EMTEMPOS
INCERTOS
Mariano Fernández Enguita
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Capa
Mário Rohnelt
Preparac;áo do original
Maria Lúcia Barbará
Leitura final
Rubia Minozzo
Supervisao editorial
Monica Ballejo Canto
Projeto gráfico e editorac;ao eletrónica
Armazém Digital Editora!(éi.O Eletronica - rcmv
IMPRESSO NO BRASIL
PRJNfED IN BRAZIL
Obra miginalmente publicada sob o título
Educar en tiempos inciertos
Capa
Mário Rohnelt
Prepara¡;ao do original
Maria Lúcia Barbará
Leitura final
Rubia Minozzo
Supervisao editorial
Mónica Ballejo Canto
Projeto gráfico e editora¡;ao eletrónica
Armazém Digital Editorap'io Eletróníca - rcmv
IMPRESSO NO BRASIL
'PRINTED IN BRAZIL
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Prefácio
Houve um tempo em que a tarefa de educar era vista por seus prota-
gonistas - tanto professores como alunos - como algo pleno de sentido.
lsso nao está tao distante a ponto de só ser lembrado pelos mais velhos ou
pelos filhos daqueles apóstolos culturais . Ainda sao muitos os que acredi-
tam que assim é e continuará sendo, ontem, hojee sempre. Estes sao aque-
les que veem na educac;ao o melhor e principal instrumento para ajudar as
pessoas a se prepararem para urna vida plena, urna cidadania participati-
va, urna posic;ao economica digna e suficiente, urna convivencia nao-
conflituosa, urna apreciac;ao adequada da cultura e das relac;oes sociais em
constante processo de mudanc;a. Contudo, proliferam -e, as vezes, ruido-
samente - os que asseguram que já nao é assim. Ninguém proclama, é
claro, que educar seja algo francamente inútil, contraproducente ou errático,
mas insistem nos tópicos mais ou menos parciais que, reunidos, dariam
como resultado esse diagnóstico. Assim, por exemplo, seria inútil estudar
quanto o desemprego e o subemprego se expandem entre os jovens, quan-
to o trabalho se desqualifica em grande escala ou quanto um encanador
ganha mais do que um bacharel. Seria incoerente educar para a conviven-
cia, a solidariedade, a paz, etc., quando, em tomo da escoJa, a sociedade se
mostra individualista, competitiva ou agressiva. Seria um total absurdo
buscar estimular hábitos de trabalho e de reflexao quando a televisao e
yjjj PREFÁCIO PREFÁCIO iX
outros meios de massa incitam, de modo tao eficaz, o desfrute imediato e detemo-nos na passagem das nac;:oes homogeneas as sociedades multiculturais
o consumo do efemero. Saltaria a vista a pouca importancia que as famílias e a economía global. Quanto a família, examinamos as conseqüencias das
atribuem a educac;:ao, seu escasso reconhecimento do trabalho docente, seu mudanc;as em sua estrutura e na distribuic;:ao de papéis em seu interior. O
empenho em utilizar as escoJas como albergue ou como casa de correc;:ao Capítulo S trata da complexa relac;áo entre educac;ao e igualclade. Por últi-
para os filhos que nao conseguem ou nao sabem educar: Enfim, as deman- mo, os Capítulos 6 e 7 sáo dedicados as conseqüencias e implicac;:oes de tudo
das feítas a instituic;:ao seriam excessivas, contraditórias e mutáveis, expres- isso para a organizac;ao das escolas e para a profissao docente.
sando-se em urna interminável sucessao de reformas indicativas da deso-
rientac;:ao da sociedade e das autoridades e causadoras da desorientac;:ao dos
professores.
Qualquer desses tópicos poderia ser facilmente rechac;:ado por sua ina-
dequac;:ao, mas o essencial é descobrir o fio condutor que perpassa todos
eles: a derrocada das velhas certezas em torno da educac;:ao. O desmorona-
mento da crenc;:a na associac;:ao entre educac;:ao e emprego; da sintonía
entre os valores escolares e os valores sociais; da crenc;:a na capacidade da
escola para moldar as crianc;:as e os jovens; da tranqüilidade proporciona-
da pela aquiescencia incondicional das famílias ou da simples idéia de que
as autoridades, a instituic;:ao e os agentes do processo educativo sabem o
que buscam ou que, pelo menos até certo ponto, buscam urna mesma coi-
sa. Contudo, nao seria difícil construir um rosário de argumentos contrá-
rios: urna economía crescentemente baseada na informac;:ao e no conheci-
mento, urna sociedade mais democrática e mais aberta do que jamais foi,
meios de comunicac;:ao cada vez mais poderosos, famílias cada vez mais
preocupadas - para nao dizer obcecadas - em obter mais e melhor educa-
c;:ao para seus filhos, uma crescente atenc;:ao pública as políticas educacio-
nais. Por que, entao, essa desorientac;:ao generalizada? Porque a mudanc;:a
se estendeu, se intensificou e se acelerou em todos os ambitos da vida
social, de modo que a educac;:ao, que antes vivia de sua gestao (educaré
mudar, seja consciente ou inconscientemente), agora se ve envolvida por
seu movimento, como em um torvelinho.
