sequelados por acidente de trabalho
desmate, plantio e clima. Os dois primeiros elos na década de 2000. Esses estudos mostraram
dessa cadeia andam juntos, ou seja, desmata- que existiam, em Mato Grosso, 1.749 indústrias
-se e utilizam-se as madeiras nobres para as madeireiras e, a partir de dados levantados
indústrias madeireiras, tornando o Brasil o em Mapas de Riscos, 999 madeireiras, em que

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O caráter pandêmico dos desastres socioambientais e sanitários do agronegócio 471

laboravam 21.607 trabalhadores e se examina- Esse processo produtivo químico-depen-


ram clinicamente 4.381, dos quais 11% estavam dente nas pastagens de bovinos e granjas de
mutilados, 25% sequelados, 21% hipertensos, suínos e aves é um dos fatores de contami-
3% com malária e leishmaniose e 20% viviam nação de alimentos, bem como de produção
sob assédio nos alojamentos dos patrões. de ‘super’ bactérias, ‘super’ vírus e ‘super’
O estado de Mato Grosso, atualmente, fungos, incluindo a Peste Suína, os SAR’s e o
campeão nacional de produção de madeira, coronavírus da atual pandemia. As interações
soja, milho, algodão e gado bovino, também sociais, químicas e biológicas, decorrentes
é campeão nacional de incidência de aci- das modificações da natureza, em conjunto
dentes e mortes no trabalho – dos quais com esse processo químico, produzem outro
70% estão relacionados com o agronegócio ambiente no qual alguns desses microrganis-
(agropecuária, frigoríficos, usinas de açúcar/ mos ‘modificados’ são infectantes e nocivos
álcool, madeireiras e transporte/silagem), e para os animais, inclusive os humanos. Estes
as maiores incidências estão nas regiões de têm suas imunidades precarizadas por vários
maior produção agropecuária e madeira1,23,24. fatores, dentre os quais se destaca o consumo
No momento presente, no estado, existem 536 de alimentos transgênicos e com resíduos de
indústrias da madeira, e as restantes migra- agrotóxicos imunodepressores, desregulado-
ram para os estados de Rondônia, Amazonas, res endócrinos e cancerígenos2,26.
Piauí, Tocantins, Pará e Maranhão e para os Nesse elo, o setor dos frigoríficos é o de
países fronteiriços, como Paraguai e Bolívia, maior rotatividade no trabalho e de grande
para continuarem com o ato de destruição incidência de acidentes ocupacionais do
e transformação da floresta em madeira e País, aparecendo em segundo lugar depois
monoculturas. das indústrias urbanas; inclusive, aí se loca-
O elo da cadeia produtiva da pecuária é a lizam as maiores causas de assédio laboral,
frente do agronegócio após o desmatamento, e Dort, doenças mentais e o novo corona-
demostra efeitos danosos e até irreversíveis ao vírus16,22,24,27,28. O Brasil é um dos maiores
meio ambiente (desmatamento, desertificação produtores e exportadores de couro bovino
do solo, gás estufa e queimadas), além do uso curtido do mundo, mas os curtumes também
intensivo de agrotóxicos nas pastagens, apli- são grandes poluidores de águas, pois utilizam
cação de inseticidas diretamente nos animais, em seu processo grandes volumes de ácido
além dos 15.500 litros de água para a produção sulfúrico e metais pesados, descartados nos
de 200 kg de carne bovina25. Aliada a esse seus efluentes maltratados que vão para os rios.
processo, existe ainda a produção de suínos e O elo e as etapas da agricultura, em que se
aves que são confinados adensadamente em concentram os maiores problemas ambientais,
granjas, consomem ração baseada em soja e ocupacionais e impactos na saúde humana e
milho, ambos transgênicos e com resíduos animal, também são o mais defendido pelo
de agrotóxicos, outros produtos químicos agronegócio, que costuma deslegitimar pes-
(vitaminas químicas e antibióticos) e deriva- quisadores e fazer propaganda na grande mídia
dos de gorduras, penas e carcaças ósseas dos como ‘salvador da pátria’ e ‘agro é tudo’. Essas
animais abatidos. Além disso, esse modo de narrativas de defesa desse tipo de agropecuária
produção de animais em larga escala pode se estruturam e ocupam lugares estratégicos
gerar um processo de contaminação química desde os campos políticos em bancadas supra-
e biológica entre os animais e destes para o partidárias de defesa desse modelo até o campo
ser humano, como intoxicações crônicas, no cultural, a partir das campanhas midiáticas que
caso de consumo de animais com resíduos de forjam o agronegócio como única e irrepreen-
produtos químicos, e zoonose, para casos de sível alternativa possível para a produção de
doenças infecciosas. alimentos e desenvolvimento econômico do

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472 Pignati WA, Soares MR, Corrêa MLM, Leão LHC

País. Também, ele tem sido defendido pelo às formas de vida de diferentes populações
governo federal e pela maioria dos governos humanas, animais e vegetais no Brasil e em
estaduais e municipais, em que eles represen- países com processos produtivos do agronegó-
tam as corporações do capital. Além disso, a cio semelhantes ao citado, em uma verdadeira
maioria dos legisladores (deputados federais e pandemia.
estaduais, senadores e vereadores) defendem A exposição aos agrotóxicos agrícolas, em
esse modelo e estão intimamente ligados ao graus diferenciados de toxidade, se dá de
agronegócio e/ou às indústrias de agrotóxicos, modo ocupacional e ambiental, por meio de
fertilizantes, máquinas agrícolas e indústria de pulverizações aéreas, mecanizadas e costais,
armas para ‘defender’ a propriedade da terra. e está presente em todos os elos da cadeia
Em 2018, por exemplo, o Brasil plantou 75,6 produtiva do agronegócio, deixando resíduos
milhões de hectares de lavouras em 21 dos nas águas, no solo e no processo agroindustrial
maiores tipos de cultivos, nos quais foram de alimentos. Cada brasileiro está exposto
pulverizados um total de 1,2 bilhão de litros a 6 litros de agrotóxicos por ano, isto se dá
de agrotóxicos (produtos formulados de her- quando somamos as exposições ocupacionais,
bicidas, inseticidas e fungicidas) e usados 7 ambientais por residir próximo das pulve-
bilhões de quilogramas de fertilizantes quí- rizações e dos seus resíduos presentes nos
micos. Desses agrotóxicos, 15% eram extre- alimentos, água, ar, chuva, solo e leite materno
mamente tóxicos; 25%, altamente tóxicos; da população brasileira, 210 milhões de habi-
35%, medianamente tóxicos; e 25% são pouco tantes e sua relação com o total de agrotóxicos
tóxicos na classificação de toxicidade aguda pulverizados nas lavouras no ano de 2018, ou
para humanos. Esse total de área plantada do seja, 1,2 bilhão de litros de produto formulado,
Brasil estava concentrado em monoculturas tendo como base a metodologia desenvolvida
de soja (42%), de milho (21%) e de cana-de- por Pignati et al.6.
-açúcar (13%), que juntas representaram 82% Os agricultores, principalmente os grandes,
de todo o consumo de agrotóxicos do País6. pulverizam ou contaminam intencionalmente
A maioria desses tóxicos são proibidos na o ambiente ocupacional e todo o ambiente
União Europeia (UE) e liberados no Brasil geral das lavouras para atingir o alvo (insetos,
por pressão do agronegócio, das indústrias fungos ou ervas daninhas); e atingem também,
e seus aliados, contando com a submissão deixando resíduos, os cereais (soja, milho,
da Agência Nacional de Vigilância Sanitária feijão, arroz etc.), as fibras de algodão, o fumo,
(Anvisa), do Ministério da Agricultura, a cana-de-açúcar, o solo, o ar e as águas su-
Pecuária e Abastecimento Ministério da perficiais e subterrâneas, processo esse com
Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) evidente caráter de crime doloso e pandêmico1.
e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e O acúmulo de produtos tóxicos lançados ao
dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) longo dos anos e o aumento da emergência de
aos interesses econômicos do lucro em de- fungos, bactérias e doenças vegetais resistentes
trimento da saúde humana e ambiental29,30 e que se proliferam anualmente indicam um
da soberania e segurança alimentar do País31. ciclo vicioso cujas dimensões longitudinais
Esses dados também indicam que o ‘de- evidenciam o desastre e a insustentabilidade
senvolvimento’ desse setor econômico está ambiental dessas práticas. O problema dos
pautado no envenenamento químico, acordo agrotóxicos dessa agricultura mecanizada
tácito e o pacto genocida que mencionamos revela a sua incompatibilidade com a criação
acima. Ele é eticamente injusto, socialmente de espaços socioambientais sustentáveis e
prejudicial, ambientalmente insustentável sociedades mais saudáveis.
e extremamente adoecedor porque produz Destaca-se ainda que existe um forte ne-
vítimas, degradações e ameaças permanentes gacionismo por parte de setores da sociedade

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O caráter pandêmico dos desastres socioambientais e sanitários do agronegócio 473

quanto aos riscos e agravos relacionados com mutagênicos (defeitos no DNA), carcinogêni-
os agrotóxicos. Entretanto, os estudos trazem cos (mama, ovário, próstata, testículo, esôfago
evidências científicas suficientes sobre a asso- etc.) e imunodepressores6,25,30,32,33.
ciação entre exposições ocupacional, ambiental Pesquisas do Neast da UFMT6 vêm utili-
e alimentar de intoxicações agudas e crônicas zando perspectivas teórico-metodológicas
provocadas por esses venenos agrícolas. Em críticas de abordagens integradas com geo-
uma revisão sistemática relativa às pesquisas processamento e concluem que, nas regiões de
sobre agrotóxicos e efeitos na saúde humana maior produção agrícola dentro dos estados
no mundo dos últimos 20 anos, foram encon- brasileiros (MT, MS, GO, PR, RG, SP e TO) das
trados 7.419 estudos; destes, detalharam-se 448 culturas somadas de soja, milho, cana, algodão,
com estudos epidemiológicos de correlação arroz, feijão, fumo e café e de seus volumes
estatística positiva, dos quais 243 evidenciaram de agrotóxicos usados nessas lavouras, existe
os canceres, 58 sobre neurotoxidade, 33 sobre uma correlação positiva com as incidências de
pneumotoxidade, 45 sobre embriotoxicidade, intoxicações agudas, mortes por intoxicações,
31 sobre toxicidade para o desenvolvimento cânceres infantojuvenis, malformações fetais,
físico e mental e 38 estudos sobre desregula- abortos e suicídios. Esses dados e conclusões
dores endócrinos21. Além disso, recentemente, são corroborados por diversos estudos na li-
a Organização Mundial da Saúde (OMS), por teratura científica29,30,34-41.
meio da Internacional Agency for Research on
Cancer (Iarc)27, fez uma revisão de dez agrotó-
xicos mais utilizados no mundo, entre eles, o Agronegócio e a
herbicida Glifosato (Roundoup, Mata-mato ou contaminação da nossa água
Glifosato genérico), e concluiu que esse tóxico,
o mais usado no mundo e que representa 40%
e dos nossos alimentos
de todos os pesticidas, é provável cancerígeno
para humanos, classificado no nível 2A em uma Atualmente, os maiores fatores de indução de
escala que vai de 1 (certamente cancerígeno) doenças crônicas citadas no item anterior são
a 4 (não cancerígeno). Os pesquisadores da as contaminações ocupacionais, ambientais,
OMS que elaboraram esse estudo recebem alimentar e das águas (potável, rios e chuva)
pressões das indústrias e do agronegócio, em por produtos químicos usados nos diversos
nível mundial, para rever os estudos enquanto processos produtivos urbanos e rurais, entre
a UE deu prazo até 2022 para também bani-lo eles, os usados pelo agronegócio como vimos
de uso, juntamente com dezenas já proibidos anteriormente.
nos seus países. Quando observamos os dados do Sistema
Em outras palavras, podemos afirmar que de Informação de Vigilância da Qualidade da
os agrotóxicos causam doenças agudas de in- Água para Consumo Humano (Sisagua)42 do
toxicações leves e graves e que podem levar a MS, foi verificado que, dos 5.570 municípios,
óbito (gastrointestinais, dérmicos, hepáticos, 1.302 fizeram análises dos componentes de
renais, neurológicos, pulmonares e déficit imu- contaminação química da água potável no
nológico) e a doenças crônicas, como cânceres período de 2014 a 2017; e notou-se que 22%
infantojuvenis, alterações do sistema reprodu- deles apresentaram resíduos de agrotóxicos
tor, neuropatias (surdez, diminuição da força acima do Limite Máximo de Resíduos (LMR)
muscular, paralisias e doença de Parkinson), permitido pela Norma Legal Brasileira ou
psiquiátricos (depressão, distúrbios cognitivos, Portaria do MS nº 2.914/201143, que 53%
autismo), desreguladores endócrinos (diabe- deles continham amostras abaixo do LMR
tes, hipotiroidismo, infertilidade, abortos), e que 25% dos municípios apresentaram au-
teratogênicos (anencefalia, malformações), sência de resíduos nas amostras coletadas.

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474 Pignati WA, Soares MR, Corrêa MLM, Leão LHC

Essas informações devem levar a uma crítica dez tipos de agrotóxicos diferentes em uma
radical desse uso do conceito de ‘potabili- só amostra. Cabe ressaltar que a Anvisa ana-
dade’ da água – até porque a norma acima lisou 270 tipos de agrotóxicos diferentes, mas
prevê análises semestrais de amostras de estão registrados no Brasil 650 ingredientes
água potável de 27 tipos de agrotóxicos (gli- ativos desses venenos e não estão incluídos
fosato, 2.4.D, piretróides e outros), 15 metais no sistema do Para a análise de carnes, leite,
pesados (chumbo, mercúrio, cobre e outros), ovos e alimentos processados. A norma prevê
15 solventes (benzeno, tolueno e outros) e 7 que, em 1 quilograma de soja, poderemos ter
desinfetantes domésticos (derivados do sabão, até 10 miligramas de Glifosato, e no feijão,
detergentes, ceras e outros). Para exemplificar podemos ter até 8 miligramas de Malathion;
o risco, ela prevê que, em 1 litro d’água potável, enquanto na UE, sua Norma prevê um LMR
poderemos ter 500 microgramas de Glifosato de 0,05 e 0,02 miligramas respectivamente, ou
ou 30 microgramas de 2.4-D como LMR, mas seja, 200 ou 400 vezes menor que no Brasil.
na UE44, sua norma/diretiva prevê um LMR Isso revela compromisso com a produção de
de 0,1 microgramas para ambos os agrotóxicos alimentos ou simplesmente de mercadorias?
com um máximo de 5 agrotóxicos e naqueles As indignações e as questões são as mesmas
mínimos LMR em 1 litro d’água potável, en- feitas para nossa água potável29,31.
quanto no Brasil são permitidos 27 tipos de Em avaliações integradas e participativas
agrotóxicos em 1 litro, com valores elevados de saúde-trabalho-ambiente realizadas por
de LMR25. É preciso chamar a atenção para pesquisadores do Neast da UFMT em regiões
o componente étnico-racial e a colonização grandes produtoras agrícolas de Mato Grosso
química que se revelam nesse cenário. Afinal, a (Rondonópolis, Sorriso, Sapezal e Canarana),
população do sul global é ‘mais forte’ e suporta constataram-se, além da insegurança alimen-
mais venenos na água potável? As instituições tar, contaminações por vários agrotóxicos
e os órgãos reguladores como MS e Anvisa usados nas lavouras de soja, milho, algodão e
estariam subjugados? Quais as razões dessas pastagens, em dezenas de amostras de águas
diferenças entre sistemas de vigilância euro- dos rios, lagos, chuva, ar, água potável, hor-
peus e brasileiros na proteção da saúde? taliças, soja, milho, fibras de algodão, peixes,
Da mesma maneira, quando observamos os leite materno, sangue e urina de trabalhadores
dados de contaminação química dos alimentos e população de vilas rurais e do entorno das
que vão para nossas mesas e se observarmos cidades1,11,31,46-49. Também, nos estudos rea-
apenas o componente agrotóxicos no Sistema lizados nas regiões do Pantanal e do Parque
de Vigilância Sanitária de Alimentos, verifica- Indígena do Xingú, cujos principais rios,
remos que, no Programa Nacional de Análise Paraguai e Xingú, abastecem de água esses
de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos territórios, verificou-se que suas nascentes
(Para) do MS45, das 4.616 amostras de 14 ali- estão dentro das plantações de soja, milho,
mentos coletados em 77 cidades brasileiras algodão, pastagens e cana; e foram detectados
(capitais e maiores) em 2017/2018, constatou- vários agrotóxicos nas suas águas, sedimen-
-se que 28% das amostras têm agrotóxicos tos, peixes, tartarugas e sapos50-55. Ainda, os
abaixo do LMR, 23% têm agrotóxicos acima estudos de pesquisadores argentinos56 na foz
do LMR ou não autorizado para as culturas do Rio Paraguai, que nasce em Mato Grosso,
e/ou proibido no Brasil, e apenas 49% das atravessa o Pantanal, o Paraguai, a Argentina e
amostras não apresentaram resíduos dos agro- desemboca entre Buenos Aires e Montevidéu,
tóxicos pesquisados. Por que tantos agrotó- constataram que ele vai contaminando as águas
xicos detectados em alimentos considerados e sedimentos com os resíduos de agrotóxicos
saudáveis para a dieta da população? Além usados nas lavouras em monoculturas quími-
disso, há registro de alimentos com mais de co-dependentes desses países.

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O caráter pandêmico dos desastres socioambientais e sanitários do agronegócio 475

Cenário político atual: De igual modo, percebemos um enfraque-


‘passando a boiada’ sobre o cimento de implementação da Vigilância em
Saúde Humana e Saúde Ambiental e aumento de
ambiente e na vida recursos para a Vigilância Sanitária dos bovinos
e da soja com recursos públicos. Emperram
O que se percebe no Brasil é que, apesar dos também as implementações da Vigilância em
evidentes desastres causados pelo agronegócio, Saúde dos Trabalhadores, a Política Nacional de
nos últimos anos, na contramão da proteção da Saúde Integral das Populações do Campo e da
saúde, existem desregulamentações de normas Floresta61 e a Vigilância em Saúde das Populações
ambientais e sanitárias, aumento de autorizações Expostas aos Agrotóxicos62. Recentemente, na
de desmatamentos e implantação de agropecuá- área ambiental, a inoperância do estado brasileiro
rias em terras indígenas, no Pantanal, no Xingú em fiscalizar e punir infratores ambientais, aliada
e na Amazônia. às narrativas políticas da necessidade de enfra-
Vemos também que incentivos à produção quecer os órgãos ambientais e o próprio sucatea-
agrícola sustentável e à agricultura familiar mento destas instituições, tem desencadeado uma
(Programa Nacional de Fortalecimento da série de recorrentes crimes ambientais, com des-
Agricultura Familiar – Pronaf ) têm escasseado taque para o aumento das áreas de desmatamen-
cada vez mais, evidenciando uma clara opção tos e queimadas, afetando imensos territórios,
da política agrícola brasileira pela manutenção com perdas de biodiversidade vegetal e animal
e ampliação do modelo de concentração de terras dos biomas Pantanal, Cerrado e Amazônia.
e rendas. Destaca-se que muitas das terras das Além dos benefícios públicos ao agronegó-
regiões produtivas do agronegócio, assim como cio, já citados, existe ainda a injustiça fiscal, pois
empresas que utilizam essas terras para produ- toda essa produção agropecuária não contri-
ção de commodities agrícolas, não pertencem bui com impostos devido à Lei Kandir (Lei nº
às famílias tradicionais de proprietários, mas 87/1996)63 que exonera de impostos do ICMS
a conglomerados, corporações internacionais, e de exportação para os produtos primários da
cujo interesse é a exploração dos recursos na- agropecuária e da mineração exportados do País.
turais e da terra, com legitimação política e aval Segundo Thomaz et al.13, os estados brasileiros
institucional dos poderes políticos municipais, que dependem em mais de 60% do seu PIB do
estaduais e nacional57. agronegócio são estados ‘pobres’ em estruturas
Observam-se tendências à permissividade e de saúde e educação públicas e ambiente susten-
expansão do consumo e pulverização de agro- tável, como Mato Grosso, Goiás, Mato Grosso do
tóxicos, como o caso da Lei nº 13.301/201658, Sul, Tocantins, Maranhão e Rondônia.
que permite a pulverização de inseticidas em
áreas urbanas para o combate do Aedes aegypti no
controle da dengue. No Congresso Nacional, está Trabalhadores na luta por
o Projeto de Lei (PL) nº 6.299/2002, o conhecido transição para um mundo
‘pacote do veneno’, que amplia o uso de agrotó-
xicos no Brasil; mas, em contrapartida, alguns
agroecológico
parlamentares apresentaram o PL nº 6.610/201659
denominado Programa Nacional de Redução do As sindemias causadas pelo caráter pandêmico do
Uso de Agrotóxicos. Também citamos as recen- agronegócio também precisam ser enfrentadas.
tes 541 autorizações feitas pelo Mapa em 2019 Para isso, será preciso mudar essa agropecuária
e 2020, de uso de novos agrotóxicos no Brasil, que usa, apropria-se e envenena bens coletivos e
sem consultar o MS e o Ibama, desrespeitando alimentos, privatiza lucros e socializa prejuízos,
a Lei nº 7.802/8960 dos agrotóxicos, sendo que a para um modelo promotor de vida, respeito às
maioria deles são proibidos na UE. tradições e em redes solidárias de trabalho justo,

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476 Pignati WA, Soares MR, Corrêa MLM, Leão LHC

outro modo de relação com a terra, a água etc. protagonistas de transição para um mundo novo,
As respostas necessárias às doenças do agro- verdadeiros protetores do bem-viver, produtores
negócio – situações de expropriação, exploração, de alimentos saudáveis, cuidados com a água, com
agravamento de condições crônicas, agudização a terra e com a saúde, ou seja, os construtores da
de intoxicações e degradação dos sistemas de agroecologia3,64.
suporte à vida – requerem mudanças concretas Considerando a saúde coletiva como campo
nas relações sociais de produção nesses con- de saberes e práticas, entendemos a necessi-
textos vitais para o planeta, nos quais o setor dade da luta protagonizada dos coletivos pela
atua, a exemplo dos ecossistemas amazônicos, mudança desse modelo de morte do agronegócio.
Cerrado e Pantanal – todos esses ameaçados pelo Destacamos as ações de resistência como a luta
avanço territorial do agronegócio. Os desafios são em defesa do Sistema Único de Saúde (SUS) e
complexos porque, inclusive como reconhece a da vida, de vários grupos de pesquisadores na-
comissão do ‘The Lancet’, as cadeias produtivas cionais/internacionais, a Associação Brasileira
do agronegócio, o uso da terra, as relações de de Agroecologia (ABA), a Associação Brasileira
demanda-consumo, o papel dos governos e os de Saúde Coletiva (Abrasco), o Centro Brasileiro
lucros das indústrias e as relações de poder que de Estudos de Saúde (Cebes), o Movimento dos
determinam padrões de produção de alimentos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a
estão na raiz da atual sindemia global de desnu- Campanha Nacional e Internacional Contra os
trição, obesidade e mudanças climáticas65. Agrotóxicos e pela Vida.
É preciso citar ainda que, no caso da pande- De igual modo, comunidades, trabalhadores
mia do novo coronavírus no Brasil, a cadeia do e trabalhadoras rurais, camponeses, assentados,
agronegócio manteve suas altas lucratividades ao acampados, agricultores familiares, povos indí-
passo que contribuiu para amplificar sindemias genas e grupos quilombolas seguem em lutas
no País, inclusive expandindo as possibilidades diretas no campo, com seus corpos, seus saberes e
de contágio. As unidades de produção agropecu- práticas, resistindo e buscando fortalecer experi-
ária, como os frigoríficos, bem como as rotas dos ências agroecológicas em diferentes lugares com
fluxos e transporte de materiais e commodities produção de alimentos saudáveis e valorização
dessa cadeia foram polos disseminadores do da vida comunitária, da terra, da biodiversidade
vírus. Consequentemente, para entender como e das sementes crioulas.
o Brasil chegou ao total de 22 milhões de casos
de infecção e 600 mil mortes, precisaremos dar
atenção a essa importante base socioeconômica, Considerações finais
porque, por traz do PIB nacional garantido por
esse setor, existe um imenso processo de pro- Como a saúde coletiva tem colaborado na implan-
dução que influiu facilitando o agravamento das tação e agora na manutenção e implementação
condições de possibilidade de morbimortalida- do SUS e da vigilância em saúde, desde a VIII
de por Covid-19 no território brasileiro9,10, sem Conferência Nacional de Saúde e elaboração
qualquer contrapartida financeira para atenuar a da Constituição Brasileira em 1988, hoje ainda
fome e oferecer suporte aos serviços de saúde no se faz necessário continuarmos essa luta pela
contexto pandêmico. Estudos inclusive demons- melhoria da qualidade de vida humana, animal,
tram a correspondência espacial entre áreas de vegetal e ambiental.
criação de animais e taxas de população infectada Também se faz imprescindível discutirmos a
por Covid-199,65,66. ampliação dessa luta para além do setor saúde,
Felizmente, contra esse modelo sindêmico pois como vimos neste artigo, os fatores de riscos
e contra todo o desmonte das políticas e prá- para as doenças humanas, outros animais e am-
ticas de vigilâncias, existe uma pluralidade de bientais são determinados e/ou impostos pelo
coletivos de trabalhadores e trabalhadoras como capital aliado aos governantes, que implementam

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O caráter pandêmico dos desastres socioambientais e sanitários do agronegócio 477

um modo de desenvolvimento baseado no econô- Região pelo apoio financeiro e parceria junto
mico e que será preciso que a saúde coletiva faça ao Núcleo de Estudos Ambientais e Saúde do
um movimento de vigilância desse desenvolvi- Trabalhador (Neast/UFMT).
mento além da vigilância em saúde e ambiente65.
Esta poderá ser considerada uma das lutas
sociais mais emblemáticas no campo econômi- Colaboradores
co e da saúde coletiva no Brasil e no mundo: as
articulações dos movimentos em defesa da vida Pignati WA (0000-0001-9178-6843)* partici-
a partir da rearticulação de lutas dos movimen- pou de todas as etapas de elaboração do artigo.
tos comunitários e sindicais de trabalhadores e Soares MR (0000-0002-0417-2614)* colaborou
trabalhadoras. para a revisão do artigo e leitura da versão
final do artigo. Corrêa MLM (0000-0001-
7812-0182)* participou da discussão e revisão
Agradecimentos final do artigo. Leão LHC (0000-0003-0166-
5066)* participou da escrita, revisão, discus-
Agradecemos ao Ministério Público do Trabalho são e revisão final do artigo. Todos os autores
– Procuradoria Regional do Trabalho/23ª aprovaram a versão final do manuscrito. s

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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 467-481, JUN 2022


482 REVISÃO | REVIEW

Agrotóxicos, desfechos em saúde e


agroecologia no Brasil: uma revisão de
escopo
Pesticides, health outcomes and agroecology in Brazil: a scope review

Vanessa Daufenback1, Adriana Adell1, Milena Regina Mussoi2, Adriella Camila Fedyna Furtado3,
Shirleyde Alves dos Santos4, Denise Piccirillo Barbosa da Veiga1

DOI: 10.1590/0103-11042022E232

RESUMO A presente revisão de escopo objetivou evidenciar o perfil das pesquisas brasileiras que investi-
gam os desfechos em saúde ocasionados pela exposição a agrotóxicos, procurando entender os principais
achados, tais como metodologia empregada, tipo de substância, desfechos em saúde, locais investigados,
sugestões de ações e diálogo com a agroecologia. Foi utilizada a metodologia ‘scoping review’, seguindo o
modelo Prisma-ScR. Entre os 83 artigos encontrados, 61 estudaram os/as agricultores/as e 22 estudaram
outros grupos populacionais. Houve predomínio de estudos primários e quantitativos, seguidos por revisões
sistemáticas. Do total, 79 encontraram desfechos, com destaque aos danos hematológicos e genéticos,
em sua maior parte causados pela intoxicação por mais de 1 agrotóxico. O maior número de estudos foi
realizado na região Sul, seguida das regiões Sudeste, Nordeste, Centro-Oeste e Norte. Apenas uma pesquisa
sugeriu a transição agroecológica enquanto solução para a problemática. Conclui-se que, perante um
cenário de crescimento do uso de agrotóxicos, fazem-se urgentes proposições de ações intersetoriais e
que não envolvam somente educação em saúde ou o setor saúde de forma isolada, como sugere a maioria
dos artigos, sendo necessária a articulação entre setores ligados à agricultura, abastecimento, educação,
saúde e meio-ambiente.

PALAVRAS-CHAVE Agroecologia. Agrotóxicos. Intoxicação. Risco à saúde humana. Avaliação da pesquisa


em saúde.

ABSTRACT The present scope review aimed to highlight the profile of Brazilian research that investigates
health outcomes caused by exposure to pesticides, seeking to understand the main findings, such as method-
ology used, type of substance, health outcomes, investigated locations, suggested actions, and dialogue with
agroecology. The scoping review methodology was used, following the Prisma-ScR model. Among the 83 articles
1 Universidade de São Paulo found in the review, 61 studied farmers and 22 studied other population groups. There was a predominance
(USP), Faculdade de Saúde of primary and quantitative studies, followed by systematic reviews. Of the total, 79 articles found outcomes,
Pública (FSP) - São Paulo
with emphasis on hematological and genetic damage, mostly caused by poisoning by more than 1 pesticide.
(SP), Brasil.
vdaufen@gmail.com The largest number of studies were carried out in the South, followed by the Southeast, Northeast, Midwest,
and North. Only 1 survey suggested the agroecological transition as a solution to the problem. It is concluded
2 Universidade Federal
that, faced with a scenario of growth in the use of pesticides, it is urgent to have proposals for intersectoral
da Fronteira Sul (UFFS)
– Laranjeiras do Sul (PR), actions and that do not involve only health education or the health sector in isolation, as most articles suggest,
Brasil. requiring articulation between sectors related to agriculture, supply, education, health, and the environment.
3 Universidade Positivo
(UP) – Curitiba (PR), Brasil. KEYWORDS Agroecology. Pesticides. Intoxication. Health research evaluation. Risk to human health.
Evaluation of health research.
4 Universidade Estadual
da Paraíba (UEPB) –Lagoa
Seca (PB), Brasil.

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 482-500, JUN 2022 meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado.
Agrotóxicos, desfechos em saúde e agroecologia no Brasil: uma revisão de escopo 483

Introdução previstas pelo Programa Nacional de Redução


de Agrotóxicos (PNARA)12, fazem-se cada vez
O aumento no consumo de agrotóxicos no mais necessárias e urgentes.
Brasil está diretamente relacionado com as Os impactos negativos do uso de agrotóxi-
políticas de incentivo à produção de commodi- cos no meio ambiente e na saúde humana são
ties historicamente conduzidas pelo estado há muito tempo conhecidos e debatidos13. A
brasileiro1,2. Em 1991, o País consumia sete exposição aos agrotóxicos, principalmente
vezes menos agrotóxicos que os Estados de forma crônica, tem sido associada a di-
Unidos da América (EUA), porém, em 2015, versos desfechos prejudiciais à saúde, como
esses dois países consumiram cerca de 400 mil doenças nos sistemas metabólico, reprodutivo
toneladas/ano cada3. O Brasil tem alternado e endócrino14,15, além do aumento dos casos
a liderança do uso de agrotóxicos com outros de câncer16. Nesse sentido, diversos estudos
países, como a China e os EUA, apresentando apontam que indivíduos que trabalham no
uma curva ascendente nesse âmbito4. As re- meio rural, com destaque para agricultores e
centes mudanças na política de regulação de agricultoras familiares, são o grupo de maior
agrotóxicos, a reclassificação toxicológica5-7 risco no que se refere aos danos à saúde devido
e a flexibilização das leis ambientais e traba- à sua exposição contínua e prolongada a essas
lhistas demonstram que esse cenário está se substâncias químicas e tóxicas, cujas evidên-
agravando. Sob o governo atual, o Instituto cias apontam para um processo de adoecimen-
Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos to diretamente relacionado com o trabalho e
Naturais Renováveis (Ibama), responsável pela com os agrotóxicos17-20. Além da exposição
avaliação do potencial de sua periculosidade ocupacional, também é importante destacar
ambiental, a Agência Nacional de Vigilância que toda a população pode desenvolver efeitos
Sanitária (Anvisa), responsável pela avaliação crônicos pela exposição cumulativa por meio
toxicológica, e o Ministério da Agricultura, da água ingerida e consumo de alimentos
Pecuária e Abastecimento (Mapa), responsável contaminados16.
pelo registro destas substâncias, já liberaram Para além dos efeitos crônicos, o grupo
e registraram 1.059 agrotóxicos desde janeiro mencionado também se encontra exposto ao
de 20198. risco agudo de contaminação, em razão da
No Brasil, três culturas – soja, milho e cana- manipulação e do contato direto com os agro-
-de-açúcar – correspondem ao destino de mais tóxicos. Diante disso, desde 2004, o Ministério
de 70% dos agrotóxicos comercializados9. da Saúde estabeleceu as intoxicações exógenas
Dados do Censo Agropecuário registraram por agrotóxicos como agravo de notificação
um aumento na proporção de agricultores/ compulsória relacionado ao trabalho; e, em
as familiares que declararam usar agrotóxi- 2011, a intoxicação exógena passou a ser de
cos em suas lavouras, sendo que o volume de notificação universal. Nos últimos dez anos,
vendas de agrotóxicos cresceu 2,5 vezes entre foram notificadas mais de 40 mil intoxicações,
2006 e 201710. Considerando a quantidade sendo que 72% destas ocorreram no ambiente
de restrições para a manipulação ‘correta e de trabalho, e mais de 40% foram resultan-
segura’ dos agrotóxicos, envolvendo todos tes de exposição a agrotóxicos4. Ainda que
os processos desde a saída da indústria até o essas notificações sejam importantes para
descarte das embalagens, o que leva a inferir direcionamento de políticas de prevenção,
que não há uso seguro dessas substâncias correspondem a informações subnotificadas
para a saúde humana nem ambiental11, as no Brasil21, e, consequentemente, podem não
ações quanto à prevenção da contaminação retratar a gravidade da exposição, intoxica-
ambiental e da saúde ocupacional, além da ção e adoecimento dos diferentes grupos da
redução progressiva do uso de agrotóxicos sociedade.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 482-500, JUN 2022


484 Daufenback V, Adell A, Mussoi MR, Furtado ACF, Santos SA, Veiga DPB

Segundo constatação no Painel Internacional pelo Joanna Briggs Institute24. A ‘revisão de


de Especialistas em Sistemas Alimentares escopo’ ou ‘estudo de escopo’ vem ganhando
Sustentáveis22, o modelo agrícola dominante é importante espaço como uma forma de tra-
altamente problemático, não só por danos causa- dução e sistematização dos conhecimentos na
dos por agrotóxicos, mas também por seus efeitos área da saúde, fornecendo uma visão geral das
sobre as mudanças climáticas, perda de biodiver- evidências25,26. No campo da saúde, além do
sidade e incapacidade de garantir a soberania esclarecimento de conceitos-chave, as revisões
alimentar. Essas questões estão intimamente de escopo se destacam pela capacidade de de-
interligadas e devem ser abordadas em conjunto tecção de lacunas na base de conhecimento da
para garantir que o direito à alimentação seja pesquisa, pelo relato do tipo de evidências que
alcançado plenamente. abordam e pela orientação à prática, guiada
Esse painel22 explora o potencial de uma pela abordagem rigorosa e transparente27.
mudança dos sistemas alimentares dominan- Essa metodologia possui como meta prin-
tes, caracterizados por modelos industriais de cipal o entendimento da forma e conteúdo
agricultura, para sistemas agroecológicos di- pelos quais o conhecimento de um determi-
versificados. Essa mudança estaria pautada na nado campo de estudo está sendo delineado,
segurança alimentar, e aqui acrescentamos o envolvendo o mapeamento de conceitos-
termo brasileiro segurança alimentar e nutri- -chave que o sustentam, aliado à análise dos
cional, assim como na proteção ambiental, ade- fatores que levam a determinadas construções
quação nutricional e equidade social, mediante teórico-conceituais e ao esclarecimento de
diversificação produtiva, substituição de insumos seus limites e possibilidades. Para a efetiva-
químicos, aumento da biodiversidade e estímulo ção desses objetivos, a revisão de escopo se
a interações entre espécies diferentes, como parte propõe a explorar a abrangência da literatura
de estratégias holísticas para criar fertilidade em desse campo, identificar os tipos de evidên-
longo prazo, agroecossistemas saudáveis e meios cias que são encontradas, mapear, resumir as
de subsistência seguros. evidências e informar pesquisas futuras27. As
Tendo em vista o contexto exposto, com o perguntas a serem respondidas pela revisão
aumento vertiginoso do número de liberações de escopo dizem respeito à natureza e diver-
de uso de agrotóxicos no Brasil23 das crescentes sidade das evidências disponíveis. Devido à
pesquisas sobre exposição e intoxicação, a pre- ampla natureza das suas questões, as revisões
sente revisão de escopo objetivou compreender o de escopo podem se basear em tipos de evi-
perfil das pesquisas brasileiras que investigam os dência e metodologias de pesquisa distintas
desfechos em saúde ocasionados pela exposição e heterogêneas27.
a agrotóxicos e o seu diálogo com a agroecologia. O percurso metodológico desta revisão de
Nesse âmbito, esse estudo foi delineado de escopo seguiu o modelo sugerido pelo checklist
acordo com a seguinte pergunta norteadora: quais Prisma-ScR, desenvolvido por pesquisadores
são as principais características, contribuições do Joanna Briggs Institute: ‘Reporting Items
e carências advindas das pesquisas brasileiras for Systematic reviews and Meta-Analyses ex-
que investigam os impactos dos agrotóxicos na tension for Scoping Reviews (Prisma-ScR)’28.
saúde, e como a agroecologia tem se manifestado Esse checklist contém 22 etapas que vão desde
nesse contexto? a introdução até o financiamento. Definiram-
se como critérios de elegibilidade: estudos
realizados sobre a população brasileira, com-
Material e métodos preendendo artigos, teses ou dissertações, nos
idiomas português, espanhol e inglês, publica-
Esta revisão foi elaborada de acordo com a dos entre 2015 e 2019, em revistas indexadas
metodologia ‘scoping review’ desenvolvida nas bases de dados, estudos de desfecho de

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Agrotóxicos, desfechos em saúde e agroecologia no Brasil: uma revisão de escopo 485

saúde em grupos brasileiros, artigos cientí- livros, bem como artigos repetidos. Optou-se
ficos, revisões, bem como estudos de bancos pela delimitação de artigos nacionais devido
de informações. ao quadro do aumento do consumo de agro-
Os critérios de exclusão compreenderam: tóxicos exposto no País.
estudos laboratoriais que não trabalharam Os critérios de elegibilidade e exclusão
com grupos humanos, tratamento para foram categorizados de acordo com o modelo
doenças causadas por intoxicação, estudos PCC (População, Conceito e Contexto), reco-
com animais, estudos cujo escopo não en- mendados para revisões de escopo de acordo
volvesse o Brasil, estudos de contaminação com o Instituto Joanna Briggs29, a ser obser-
ambiental, estudos no formato de vídeos ou vado no quadro 1 a seguir:

Quadro 1. Definição dos critérios de elegibilidade de trabalhos da revisão de escopo

População Participantes humanos


Qualquer idade
Qualquer sexo
Qualquer grupo social (renda, ocupação e localização rural e urbana)
Conceito Pesquisas realizadas sobre desfechos em saúde causados por agrotóxicos na população brasileira,
entre janeiro de 2015 e dezembro de 2019.
Contexto Artigos de pesquisa originais, oriundos de quaisquer metodologias, incluindo: revisões sistemáti-
cas, meta-análises, pesquisas qualitativas, quantitativas ou mistas.
Estudos desenvolvidos apenas com a população brasileira, com qualquer tipo de desfecho em
saúde, substância utilizada e modo de intoxicação.
Fonte: Elaboração própria.

