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PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Registro: 2020.0000285308

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Criminal nº


0069169-31.2017.8.26.0050, da Comarca de São Paulo, em que é apelante
RAFAEL RODRIGUES DE LIMA, é apelado MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO
DE SÃO PAULO.

ACORDAM, em sessão permanente e virtual da 7ª Câmara de Direito


Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão:
DERAM PROVIMENTO ao recurso para absolver RAFAEL RODRIGUES DE
LIMA da acusação de prática do crime do artigo 155, § 4º, inciso II, do
Código Penal, com fulcro no artigo 386, inciso III, do Código de Processo
Penal. Expeçam-se as comunicações devidas. V. U., de conformidade com o
voto do relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Desembargadores ALBERTO


ANDERSON FILHO (Presidente sem voto), REINALDO CINTRA E FERNANDO
SIMÃO.

São Paulo, 24 de abril de 2020.

OTAVIO ROCHA
Relator
Assinatura Eletrônica
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

VOTO nº 13620
Apelação nº 0069169-31.2017.8.26.0050
Comarca: SÃO PAULO 23ª Vara Criminal
Apelante: RAFAEL RODRIGUES DE LIMA
Apelado: MINISTÉRIO PÚBLICO

Apelação Criminal Furto qualificado pelo “abuso de confiança”


Recurso defensivo visando a absolvição do apelante por
atipicidade da conduta, com base na tese do “furto de uso”
Pedidos subsidiários de afastamento da mencionada qualificadora
e de concessão do benefício da “suspensão condicional do
processo” Sentenciado primário que subtraiu veículo pertencente
a um dos clientes “mensalistas” do estacionamento em que
trabalhava como “manobrista” Circunstâncias do caso concreto
que tornam razoável a suposição de que ele tinha a intenção de
restituir o bem a seu proprietário Recurso provido para reverter a
decisão de procedência da ação penal, absolvendo-se o
sentenciado.

Inconformada com a decisão proferida pelo i. Juiz da 23ª Vara do


Foro Central da Barra Funda às fls. 154/159, por meio da qual foi o
sentenciado supramencionado condenado pela prática do delito do artigo
155, § 4º, inciso II, do Código Penal, ao cumprimento de 2 anos de
reclusão, em regime aberto, e pagamento de 10 dias-multa, substituída a
pena privativa de liberdade por duas restritivas de direitos (consistentes em
prestação de serviços à comunidade e prestação pecuniária no valor de 1
salário), contra ela se insurgiu a i. Defensora Pública que o assiste à fl. 167,
arrazoando o apelo às fls. 172/176.

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A i. Defensora Pública pleiteia a absolvição do sentenciado por


suposta ausência do dolo necessário à caracterização do delito, afirmando
que ele “não possuía qualquer intenção de furtar o veículo, apenas utiliza-lo
para se locomover até sua casa e devolve-lo no trabalho, na manhã
seguinte...” (fl. 174). Subsidiariamente, pugna pelo afastamento da
qualificadora do abuso de confiança e pela concessão do benefício da
suspensão condicional do processo.

Contra-arrazoado o recurso (fls. 179/181), o parecer da


E. Procuradoria de Justiça Criminal é pelo seu desprovimento (fls. 193/197).

É o relatório.

O recurso comporta provimento.

RAFAEL RODRIGUES DE LIMA foi processado e condenado às


penas inicialmente mencionadas porque, nas condições de tempo e lugar
descritas na denúncia, “subtraiu para si, com abuso de confiança, o
automóvel de Yvana Alves Silva (o Honda City de placas FXD-5235)... ( )
Aproveitando[-se do fato de que] estava sozinho no estacionamento onde
trabalhava como manobrista [o 'Meta Park'], ele se apoderou de um dos
carros que lhe haviam sido confiados, com as respectivas chaves e com ele
partiu... ( ), [tendo sido preso em flagrante] na altura do nº 45 da avenida
Washington Luís...” (fls. 1/2).

Yvana declarou à Autoridade Policial (fl. 9) que “trabalha no Hotel


Emiliano... e é mensalista no estacionamento 'Meta Park'..., [o qual] fica no
prédio em que há o 'Flat Residence Lorena'... No dia 6 de agosto [de 2017],
às 13:46..., estacionou seu veículo City de placa FXD-5235 no 'Meta Park'...
Por volta das 23:20, entregou o ticket ao funcionário do local, que não era o
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mesmo do período diurno... Observou-o... telefonar para o seu superior e


narrar que não estava encontrando o veículo... Acionou o seguro e
compareceu ao 5º DP de Osasco, onde registrou [a ocorrência]... Ainda
nesta madrugada, recebeu um telefonema da Polícia Militar noticiando que
o veículo havia sido localizado” (fl. 9). Em juízo (mídia anexada ao termo de
audiência de fl. 134), acrescentou que “era mensalista do estacionamento
há cerca de três meses... Seu carro foi localizado por volta das 05 da
manhã” (cf. sentença, fl. 155).

RAFAEL, ao ser interrogado na fase inquisitória (fls. 10/11), disse que


“trabalha na 'Meta Park' como manobrista... No dia 06 de agosto [de 2017]...
entrou em serviço por volta das 07:00 horas e seu turno foi até as 19...,
sendo que no momento era o único funcionário no local... Tinha a posse das
chaves dos veículos ali estacionados... Resolveu pegar um veículo para ir
embora para sua casa... Pegou o... [Honda] City [pertencente à mensalista
Yvana Alves Silva], uma vez que o tanque estava cheio... Chegou em casa
e estacionou o carro... Devolveria o veículo hoje [07/08/2017], às sete
horas, quando entrasse no trabalho... No caminho, foi abordado por policiais
militares... O que fez foi uma 'burrice' e está arrependido” (fl. 10). Em juízo
(mídia anexada ao termo de audiência de fl. 133), acrescentou que
trabalhava no local há cerca de dois meses e, na data do fato, confundiu o
veículo subtraído com outro do mesmo modelo (“Honda Fit”), que é
pertencente a um “morador” (ao que tudo indica, do condomínio residencial
situado no mesmo edifício em que o estacionamento se situa, que o deixaria
ali por todo o período noturno).