Neste breve trabalho, tentamos expor algumas linhas fundamentais
desses processos de mudanc;:a, visto que afetam, de modo particular, as insti-
tui<;oes escolares e a tarefa educativa. No Capítulo 1, centramo-nos na mu-
danc;:a em si ou, mais exatamente, nas conseqüencias de sua mera expansao
e acelerac;:ao, independentemente de seu conteúdo. Os tres capítulos seguin-
tes sao dedicados ao tratamento mais específico e detalhado das grandes
mudanc;as que giram em tomo do sistema educacional, específicamente na
economía, na política e na família. No que diz respeito a economía, damos
,urna atenc;:áo especial ao novo papel da informac;:ao e do conhecimento e as
transformac;oes na organizac;ao do trabalho. No que se refere a política,
Sumório
Prefácio .... ...... ... .. ... .. .. ... ..... .. ... .. ... .. ..... ... ... ... .... .. ... ....... ... ..... .... .... .. .. ......... ... ... vii
2 O trabalho na sociedad e do conhecimento ... .... .. ... .................. .. ... ...... .. ... 27
A sociedade industrial e o
desenvolvimento da escala de massas .... .. ...... .. ... .. ...... .. ......... .. ... .. .. ... .. 28
Os desajustes entre a educac;:ao e o mundo do trabalho ......... ... .. ........ .. ... 31
Educar na sociedade do conhecimento ........ ... .. ... .. .................. .... .... .... ..... 35
3 A cidadania na era da globalizac;áo .... ... ....... ...... ... .. .. .. ... ... .. ... ... .. ... ......... 45
A escala e a formac;:ao do Estado-Nac;:ao .. .... .... .. .... ....... .... ..... ...... ........ ... .. 46
A educac;:ao intercultural na sociedade multicultural .. ... ................... ... ..... 49
A formac;ao humanista na sociedade global .... .. .... .. .... ................ ....... .. ... . 55
5 Educo<;Óo e justi<;o social .. ..... ..... ........... ........ ......... ..... .... .. .... ... .... ........... 75
Desigualdade social e igualdad e territorial .... ...... ..... ... .. ..... .. ..... ...... ......... 76
6
As políticas igualitárias e seus resultados desiguais .... .................. .. ......... 79
O difícil equilíblio entre igualdade, liberdade e diversidad e ........... .. ....... 83
Adao e Eva - que foram urna praga para as escotas norte-americanas - e • Mudanra intrageracional. A mudanr;a é perceptível, de maneira ge-
ainda persistem) . neralizada, dentro de urna mesma gerar;ao e nos aspectos funda-
Talvez pudéssemos sugerir que a chave nao está na escota, mas na mentais da experiencia humana: economía, política, cultura, famí-
sociedade em tomo dela. As escotas sao, ou tendem a ser, conservadoras e lia, cidade, etc.
reprodutoras quando a sociedade é estável e estática; progressistas e
transformadoras quando a sociedade é mutável e dinamica. De fato, essa é Naturalmente, referimo-nos a mudanr;as substanciais nas formas de
a hipótese que defenderei aquí. Nas sociedades predominantemente está- vida, trabalho e convivencia. Nao pretendemos, de modo algum, que a
ticas, a escota nao é urna coisa nem outra, pois simplesmente nao é, já que passagem de um período a outro seja claramente datável, nem que nao
(quase) ninguém tem necessidade dela. Nas sociedades que mudam e que, haja períodos, inclusive longos períodos, de transir;ao ou de indefinir;ao,
além disso, sabem ou acreditam saber em que direc;ao o fazem, a escota se mas sim que certos períodos se enquadram claramente dentro de urna ou
converte em um poderoso (e manipulado e controlado) instrumento de outra categoria. Além disso, nao excluímos, mas damos por assentado, que
transformac;ao. Por último, nas sociedades que mudam, mas o fazem de diferentes ~etores sociais podem estar passando, dentro de urna mesma
maneira errática ou simplesmente imprevisível, a escola se ve imersa em sociedade, como, por exemplo, de urna mesma nar;i:í.o, pelas distintas fases
urna desorientar;ao que conduz facilmente a urna crise que supóe tanto a mencionadas (senda, como dizia Ortega, coetfmeos, mas nao contempora-
impossibilidade de sustentar;ao da dinamica prévia como a manifestar;ao neos). Dito isso, passemos a analisar mais detalhadamente os diferentes
de novas opottunidades . períodos e suas implicar;óes para a educar;ao. 1
Essas diferentes situac;óes tem a ver antes de tudo - embora nao ape-
nas - com o ritmo da mudanr;a social. Isso posto, como se mede esse rit- A MUDAN~A SUPRAGERACIONAL OU A SOCIEDADE SEM ESCOLAS
mo? Poderíamos imaginar diversas maneiras: desde o número de patentes
registradas por dia até o valor relativo das ferramentas tecnológicas na Na fase da mudanc;a suprageracional, a sociedade, para todos ou para
economía, passando pela durar;ao média das inovar;oes ou por qualquer a imensa maioria, é um contexto estável, invariante. Embora a confiabili-
outro indicador. Mas um indicador mais parcimonioso e razoável pode ser dade do retrato tenha sido posta em questao, 2 esse é claramente o caso no
(admitindo a velha máxima humanista: o homem é a medida de todas as tipo de sociedad e desctito por Margaret Mead (194 7), e m Adolescéncia,
coisas) a própria experiencia humana, considerada de urna forma global. sexo e cultura em Sarnoa, um livro que se tornou patticularmente popular
Vejam que nao se trata, por exemplo, de comparar o dinamismo tecnológi- entre os educadores, sem dúvida pelo fato de a autora defender a idéia de
co de diversas sociedades, o que exigiria medidas mais precisas - e menos que os adolescentes samoanos, sendo levados sem a menor vacilac;ao a
significativas-, mas de pensar os efeitos da mudanr;a sobre a educar;ao, ou ocupar tao logo quanto possível papéis sociais adultos e amplamente esta-
as relar;oes entre esta e aquele. Podemos, entao, postular tres possibilida- belecidos, evitavam as crises. e incertezas dos norte-americanos - como se
des, mais ou menos correspondentes a tres épocas na história da humani- fosse sequer pensável trasladar os processos samoanos as condir;óes norte-
dade (embora de durar;ao muito distinta), que definimos da seguinte ma- americanas. A incorpora<;ao precoce a posir;óes e papéis estáveis e, prova-
neira: velmente, herdados é o que se espera de todos nas sociedades primitivas e
da grande maioria nas civilizar;óes pré-industriais . Ao crescer, cada gera-
• Mudanra suprageracional. A mudanr;a existe, mas é imperceptível r;ao deverá incorporar-se ao mesmo mundo ao qual se incorporou e já do-
de urna gerar;ao a outra, pelo menos para a maioria da popular;ao, mina a gerar;ao anterior. Essa estabilidade propicia urna visao do mundo
seja por sua lentidao, seja porque afeta apenas setores minoritários. como algo estático ou, talvez - reproduzindo e ampliando a expetiencia
• Mudanra intergeracional. A mudanr;a é claramente perceptível de mais elementar do ambiente, a do tempo atmosférico - cíclico, sem nada
urna gerar;ao a outra para setores relevantes da popular;ao, ainda que possa recordar a idéia de progresso tao intensamente associada a esco-
que seja em diferentes momentos e gerar;oes. ta na cultura da modernidade.