As fontes de informação compreenderam as assim, foi considerado para inclusão final o


seguintes bases de dados eletrônicas: PubMed, total de 83 artigos que atenderam aos critérios
SciELO, Portal de Revistas Científicas em de inclusão. As 83 produções foram submetidas
Ciências da Saúde (BVS), Periódico Capes, à leitura minuciosa pelas pesquisadoras; e os
Cochrane, Lilacs e Web of Science. A estraté- conteúdos, extraídos e transcritos para um
gia de busca seguiu o processo de três etapas formulário próprio.
recomendado pelo Joanna Briggs Institute29. A O processo de mapeamento e utilização de
primeira etapa realizada envolveu uma busca variáveis de análise levou em conta categorias
preliminar em diversas plataformas on-line, de interesse geralmente exploradas pela litera-
entre junho e julho de 2019, e depois em tura sobre intoxicação e desfechos em saúde.
maio de 2020, utilizando como descritores a Cada categoria foi subdividida para melhor
combinação: (Pesticides) AND (Brasil) AND compreensão dos conteúdos:
(Health), de acordo com descritores encon-
trados no Medical Subject Headings (MeSH). 1) Grupos estudados: trabalhadores e popu-
A seleção das fontes de evidência foi ini- lação geral;
ciada pela análise prévia dos 1.233 artigos
encontrados pela busca. Após a seleção do 2) Desfechos em saúde: danos ao sistema res-
título e resumo, foram reduzidos a 124, por não piratório, auditivo, endócrino, hematológico,
demonstrarem elementos correspondentes aos osteomuscular, danos genéticos, oncológicos,
objetivos desta revisão. Por conseguinte, houve intoxicação aguda, saúde mental, múltiplos
a exclusão de 41 artigos devido à repetição; desfechos e sem desfechos em saúde;

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486 Daufenback V, Adell A, Mussoi MR, Furtado ACF, Santos SA, Veiga DPB

3) Metodologia: qualitativa, quantitativa e saúde, ampliação das ações de monitoramen-


quali quantitativa; to de vigilância, políticas públicas e diálogo
com a agroecologia.
4) Macrorregiões estudadas: Sul, Sudeste,
Centro-Oeste, Norte, Nordeste; A análise crítica das categorias levan-
tadas seguiu a abordagem qualitativa dos
5) Substâncias analisadas: múltiplos tipos, conteúdos, que permitiu a visualização de
não especificados, herbicidas, organofosfo- insights ligados à produção de conhecimento
rados, organoclorados e pesticidas. desse campo de produção de saberes, como,
por exemplo, as metodologias e os métodos
Para aprofundar a análise, foram incluídas mais utilizados, analisados conforme a no-
também: menclatura e os conceitos classificatórios
de desenhos de estudo científico segundo
6) Área do conhecimento da publicação: Hochman et al.30, assim como os estados
Saneamento Ambiental, Saúde Coletiva, que possuem mais estudos realizados na
Saúde pública, Epidemiologia e Genética; temática avaliada, os desfechos em saúde
mais encontrados e as sugestões de ações
7) Fonte de financiamento (não subdividida); apresentadas ao fim dos artigos com ênfase
na agroecologia. Na etapa de apresentação
8) Sugestões de ações: redução do uso de dos resultados, optou-se por uma estrutu-
agrotóxicos, superação do modelo de agri- ra analítica descritiva. Todo o processo de
cultura, outras formas de plantio, medidas seleção foi sintetizado em forma de fluxo-
estruturantes, mais estudos, educação em grama como observa-se abaixo (figura 1).

Figura 1. Fluxograma do fluxo de identificação, triagem e inclusão de estudos

Produções identificadas no levantamento


nas bases de dados: (n=1233)
BVS: 377
Capes: 54
SciELO: 131
PubMed: 583
Lilacs: 60
Cochrane: 1
Web of Science: 27
Resumos
excluídos na triagem
preliminar:
(n=1001)

Resumos
avaliados:
(n=124)
Duplicatas
excluídas:
(n=108)
Produções
selecionadas
para leitura do
texto completo:
(n=83)
Resumos
excluídos por não
atenderem aos critérios
de elegibilidade:
(n=41)

Estudos
analisados:
(n=83)

Fonte: Elaboração própria.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 482-500, JUN 2022


Agrotóxicos, desfechos em saúde e agroecologia no Brasil: uma revisão de escopo 487

Resultados e discussão transversais, seguidos de estudos observacio-


nais descritivos, os quais abrangeram estudos
Com relação aos anos das publicações, 10 de série de casos e um estudo ecológico.
artigos (12,8%) foram publicados em 2015; O fato de a procura ter sido realizada com
17 (21,7%) em 2016; 22 (28,2%) em 2017; 19 artigos que investigassem desfechos em saúde
(24,3%) em 2018; e 15 (18%) em 2019. Do total, em todos os grupos de forma geral evidenciou
35 artigos (42,16%) foram publicados em re- a preocupação crescente com os grupos dos/as
vistas brasileiras; e 48 (57,83%), em revistas trabalhadores/as rurais, que constituem quase
internacionais. a totalidade dos artigos. Apenas dois estudos
A respeito dos grupos avaliados pelos tiveram como objetivo a avaliação do estado
estudos, formaram-se 2 categorias principais: de saúde de trabalhadores/as urbanos/as e
61 artigos (74,4%) estudaram trabalhadores e sua relação com exposição a agrotóxicos, cujo
agricultores, enquanto 22 estudaram outros grupo consistiu em agentes de endemias per-
grupos populacionais. Sobre as especificida- tencentes à atenção básica do Sistema Único
des, na categoria de trabalhadores/as: 1 artigo de Saúde (SUS)32.
pesquisou vinicultores/as; 12 investigaram Nesse sentido, verificaram-se ainda estudos
fumicultores/as; 3, trabalhadores/as de mo- experimentais do tipo ensaio clínico randomi-
nocultivos de soja; 4 analisaram o trabalho em zado. No que concerne às técnicas metodoló-
fruticultura; 1, em monocultura de café; e 2 gicas, os estudos mencionados empregaram
referentes a agentes de endemias. Os demais 38 análise clínico-laboratoriais, e/ou utilizaram
artigos trataram de agricultores e agricultoras bancos de dados de sistemas de informação
sem especificar de que produção se tratava. em saúde e/ou aplicaram entrevistas, ques-
Quanto à categoria da população geral, tionários e/ou formulários aos participantes.
15 tratavam de intoxicações e desfechos na Dos 61 artigos dedicados aos trabalhadores/
população do Brasil ou de alguns estados; 4 as rurais expostos aos agrotóxicos, 5 estudos
investigavam o público materno-infantil; 3, (8%) desenvolveram a abordagem qualita-
somente crianças ou recém-nascidos. tiva, utilizando como ferramenta aplicação
Os/as trabalhadores e trabalhadoras rurais de entrevistas e análise de informações, e 3
são o grupo de maior risco à intoxicação por (5%) se declararam e/ou se configuraram
agrotóxicos, devido à sua exposição contínua e como quantiqualitativos – ao passo que, das
prolongada a essas substâncias tóxicas, sendo 22 produções referentes à exposição não ocu-
as intoxicações agudas a face mais visível do pacional a agrotóxicos, nenhuma se enquadrou
impacto negativo dos agrotóxicos na saúde como qualitativa, 3 (14%) correspondiam a
desses sujeitos31. Por causa da grande expressi- revisões sistemáticas e 19 (86%) eram estudos
vidade dos estudos sobre os impactos na saúde quantitativos.
de trabalhadoras e trabalhadores, as categorias Quando se analisa o tipo de metodologia
de análise restantes foram subdivididas em utilizada, observa-se o predomínio de estudos
estudos de exposição/intoxicação ocupacional primários, mediante prevalência de deline-
e não ocupacional. amentos quantitativos, e, por conseguinte,
A respeito da conformação metodológica estudos secundários, por meio de revisões
utilizada, dos 61 artigos direcionados aos tra- sistemáticas. Entretanto, o objetivo desta
balhadores/as, 53 (87%) possuíam natureza revisão de escopo é o de trazer o perfil dessas
quantitativa, sendo a maioria desses estudos pesquisas, e não de avaliar o viés presente nos
observacionais analíticos que consistiram em resultados ou o nível de recomendação e/ou
estudos longitudinais, de caso-controle, dos confiabilidade dos artigos, que seriam res-
quais um adotava abordagem multicêntrica, ponsabilidades atribuídas às revisões do tipo
e um estudo de coorte, bem como estudos sistemática e integrativa.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 482-500, JUN 2022


488 Daufenback V, Adell A, Mussoi MR, Furtado ACF, Santos SA, Veiga DPB

Ressalta-se aqui tanto o esforço presente para aferição da validade, como a triangulação
nas abordagens quantitativas, que procuram de métodos36 e outras estratégias.
demonstrar, por meio de testes estatísticos ou O conjunto de artigos revisados, publicados
não, a correlação entre o uso e/ou consumo em periódicos, encontra-se contemplado em
de agrotóxicos e desfechos negativos em diferentes áreas de conhecimento, segundo
saúde, quanto o esforço dos poucos estudos a classificação do Conselho Nacional de
qualitativos, que procuram desvelar outras di- Desenvolvimento Científico e Tecnológico
mensões presentes no processo saúde-doença (CNPq)37. A área com maior destaque para
dos grupos de trabalhadoras/es expostos a as publicações compreende a das ciências
agrotóxicos e da população geral. da saúde com 29 periódicos (34,93%) distri-
Contudo, ainda que esta revisão revele as buídos nesse gênero, seguida da subárea de
tentativas de rigor metodológico observadas saneamento ambiental com 24 produções
pelo volume de estudos de casos-controle e (28,91%). Das publicações inseridas na área
de análises clínico-laboratoriais, foram iden- da saúde coletiva, 17 revistas (20,48%) estavam
tificados apenas dois estudos randomizados, dispostas na subárea de saúde pública, e 3
que são considerados pela lógica de estudos (3,61%), na subárea de epidemiologia; além
epidemiológicos como produtores de evidên- destas, 6 periódicos (7,22%) correspondiam
cia de alta qualidade, sendo a quase totalidade a áreas multidisciplinares, e 4 (4,81%), a área
composta por estudos observacionais33. de genética.
Embora possam existir questionamentos O arranjo evidenciado demonstra que os
e críticas quanto ao rigor dos procedimentos estudos científicos brasileiros relativos aos
de coleta de informações em pesquisas quali- impactos dos agrotóxicos na saúde de traba-
tativas, essa abordagem possui relevância por lhadores e trabalhadoras rurais ou da popu-
conseguir acessar um universo de significa- lação geral têm ganhado maior visibilidade
dos, motivos, percepções, crenças, opiniões, em revistas com foco e escopo do campo das
histórias, representações, valores e atitudes ciências da saúde, justamente devido aos diver-
dos sujeitos participantes, o que representa sos estudos desenvolvidos por pesquisadores
um espaço mais profundo das relações, dos e pesquisadoras profissionais da saúde. Tais
processos e dos fenômenos, e não uma via de esforços têm salientado os efeitos nocivos
mão única, pautada apenas no olhar de quem agudos ou crônicos da exposição aos agro-
realiza a pesquisa, de modo que retrata questões tóxicos, gerando como desfechos intoxica-
notadamente particulares, as quais fazem parte ções, danos e agravos na saúde de indivíduos
de uma realidade que não pode ser quantificada, expostos pelo uso ocupacional ou não, por
tal como enfatizado por Minayo34. meio da verificação da presença dessas subs-
Nesse contexto, cabe salientar que há várias tâncias tóxicas em amostras de sangue, leite
maneiras de operacionalizar a validade em materno e resíduos presentes em alimentos,
pesquisas qualitativas, mediante explicitação relacionando a possibilidade de geração de
das relações entre a descrição dos procedi- anomalias congênitas, diversos tipos de câncer,
mentos adotados na coleta de material empí- doenças mentais, disfunções reprodutivas,
rico, o formato de sistematização, a literatura danos genéticos e outros.
científica empregada, o objetivo de pesquisa Conforme o gráfico 1, quanto aos desfechos
e os resultados obtidos, podendo também ser em saúde, a categoria mais investigada nas
verificada a qualidade da pesquisa qualitativa pesquisas revisadas correspondeu a múltiplos
por sua transparência, coerência e comunica- desfechos (25,3%), seguida pelas categorias de
bilidade35, bem como por meio da abordagem danos genéticos (20,5%) e oncológicos (15,7%).

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 482-500, JUN 2022


Agrotóxicos, desfechos em saúde e agroecologia no Brasil: uma revisão de escopo 489

Gráfico 1. Gráficos de porcentagem de desfechos em saúde

TOTAL GRUPO 1 – AGRICULTORES E AGRICULTORAS


Saúde mental Respiratório Saúde mental Respiratório
6,0% 1,2% 4,8% 1,6%
Sem desfechos Auditivo Sem desfechos Auditivo
4,8% 6,0% 3,2% 8,1%
Endócrino Endócrino
6,0% 8,1%
Hematológico Hematológico
Múltiplos desfechos 8,4% Múltiplos desfechos 8,1%
25,3% Osteomusculares 25,8%
2,4% Osteomusculares
3,2%

Danos genéticos Intoxicação aguda


3,2% Danos genéticos
Intoxicação aguda 20,5%
3,6% 19,4%

Oncológico Oncológico
15,7% 14,5%

GRUPO 2 – POPULAÇÃO EXPOSTA DE FORMA NÃO LABORAL

Saúde mental
9,5% Hematológico
Sem desfechos 9,5%
9,5%

Danos genéticos
23,8%

Múltiplos desfechos
23,8,8%

Oncológico
Intoxicação aguda 19,0%
4,8%

Fonte: Elaboração própria.

Ainda no gráfico 1, observam-se os resulta- tradicionalmente associados pela literatura


dos de desfechos em saúde por grupos anali- a esse tipo de exposição, trazendo grandes po-
sados. Dos 83 estudos incluídos na revisão, 4 tencialidades a esse debate. Devido ao câncer
(5%) não apresentaram desfechos em saúde, e ser uma patologia multicausal, ressalta-se aqui
79 (95%) encontraram desfechos que podem a dificuldade em estudos de correlações deste
estar associados com o uso de agrotóxicos. com os agrotóxicos. Entretanto, o Instituto
Assim como observado na porcentagem de Nacional de Câncer (Inca) mantém publica-
trabalhos por desfechos totais, múltiplos des- ções de notas e boletins alertando a relação16.
fechos foi a categoria mais investigada, sendo Tais estudos captam o processo de desfechos
16 artigos (25,8%) no grupo 1 e 5 (22,7%) no biológicos relacionados com o adoecimento
grupo 2; seguida também de danos genéticos em seu início, em um período que antecede
com 12 artigos (19,4%) no grupo 1 e 5 (23,8%) no à manifestação de sintomas e, consequente-
grupo 2, e desfecho oncológico com 13 estudos mente, à procura por assistência em saúde e
(14,5%) no grupo 1 e 4 (19%) no grupo 2. A ao registro de tais casos de intoxicação nos
predominância desses desfechos relaciona- sistemas de vigilância epidemiológica.
-se com as características genotóxicas e car- Como desdobramento de análise, esses
cinogênicas presentes nos agrotóxicos mais achados indicam a premissa de estabelecer
comercializados mundialmente16. um panorama de diferentes etapas e processos
A análise dos desfechos desperta a atenção de adoecimento relacionados com a exposição
para o grande número de estudos que apontam a agrotóxicos, via sistema de saúde ou via pes-
correlações positivas entre exposição a agro- quisa, levantando a necessidade de reorganizar
tóxicos e desfechos hematológicos e danos ge- o sistema de saúde para a detecção precoce
néticos nos sujeitos analisados, e que, somados de casos, como alguns dos artigos sugerem.
(33%), superam os achados oncológicos Por conseguinte, o desvelamento, por parte

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 482-500, JUN 2022


490 Daufenback V, Adell A, Mussoi MR, Furtado ACF, Santos SA, Veiga DPB

desses estudos, de um processo que é anterior Centro-Oeste; e 1 (1%) no Norte. Ademais,


ao surgimento de sintomas, e, portanto, de sua houve 16 artigos (19%) que trabalharam com
oficialização e direcionamento pelo sistema dados nacionais (figura 2).
de saúde, coloca em xeque a suficiência do Esse resultado não só coincide com os
setor saúde na resolução da questão exposição- locais de maior financiamento de pesquisa,
-desfechos em saúde38. mas também com o maior consumo de agro-
As cinco regiões brasileiras apresentaram tóxicos. Mato Grosso, São Paulo, Rio Grande
estudos, sendo que Sul, Sudeste e Centro- do Sul e Paraná correspondem a 58% do co-
Oeste registraram trabalhos em todos seus mércio nacional de agrotóxicos4, e abrangem
estados. Essas regiões também concentraram os estados que apresentam maior percentual
o maior número dos trabalhos avaliados: 33 de notificações de intoxicação5, como se pode
(40%) no Sul; 13 (16%) no Sudeste; segui- observar na figura 2 abaixo:
dos pelo Nordeste com 12 (14%); 8 (10%) no

Figura 2. Distribuição regional dos artigos segundo a localidade estudada

PI

AC AL

SE
BA

MT
DF

MS MG ES

SP RJ
RS
Exposição avaliada
PR
Ocupacional
Não ocupacional SC
Quantidade de artigos por estado
RS
1-2
2-5
5 - 20
Estados sem resultados na busca
Divisão Regional

Fonte: Elaboração própria.

Quanto aos tipos de agrotóxicos avaliados, pesticidas. Sobre esse recorte, as pesquisas
41 dos artigos (49%) trabalharam com múlti- brasileiras estão de acordo com o cenário
plos tipos, 25 (30%) avaliaram estudos com complexo de uso de múltiplas substâncias
uso de agrotóxicos não especificados, 10 (12%) pelos/as trabalhadores/as que geralmente
avaliaram herbicidas, 3 (4%) especificaram aplicam uma variedade de agrotóxicos, ou
os organoclorados, 2 (2%) não forneceram seja, não se restringindo a apenas um tipo es-
essa informação, 1 (1%) especificou os orga- pecífico21. Entre os artigos que avaliaram os
nofosforados e 1 (1%) trabalhou com uso de herbicidas, um dos mais citados foi o glifosato.

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Agrotóxicos, desfechos em saúde e agroecologia no Brasil: uma revisão de escopo 491

Tais publicações trouxeram associações po- de realização estendido, ou outras metodo-


sitivas entre a manipulação desse agrotóxico logias (73%). Em seguida, desse conjunto de
e múltiplos desfechos negativos em saúde: sugestões, nota-se o predomínio de ações de
danos respiratórios, genéticos, hematológi- educação em saúde direcionadas aos indivíduos
cos, carcinogênicos, mutagênicos, bem como expostos (72%), envolvendo compreensão dos
prejuízos à saúde mental e aborto. riscos de manipulação dos agrotóxicos e/ou
A última categoria de análise diz respeito manejo correto de Equipamentos de Proteção
às ações sugeridas, que variam de acordo com Individual (EPI). Do mesmo modo, ampliação
os objetivos pretendidos de cada trabalho. das ações de monitoramento e vigilância para
Entre os 61 artigos relacionados com a saúde melhoria das notificações dos casos de into-
de indivíduos expostos ocupacionalmente aos xicação dos/as trabalhadores/as se destacam
agrotóxicos, 58 (95%) pontuam sucintamente dentre o total de sugestões (44%), como visível
uma ou mais sugestões. Dessas, as sugestões no gráfico 2. Como apontado no gráfico abaixo,
mais recorrentes foram de mais estudos que apenas 9% dos estudos apresentaram adoção
compreendessem grupos maiores de pessoas, de outras formas de plantio como sugestão, e
mais heterogêneos, maior abrangência, tempo 4% apontaram as políticas públicas.

Gráfico 2. Sugestões de ações relativas aos estudos sobre contaminação e desfechos em saúde ocupacional e não
ocupacional

50
45
45 44

40 38

35 33

30
27
25

20 19

15 14
13
12
10 8 8 8 8
6 6 6
5
5 4
3 3
2 2
1 1 1 1 1 1 1 1
0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0
0
o

trabalhadores não trabalhadores TOTAIS

Fonte: Elaboração própria.

Destaca-se que apenas 7% das pesquisas de adoecimento; todavia, nenhuma propôs


sistematizadas apresentaram como sugestão a melhoria das condições de vida, acesso a polí-
realização de medidas estruturantes e ligadas ticas públicas e garantia de direitos humanos,
a determinantes sociais que levam ao processo incluindo participação e controle social. Como

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 482-500, JUN 2022


492 Daufenback V, Adell A, Mussoi MR, Furtado ACF, Santos SA, Veiga DPB

os determinantes sociais da saúde referem- sim, na série de violações à saúde humana e


-se às condições em que as pessoas nascem, ambiental que esse processo desencadeia de
crescem, vivem, trabalham e envelhecem, são forma contínua.
os principais responsáveis pelas desigualdades A realização de estudos epidemiológicos
na saúde, ou seja, pelas diferenças injustas e de estabelecimento de causalidades e de
evitáveis no estado de saúde39. determinação das “infinitas relações entre
Dos 83 artigos, 6 propostas se voltaram à possíveis variáveis dos agentes, hóspedes e
redução do uso de agrotóxicos e à superação ambiente”41(123) acaba por perder de vista todo
do modelo de agricultura perante a adoção de o processo social e econômico que causa ado-
modos de produção sustentáveis. Entretanto, ecimento em trabalhadores/as, e que têm na
apenas 1 pesquisa40 aponta, de forma concreta exposição e na intoxicação por agrotóxicos o
e explícita, possibilidades de transição para seu elo mais crítico. Em outras palavras, ao
cultivos agroecológicos. enxergar nesse processo apenas a relação entre
Diante desse panorama, revela-se então agentes, hóspedes e ambiente, esses estudos
a desconexão entre a maioria das pesquisas perdem de vista a totalidade do processo que
sistematizadas às reais necessidades dos su- leva ao adoecimento dos grupos estudados.
jeitos investigados diante das suas condições Esta ausência de visão ampliada e sistêmica
de vida e saúde, além de apontamentos que se faz com que a maioria dos estudos sugira mais
distanciam do entendimento da saúde como investigações do mesmo tipo e faça poucas
um processo social. Desse modo, as principais recomendações referentes à mudança dos
sugestões de ações ilustram um olhar dedicado próprios sistemas alimentares e das relações
à redução de danos e à assistência à saúde, dis- no meio rural.
cutindo de forma insatisfatória o princípio da O fato de as recomendações se centrarem
precaução e medidas de redução da exposição em nível individual da modificação de ideias
e do risco de adoecimento. e práticas dos/as trabalhadores/as também
Quando se analisam os achados referentes diz respeito à própria constituição do modelo
aos desfechos encontrados em paralelo às su- preventivista do campo da saúde. Esse modelo
gestões de ações, em termos epistemológicos, aposta na modificação de hábitos individu-
pode-se dizer que a definição de processos de ais, de inculcação de um novo habitus41,42, na
adoecimento a partir da exposição por agro- ação pedagógica médica e nos profissionais
tóxicos deixa de captar processos de adoeci- de saúde (enfermeiros/as sendo os/as mais
mento ao seguir a lógica biomédica centrada citados/as) como agentes de mudança de
no binômio saúde-doença, sem entender o práticas nocivas autoinfligidas por sujeitos
caráter mais amplo e processual pelo qual ‘ignorantes’. Inclusive o acesso a serviços de
ocorrem processos adoecedores. Os processos saúde sugerido por grande parte dos artigos
de adoecimento devem ser entendidos como responsabiliza o campo da saúde e os/as pro-
um continuum, condicionado por processos fissionais de saúde como formas de resolução,
sociais que se manifestam em corpos indivi- reduzindo um processo social e econômico
duais. Ao abordar processos de adoecimento complexo, como a intoxicação e o adoecimento
de forma individual, baseados em diagnósticos por agrotóxicos, à observação e ao tratamen-
que se pautam em padrões de normalidade es- to clínicos. Embora seja necessário ações de
tatísticos e que operam em campos conceituais diagnóstico, prevenção e tratamento, o campo
e pragmáticos, considera-se que um indivíduo da saúde marcado pela epistemologia pre-
sem doença é um indivíduo saudável41,42. No ventivista acaba por reproduzir e perpetuar
caso das intoxicações por agrotóxicos, deve-se desigualdades sociais41,42.
pensar para além das contaminações indi- Além disso, destaca-se o reducionismo
viduais e de parâmetros laboratoriais, mas, da visão sobre o fenômeno da exposição e

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Agrotóxicos, desfechos em saúde e agroecologia no Brasil: uma revisão de escopo 493

intoxicação por agrotóxicos pelo fato de as consumir, circunscrita por diferentes dimen-
recomendações de educação em saúde se cen- sões, como a cultural, a ecológica, a econômica,
trarem apenas nos/as próprios/as agricultores/ a social e a política, desdobrando-se em inú-
as investigados/as. Mesmo que o uso dos EPI meras experiências e iniciativas45.
fosse capaz de evitar esses quadros de adoe- Em vista dissoosto, defende-se aqui,
cimento (cuja eficácia é questionável como já assim como posto no Painel Internacional
foi discutido anteriormente), os agrotóxicos de Especialistas em Sistemas Alimentares
aplicados continuarão a causar danos ambien- Sustentáveis22, que a agroecologia é uma lógica
tais e na saúde humana dos/as consumidores/ universal para redesenhar os sistemas agríco-
as desses alimentos. Nesse sentido, além do las de forma a maximizar a biodiversidade e
desenvolvimento de uma visão científica ampla estimular interações entre diferentes plantas
e processual desse fenômeno, cabe à ciência e espécies, como parte de estratégias holísti-
ampliar seu olhar para o processo saúde- cas para gerar fertilidade, agroecossistemas
-doença enquanto processo social, oriundo saudáveis e meios de vida seguros.
de situações de injustiças vividas por sujeitos, Na sequência às análises, tendo em vista
em sua maioria, em condições complexas de que resultados de pesquisas podem fomen-
vulnerabilidade38. tar políticas públicas, e ante um cenário de
O presente artigo corrobora e reforça crescimento do uso de agrotóxicos, fazem-se
estudos e relatórios como os de Elver e urgentes proposições de ações intersetoriais
Tuncak43, que trazem a agroecologia en- e que não envolvam somente educação em
quanto base da agricultura sustentável, e que saúde ou o setor saúde de forma isolada, como
propõem a substituição de produtos químicos sugere a maioria dos artigos, sendo neces-
por práticas agrícolas adaptadas aos ambien- sária a articulação entre setores ligados a
tes locais, estimulando interações biológicas agricultura, abastecimento, educação, saúde
benéficas, sendo capaz de produzir alimentos e meio-ambiente.
em quantidade e qualidade para suprir toda Além da integração entre estudos sobre
a população mundial e garantir que ela seja agrotóxicos e as dimensões da teoria, prática
nutrida adequadamente. e movimento social que constituem o campo da
Entre as três principais acepções para a agroecologia, para que se possa realizar proces-
agroecologia, importa minuciar a teoria, a so de transição para outros tipos de cultivos do
prática e o movimento social: enquanto teoria, tipo agroecológico, no mínimo, para evitar os
possibilita a ruptura da agricultura industrial vários desfechos observados nesta revisão de
ao mesmo tempo que provê as bases concei- escopo, faz-se urgente a retomada do princípio
tuais e metodológicas para a sustentabilidade da prevenção do risco de contaminação e que
dos agroecossistemas; enquanto prática, de- essa dimensão possa ser articulada de forma in-
monstra a coerência da prática social com a tersetorial e estratégica, envolvendo assistência
ciência agroecológica; enquanto movimento em saúde, assistência técnica de plantio, alcance
social, impulsiona a mobilização de sujeitos de direitos básicos, vigilância em saúde e assis-
envolvidos na teoria e na prática da agroecolo- tência integral aos trabalhadores/as rurais46.
gia, entre outras bandeiras que são levantadas, Devem-se levar em conta inclusive, os prejuízos
como a justiça social, a saúde ambiental, a não somente na saúde dos trabalhadores, mas
soberania alimentar, a equidade entre gêneros, também para o setor saúde. Sobre esse assunto,
a economia solidária, entre outros44. Soares e Porto47 estimaram que para cada US$ 1
Enquanto arranjo de resistência, a agroe- gasto com agrotóxicos, US$1,28 seria gasto pelo
cologia é compreendida como um conjunto SUS do estado do Paraná, considerando apenas
de princípios e práticas que orientam formas as intoxicações agudas, o que resultaria em US$
de habitar, conviver, produzir, comercializar e 149 milhões gastos no setor saúde.

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Ademais, apesar das ações de educação em de agrotóxicos. A responsabilização dos/as


saúde e trabalho voltadas aos agricultores/as trabalhadores/as rurais se configura como
serem parte necessária e integrante da dimi- inválida já que as exigências, a complexidade
nuição de tais riscos, destaca-se o fato de que e os custos para o ‘uso seguro’ da tecnologia
muitas sugestões dos estudos reivindicaram agroquímica são incompatíveis com a estru-
ações educativas direcionadas à modificação tura econômica, social, física, administrativa
de práticas laborais, alegando que as intoxi- e laboral do/a trabalhador/a rural48.
cações e os desfechos em saúde dependiam, Perante as assertivas evidenciadas, corrobo-
em sua maior parte, da modificação individual rando o relatório sobre direito à alimentação
como forma de minimizar a exposição a agro- do Conselho de Direitos Humanos das Nações
tóxicos. Dessa forma, além das despesas que Unidas42, defende-se que a exposição a agrotó-
o atual modelo agrícola gera para o sistema xicos, tanto de forma ocupacional como para
de saúde, é preciso discutir a culpabilização a população geral, gera graves impactos no
dos/as trabalhadores/as e a naturalização da usufruto dos direitos humanos, em particular,
intoxicação. o direito à alimentação adequada e o direito
Nesse sentido, poucos artigos trouxeram à saúde – visto que o direito à alimentação
como sugestão principal a necessidade de obriga os governos estaduais a implementarem
garantia de direitos básicos aos trabalhado- medidas de proteção e requisitos de segurança
res, ou mesmo da necessidade de repensar os alimentar e nutricional para garantir que os
fatores estruturantes tais como a regulação alimentos sejam seguros, livres de agrotóxicos
governamental responsável pela classificação e qualitativamente adequados. Além disso, os
toxicológica. O marco regulatório aprovado padrões de direitos humanos exigem que os
pela Anvisa em 20195-7, que além de alterar a Estados protejam grupos vulneráveis – como
classificação toxicológica também modificou trabalhadores/as agrícolas, comunidades
a comunicação de risco contida nas embala- agrícolas, crianças e mulheres grávidas – dos
gens de agrotóxicos, reduzindo símbolos, é um impactos de agrotóxicos.
aspecto preocupante quanto à compreensão
dos riscos pelos/pelas trabalhadores/as uma
vez que, entre os/as intoxicados/as, cerca Considerações finais
de 40% não possuem o ensino fundamental
completo4. Novamente, o levantamento dos De modo geral, o presente estudo estabelece
níveis de instrução formal e a sua relação com um panorama das lacunas e possibilidades de
a intoxicação/desfecho em saúde elencado enfrentamento da problemática do impacto dos
por alguns artigos trazem como perspectiva agrotóxicos na saúde trazidas pelas pesquisas
a culpabilização dos agricultores/as. acessadas, assinalando quais os encaminhamen-
A associação entre nível de instrução formal tos sugeridos por essas pesquisas no âmbito
e intoxicação/desfecho em saúde deve ser das políticas públicas e evidenciando como a
problematizada visto que ela parte do princípio agroecologia tem ou não sido incluída como
do ‘uso seguro’ de agrotóxicos, induzindo ao estratégia de resistência e proposta de transição.
entendimento que basta seguir rigidamente Dos estudos avaliados, as lacunas identifica-
as instruções de uso dos produtos para haver das, que devem ser preenchidas por estudos
segurança na manipulação, e, além disso, con- futuros, correspondem a questões como o
tribuindo para culpabilizar os sujeitos que fato das investigações realizadas com tra-
não dispõem de meios para compreensão das balhadores/as rurais não classificarem os
instruções. Existem evidências que mostram imóveis rurais em extensão de propriedade
que há inviabilidade técnica para uso dos (propriedade familiar, minifúndio, latifúndio
EPI e para as regras de preparo e aplicação e empresa rural ou conforme extensão de

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Agrotóxicos, desfechos em saúde e agroecologia no Brasil: uma revisão de escopo 495

área). A omissão dessas informações invia- forma declarada e de acordo com referenciais
biliza a definição de ações de acordo com metodológicos mais rigorosos.
as especificidades de cada grupo. Houve Salienta-se a necessidade de ampliar a re-
também dificuldade de análise a partir das alização e as publicações de pesquisas quali-
substâncias utilizadas e desfechos abordados, tativas para que se possa dar voz a indivíduos
devido, principalmente, à grande heteroge- cujo trabalho os expõe a contaminação por
neidade de delineamentos e de objetivos de agrotóxicos, como agricultoras e agricultores,
estudos. Considera-se também como lacuna assim como aqueles expostos de forma não
dos estudos a falta de diferenciação entre as ocupacional, possibilitando a obtenção de
terminologias ‘trabalhadores rurais’, ‘agricul- discussões, resultados e proposição de ações
tores/as’ e ‘produtores rurais’, não havendo relacionadas com exposição, uso e consumo de
especificação do regime de trabalho, dado agrotóxicos e implicações à saúde construídos
importante para a realização da análise. a partir de uma relação dialógica entre sujeitos
Dentro desse quadro, poucos estudos foram participantes das pesquisas e pesquisadores e
realizados com trabalhadores e/ou trabalha- pesquisadoras, bem como o desenvolvimento
doras em áreas urbanas; bem como poucas de pesquisas com abordagem mista (qualita-
pesquisas direcionadas a grupos de trabalha- tiva associadas a quantitativa) haja vista suas
doras rurais, quando se sabe que as mulheres complementaridades.
representam importante força de trabalho em Por outro lado, a análise dos artigos em
80% das propriedades rurais49. questão permitiu o entendimento do grande
Houve predomínio de sugestões de ações alcance e amplitude de locais, tipos de des-
incipientes e que incorreram na culpabilização fechos, grupos, substâncias e metodologias
de agricultores e agricultoras, havendo a emer- utilizadas pelas pesquisas, o seu aumento e
gência de pesquisas em caminho oposto que o seu fortalecimento ao longo de cinco anos.
incentivem o alcance de direitos fundamentais, Tendo em vista o limitado número de pes-
e que possam subsidiar desde orientações edu- quisas financiadas (apenas 36%), é preciso
cativas por parte de profissionais de saúde até reconhecer a relevância e a persistência das
maior participação em ações de controle social pesquisas empíricas/investigativas, princi-
e tomada de decisões, assim como formulações palmente diante do quadro de diminuição de
de políticas públicas estratégicas. investimentos em pesquisa no Brasil50.
Levanta-se aqui a imprescindível e urgente, A natureza precoce dos desfechos em saúde
porventura já tardia, necessidade de pesqui- hematológicos e genéticos sinalizam a neces-
sadoras e pesquisadores se familiarizarem sidade de entender o fenômeno da exposição
com o campo da agroecologia, assim como de aos agrotóxicos enquanto um processo crônico
experiências agroecológicas reais, concretas e longitudinal e que deve ser mapeado por uma
pulsantes que vêm sendo trilhadas na direção atenção em saúde integral mais fortalecida.
de sistemas alimentares sustentáveis, para Contudo, para evitar que processos de ado-
que, em futuras pesquisas, esse paradigma ecimento precoces e de difícil identificação
produtivo possa ser postulado como saída para aconteçam, é necessária a substituição do
a falida e predatória agricultura industrial. sistema agroalimentar predominante para
Além disso, destaca-se a carência de pro- um sistema fundamentado em manejos agro-
duções fundamentadas em metodologia ecológicos, que se apresenta na atualidade
qualitativa ou quantiqualitativa dedicadas à como única forma de evitar esses processos
temática levantada nesta revisão, tal como a precoces, crônicos e de complexo diagnóstico e
prevalência de delineamentos, ferramentas e acompanhamento, evitando, assim, a completa
métodos imprecisos ou não explicitados no responsabilização do setor saúde, bem como
corpo do texto, que devem ser expressos de prejuízos financeiros ao setor.