Os policiais militares responsáveis pela prisão em flagrante, Ricardo


Gomes Rigonatti (fl. 5) e Lucas Vinícius Costa Barbosa (fl. 8), em
depoimentos amplamente coincidentes, afirmaram na fase inquisitória que
“estavam em patrulhamento... quando foi irradiado via Copom... que o
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veículo 'City' de placa FXD 5235, produto de furto, havia passado pelo
'Projeto Radar' na Av. Guarapiranga, 1300... Deslocaram-se para a região...
e avistaram o referido veículo, o qual era conduzido de forma regular...
Deram ordem parada, a qual foi obedecida pelo condutor, o qual identificou-
se como RAFAEL RODRIGUES DE LIMA... Inicialmente..., [ele] afirmou que
o veículo era de um amigo, mas... acabou admitindo que [o] havia furtado...
Informou que trabalha em um estacionamento na região da Avenida
Paulista, sendo que, na data de ontem, resolveu pegar um veículo de cliente
[para voltar para sua residência]... Estava indo trabalhar [quando foi
abordado]...” (fl. 5). Em juízo (mídia de fl. 134), Ricardo acrescentou que “o
réu confessou [informalmente]... que não era a primeira vez que se utilizava
de carros de clientes do estacionamento, mas nunca havia sido descoberto
anteriormente” (cf. sentença, fl. 155).

Ante o quadro probatório disponível nos autos, e em que pese o


respeitável entendimento do i. Julgador de Primeiro Grau, o julgamento da
improcedência emerge como a solução mais justa e adequada para a
causa, eis que não é possível extrair do exame da prova colhida conclusão
segura acerca da existência, por parte de RAFAEL, do dolo de
assenhoramento do bem, necessário à tipificação do delito de furto.

Ao comentar sobre o tipo subjetivo correspondente ao delito do artigo


155 do Código Penal, o saudoso Porfessor DAMÁSIO DE JESUS1
asseverava que ele “exige... o fim de assenhoramento definitivo [do bem
subtraído]. Para que exista furto não é suficiente que o sujeito queira usar e
gozar da coisa... É necessário que aja com o denominado 'animus furandi'
(intenção de aponderamento definitivo)”.

No caso destes autos, há que considerar que RAFAEL (que não


1 Direito penal, 2º volume: parte especial: Crimes contra a pessoa a crimes contra o patrimônio, 35ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015, pág. 353.

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ostenta qualquer registro criminal, cf. folha de antecedentes de fl. 91),


trabalhava há cerca de dois meses no estacionamento em que o veículo
fora deixado. Além disso, Yvana era cliente “mensalista” desse
estabelecimento, conhecendo seus funcionários e respectivos turnos de
trabalho, o que permitia a qualquer pessoa de inteligência mediana antever
que a autoria do furto seria facilmente elucidada logo que a subtração fosse
constatada.

Nessas condições, é plausível a tese de que o acusado tinha a


intenção de restituir o bem ao local de onde fora retirado, no dia seguinte ao
da subtração, quando do início de seu turno de trabalho. Tanto é assim que
os locais em que o veículo foi rastreado (“Av. Guarapiranga, 1300...” fl. 5)
e posteriormente abordado (“Av. Washington Luis..., 45” fl. 5) de fato
situam-se entre sua residência (“Rua Valentim Correia Paes, 421, bairro
Jardim Nakamura” fl. 10 , isto é, no extremo sul desta Capital) e seu local
de trabalho (Alameda Lorena, nº 1157).

Corrobora dita tese defensiva o fato de os policiais terem informado


que RAFAEL, ao ser detido, admitiu de pronto que já praticara idênticas
condutas anteriormente, no mesmo local de trabalho, sem que elas
tivessem sido percebidas pelos patrões ou colegas de trabalho.

Considerando-se, portanto, que não é possível inferir da prova


coligida, de modo extreme de dúvidas, que o réu RAFAEL RODRIGUES DE
LIMA tenha agido com ânimo de assenhoramento definitivo em relação ao
veículo em cuja posse foi preso em flagrante, conclui-se que a melhor
solução para a causa é mesmo a sua absolvição quanto à imputação contra
ele formulada na denúncia.

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Cabe registrar, por fim, que a conclusão expressada neste voto não
constitui qualquer óbice ao direito de a vítima pleitear, em sede extrapenal,
a reparação dos danos materiais e morais eventualmente experimentados
em decorrência da conduta descrita na denúncia (que evidentemente
configura um ilícito civil), deixando-se de estabelecer um valor mínimo para
este fim (art. 387, inciso IV, do Cód. de Processo Penal) em razão de não
terem sido produzidos nos autos elementos de prova a esse respeito.

Ante o exposto, pelo meu voto, DOU PROVIMENTO ao recurso para


absolver RAFAEL RODRIGUES DE LIMA da acusação de prática do crime
do artigo 155, § 4º, inciso II, do Código Penal, com fulcro no artigo 386,
inciso III, do Código de Processo Penal. Expeçam-se as comunicações
devidas.

OTAVIO ROCHA
Relator

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