16 MARIANO FERNÁNDEZ ENGUITA
EDUCAR EM TEMPOS INCERTOS 17
Visto que os adultos sabem e podem ensinar tudo aquilo que urna existe um ambito dedicado a aprendizagem de modo específico. Os agen-
crianc;:a necessita, deve e pode aprender, nao há nenhuma necessidade de tes educativos sao, exatamente, os adultos, ou os mais adultos entre os
urna instituic;:ao nem de um corpo especializados que se ocupem da educa- adultos: nao há agentes singularizados. A base do papel de tais agentes é a
c;:ao. Em outras palavras, nao é preciso escolas nem professores. Em urna experiencia, nao urna formac;:ao profissional para esse efeito. O status do
sociedade primitiva, ou pré-histórica, cada indivíduo sabe mais ou menos educador em face do educando baseia-se em sua idade e experiencia com-
o que a sociedade sabe, e as destrezas sornadas de homens e mulheres - a partilhada com seus contemporaneos, e nao em urna formac;:ao especializa-
primeira e mais elementar fmma de divisao do trabalho - resumem prati- da nem em qualquer nomeac;:ao burocrática.
camente o saber social global. Por conseguinte, os meninos aprendem com Nesse contexto, a func;:ao da educac;:ao é claramente a reproduc;:ao: da
os homens, e as meninas com as mulheres adultas, seja de forma indivi- estrutura social nas sociedades primitivas e, em geraJ, em todas as pré-
dual- com os pais- ou de forma coletiva- em fratrias, etc. -, seja com a industriais; das tecnologías imperantes entre os camponeses e, sobretudo,
gerac;:ao imediatamente anterior o u com outra com mais experiencia e com entre os artesaos; das tradic;:oes e do esprit de corps entre a nobreza; das
menos obrigac;:óes laborais - os anciáos. A transmissáo é essencialmente tradir;óes, dos arcanos do saber esotérico ou da palavra divina e de sua
oral, centrada em um número reduzido de mitos, comportamentos e habi- interpretar;ao entre os sacerdotes. Nada aqui, portanto, incita a mudanr;a,
lidades transmitidos de fom1a mais ou menos identica a cada nova gera- e a educar;ao é tudo, menos urna forc;:a transformadora.
c;:ao. Pode haver algum saber especializado, como o do xamá, mas também
aquí se produz urna socializac;:ao direta, sem um corpo intermediário dedi- A MUDAN~A INTERGERAClONAL OU
cado pela divisao do trabalho a tarefa específica de educar.
3
A ÉPOCA DOURADA DA INSTITUI~ÁO
Nas sociedades da Antigüidade, os saberes especializados e mais ou
menos esotéricos multiplicam-se, dando lugar a estratos mais ou menos Na pressa de resumir, costumamos chamar de "modemizac;:ao" um con-
numerosos de funcionários, mandarins, escribas, sacerdotes e similares, junto de mudanc;:as de tal envergadura e profundidade que, por si mesmas,
mas trata-se, em todo caso, de setores claramente minoritários e cujas representam, cada urna delas, a passagem a um mundo distinto do ante-
condic;:óes de vida sao muito distintas das do ser comum. Esses sao os rior. Entre outras, a passagem da agricultura a indústria - ou antes, da
únicos grupos que podem requerer urna educac;:ao institucionalizada, so- agricultura de subsistencia a agricultura comercial- e do trabalho de sub-
bretudo se houver tabu, norma ou proibic;:ao que os impec;:a da reprodu- sistencia ou por conta própria ao trabalho de cooperac;:ao e assalariado; do
c;:ao biológica e de herdar por via familiar sua posic;:ao privilegiada. Os campo a cidade; da tradi<;:ao oral e do analfabetismo generalizado a cultu-
demais, inclusive até os primórdios da industrializac;:ao, continuaram vi- ra escrita e a alfabetizac;:ao em massa; das crenc;:as mágicas, religiosas e
vendo processos de socializac;:ao indiferenciados, isto é, nao-segregados tradicionais a cultura escrita, científica e racional (isso entendido no senti-
de sua patticipac;:ao progressiva na vida adulta. Com certeza, os campo- do de urna articulac;:ao meios-fins); das pequenas comunidades e dos pode-
neses, mas também outros setores sociais: pense-se, por exemplo, nos res senhoriais as nac;:óes, aos Estados modernos e a cidadania. O comum a
artesaos medievais, que levavam seus filhos como aprendizes a oficina de esses processos é que, em geral, representam alterac;:óes de tal profundida-
outro mestre, mas, seja como for, a oficina (e a sua família, pois aquele de que urna ou válias gerac;:oes tem de se incorporar a um mundo tao
sentava-o a sua mesa, colocava-o a seu servic;:o e assumia a responsabili- distinto daquele das anteriores que estas já nao podem orientá-las em seu
dade por sua formac;:áo moral), nao a urna escola de formac;:ao profissio- percurso (o mais provável é que, além disso, as gerac;:óes anteriores vejam
nal; ou nos nobres, que punham seus filhos a servic;:o de outros nobres ou desvanecer-se sob seus pés o mundo que conheceram, e esse é um dos
os enviavam ao palácio do rei. fato res de crise da velhice) .4
Para a maioria, portanto, a instituic;:ao educativa é, nesse período de Quando as velhas gerac;:oes já nao podem introduzir as mais novas no
mudanc;:a suprageracional, a família ou a comunidade imediata; isto é, nao mundo que as espera, as instituic;:oes naturais, específicamente a família e
'·,
existe urna instituic;:ao educativa diferenciada. O processo de aprendiza- a comunidade imediata, perdem em grande parte suas fun<;:óes educativas.
gem é o próprio processo de incorporac;:ao ao trabalho; vale dizer que nao Requerem-se, a o contrálio, instituic;:oes novas e agentes próprios, e é justa-
18 MARIANO FERNÁNDEZ ENGUITA
EDUCAR EM TEMPOS INCERTOS 19
mente isso o que serao, antes de tudo , a escola e o magistério. Ambos profissao lhe assegura por si mesma um status ao menos moderadamente
representam, nesse momento (um período que abarca inúmeras coortes elevado, em relac;ao inversa com ~ tamanho e o nível de modemizac;ao
profissionais), o progresso diante da tradic;ao, o futuro diante do passado, da comumdade na qual se insere. E, em boa medida, o trampolim para o
a cultura diante da barbárie , a razao diante da superstic;ao. É, de certa futuro, o vínculo com o além terreno, a janela aberta para o mundo.
fom1a, sua época gloriosa, que nunca voltarao a conhecer, pois sao o ins- Pode-se pedir mais? 5
trumento de criac;ao da nac;ao homogenea, do mercado diáfano, do exérci-
to de alistamento leal, do proletariado disciplinado, da cidadania confiável.