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Em suma, do ponto de vista da produção dessa forma, a necessidade de maior incorpo-


científica sobre a temática dos agrotóxicos e ração da temática dos agrotóxicos por parte
seus impactos na saúde humana, a análise dos dessas revistas e estímulo a maior produção
achados desta revisão de escopo demonstra a de artigos sobre esse assunto.
necessidade de maior articulação com a teoria Ressalta-se, por fim, que o conhecimento e
e a prática agroecológica de modo a: a defesa de políticas públicas como o PNARA,
bem como um diálogo mais próximo com a
1) Enxergar esse fenômeno enquanto parte agroecologia, já realizado por instituições de
integrante dos sistemas alimentares e que não pesquisa e movimentos sociais51, devem ser
envolvem somente grupos estudados, cultivos realizados não somente pelo campo da saúde
e desfechos em saúde específicos para uma coletiva, mas por todo o campo da saúde, sendo
perspectiva mais ampliada do fenômeno e a saúde coletiva responsável por estimular esse
da extensão de seus efeitos; diálogo com a agroecologia, enquanto ciência
e prática, com todas as subáreas do campo da
2) Levantar novas problemáticas de pesquisa saúde e outros campos do conhecimento, para
que partam do princípio da intoxicação por o desenvolvimento de novos saberes diversi-
agrotóxicos como uma violação de vários ficados que colaborem para a transição para
direitos (à terra, aos meios de produção, à modelos agroecológicos.
educação, à alimentação adequada e saúde);

3) Incorporar outras metodologias de pes- Colaboradoras


quisa que possam trazer a experiência vivida
pelos sujeitos; Daufenback V (0000-0001-7121-0513)* con-
tribuiu substancialmente para a concepção
4) Estudar modos de promoção da saúde e delineamento do estudo; aquisição, análise
não somente humana, mas também animal e interpretação dos dados do trabalho; ela-
e ambiental, obtidos por meio do cultivo boração de versões preliminares do artigo
agroecológico e suas formas de consumo; e revisão crítica de importante conteúdo
intelectual; aprovação final da versão a ser
5) Entender o fenômeno da exposição e do publicada e concordância em ser respon-
adoecimento enquanto um processo social, sável por todos os aspectos do trabalho.
crônico e longitudinal, e que necessita de fer- Adell A (0000-0002-7721-2138)* contribuiu
ramentas interdisciplinares e intersetoriais substancialmente para a concepção, o deli-
de compreensão e ação, evitando concentrar neamento, análise e interpretação dos dados
o entendimento e as soluções desse fenômeno do trabalho; revisão crítica do conteúdo e
exclusivamente dentro do campo da saúde. aprovação da versão final do manuscrito.
Mussoi MR (0000-0003-0961-5020)* con-
Tendo em vista a análise referente às tribuiu substancialmente para a concepção
áreas e subáreas das publicações, o campo da e o planejamento; elaboração do rascunho
saúde coletiva apresentou, aproximadamente, e aprovação da versão final do manuscrito.
20% das publicações, sendo que os campos Furtado ACF (0000-0002-8303-7719)* con-
referentes à saúde ambiental e ciências da tribuiu substancialmente para a concepção,
saúde, somados, incorporaram a maior parte o planejamento, a análise e a interpretação
das publicações. Mais investigações sobre as dos dados do artigo; revisão crítica do con-
razões dessa baixa incorporação da temática teúdo e aprovação da versão final do manus-
dos agrotóxicos nas revistas de saúde coletiva crito. Santos SA (0000-0002-7529-7553)*
são necessárias. Entretanto, esse dado revela, contribuiu para a revisão crítica do conteúdo

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Agrotóxicos, desfechos em saúde e agroecologia no Brasil: uma revisão de escopo 497

e aprovação da versão final do manuscrito. dados do trabalho; elaboração de versões


Veiga DPB (0000-0003-0317-245X)* con- preliminares do artigo e revisão crítica de
tribuiu para a análise e interpretação dos importante conteúdo intelectual. s

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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 482-500, JUN 2022


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tps://agroecologia.org.br/wp-content/uploads/2019/11/
Saude_e_Agroecologia_web.pdf.
Recebido em 30/09/2020
Aprovado em 14/06/2021
Conflito de interesses: inexistente
46. Petersen P. Prefácio. In: Carneiro FF, Rigotto RM, Au-
Suporte financeiro: não houve
gusto LGS, et al., organizadores. Dossiê ABRASCO: um

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 482-500, JUN 2022


REVISÃO | REVIEW 501

Caracterização da saúde e saneamento de


uma comunidade quilombola no entorno da
capital do Brasil: um scoping review
Characterization of health and sanitation in a quilombola community
in the surroundings of the capital of Brazil: a scoping review

Aurélio Matos Andrade1, Diogo Caiafa Moreira Lopes de Faria2, Fellipe Manoel de Sousa Franca3,
Fernanda Reis Ribeiro4, Marcelo Fernandes Barbosa de Oliveira4, Marcos André de Matos4

DOI: 10.1590/0103-11042022E233

RESUMO A comunidade quilombola Mesquita possui uma identidade intimamente relacionada com a
terra; todavia, atualmente, as relações entre saúde e saneamento apresentam-se de forma precarizada
devido à expansão do agronegócio e do mercado imobiliário. O objetivo deste estudo foi identificar os
aspectos de saúde e saneamento da comunidade quilombola Mesquita da Cidade Ocidental do estado de
Goiás, Brasil. Esta revisão foi estruturada no método de um scoping review elaborado com a finalidade de
síntese de evidências auxiliando no direcionamento de políticas públicas e na tomada de decisões práticas
para o território. Os principais resultados encontrados nos aspectos de saúde foram a importância da
Unidade Básica de Saúde, da agroecologia e das terapias alternativas. Já nos aspectos de saneamento foram
o abastecimento de água e o tratamento/disposição de resíduos sólidos. Constata-se que o fortalecimento
e a interdependência da saúde humana e ambiental, da cultura e da ancestralidade da história africana e o
reconhecimento dos direitos territoriais potencializarão o cuidado coletivo com o suporte de diferentes
atores sociais. É notório que o enfrentamento da escravidão no Brasil ainda existe no Quilombo Mesquita,
pela invisibilidade e inassistência refletidas atualmente pelas ações governamentais.

PALAVRAS-CHAVE Saúde. Saneamento. Grupo com ancestrais do continente africano.

ABSTRACT The Mesquita quilombola community has an identity closely related to land, however, nowadays,
the relationship between health and sanitation is precarious due to the expansion of agribusiness and the
real estate market. The aim of this study was to identify the health and sanitation aspects of the quilombo
community of Mesquita of Cidade Ocidental, in the state of Goiás, Brazil. This review was structured using a
scoping review method designed to synthesize evidence to help guide public policies and make practical deci-
1 Fundação Oswaldo Cruz sions for the territory. The main results found in health aspects were the importance of the Basic Health Unit,
(Fiocruz) – Brasília (DF),
Brasil.
of agroecology, and of alternative therapies. As for sanitation, they were water supply and treatment/disposal
aur87@hotmail.com of solid waste. It is said that the strengthening and interdependence of human and environmental health, of
the culture and ancestry of African history and recognition of territorial rights will enhance collective care
2 Fundação Nacional da

Saúde (Funasa) – Brasília


with the support of different social actors. It is clear that the fight against slavery in Brazil still exists in the
(DF), Brasil. Mesquita quilombo, due to the invisibility and lack of assistance currently reflected by governmental actions.
3 InstitutoChico Mendes
de Conservação da
KEYWORDS Health. Sanitation. African continental ancestry group.
Biodiversidade (ICMBio) –
Brasília (DF), Brasil.

4 UniversidadeFederal de
Goiás (UFG) – Goiânia
(GO), Brasil.

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 501-517, JUN 2022
502 Andrade AM, Faria DCML, Franca FMS, Ribeiro FR, Oliveira MFB, Matos MA

Introdução básicos, como sistemas de saúde e saneamento,


é precário, há invisibilidade política para esse
A escravidão africana no Brasil ocorreu entre povo, e a produção de conhecimento passível
os séculos XVI e XIX, e ainda hoje deixa de garantir o modo de viver do quilombola
vestígios de exclusão social. Nesse período, ainda é incipiente4. 
os negros que fugiram dos engenhos se re- Para a efetivação de políticas públicas, é
fugiavam em locais escondidos e afastados imprescindível conhecer o perfil e a identida-
do perímetro urbano, de forma a buscar o de peculiar de cada comunidade quilombola.
isolamento contra a opressão sofrida no Tendo isso em vista, é propósito da presente
período de escravidão. Essas localidades investigação proporcionar conhecimentos
ficaram conhecidas como quilombos, onde técnico-científicos que contribuam para
os negros refugiados conseguiram recriar, valorização e investimentos nas condições
a duras penas, sua rotina, plantando e pro- de saneamento e saúde ambiental, com con-
duzindo alimentos, além de manter: ances- sequente promoção da sustentabilidade e o
tralidade, tradições, costumes, crenças e empoderamento, em específico, da comu-
valores, que, infelizmente, nos dias de hoje nidade quilombola Mesquita. Desse modo,
estão sendo depreciados1. acredita-se assegurar, com dignidade, os di-
Nessa conjuntura, próximo da capital do reitos adquiridos à terra, as características
Brasil, a cerca de 50 km, foi criada, no século culturais e sociais nas relações coletivas e
XVIII, uma comunidade quilombola, conhe- a qualidade de vida5. Nesse contexto, este
cida como Quilombo Mesquita2. Esse agrupa- scoping review objetivou identificar os aspec-
mento étnico, assim como os outros quilombos tos de saúde e saneamento da comunidade
brasileiros, representa símbolo de resistência quilombola Mesquita, localizada no entorno
ao regime escravocrata no País, perpassando, da capital do Brasil.
atualmente, por múltiplas dificuldades com a
invasão da agricultura e pecuária em territó-
rio tradicional. Somam-se, ainda, a crescente Material e métodos
produção econômica imposta pelo capitalismo,
as normativas incipientes e insuficientes para
proteção e preservação do meio ambiente, Identificação do estudo
e a especulação imobiliária que, há mais de
30 anos, tenta reduzir a área ocupada pelos Esta revisão foi estruturada no método de
quilombolas3.  scoping review6 que buscou consolidar evidên-
O Quilombo Mesquita, em pleno século cias em manuscritos com diferentes objetivos
XXI, é expressão viva de resistência ao racismo e questões no campo da saúde e do saneamen-
e assédio ao capital financeiro e imobiliário, to, sendo projetada para sintetizar de forma
que tentam, como no passado, dizimar uma clara e objetiva os achados. De acordo com
comunidade tradicional, cujos antepassados Peters et al.6, o scoping review é um recurso
foram sequestrados em terras africanas e es- recente de síntese de evidências que auxilia
cravizados pelos colonizadores3,4. na elaboração e efetivação de políticas pú-
Mesmo sendo, em 2006, reconhecida como blicas. Contudo, o que o distingue de outras
uma comunidade quilombola pela Fundação formas de revisões é o objetivo de mapear
Cultural Palmares (subordinada ao Ministério determinados conceitos vinculados a uma
da Cultura), a luta pelos direitos é constante, área de pesquisa em literaturas estabelecidas,
e muitos quilombolas encontram-se em con- de forma quantitativa ou qualitativa, e reunir
dições de vulnerabilidade individual, social e as evidências dos aspectos encontrados em
programática. O acesso aos direitos humanos demonstrativos ou gráficos.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 501-517, JUN 2022


Caracterização da saúde e saneamento de uma comunidade quilombola no entorno da capital do Brasil: um scoping review 503

Base de dados editoriais, atas de congressos, comentários de


jornais e relatos de casos, monografias, disser-
As bases de dados pesquisadas para seleção das tações e teses publicadas parcialmente, assim
publicações foram PubMed, Lilacs, Embase, como aqueles que abordaram exclusivamente
Web of Science, Cochrane Library, Proquest, aspectos políticos e econômicos.
Catálogo de dissertações e teses Capes,
Bielefeld Academic Search Engine (Base), Seleção de dados
Biblioteca Digital de Teses e Dissertações
(BDTD) do Instituto Brasileiro de Informação O software Mendeley Desktop 1.18 foi utilizado
em Ciência e Tecnologia (Ibict) e Networked para gerenciar as referências encontradas,
Digital Library of Theses and Dissertations permitindo a exclusão de dados em dupli-
(NDLTD); em abril de 2020. As referências cidade. A partir disso, dois pares de autores
de monografias, dissertações e teses selecio- [(DCMLF, FMSF) e (FRR e MFBO)] fizeram
nadas foram manualmente verificadas. Ainda, leitura de título e resumos utilizando o softwa-
os autores foram comunicados na tentativa re Rayyan QCRI; e, posteriormente, a leitura
de resgatar referências indisponíveis. O che- de texto completo de forma independente. As
cklist do Prisma7 de revisões sistemáticas foi discordâncias foram discutidas entre os dois
utilizado de forma norteadora para a escrita pares de revisores [(DCMLF, FMSF) e (FRR e
deste artigo. MFBO)], não havendo consenso, um terceiro
revisor (AMA) decidiu acerca das discordân-
Estratégia de pesquisa cias. Em seguida, foi feita a extração dos dados
utilizando o software Microsoft Excel® 2016
A estratégia utilizada na busca combinou com a colaboração dos dois pares de autores
Descritores em Ciências da Saúde (DeCS) e [(DCMLF, FMSF) e (FRR e MFBO)], e, em
termos do Medical Subject Headings (MeSH) caso de inconsistências, foi dirimida por um
nos idiomas inglês, português e espanhol, es- terceiro revisor (AMA). As variáveis utiliza-
truturada de acordo com as singularidades das para extração e análise das monografias,
da plataforma de cada base de dados; além dissertações e teses foram: autor, ano, título,
disso, foram usados termos livres. A estraté- delineamento do estudo, instituição acadê-
gia utilizada consistiu nos seguintes termos: mica, titulação, financiamento, aspectos de
“African Continental AncestryGroup” [MeSH] saúde e aspectos de saneamento.
AND “Quilombo Mesquita” OR “Quilombola
Mesquita” OR “Comunidade Tradicional
Mesquita”. Resultados
Critérios de elegibilidade Foi identificado um total de 31 publicações,
sendo 17 duplicatas, restando, portanto, 14
Os critérios de inclusão foram: artigos primá- publicações para leitura prévia de título e
rios, monografias, dissertações e teses sem resumo. As 14 publicações foram elegíveis
restrição temporal em qualquer idioma, que para leitura de texto completo, e nenhum ma-
abordassem os aspectos de saúde e saneamen- nuscrito foi excluído após essa leitura. Dessa
to da comunidade quilombola Mesquita da forma, 14 publicações foram analisadas para o
Cidade Ocidental do estado de Goiás, Brasil. Os presente scoping review. Os resultados obtidos
critérios de exclusão foram: textos incomple- com a aplicação da estratégia de busca estão
tos, artigos de revisão sistemática, integrativa apresentados no Fluxograma lógico do estudo
ou narrativa com ou sem metanálise, relatórios, (figura 1).

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 501-517, JUN 2022


504 Andrade AM, Faria DCML, Franca FMS, Ribeiro FR, Oliveira MFB, Matos MA

Figura 1. Fluxograma de seleção de publicações sobre aspectos de saúde e saneamento da comunidade quilombola
Mesquita

PubMed - 0 Embase - 0 Web of Science - 0


Lilacs - 0 Cochrane Library - 0 Proquest - 0

Identificação
Catálogo de dissertações e teses Capes - 9
Bielefeld Academic Search Engine (Base) - 8
Biblioteca Digital de Teses e Dissertações do Ibict - 6
Networked Digital Library of
Theses and Dissertations - 6
Busca Manual: 2
TOTAL: 31

Critérios de exclusão: textos incompletos,


Seleção

17 duplicatas artigos de revisão sistemática, integrativa ou


narrativa com ou sem metanálise, relatórios,
editoriais, atas de congressos, comentários
de jornais e relatos de casos, monografias,
dissertações e teses publicadas parcialmente,
assim como aqueles que abordaram
14 documentos para leitura de título e resumo
exclusivamente aspectos políticos e econômicos.
Elegibilidade

14 selecionados para leitura completa 0 publicações excluídas após leitura completa


Inclusão

14 publicações elegíveis

Fonte: Elaboração própria.

Caracterização dos estudos agronomia (1), ciências ambientais e saúde (1),


comunicação (1), e habitação e direito à saúde
Os materiais acadêmicos selecionados neste (1). O único manuscrito de graduação foi do
scoping review foram publicados nos últimos curso de pedagogia (quadro 1).
11 anos, com destaque para o ano de 2015 A Instituição de Ensino Superior (IES) que
que atingiu 7 publicações (50%), seguido dos obteve a maior contribuição com a formação
demais anos: 2019 (1), 2018 (2), 2016 (1), 2014 de estudantes em diferentes titulações foi a
(1), 2012 (1), e 2009 (1) (quadro 1). Universidade de Brasília (UnB) com 71,42%
As publicações elegíveis nesta pesqui- (10) dos trabalhos acadêmicos. As demais insti-
sa foram monografias, dissertações e teses tuições (Universidade Federal do Goiás – UFG,
contempladas em literatura cinzenta; não Pontifícia Universidade Católica de Brasília
foi evidenciado, nas bases de dados, nenhum – UCB, Pontifícia Universidade Católica de
artigo científico original. A maioria das pu- Goiás – PUC-GO e Universidade Federal da
blicações foi desenvolvida em programas de Bahia – UFBA) contribuíram com uma publi-
pós-graduação (13), sendo 50% de dissertações cação cada (quadro 1).
de mestrado (7), seguidas de teses de douto- O delineamento dos estudos, em sua
rado (3), monografias de especialização, (3) e maioria, foi em trabalhos exclusivamente
monografia de graduação (1) (quadro 1). qualitativos com 8 publicações (4 descritivos,
Os programas de pós-graduação que al- 2 etnográficos e 2 pesquisa-ação), continu-
cançaram mais publicações de manuscritos ados por estudos de revisão narrativa (4),
foram na área da educação (7), posteriormente, quantitativo transversal (1) e qualiquantita-
direitos humanos e cidadania (3), seguidos de tivo descritivo (1) (quadro 1).

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 501-517, JUN 2022


Caracterização da saúde e saneamento de uma comunidade quilombola no entorno da capital do Brasil: um scoping review 505

Quadro 1. Descrição dos manuscritos incluídos na scoping review. (n=14)

Delineamento do Instituição
Autor/Ano Título Estudo Acadêmica Titulação Financiamento
Abreu OMM/ Comunidade Quilombola Mesquita: Polí- Revisão Narrativa Pontifícia Univer- Mestrado em Ciências Não
20098 ticas Públicas de Promoção da Igualdade sidade Católica Ambientais e Saúde
Racial na Busca da Equidade de Goiás (UCG)
Oliveira WS/ Quilombo Mesquita: cultura, educação e Qualitativa Universidade de Graduação em Peda- Não
20129 organização sociopolítica na construção Pesquisa-ação Brasília (UnB) gogia
do pesquisador coletivo
Santos EC/ Práticas e eventos de letramento em Qualitativa etno- Universidade de Mestrado em Educação Não
201410 uma comunidade remanescente de gráfica Brasília (UnB)
quilombolas: Mesquita
Aguiar VG/ Conflito territorial e ambiental no qui- Revisão Narrativa Universidade Doutorado em Geo- Não
201511 lombo Mesquita / Cidade Ocidental: Federal de Goiás grafia
racismo ambiental na fronteira DF e (UFG)
Goiás
Carvalho Cultura e tradições dos remanescentes Revisão Narrativa Universidade de Especialização em Não
FFS/201512 do Quilombo Mesquita e o projeto po- Brasília (UnB) Educação em e para os
lítico pedagógico da Escola Municipal Direitos Humanos no
Aleixo Pereira Braga I Contexto da Diversida-
de Cultural
Costa AS/ Educar na tradição: diálogos com a Qualitativa des- Universidade de Mestrado em Educação Edital de Fomento
201513 comunidade quilombola Mesquita critiva Brasília (UnB) do Decanato de
Extensão da UnB
Neres MB/ Educação quilombola em Mesquita: Qualitativa etno- Pontifícia Univer- Mestrado em Educação Não
201514 estudo da gestão da escola a partir do gráfica e docu- sidade Católica
processo histórico, emancipatório e das mental de Brasília (UCB)
relações de conflito
Oliveira WS/ Educação popular: uma experiência em Qualitativa Universidade de Mestrado em Educação Não
201515 pesquisa-ação existencial no Quilombo Pesquisa-ação Brasília (UnB)
Mesquita - Cidade Ocidental/GO
Ribeiro ASS/ Saberes tradicionais e educação ambien- Qualitativa des- Universidade de Doutorado em Edu- Não
201516 tal: encontros e desencontros no quilom- critiva Brasília (UnB) cação
bo de mesquita – Goiás
Rodrigues Valorização da cultura e tradições dos Qualiquantitativa Universidade de Especialização em Não
FPMR/201517 remanescentes do Quilombo Mesquita descritiva Brasília (UnB) Educação em e para os
na elaboração e execução do projeto Direitos Humanos no
político pedagógico da Escola Municipal Contexto da Diversida-
Aleixo Pereira Braga I de Cultural
Nascimento Qualidade do solo e aptidão agrícola das Quantitativa Universidade de Doutorado em Agro- Não
RSMP/201618 terras do quilombo Mesquita, estado de Estudos trans- Brasília (UnB) nomia
Goiás versais
Jesus RHS/ À flor da pele: Um estudo de recepção Qualitativa des- Universidade de Mestrado em Comu- Não
201819 do desenho Guilhermina e Candelário critiva Brasília (UnB) nicação
com crianças de uma escola quilombola
Silva CTC/ 20182 Lugares de memória do Quilombo Mes- Revisão Narrativa Universidade Especialização em As- Não
quita Federal da Bahia sistência Técnica para
(UFBA) Habitação e Direito à
Cidade
Alves AF/ Organização social no quilombo mesqui- Qualitativa des- Universidade de Mestrado Direitos Hu- Não
201920 ta: trabalho, solidariedade e atuação das critiva Brasília (UnB) manos e Cidadania
mulheres

Fonte: Elaboração própria.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 501-517, JUN 2022


506 Andrade AM, Faria DCML, Franca FMS, Ribeiro FR, Oliveira MFB, Matos MA

Aspectos de saúde doenças relacionadas com a falta de sanea-


mento e as condições de trabalho14,16; a utili-
Os aspectos de saúde evidenciados nos ma- zação da fitoterapia para o tratamento e cura
nuscritos foram a presença de uma Unidade de doenças9,12,14,16,17; a figura das parteiras,
Básica de Saúde (UBS), que atua na orienta- benzedeiras, rezadeiras e raizeiras no cuidado
ção, prevenção, diagnóstico e tratamento de à saúde da comunidade16,17,19; bem como a
doenças; contudo, cerceada por profissionais elaboração de Projetos Político-Pedagógicos
com ideologias culturais e influências políticas (PPP) voltados para práticas de higieniza-
diferentes da comunidade Mesquita2,8-11,16,19,20. ção e infraestrutura escolar12,20 (quadro 2).
Ainda, observaram-se características alimen- As definições dos aspectos de saúde foram
tícias provenientes da agricultura orgânica/ dimensionadas de forma dinâmica em um
familiar (agroecologia)12,14; a notificação de infográfico (figura 2).

Figura 2. Infográfico sobre os aspectos de saúde abordados nos manuscritos

Higienização Notificação de Doenças


Estabelece práticas de limpeza, Os profissionais de saúde atuam
desinfecção ou sanitização, com a notificação de doenças que
permite a prevenção e redução de fortalecem as ações de controle e
doenças. prevenção de doenças.

Fitoterapia
Unidade Básica de Saúde
É um conhecimento que
Aspectos (UBS) antigo ‘posto de
se destina ao tratamento
de saúde’
de doenças com utilização
Porta de entrada da Atenção
de plantas medicinais. Saúde Primária à Saúde com toda a
Rede de Atenção à Saúde.

Parteiras, benzedeiras, Agricultura Orgânica/Familiar


rezadeiras, raizeiras Um modelo de produção que visa a
Atores sociais que atuam na auto-sustentação da propriedade
saúde física, mental e social agrícola com base em recursos
inseridos na cultura e alimentícios saudáveis estruturados
ancestralidade da comunidade na preservação da saúde ambiental.
quilombola.

Fonte: Elaboração própria.

Aspectos de saneamento da água8,9,14-16; o direito da comunidade qui-


lombola aos recursos naturais13; a realização de
Os aspectos de saneamento sistematizados nos práticas de limpeza de córregos/regos de água;
estudos foram o abastecimento de água prove- o enleiramento de resíduo próximo à copa
niente de fontes de rios, córregos e nascentes. servindo de adubo14,16,18; e a falta de drenagem
O surgimento crescente de empreendimentos pluvial18,20. Somam-se, ainda, a presença de
imobiliários acarretou inúmeros problemas e fossa séptica nas residências em condições de
violação de direitos, que prejudicaram sobre- contaminação dos mananciais8, as complica-
maneira o saneamento da comunidade, tais ções decorrentes do aterro sanitário da Cidade
como: prejuízo na disponibilização e qualidade Ocidental (GO)11,15, a ausência de tratamento

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Caracterização da saúde e saneamento de uma comunidade quilombola no entorno da capital do Brasil: um scoping review 507

de esgoto8,16, e a falta de destinação final de queima8,16 (quadro 2). Os conceitos dos aspectos
resíduos sólidos advindos da própria comuni- de saneamento foram elencados de forma di-
dade de Mesquita, acarretando o processo de nâmica em um infográfico (figura 3).

Figura 3. Infográfico sobre os aspectos de saneamento abordados nos manuscritos

Queima de Resíduos Sólidos Direitos aos Recursos Naturais


Incineração de resíduos sólidos com Direito ao uso de recursos oriundos da
alta capacidade de poluição do ar. natureza para subsistência da vida.

Fossa Séptica Tratamento de Esgoto


Unidade primária de Água poluída de origem
tratamento de esgoto doméstica, comercial e
doméstico por meio de industrial que passa por
transformação processos físicos e bioquímicos
físico-química. de saneamento básico com o
objetivo de ser reutilizada.

Aspectos
Aterro Sanitário de
Enleiramento de Resíduos
Lugar que recebe Saneamento Restos de vegetais, folhagens e
resíduos sólidos gerados
madeiras que servem de matéria
pela atividade humana
prima na transformação de
com finalidade de
adubo orgânico.
decomposição.

Limpeza de Rios/Córregos Abastecimento de Água


Retirada de resíduos reduzem a Obtenção de água proveniente
contaminação da água e solo. de fonte natural na comunidade
Drenagem Pluvial quilombola.
Modelo de drenagem das
águas das chuvas
compondo o transporte,
retenção, tratamento e
disposição final.

Fonte: Elaboração própria.

Quadro 2. Descrição acerca dos aspectos de saúde e de saneamento da comunidade do Quilombo Mesquita. (n= 14)

Autor/Ano Aspectos de Saúde Aspectos de Saneamento


Abreu OMM/ Posto de saúde está localizado dentro da comunidade A qualidade e o consumo do abastecimento de água não são
20098 Mesquita é contemplado pelo Programa Saúde da Família orientados pelo poder público. A destinação de resíduos (o lixo da
(PSF) que dispõe de 1 médico, 1 enfermeiro, 2 técnicos e 6 comunidade) tem sua destinação final no processo de queima em
agentes comunitários de saúde. A unidade oferta serviços locais irregulares, em virtude da coleta pública ser irregular ou prati-
de fornecimento de medicamentos e em situações mais camente inexistente. Condições insatisfatórias na estrutura da caixa
específicas é feito o encaminhamento de pacientes para o d'agua do posto de saúde da comunidade. Ausência de tratamento
hospital da Cidade Ocidental-GO. de esgoto, presença da fossa séptica como agente de contaminação
de mananciais e a proximidade da fossa séptica dos poços artesia-
nos nas unidades de habitação individuais dos quilombolas.
Oliveira WS/ O posto de saúde é tido como um lugar de referência no O abastecimento de água é garantido pelos inúmeros ‘regos d’água’
20129 cuidado à saúde. As farmácias são conhecidas como locais levando água dos rios, córregos e nascentes para as casas e planta-
de compra de remédios, caso haja necessidade. Contudo, a ções. Entende-se que o abastecimento de água tenha relação com a
comunidade do quilombo Mesquita tem os seus conheci- construção do ‘rego das cabaças’, no séc. XVIII, pelos negros escra-
mentos de curas, com o uso de plantas e ervas medicinais. vizados ao levar água por 40 km do ribeirão Saia Velha ao centro de
Santa Luzia (Luziânia) para a lavagem do ouro no rio vermelho.

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Quadro 2. (cont.)

Autor/Ano Aspectos de Saúde Aspectos de Saneamento


Santos EC/ O posto de saúde é um local importante para o letramen- Não consta.
201410 to (leitura de jornais, livros e escrita de atestado), assim
como aprendizagem e obtenção de conhecimento sobre
prevenção de doenças.
Aguiar VG/ O posto de saúde é uma referência no cuidado da comuni- O aterro sanitário próximo à área do Quilombo Mesquita (no limite
201511 dade quilombola sul) com intensificação da pressão urbana e deposição de resíduos
sólidos provenientes da Cidade Ocidental-GO e de outras das cida-
des da Região Integrada do Distrito Federal e Entorno (Ride).
Carvalho A fitoterapia é uma das mais conhecidas e praticadas Não consta.
FFS/201512 formas de cura tradicional, em que se enfatiza o saber
popular, sobretudo dos indivíduos mais velhos. O Projeto
Político-Pedagógico (PPP) contemplou o Projeto Higiene,
que visa proporcionar aos alunos dos Ensinos Fundamental
I e II o conhecimento e o bom uso dos hábitos de higiene
pessoal e escolar. A Associação Renovadora do Quilombo
(Arequim) atua em vários projetos como na continuidade
da agricultura familiar (agroecologia), viveiro de mudas
de árvores em extinção e processos de reflorestamento.
Costa AS/ Não consta. Direitos aos recursos naturais: a permanência no território e, em
201513 contrapartida, as constantes restrições e desapropriações presentes
na história da comunidade Mesquita.
Neres MB/ O Programa Brasil Quilombola faz menção às práticas O Programa Brasil Quilombola faz menção às práticas de saneamen-
201514 nutricionais presente no quilombo Mesquita. Associação to presentes no quilombo Mesquita. O abastecimento de água está
Renovadora do Quilombo Mesquita (Arequim) desenvolve relacionado com a existência diversos canais, com a mesma enge-
a agricultura orgânica/familiar (agroecologia) mantendo nharia do Córrego das Cabaças, em que a água possuía finalidade
os costumes locais, com produção de alimentos orgânicos, doméstica e agrícola. E com o auxílio da Associação Renovadora do
cultivo de plantas frutíferas, ornamentais e de reflores- Quilombo (Arequim), é feita a limpeza dos regos de água que abas-
tamento. As principais doenças dos quilombolas eram tecem as residências.
reumatismo, problemas na coluna e nos rins, enfermidades
venéreas e verminoses.
Oliveira WS/ Não consta. O abastecimento de água é garantido pelos inúmeros ‘regos d’água’
201515 levando água dos rios, córregos e nascentes para as casas e planta-
ções. Infere-se que os ‘regos d’água’ tenha relação com a construção
do famoso ‘rego das cabaças’. O aterro sanitário do município de
Cidade Ocidental-GO na divisa sul do território quilombola recebe
transbordos de resíduos sólidos das cidades da Ride, desde 2013.
Ribeiro ASS/ O posto de saúde é uma referência no cuidado sendo A criação empreendimentos imobiliários sem estudos prévios pre-
201516 algumas doenças tratadas com ‘remédio de farmácia’. dispõe impacto ao ambiente do quilombo como a perfuração de
Contudo, a medicina popular advinda de seus ancestrais é poços para abastecimento de água, a ausência da coleta de lixo
fortemente praticada sendo repassada aos mais jovens. A doméstico e de captação do esgoto nas residências.
fitoterapia é aplicada por meio das ervas medicinais (erva-
-de-santa-maria usadas para verminoses, expectorante,
estimulante e diurético; hortelã-do-campo usada para
dores estomacais e vermes; arnica usada para machuca-
dos; a erva-cidreira função calmante e antigripal; broto de
goiabeira usada para diarreias, disenterias, dores de dente
e aftas; e o barbatimão usado para diarreias) e as rezas
tradicionais e benzeções revitalizam a identidade comu-
nitária.

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Quadro 2. (c0nt.)

Autor/Ano Aspectos de Saúde Aspectos de Saneamento


Rodrigues Benzedeiras, idosos e lideranças dentro da comunidade Não consta.
FPMR/201517 acumulam conhecimento sobre plantas, ervas e palavras
de proteção que trazem a ‘cura’. Dessa forma, a fitoterapia
é uma prática muito presente e utilizada pelos morado-
res da comunidade. O PPP trouxe a proposta do Projeto
Higiene que proporciona aos estudantes bons hábitos de
higienização pessoal e escolar.
Nascimento Não consta. Baixa densidade de drenagem pluvial é um critério que precisa ser
RSMP/201618 estratégico para tomada de decisões. As plantas daninhas presentes
na área são ceifadas quatro vezes/ano, sendo o resíduo enleirado
próximo à copa. Na área, é preservada a cobertura morta, prove-
niente de restos de frutos, folhas e plantas daninhas, estando o solo
permanentemente coberto (adubo orgânico).
Jesus RHS/ Servidores do posto de saúde são despreparados (cerce- Não consta.
201819 ados por ideologias e por influências políticas locais) para
lidar com a questão da saúde da população negra. Contu-
do, muitos quilombolas procuram por medicamentos. A
presença de benzedeiras, rezadeiras, raizeiras, parteiras
(Dona Antônia recebeu o título social de ‘Mãe do quilom-
bo’ por realizar centenas de partos no quilombo Mesquita)
são reconhecidos na linha dos saberes ancestrais.
Silva CTC/ O posto saúde implantado com o PSF atende às necessi- Não consta.
20182 dades da comunidade quilombola, assim como de núcleos
urbanos das proximidades. E os casos de maior complexi-
dade são direcionados aos hospitais da Cidade Ocidental.
Alves AF/ A infraestrutura do posto de saúde precisa ser monitorada. Drenagem pluvial é notificada pela dificuldade de crianças ao se
201920 Práticas de higienização são fortalecidas na educação deslocarem a escola no período de chuvas, pois não há pavimenta-
infantil na comunidade. ção nas ruas do bairro.

Fonte: Elaboração própria.

Discussão O Quilombo em estudo abriga 3 mil pessoas


e possui 4.300 hectares, estando localizada
Diante do impacto étnico e social, em 1988, em uma área de grande interesse fundiário
o governo brasileiro reconheceu os direitos devido a sua localização geográfica dentro da
quilombolas, conferindo-lhes a posse de suas região Central do Brasil. Atualmente, apesar
terras; entretanto, as comunidades quilom- de manter sua essência, possui rede de energia
bolas, atualmente, em sua maioria, têm sido elétrica, transporte público, UBS e Instituição
negligenciadas nas políticas públicas, e poucos de Ensino Pública (IEP), com implantação de
trabalhos averiguaram suas condições de sa- componentes do saneamento básico, como
neamento e saúde. Entre essas comunidades, abastecimento de água domiciliar, reserva-
o povoado Quilombola Mesquita2 apresenta- tório elevado e fossa séptica2. A urbanização
-se dentro do contexto histórico como uma crescente contribuiu para que as comunidades
comunidade tradicional, marcada pela força da quilombolas brasileiras, até então isoladas
territorialidade, envolvendo fatores culturais em meio a ecossistemas naturais e rurais,
e ambientais, que por hora, estão segregados inserissem-se nas proximidades dos centros
e seus direitos sociais negados. urbanos; por conseguinte, causando mudanças

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na sua identidade, estilo de vida e uso da terra, associar essa maior produção científica ao
com prejuízos à saúde decorrente da má gestão engajamento de pesquisadores no estudo
ambiental21. das comunidades tradicionais, sobretudo
Acredita-se que a importância de reconhe- com o surgimento de novos cursos vincula-
cer a identidade do Quilombo Mesquita diante dos à Universidade Aberta do Brasil (UAB),
da variabilidade de aspectos de saúde e sanea- que busca ampliar a oferta de programas de
mento traz a reflexão das diferentes projeções pós-graduação com currículos voltados para
acerca das trajetórias passadas, presentes e as temáticas de direito humanos e relações
futuras21. Igualmente, entender os ambientes étnico-raciais que envolvem comunidades tra-
mais relevantes para a manutenção da saúde dicionais, sobretudo os povos quilombolas25.
quilombola alvo deste estudo permite subsi- A concentração da produção em instituições
diar estratégias para conservar e aperfeiçoar de localidades próximas ao Quilombo levanta
outros quilombos brasileiros, assim como as o questionamento acerca da divulgação do
práticas tradicionais que os sustentam. conhecimento da comunidade Mesquita. Esse
Em 2015, um acontecimento que fortaleceu fato sugere a notoriedade do Quilombo nas
as comunidades quilombolas foi o Acordo de cidades limítrofes ao seu território; entretanto,
Paris22, que tratou sobre as condições climá- também revela uma possível falta de disse-
ticas e ambientais, promoção dos direitos minação e propagação das atividades desen-
humanos e direito à saúde e ao desenvolvi- volvidas na comunidade em outros estados e
mento sustentável. Nesse mesmo ano, foram países. Acredita-se que tal achado pode ser
concluídas as negociações referentes aos 17 justificado pelo recente reconhecimento da
Objetivos de Desenvolvimento Sustentável23 comunidade Mesquita como Comunidade
(ODS) que contaram com a participação de Remanescente dos Quilombos pela Fundação
mais de 130 chefes de Estado. Juntos em um Cultural Palmares (FCP), em 19 de maio de
plano de ação para erradicar a pobreza, prote- 20068. Todavia, cabe salientar a necessidade
ger o planeta e garantir que as pessoas, incluin- de estímulo à difusão dos saberes advindo das
do as comunidades quilombolas, alcançassem investigações dessa comunidade, haja vista que
paz e prosperidade, foi feita uma prospecção se trata de um segmento populacional atores
da Agenda 203024 para o desenvolvimento da história das civilizações em nível nacional
sustentável. e internacional.
Nota-se que, neste scoping review, a maior No que tange ao fato de as produções en-
parte dos estudos foi conduzida a partir de contradas serem focadas em desenhos com
2015; infere-se que, possivelmente, essas dire- delineamento qualitativo, semelhantemente a
trizes22-24 estejam estimulando a produção de Taquette e Minayo26, destaca-se que o efeito
conhecimento que abordem acordos, direitos e do contexto interpretativo, avaliado junta-
prioridades, até então desconhecidas, revelan- mente com o fenômeno social investigado,
do uma perspectiva direcionada aos aspectos possui evidências científicas, tendo em conta
de saúde e saneamento dessa comunidade que as crenças, os valores, os costumes e as
quilombola. representações sociais são conhecidos em pro-
Não foi evidenciada nenhuma publicação fundidade tanto no depoimento dos sujeitos
em periódicos científicos, ratificando a in- quanto na observação. Dessa forma, os dados
visibilidade dessa comunidade também na aqui apresentados auxiliaram de forma consi-
classe científica, assim como a necessidade derável na superação dialógica e na interação
premente de investimentos em pesquisas. social da comunidade tradicional do Quilombo
Observou-se que a maioria dos achados resulta Mesquita, transformando-se em argumentos.
de pesquisas desenvolvidas em Programas de Por meio das produções científicas, foi pos-
Pós-graduação Lato e Stricto sensu. Pode-se sível identificar que os aspectos concernentes

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à saúde estão intrínseca e exclusivamente atre- de Mesquita, como já apontado em outros


lados às crenças e culturas sociais afro-brasilei- Quilombos31. Porém, constata-se com Sauini
ras e à única UBS no território da comunidade et al.32 que profissionais de saúde, às vezes,
quilombola Mesquita11. Em se tratando dos não reconhecem e negligenciam as terapias
aspectos de saúde, é evidente que o Sistema tradicionais. Diante disso, os representantes
Único de Saúde27 (SUS), em seus princípios, do poder público precisam implantar políti-
compromete-se a combater as desigualdades cas públicas não só na perspectiva estrutural
na saúde que atingem a população brasileira. de saúde, mas também para a capacitação de
Apesar disso, a atenção à saúde das populações profissionais que lidam com os diferentes dis-
negras e quilombolas ainda se mantém sob positivos terapêuticos utilizados por esses
uma perspectiva de iniquidade28. O Quilombo grupos étnicos. Nesse sentido, é premente a
Mesquita é assistido pela Estratégia Saúde da necessidade de divulgação, em todas as esferas
Família (ESF); porém, a população manifesta governamentais, da Política Nacional de Saúde
insatisfação no atendimento, o que pode ser Integral das Populações do Campo, da Floresta
explicado pelo fato da alta rotatividade de e das Águas e da Política Nacional de Saúde
profissionais, a precária infraestrutura da UBS Integral da População Negra, de forma que
para a realização dos atendimentos, o precon- suas diretrizes sejam implantadas de forma
ceito e a falta de sensibilidade por parte dos transversal nas demais políticas de saúde do
profissionais18. Ministério da Saúde. Acredita-se, ainda, que
Vários pesquisadores29,30 apontam que investimentos em educação popular em saúde
políticas específicas na área da saúde não seja um caminho a ser recorrido nessa arti-
conseguiram acompanhar as demandas dessa culação entre o saber popular e o científico,
população, e as poucas existentes, em sua sendo as instituições de ensino potenciais
maioria, acabam não considerando os deter- equipamentos sociais1.
minantes de saúde étnico-sociais, perfazendo Mesmo com os avanços no acesso à medi-
um modelo de atenção à saúde centralizada cina tradicional, os conhecimentos popula-
nos aspectos biológicos do processo saúde- res repassados entre as gerações continuam
-doença. Para a ruptura desse modelo, devem sendo amplamente utilizados pelos moradores
ser prioritárias a formação e a capacitação de do Quilombo, sendo comum o uso de ervas
gestores e profissionais de saúde para uma terapêuticas, como: erva-de-santa-maria,
gestão compartilhada que consiga compre- hortelã-do-campo, erva-cidreira, broto da
ender e atender o indivíduo e a coletivida- goiabeira barbatimão33. Essas plantas medi-
de segundo suas especificidades históricas, cinais também foram identificadas em co-
sociais e culturais. Convém destacar que a munidades quilombolas do estado de Mato
presença de uma unidade de saúde na comu- Grosso e da Bahia, encontradas em áreas
nidade quilombola, por si só, não garante a comumente preservadas34. Ademais, as re-
efetividade do cuidado, algo que necessita de zadeiras e bezendeiras também fazem parte
reflexões ao realizar avaliações dos indicado- do processo saúde-doença, sendo necessário
res de saúde dos povos quilombolas. Fato é que incluí-las nos cuidados, pois a espiritualidade
os quilombolas ao redor do território brasileiro tem representado importante ferramenta de
têm suas necessidades de saúde atendidas nos atenção à saúde.
centros urbanos, e, em geral, em atendimentos Os saberes tradicionais possuem um papel
assistencialistas ou de emergência. importante no tratamento de doenças revelan-
Ainda com uma UBS composta por uma do terapias com base nas tradições e culturas
equipe multidisciplinar, as práticas de cuidado que permeiam o modo de vida da população
tradicional provenientes de benzedeiras e rai- de origem africana. Tendo isso em vista, é
zeiras fazem parte da história dos quilombolas preciso promover o registro e o repasse desses

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conhecimentos medicinais e espirituais, pois uma importante fonte de renda e subsistências


contribuem para o desenvolvimento cientí- para os quilombolas, esses aspectos devem ser
fico da farmacognosia, o fortalecimento da avaliados pelos órgãos competentes, sendo
identidade histórica desse povo, a influência elaborados planos de manejo da água.
terapêutica existente no bioma Cerrado e, Ressalta-se ainda que as águas empoça-
consequentemente, a conservação dos re- das pelo excesso de chuva podem apresentar
cursos naturais de forma harmônica com o contaminações por resíduos sólidos, esgoto,
saneamento35. micro-organismos e por vetores causadores de
Entre as iniquidades vivenciadas pela po- doenças infectoparasitárias40. Corroborando
pulação quilombola, o saneamento básico – ou o estudo de Alves20, a falta de drenagem
seja, abastecimento de água, coleta e trata- pluvial compromete a saúde da comunidade
mento de esgoto, manejo de resíduos sólidos de Mesquita, principalmente das crianças no
e drenagem das águas pluviais – tem sido período escolar.
marcado como um desserviço público. Segundo Bezerra et al.38, a falta de coleta e
Na Lei nº 11.445/0736, que estabelece as tratamento de esgoto, assim como a presença
diretrizes nacionais para o saneamento básico, de fossa séptica em proximidade a poços arte-
a expressão ‘comunidade quilombola’ aparece sianos, configura uma realidade majoritária às
uma única vez em seu art. 52. Esse artigo re- famílias quilombolas cadastradas no CadÚnico
gulamenta que a União elaborará, sob coor- no estado do Goiás. Ademais, percebem-se
denação do Ministério das Cidades, o Plano as condições de risco da caixa d’água da UBS
Nacional de Saneamento Básico (PNSB), que presente na comunidade, fato preocupante aos
deverá, conforme o seu § 1º, II – tratar es- indivíduos que por ali passam, predispondo a
pecificamente das ações da União relativas consequente falta de água, infecções por água
ao saneamento básico nas áreas indígenas, contaminada e até mesmo agravos físicos8.
nas reservas extrativistas da União e nas co- Com a Lei nº 12.305/201041, foi instituída
munidades quilombolas. O PNSB37, aprovado a Política Nacional de Resíduos Sólidos, tra-
somente em 2013, contempla uma série de zendo mais segurança quanto ao tratamento/
programas para universalizar o saneamento disposição de resíduos – um exemplo foi a
no País e auxiliar na resolução de grandes proibição da queima de resíduos sólidos a
desafios, sobretudo nas áreas rurais. céu aberto, em recipientes, instalações e
Em nível internacional, o sexto objetivo equipamentos não licenciados. Entretanto,
dos ODS determina a importância da partici- é uma prática cultural ainda comum entre as
pação das comunidades locais para obtenção comunidades tradicionais. Nota-se também a
de água potável e saneamento, corroboran- irregularidade ou a inexistência da coleta dos
do este estudo quanto ao abastecimento de resíduos sólidos disponibilizada pela Cidade
água garantido pelos ‘regos d’água’. Todavia, Ocidental (GO)8.
quando não orientado pelo poder público em A proximidade do Quilombo Mesquita ao
qualidade e consumo, pode comprometer a aterro sanitário é outro fator preocupante.
saúde da comunidade, uma vez que Bezerra Segundo estudo da UnB42, o aterro sanitário
et al.38 evidenciaram que, com relação à quali- da Cidade Ocidental (GO) opera em seu limite
dade, as águas que percorrem os quilombos no de deposição de resíduos, com estimativas
estado de Goiás já se apresentam impróprias de vida útil superior a três anos. Foi identifi-
para o consumo humano. Contudo, pouco se cada, também, a prática de compostagem de
sabe a respeito das análises qualitativas que plantas daninhas, por leiras, fato que reduz a
atestem a potabilidade conforme preconiza- quantidade de resíduos sólidos a ser queimado
do na Portaria de Consolidação nº 05/201739. e a poluição do ar, além de contribuir para a
Considerando que a agroecologia representa manutenção da qualidade do solo8,14,16,18.

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Caracterização da saúde e saneamento de uma comunidade quilombola no entorno da capital do Brasil: um scoping review 513

Em suma, o Quilombo Mesquita, marcado Nota-se ainda a necessidade de inserção e


pela luta contra a desapropriação de terras, abrangência de políticas públicas intersetoriais
degradação do bioma, urbanização, discri- e multidisciplinares que promovam a educação
minação e disparidades socioeconômicas, en- em saúde e saneamento, assegurando medidas de
frenta más condições de vida e saneamento, higienização, prevenção de doenças, proteção da
e maus resultados para a saúde. Destarte, é origem da cultura histórica africana, reconheci-
necessário que todos os atores envolvidos no mento da ancestralidade com participação ativa
quilombo considerem a influência recíproca das parteiras, benzedeiras, rezadeiras e raizeiras.
do ambiente natural na saúde humana e das Além disso, outros desafios são impostos, como o
intervenções humanas na saúde ambiental no crescimento imobiliário, a falta de suporte polí-
intuito de contemplar essas considerações de tico/econômico e a invisibilidade social exercida
interdependência nas estratégias dos sistemas pela Cidade Ocidental, estado de Goiás e governo
de saúde e saneamento. federal, frustrando ações de saúde e saneamento
O presente scoping review apresentou no que tange ao recolhimento de resíduos sólidos
algumas limitações, como ausência de artigos e preservação dos mananciais que abastecem o
primários e secundários, impossibilitando a Quilombo Mesquita.
sistematização de evidências mais robustas Pesquisas futuras devem investigar os des-
aprovadas previamente pela comunidade fechos de cada aspecto de saúde e saneamento
científica. Ainda, a maioria dos achados em de forma isolada e/ou combinada com outras
literatura cinzenta realizou um delineamento comunidades quilombolas do Brasil. Pesquisas
qualitativo impedindo uma abordagem ana- comparando intervenções de saúde e saneamen-
lítica no Quilombo Mesquita. Contudo, foi to em diferentes contextos políticos também
possível, em sua completude, compreender permitirão estabelecer uma linha temporal dos
os aspectos peculiares referentes à saúde e aspectos de saúde e saneamento já estudados.
ao saneamento do Quilombo Mesquita, o qual Torna-se essencial, portanto, a articu-
possui pouca infraestrutura e reduzido acesso lação e a aproximação entre os diferentes
aos serviços de saúde, o que caracteriza sua atores sociais (governo, Organizações Não
vulnerabilidade e gera questionamentos sobre Governamentais, sociedade civil, líderes re-
sua visibilidade tanto pelos gestores públicos presentantes da comunidade quilombola e
quanto pela comunidade geral e científica. universidades), a fim de fortalecer e promo-
ver as práticas de cuidado e atenção à saúde
e ao saneamento. Contudo, as comunidades
Conclusões quilombolas sofrem frequentemente com ex-
clusão participativa na tomada decisões de
Este scoping review apresenta, de forma seus territórios, configurando a existência do
inédita, aspectos de saúde e saneamento dis- racismo ambiental.
postos na literatura sobre a comunidade qui-
lombola Mesquita. Neste escopo, destacam-se
a UBS, a agroecologia e as terapias alternativas Colaboradores
(fitoterapia) no âmbito da saúde; e no âmbito
do saneamento, é tido o abastecimento de Andrade AM (0000-0001-8807-1257)*, Faria
água e o tratamento/disposição de resíduos. DCML (0000-0002-3011-2535)*, Franca
Percebe-se que esses aspectos se mostram FMS (0000-0001-6999-7599)*, Ribeiro FR
determinantes para a promoção da qualidade (0000-0002-0789-1307)*, Oliveira MFB
de vida na comunidade quilombola, além de (0000-0003-4920-4189)* e Matos MA (0000-
serem transversais ao pertencimento cultural 0001-8643-7032)* contribuíram igualmente *Orcid (Open Researcher
e à territorialidade. para a elaboração do manuscrito. s and Contributor ID).

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Petrolina/PE e Juazeiro/BA): relatório final de mo-
Suporte financeiro: não houve
bilização social – RIDE/DF e entorno. Brasília, DF:

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518 RELATO DE EXPERIÊNCIA | CASE STUDY

Chácara Bindu, uma experiência de


agroecologia, conservação produtiva,
educação e saúde
Chácara Bindu, an experience in agroecology, productive
conservation, education, and health

Ximena Soledad Moreno Sepúlveda1, Marcos Antonio Trajano Ferreira2, Ana Paula Andrade Silva
Milhomem1, André Fenner1, Virginia da Silva Corrêa1, Gislei Siqueira Knierim1, Nelson Filice de
Barros3

DOI: 10.1590/0103-11042022E234

RESUMO A crise socioambiental é cada vez mais presente na realidade urbana e rural. A experiência
agroecológica neorrural é uma inovação que pode transformar o paradigma produtivo predominante e
propor novas formas de relacionamento entre as pessoas. Além disso, pode contribuir para o desenvolvi-
mento de sistemas alimentares que promovem justiça socioambiental, segurança alimentar e nutricional,
criação de territórios saudáveis e sustentáveis. O objetivo deste relato de experiência foi apresentar a
Comunidade que Sustenta a Agricultura, Educação e Saúde (CSAES) na Chácara Bindu, que desenvolve
tecnologias sociais nas áreas de agricultura, educação e saúde no Distrito Federal. O relato da experiência
foi desenvolvido em sete itens relacionados com criação, conservação produtiva, educação e saúde no
organismo socioagrícola da Chácara Bindu. Destacam-se os vínculos com base na confiança e coopera-
ção, o processo de expansão do modelo da CSAES Bindu a partir de uma Comunidade que Sustenta a
Agricultura, a continuidade das entregas de produtos cultivados sem insumos sintéticos e sem agrotóxicos
e o acesso das famílias coagricultoras a alimentos saudáveis no contexto de isolamento social imposto
pela pandemia da Covid-19.

PALAVRAS-CHAVE. Agroecologia. Sustentabilidade. Segurança alimentar. Plantas medicinais.

ABSTRACT The socio-environmental crisis is increasingly present in the urban and rural reality. A neorural
agroecological experience is an innovation that can transform the predominant productive paradigm and
propose new ways of relationship between people. Furthermore, it can contribute to the development of
food systems that promote social and environmental justice, food and nutrition security, and the creation of
healthy and sustainable territories. The objective of this experience report was to present the Community
that Sustains Agriculture, Education, and Health (CSAES) at Chácara Bindu, which has social technologies
1 Fundação Oswaldo Cruz in the fields of agriculture, education, and health in the Federal District. The experience report was developed
(Fiocruz) – Brasília (DF), in seven items related to creation, productive conservation, education, and health in the social-agricultural
Brasil. organization of Chácara Bindu. The linkages based on trust and cooperation, the expansion process of the
xmorenosepulveda82@
gmail.com CSAES from a Community that Sustains Agriculture, the continued delivery of products cultivated without
synthetic inputs and without pesticides, and the access of co-agricultural families to healthy food stand out
2 Secretaria de Estado de
in the context of social isolation imposed by the Covid-19.
Saúde do Distrito Federal
(SES-DF) – Brasília (DF),
Brasil. KEYWORDS Agroecology. Sustainability. Food safety. Medicinal herbs.
3 Universidade
Estadual
de Campinas (Unicamp) –
Campinas (SP), Brasil.

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 518-526, Jun 2022 meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado.
Chácara Bindu, uma experiência de agroecologia, conservação produtiva, educação e saúde 519

Introdução desenvolvimento sustentável; iii) produção


de alimentos biodiversos e plantas medici-
A crise agrícola e ecológica existente hoje na nais sem aplicação de insumos sintéticos e
maior parte do mundo resulta do fracasso do sem agrotóxicos; iv) Segurança Alimentar e
paradigma dominante de desenvolvimento. As Nutricional (SAN) para famílias coagriculto-
estratégias de incremento produtivo com uso ras; v) conservação produtiva em uma área de
de venenos revelaram-se fundamentalmente amortecimento no entorno do Parque Nacional
limitadas em sua capacidade de promover um de Brasília (PNB); vi) processos educativos
crescimento equânime e sustentável1. Já no para crianças, jovens e adultos; e vii) laços de
século XIX, o foco exclusivo na tecnologia, confiança em momentos críticos como o da
na ciência materialista e no lucro levou ao pandemia da Covid-19.
uso intensificado dos solos, com introdução Diante do exposto, o objetivo deste relato de
de produtos sintéticos, rápida decadência experiência é apresentar cada um dos aspectos
das habilidades agrícolas tradicionais e perda desenvolvidos durante a criação e manutenção
da íntima relação e sensibilidade para com da CSAES Bindu.
o mundo natural. Em 1924, Rudolf Steiner
afirmou que as ‘bençãos’ do materialismo para
a agricultura foram e permanecem enganosas2. Novas relações econômicas
Cada vez mais pessoas percebem que os que desenvolvem a cultura
alimentos: contêm resíduos químicos sintéti-
cos nocivos para a saúde; são cultivados com
do valor e apreço em
tecnologias pouco sustentáveis e poluentes substituição à cultura do
do meio ambiente; são produzidos em regiões preço
distantes dos locais em que são consumidos;
e resultam da exploração exaustiva dos tra- A partir das experiências individuais de tran-
balhadores rurais. Também, têm percebido sumância de um homem, com formação em
que a vida nas cidades causa cada vez mais medicina, e uma mulher, formada em medicina
adoecimento, seja por constatação inte- veterinária e gestão ambiental, em busca de
lectual e sanitária, seja porque abundam construir relações sociais de produção coletiva
sintomas físicos e emocionais. Dessa forma, e sustentável, formou-se uma família neorru-
a migração ao campo em busca de novas ral. Mendez3 desenvolveu o conceito de popu-
formas de vida é progressivamente maior, lações ‘neorrurais’; e entre os diferentes tipos,
pois é necessário estabelecer novos relacio- definiu os ‘neorrurais agroecologistas’. Para o
namentos com o alimento, com os outros autor, trata-se de pessoas que têm interesse
seres humanos e com o planeta. em contribuir nas comunidades rurais, com
A Chácara Bindu resulta da experiência valores contrários aos da lógica capitalista de
de uma família neorrural, em pequena pro- mercado (individualismo, eficácia, competiti-
priedade periurbana no Distrito Federal, com vidade, lucro, materialismo, monetarização de
tecnologia social de financiamento coletivo e todo tipo de troca, entre outros) e afirmação
produção de importantes soluções para os de- dos valores antimercantilistas (solidariedade,
safios agroecológicos na contemporaneidade. ajuda mútua, vida comunitária, fraternidade,
Na Comunidade que Sustenta a Agricultura, espiritualidade, entre outros). A inovação
Educação e Saúde (CSAES) Bindu, promo- agroecológica no cenário neorrural consiste
vem-se: i) novas relações econômicas que na transformação das relações entre indivíduo,
desenvolvem a cultura do valor e apreço em natureza e sociedade, com um ativismo crítico
substituição à cultura do preço; ii) relações de ao paradigma de sucesso socioeconômico pre-
cooperação orientadas para a agroecologia e dominante e o objetivo de tornar visíveis as

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 518-526, Jun 2022


520 Sepúlveda XSM, Ferreira MAT, Milhomem APAS, Fenner A, Corrêa VS, Knierim GS, Barros NF

interdependências e conexões diretas entre jurídica se deu em 29 de setembro de 2014.


quem produz e quem consome. Em 2015, a organização sem fins lucrativos
Com isso, teve início uma experiência de ‘CSA Brasil’ promoveu, em Brasília, um curso
inovação tecnológica no campo socioam- de fomento à criação de CSA. Atualmente, o
biental, com estabelecimento de relações movimento das CSA no Brasil está em acele-
econômicas mais justas entre as pessoas e rada e próspera expansão, com 80 fazendas
conservação produtiva em uma área degra- produzindo alimentos orgânicos, abastecendo
dada do entorno do Distrito Federal, a partir cerca de 15 mil coagricultores, dos quais 30%
de um programa comunitário de sustentabi- estão na área periurbana do Distrito Federal5.
lidade social por meio da agricultura para a A partir desse movimento de CSA no mundo,
promoção da educação e da saúde. Buscou- nascem outras organizações de consumidores
se o reconhecimento do ofício dos campo- que apoiam agricultores de base ecológica,
neses em relação à produção de alimento e entre eles: Teikei no Japão, Amap na França,
à valorização de um modelo socioprodutivo Reciproco em Portugal, GAS na Itália, ASC no
ecologicamente apropriado, socialmente Canadá, entre outros6.
mais justo e economicamente viável. Após a construção do espaço seguro, aco-
Para a família neorrural que formou a lhedor e sustentável, foi formada uma comu-
Chácara Bindu, a primeira necessidade foi nidade de pais e suas crianças, todas menores
da criação de um espaço seguro e acolhedor, de 5 anos, ao redor de uma professora infantil
capaz de ofertar ambiente adequado para o que passou a realizar regularmente as ativi-
crescimento e desenvolvimento da autoe- dades matutinas inerentes à educação infantil
ducação da família, especialmente do filho e pré-escolar, integrando as práticas agrícolas
da filha do casal. Em seguida, tornou-se um do organismo socioagrícola que se criava. No
desafio a produção de alimentos associada aos segundo ano na Chácara, foi construída uma
ritmos da natureza e à criação de relações de rede intersetorial de apoio mútuo, formada
cooperação e criação de uma ‘Comunidade por outras CSA e instituições de ensino e as-
que Sustenta a Agricultura’ (CSA). O termo sistência ligadas à antroposofia. Os fundamen-
CSA (Community Supported Agriculture ou tos da rede intersetorial foram a confiança,
Agricultura Apoiada pela Comunidade) é mais o trabalho humano justo e a liberdade, esta
usado nos países de língua inglesa. Nas CSA, há última entendida como uma qualidade adqui-
um acordo com base no apreço mútuo, como rida pelo ser humano autoconsciente de suas
um ideal em que o grupo compartilha tanto as responsabilidades, deveres e obrigações para
suas responsabilidades pela produção dos ali- com uma comunidade.
mentos quanto pela conservação da paisagem Ainda no segundo ano da Chácara Bindu,
e do solo4. Essa nova relação entre produtores as atividades vivenciais de cunho educativo
e consumidores pode ser positiva no âmbito se intensificaram com ações voltadas para
social, por estabelecer fortes relações entre alunos do ensino fundamental, mutirões agro-
campo e cidade e por mudar hábitos alimen- florestais e cursos relativos à saúde, educação e
tares ao consumir produtos frescos e livres de agricultura para jovens e adultos. Em parceria
venenos. Em maio de 2011, foi efetivamente com a coordenação acadêmica do Curso de
iniciada a primeira CSA no Brasil pelo agri- Agroecologia do Instituto Federal de Brasília
cultor Marcelo Veríssimo da Costa, no bairro Campus Planaltina (IFB), foram realizadas
rural Demétria, localizado no município de vivências com estudantes de graduação e pós-
Botucatu/SP. A Associação Comunitária CSA -graduação de outras Instituições de Ensino
Brasil foi criada em 28 de novembro de 2013 Superior (IES). A realização dessas atividades
em assembleia realizada na sede da Fundação motivou a abertura de uma vaga para estudan-
Mokiti Okada, em São Paulo, mas a abertura te de graduação, para a realização de estágio

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 518-526, Jun 2022


Chácara Bindu, uma experiência de agroecologia, conservação produtiva, educação e saúde 521

focado no campo e no estabelecimento de ensino fitocosméticos, a partir das plantas medicinais


e aprendizagem das atividades de cultivo vegetal cultivadas em regime biodinâmico na Chácara.
agroecológico. Criou-se um sistema de bolsas de A concepção de cooperação e sustentabilidade
graduação para fixação de jovens no campo, de buscou reduzir ao máximo a perspectiva de
modo que as ofertas de produção agroecológica compra e venda, de modo que a contrapartida
funcionem como cenário de autoeducação de financeira garanta principalmente a execução
crianças, jovens e adultos. dos processos produtivos para ofertar gêneros
No terceiro ano da experiência, foi desenvol- alimentícios sem precificação final. Uma vez
vido o princípio da atuação, no qual se buscou que os alimentos têm custo, mas não têm preço,
promover ambiente seguro para autoeducação, elimina-se o aspecto mercantil. Na CSAES
por meio da vivência da agricultura em comu- Bindu, não há venda de gêneros alimentícios
nidade, promoção de saúde, cuidado e salutogê- excedentes, pois toda a produção é ofertada
nese. A unidade agrícola, agora biodinâmica (o à comunidade.
conceito de agricultura biodinâmica foi desen- A tecnologia social desenvolvida na CSAES
volvido por Rudolf Steiner e ensinado no curso Bindu tem sido utilizada para inspirar mutirões
‘Fundamentação da ciência do espírito para a de cooperação na Unidade Básica de Saúde nº
prosperidade da agricultura’, ministrado por 1 do Lago Norte, em Brasília, na qual se desen-
Steiner em Koberwitz, em 1924, sob a forma de volve um projeto de recuperação produtiva, a
oito conferências)1, passou a contar com uma partir do cultivo de plantas medicinais, Plantas
pré-escola com jardim infantil associativo para Alimentícias Não Convencionais (Panc) e plantas
seis crianças em idade pré-escolar, orientada pela aromáticas, que funciona, respeitando as normas
pedagogia Waldorf, que traz a prática das ativida- da vigilância em saúde, como oficinas terapêu-
des cotidianas dos seres humanos e a observação ticas promotoras de saúde e de educação em
viva da natureza como processo educativo7. saúde, conforme diretrizes da Política Nacional
A partir das definições conceituais e prá- de Práticas Integrativas e Complementares no
ticas realizadas ao longo dos três primeiros Sistema Único de Saúde (SUS)8.
anos, criou-se a CSAES Bindu. A Comunidade No quinto ano de existência, um desafio
passou a ser responsável pela realização de externo colocou a comunidade da Chácara à
diversos cursos de manejo sustentável com prova, em relação às noções de construção social
profissionais e acadêmicos ligados à área de coletiva, pois, a partir daquele momento, teve
produção e extensão rurais. Muitos temas início uma grande crise sociopolítica, econômica
foram abordados; e entre eles, destacam-se: e ambiental que assola o País desde então.
meliponicultura, horticultura, manufatura de
estufas de bambu, bioconstrução, agricultura
biodinâmica e antroposofia. Uma por uma, Relações de cooperação
foram sendo trilhadas as etapas biodinâmi- orientadas para
cas desde o uso de preparados biodinâmicos
até o uso de informações astronômicas para
a agroecologia e
guiar a sequência de tarefas e meditações desenvolvimento
antroposóficas. sustentável
No quarto ano, a CSAES avançou para
novos projetos, apoiando outros organismos Em 1920, um aluno de Rudolf Steiner citou
socioagrícolas a se formarem, promovendo a construção de ‘associações de consumido-
cursos de capacitação em áreas de interesse da res’ para solucionar os problemas que já eram
agricultura, educação e saúde, com o objetivo evidentes nos cultivos, como também para
de ampliar a oferta e o acesso à informação de liberar o solo e a terra de serem vistos como
qualidade. Nesse período, foram desenvolvidos mercadoria, com a agricultura devendo ser

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522 Sepúlveda XSM, Ferreira MAT, Milhomem APAS, Fenner A, Corrêa VS, Knierim GS, Barros NF

integrada a uma nova forma de organizar a confiança mútua reflete na sustentabilidade


vida econômica3. Desde o início do século XX, das relações econômicas e ganha dimensão de
Steiner alertava sobre os problemas advindos tecnologia social promotora de saúde, cuidado
da ideia de considerar alimentos como com- e relações de solidariedade.
modities. Segundo ele,

Em primeiro lugar deve haver pessoas capazes Produção de alimentos


de produzir, peritos e competentes em sua pro- biodiversos e plantas
fissão. Delas tem de depender o processo de
produção. Os homens capazes e competentes
medicinais sem aplicação
devem unir-se e cuidar da vida econômica, de insumos sintéticos e sem
baseada na produção oriunda da iniciativa dos agrotóxicos
indivíduos. É esse o verdadeiro princípio asso-
ciativo. Primeiro se cuida da produção, e depois Considerando a dificuldade de prever fenô-
o produto é levado ao consumo, com base na menos naturais, climáticos e geológicos, im-
associação das pessoas que produzem7(40). possíveis de controlar, o homo sapiens tem
respondido criando inumeráveis inventos ou
As atividades desenvolvidas na Chácara criações culturais. Essas condições objetivas
Bindu são orientadas por esses princípios da realidade confirmam o vínculo que ata a
de cooperação e sustentabilidade. Assim, humanidade com as condições ambientais do
formam parte da comunidade, entre outros planeta. Poder-se-ia falar, em princípio, que o
participantes: a psicóloga coagricultora, que contato entre a sociedade-natureza nas socieda-
troca dois encontros psicoterapêuticos com a des agrícolas é um contato entre dois sistemas: o
agricultora da Chácara por uma cesta grande sistema social e o ecossistema, que conformam
de alimentos por semana; o biólogo coagricul- um terceiro sistema: o sistema agrícola9.
tor, com formação em medicina tradicional Os ecossistemas naturais no meio rural cam-
chinesa, que troca dois atendimentos para os pesino são mais bem definidos como ‘agroecos-
agricultores e um estagiário da Chácara por sistemas’9. O sistema é compreendido como uma
uma cesta grande de alimentos por semana; a estrutura, um funcionamento e uma dinâmica.
fotógrafa coagricultora, que apoia na produção Significa que é um todo organizado, cuja esta-
da identidade visual das mídias da Bindu em bilidade está sujeita a perturbações endógenas
troca de uma cesta pequena de alimentos por e a fatores exógenos que propiciam processos
semana. Além desse tipo de trocas de serviços, de desestruturação e restruturação. As formas
também acontece cooperação e sustentabili- de organização, normas e estilos, assim como as
dade na forma de financiamento coletivo. Por expectativas de vida, estão indissoluvelmente
exemplo, para aquisição de um computador marcadas pelas atividades agropecuárias, silví-
portátil para a agricultora, foi planejado com colas e extrativas. A interação dos componentes
toda a comunidade o adiantamento das cotas desse sistema determina a concepção e o manejo
financeiras de uma coagricultora. Em outra agroecossistêmicos da comunidade, propiciando
oportunidade, outra coagricultora comprou, a conservação e a organização social10.
em troca de quatro cotas mensais, uma bici- Observando a noção de agroecossistemas, os
cleta para servir à comunidade. agricultores da CSAES Bindu sempre optaram por
Todas essas ações de cooperação incre- cultivar a maior diversidade possível de plantas
mentam as relações de confiança entre as nativas e desenvolver práticas cuidadosas de
pessoas que não se conhecem previamente e se manejo da água, uma vez que um organismo
dispõem a construir uma comunidade de pro- socioagrícola sistêmico exige biodiversidade.
dução autossustentável. O impacto gerado pela Quanto mais interações ecológicas e sinergismos

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Chácara Bindu, uma experiência de agroecologia, conservação produtiva, educação e saúde 523

entre os componentes biológicos, maior a ferti- de cosméticos artesanais com matérias-primas


lidade do solo, a produtividade e a proteção das naturais e origem controlada. A comercialização
culturas11. A produção sustentável em um agroe- desses produtos promove saúde financeira para
cossistema deriva do equilíbrio entre agricultores, o organismo socioagrícola.
plantas, solos, nutrientes, luz solar, umidade e
outros organismos coexistentes. O agroecos-
sistema é produtivo e saudável quando essas Segurança alimentar
condições de crescimento estão equilibradas, e nutricional para
prevalecem e possibilitam às plantas tolerar es-
tresses e adversidades12. Ademais, a busca de uma
trinta e cinco famílias
agricultura menos dependente de insumos quí- coagricultoras
micos é parte de um desenvolvimento sustentável
e que concilia necessidades econômicas e sociais O organismo socioagrícola Bindu beneficia
das populações humanas com a preservação da com cestas de alimentos entre 35 e 40 famílias
sua base natural13. que participam da manutenção dessa tecno-
Cada organismo socioagrícola tem uma logia social. Elas recebem grande diversidade
determinada individualidade, que pode ser de alimentos colhidos semanalmente em uma
observada, medida, avaliada, modificada – até caixa agrícola padrão contendo de 12 a 15 itens,
certo ponto – mediante a ação humana de ter- desde folhagens até frutas, incluindo raízes,
raceamento, irrigação, drenagem etc. A expres- tubérculos, flores, ervas aromáticas e medi-
são vital do organismo socioagrícola se revela cinais. A oferta é contínua durante o ano, e
na natureza vegetal; a expressão anímica apre- os produtos variam de acordo com a estação.
senta-se na integração dos processos humanos, Os vínculos de confiança e apreço, mais
juntamente com a abundância e a diversidade do que de ‘preço’, tornam possíveis doações
da fauna presente no ambiente. O organismo dos alimentos para famílias de baixa renda,
agrícola é constituído, dessa forma, pela comu- quando algum coagricultor não pode ou não
nidade humana e suas imagens, pensamentos deseja receber a cesta. Em caso de comunica-
e trabalho, que transformam a diversidade em ção antecipada, os alimentos podem deixar de
inteireza14. A escultura social da qual resulta ser colhidos; e as cestas, distribuídas. Desde o
o organismo socioagrícola Bindu é alicerça- início das atividades da CSAES Bindu, foram
da em relações polares-complementares, nas entregues mais de 6.400 cestas com produtos
quais a biodiversidade desempenha um papel biodiversos, cultivados sem insumos sintéticos
regulador insubstituível para a manutenção do e sem agrotóxicos.
equilíbrio dos ecossistemas, implantação de
agrofloresta com alta densidade de espécies
vegetais nativas e promoção da saúde. Conservação produtiva em
Assim, o cultivo de agrofloresta biodiversa e uma área de amortecimento
o foco na produção de hortaliças de ciclo curto
em consórcio com plantas medicinais e nativas
no entorno do Parque
de ciclo longo permitiram a produção semanal, Nacional de Brasília
também, de uma ou duas plantas medicinais na
cesta de alimentos da Chácara Bindu. Além disso, A CSAES Bindu foi implantada na área de amor-
tornou possível a produção para destilações e ob- tecimento do PNB, em uma área de 2 hectares,
tenção de óleos essenciais, os quais têm alto valor com solo degradado, improdutivo e abandonado
agregado, permitem armazenamento em grande após atividade agrícola com agrotóxicos. Uma
quantidade e em pequenos espaços. O coproduto zona de amortecimento é tão importante quanto
da destilação, o hidrolato, possibilitou a fabricação a própria criação da unidade de conservação,

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524 Sepúlveda XSM, Ferreira MAT, Milhomem APAS, Fenner A, Corrêa VS, Knierim GS, Barros NF

uma vez que serve como filtro dos impactos ne- pré-escola associativa que se orienta pela
gativos de atividades externas, como poluição, pedagogia do fazer.
espécies invasoras etc.14. Para Santilli15, possuir A premissa declarada por Steiner que: “não
uma propriedade em zona de amortecimento é há, basicamente, em nenhum nível, outra
uma responsabilidade social muito elevada, pois educação que não seja a autoeducação”16(126)
se trata de uma área protetora, com função social levou a CSAES Bindu a promover processos
especial e sujeita a rigor na aplicação das normas educativos para crianças, jovens e adultos
legais. A importância das zonas de amortecimen- alicerçados nos princípios de que, segundo
to é ímpar, também, porque, de um modo ou de Ricardo e Macedo (2004) o conhecimento
outro, tem a responsabilidade de transformar o ecológico local, considerado por muitos, rudi-
modelo de utilização das propriedades vizinhas mentar e supérfluo, é em realidade o fruto da
para obter o maior benefício. Sabe-se que: adaptação humana ao meio ambiente, e pode
ser uma ferramenta para o desenvolvimento
As zonas de amortecimento são marcadas por e a conservação da diversidade biológica e
amores e ódios com os vizinhos. Há uns que cultural citado por Moreno10.
consideram que a presença da unidade de con- Os princípios de caráter integrador, holísti-
servação na proximidade é positiva, que a área co e sistêmico da ecologia, bem como o reco-
protege as águas, que a biodiversidade ajuda a nhecimento de sua complexidade, dinâmica
manter o equilíbrio das pragas na produção, que e diversidade, obrigam a repensar constante-
valoriza as regiões pelas belezas. Outros sentem mente a natureza epistemológica da separação
impedimentos pela presença da autoridade entre socioesfera e exosfera, ou seja, entre a
florestal, consideram um prejuízo não poder humanidade e a natureza11.
plantar o que se queira etc.14(70).