De fato, toda a mitología do magistério está ancorada nessa época. A MUDAN~A INTRAGERACIONAL OU A CRISE DO SISTEMA EDUCACIONAL
Nao quero dizer com isso que se trate de um período inequívocamen-
te de melhoria (riqueza, direitos, cultura, etc.), tampouco do contrário, da Mas nao faz nem cem anos, e a acelerac;ao da mudanc;a social, que
perda do paraíso (proletarizac;ao, opressao, assimilac;ao, etc.). Exigiría, ir- esteve na base da universalizac;ao da escola e da "época dourada" do ma-
remediavelmente, urna análise mais matizada- embora, sem dúvida, tam- g_istério: c01¡verte-se no detonador do questionamento daquela e na deso-
bém com um saldo positivo. Mas o importante é que se trata de urna época nent~c;ao deste. Isso ocorre quando, ao tomar-se mais rápida, generaliza-
imbuída da idéia de progresso, e que é essa mentalidade de progresso, de · da e mtensa, a _m~danc;a nao apenas impoe que cada gerac;ao se incorpore
avanc;o, de desenvolvimento histórico, etc. que dá cobettura aexpansao da a ~m m~ndo dts_tmto daquele da anterior, mas que ela própria, se me per-
escola e do magistério. Por isso, é um período no qual o magistério se sente mttem d1_zer ~sstm, passe por vários mundos distintos. As trañsformac;oes
incumbido de urna missao, de um propósito que !he foi atribuído e é reco- na orgamzac;ao d~ mercado de trabalho e da organizac;ao empresarial, nas
nhecido pela sociedade. Pode ser que as condic;oes de vida nao sejam as formas de comumcac;ao e de acesso a informac;ao, na estrutura e na vida
melhores (faJa-se de passar mais fome do que u m professor), que o apostolado urbanas, nas configurac;oes e nas relac;oes familiares , nas expectativas e
ilustrador seja menos doce do que pretende (a letra, com sangue entra) ou n~s modos_ de exercício da cidadania supoem alterac;oes de grande profun-
que cada um possa executar essa missao de maneira distinta (cada dtdade, CUJa percepc;ao como tais toma-se clara na facilidade com que se
professorzinho te m se u caderninho) , mas a sociedade, de bom o u mau gra- difundem os diagnósticos alarmantes, geralmente exagerados, mas nao
do, percebe e proclama que o professor representa algo distinto, novo e carentes de fundamento: globalizac;ao, fim do trabalho, sociedade de ris-
necessário, tanto no ambito coletivo, político (recorde-se que os professo- co, mundo desenfreado, império do efemero, aldeia global, etc. Tais altera-
res franceses foram tachados, em finais do século XIX, como os sacerdotes c;oes obrigam a maioria da populac;ao adulta, pelo menos nas sociedades
da República, ou que o breve interregno democrático espanhol de 1931- avanc;adas -e, seja como for, urna proporc;ao crescente da populac;ao em
1936 autodenominou-se República pedagógica), como no ambito privado e qualquer soCiedade -, a se readaptar a novas condic;oes de vida, de traba-
imediato (o professor atuando in loco parentis, no lugar do e coma autori- lho e de sociabilidade.
dade do pai). A docencia é vista assim quase em termos de apostolado: Da perspectiva discente, isso significa urna reestruturac;ao do ciclo de
professor-missionário, profissao-vocac;ao, escolas-templo de saber, missoes vida no que diz respeito a aprendizagem. Rompe-se a velha seqüencia na
pedagógicas, a nobre tarefa de ensinar, a ilustrac;ao como evangelizac;ao e q,ual, a un: perí~do inicial de educac;ao e aprendizagem, seguía-se um pe-
assim sucessivamente . nodo de VIda at1va baseado na plena competencia do trabalhador, do cida-
Outro elemento a ser considerado é que, nesse lapso, o professor dao, do consumidor, etc. As mudanc;as constantes nas tecnologías e nas
está definitivamente em um plano superior (mais culto, mais moderno, formas de organizac;ao (isto é, nos modos de relacionamento com as coisas
etc.) que a comunidade na qua] se integra. Automaticamente, e por mera e com as pessoas , respectivamente) requerem novas etapas de aprendiza-
razao do cargo, passa a fazer parte das forr;-as vivas. Sua formac;ao e seu gem, alternadas ou simultaneas como trabalho, ao longo de toda a exten-
crédito iniciais bastam para isso, sem necessidade de demonstrar mais s~o da vida útil ou entremeando-a em qualquer momento. Essa nova apren-
nada pessoalmente, nem de revalidar sua posic;ao. Por conseguinte, sua dtzagem, atualizac;ao, reciclagem, modernizac;ao, readaptac;ao, formac;ao
20 MARIANO FERNÁNDEZ ENGUITA EDUCAR EM TEMPOS INCERTOS 21
contínua, permanente, recorrente, ou como quer que a chamemos, pode lho próprios e os do colega ou do concorrente, ou, quando nao sao vistos
passar pelo retomo a educac;ao formal, por diversas figuras de f?rmac;ao diretamente, revelam-se pela comparac;ao que o supervisor ou o mercado
ocupacional ou pelo treinamento no terreno da ac;ao, do autodtdattsmo estabelecem, no ensino, as indicac;oes sao sempre confusas, pois qualquer
com manuais, tutotiais, publicac;ües profissionais ou qualquer outra fór- um pode ter sua opiniiio sobre como se repartem as responsabilidades entre
mula. Mas, de qualquer modo, implica continuar aprendendo ao longo de o professor, a escola, o "sistema" (educacional), a família, o meio, a rua, as
toda a vida. Sem necessidade de dramatizar isso, nem de supor todo mun- condic;oes de vida, os meios de comunicac;iio, o outro "sistema" (social), cer-
do dividido entre a sala de aula e o locaJ de trabalho, basta pensar naquilo tas "crises" (de valores, de modelos, de religiáo, de economía, etc.), etc.
que, por vários procedimentos, um empregado burocrático tem de apren- Desse modo, como todo grupo profissional, o dos professores se ve diante da
der sobre novos programas informáticos, urna advogada sobre novas nor- necessidade e da imposic;ao de urna adaptac;ao permanente, mas, diferente-
mas, um vendedor sobre novos produtos,_um medmico sobre novos moto- mente da maioria deles, pode isolar-se e encastelar-se no saber e no saber-
res, urna dona de casa sobre novos eletrodomésticos e alimentos, urna fazer inicialmente adquiridos, nos métodos de sempre, em seu caderninho
médica sobre novos fármacos e técnicas, etc. A formac;ao inicial perde um particular; ou, ao contrário, no apego a algo que o livre, de modo incondicio-
peso relativo em contraste com a formac;ao perm.a nente e, enquanto nesta nal, do mar de dúvidas, normalmente o livro-texto. Também pode, é claro,
reside, em proporc;ao cada vez maior, a aprendizagem dos conhecimentos procurar acompanhar o ritmo da mudanc;a, procurar inclusive antecipar-se
úteis e aplicáveis no trabalho e na vida social, aquela corresponde, em a ela e dominá-la, no sentido de preve-la e tirar o melhor proveito dela .
contrapartida, a formac;ao e o desenvolvimento das capacida,des gerais para Meios nao faltam, desde os recursos disponíveis oficialmente, que nao sáo
poder aproveitar, posteriormente, as possibilidades desta. E sua responsa- poucos (cursos de longa ou curta durac;áo, programas especiais, nenhum
bilidade, portanto, assegurar a cada aluno a oportunidade de aprender a dos quais, pelo que se sabe, esta o além de sua capacidade), até urna infini-
aprender. dade de outros aos quais se pode ter acesso por iniciativa própria, mas é
Mas seria absurdo pensar que todos serii.p abrigados a aprender du- comum o professor prometéico, que olha para a frente, chocar-se de imedi-
rante toda a vida .. . menos o professor. De fato, um dos cenários e m que ato com seu colega epimetéico,· o que só olha para trás, seja em forma de
mais se faz notar a insuficiencia da formac;ao inicial é o próprio ensino . reac;ao hostil, de falta de apoio ou de simples indiferenc;a, e tanto por parte
Considere-se que os professores de ensino fundamental ou médio, que an- de seus colegas como indivíduos quanto da escala como instituic;áo ou da
tes tinham um público procedente de famílias com nível educativo precá- administrac;ao educacional como autoridade.
rio, encontram-se agora diante de alunos que, em muitos casos, vem de Essa perda de referencia com relac;ao as func;:oes necessárias é tam-
famílias em que os país possuem diplomas similares ou superiores aos de- bém urna perda de status do professor. Enquanto sua formac;áo é hoje ¡· ,.
les próprios. Mas, além disso, esses mesmos pais sao abrigados a adquirir praticamente a mesma que há um século (urna formac;ao de curta dura-
no ou para seu trabalho nao apenas conhecimentos muito específicos, como c;ao, embora convertida em universitária para os professores de ensino
também capacidades e habilidades transversais, como a informática ou fundamental e urna licenciatura para os professores de ensino médio),**
ciutros idiomas, que gostariam que seus filhos adquirissem na escoJa. Como o nível geral do público elevou-se de forma espetacular. De um modo ou
qualquer profissional, o u como qualquer trabalhador, os professores perce- de outro, as famílias, a maioria em profissoes e locais de trabalho menos
bem que precisam seguir a evoluc;ao constante, seja do que ensinam, so- encastelados do que a docencia e a escala, percebem, seja de urna forma
bretudo entre os especializados em urna determinada área, seja de como crítica ou de urna forma fetichista, que a corrente social nao se detém e
ensinam, especialmente os que tratam com as crianc;as e com os jovens nas que elas próprias, conforme o caso, só conseguem manter-se nela com
idades mais difíceis (urnas por sua importancia seminal, apesar de seu
manejo aparentemente fácil, outros por seu caráter de encruzilhada, ape-
·N . de R. T. Os adjetivos prometéico e epitéico fazem referencia aos personagens mitológicos
sar de e também em razao da maior maturidade pessoal), seja de ambas as Prometeu ("aqueJe que pensa antes") e seu irmiio Epimeteu ("aqueJe que pensa depois").
coisas. Mas, enquanto em outros ofícios e profissoes os sinais de inadaptac;ao (Ver Epílogo neste Ji vro.)
.. N.de R. Dados referentes a re alidade da Espanha.
22 MARIANO FERNÁNDEZ ENGUITA EDUCAR EM TEMPOS INCERTOS 23
grande esfon;o (correndo para conseguir permanecer no mesmo ponto e pode chegar a acorrer em urna única escala ou em urna única sala de aula,
tendo de correr muito mais para ir a algum lugar, como no país das mara- sobretudo quando sao trazidas pelas migra<;oes para as cidades e quando
vilhas), ou se veem afastadas dela por falta de meios e/ ou de capacida- as políticas sociais incorporam as escoJas ou mantem em suas salas de aula
des pessoais e se interrogam e interrogam os professores sobre se a esco- grupos que, de outro modo, teriam levado mais tempo para chegar a elas
Ja caminha ou nao paralelamente a sociedade. Surgem, enüí.o, inúmeras ou muito menos tempo para abandoná-las.
perguntas: Por que já nao estao aprendendo a ler? E o ingles? E a infor- Os professores nao sao menos diversificados. Em alguns casos,
mática? Há atitudes sexistas? Refon;a-se sua auto-estima?, etc. Assim, o referimo-nos, na Espanha, ao profesorado ou aos docentes de forma indife-
professor pode ver seu trabalho revalorizado, visto o maior interesse da renciada e, em outros, distinguimos entre maestros (de primaria) e profesores
comunidade por sua atividade, mas também - e, infelizmente, isso é o (de secundaria): Mas nao devemos encerrar este capítulo sem nos deter-
mais freqüente - pode achar que está senda questionado e sentir que mos em urna distin<;ao mais profunda. Ao assinalar as diferen<;as entre o
estao invadindo sen terreno. longo período de mudan<;a suprageracional e o relativamente recente (e,
em muitos lqgares, recém-chegado) de mudan<;a intergeracional, assinala-
mos que a maioria da humanidade viveu um longo período em condi<;oes
ALUNOS E PROFESSORES DIVERSIFICADOS em que nao havia necessidade de escalas e, portanto, nao havia escalas.