O PNB necessita que as áreas vizinhas se Laços de confiança em


transformem em matrizes mais amigáveis para momentos críticos como o
as espécies que o visitam e que as pessoas passem
a trabalhar como aliadas na construção dessa
da pandemia da Covid-19
matriz para o Parque. O desafio do organismo so-
cioagrícola Bindu tem sido o de construir, com os Nas últimas três décadas, o perfil de mor-
seus vizinhos, noções ampliadas de cuidado com bimortalidade no Brasil teve significativas
o parque e soluções para os problemas comuns mudanças. As três principais causas de anos
em sua área de amortecimento. de vida perdidos na década de 1990 foram
doenças diarreicas, infecções respiratórias e
prematuridade; porém, atualmente, as causas
Processos educativos para passaram a ser infarto agudo do miocárdio,
crianças, jovens e adultos violência interpessoal e acidentes automo-
bilísticos17. O século XXI chegou ao Brasil
A CSAES Bindu promove cursos, mutirões, trazendo um desafio para o setor saúde, pois
grupos de estudo, dias de campo, campo de as novas epidemias estão diretamente ligadas
estágio, visitas guiadas e outras práticas edu- ao comportamento humano, especialmente no
cativas na área da agroecologia, agricultura campo da inatividade, do isolamento social
biodinâmica, meliponicultura, bioconstrução, e da violência. Sem substituir o combate às
plantas medicinais, jardinagem, floricultura, epidemias, é preciso desenvolver mecanismos
viveirismo, técnica de ferrocimento, piscicul- de cooperação e solidariedade, baseados em
tura, cosmetologia natural e rodas de cons- um paradigma de desenvolvimento econômi-
telação familiar. Além disso, mantém uma co que dialogue com a sustentabilidade, não

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Chácara Bindu, uma experiência de agroecologia, conservação produtiva, educação e saúde 525

apenas dos recursos naturais, mas também do mútua e a cooperação entre agricultores e coa-
desenvolvimento humano. gricultores em torno da conservação produtiva
Não bastassem esses desafios, o ano de e das demais consequências dela advindas.
2020 trouxe-nos a pandemia de Sars-Cov-2,
que ameaça a economia mundial, afeta bilhões
de pessoas com Insegurança Alimentar e Considerações finais
Nutricional (InSAN) e estabelece uma crise
sanitária sem antecedentes nos últimos 100 O objetivo deste relato de experiência foi
anos. Quase metade (49%) da população apresentar tecnologias sociais nas áreas de
brasileira com 18 anos ou mais declarou ter agricultura, educação e saúde que possibi-
mudado os hábitos alimentares durante o litaram a criação e manutenção da CSAES
período da Covid-19 no Brasil. Registrou-se Bindu no Distrito Federal. As implicações do
aumento no consumo de alimentos indus- desenvolvimento desse tipo de experiência
trializados, especialmente entre pessoas são amplas e encontram a sua justificativa na
residentes com crianças ou adolescentes; crise socioambiental, cada vez mais presente,
e aproximadamente 1 em cada 5 brasilei- na realidade urbana e rural. Essa inovação
ros com 18 anos ou mais passou por algum agroecológica neorrural tem transformado o
momento em que não tinha dinheiro para paradigma produtivo e proposto novas formas
comprar comida18. O organismo socioagrí- de relacionamento entre as pessoas, com o
cola Bindu também sofreu com as mudanças desenvolvimento de sistemas alimentares que
impostas pela epidemia e a necessidade de promovem justiça socioambiental, sobera-
distanciamento, no entanto, seguiu com a nia, SAN e a criação de territórios saudáveis
produção agrícola e suspendeu visitas e todas e sustentáveis.
as atividades educativas regulares. Também Assim, a CSAES Bindu tem contribuído com
durante a pandemia, houve reestruturação o desenvolvimento de reflexões teóricas e ex-
para participar do esforço coletivo em prol periências práticas sobre: relações econômicas
de ofertar gêneros alimentícios em forma de baseadas na cultura do valor e apreço; relações
doações para comunidades do entorno do de cooperação orientadas para a agroecologia
Distrito Federal e para uma escola pública. e desenvolvimento sustentável; produção de
O vínculo formado com base na fraternida- alimentos biodiversos sem insumos sintéticos
de e na cooperação garantiu a continuidade e agrotóxicos; SAN; conservação produtiva em
das entregas de cestas, favorecendo o acesso área de amortecimento e laços de confiança
das famílias a alimentos saudáveis. Com os em momentos críticos.
produtos, foram cultivados laços de confian-
ça em um contexto de aumento do risco de
InSAN durante o isolamento, ciclo de elevação Colaboradores
dos preços, aumento da estocagem, diminui-
ção da oferta de todos os tipos de produtos, Sepúlveda XSM (0000-0001-7906-387X)*,
redução e escassez que produziram cenários Ferreira MAT (0000-0002-0709-6063)*,
de maior vulnerabilidade, pobreza, miséria, Milhomem PAS (0000-0002-4640-8824)*,
fome e exclusão. Fenner A (0000-0002-6217-3893)* e Barros
A oferta de alimentos, de Panc e de plantas NF (0000-0002-2389-0056)* contribuíram
medicinais foi mantida regularmente. Dessa para concepção, elaboração e revisão final
forma, a tecnologia social empregada no re- do manuscrito. Corrêa VS (0000-0001-7763-
lacionamento da CSAES Bindu, ainda que sob 5475)* e Knierim GS (0000-0002-4811-5769)*
forte tensionamento, mostrou-se viável para contribuíram para concepção e elaboração do *Orcid (Open Researcher
promover SAN, além de inspirar a confiança manuscrito. s and Contributor ID).

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526 Sepúlveda XSM, Ferreira MAT, Milhomem APAS, Fenner A, Corrêa VS, Knierim GS, Barros NF

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de Lirima. Santiago: Universidad de Chile; 2011. Aprovado em 26/07/2021
Conflito de interesses: inexistente
Suporte financeiro: não houve

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RELATO DE EXPERIÊNCIA | CASE STUDY 527

Vigilância em saúde de populações expostas


a agrotóxicos: agroecologia e participação
social
Health surveillance of populations exposed to pesticides: agroecology
and social participation

Pedro Costa Cavalcanti de Albuquerque1, Paulo Victor Rodrigues de Azevedo Lira2, Idê Gomes
Dantas Gurgel1, Giselle Azevedo da Rocha2

DOI: 10.1590/0103-11042022E235

RESUMO A vigilância em saúde de populações expostas a agrotóxicos prevê o desenvolvimento de


ações de forma contínua e sistemática, em uma perspectiva intersetorial e participativa, para subsidiar a
promoção da saúde, com segurança e soberania alimentar e nutricional, estabelecendo, assim, uma arti-
culação direta com a agroecologia. Este artigo teve por objetivo analisar o desenvolvimento da proposta
em Pernambuco, considerando a articulação com a agroecologia e a participação social. Desenvolveu-se
análise de documentos disponibilizados em sítios eletrônicos do governo federal e Secretaria Estadual de
Saúde de Pernambuco, a partir de duas categorias: agroecologia e participação social. Dentre os principais
resultados, destacam-se: a) desenvolvimento de ações de promoção da saúde articuladas com movimentos
sociais, em conformidade com o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica; b) concepção e
monitoramento das ações em grupo intersetorial; c) formação de profissionais de saúde e trabalhadores
rurais com base nos princípios da agroecologia; d) implantação da carteira do aplicador de agrotóxicos,
como estratégia de vigilância popular da saúde. A proposta incorporou princípios da agroecologia em
ações intersetoriais e de promoção da saúde, com importante participação social. As práticas adotadas se
apresentam como importante estratégia de superação do modelo clínico biomédico da vigilância em saúde.

PALAVRAS-CHAVE Vigilância em saúde pública. Agroquímicos. Participação social. Colaboração inter-


setorial. Agricultura sustentável.

ABSTRACT Health surveillance of populations exposed to pesticides foresee the development of actions in a
continuous and systematic way, in an intersectoral and participatory perspective, to support health promo-
tion, with food and nutritional security and sovereignty, thus establishing a direct link with agroecology.
This article aimed to analyze the development of the proposal in Pernambuco, considering articulation with
agroecology and social participation. Documents of the federal government and the State Health Department
of Pernambuco available on websites were analysed, based on two main categories: agroecology and social
participation. Among the main results, the following stand out: a) the development of health promotion
actions articulated with social movements, in accordance with the National Plan for Agroecology and
1 Fundação
Organic Production; b) the design and monitoring of actions in an intersectoral group; c) training of health
Oswaldo Cruz
(Fiocruz), Instituto Aggeu professionals and rural workers based on the principles of agroecology; d) the implementation of the pesticide
Magalhães (IAM) – Recife applicator portfolio, as a strategy for popular health surveillance. The proposal incorporated principles of
(PE), Brasil.
pedro.calbuquerque@hotmail.com
agroecology in intersectoral and health promotion actions, with important social participation. The adopted
practices represent an important strategy to overcome the biomedical clinical model of health surveillance.
2 Secretaria Estadual de

Saúde de Pernambuco
KEYWORDS Public health surveillance. Agrochemicals. Social participation. Intersectoral collaboration.
(SES-PE) – Recife (PE),
Brasil. Sustainable agriculture.

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 527-541, Jun 2022
528 Albuquerque PCC, Lira PVRA, Gurgel IGD, Rocha GA

Introdução Portanto, embora assuma três concepções dis-


tintas, seja como ciência, como movimento e
O modo de produção capitalista transformou como prática10, certamente se constitui como
a relação da humanidade com a natureza e uma ciência integradora de saberes, conhe-
impôs aumento da pobreza, não valorização do cimentos e experiências de distintos atores
conhecimento de comunidades tradicionais, sociais para superar o cientificismo acadêmico
degradação da natureza, pacote tecnológico e valorizar o saber popular, dando suporte a
com uso intenso de agrotóxicos, monocultura, um novo paradigma de desenvolvimento rural
violência no campo, entre outros1,2. livre de agrotóxicos7.
Na agricultura, a revolução verde foi res- A agroecologia está articulada com a saúde
ponsável pela modernização conservadora, coletiva para promoção da saúde, sustenta-
que ocorreu a partir do pós-segunda guerra bilidade, segurança alimentar e nutricional
mundial. A modernização é dita conserva- em uma perspectiva de criação de políticas
dora, pois manteve a posse da terra para públicas intersetoriais11. O campo da agro-
poucos proprietários e condicionou crédito ecologia, especialmente na década de 1990,
ao uso de agrotóxicos e outras tecnologias3. aproximou-se da saúde coletiva a partir da
Mais adiante, em meados da década de 1980, articulação de movimentos sociais e grupos de
a agricultura integrou-se fortemente com a pesquisas engajados com os temas da saúde e
indústria, mercado e setor financeiro e passou populações do campo12.
a ser controlada por grandes corporações in- Segundo Bordenave13, a participação social
ternacionais, o que configura o modelo do acontece quando os indivíduos têm gerência
agronegócio4. sobre a produção e usufruto dos bens da so-
Esse modelo, dependente do uso de agro- ciedade de maneira equitativa. Valla14 usa o
tóxicos, impacta diretamente a saúde da po- termo participação popular para se referir a
pulação, com milhares de registros anuais de uma concepção populacional mais ampla, não
intoxicações pelo Sistema Único de Saúde somente em movimento sindical ou político
(SUS), apesar da dificuldade de profissionais partidário, mas – especialmente na América
em associar sinais e sintomas como arritmias, Latina – quando ocorre a participação de
distúrbios hormonais, endócrinos, entre classes populares na definição de políticas
outros, ao uso de agrotóxicos5, assim como públicas de seu interesse.
do ambiente, com uso intenso nas principais A participação social está inscrita na
culturas do agronegócio6. Constituição Federal em seu art. 198 desde
Nesse cenário de crise civilizatória, os movi- 198815. Nos dias de hoje, a efetivação dessa
mentos sociais do campo propõem a agroeco- diretriz é um desafio para gestores do SUS e
logia como modelo alternativo ao agronegócio, trabalhadores, uma vez que a vigilância em
contribuindo para o manejo e o desenho de saúde desenvolvida nos serviços de saúde
agroecossistemas sustentáveis, incorporando o pública ainda se apoia em um modelo clínico
conhecimento popular às ciências econômica, biomédico tradicional que dificulta a partici-
social, ambiental, cultural, política e ética. A pação popular16.
agroecologia não é simplesmente agricultura Para superar o modelo tradicional de vigi-
ecológica7. Altieri8,9 destaca, desde a década lância em saúde, Victor Valla17 propôs a vigi-
de 1980, que ela se constitui como um novo lância civil da saúde, articulada com a proposta
paradigma para desenvolvimento agrícola de epidemiologia comunitária de Tognoni18.
orientado pela compreensão da complexida- Nessa proposta, influenciada também pela
de da sustentabilidade ambiental, que requer educação popular de Paulo Freire, os indivídu-
uma relação intrínseca entre as instituições os são sujeitos ativos do processo de vigilância
políticas, sociais e a comunidade científica. de sua saúde, não delegando aos profissionais

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 527-541, Jun 2022


Vigilância em saúde de populações expostas a agrotóxicos: agroecologia e participação social 529

de saúde ou instituições públicas essa tarefa Saúde de Pernambuco). Os sítios eletrôni-


de monitoramento, mas compreendendo-se cos utilizados para a busca foram: a) Brasil
como sujeitos ativos na defesa de sua saúde e agroecológico (http://www.agroecologia.gov.
direitos sociais. br/), portal criado pelo extinto Ministério do
Breilh19 também critica a vigilância epi- Desenvolvimento Agrário; b) Ministério da
demiológica tradicional e propõe o moni- Saúde (http://portalms.saude.gov.br); e c)
toramento participativo, que preza pela Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco
participação dos sujeitos no planejamento, (http://portal.saude.pe.gov.br/).
monitoramento e controle das ações de vigi- As buscas foram feitas a partir das ferramen-
lância. O autor lembra que os indivíduos, antes tas disponíveis nos próprios sítios eletrônicos
sujeitos produtores de demandas para atender em cada uma das bases de dados identificadas.
às suas necessidades, tornam-se trabalhado- O processo de busca foi baseado nas seguintes
res a serviço da produção de mercadorias no palavras localizadoras: “PLANAPO”; “plano”;
capitalismo. Assim, o modelo de vigilância em “VSPEA”; “relatório nacional”; “Pernambuco”.
saúde desenvolvido é adaptado para manter Foram selecionados documentos que
esses trabalhadores produtivos e os exclui do continham o planejamento ou relato de
processo de cuidado com a sua saúde. ações executadas do Planapo e da VSPEA:
A definição legal de vigilância em saúde20 Planapo 2013-201521; Planapo 2016-201922;
enfatiza que a vigilância precisa ter caráter Relatórios nacionais de VSPEA, tomo 123 e
contínuo e sistemático, não somente para re- 224; Experiências exitosas em vigilância em
gistro de dados, mas também para adoção de saúde de populações expostas a agrotóxicos
medidas de proteção e promoção da saúde. no Brasil25; Relatório de vigilância em saúde
Nesse sentido, em 2013, como meta definida de populações expostas a agrotóxicos em
do Plano Nacional de Agroecologia e Produção Pernambuco26.
Orgânica (Planapo), coube ao setor saúde o Também foram selecionados documentos
desenvolvimento dos Planos Estaduais de que continham a proposta de VSPEA de outros
Vigilância em Saúde de Populações Expostas estados da federação. Apesar de este estudo
a Agrotóxicos. Foi proposta a meta de, até o não ser comparativo, foi feita essa seleção
ano de 2015, todas as Unidades da Federação para proporcionar o diálogo com outras
discutirem e elaborarem seus planos de ação propostas. Sendo assim, também foram sele-
para vigilância em saúde de populações ex- cionados os Planos estaduais de VSPEA dos
postas a agrotóxicos21. estados de Alagoas27, Amazonas28, Bahia29,
Neste artigo, são analisadas a articulação Distrito Federal 30, Goiás 31, Maranhão 32,
com a agroecologia e a participação social no Mato Grosso33, Mato Grosso do Sul34, Pará35,
desenvolvimento da proposta de Vigilância em Paraíba36, Pernambuco37, Piauí38, Paraná39,
Saúde em Populações Expostas a Agrotóxicos Rio de Janeiro40, Rio Grande do Norte41,
(VSPEA) no âmbito do SUS em Pernambuco. Roraima42, Rondônia43, Rio Grande do Sul44,
Santa Catarina45 e Tocantins46.
Para análise e processamento de dados, foi
Material e métodos utilizada a técnica de análise de conteúdo pro-
posta por Bardin47. Como categorias de análise
Realizou-se busca de documentos publica- principais, foram destacadas a agroecologia e a
dos de 2012 a 2020, com vistas a identificar participação social. Na articulação da proposta
aqueles relacionados com o Planapo e com com a agroecologia, foram destacados a articu-
a VSPEA, no âmbito federal (Ministério da lação com a Política Nacional de Agroecologia
Saúde e Ministério do Desenvolvimento e Produção Orgânica (PNAPO), a participa-
Agrário) e estadual (Secretaria Estadual de ção de movimentos ligados aos princípios da

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agroecologia, a inclusão de conteúdos com monitoramento, com participação efetiva na


base na agroecologia nas ações de promoção gestão. Também traz proposta semelhante o
da saúde. Quanto à participação, buscaram-se Modelo Operário Italiano (MOI)51. Apesar do
elementos que demonstrassem a inserção de importante espaço de participação social, a
movimentos sociais e sindicais, a organização CNAPO não tem a palavra final sobre as ações
de grupos de trabalho para planejamento, o e metas, mas, sim, como instância consultiva.
envolvimento de aplicadores de agrotóxicos Em avaliação feita por membros da CNAPO,
nos processos de vigilância. o caráter participativo foi destacado, mas
foram feitas críticas à baixa priorização da
agroecologia na agenda governamental da
Resultados e discussão época com recursos insuficientes para uma
ampla promoção da transição agroecológica e a
ausência de discussão de temas fundamentais
Articulação da vigilância em no Planapo, tais como a reforma agrária52.
saúde com a Política Nacional de Nesse primeiro plano, foi criada uma agenda
Agroecologia e Produção Orgânica intersetorial com previsão orçamentária de
aproximadamente R$ 3 bilhões em recur-
Em 2012, quando publicada a PNAPO, o sos para o desenvolvimento de ações pelos
Brasil foi pioneiro mundialmente na criação Ministérios do Desenvolvimento Social, da
de uma política de agroecologia 48. No Saúde, Mapa, MDA, entre outros. As ações
mesmo período, contraditoriamente, o País deveriam ser executadas no período de
estava entre os maiores consumidores mun- 2013-201521.
diais de agrotóxicos, com um Ministério da O Ministério da Saúde teve a respon-
Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) sabilidade de implantar a VSPEA nas 27
com orçamento bilionário e um Ministério Unidades da Federação até o ano de 2015, e
de Desenvolvimento Agrário (MDA) voltado contou com aporte de R$ 22,7 milhões para
para agricultura familiar49. alcançar esse objetivo. Os recursos foram
Para elaboração da PNAPO, foi formada repassados para os estados no final de 2012
a Comissão Nacional de Agroecologia e de acordo com critérios de área plantada e
Produção Orgânica (CNAPO), composta por população, tendo o estado de Pernambuco
14 membros da sociedade civil e outros 14 de recebido R$ 900 mil21.
órgãos do governo federal. Além de propor Mesmo com iniciativas para vigilân-
os princípios e as diretrizes da política, o cia de populações expostas a agrotóxicos
grupo participou da sugestão de metas e sendo relatadas desde a década de 1980 no
ações para serem executadas por órgãos Ministério da Saúde, em 2014 (dois anos
públicos que conformaram o primeiro após incentivo financeiro do Planapo),
Planapo, cuja elaboração coube à Comissão menos da metade das Unidades da Federação
Intersetorial de Agroecologia e Produção – 44,44% (12/27) – incluíram ações nesse
Orgânica (Ciapo), esta composta somente âmbito nos instrumentos de planejamento
por representantes dos ministérios, sem a do SUS (Programação Anual de Saúde, Plano
participação da sociedade civil50. Estadual de Saúde e Plano Plurianual) 23.
Os documentos apontam para uma ampla Foi criada, pelo Ministério da Saúde, uma
participação de organizações do campo da escala em quatro níveis para avaliação do
agroecologia22. Um dos princípios do monito- desenvolvimento das propostas nos estados
ramento participativo de Breilh19 é a partici- (regular, bom, ótimo e excelente), e somente
pação dos trabalhadores envolvidos em todas sete alcançaram os níveis ótimo e excelente
as etapas, desde o planejamento, execução e até dezembro de 201423.

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Vigilância em saúde de populações expostas a agrotóxicos: agroecologia e participação social 531

Agroecologia para uma agricultura incentivo às práticas agroecológicas; já as duas


livre de venenos e promoção da últimas organizações citadas têm a agroecolo-
saúde gia como principal referência em suas práticas.
O grupo condutor selecionou 15 municí-
Foi criado um grupo condutor intersetorial pios prioritários para desenvolvimento das
para definir as ações do Plano de VSPEA ações. Cinco municípios foram escolhidos
em Pernambuco53, não somente propor di- pela maior área plantada de cana-de-açúcar:
retrizes e metas como a CNAPO. O grupo é Água Preta, Sirinhaém, Goiana, Itambé e
formado por oito representantes da Secretaria Aliança; cinco outros com maior área plan-
Estadual de Saúde, um da Secretaria Estadual tada de fruticultura irrigada no polo agrícola
de Agricultura e outro de Educação, dois da do Vale do São Francisco: Petrolina, Lagoa
academia e quatro de movimentos sociais53. A Grande, Santa Maria da Boa Vista, Cabrobó
conformação do grupo permite que diferentes e Belém de São Francisco; e, por fim, cinco
setores discutam e elaborem a política pública, municípios com base nos dados de resíduos
para além dos tradicionais e, em muitos casos, de agrotóxicos do Programa de Análise de
cartoriais conselhos municipais de saúde54,55. Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (Para)
Entre os movimentos sociais, participam a da Agência Nacional de Vigilância Sanitária
Federação de Trabalhadores da Agricultura do (Anvisa): Vitória de Santo Antão, Barra de
estado de Pernambuco (Fetape), o Movimento Guabiraba, Camocim de São Félix, Bezerros
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), e Gravatá26.
o Centro Agroecológico Sabiá – Organização No grupo condutor, foram discutidas e
Não Governamental que presta assistência propostas ações para integrar execução pelos
técnica com base nos princípios da agroeco- municípios prioritários em três eixos prioritá-
logia – e a Campanha Permanente Contra os rios: promoção à saúde, vigilância em saúde e
Agrotóxicos e Pela Vida53. Os dois primeiros atenção primária, conforme quadro 1 abaixo,
não pautam a agroecologia como principal com o objetivo de integrar as ações em todos
referência, apesar de terem experiências de os âmbitos do município.

Quadro 1. Quadro síntese com principais ações do VSPEA, grupos contemplados e eixo de atenção em que a ação está
ancorada

Eixo de atenção Ação Grupo contemplado


Promoção à Saúde Promoção da alimentação saudável com con- Produtores familiares, agroecológicos
sumo de alimentos orgânicos, articulando com e população consumidora.
produtores familiares e agroecológicos da região.
Realização de ações educativas de promoção à Estudantes da rede pública e privada
saúde nas escolas prioritárias escolhidas pelo dos municípios prioritários.
município.
Vigilância em Saúde Vigilância de ambientes e processos de traba- Trabalhadores envolvidos nos pro-
lho relacionados com agrotóxicos com base na cessos produtivos que utilizem agro-
Portaria GM/MS nº 3.120/98. tóxicos.
Distribuição de materiais educativos/informa- Trabalhadores da agricultura e da
tivos repassados pela Secretaria Estadual de saúde, com ênfase na Atenção Primá-
Saúde. ria à Saúde.
Atenção Primária à Saúde Cadastramento de trabalhadores rurais que Trabalhadores rurais que utilizam
utilizam agrotóxicos nas Unidades de Saúde da agrotóxicos nos processos produti-
Família (USF) e Programa de Agentes Comunitá- vos.
rios de Saúde (Pacs).

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Quadro 1. (cont.)
Eixo de atenção Ação Grupo contemplado
Atenção Primária à Saúde Entrega da carteira do aplicador de agrotóxicos Trabalhadores rurais que utilizam
(cont.) para trabalhadores cadastrados. agrotóxicos nos processos produtivos
cadastrados pelas USF/Pacs.
Realizar ações de Educação em Saúde entre a Trabalhadores rurais que utilizam
equipe de saúde da família e trabalhadores rurais agrotóxicos nos processos produtivos
cadastrados na USF. cadastrados pelas USF/Pacs e traba-
lhadores de saúde das USF.
Fonte: Adaptado de Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco26.

A integração da vigilância com atenção à de alfabetização de jovens e adultos, pois o


saúde é um desafio histórico que, apesar de manuseio e a aplicação de agrotóxicos por
muito discutida, é pouco efetivada nas políticas pessoas não alfabetizadas são proibidos por
de saúde56,57. Para impulsionar essa integração, lei59. A relação de agricultores analfabetos
a Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco cadastrados é repassada, e eles devem ser
treinou 732 profissionais da Estratégia Saúde priorizados para inclusão nas políticas de
da Família (ESF) dos municípios prioritários alfabetização.
sobre a importância de adotar um novo modelo No estado de Pernambuco, o programa de
de produção de alimentos no campo livre de alfabetização de jovens e adultos é batizado de
venenos. O treinamento proporcionou que as Programa Paulo Freire, em homenagem ao pe-
equipes de saúde da família estejam aptas para dagogo pernambucano. Todavia, são diversos
cadastrar os aplicadores de agrotóxicos de seus os ataques promovidos pelo atual Ministério
territórios e que ainda possam dialogar sobre da Educação ao caráter científico desse pen-
práticas agroecológicas e os riscos à saúde do sador60. Nesse sentido, os repasses federais
uso de agrotóxicos26. para bolsas de educação de jovens e adultos
Estão previstos seminários sobre a transição foram reduzidos em 83% entre 2017 e 201961,
agroecológica para os trabalhadores cadastra- comprometendo drasticamente a execução do
dos pelas equipes de saúde das famílias, que programa no estado e, consequentemente, a
serão realizados em parceria com os órgãos de alfabetização dos aplicadores de agrotóxicos
assistência técnica e extensão rural a membros cadastrados.
do grupo condutor em cada um dos municípios O mesmo problema de insuficiência de re-
prioritários. Não há informações nos relatórios cursos ocorre para inclusão dos aplicadores
sobre trabalhadores aplicadores de agrotóxicos em programas de treinamento para transi-
treinados26. ção agroecológica. A PNAPO, na atualidade,
Durante cadastro e visita domiciliar, agentes não conta mais com um plano de execução
comunitários de saúde indagam os agriculto- de recursos vigente, tendo em vista que o
res sobre uso de equipamentos de proteção segundo Planapo encerrou-se em 201922. Por
enfatizando a sua importância, mas também meio de decreto, o governo do presidente Jair
indicando a sua insuficiência e de que não Bolsonaro extinguiu a CNAPO e a Ciapo, além
existe uso seguro de agrotóxicos, como já de diversos outros espaços de discussão de
apontado em pesquisa26,58. temas relevantes para a sociedade62.
No grupo condutor, participam repre- O subfinanciamento para políticas de
sentantes da Secretaria de Educação de agroecologia e produção orgânica não é fato
Pernambuco responsáveis pelos programas recente. Até 2016, o Brasil contava com dois

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Vigilância em saúde de populações expostas a agrotóxicos: agroecologia e participação social 533

ministérios para as questões da agricultura: o participação intersetorial e de grupos ligados


Mapa, controlado por representantes do agro- à agroecologia, ainda é pouco presente nas
negócio; e o MDA, em que é maior a presença propostas desenvolvidas nos estados. Isso se
dos interesses dos movimentos do campo49. O deve, em parte, por nem todos os estados terem
orçamento atualizado entre 2013 e 2016 para o criado grupos intersetoriais para elaboração
MDA foi de R$ 558 milhões, enquanto o Mapa das propostas locais.
contou com mais de R$ 31 bilhões63. O grupo condutor foi importante para pro-
Além do cadastro, as gestões municipais mover um espaço de participação social de
devem realizar ações de promoção da saúde, representantes dos movimentos sociais no
tais como: o incentivo às feiras agroecológicas planejamento, execução, monitoramento e
locais e atividades educativas em escolas26. avaliação da proposta. No entanto, a gestão
Para desenvolver todas essas ações, os muni- da VSPEA em Pernambuco não se conformou
cípios receberam, no final de 2013, incentivo como única instância de participação social,
financeiro de R$ 40 mil, condicionado à exe- ainda houve espaço para participação dos apli-
cução das ações anteriormente citadas26. cadores de agrotóxicos no monitoramento de
Apesar de o Ministério da Saúde, em sua saúde, como destacado a seguir.
seu documento orientador23, reconhecer a
agroecologia como estratégica para ações de Carteira do aplicador de agrotóxicos:
promoção da saúde, somente os estados de uma estratégia de vigilância popular
Pernambuco37 e Paraná39 indicaram a arti- da saúde
culação com as práticas agroecológicas nos
documentos de planejamento. Posteriormente, Foi elaborada uma ficha de cadastro na cor
no documento que trata de experiências exito- amarela (figura 1), que continha as seguintes
sas nos estados, foram identificadas ações que informações sobre os aplicadores: identifi-
articulavam o setor saúde com a agroecologia cação do trabalhador; dados de residência;
em mais quatro estados: Espírito Santo, Minas caracterização do trabalho realizado; caracte-
Gerais, Rio Grande do Sul e Bahia25, somados rização do uso e aplicação; morbidade referida;
aos outros dois citados anteriormente. e forma de acesso aos venenos. Essa ficha, após
Apesar de a estratégia de VSPEA ter sido cadastro, foi anexada ao prontuário físico de
uma meta do Planapo, que foi construído com cada pessoa nas unidades de saúde64.

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Figura 1. Ficha de cadastro de trabalhador rural aplicador de agrotóxicos

Fonte: Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco26.

Além do cadastro, os aplicadores recebe- aos agrotóxicos (por exemplo, dia 26/1/2013,
ram a ‘Carteira do Aplicador de Agrotóxico’ sentiu náusea e ânsia de vômito após aplicar
(figura 2), na qual constam dados de iden- o agrotóxico). Esses registros na carteira
tificação e há espaço para o próprio tra- realizados pelo próprio trabalhador levam
balhador registrar informações referentes à participação direta no processo de mo-
aos sinais e sintomas apresentados e que nitoramento de sua saúde, auxiliando as
podem estar relacionados com a exposição equipes de saúde da família26.

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Vigilância em saúde de populações expostas a agrotóxicos: agroecologia e participação social 535

Figura 2. Carteira do aplicador de agrotóxicos

Fonte: Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco26.