Mas, ao mesmo tempo, mostramos que, para um pequeno grupo de sacer-
E, mais urna vez, naturalmente, a mudan<;a no tempo é vivida como dotes, escribas, funcionários, etc., a escoJa era um instrumento essencial
mudan<;a no espa<;o, tanto longitudinal como transversal: o público da es- pois o coletivo se produzia e reproduzia por meio dela. Poderíamos desta~
cola é comparativamente mais diversificado, porque a sociedade é mais car casos como dos escribas egípcios, dos mandarins chineses, dos funcio-
diversificada e porque setores mais amplos podem permanecer por mais nários do Baixo Império, dos padres e equivalentes ao longo de toda a
tempo na institui<;ao, porque grupos distintos nascem em meios e em con- história das religioes do livro, os missi dominici carolíngios e, naturalmente,
di<;oes diferentes e porque o processo de mudan<;a torna essas diferen<;as os funcionários e, em inúmeros casos, os militares da Idade Moderna e
mais agudas. O professor se dá canta, entao, de que aquilo que para alguns Contemporanea. Pois bem, os centros de ensino em que se formavam esses
é excessivo, para outros é insuficiente; senda assim, enguanto alguns nao diversos carpos de profissionais burocráticos eram o que boje chamaría-
compreendem o sentido de seu trabalho e algumas famílias nao oferecem mos de secundários (os lycées franceses, os gymnasia alemaes, os institutos
a escala o apoio individual e coletivo necessário, outros podem dizer que italianos ou espanhóis, as grammar schools britanicas, etc.), que durante
tuda parece pouco, que nao estao satisfeitos, que nao valorizam e que até muito tempo coexistiram, mas sem se misturarem, com as escalas elemen-
menosprezam seu trabalho. tares, primá,rias, ou com a simples inexistencia de escalas para as classes
Nem é preciso dizer que as mudan<;as sociais, assim como nao ocor- populares. E um lugar-comum, por exemplo, que os liceus franceses eram
rem em um día, ocorrem antes em alguns países do que em outros, em o viveiro da burocracia napoleonica, assim como os ginásios alemaes seri-
algumas regioes do que em outras, para alguns grupos sociais do que para am da oficialidade bismarckiana.
outros. lsso faz com que, em um determinado momento, possam coexistir, Conseqüentemente, o que foi dito sobre o papel da escala em rela<;ao
em urna mesma sociedade, grupos que se encontram em estágios muito a mudan<;a social deve ser entendido como urna interpreta<;ao essencial-
distintos do processo de moderniza<;ao, ou que percorrem ou percorreram mente relativa a educa~ao básica e primária, isto é, a escola propriamente
tal processo de formas muito díspares, dando lugar a combina<;oes muito dita, o que foi chamado de instrucción em contraposi<;ao a enseñanza ,
diversas - ou simbioses, como diziam antes os documentários - de tradi- escuelas em contraposi<;ao a institutos (e alumnos em contraposi<;ao a
<;ao e de modernidade. Essa desigualdade essencialmente longitudinal no
tempo manifesta-se, em um determinado momento, como diversidade trans-
versal no espa<;o, entre países, regioes, zonas, bairros ou grupos sociais. 'N . de T. No sistema brasileiro, primaria e sewndaria correspondem, respectivamente, a
Essa desigualdade é muito visível no conjunto do sistema educacional e ensino fundamental e ensino médio.
24 MARIANO FERNÁNDEZ ENGUITA
EDUCAR EM TEMPOS INCERTOS 25
Seria nela que as crianc;as aprenderiam, de modo sistemático, a se sub- urna época, praticamente um século - o último terc;o do século XIX e os
meter a urna autoridade impessoal e burocrática; a aceitar que . outros dois primeiros do século XX-, e m que a divisa.o manufatureira do trabalho
decidissem por elas o que fazer, como fazer, quando e em que ntm?; a e a mecanizac;ao, primeiro, e o taylorismo, juntamente com o fordismo e a
conceber 0 tempo como um contínuo passível de ser fragmentado e vahoso automatizac;ao, depois , atuariam como poderosos instrumentos na
por si mesmo; a nao esperar de sua a~ividad~ dirigida (seu trabal~o) urna desqualificac;ao, na submissao e na normalizac;ao das atividades trabalhistas.
gratificac;ao intrínseca (lucro), mas si m extnnseca (recompensa), a com-
petir de maneira destrutiva (estigmatizante e .ex:ludente) uns com .os OS DESAJUSTES ENTRE A EDUCA~ÁO EO MUNDO DO TRABALHO
outros; a se submeter aos ditames de urna avahac;ao alheia const~nte, a
aceitar diferenc;as geométricas nas recompensas resultante.s de d~feren Mas será que a escala foi eficazmente submetida aos ditames da em-
c;as aritméticas em seus exitos; a assumir urna estrutura ~oClal desigual e presa, como as vezes se supóe? Se olhamos para as rotinas das escalas
estratificada, mas presumivelmente produto de suas diferenc;as e seus mútuas ou simultaneas do século XIX, ou simplesmente para as de algu-
desempenhos individuais; a organizar sua atividade seguindo o~ ditames mas escalas tradicionais no século que acaba de se encerrar, surge esponta-
da divisao vertical e horizontal do trabalho; a manter urna atiVIdade re- neamente a evocac;ao de imagens como a escala-fábrica, a escola-quartel,
gular e continuada independentemente de seu estado de animo e suas a escola-prisao, etc. No essencial das relac;oes cotidianas, pode-se observar
circunstancias ; a de senvolver hábitos de conduta de acordo com as ne- que existiu urna forte aproximac;ao entre as relac;oes sociais do processo de
cessidades do trabalho organizado. 5 ensino-aprendizagem e as relac;oes sociais do processo de produc;ao na so-
Essas relac;oes sociais do processo educativo antecipavam as rel.a- ciedade industrial (capitalista o u socialista). Contudo, a es cola nao foi úni-
c;oes sociais próprias da industrialízac;ao, mais acentuadas .no_ capitahs- ca ou unilateralmente isso. Nenhuma organizac;ao é simplesmente o que
mo, no qua! o empregador dispóe da poderosa .arma da den;u~sao em face suas autoridades em exercício querem que seja: nem mesmo com as fábri-
do empregado, do que no estatismo (ou social,Ismo bur~cratic~), no ~ual cas de propriedade de Ford ou as oficinas dirigidas por Taylor foi assim.