Há dificuldade em associar sinais e sin- Os dados registrados na carteira do apli-


tomas leves ou de casos crônicos ao uso de cador de agrotóxicos podem impulsionar as
agrotóxicos52, fato este associado também notificações subagudas e crônicas, uma vez
a um modelo biomédico e distanciado dos que ainda é grande a subnotificação desses
trabalhadores que somente reconhece casos casos suspeitos 67 e tornam os indivíduos
de intoxicação por diagnóstico laboratorial, sujeitos ativos da vigilância de sua própria
método de confirmação este absolutamente saúde. Nesse sentido, propostas como a vi-
inviável, impreciso e inexistente na realidade gilância civil da saúde17, de monitoramento
de comunidades rurais brasileiras65. participativo19, do MOI51, entre outras expe-
Entregar a carteira do aplicador e receber riências que valorizam a participação ativa
informações das equipes de saúde da família dos indivíduos no processo de vigilância
sobre sintomas inespecíficos que podem ter da saúde 68-70, configuram uma vigilância
relação com o agrotóxico, como náuseas, dores popular da saúde.
de cabeça, problemas digestivos, entre outros, Até a última publicação da Secretaria
promovem uma maior conscientização desse Estadual de Saúde de Pernambuco, com
grupo de trabalhadores. Em Pernambuco, mo- dados atualizados em agosto de 2019,
vimentos sociais têm denunciado a prática das somente 11 dos 15 municípios prioritários
usinas de cana-de-açúcar em oferecer aguar- realizaram cadastro de aplicadores. Os
dente e leite aos aplicadores de agrotóxicos números indicam 992 aplicadores cadas-
como antídotos aos efeitos dos agrotóxicos66. trados, nos municípios de: Gravatá (234),

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536 Albuquerque PCC, Lira PVRA, Gurgel IGD, Rocha GA

Cabrobó (213), Vitória de Santo Antão (90), Conclusões


Sirinhaém (86), Barra de Guabiraba (73),
Bezerros (70), Aliança (59), Camocim de A agroecologia, historicamente ligada aos
São Félix (54), Itambé (45), Lagoa Grande movimentos sociais do campo, demonstrou-
(35) e Água Preta (27). Números que evi- -se como referência importante para o de-
denciam lentidão e baixa abrangência na senvolvimento de ações de promoção da
execução da proposta, especialmente nos saúde. Desde a concepção do Planapo, houve
que concentram importante parte do agro- participação de representantes ligados à
negócio de fruticultura irrigada (Petrolina) agroecologia, assim como no grupo condutor
e cana-de-açúcar (Goiana)26. criado em Pernambuco. A intersetorialidade
Nos documentos analisados, não constam proposta em ambos os espaços foi deter-
informações que justifiquem o atraso e pouco minante para a articulação das práticas de
alcance entre os aplicadores. O trabalho no saúde com os princípios agroecológicos.
campo é historicamente marcado por violên- Houve número importante de profissionais
cia71, o que pode justificar a pouca adesão de de atenção básica treinados sobre princípios
trabalhadores devido ao receio de represália da agroecologia, e os treinamentos previstos
por parte das empresas empregadoras. Além para trabalhadores aplicadores cadastrados
disso, a sobrecarga de trabalho com que os podem impulsionar o processo de transição
profissionais de atenção básica precisam lidar agroecológica nos municípios prioritários.
é também um desafio, tendo em vista a preca- Apesar de haver a previsão de treinamento
rização dos vínculos no SUS imposta por anos para transição agroecológica e alfabetização
de ajuste fiscal e políticas liberais72. dos aplicadores cadastrados pelo SUS em
Em outras Unidades da Federação, entre Pernambuco, o subfinanciamento de políticas
as propostas elaboradas, somente 15 estados educacionais de jovens e adultos e de assistência
possuíam algum nível de participação social técnica e extensão rural compromete a articula-
em suas propostas para vigilância de popu- ção intersetorial e a transformação da realidade.
lações expostas a agrotóxicos. Além disso, O SUS tem como premissa a participação
somente 17 estados possuíam parcerias social, porém essa participação não pode ficar
intersetoriais23. restrita aos espaços institucionais do controle
Não foi possível uma análise mais precisa social como conselhos e conferências. A criação
das ações em outros estados, devido ao e a efetivação de grupos de trabalhos interse-
pouco detalhamento e à abstração das pro- toriais, tais como o grupo condutor criado em
postas divulgadas, tais como: promover a Pernambuco, contribuem nesse sentido.
participação dos trabalhadores e da comu- O cadastro e a entrega das carteiras a aplica-
nidade nas ações de vigilância em saúde, dores podem proporcionar que os indivíduos
entrega de comunicado ao controle social sejam sujeitos participantes do processo de
e educação permanente para conselheiros vigilância em saúde, diminuindo a necessidade
de saúde27-46. de ‘tutela’ de equipes de saúde para reivindicar
A estratégia de vigilância popular desenvol- seus direitos e alertar para os riscos a que estão
vida em Pernambuco proporciona uma partici- expostos. Essa estratégia fortalece a integração
pação ativa e não se restringe a fatores de riscos da vigilância em saúde com a atenção básica
quando compreende a necessária articulação e pode ser ampliada para outros municípios
com outras políticas públicas (alfabetização e e regiões do Brasil.
assistência técnica rural) para construção de Apesar de a proposta se apresentar como
uma agricultura em bases agroecológicas, com uma interessante estratégia de vigilância
vistas a superar o modelo químico-dependente popular da saúde, não é possível avaliar a
do agronegócio26. efetiva participação dos sujeitos devido à

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Vigilância em saúde de populações expostas a agrotóxicos: agroecologia e participação social 537

limitação do estudo. Porém, o baixo número Colaboradores


de trabalhadores cadastrados e a existência de
municípios que ainda não iniciaram as ações Albuquerque PCC (0000-0002-2515-2778)*,
sugerem que há baixo envolvimento e pressão Lira PVRA (0000-0002-8588-839X)*, Gurgel
popular, questões fundamentais para o sucesso IGD (0000-0002-2958-683X)* e Rocha GA
da vigilância popular em saúde. Somente com (0000-0003-4909-4207)* contribuíram igual-
participação popular e princípios agroecoló- mente para concepção, elaboração e revisão
gicos será possível superar o modelo clínico final do manuscrito. s
biomédico de vigilância em saúde de popula-
ções expostas a agrotóxicos.

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Vigilância em saúde de populações expostas a agrotóxicos: agroecologia e participação social 539

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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 527-541, Jun 2022


540 Albuquerque PCC, Lira PVRA, Gurgel IGD, Rocha GA

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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 527-541, Jun 2022


Vigilância em saúde de populações expostas a agrotóxicos: agroecologia e participação social 541

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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 527-541, Jun 2022


542 RELATO DE EXPERIÊNCIA | CASE STUDY

Feiras Orgânicas enquanto política de


abastecimento alimentar e promoção da
saúde: um estudo de caso
Organic Markets as a policy of food supply and health promotion: a
case study

Soraia Martins de Carvalho1, Islandia Bezerra2, Silvia do Amaral Rigon1, Julian Perez Cassarino3

DOI: 10.1590/0103-11042022E236

RESUMO Estudo de caso com o objetivo de compreender o processo organizacional das Feiras Orgânicas
em Curitiba-PR, enquanto política de abastecimento alimentar e de promoção da saúde. Pesquisa de caráter
qualitativo, realizada mediante análise de documentos institucionais e entrevistas semiestruturadas com
feirantes e técnicos da área de abastecimento, informantes-chave. Destacou-se a importância social desse
local enquanto espaço de comercialização de alimentos produzidos sem agrotóxicos e provenientes da agri-
cultura familiar. Um vínculo de solidariedade construído com os consumidores foi observado, constituindo
um ambiente de cooperação para a alimentação saudável, de socialização de saberes e de empoderamento
dos envolvidos. No entanto, a população de baixo poder aquisitivo manteve-se distante desse consumo
por causa dos preços elevados e da localização distanciada da periferia da cidade. Identificou-se também
um risco para a continuidade da comercialização direta com o consumidor em função de nova política de
pagamento pelo uso do espaço a partir de valores considerados elevados para os agricultores. Conclui-se
que a busca pela inclusão da agricultura familiar nas Feiras Orgânicas e pela democratização do acesso a
esses alimentos devem nortear as políticas de abastecimento, considerando sobretudo, a necessidade de
soberania e segurança alimentar e nutricional tanto no campo quanto na cidade.

PALAVRAS-CHAVE Promoção da saúde. Agricultura sustentável. Abastecimento de alimentos.

ABSTRACT We performed a case study with the aim of understanding the organizational process of the
Organic Markets in Curitiba-PR, as a policy of food supply and health promotion. A qualitative research was
carried out through the analysis of institutional documents and semi-structured interviews with marketers
and technicians in the supply area, considered to be key informants. The social importance of this space was
highlighted, as a space for commercializing food produced without pesticides and from family farming. A
link of solidarity built with consumers was observed, constituting an environment of cooperation for healthy
1 UniversidadeFederal do eating, socialization of knowledge, and empowerment of the people involved. However, the population with
Paraná (UFPR) – Curitiba low income power remained distant from this consumption, due to the high prices and distant location from
(PR), Brasil.
soraiamartins@hotmail. the suburbs of the city. We identified a risk to keep the continuity of direct marketing with the consumer,
com due to a new payment policy to use the space based on values considered high for farmers. We conclude that
2 Universidade Federal de
searching the inclusion of family farming in Organic Markets and the democratization of access to organic
Alagoas (Ufal), Faculdade food must guide supply policies, especially considering the need for sovereignty and food and nutritional
de Nutrição (Fanut) - security both in the countryside and in the city.
Maceió (AL), Brasil.

3 Universidade Federal KEYWORDS Health promotion. Sustainable agriculture. Food supply.


da Fronteira (UFFS) –
Laranjeiras do Sul (PR),
Brasil.

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 542-554, Jun 2022 meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado.
Feiras Orgânicas enquanto política de abastecimento alimentar e promoção da saúde: um estudo de caso 543

Introdução alimentos orgânicos e ecológicos3. À medida


que o movimento da agricultura ecológica
A relação campo-cidade consiste em um ganhou visibilidade no Brasil e em outros
tema de cada vez maior interesse da saúde países, as políticas públicas comprometidas
coletiva pois é a partir de uma perspectiva com a Soberania e a Segurança Alimentar
integrada dessa relação que novos cami- e Nutricional (SSAN) passaram a ser re-
nhos para a promoção da saúde podem ser conhecidas como estratégicas para o de-
trilhados e até revisitados. A ausência de senvolvimento de sociedades sustentáveis,
uma abordagem integral que reconheça o solidárias e saudáveis, ocorrendo um avanço
território como lugar de produção da vida, da sua valorização e implementação pelo
substituída por uma visão fragmentada, poder público3,4.
polarizada e antagonista do urbano e do A produção de alimentos orgânicos e
rural, colabora de forma significativa para agroecológicos e seus meios de comerciali-
a intensificação do processo saúde-doença. zação representam uma inovação no redese-
Dos problemas que afetam a saúde nesse nho dos sistemas alimentares em bases mais
tipo de contexto, sobretudo no Brasil, entre sustentáveis e solidárias. Colaboram para o
outros países do Hemisfério Sul são eviden- aumento e a manutenção da fertilidade dos
tes: a presença de um quadro histórico de sistemas agrícolas e da biodiversidade, para
concentração fundiária; a desestruturação o equilíbrio do meio ambiente e produção de
da agricultura familiar e êxodo rural gerado alimentos de qualidade, sem a utilização de
pelo avanço das fronteiras da agropecuária insumos químicos perigosos à saúde humana
empresarial voltada, sobretudo à exportação e ambiental, apoiando a permanência das
de commodities; o desflorestamento produ- famílias no campo com melhor renda e
zido a partir desse processo com todas as qualidade de vida. Além disso, promovem
suas implicações sobre a qualidade de vida um vínculo de sociabilidade com os con-
das populações; a contaminação sistemática sumidores, transformando as feiras em um
por agrotóxicos afetando a saúde humana, ambiente de cooperação para a alimentação
animal e o meio ambiente; a degradação saudável e, assim, de promoção da saúde da
da qualidade da alimentação em função população rural e urbana5.
da sua industrialização e do predomínio Nesta análise, será utilizada a expres-
das forças do mercado, que por sua vez, são ‘alimento orgânico e/ou agroecológico’
desenham dinâmicas de consumo que se em consonância com a Política Nacional
manifestam negativamente no perfil nutri- de Agroecologia e Produção Orgânica 6 e
cional da população do campo e da cidade, por considerar que possuem definições
principalmente nos grupos mais vulnerá- diferentes. A agricultura orgânica tem
veis, prevalência das doenças crônicas não suas raízes na ciência do solo e se baseia
transmissíveis e a sua coexistência com si- no uso de insumos naturais e no não uso
tuações de má nutrição, como a desnutrição de transgênicos e insumos químicos; já a
e a obesidade1,2. agroecologia sustenta seus princípios na
No Brasil, foi a partir da década de 1990 ecologia e fundamenta-se nas dimensões
que avançou de forma mais significativa agronômica, ecológica, sociológica e políti-
a atuação dos movimentos sociais contra ca7. Apesar dessas diferenças fundamentais,
hegemônicos do campo, construindo outros no âmbito deste texto, será empregada em
caminhos para o restabelecimento de uma muitos momentos uma única denominação
relação saudável entre o ambiente rural como referência a essas duas categorias de
e urbano, mediante o desenvolvimento alimentos, já que nas Feiras Orgânicas de
de modelos de produção e consumo de Curitiba-PR atuam famílias que trabalham

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 542-554, Jun 2022


544 Carvalho SM, Bezerra I, Rigon SA, Cassarino JP

com esses dois sistemas de produção. São Assim, considerando todos os aspectos
duas formas distintas de produção, com mencionados até aqui e que justificam a
paradigmas e princípios diferenciados, relevância do foco deste artigo, apresentam-
mas que têm em comum a não utilização -se as questões que nortearam a investiga-
de agrotóxicos. ção em tela na busca de respostas para a
Quando se consideram os princípios da compreensão do objeto de estudo: qual é o
agroecologia, surgem evidências robustas de significado do espaço da Feira Orgânica para
que a sua prática é condizente com as caracte- os agricultores e agricultoras participantes
rísticas da agricultura familiar, constituindo-se dessa experiência? Como se dá o processo da
em uma forma de produção em sintonia com operacionalização das Feiras Orgânicas de
o trabalho desenvolvido por esse segmento Curitiba-PR para que os alimentos cheguem
social. Assim, é possível compreender que a diretamente do campo para o consumidor
garantia do acesso à terra e aos demais meios da cidade? Quais as potencialidades e desa-
de produção pela agricultura familiar, bem fios inerentes a esse processo realizado no
como o fortalecimento da sua atuação, colabo- âmbito do município a partir do olhar dos
ra para a promoção da SSAN do País, uma vez seus organizadores para a garantia da sua
que esse é o segmento responsável por grande continuidade?
parte do abastecimento alimentar nacional,
como pode ser observado nos dados do censo
agropecuário8. Metodologia
Os dados oficiais do Censo Agropecuário
2017, do Instituto Brasileiro de Geografia Trata-se de um estudo de caso, de caráter
e Estatística (IBGE) 8, registram que 77% qualitativo, desenvolvido no município de
dos estabelecimentos agropecuários do Curitiba-PR, entre os anos de 2015 e 2017,
Brasil são classificados como da agricul- tendo como cenário de análise as Feiras
tura familiar, mas que, apesar disso, essas Orgânicas e o contexto institucional da
propriedades ocupam somente 23% de toda Secretaria Municipal de Abastecimento
a área utilizada pela agricultura. Contudo, (SMAB) de Curitiba-PR. Participaram da
mesmo com o reduzido acesso à terra, a sua pesquisa trabalhadores(as) da SMAB e
produção equivale a cerca de 70% do total agricultoras e agricultores/feirantes que ali
de feijão consumido pela população, 87% da comercializam seus produtos, totalizando
mandioca, 34% do arroz, 60% da produção 13 participantes. Abrangeu 14 feiras geren-
de leite, 59% do rebanho suíno, 50% das ciadas pelo Departamento de Unidades de
aves e 30% dos bovinos7. Abastecimento da SMAB localizadas, em
Nesse sentido, o estudo de caso em foco sua maioria, em praças e ruas de bairros
visa analisar o processo organizacional das do município.
Feiras Orgânicas no município de Curitiba- Duas técnicas de pesquisa de campo
PR a partir da percepção de atores sociais foram utilizadas: análise de documentos ins-
envolvidos em seu atual processo de opera- titucionais e entrevistas semiestruturadas
cionalização. Tendo em vista os benefícios realizadas com informantes-chave. Para a
gerados pela produção e o consumo dos definição dos agricultores/feirantes a serem
alimentos produzidos ecologicamente para entrevistados, utilizaram-se como critérios:
a SSAN da população brasileira e para a a localização da produção (procedência de
promoção da saúde humana, animal e pla- diferentes cidades da Região Metropolitana
netária, emergem questionamentos impor- de Curitiba (RMC); o tempo de atuação nas
tantes sobre os canais de escoamento dessa feiras (novos e antigos integrantes); a cer-
produção para o ambiente urbano. tificação (diferentes formas do processo);

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 542-554, Jun 2022


Feiras Orgânicas enquanto política de abastecimento alimentar e promoção da saúde: um estudo de caso 545

o gênero (igualdade na participação entre Produção, comercialização


homens e mulheres); e o ramo de atividade e consumo de alimentos
(hortifrutigranjeiros e/ou cereais; laticínios;
alimentos processados). Foram realizados
ecológicos na perspectiva
11 convites aos agricultores/feirantes, 3 da SSAN e da Promoção da
pessoas optaram por não participar da pes- Saúde
quisa. A definição dos informantes-chave da
SMAB teve como critério a atuação direta na Entende-se a Segurança Alimentar e Nutricional
gestão, coordenação e/ou operacionalização (SAN) como o direito do acesso à alimentação
das Feiras Orgânicas. de qualidade, em quantidade suficiente, de
Para análise documental, foram realizadas modo permanente e para toda a população a
consultas a dados bibliográficos, documen- partir de práticas comprometidas com a pro-
tos oficiais e legislações para contextualizar moção da saúde, que sejam social, econômica e
o panorama da política de abastecimento ambientalmente sustentáveis conforme teor de
do município de Curitiba-PR. O conteúdo seu marco regulatório sancionado no Brasil pelo
das entrevistas compreendeu o material de governo federal em 200610. Além da aprovação
base para o aprofundamento e construção da Lei Orgânica de SAN, o reconhecimento da
teórica da pesquisa, optando-se pela técnica alimentação como um direito humano, garan-
da Análise do Conteúdo, modalidade temá- tido na Constituição Federal pela Emenda nº
tica norteada por Bardin9. 64/2010, consistiu em outro passo importante
A partir da organização das expressões- para a institucionalização do processo de cons-
-chave do material empírico, foram formados trução da SAN no País11.
núcleos de sentido emergindo as seguintes É importante citar que a promoção do acesso
categorias de análises: 1) Interface entre as a uma alimentação adequada e saudável constitui
Feiras Orgânicas com a Promoção da Saúde a primeira diretriz adotada pela Política Nacional
e a Segurança Alimentar e Nutricional; 2) de Segurança Alimentar e Nutricional (PNSAN)
Fatores que influenciam no acesso aos ali- para assegurar a realização do Direito Humano
mentos; e 3) Organização e funcionamento à Alimentação Adequada e Saudável (DHAA)
das Feiras Orgânicas no contexto da política em todo o território nacional12. No entanto, não
municipal de abastecimento as quais serão há como essa condição ser concretizada sem a
discutidas a seguir. efetivação da Soberania Alimentar, que deve se
Esta pesquisa faz parte de um projeto constituir em um princípio orientador para a
de pesquisa maior intitulado ‘Tempos construção do conceito supramencionado.
Modernos: a relação produção-consumo A compreensão sobre o que significa a
de alimentos (re) significada a partir das Soberania Alimentar surge na década de 1990,
compras públicas’, aprovado pelo Comitê de quando movimentos sociais do campo, em diver-
Ética em Pesquisa (CEP) do Setor de Ciências sos países da América Latina e Europa, articulam-
da Saúde da Universidade Federal do Paraná, -se para discutir as questões do desenvolvimento
com o número CEP 42781915.9.0000.0102. rural. Inicialmente, seu conceito foi defendido,
Todas as pessoas que participaram do estudo segundo Sevilla-Guzmán13(16) como: “o direito dos
foram devidamente esclarecidas quanto aos povos de definir sua própria política agrícola e
objetivos da pesquisa e, posteriormente, alimentar sem depender de outros países”.
assinaram o Termo de Consentimento Livre Para Rosset14, o conceito da Soberania
e Esclarecido, elaborado segundo critérios Alimentar está em constante construção, pois
da Resolução nº 196/2012 do Conselho faz parte de um processo de diálogo de saberes
Nacional de Saúde para pesquisa com seres que agregam as diversas lutas de movimen-
humanos, previamente aprovados pelo CEP. tos sociais do campo e da cidade, e, por isso,

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546 Carvalho SM, Bezerra I, Rigon SA, Cassarino JP

necessita fazer sentido tanto para os agricul- podem desenvolver câncer, infertilidade, es-
tores quanto para os consumidores, uma vez terilidade e mortalidade precoce2.
que esses dois segmentos passam a ser afetados Diante dessa preocupação, observa-se que,
negativamente pela Revolução Verde e pela partir da década de 1990, sobretudo dos anos
consolidação de um sistema agroalimentar 2000, houve um aumento de pesquisas que
dependente de insumos industriais. buscam dar uma maior visibilidade à relação
É nesse contexto que surgem os desafios da existente entre a produção ecológica de ali-
relação campo-cidade, pois, para aproximar a mentos e a promoção da saúde. Estudos re-
produção de alimentos de uma perspectiva de alizados em diferentes localidades do Brasil
promoção da saúde, torna-se necessária a criação têm evidenciado como a prática da agricultura
de políticas que promovam a produção ecológica ecológica contribuiu para o fortalecimento e
de alimentos e que viabilizem o acesso a eles resgate de práticas tradicionais do modo de
mediante sua oferta contínua, a preços justos, vida no campo abandonadas pelo processo
para toda a população, a partir de ações públicas de modernização da agricultura, colaboran-
de abastecimento. No Brasil, tal compreensão foi do para uma melhora da nutrição, saúde e da
referendada pela III Conferência Nacional de qualidade de vida a partir da prática da produ-
SAN, que ocorreu em 2007 e que contou com um ção para o autoconsumo e da comercialização
tema norteador com o seguinte conteúdo: ‘Por desses alimentos21-23.
um Desenvolvimento Sustentável com Soberania Esses estudos demostram que a produção e
e Segurança Alimentar e Nutricional (SSAN)’. o consumo de alimentos ecológicos assumem
Como resultado desse amplo processo de discus- um papel importante na promoção da saúde
são que envolveu ativamente governo e sociedade de quem produz os alimentos, mas também de
civil, a PNSAN foi concebida e regulamentada quem os consome. No entanto, observa-se que
posteriormente pelo Decreto nº 7.272/201012. os elementos que envolvem a comercialização
Apesar disso, mesmo com os avanços his- e o acesso a esses alimentos pela população
tóricos obtidos, os impactos socioambientais também precisam ser ressignificados na pers-
do padrão produtivo dominante ainda não são pectiva da SSAN. Dessa forma, é partindo desse
reconhecidos por toda a sociedade como um pressuposto que a pesquisa apresentada neste
problema urgente a ser enfrentado. Portanto, artigo buscou discutir o papel que as feiras
reconhecer e considerar tais questões torna- que comercializam alimentos orgânicos e/ou
-se fundamental para a construção de novas agroecológicos representam enquanto estra-
perspectivas, que coloquem em xeque a adoção tégia de abastecimento voltada à promoção
sistemática desse tipo de modelo de produção da saúde em função da sua contribuição para
pautado na exploração e na agressão à saúde a consolidação da SSAN.
do ser humano e da natureza com vistas à
acumulação do capital2,15.
Documentos nacionais baseados em estudos A trajetória histórica das
científicos importantes registram os efeitos Feiras Orgânicas e seu
danosos dos agrotóxicos para a saúde humana,
animal e ambiental, demonstrando a preocu-
funcionamento no contexto
pação do uso ascendente e com o fato de o da política municipal de
Brasil ter se convertido no maior consumidor abastecimento
mundial dessas substâncias16,17. Outros estudos
têm apontado o aumento de exposição e notifi- As feiras que comercializam alimentos orgâ-
cação de intoxicação por agrotóxicos agrícolas nicos e/ou agroecológicos no município de
em estados brasileiros18-20. Os seres humanos, Curitiba-PR possuem uma história de mais
quando expostos aos efeitos dos agrotóxicos, de 30 anos, que se inicia em 1989, quando

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Feiras Orgânicas enquanto política de abastecimento alimentar e promoção da saúde: um estudo de caso 547

foi instalada a primeira barraca de alimen- feiras, 23 lojas especializadas, 14 deliveries, 14


tos chamada de Feira Verde, na praça conhe- lojas no mercado municipal de orgânicos, 49
cida como Largo da Ordem24,25. supermercados, 15 restaurantes e 40 grupos
Nos relatos dos participantes da pesqui- de consumo organizado denominados ‘cestas
sa, pode-se inferir a trajetória histórica das solidárias’29.
feiras como uma construção social, iniciativa Assim, conforme pôde ser verificado, o
de pessoas pioneiras na área da agroecologia número significativo de espaços de comercia-
que se dedicaram a formar um movimento em lização dessa categoria de alimentos na cidade
defesa da produção de alimentos saudável e evidencia um avanço histórico importante
sustentável. Pelos registros, a participação do da prática de produção e do consumo desses
poder público municipal foi em 1995, quando a produtos em relação ao seu momento inicial,
Feira Verde foi inserida na política municipal registrando a sua importância.
de abastecimento, sendo seu funcionamento
regulamentado conforme as demais unidades
de abastecimento do município26. Caminhos e entraves:
Em 2005, a SMAB propôs a mudança do as feiras enquanto
nome para Feira Orgânica, influenciada, na
época, pela recente regulamentação da pro-
espaço estratégico de
dução orgânica no Brasil com a aprovação comercialização dos
da Lei Federal nº 10.831/2003. A partir dessa alimentos orgânicos e
mudança, a Feira Orgânica passou a ser re- agroecológicos
gulamentadas pela Portaria nº 030/200527
e, em seguida, pela Portaria nº 044/200728, Considerando as observações empíricas levan-
como “unidades de Abastecimento destina- tadas pelo estudo, quatro elementos êmicos
das à comercialização, no varejo, de produtos se destacam como pontos estruturantes para
orgânicos certificados”. a caracterização do escoamento e comercia-
No período de realização da pesquisa, o lização dos alimentos na Feira Orgânica: a
Departamento de Unidades de Abastecimento localização das feiras na cidade; o preço, a
da SMAB gerenciava o total de 14 feiras, lo- oferta e a variedade dos alimentos; o vínculo
calizadas, em sua maioria, em praças e ruas criado pela comercialização direta ao consu-
de bairros do município. Entretanto, outras midor e a caracterização da feira como espaço
feiras chamadas de ecológicas ou agroeco- de sociabilidades e de promoção da saúde.
lógicas coexistem na cidade de Curitiba-PR As Feiras Orgânicas se localizam na região
e são iniciativas de universidade federais central da cidade de Curitiba-PR. Essa consta-
e de entidades não governamentais, como tação sinalizou a necessidade de compreender
a Associação para o Desenvolvimento da como se deu o processo decisório em relação
Agroecologia (Aopa), o Centro Paranaense à localização das feiras, a partir do relato dos
de Referência em Agroecologia (CPRA) e a entrevistados:
Rede Ecovida de Agroecologia, que apoiam
os agricultores no processo de ampliação dos [...] a localização do conjunto de feiras está situada
canais de comercialização em espaços não num anel mais central da cidade porque é onde se
gerenciados pela SMAB. concentra um público, onde havia um entendimen-
Um estudo sobre pontos de comercialização to, que era um público com potencial de consumo
de alimentos orgânicos e agroecológicos em maior de produtos orgânicos, tanto pelo poder
Curitiba-PR, realizado em 2016, registrou a aquisitivo como pelo fator acesso à informação e
existência de 136 estabelecimentos, classi- instrução. (Trabalhador 1/SMAB).
ficados em 7 diferentes canais de venda: 21

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Quando a gente vai definir um espaço para feira, Apesar de o preço dos alimentos comercia-
leva em consideração o perfil socioeconômico lizados nas Feiras Orgânicas ser considerado
daquela região e o tipo de feira compatível com ainda como um aspecto que pode restringir o
o esse perfil, isso não é só para Feira Orgânica, acesso, os participantes da pesquisa apresen-
qualquer feira, a Programa Nossa Feira, que é de tam elementos importantes para essa discus-
preço único, privilegiamos locais onde existe maior são, como se observa nos relatos abaixo:
carência da população [...] quem vai manter as
feiras são os feirantes, se eles não vendem não O valor que a gente passa para o cliente é bom pra
existe feira, então o perfil socioeconômico é con- gente e é bom para eles, porque não tem atraves-
siderado. (Trabalhador 4/SMAB). sador, tanto para um lado como para o outro está
sendo bom. (Agricultor 5/feirante).
A preocupação da SMAB, naquele período,
com relação à escolha da localização das Feiras Quando é um produto que não é produzido por
Orgânicas era a de viabilizar comercialmente nós, que vem de fora, como frutas, produtos que
o seu funcionamento, assim como contribuir não são da época, são caros. [...] mas no geral os
para uma maior geração de renda para as famí- produtos de horta têm preços bons. (Agricultora
lias agricultoras que estavam se inserindo no 1/feirante).
ramo da comercialização e que precisavam se
estabilizar financeiramente para poder perma- Eu digo pra você, algumas coisas ainda é caro, tipo
necer na produção e investir na sua expansão. o tomate, o milho verde ainda é caro, mas se for
No entanto, a opção que privilegiou a locali- produto da época, produzido por nós aqui, o preço
zação central das Feiras Orgânicas para atrair é bom. (Agricultora 8/feirante).
um consumidor com perfil socioeconômico
de renda mais elevada contribuiu, por outro Conforme os entrevistados, a produção local
lado, para reforçar, de certa forma, o caráter é de acordo com a sazonalidade, ou seja, o
elitista do acesso aos alimentos orgânicos e/ fornecimento de ‘alimentos de época’ é visto
ou agroecológicos na cidade de Curitiba. como aspecto relevante que possibilita às fa-
As pesquisas mais recentes sobre o consumo mílias agricultoras/feirantes desenvolverem
de alimentos orgânicos têm demonstrado que as relações de mercado com preços acessíveis
feiras estão atraindo pessoas de todas as classes para o consumidor.
sociais, mas que ainda predomina o acesso maior De acordo com Schneider e Gazolla33, as
de pessoas com renda elevada e com escolarida- cadeias agroalimentares envolvem uma com-
de30,31. Não obstante, a renda, isoladamente, não plexa e extensa rede de agentes intermediários
foi apontada como um fator determinante para que perpassa por empresas de insumos, se-
o consumo. A distância dos locais de compra, mentes, além das unidades de processamentos
considerando que grande parte dos consumidores e comércio. A atuação de atravessadores ao
(40%) se desloca a pé até esses locais, constituiu- longo de toda a história do abastecimento ali-
-se em fator limitante, pois as pessoas preferem mentar no Brasil tem sido registrada como algo
comprar em locais próximos à moradia, demos- problemático tanto para quem produz quanto
trando a importância da descentralização das para quem consome34.
feiras para bairros mais periféricos31. A busca do consumidor pela mesma va-
É importante citar que há uma proposta riedade de alimentos ao longo de todas as
para ampliar a oferta e a disponibilidade de estações do ano foi destacada como um fator
alimentos orgânicos e/ou agroecológicos para que ainda contribui para a inserção do inter-
outros bairros já incluída como meta do Plano mediário na cadeia de comercialização dos
Municipal de SAN 2016-2019, do município, alimentos orgânicos e/ou agroecológicos. A
lançado em 201632. entrega de produtos por associações parceiras

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Feiras Orgânicas enquanto política de abastecimento alimentar e promoção da saúde: um estudo de caso 549

localizadas em outros estados também colabo- construção de espaços que visam à geração de
ra para o encarecimento de certos alimentos, processos autônomos e socialmente enraiza-
ainda que isso não prevaleça em relação à dos de produção, baseados na solidariedade,
comercialização. transparência e confiança.
Para além de aspectos de geração de renda, Assim, essa análise da organização e
outros quesitos relativos à sociabilidade e à funcionamento das Feiras Orgânicas de
alimentação saudável são relacionados com Curitiba-PR, enquanto política de abaste-
a motivação para a participação na iniciativa, cimento alimentar, evidencia, em seus dife-
conforme pode-se observar nos relatos abaixo: rentes aspectos, as seguintes características:
ser um espaço capaz de viabilizar o acesso
Eu acredito também que cada feirante tem que aos alimentos adequados e saudáveis e que é
olhar para o consumidor também, não pode pensar resultante de uma relação entre quem produz
só nele. O consumidor tem o direito de ter um e quem consome, com potencial para reorien-
produto de boa qualidade, pode não ser tão bonito tar o consumo atendendo às premissas da
que nem outros, mas tem todo direito de comer ecologia e da promoção da saúde. As Feiras
um produto de qualidade, um produto saudável Orgânicas constituem-se em espaços estra-
e com preço acessível. (Agricultora 1/feirante). tégicos para o bem comum que deveriam ser
apoiados pela política pública em função das
Na feira você tem o contado direto com o consu- inúmeras contribuições que oferecem.
midor e ao mesmo tempo a gente cria um laço de
amizade, e isso faz com que as pessoas conheçam
mais o que é e como a gente trabalha com o ali- Critério para ingresso nas
mento orgânico. (Agricultora 8/feirante). Feiras Orgânicas: inclusivo
Sabourin35 discute as formas de organização
ou excludente para as
dos agricultores por meio de relações e estru- famílias agricultoras?
turas econômicas e sociais de ‘reciprocidade’.
Para o autor, a reciprocidade na organização Analisando o processo de implementação das
da produção e da comercialização agrícola Feiras, de 1995 a 2016, dividido em períodos
permite outro olhar sobre as relações econô- de governo, percebe-se que, ao longo desses
micas e sociais no mundo rural, que difere das anos, houve um fluxo crescente até 2008 e
relações de intercâmbio do mercado capita- depois começou a decrescer. O maior número
lista entre produtor e consumidor, sendo um de novas Feiras implantadas foi entre os anos
potencial mobilizador de laço social. de 2005 e 2008.
Como refere um dos entrevistados da secre- De acordo com os relatos de trabalhadores/
taria de abastecimento: “[...] essa forma direta gestores e técnicos da SMAB, a dificuldade na
de comercialização, do produtor para o consu- ampliação das Feiras foi devido a uma diminuição
midor, gera uma credibilidade grande e uma da procura por esses espaços pelos agricultores:
fidelidade, faz toda a diferença” (Trabalhador 1/
SMAB). Sobre esse aspecto, Perez-Cassariano [...] a gente tem dificuldades de encontrar per-
et al.36 defendem que a produção ecológica missionários para preencher vagas nas feiras,
de alimentos da agricultura familiar deve quando abre uma feira nova, se abrir dez vagas,
priorizar ‘os circuitos de proximidade’ entre você não consegue dez produtores. (Trabalhadora
quem produz e quem consome. Os circuitos 5/SMAB).
de proximidade não se restringem apenas à
dimensão espacial ou geográfica, busca-se pela Já os agricultores e agricultoras/feiran-
proximidade social entre seus integrantes para tes relatam que essa baixa procura se dá,

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550 Carvalho SM, Bezerra I, Rigon SA, Cassarino JP

principalmente, pela forma como ocorre a Agricultura Familiar (PAA), pioneiro nessa
concessão da permissão de uso das barracas. modalidade, demonstrou que é possível com
A política adotada pela prefeitura de essa nova concepção realizar aquisição de
Curitiba-PR define que, para acesso a uma alimentos com transparência e respeito aos
barraca na Feira Orgânica, seja realizado um princípios da administração pública.
processo licitatório para permissão de uso Na prática, os trabalhadores/gestores e téc-
de espaços públicos, na modalidade ‘con- nicos da SMAB não consideram o processo
corrência’, com base na Lei nº 8.666/93 que licitatório/tipo concorrência como um fator
instituiu normas para licitações e contratos limitante que afeta o acesso do agricultor(a)
da Administração Pública. O julgamento das familiar às Feiras; no entanto, reconhecem
propostas tem como base a maior oferta pelo que as pessoas interessadas têm dificuldades
lote, de acordo com o preço mínimo da pro- com a documentação e com o entendimento
posta, que, no caso da Feira Orgânica, é de R$ do edital:
100,0037,38. Para os(as) agricultores(as) esse
processo não se adequa à realidade da agri- [...] o que a gente percebe é que os agricultores,
cultura familiar, conforme pode-se observar muitas vezes, têm dificuldade de acessar o edital, o
no depoimento a seguir: pessoal aqui do administrativo avisa a eles, orienta,
chama pra participar, eles precisam um pouco dessa
[...] Hoje está mais difícil, o que está errado é que se ajuda nesse aspecto. (Trabalhadora 3/SMAB).
avalia os produtores não pela qualidade dele, mas
pelo que é inserido num envelope da licitação e os Diante das dificuldades geradas pelo pro-
valores que são oferecidos. Estou vendo que hoje a cesso licitatório e que limitam a participação
oportunidade do produtor que quer realmente fazer da agricultura familiar no acesso às feiras,
a mudança no meio rural está ficando difícil, porque percebe-se a necessidade de um olhar mais
a mudança tem que acontecer lá na agricultura, criterioso sobre essa forma de ingresso que
lá no meio rural, lá na propriedade do produtor. exclui agricultores com menor poder aquisiti-
(Agricultor 6/feirante). vo. Para isso, é interessante considerar a possi-
bilidade de incluir na política e no processo de
Quando abre um ponto de feira você coloca num concessão da ‘permissão de uso das barracas’
envelope o valor, aí tem uns que dão R$ 500 e o princípio da equidade social, de forma a dar
outros dão R$ 4 mil, então acho complicado. Para uma maior oportunidade ao agricultor familiar
o pequeno produtor é inviável, hoje o pequeno pro- de mais baixa renda a ingressar nas Feiras,
dutor para entrar numa feira tem que comprar uma eliminando, assim, as possíveis barreiras de
barraca, ter um transporte, não é fácil. (Agricultor ingresso e ainda provendo a essas famílias
2/feirante). agricultoras o devido apoio e estímulo para a
produção agroecológica.
Perez-Cassarino et al.36 chamam a atenção
para o fato de que a Lei de Licitações, até o
ano de 2009, constituía-se em um ponto de Considerações finais
limitação para a participação dos agricultores
familiares nas compras públicas de alimentos. A análise da trajetória histórica das Feiras
A partir de então, mediante a aprovação da Lei Orgânicas e do seu funcionamento demonstrou
nº 11.94739, passa a ser possível a aquisição de sua importância como referência de política
alimentos para a alimentação escolar direta- pública de abastecimento de alimentos e pos-
mente da agricultura familiar com a dispensa sibilitou identificar os fatores que facilitam ou
da licitação. Essa experiência exitosa, baseada interferem na disponibilidade de alimentos
no Programa de Aquisição de Alimentos da orgânicos e/ou agroecológicos nesses espaços.

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Feiras Orgânicas enquanto política de abastecimento alimentar e promoção da saúde: um estudo de caso 551

Considerando que a democratização do acesso forma a adequar o processo de ingresso às


é uma meta presente no Plano Municipal de Feiras à realidade da agricultura familiar.
SAN de Curitiba-PR, percebe-se a necessidade Finalmente, ressalta-se a importância de
de descentralização das Feiras para bairros ações e políticas de abastecimento alimen-
mais periféricos da cidade ser viabilizada. tar que promovam e fortaleçam o espaço das
O preço dos alimentos comercializados nas Feiras Orgânicas enquanto estratégia de oferta
Feiras é ainda fator limitante para o acesso. democrática de alimentos saudáveis e de pro-
Ainda assim, a realização da produção local e moção da SSAN, com vistas a impulsionar o
sem o atravessador são aspectos relevantes que desenvolvimento de sistemas agroalimentares
possibilitam a definição de preços mais aces- saudáveis e sustentáveis, mediante à adoção
síveis. A ampliação das políticas de fomento de práticas alimentares voltadas à promoção
à agricultura familiar orgânica e/ou agroeco- da saúde tanto no campo como na cidade.
lógica, que contemplem assistência técnica,
financiamento adequado, apoio ao transporte
e à comercialização, além do financiamento Colaboradores
da pesquisa científica, colaborariam para o
aumento da produção e do acesso. É neces- Carvalho SM (0000-0002-6505-1074)*,
sário que a concessão da permissão de uso Bezerra I (0000-0002-0513-3545)*, Rigon
do espaço da feira seja pautada em critérios, SA (0000-0001-8510-4033)* e Cassarino JP
como a inclusão social, a questão ambiental (0000-0002-4322-9396)*, contribuíram igual-
e relacionados com a promoção da saúde, de mente para a elaboração do manuscrito. s

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SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 542-554, Jun 2022


Feiras Orgânicas enquanto política de abastecimento alimentar e promoção da saúde: um estudo de caso 553

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menta as atividades das Feiras Orgânicas. Diário Ofi- 246.
cial do Município. 23 Out 2007.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 542-554, Jun 2022


554 Carvalho SM, Bezerra I, Rigon SA, Cassarino JP

37. Curitiba. Secretaria Municipal de Abastecimento. 39. Brasil. Lei nº 11.947, de 16 de junho de 2009. Dispõe
Aviso de Licitação/Edital nº 137/2011. Concorrên- sobre o atendimento da alimentação escolar e do Pro-
cia nº 065/2011. Curitiba: Comissão Permanente de grama Dinheiro Direto na Escola aos alunos da edu-
Licitação – CPL; 2011. cação básica. Diário Oficial da União. 16 Jun 2009.

38. Curitiba. Secretaria Municipal de Abastecimento.


Recebido em 30/09/2020
Edital de Concorrência nº 016/2016 – SMAB. Con- Aprovado em 13/07/2021
Conflito de interesses: inexistente
corrência para ocupação e exploração de 44 (quaren-
Suporte financeiro: não houve
ta e quatro) espaços públicos, distribuídos em lotes,
destinados a comercialização de gêneros e produtos
alimentícios. Curitiba: Comissão Permanente de Li-
citação – CPL; 2016.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. Especial 2, P. 542-554, Jun 2022


RESENHA | CRITICAL REVIEW 555

Direitos dos agricultores: o legado de


Juliana Santilli na interface entre as relações
jurídicas e a agrobiodiversidade brasileira
Naiara Andreoli Bittencourt1

DOI: 10.1590/0103-11042022E237

DE BENS COMUNS A MERCADORIAS. As sementes, mudas, raízes, plantas medicinais, foram


sendo ‘cercadas’ pari passu ao avanço industrial agrícola. O que era de uso comum e de co-
nhecimento compartilhado passou a ter nome, proprietário, regras de uso e plantio, registros,
cadastros, selos e, sobretudo, segurança jurídica. Circulação, troca, multiplicação de sementes
como prática cultural e de sobrevivência dos povos foram paulatinamente apropriadas pelo
modo de circulação de mercadorias regulado por relações jurídicas próprias.
O capitalismo requereu, para sua expansão, formas de homogeneização da agrobio-
diversidade, padronizando na métrica da mercadoria o que era múltiplo e diverso. O
contrato, guiado por um rito legislativo, buscou tomar o lugar do intercâmbio gerado
pelos mutirões, pelas receitas caseiras, pelo roçado comunitário, pela dádiva, pela cultura.
Contudo, enquanto o cercamento econômico e jurídico avança, padronizando, homo-
geneizando, estabilizando, pipocam as organizações e os movimentos que defendem a
permanência de seus modos de fazer, criar e viver. Crioula, tradicional, alternativa, local
– são os nomes da resistência que agricultores familiares, camponeses, povos indígenas,
comunidades quilombolas e tradicionais atribuem aos seus maiores ‘bens multiplicado-
res’. E sementes não são apenas os grãos, “mas todo e qualquer material de propagação
vegetal que encerre em si a vida de uma planta” 1(30) são também tubérculos, raízes,
mudas, ramas. É esse embate que nos apresenta Juliana Santilli (in memoriam) em seu
livro ‘Agrobiodiversidade e direitos dos agricultores’. Jurista, mas de escrita fluida, como
uma boa prosa camponesa, Santilli nos convida a percorrer os caminhos jurídicos, polí-
ticos, econômicos e culturais das relações em agrobiodiversidade, segurança alimentar,
desenvolvimento agrário e socioambientalismo. Mesmo aqueles que veem com receio as
leituras ‘jurídicas’, enveredam-se pelas construções da autora com facilidade, desnudando
as tramas entre direito, agronomia, economia, ecologia, biologia, genética, antropologia.
O seu legado para o entendimento facilitado do direito dos agricultores no Brasil é
1 Universidade
inestimável. Sempre atenta e acolhedora às demandas dos movimentos sociais camponeses,
Federal do
Paraná (UFPR) – Curitiba Juliana permanece como referência na ‘tradução’ do legislado, do julgado, do regulamen-
(PR), Brasil. tado no campo da agrobiodiversidade para uma linguagem compreensível a quem esses
naiara.a.bittencourt@gmail.
com instrumentos se destinam. E não é somente traduzir enquanto ‘explicação do juridiquês’.

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 555-557, JUN 2022
556 Bittencourt NA

É uma forma de tradução que desvela as ameaças, das monoculturas, no entanto, não elevaram
os contornos, os motivos, as intenções. É uma a qualidade ou a quantidade da alimentação
intérprete técnica, mas que também se posiciona da população brasileira e implicaram conse-
– pela conservação da agrobiodiversidade e pela quências brutais, como a erosão genética e a
proteção e impulsão daqueles que a multiplicam perda de variedades crioulas.
com solidariedade e sociabilidade. É essa multiplicidade que explica o con-
No caminho teórico que percorre a autora, ceito-chave abordado por Santilli: a ‘agro-
o capítulo de abertura traz elementos sobre os biodiversidade’, que inclui a diversidade de
biodiversos ecossistemas mundiais, com ênfase espécies, genética e dos sistemas agrícolas
à agricultura brasileira, desde o período pré- ou cultivados. É o resultado dinâmico, ativo
-colombiano e as complexidades socioculturais e vivo da interação e intervenção criativa dos
das sociedades que habitavam os diferentes seres humanos com os ecossistemas com o
biomas deste território. Como os Açutubas e intuito de multiplicá-los, torná-los mais ricos.
Manacapurus na Amazônia, os povos samba- A agrobiodiversidade tem relação direta com a
quieiros na faixa litorânea do Rio Grande do Sul dimensão cultural da seleção e armazenamen-
à Bahia e do Maranhão ao Pará, os Guaranis, os to de sementes, já que se escolhe multiplicar
Carijós, entre outros. Com o avanço do capitalis- cada semente com base em necessidades sin-
mo, que se edifica com a modernidade e a invasão gulares daquela comunidade que a seleciona.
europeia, também se constroem contraposições Além disso, é, também, saúde: humana em razão
de modelos de agricultura. dos nutrientes e da diversidade alimentar e
A expansão do modelo de plantation e sua ambiental como possibilidade de resiliência
estrutura patriarcal não subsistiram sozinhas. em estresses ou mudanças climáticas. A erosão
Camponeses, roceiros, caipiras, caiçaras, caboclos genética e a redução das variedades se apresen-
e sertanejos erigiram modelos de rotação e pousio tam muito mais instáveis e suscetíveis a pragas,
do solo, construindo a agricultura camponesa de pestes, doenças. Do mesmo modo que a redução
trabalho familiar, com origem indígena e utilizada dos alimentos que chegam a nossa mesa, que
por inúmeros povos e comunidades tradicionais. acarretam doenças crônicas. Monoculturas são
A diversidade dos ecossistemas e as culturas altamente dependentes de agrotóxicos, intoxi-
dos povos se enraizaram. Para os camponeses, cando trabalhadores rurais no campo e consu-
o que se plantava também era o que se comia. midores por meio de alimentos contaminados.
Os animais, assim como sementes transplanta- É a partir dessas premissas e da contrapo-
das, adaptaram-se geneticamente aos territórios sição de dois modelos que a autora adentra
brasileiros, desenvolvendo uma diversidade de no debate das relações jurídicas, estruturado
agriculturas camponesas. em dois grandes blocos: o sistema jurídico e o
A constante tensão entre esses modelos e direito dos agricultores. Não é por acaso que
disputas se dá no âmbito econômico, territo- o primeiro, tratando-se de diversas legisla-
rial, mas sobremaneira no campo jurídico. O ções, acordos internacionais e regulamentos,
processo de cercamento das sementes inicia- seja chamado por Santilli de ‘sistema’. Já o
-se como o cercamento territorial: a expul- segundo bloco, o dos ‘direitos’, ainda que
são desses sujeitos coletivos de suas terras retrate o cenário de outros países, anuncia
e territórios se dá concomitantemente aos um ‘porvir’, uma reivindicação de garantias
avanços das monoculturas para exportação. aos camponeses e povos tradicionais.
A agricultura ‘patronal’ se ‘moderniza’ em Analisando como os sistemas internacionais
agronegócio, ampliando a dependência de impactaram as leis de sementes e proteção de
pacotes tecnológicos e artificializando ambien- cultivares brasileiras, Santilli alerta para a preva-
tes, controlados por empresas agroindustriais. lência de uma perspectiva linear e evolucionista,
O avanço do agronegócio e a produtividade com impulsionamento jurídico e econômico a um

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 555-557, JUN 2022


Direitos dos agricultores: o legado de Juliana Santilli na interface entre as relações jurídicas e a agrobiodiversidade brasileira 557

sistema formal comercial de sementes patentea- A conclusão é certeira: tais instrumentos


das, padronizadas, homogeneizadas. O desenvol- agravam a perda da diversidade agrícola e socio-
vimento de tecnologias híbridas e transgênicas cultural. Santilli aponta saídas para a proteção da
de sementes, no século XX, despertou o interesse agrobiodiversidade, protegendo terras, territórios
de empresas garantirem que houvesse compen- e os próprios agricultores, definindo zonas de
sação pela propriedade intelectual, industrial e sistemas agrícolas tradicionais, valorização dos
comercial sobre essas variedades. produtos da agrobiodiversidade e promoção de
A moldagem de um novo formato jurídico que políticas públicas. Não é mapeando, classificando,
transformasse bens comuns em mercadorias é registrando, mercantilizando que se incentiva
então aprovada no marco mundial na Convenção a agrobiodiversidade, próprios das relações ju-
Internacional para a Proteção das Obtenções rídicas abordadas, mas dando liberdade a sua
Vegetais em 1961 (Upov), revista em 1972, em circulação, sem, contudo, facilitar o acesso e a
1991, e potencializada em 1994 com o Acordo biopirataria por agentes externos.
sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade As resistências e as estratégias ao cercamento,
Intelectual Relacionados ao Comércio (Trips), da abordadas do começo ao fim da obra, exempli-
Organização Mundial do Comércio. Os acordos ficam também a metodologia utilizada. Não é
e as convenções internacionais balizaram o um trabalho individual, embora a autora tenha
sistema jurídico brasileiro, que adota (até hoje) os méritos inquestionáveis de sistematizar livro
a versão de 1978 da Upov na Lei de Cultivares de tamanha envergadura, mas é, sobretudo, uma
(Lei nº 9.456/1997) e na Lei de Sementes e Mudas obra coletiva, com posições, entrevistas, docu-
(Lei nº 10.711/2003), que priorizam o sistema mentos, cartas que representam agricultores,
formal e restringem as sementes crioulas de camponeses e organizações agroecológicas. O
livre circulação, tratando-as como exceções, e convite à leitura desse livro, repleta de reflexões
não reconhecendo o trabalho dos agricultores. e elementos, é, também, um chamado ao conhe-
Sob essa lente, ainda que tragam pequenas ga- cimento sobre a história, da história que cultivam
rantias aos agricultores familiares, camponeses os agricultores. A história das sementes, seus
e comunidades locais, também são abordados cercamentos e apropriações, mas também do
pela autora a Convenção Sobre a Diversidade seu brotar.
Biológica, o Tratado Internacional sobre Recursos
Fitogenéticos para a Alimentação e Agricultura
(TIRFAA-FAO) ou mesmo a Medida Provisória Colaboradora
nº 2.186-16/2001 que regulava acesso e repartição
de benefícios aos conhecimentos tradicionais e Bittencourt NA (0000-0002-6983-2222)*
patrimônio genético, hoje regulado pela Lei da é responsável pela elaboração do manus-
Biodiversidade (Lei nº 13.123/2015). crito. s

Referência

1. Santilli J. Agrobiodiversidade e direitos dos agricul-


tores. São Paulo: Peirópolis; 2009.

Recebido em 30/09/2020
Aprovado em 06/09/2021
Conflito de interesses: inexistente *Orcid (Open Researcher
Suporte financeiro: não houve and Contributor ID).

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 555-557, JUN 2022


558 RESENHA | CRITICAL REVIEW

Porto MF, Rocha DF, Fasanello MT. Saúde,


ecologias e emancipação: conhecimentos
alternativos em tempos de crise(s)
Guilherme Franco Netto1, Mariano Andrade da Silva2, Aline do Monte Gurgel3

DOI: 10.1590/0103-11042022E238

A PUBLICAÇÃO DO LIVRO ‘SAÚDE, ECOLOGIAS E EMANCIPAÇÃO: conhecimentos alternativos em


tempos de crise(s)’1, dos autores Marcelo Firpo Porto, Diogo Ferreira Rocha e Marina Tarnowiski
Fasanello, mostra-se um aporte conceitual, teórico e metodológico imprescindível no subsídio
de pesquisadores, professores universitários e estudantes para o desafio de produzir conheci-
mento e práticas em articulação com movimentos e lutas sociais. Trata-se de um marco para
a própria saúde coletiva ao anunciar uma renovação teórica crítica para o enfrentamento das
crises contemporâneas em suas várias dimensões – sociais, sanitárias, ecológica e civilizatória.
Em cinco capítulos, o leitor encontrará caminhos para operacionalizar metodologias sen-
síveis por meio do diálogo intercultural e estratégias co-labor-ativas: após essa introdução, no
segundo capítulo, é apresentada a articulação conceitual de três campos de conhecimento –
saúde coletiva, ecologia política e os referenciais pós-coloniais, base para as quatro noções de
justiça: social, sanitária, ecológica e cognitiva. O terceiro capítulo analisa a questão ambiental
a partir da ecologia política baseada no projeto do Mapa de Conflitos Envolvendo Injustiça
Ambiental e Saúde no Brasil, apontando resistências e alternativas a partir das lutas sociais
e territoriais. O quarto capítulo apresenta a proposição de metodologias colaborativas e não
1 Fundação Oswaldo Cruz extrativistas, inspirada em Boaventura Santos. No quinto capítulo, encontram-se sugestões de
(Fiocruz), Vice-Presidência
de Ambiente, Atenção agendas de pesquisa, a partir da saúde coletiva, que apontam possibilidades emergentes de
e Promoção da Saúde processos emancipatórios.
(VPAAPS) – Rio de Janeiro
(RJ), Brasil. A obra expressa a produção do Núcleo Ecologias, Epistemologias e Promoção Emancipatória
2 Fundação Oswaldo
da Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca – Fundação Oswaldo Cruz.
Cruz (Fiocruz), Centro de Remetendo a uma visão integrada, os autores buscam contribuir para a transformação e o
Estudos e Pesquisas em fortalecimento de processos emancipatórios de povos e comunidades, tanto os tradicionais de
Emergências e Desastres
em Saúde (Cepedes) – Rio populações dos campos, florestas e águas como aqueles espaços periféricos urbanos. O necessário
de Janeiro (RJ), Brasil. desenvolvimento de diálogos interdisciplinares e interculturais na produção do conhecimento
marianoandradesilva@
gmail.com com, e não sobre os sujeitos oprimidos e radicalmente excluídos exige assumir o desafio de
3 Fundação
descolonizar e reinventar as bases epistemológicas atuais, valorizando outras cosmologias e
Oswaldo Cruz
(Fiocruz), Instituto Aggeu epistemologias e incorporando os saberes e o diálogo com movimentos que buscam o direito
Magalhães (IAM) – Recife de existir para além do modelo de desenvolvimento econômico hegemônico eurocêntrico e
(PE), Brasil.
suas facetas violentas e fascistas.

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 558-560, JUN 2022 meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado.
Porto MF, Rocha DF, Fasanello MT. Saúde, ecologias e emancipação: conhecimentos alternativos em tempos de crise(s) 559

A globalização tem implicado crises em quanto aos processos vitais que os mantêm
ritmos e escalas planetárias. A publicação saudáveis, entendidos como o aprimoramento
incide justamente na necessidade de repensar da inteligência pessoal e comunitária e suas di-
nossas existências e formas de viver em termos mensões mentais, corporais e afetivas, próximo
societários. Busca-se assim superar as crises à ideia de sabedoria. Essas manobras cogniti-
social, ecológica, econômica e democrática vas decorrem da excessiva artificialização da
contemporâneas, a partir da compreensão e vida moderna e da desconexão de mente com
da conexão dos processos emancipatórios vol- o corpo e a natureza, uma forma de alienação
tados à promoção de justiça, dignidade, saúde pouco explorada pelo intelectualismo da era
e direitos territo riais, por meio da ampliação da razão. Recorrem a Ivan Illich (Nêmesis da
da noção de emancipação. Contribui para a Medicina) que alertava para a ameaça da insti-
construção de um pensamento que adote novos tucionalização e desumanização da medicina
olhares e permeie as bases de compreensão da moderna, associada à perda da autonomia das
sociedade atual, com foco nos efeitos do modo pessoas e comunidades para cuidarem da sua
de funcionamento errático da ‘modernidade’ e própria saúde.
seus efeitos sobre o ambiente e as condições de A ciência moderna se afastou progressiva-
reprodução da vida de povos e grupos sociais. mente da compreensão dos processos vitais e
A reinvenção da emancipação social emerge, dos cíclicos da natureza. Em contrapartida, a
portanto, como estratégia de enfrentamento tecnologia em saúde forneceu à saúde pública
da crise civilizatória mais ampla da moderni- um enorme poder de ‘cura’, prevenção e me-
dade, que articula os eixos de dominação do lhoria na qualidade e longevidade de vida.
capitalismo, o colonialismo racista e o hete- Entretanto, ao reduzir a complexidade das
ropatriarcado, que afetam principalmente os interações entre as esferas social, comunitá-
povos e grupos sociais do Sul global. ria, ambiental e biológica a um conhecimento
No ‘Sistema Mundo’, a crise e a destruição técnico ‘neutro’, renunciou a seu papel poli-
se tornam componentes essenciais da dinâ- tizador e de intervenção sobre as condições
mica de seu funcionamento2. A saúde como sociais, econômicas e ambientais. De um lado,
metáfora é potente para pensar as crises e as a ciência moderna apresenta grande facilidade
possibilidades de superação. Influenciados de operacionalização do combate a doenças,
pelas obras de Georges Ganguilhem, episte- de outro, reduz as estratégias de promoção da
mologia histórica sobre o normal e o patoló- saúde. A principal consequência desse enfoque
gico; Charles Perrow, acidentes tecnológicos biomédico é o reducionismo das causas dos
complexos; e Brian Wynne, sociologia dos problemas de saúde, sejam as consideradas
riscos industriais ‘anormalidade normal’, os externas decorrentes dos processos ambien-
autores postulam que, no desfecho da crise, a tais e sociais, sejam as internas decorrentes
perspectiva da saúde se depara em uma dupla dos processos espirituais e anímicos, que, na
encruzilhada com três caminhos possíveis: 1. perspectiva tradicional, são renomeados de
a continuidade do desequilíbrio patológico mentais, psíquicos e psicológicos, ou seja,
‘anormalidade normal’ enquanto normalização morte e sofrimento desnecessários, causados
da nova condição; 2. o prenúncio do fim do por formas de organização social opressivas
ciclo patológico, sendo, em tese, o objetivo de e distópicas.
toda medicina, tradicional ou científica; e 3. o Assim, ainda subjazem os embates entre
desfecho derradeiro, com a chegada da morte. a medicina social e coletiva com as visões
Os autores argumentam que a modernidade biomédicas reducionistas que seguem ope-
não tem fortalecido o caminho da cura em seu rando hegemonicamente no campo da
sentido mais pleno. Ao contrário, cria subter- saúde. Esse embate tem sido enfrentado nos
fúgio cognitivo nos planos individual e coletivo últimos 40 anos no Brasil e em diversos países

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 558-560, JUN 2022


560 Franco Netto G, Silva MA, Gurgel AM

latino-americanos pelo desenvolvimento da saberes a partir da interação de diversas lingua-


teoria da Determinação Social da Saúde. gens e narrativas cientistas, artísticas, poético-
Entretanto, esses avanços encontram-se ame- -musicais e populares que integrem razão e afeto.
açados pela ascensão do neoliberalismo, do A questão fundamental não é o negacionismos
fascismo social e do negacionismo. dos avanços obtidos pela ciência moderna. Os
Com a perda do sentido da morte como avanços nesse campo, na visão dos autores,
parte da vida decretado pela modernidade, dependerão dos rompimentos das linhas abis-
dimensões como espiritualidade, dignidade sais que deslegitimam todas as outras formas
e mistério foram relegadas aos planos artís- de conhecimento não validáveis pelo método
ticos e religiosos, apartando-as da produção científico e na construção de uma relação mais
de conhecimentos, resultando na estagnação horizontal e dialógica entre diferentes saberes,
de um diálogo respeitoso e produtivo com as o que o filósofo Edgar Morin chamou de ciência
diferentes percepções presentes nas cosmo- com consciência, e que Sérgio Arouca, no campo
visões, culturas e modos de vida do Sul global, da saúde, instigou-nos a compreender enquan-
consideradas atrasadas, primitivas, selvagens, to processo civilizatório, visionando o Sistema
no máximo exóticas. De outro lado, foram Único de Saúde (SUS).
produzidas novas amarras em nome da con- Ao final, os autores fornecem ferramentas
cepção moderna de liberdade e realização que essenciais para a compreensão e o enfrentamento
acarretaram o apagamento de ideias de ciclos, das crises contemporâneas, superando os desafios
finitude e continuidade. Contudo, o desafio para uma transição civilizatória mediada por
emancipatório para a transição civilizatória processos emancipatórios e destacando a im-
passa, na perspectiva dos autores, pelo resgate portância de estabelecer pontes entre o passado
da natureza, das noções de ciclo e finitude, e o presente em direção a outros futuros que rea-
mas também de encantamento e contempla- proximem economia, cultura, ciência e natureza.
ção diante dos mistérios sem os quais a vida
humana se empobrece e se coisifica em termos
de consciência e complexidade. Colaboradores
Ainda, em tempos de pandemia de Covid-19, o
momento é propício para buscarmos caminhos Silva MA (0000-0002-6021-4794)* contribuiu
que apresentem novas chaves de leitura, novas para redação do texto, revisão do manuscrito
formas de pensar e sentir que nos animem na e aprovação da versão final. Franco Netto G
tarefa de produzir conhecimentos e práticas (0000-0002-8861-8897)* e Gurgel AM (0000-
mediante encontros sensíveis e engajados, en- 0002-5981-3597)* contribuíram para redação
volvendo diversos sujeitos sociais e seus múltiplos do texto e revisão do manuscrito. s

Referências

1. Porto MF, Rocha DF, Fasanello MT. Saúde, ecologias


e emancipação: conhecimentos alternativos em tem-
pos de crise(s). São Paulo: Hucitec; 2021.
Recebido em 23/02/2022
Aprovado em 08/04/2022
Conflito de interesses: inexistente
2. Wallerstein IM. O fim do mundo como o concebe-
Suporte financeiro: não houve
*Orcid (Open Researcher
mos: ciência social para o século XXI. Rio de janei-
and Contributor ID). ro: Revan; 2002.

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 46, N. ESPECIAL 2, P. 558-560, JUN 2022


Instruções aos autores para preparação e submissão de artigos

Saúde em Debate Transparência e Boas Práticas em Publicações Acadêmicas’


recomendadas pelo Committee on Publication Ethics (Cope):
Instruções aos autores www.publicationethics.org. Essas recomendações, relativas
à integridade e padrões éticos na condução e no relatório de
ATUALIZADAS EM FEVEREIRO DE 2021 pesquisas, estão disponíveis na URL http://www.icmje.org/
urm_main.html. A versão para o português foi publicada na
Rev Port Clin Geral 1997, 14:159-174. A ‘Saúde em Debate’ se-
gue o ‘Guia de Boas Práticas para o Fortalecimento da Ética
na Publicação Científica’ do SciELO: https://wp.scielo.org/wp-
ESCOPO E POLÍTICA EDITORIAL -content/uploads/Guia-de-Boas-Praticas-para-o-Fortaleci-
mento-da-Etica-na-Publicacao-Cientifica.pdf. Recomenda-se
A revista ‘Saúde em Debate’, criada em 1976, é uma publicação a leitura pelos autores.
do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) que tem como
objetivo divulgar estudos, pesquisas e reflexões que contribuam A ‘Saúde em Debate’ não cobra taxas dos autores para a sub-
para o debate no campo da saúde coletiva, em especial os que missão ou para a publicação de trabalhos, mas, caso o artigo seja
tratem de temas relacionados com a política, o planejamento, a aprovado para editoração, fica sob a responsabilidade dos autores
gestão e a avaliação em saúde. Valorizam-se estudos feitos a par- a revisão de línguas (obrigatória) e a tradução do artigo para a
tir de diferentes abordagens teórico-metodológicas e com a con- língua inglesa (opcional), com base em uma lista de revisores e
tribuição de distintos ramos das ciências. tradutores indicados pela revista.

A periodicidade da revista é trimestral, e, a critério dos editores, Antes de serem enviados para avaliação pelos pares, os artigos
são publicados números especiais que seguem o mesmo proces- submetidos à revista ‘Saúde em Debate’ passam por softwares de-
so de submissão e avaliação dos números regulares. tectores de plágio. Assim, é possível que os autores sejam ques-
tionados sobre informações identificadas pela ferramenta para
A ‘Saúde em Debate’ aceita trabalhos originais e inéditos que que garantam a originalidade dos manuscritos, referenciando
aportem contribuições relevantes para o conhecimento científico todas as fontes de pesquisa utilizadas. O plágio é um comporta-
acumulado na área. mento editorial inaceitável, dessa forma, caso seja comprovada
sua existência, os autores envolvidos não poderão submeter no-
A revista conta com um Conselho Editorial que contribui para a de- vos artigos para a revista.
finição de sua política editorial. Seus membros integram o Comitê
Editorial e/ou o banco de pareceristas em suas áreas específicas. NOTA: A produção editorial do Cebes é resultado de apoios insti-
tucionais e individuais. A sua colaboração para que a revista ‘Saú-
Os trabalhos submetidos à revista são de total e exclusiva respon- de em Debate’ continue sendo um espaço democrático de divul-
sabilidade dos autores e não podem ser apresentados simultane- gação de conhecimentos críticos no campo da saúde se dará por
amente a outro periódico, na íntegra ou parcialmente. meio da associação dos autores ao Cebes. Para se associar, entre
no site http://www.cebes.org.br.
Em caso de aprovação e publicação do trabalho no periódico, os
direitos autorais a ele referentes se tornarão propriedade da revis- ORIENTAÇÕES PARA A PREPARAÇÃO E SUBMISSÃO
ta, que adota a Licença Creative Commons CC-BY (https://crea- DOS TRABALHOS
tivecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt) e a política de acesso
aberto, portanto, os textos estão disponíveis para que qualquer Os trabalhos devem ser submetidos pelo site: www.saudeemdebate.
pessoa leia, baixe, copie, imprima, compartilhe, reutilize e distribua, org.br. Após seu cadastramento, o autor responsável pela submissão
com a devida citação da fonte e autoria. Nesses casos, nenhuma criará seu login e senha, para o acompanhamento do trâmite.
permissão é necessária por parte dos autores ou dos editores.
Modalidades de textos aceitos para publicação
A ‘Saúde em Debate’ aceita artigos em preprints de bases de dados
nacionais e internacionais reconhecidas academicamente como o
SciELO preprints (https://preprints.scielo.org). Não é obrigatória a 1. Artigo original: resultado de investigação empírica que pos-
submissão do artigo em preprint e isso não impede a submissão sa ser generalizado ou replicado. O texto deve conter no máxi-
concomitante à revista ‘Saúde em Debate’. mo 6.000 palavras.

A revista adota as ‘Normas para apresentação de artigos pro- 2. Ensaio: análise crítica sobre tema específico de relevância e
postos para publicação em revistas médicas’ – International interesse para a conjuntura das políticas de saúde brasileira e/ou
Committee of Medical Journal Editors (ICMJE), ‘Princípios de internacional. O texto deve conter no máximo 7.000 palavras.

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3. Revisão sistemática ou integrativa: revisões críticas da lite- resultados etc.), citações ou siglas, à exceção de abreviaturas re-
ratura sobre tema atual da saúde. A revisão sistemática sinte- conhecidas internacionalmente.
tiza rigorosamente pesquisas relacionadas com uma questão.
A integrativa fornece informações mais amplas sobre o assun- Palavras-chave: ao final do resumo, incluir de três a cinco pala-
to. O texto deve conter no máximo 8.000 palavras. vras-chave, separadas por ponto (apenas a primeira inicial maiús-
cula), utilizando os termos apresentados no vocabulário estrutu-
4. Artigo de opinião: exclusivo para autores convidados pelo rado (DeCS), disponíveis em: www.decs.bvs.br.
Comitê Editorial, com tamanho máximo de 7.000 palavras.
Neste formato, não são exigidos resumo e abstract. Registro de ensaios clínicos: a ‘Saúde em Debate’ apoia as políticas
para registro de ensaios clínicos da Organização Mundial da Saú-
5. Relato de experiência: descrição de experiências acadêmi- de (OMS) e do International Committee of Medical Journal Editors
cas, assistenciais ou de extensão, com até 5.000 palavras que (ICMJE), reconhecendo, assim, sua importância para o registro e di-
aportem contribuições significativas para a área. vulgação internacional de informações sobre ensaios clínicos. Nesse
sentido, as pesquisas clínicas devem conter o número de identificação
6. Resenha: resenhas de livros de interesse para a área da saú- em um dos registros de ensaios clínicos validados pela OMS e ICMJE,
de coletiva, a critério do Comitê Editorial. Os textos deverão cujos endereços estão disponíveis em: http://www.icmje.org. Nestes
apresentar uma visão geral do conteúdo da obra, de seus pres- casos, o número de identificação deverá constar ao final do resumo.
supostos teóricos e do público a que se dirige, com tamanho
de até 1.200 palavras. A capa em alta resolução deve ser en- Ética em pesquisas envolvendo seres humanos: a publicação de
viada pelo sistema da revista. artigos com resultados de pesquisas envolvendo seres humanos
está condicionada ao cumprimento dos princípios éticos contidos
7. Documento e depoimento: trabalhos referentes a temas na Declaração de Helsinki, de 1964, reformulada em 1975, 1983,
de interesse histórico ou conjuntural, a critério do Comitê 1989, 1996, 2000 e 2008, da Associação Médica Mundial; além
Editorial. de atender às legislações específicas do país no qual a pesquisa foi
realizada, quando houver. Os artigos com pesquisas que envolve-
Importante: em todos os casos, o número máximo de palavras ram seres humanos deverão deixar claro, no último parágrafo, na
inclui o corpo do artigo e as referências. Não inclui título, resumo, seção de ‘Material e métodos’, o cumprimento dos princípios éticos
palavras-chave, tabelas, quadros, figuras e gráficos. e encaminhar declaração de responsabilidade no ato de submissão.

Respeita-se o estilo e a criatividade dos autores para a composi-


Preparação e submissão do texto ção do texto, no entanto, este deve contemplar elementos con-
vencionais, como:
O texto pode ser escrito em português, espanhol ou inglês. Deve ser
digitado no programa Microsoft® Word ou compatível, gravado em Introdução: com definição clara do problema investigado, justifi-
formato doc ou docx, para ser anexado no campo correspondente do cativa e objetivos;
formulário de submissão. Não deve conter qualquer informação que
possibilite identificar os autores ou instituições a que se vinculem. Material e métodos: descritos de forma objetiva e clara, permi-
tindo a reprodutibilidade da pesquisa. Caso ela envolva seres hu-
Digitar em folha padrão A4 (210X297mm), margem de 2,5 cm manos, deve ficar registrado o número do parecer de aprovação
em cada um dos quatro lados, fonte Times New Roman tamanho do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP).
12, espaçamento entre linhas de 1,5.
Resultados e discussão: podem ser apresentados juntos ou em
O texto deve conter: itens separados;

Título: que expresse clara e sucintamente o conteúdo do texto, Conclusões ou considerações finais: que depende do tipo de
contendo, no máximo, 15 palavras. O título deve ser escrito em pesquisa realizada;
negrito, apenas com iniciais maiúsculas para nomes próprios. O
texto em português e espanhol deve ter título na língua original e Referências: devem constar somente autores citados no texto
em inglês. O texto em inglês deve ter título em inglês e português. e seguir os Requisitos Uniformes de Manuscritos Submetidos a
Revistas Biomédicas, do ICMJE, utilizados para a preparação de
Resumo: em português e inglês ou em espanhol e inglês com, referências (conhecidos como ‘Estilo de Vancouver’). Para maio-
no máximo 200 palavras, no qual fiquem claros os objetivos, o res esclarecimentos, recomendamos consultar o Manual de Nor-
método empregado e as principais conclusões do trabalho. Deve malização de Referências (http://revista.saudeemdebate.org.br/
ser não estruturado, sem empregar tópicos (introdução, métodos, public/manualvancouver.pdf) elaborado pela editoria do Cebes.