na falta desta tem de recorrer diretamente a repressao, ma1s tem¡vel, Além disso, embora se possa observar urna lógica interna da empresa (para
porém muito menos eficaz para esses efeitos. A aliena~a~ d~ trab.al?a~or o controle vertical e a desqualificac;ao do trabalho) da qual Ford e Taylor
dos fins, meios e processos de seu trabalho, sua submissao a~ e~1genoas nao seriam mais do que paladinos, as coisas nao sao üío claras na escala,
tanto do autocrata (o empresário) como do aut6mato (a maquma), sua pois seu ambito é outro (o Estado, em vez do mercado), o núcleo operacional
motivac;ao mediante recompensas extrínsecas ~sal~ri?s), su~ indiferenc;a nelas (os professores) tem seus interesses e sua dinamica próprios, e as
em relac;ao ao conteúdo do trabalho, sua deferencia a autondad~ na em- mudanc;as em su<! composic;ao demográfica (a feminizac;ao) nao devem ser
presa, suas relac;óes competitivas no merc~do d~ tr~balho: tudo Isso tem consideradas irrelevantes.
sua antecipac;ao na escala. A sala de aula e a pnme1ra bancada de traba- No ambito da economía capitalista (mercado, acumulac;ao privada de
lho do futuro trabalhador, e o professor, seu primeiro capataz - embora capital mais trabalho assalariado), a fonte de poder é a propriedade, o que
ambos suavizados, em versáo ad usum delphini. converte o empresário, em princípio, em autoridade suprema e legítima da
Por outro lado, desaparecida a aprendizagem (como um aspecto a empresa como organizac;ao e, portanto, do trabalho. O Estado, no entanto,
mais da perda do controle, nesse caso coletivo, do trabalho pelos trabalha- insere-se em outra lógica. Embora ele próprio e qualquer de suas depen-
dores, pois controlar a aprendizagem era também controlar o acesso a dencias estejam sujeitos a tendencia autoritária de toda organizac;ao, um e
profissao e, portanto, as condic;óes do mercado e o prec;o. d~ tr~balho) , outras inserem-se em um campo de legitimidade no qua! os titulares de
alguém ou algo teria de assumir a preparac;ao tanto da soc1ahzac;ao con_:o direítos sao todos os indivíduos por igual, índependentemente de suas di-
da capacitac;ao para a atividade trabalhista, e ninguém ou nada estava ~ao ferenc;as de propríedade ou de outras características índividuais . Podemos
a mao como a escala. Assim, a ela eram dirigidas as demandas no sentido resumir isso dizendo que a empresa desenvolve urna lógica autoritária, e o
de desenvolver, nos adolescentes, as aptidoes e as atitudes requeridas pelo Estado, urna lógica democrática, ainda que nos dois casos trate-se de urna
novo cenário do trabalho. Deve-se levar em canta que estamos falando de
32 MARIANO FERNÁNDEZ ENGUITA EDUCAR EM TEMPOS INCERTOS 33
caracterizac;ao sumária e, nesse sentido, unilateral - e aqueles que se dis- mente, de suas diversas instituic;oes, incluídos o mercado de trabalho e a
puserem depois a assinalar os aspectos nao-democráticos do Estado mo- empresa.
derno, que sao muitos, também poderiam entreter-se enumerando os as- Por último, a atenc;ao, pelo menos retótica, ao desenvolvimento pes-
pectos democráticos da empresa, que nao sao poucos. Seja como for, o soal por meio da educac;ao escolar teria sido impensável, creio, sem a
Estado desenvolve urna lógica universalista e igualitária, da qual o merca- feminizac;ao do ensino- a retórica é em si mesma efetiva, sobretudo quan-
do e a empresa carecem, e sem a qual tetia sido impensável, por exemplo, do seu conteúdo passa a fazer parte da moral. É verdade que a própria
que as mulheres chegassem a receber tanta (ou tao pouca) e tao boa (ou atividade de educar presta-se particularmente a ser concebida como urna
tao má) educac;ao quanto os homens -para que escolarizar as mulheres se simples ajuda ao desenvolvimento de qualidades, de dons, de potenciali-
a escala era simplesmente um instrumento a servic;o do capital, em urna dades e de outros elementos presumivelmente inatos, mas é difícil imagi-
época em que o trabalho assalariado se tomava esmagadoramente mascu- nar as modernas tendencias pedagógicas vindo das maos de professores
lino? E para que escolarizar tanta gente hoje, se urna parte importante do sexo masculino (haverá oportunidade de voltar a isso) . A incorporac;ao
dela vai parar em empregos tao pouco qualificados que praticamente nao em massa da..mulher ao magistério e ao conjunto do ensino nao-universitá-
requerem formac;ao prévia? Essa lógica se traduziu na incorporac;ao de rio - com sua maior proximidade e sua visao provavelmente mais ampla
novos setores a escola, em sua universalizac;ao efetiva, na melhoria da es- da infancia e do desenvolvimento das crianc;as como pessoas, e nao mera-
colarizac;ao básica, na ampliac;ao do período obrigatótio, na inclusáo e nas mente como aluno's -, sem dúvida, foi decisiva para que a escala assumisse
diversas políticas compensatórias. Talvez nao tenha sido suficiente, mas, valores e metas que difícilmente poderiam resultar da economía ou da
sem dúvida, nao foi irrelevante. política, do mercado ou do Estado, porque resulta antes das relac;oes
Por outro lado, é preciso levar em conta o peso da profissao docente. holísticas, onicompreensivas, nao-específicas e difusas, próprias e caracte-
Apesar da tendencia atual de tomar emprestada para a escala a linguagem rísticas da esfera familiar.