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Instruções aos autores para preparação e submissão de artigos

OBSERVAÇÕES PROCESSO DE AVALIAÇÃO

A revista não utiliza sublinhados e negritos como grifo. Utilizar Todo original recebido pela revista ‘Saúde em Debate’ é subme-
aspas simples para chamar a atenção de expressões ou títulos de tido à análise prévia. Os trabalhos não conformes às normas de
obras. Exemplos: ‘porta de entrada’; ‘Saúde em Debate’. Palavras publicação da revista são devolvidos aos autores para adequação
em outros idiomas devem ser escritas em itálico, com exceção de e nova submissão.
nomes próprios.
Uma vez cumpridas integralmente as normas da revista, os ori-
Evitar o uso de iniciais maiúsculas no texto, com exceção das ab- ginais são apreciados pelo Comitê Editorial, composto pelo
solutamente necessárias. editor-chefe e por editores associados, que avalia a originalida-
de, abrangência, atualidade e atendimento à política editorial da
Depoimentos de sujeitos deverão ser apresentados em itálico revista. Os trabalhos recomendados pelo Comitê serão avaliados
e entre aspas duplas no corpo do texto (se menores que três por, no mínimo, dois pareceristas, indicados de acordo com o
linhas). Se forem maiores que três linhas, devem ser escritos tema do trabalho e sua expertise, que poderão aprovar, recusar e/
em itálico, sem aspas, destacados do texto, com recuo de 4 ou fazer recomendações de alterações aos autores.
cm, espaço simples e fonte 11.
A avaliação é feita pelo método duplo-cego, isto é, os nomes dos
Não utilizar notas de rodapé no texto. As marcações de notas de autores e dos pareceristas são omitidos durante todo o processo
rodapé, quando absolutamente indispensáveis, deverão ser so- de avaliação. Caso haja divergência de pareceres, o trabalho será
brescritas e sequenciais. encaminhado a um terceiro parecerista. Da mesma forma, o Co-
mitê Editorial pode, a seu critério, emitir um terceiro parecer. Cabe
Evitar repetições de dados ou informações nas diferentes partes aos pareceristas recomendar a aceitação, recusa ou reformulação
que compõem o texto. dos trabalhos. No caso de solicitação de reformulação, os autores
devem devolver o trabalho revisado dentro do prazo estipulado.
Figuras, gráficos, quadros e tabelas devem estar em alta resolução, Não havendo manifestação dos autores no prazo definido, o tra-
em preto e branco ou escala de cinza e submetidos em arquivos balho será excluído do sistema.
separados do texto, um a um, seguindo a ordem que aparecem no
estudo (devem ser numerados e conter título e fonte). No texto, O Comitê Editorial possui plena autoridade para decidir sobre a acei-
apenas identificar o local onde devem ser inseridos. O número de tação final do trabalho, bem como sobre as alterações efetuadas.
figuras, gráficos, quadros ou tabelas deverá ser, no máximo, de cin-
co por texto. O arquivo deve ser editável (não retirado de outros ar- Não serão admitidos acréscimos ou modificações depois da apro-
quivos) e, quando se tratar de imagens (fotografias, desenhos etc.), vação final do trabalho. Eventuais sugestões de modificações de
deve estar em alta resolução com no mínimo 300 DPI. estrutura ou de conteúdo por parte da editoria da revista serão
previamente acordadas com os autores por meio de comunicação
Em caso de uso de fotos, os sujeitos não podem ser identificados, a por e-mail.
menos que autorizem, por escrito, para fins de divulgação científica.
A versão diagramada (prova de prelo) será enviada, por e-mail,
Informações sobre os autores ao autor responsável pela correspondência para revisão final, que
deverá devolver no prazo estipulado.
A revista aceita, no máximo, sete autores por artigo. As informa-
ções devem ser incluídas apenas no formulário de submissão, OS DOCUMENTOS RELACIONADOS A SEGUIR DEVEM SER
contendo: nome completo, nome abreviado para citações biblio- DIGITALIZADOS E ENVIADOS PELO SISTEMA DA REVISTA
gráficas, instituições de vínculo com até três hierarquias, código NO MOMENTO DO CADASTRO DO ARTIGO.
Orcid (Open Researcher and Contributor ID) e e-mail.
1. Declaração de responsabilidade e cessão de direitos autorais
Financiamento
Todos os autores e coautores devem preencher e assinar a decla-
Os trabalhos científicos, quando financiados, devem identificar ração conforme modelo disponível em: http://revista.saudeemde-
a fonte de financiamento. A revista ‘Saúde em Debate’ atende à bate.org.br/public/declaracao.doc.
Portaria nº 206 de 2018 do Ministério da Educação/Fundação
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior/ 2. Parecer de Aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP)
Gabinete sobre citação obrigatória da Capes para obras produzi-
das ou publicadas, em qualquer meio, decorrentes de atividades No caso de pesquisas que envolvam seres humanos, realizadas
financiadas total ou parcialmente pela Capes. no Brasil, nos termos da Resolução nº 466, de 12 de dezembro

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Instruções aos autores para preparação e submissão de artigos

de 2012 do Conselho Nacional de Saúde, enviar documento de 2. Declaração de tradução


aprovação da pesquisa pelo Comitê de Ética em Pesquisa da ins-
tituição onde o trabalho foi realizado. No caso de instituições que Os artigos aprovados poderão ser traduzidos para o inglês a crité-
não disponham de um CEP, deverá ser apresentado o documento rio dos autores. Neste caso, a tradução será feita por profissional
do CEP pelo qual ela foi aprovada. Pesquisas realizadas em outros qualificado, com base em uma lista de tradutores indicados pela
países, anexar declaração indicando o cumprimento integral dos revista. O artigo traduzido deve vir acompanhado de declaração
princípios éticos e das legislações específicas. do tradutor.

DOCUMENTAÇÃO OBRIGATÓRIA A SER ENVIADA Endereço para correspondência


APÓS A APROVAÇÃO DO ARTIGO
Avenida Brasil, 4.036, sala 802
1. Declaração de revisão ortográfica e gramatical CEP 21040-361 – Manguinhos, Rio de Janeiro (RJ),
Brasil
Os artigos aprovados deverão passar por revisão ortográfica e Tel.: (21) 3882-9140/9140
gramatical feita por profissional qualificado, com base em uma Fax: (21) 2260-3782
lista de revisores indicados pela revista. O artigo revisado deve vir E-mail: revista@saudeemdebate.org.br
acompanhado de declaração do revisor.

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Instructions to authors for preparation and submission of articles

Saúde em Debate The Journal adopts the ‘Rules for the presentation of papers
submitted for publication in medical journals’ – International
INSTRUCTIONS TO AUTHORS Committee of Medical Journal Editors (ICMJE), ‘Principles of
Transparency and Good Practice in Academic Publications’
UPDATED IN FEBRUARY 2021 recommended by the Committee on Publication Ethics (Cope):
www.publicationethics.org. These recommendations, regarding
the integrity and ethical standards in the research’s development
and the reporting, are avaliable in the URL http://www.icmje.
org/urm_main.html. The portuguese version was published in
Rev Port Clin Geral 1997, 14:159-174. ‘Saúde em Debate’ follows
SCOPE AND EDITORIAL POLICY
the SciELO’s ‘Guide to Good Practices for the Strengthening of
Ethics in Scientific Publishing’: https://wp.scielo.org/wp-content/
The journal ‘Saúde em Debate’ (Health in Debate), created in uploads/Guia-de-Boas-Praticas-para-o-Fortalecimento-da-Etica
1976, is published by Centro Brasileiro de Estudos de Saúde -na-Publicacao-Cientifica.pdf. Authors are advised to read.
(Cebes) (Brazilian Center for Health Studies), that aims to
disseminate studies, researches and reflections that contribute to
No fees are charged from the authors for the submission or publication
the debate in the collective health field, especially those related
of articles; nevertheless, once the article has been approved for
to issues regarding policy, planning, management, work and
publication, the authors are responsible for the language proofreading
assessment in health. The editors encourage contributions from
(mandatory) and the translation into English (optional), based on a list
different theoretical and methodological perspectives and from
of proofreaders and translators provided by the journal.
various scientific disciplines are valued.

The journal is published on a quarterly basis; the Editors may Before being sent for peer review, articles submitted to the journal
decide on publishing special issues, which will follow the same ‘Saúde em Debate’ undergo plagiarism-detecting softwares
submission and assessment process as the regular issues. Plagiarisma and Copyspider. Thus, it is possible that the authors
are questioned about information identified by the tool to
guarantee the originality of the manuscripts, referencing all the
‘Saúde em Debate’ accepts unpublished and original works that bring
sources of research used. Plagiarism is an unacceptable editorial
relevant contribution to scientific knowledge in the health field.
behavior, so if its existence is proven, the authors involved will not
be able to submit new articles to the journal.
The journal has an Editorial Board that contributes to the definition
of its editorial policy. Its members are part of the Editorial
NOTE: Cebes editorial production is a result of collective work and
Committee and/or the database of referees in their specific areas.
of institutional and individual support. Authors’ contribution for
the continuity of ‘Saúde em Debate’ journal as a democratic space
Authors are entirely and exclusively responsible for the submitted for the dissemination of critical knowledge in the health field shall
manuscripts, which must not be simultaneously submitted to be made by means of association to Cebes. In order to become an
another journal, be it integrally or partially. It is Cebes’ policy to associate, please access http://www.cebes.org.br.
own the copyright of all articles published in the journal.

GUIDELINES FOR THE PREPARATION AND SUBMISSION


In case of approval and publication of the work in the journal, OF ARTICLES
the copyrights referred to it will become property of the journal,
which adopts the Creative Commons License CC-BY (https:// Articles should be submitted on the website: www.
creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt) and the open saudeemdebate.org.br. After registering, the author responsible
access policy, so the texts are available for anyone to read, for the submission will create his login name and a password.
download, copy, print, share, reuse and distribute, with due
citation of the source and authorship. In such cases, no permission When submitting the article, all information required must be
is required from authors or publishers. supplied with identical content as in the uploaded file.

‘Saúde em Debate’ accepts preprints from national and Types of texts accepted for submission
international databases that are academically recognized, such
as SciELO Preprint (https://preprints.scielo.org). The submission 1. Original article: result of scientific research that may be
of preprints is not mandatory and doing it does not prevent the generalized or replicated. The text should comprise a maximum
concomitant submission to the ‘Saúde em Debate’ journal. of 6,000 words.

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Instructions to authors for preparation and submission of articles

2. Essay: critical analysis on a specific theme relevant and of Abstract: in Portuguese and English or in Spanish and English,
interest to Brazilian and/or international topical health policies. comprising no more than 200 words, clearly outlining the aims,
The text should comprise a maximum of 7,000 words. the method used and the main conclusions of the work. It should
not be structured, without topics (introduction, methods, results
3. Systematic or integrative review: critical review of literature etc.); citations or abbreviations should not be used, except for
on topical theme in health. Systematic review rigorously internationally recognized abbreviations.
synthesises research related to an issue. Integrative review
provides more comprehensive information on the subject. The Keywords: at the end of the abstract, three to five keywords
text should comprise a maximum of 8,000 words. should be included, separated by period (only the first letter in
capital), using terms from the structured vocabulary (DeCS)
4. Opinion article: exclusively for authors invited by the available at www.decs.bvs.br.
Editorial Board. No abstract or summary are required. The text
should comprise a maximum of 7,000 words.
Clinical trial registration: ‘Saúde em Debate’ journal supports
the policies for clinical trial registration of the World Health
5. Case study: description of academic, assistential or extension
Organization (WHO) and the International Committee of Medical
experiences that bring significant contributions to the area. The
Journal Editors (ICMJE), thus recognizing its importance to the
text should comprise a maximum of 5,000 words.
registry and international dissemination of information on clinical
trial. Thus, clinical researches should contain the identification
6. Critical review: review of books on subjects of interest to
number on one of the Clinical Trials registries validated by WHO
the field of public health, by decision of the Editorial Board.
and ICMJE, whose addresses are available at http://www.icmje.
Texts should present an overview of the work, its theoretical
org. Whenever a trial registration number is available, authors
framework and target audience. The text should comprise a
should list it at the end of the abstract.
maximum of 1,200 words. A high resolution cover should be
sent through the journal’s system.
Ethics in research involving human beings: the publication
7. Document and testimony: works referring to themes of of articles with results of research involving human beings is
historical or topical interest, by decision of the Editorial Board. conditional on compliance with the ethical principles contained in
the Declaração de Helsinki, of 1964, reformulated in 1975, 1983,
Important: in all cases, the maximum number of words includes 1989, 1996, 2000 and 2008, of the World Medical Association;
the body of the article and references. It does not include title, besides complying with the specific legislations of the country in
abstract, keywords, tables, charts, figures and graphs. which the research was carried out, when existent. Articles with
research involving human beings should make it clear, in the last
paragraph of the ‘Material and methods’ section, the compliance
Text preparation and submission with ethical principles and send a declaration of responsibility in
the act of submission.
The text may be written in Portuguese, Spanish or English. It
should be typed in Microsoft® Word or compatible software, in The journal respects the authors’ style and creativity regarding
doc or docx format, to be attached in the corresponding field of the text composition; nevertheless, the text must contemplate
the submission form. It must not contain any information that conventional elements, such as:
makes it possible to identify the authors or institutions to which
they are linked. Introduction: with clear definition of the investigated problem
and its rationale;
Type in standard size page A4 (210X297mm); all four margins
2.5cm wide; font Times New Roman in 12pt size; line spacing 1.5.
Material and methods: objectively described in a clear and
objective way, allowing the reproductbility of the research. In case
The text must comprise: it involves human beings, the approval number of the Research
Ethics Committee (CEP) must be registered;
Title: expressing clearly and briefly the contents of the text, in no more
than 15 words. The title should be in bold font, using capital letters Results and discussion: may be presented together or separately;
only for proper nouns. Texts written in Portuguese and Spanish should
have the title in the original idiom and in English. The text in English Conclusions or final considerations: depending on the type of
should have the title in English and in Portuguese. research carried out;

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Instructions to authors for preparation and submission of articles

References: only cited authors should be included in the text and Funding
follow the Uniform Requirements for Manuscripts Submitted to
Biomedical Journals, of the ICMJE, used for the preparation of The scientific papers, when funded, must identify the source of
references (known as ‘Vancouver Style’). For further clarification, the funds. The “Saúde em Debate” Journal meets the Ordinan-
we recommend consulting the Reference Normalization Manual ce nº 206 of 2018 from the Ministério da Educação/Fundação
(http://revista.saudeemdebate.org.br/public/manualvancouver. Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior/
pdf) prepared by the Cebes editorial. Gabinete sobre Citação obrigatória da Capes, for any work made
or published, in any medium, resulting from activities totally or
NOTES: partially funded by Capes.

The journal does not use underlines and bold as an emphasis.


Use single quotes to draw attention to expressions or titles of ASSESSMENT PROCESS
works. Examples: ‘gateway’; ‘Saúde em Debate’. Words in other
languages should be written in italics, except for proper names.
Every manuscript received by ‘Saúde em Debate’ is submitted to
Avoid using capital letters in the text, except for absolutely prior analysis. Works that are not in accordance to the journal pu-
necessary ones. blishing norms shall be returned to the authors for adequacy and
new submission. Once the journal’s standards have been entirely
Testimonials of subjects should be presented in italics and in met, manuscripts will be appraised by the Editorial Board, com-
double quotation marks in the body of the text (if less than three posed of the editor-in-chief and associate editors, for originality,
lines). If they have more than three lines, they should be written scope, topicality, and compliance with the journal’s editorial po-
in italics, without quotes, highlighted in the text, with a 4 cm licy. Articles recommended by the Board shall be forwarded for
backspace, simple space and font 11. assessment to at least two reviewers, who will be indicated accor-
ding to the theme of the work and to their expertise, and who will
Footnotes should not be used in the text. If absolutely necessary, provide their approval, refusal, and/or make recommendations to
footnotes should be indicated with sequential superscript the authors.
numbers.
‘Saúde em Debate’ uses the double-blind review method, which
Repetition of data or information in the different parts of the text means that the names of both the authors and the reviewers are
should be avoided. concealed from one another during the entire assessment pro-
cess. In case there is divergence between the reviewers, the article
Figures, graphs, charts and tables should be supplied in high will be sent to a third reviewer. Likewise, the Editorial Board may
resolution, in black-and-white or in gray scale, and on separate also produce a third review. The reviewers’ responsibility is to re-
sheets, one on each sheet, following the order in which they commend the acceptance, the refusal, or the reformulation of the
appear in the work (they should be numbered and comprise title works. In case there is a reformulation request, the authors shall
and source). Their position should be clearly indicated on the return the revised work until the stipulated date. In case this does
page where they are inserted. The quantity of figures, graphs, not happen, the work shall be excluded from the system.
charts and tables should not exceed five per text. The file should
be editable (not taken from other files) and, in the case of images
(photographs, drawings, etc.), it must be in high resolution with The Editorial Board has full authority to decide on the final accep-
at least 300 DPI. tance of the work, as well as on the changes made.

In case there are photographs, subjects must not be identified, No additions or changes will be accepted after the final approval
unless they authorize it, in writing, for the purpose of scientific of the work. In case the journal’s Editorial Board has any sugges-
dissemination. tions regarding changes on the structure or contents of the work,
these shall be previously agreed upon with the authors by means
Information about authors of e-mail communication.

The journal accepts a maximum of seven authors per article. In- The typeset article proof will be sent by e-mail to the correspon-
formation should be included only in the submission form, con- ding author; it must be carefully checked and returned until the
taining: full name, abbreviated name for bibliographic citations, stipulated date.
linked institutions with up to three hierarchies, ORCID ID (Open
Researcher and Contributor ID) code and e-mail.

SAÚDE DEBATE
Instructions to authors for preparation and submission of articles

MANDATORY DOCUMENTATION TO BE DIGITALIZED MANDATORY DOCUMENTATION TO BE SENT AFTER


AND SENT THROUGH THE JOURNAL’S SYSTEM AT THE APROVAL OF THE ARTICLE
MOMENT OF THE ARTICLE REGISTER
1. Statement of spelling and grammar proofreading

1. Declaration of responsibility and assignment of copyright Upon acceptance, articles must be proofread by a qualified pro-
fessional to be chosen from a list provided by the journal. After
All the authors and co-authors must fill in and sign statement fol- proofreading, the article shall be returned together with a state-
lowing the models available at: http://revista.saudeemdebate.org. ment from the proofreader.
br/public/declaration.docx.
2. Statement of translation
2. Approval statement by the Research Ethics Committee (CEP)
The articles accepted may be translated into English on the au-
In the case of researches involving human beings, carried out thors’ responsibility. In this case, the translation shall be carried
in Brazil, in compliance with Resolution 466, of 12th December out by a qualified professional to be chosen from a list provided by
2012, from the National Health Council (CNS), the research ap- the journal. The translated article shall be returned together with a
proval statement of the Research Ethics Committee from the in- statement from the translator.
stitution where the work has been carried out must be forwarded.
In case the institution does not have a CEP, the document is-sued Correspondence address
by the CEP where the research has been approved must be for-
warded. Researches carried out in other countries: attach decla- Avenida Brasil, 4.036, sala 802
ration indicating full compliance with the ethical principles and CEP 21040-361 – Manguinhos, Rio de Janeiro (RJ), Brasil
specific legislations. Tel.: (21) 3882-9140/9140
Fax: (21) 2260-3782
E-mail: revista@saudeemdebate.org.br

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Instrucciones a los autores para la preparación y presentación de artículos

Saúde em Debate La revista adopta las ‘Reglas para la presentación de artículos


propuestos para publicación en periódicos médicos’ – Internatio-
Instrucciones para los autores nal Committee of Medical Journal Editors (ICMJE), ‘Principios de
transparencia y buenas prácticas en las publicaciones académi-
ACTUALIZADAS EN FEBRERO DE 2021 cas’ recomendadas pelo Committee on Publication Ethics (Cope):
www.publicationethics.org. Esas recomendaciones, con respecto
a la integridad y los estándares éticos al realizar y reportar inves-
tigaciones, están disponibles en la URL http://www.icmje.org/
urm_main.html. La versión en portugués fué publicaba en Rev Port
ALCANCE Y POLÍTICA EDITORIAL Clin Geral 1997, 14: 159-174. La ‘Saúde em Debate’ sigue el ‘Guía
de Buenas Prácticas para el Fortalecimiento de la Ética en la Pu-
La revista ‘Saúde em Debate’ (Salud en Debate), creada en 1976, blicación Científica’ de SciELO: https://wp.scielo.org/wp-content/
es una publicación del Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Ce- uploads/Guia-de-Boas-Praticas-para-o -Strengthening-of- Ethics-
bes). Su objetivo es divulgar estudios, investigaciones y reflexio- in-Publication-Scientific.pdf. Se recomienda a los autores la lectura.
nes que contribuyan para el debate en el campo de la salud co-
lectiva, en especial aquellos que tratan de temas relacionados con ‘Saúde em Debate’ no cobra tasas a los autores para la evaluación
la política, la planificación, la gestión y la evaluación de la salud. de sus trabajos. Si el artículo es aprobado queda bajo la responsa-
La revista le otorga importancia a trabajos con abordajes teórico- bilidad de estos la revisión (obligatoria) del idioma y su traducción
metodólicos diferentes que representen contribuciones de las va- para el inglés (opcional), teniendo como referencia una lista de
riadas ramas de las ciencias. revisores y traductores indicados por la revista.

La periodicidad de la revista es trimestral. Y de acuerdo al cri- Antes de que sean enviados para la evaluación por los pares, los
terio de los editores son publicados números especiales que si- artículos sometidos a la revista ‘Saúde em Debate’ pasan por soft-
guen el mismo proceso de sujeción y evaluación de los números wares detectores de plagio. Así es posible que los autores sean
regulares. cuestionados sobre informaciones identificadas por la herramien-
ta para garantizar la originalidad de los manuscritos y las referen-
‘Saúde em Debate’ acepta trabajos originales e inéditos que apor- cias a todas las fuentes de investigación utilizadas. El plagio es un
ten contribuciones relevantes para el conocimiento científico acu- comportamiento editorial inaceptable y, de esa forma, en caso de
mulado en el área. que sea comprobada su existencia, los autores involucrados no
podrán someter nuevos artículos para la revista.
La revista cuenta con una Junta Editorial que contribuye para la
definición de su política editorial. Sus miembros son integran- NOTA: La producción editorial de Cebes es el resultado de apoyos
tes del Comité Editorial y/o del banco de árbitros en sus áreas institucionales e individuales. La colaboración para que la revista
específicas. ‘Saúde em Debate’ continúe siendo un espacio democrático de
divulgación de conocimientos críticos en el campo de la salud se
Los trabajos enviados a la revista son de total y exclusiva respon- dará por medio de la asociación de los autores al Cebes. Para aso-
sabilidad de los autores y no pueden ser presentados simultánea- ciarse entre al site http://www.cebes.org.br.
mente a otra, ni parcial ni integralmente.
ORIENTACIONES PARA LA PREPARACIÓN Y LA SUJE-
En el caso de la aprobación y publicación del artículo en la revista, CIÓN DE LOS TRABAJOS
los derechos de autor referidos al mismo se tornarán propiedad
de la revista que adopta la Licencia Creative Commons CC-BY Los trabajos deben ser presentados en el site: www.saudeemdebate.
(https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt) y la po- org.br. Después de su registro, el autor responsable por el envío creará
lítica de acceso abierto, por lo tanto, los textos están disponibles su logín y clave para el acompañamiento del trámite.
para que cualquier persona los lea, baje, copie, imprima, compar-
ta, reutilice y distribuya, con la debida citación de la fuente y la
Modalidades de textos aceptados para publicación
autoría. En estos casos, ningún permiso es necesario por parte de
los autores o de los editores.
1. Artículo original: resultado de una investigación científica
La ‘Saúde em Debate’ acepta artículos en preprint de bases de que pueda ser generalizada o replicada. El texto debe contener
datos nacionales e internacionales reconocidos académicamente un máximo 6.000 palabras.
como el SciELO Preprints (https://preprints.scielo.org). No es obli-
gatoria la proposición del artículo en preprint y esto no impide el 2. Ensayo: un análisis crítico sobre un tema específico de
envío simultáneo a la revista Saúde em Debate.

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relevancia e interés para la coyuntura de las políticas de salud sólo con iniciales mayúsculas para nombres propios. El texto en
brasileña e internacional. El trabajo debe contener un máximo español y portugués debe tener el título en el idioma original y en
de 7.000 palabras. Inglés. El texto en Inglés debe tener el título en Inglés y portugués.

Resumen: en portugués y en Inglés o Español y en Inglés con no


3. Revisión sistemática o integradora: revisiones críticas de
más de 200 palabras, en el que queden claros los objetivos, el
la literatura de un tema actual de la salud. La revisión sistemá-
método utilizado y las principales conclusiones. Debe ser no es-
tica sintetiza rigurosamente investigaciones relacionadas con
tructurado, sin emplear tópicos (introducción, métodos, resulta-
una cuestión. La integrativa proporciona una información más
dos, etc.), citas o siglas, a excepción de abreviaturas reconocidas
amplia sobre el tema. El texto debe contener un máximo de
internacionalmente.
8.000 palabras.
Palabras-clave: al final del resumen, debe incluirse de tres a cinco
4. Artículo de opinión: exclusivamente para autores invitados palabras-clave, separadas por punto (sólo la primera inicial ma-
por el Comité Editorial, con un tamaño máximo de 7.000 pala- yúscula), utilizando los términos presentados en el vocabulario
bras. En este formato no se exigirán resumen y abstract. estructurado (DeCS), disponibles en: www.decs.bvs.br.

Registro de ensayos clínicos: la revista ‘Saúde em Debate’ apoya


5. Relato de experiencia: descripciones de experiencias aca-
las políticas para el registro de ensayos clínicos de la Organización
démicas, asistenciales o de extensión con hasta 5.000 pala-
Mundial de Salud (OMS) y del International Committee of Me-
bras y que aporten contribuciones significativas para el área.
dical Journal Editors (ICMJE), reconociendo su importancia para
el registro y la divulgación internacional de informaciones de los
6. Reseña: reseñas de libros de interés para el área de la salud mismos. En este sentido, las investigaciones clínicas deben conte-
colectiva de acuerdo al criterio del Comité Editorial. Los textos ner el número de identificación en uno de los registros de Ensayos
deberán presentar una visión general del contenido de la obra, Clínicos validados por la OMS y ICMJE y cuyas direcciones están
de sus presupuestos teóricos y del público al que se dirigen, disponibles en: http://www.icmje.org. En estos casos, el número
con un tamaño de hasta 1.200 palabras. La portada en alta re- de la identificación deberá constar al final del resumen.
solución debe ser enviada por el sistema de la revista.
Ética en investigaciones que involucren seres humanos: la pu-
7. Documento y declaración: a criterio del Comité Editorial, blicación de artículos con resultados de investigaciones que in-
trabajos referentes a temas de interesse histórico o coyuntural. volucra a seres humanos está condicionada al cumplimiento de
los principios éticos contenidos en la Declaração de Helsinki, de
1964, reformulada en 1975, 1983, 1989, 1996, 2000 y 2008 de la
Importante: en todos los casos, el número máximo de palabras Asociación Médica Mundial, además de atender a las legislacio-
incluye el cuerpo del artículo y las referencias. No incluye título, nes específicas del país en el cual la investigación fue realizada,
resumen, palabras-clave, tablas, cuadros, figuras y gráficos. cuando las haya. Los artículos con investigaciones que involucrar
a seres humanos deberán dejar claro en la sección de material y
Preparación y sujeción del texto métodos el cumplimiento de los principios éticos y encaminar una
declaración de responsabilidad en el proceso de sometimiento.
El texto puede ser escrito en portugués, español o inglés. Debe
La revista respeta el estilo y la creatividad de los autores para la
ser digitalizado en el programa Microsoft®Word o compatible y
composición del texto; sin embargo, el texto debe observar ele-
grabado en formato doc o docx, para ser anexado en el campo co-
mentos convencionales como:
rrespondiente del formulario de envío. No debe contener ninguna
información que permita identificar a los autores o las institucio-
Introducción: con una definición clara del problema investigado,
nes a las que se vinculan.
su justificación y objetivos;
Y digitalizado en hoja patrón A4 (210x297mm), margen de 2,5 en
Material y métodos: descritos en forma objetiva y clara, permi-
cada uno de los cuatro lados, letra Times New Roman tamaño 12, es-
tiendo la replicación de la investigación. En caso de que ella en-
pacio entre líneas de 1,5.
vuelva seres humanos, se registrará el número de opiniones apro-
batorias del Comité de Ética en Pesquisa (CEP);
El trabajo debe contener:
Resultados y discusión: pueden ser presentados juntos o en
Título: que exprese clara y sucintamente el contenido del texto en
ítems separados;
un máximo de 15 palabras. El título se debe escribir en negritas,

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Conclusiones o consideraciones finales: que depende del tipo de sometimiento conteniendo: nombre completo, nombre abre-
investigación realizada; viado para citas bibliográficas, instituciones a las que están
vinculados con hasta tres jerarquías, código ORCID ID (Open
Referencias: Deben constar sólo los autores citados en el texto Researcher and Contributor ID) y correo electrónico.
y seguir los Requisitos Uniformes de Manuscritos Sometidos a
Revistas Biomédicas del ICMJE, utilizados para la preparación de Financiación
referencias (conocidos como ‘Estilo de Vancouver’). Para mayores
aclaraciones, recomendamos consultar el Manual de Normaliza- Los artículos científicos, cuando reciben financiación, deben
ción de Referencias (http://revista.saudeemdebate.org.br/public/ identificar la fuente de financiamiento. La revista ‘Saúde em
manualvancouver.pdf). Debate’ cumple con la Ordenanza Nº 206 de 2018 del Mi-
nistério da Educação/Fundação Coordenação de Aperfeiçoa-
OBSERVACIONES mento de Pessoal de Nível Superior/Gabinete sobre Citação
obrigatória da Capes, para obras producidas o publicadas, en
La revista no utiliza subrayados ni negritas para resaltar partes cualquier medio, que resulten de actividades financiadas total
del texto. Utiliza comillas simples para llamar la atención de ex- o parcialmente por la Capes.
presiones o títulos de obras. Ejemplos: ‘puerta de entrada’; ‘Salud
en Debate’. Las palabras en otros idiomas se deben escribir en PROCESO DE EVALUACIÓN
cursivas, con la excepción de nombres propios.
Todo original recibido por la revista ‘Saúde em Debate’ es so-
Se debe evitar el uso de iniciales mayúsculas en el texto, con la metido a un análisis previo. Los trabajos que no estén de acuer-
excepción de las absolutamente necesarias. do con las normas de publicación de la revista serán devueltos
a los autores para su adecuación y una nueva evaluación.
Los testimonios de sujetos deberán ser presentados igualmente
en cursivas y entre comillas dobles en el cuerpo del texto (si son Una vez complidas integralmente las normas de la revista, los ori-
menores de tres líneas). Si son mayores de tres líneas, deben ginales serán valorados por el Comité Editorial, compuesto por el
escribirse en de la misma manera, sin comillas, desplazadas del editor jefe y por editores asociados, quienes evaluarán la origina-
texto, con retroceso de 4 cm, espacio simple y fuente 11. lidad, el alcance, la actualidad y la relación con la política editorial
de la revista. Los trabajos recomendados por el comité serán eva-
No se debe utilizar notas al pie de página en el texto. Las luados, por lo menos, por dos arbitros indicados de acuerdo con el
marcas de notas a pie de página, cuando sean absolutamente tema del trabajo y su expertisia, quienes podrán aprobar, rechazar
indispensables, deberán ser numeradas y secuenciales. y/o hacer recomendaciones a los autores.

Se debe evitar repeticiones de datos o informaciones en las La evaluación es hecha por el método del doble ciego, esto
diferentes partes que componen el texto. es, los nombres de los autores y de los evaluadores son omi-
tidos durante todo el proceso de evaluación. En caso de que
Las figuras, gráficos, cuadros y tablas deben estar en alta re- se presenten divergencias de opiniones, el trabajo será enca-
solución, en blanco y negro o escala de grises, y sometidos en minado a un tercer evaluador. De la misma manera, el Comité
archivos separados del texto, uno a uno, siguiendo el orden Editorial puede, a su criterio, emitir un tercer juicio. Cabe a los
en que aparecen en el estudio (deben ser numerados y conte- evaluadores, como se indicó, recomendar la aceptación, re-
ner título y fuente). En el texto sólo tiene que identificarse el chazo o la devolución de los trabajos con indicaciones para su
lugar donde se deben insertar. El número de figuras, gráficos, corrección. En caso de una solicitud de corrección, los autores
cuadros o tablas debe ser de un máximo de cinco por texto. deben devolver el trabajo revisado en el plazo estipulado. Si
El archivo debe ser editable (no extraído de otros archivos) y, los autores no se manifiestan en tal plazo, el trabajo será ex-
cuando se trate de imágenes (fotografías, dibujos, etc.), tiene cluido del sistema.
que estar en alta resolución con un mínimo de 300 DPI.
El Comité Editorial tiene plena autoridad para decidir la acepta-
En el caso del uso de fotografías, los sujetos involucrados en ción final del trabajo, así como sobre las alteraciones efectuadas.
estas no pueden ser identificados, a menos que lo autoricen,
por escrito, para fines de divulgación científica. No se admitirán aumentos o modificaciones después de la
aprobación final del trabajo. Eventuales sugerencias de mo-
Información sobre los autores dificaciones de la estructura o del contenido por parte de los
editores de la revista serán previamente acordadas con los
La revista acepta, como máximo, siete autores por artícu-
autores por medio de la comunicación por e-mail.
lo. La información debe incluirse sólo en el formulario de

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La versión diagramada (prueba de prensa) será enviada igual- la declaración indicando el cumplimiento integral de los principios
mente por correo electrónico al autor responsable por la co- éticos y de las legislaciones específicas.
rrespondencia de la revisión final y deberá devolverla en el
plazo estipulado. DOCUMENTOS OBLIGATORIOS QUE DEBEN SER EN-
VIADOS DESPUÉS DE LA APROBACIÓN DEL ARTÍCULO
LOS DOCUMENTOS RELACIONADOS A SEGUIR DEBEN
SER DIGITALIZADOS Y ENVIADOS POR EL SISTEMA 1. Declaración de revisión ortográfica y gramatical
DE LA REVISTA EN EL MOMENTO DEL REGISTRO DEL
ARTÍCULO
Los artículos aprobados deberán ser revisados ortográfica y gra-
1. Declaración de responsabilidad y cesión de derechos de autor maticalmente por un profesional cualificado, según una lista de
revisores indicados por la revista. El artículo revisado debe estar
Todos los autores y coautores deben llenar y firmar la declaración acompañado de la declaración del revisor.
según el modelo disponible en: http://revista.saudeemdebate.org. 2. Declaración de traducción
br/public/declaracion.docx.
Los artículos aprobados podrán ser, a criterio de los autores, tra-
2. Dictamen de Aprobación del Comité de Ética en Investigación ducidos al inglés. En este caso, la traducción debe ser hecha igual-
(CEP) mente por un profesional cualificado, siempre de acuerdo a una
lista de traductores indicados por la revista. El artículo traducido
En el caso de investigaciones que involucren a seres humanos debe estar acompañado de la declaración del traductor.
realizadas en Brasil, en los términos de la Resolución 466 del 12 Dirección para correspondencia
de diciembre de 2012 del Consejo Nacional de Salud, debe enviar-
se el documento de aprobación de la investigación por el Comi- Avenida Brasil, 4.036, sala 802
té de Ética en Investigación de la institución donde el trabajo fue CEP 21040-361 – Manguinhos, Rio de Janeiro (RJ), Brasil
realizado. En el caso de instituciones que no dispongan de un CEP, Tel.: (21) 3882-9140/9140
deberá presentarse el documento del CEP por el cual fue aproba- Fax: (21) 2260-3782
da. Las investigaciones realizadas en otros países, deben anexar E-mail: revista@saudeemdebate.org.br

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CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE (CEBES)

DIREÇÃO NACIONAL (GESTÃO 2022) CONSELHO CONSULTIVO | ADVISORY COUNCIL


NATIONAL BOARD OF DIRECTORS (YEAR 2022) Claudimar Amaro de Andrade Rodrigues
Presidente: Lucia Regina Florentino Souto Cornelis Johannes van Stralen
Vice-Presidente: (vacância) Cristiane Lopes Simão Lemos
Diretor Administrativo: Carlos Fidelis da Ponte Itamar Lages
Diretora de Política Editorial: Lenaura de Vasconcelos Costa Lobato José Carvalho de Noronha
Diretores Executivos: Ana Maria Costa José Ruben de Alcântara Bonfim
Heleno Rodrigues Corrêa Filho Lívia Millena B. Deus e Mello
Maria Lucia Freitas Santos Lizaldo Andrade Maia
Ronaldo Teodoro dos Santos (Ad hoc) Maria Edna Bezerra Silva
Maria Eneida de Almeida
CONSELHO FISCAL | FISCAL COUNCIL Maria Lucia Frizon Rizzotto
Ana Tereza da Silva Pereira Camargo Matheus Falcão
Claudia Travassos Rafael Damasceno de Barros
Victória S. L. Araújo do Espírito Santo Sergio Rossi Ribeiro
Suplentes | Substitutes
Iris da Conceição SECRETÁRIO EXECUTIVO | EXECUTIVE SECRETARY
Jamilli Silva Santos
Matheus Ribeiro Bizuti Carlos dos Santos Silva

SETOR FINANCEIRO | FINANCIAL SECTOR


Marco Aurélio Ferreira Pinto

EQUIPE DE COMUNICAÇÃO | COMMUNICATION TEAM


Xico Teixeira
Tiago Maranhão
Francisco Barbosa

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A revista Saúde em Debate é
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Apoio

Saúde em Debate: Revista do Centro Brasileiro de Estudos de


Saúde, Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, Cebes –
n.1 (1976) – São Paulo: Centro Brasileiro de Estudos de
Saúde, Cebes, 2022.

v. 46. n. especial 2; 27,5 cm




ISSN 0103–1104

1. Saúde Pública, Periódico. I. Centro Brasileiro de Estudos de


Saúde, Cebes


CDD 362.1
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