da empresa (nao apenas a servic;o do empregador, mas também a servic;o A expansao- ou, se preferir-se, inflac;ao - dos títulos escolares e aca-
dos empregados), nema escala é (simplesmente, seja pública ou privada} demicos, por outro lado, escapou a qualquer requisito de ajuste as necessi-
urna empresa (como lugar de trabalho), nem os professores sao propria- dades e as possibilidades do sistema produtivo . Em primeiro lugar, pela já
mente um grupo proletário. A diferenc;a entre urna profissao e um simples mencionada lógica democrática e igualitária do Estado, que é nao só o
grupo de trabalhadores é que aquela se distingue por seu nível de qualifi- grande regulador e financiador como também 9 principal provedor de es-
cac;ao e, sobretudo, por sua autonomía no processo de trabalho (resultante colarizac;ao, nao podendo deixar de responder as demandas de ampliac;ao
de sua qualificac;ao ou de outras circunstancias); duas características que das oportunidades. Em segundo lugar, pelo impulso expansivo da profis-
sao, cada urna delas, fontes de poder. Urna fábrica de automóveis tende a sao docente, sempre a favor da ampliac;ao da oferta educativa e do orc;a-
ser (embora nunca chegue a se-lo) o que seu proprietário quer que seja, mento destinado a ela. Mas também, em terceiro lugar, a própria dinamica
mas urna instituic;ao centrada no tn~balho de um grupo profissional (como do mercado de trabalho contribuí para a inflac;ao dos diplomas, para o
a escoJa ou, no que se refere a isso, os hospitais ou os quartéis) tende a ser credencialismo. Justamente porque os empregadores utilizamos títulos dis-
o que a profissao quer que seja. o poder da profissao docente nao parou de ttibuídos pela escala como um dos melhores indicadores das qualidades
crescer desde seu surgimento, mais urna vez apesar do que sustentam cer- dos trabalhadores (nao importa que as vejam como indicadores de capaci-
tas teorías radicais- mas que seria insustentável se, em vez de se lamentar dade ou de submissao, de inteligencia ou de diligencia, etc.), estes devem
pela perda de um passado imaginário, ou de confundir o poder com a tratar de obte-los para competir com outros concorrentes potenciais na
distinc;ao ou o prestígio, se considerassem simplesmente as condic;oes de busca de emprego. O paradoxo consiste em que, quanto maior importan-
trabalho, a flexibilidade horária, a possibilidade de estabelecer por si só cia adquire no mercado de trabalho a educac;ao em geral (quanto mais é
objetivos e formular processos, a ausencia de controles externos, etc. Esse levada em conta no recrutamento e na promoc;ao dos empregados), mais
poder profissional, como nao podía deixar de ser, manifestou-se em um se desvalorizam os títulos individuais (nisto consiste a inflac;ao: nao em
crescente isolamento da escola com relac;ao a sociedade e, conseqüente- que o dinheiro-símbolo caia em desuso, mas em sua perda de valor unitá-
34 MARIANO FERNÁNDEZ ENGUITA
EDUCAR EM TEMPOS INCERTOS 35
rio) , embora nunca todo s por igual. A segunda parte do paradoxo é que, cimentos, etc., sendo, no primeiro caso, por meio de diferentes empregos
assim como na inflac:;ao monetária quanto mais o dinheiro se desvaloriza, e, no ~eg~ndo, dentro de um mesmo emprego que se modifica. Além disso
maior quantidade se necessita para adquilir os mesmos produtos; na infla- no pr~metro caso - flexibi\idade externa - terá de acrescentar a isso cert~
c:;ao de diplomas , quanto mais se desval orizamos títulos em termos absolu- ca~aCldade de procurar novos empregos, talvez de se instalar por conta
tos, mais se necessita de um nível mais elevado para se ter acesso aos propna, d~ co~seguir _s~b~í~ios para o desemprego ou para a criac:;ao de
mesmos pos tos de trabalho. 6 emprego, tsto e, certa mtClattva. No segundo caso- fl exibilidade interna-
Por outro lado, importantes mudanc:;as - tanto no emprego como no , a aposta da empresa por colocar novos produtos em novos mercados para
trabalho - poem em questao atualmente a funcionalidade da organizac:;ao ~anter _o-quadro d~ pessoal requererá ciclos mais rápidos do projeto a
escolar tradicional para os requisitos, as necessidades, as oportunidades e os dtstnbmc:;ao, mecamsmos de decisao mais compartilhados e participativos
desafíos do mercado de trabalho e da organizac:;ao da produc:;ao. O contexto e, de manetra geral, um maior envolvimento e urna maior participac:;ao do
em que as empresas se movem tornou-se visivelmente mais turbulento, com- trabalhador no funcionamento da empresa, o que é outra forma de inicia-
petitivo e imprevisível, obrigando-as a extremar sua capacidade de respon- t~va. O que pretendo destacar é que urna escola uniformizadora, autoritá-
der com flexibilidade. No que diz respeito ao trabalho, urna empresa pode na, moldada e~ grand.e medida conforme o padrao da velha organizac:;ao
conseguir flexibilidade por duas vías: a primeira, que poderíamos chamar de d~ tr~balho hoJe em cnse, poderia ficar abaixo das expectativas e das exi-
Jlexibilidade externa , consiste em ajustar constantemente seus recursos as gencias d~ mundo do emprego ou, pelo menos, de sua patte mais dinami-
necessidades do mercado, captando e prescindindo da mao-de-obra segun- ca e promtsso:a. E, como temía Machado de Assis, • nao porque es teja a u
do as oportunidades que este lhe oferec:;a. Por mais contrastante que seja e dessus de la melée, mas por nao estar a altura das circunstancias.
por mais indignac:;ao que cause a desigualdade entre as condic:;oes de vida do
empregador e as do empregado, é preciso ser muito intransigente para nao
compreender que , em última instancia, e o resto das coisas permanecendo EDUCAR NA SOCIEDADE DO CONHECIMENT07
igual, urna empresa nao pode manter intacto um quadro de pessoal quando
o mercado para seus produtos se reduz de form a duradoura, do mesmo Seria um erro crasso interpretar esse questionamento das atuais rela-
modo que nao pode deixar de ampliá-lo quando se expande; em algum mo- c:;oes da ~duc~c:;ao com a economía e o trabalho como urna negac:;ao ou urna
mento, p01tanto (outra coisa é nao fazer isso antes do tempo, em excesso, desvalonzac:;ao de sua relevancia para estes. Ao contrário, há todos os moti-
para quando chegar a ocasiao ou para manter ou elevar os lucros da propri- vos p~ra assegurar, com toda a enfase possível, que a educac:;ao nunca teve
edade, ou que ao mesmo tempo elevem os salários astronomicos dos direto- tanta tmportancia económica como em nossos dias, tanto para as socieda-
res), será forc:;ada a modificar seu quadro de pessoal, na falta de outra solu- des como para os indivíduos. Esse é o sentido das freqüentes afirmac:;oes de
c:;ao. Nao é preciso dizer que, vista da perspectiva do trabalhador, essa é a vía que estamos e~trando na (era da) economía (ou na sociedade) do conheci-
da precariedade, do salto de um emprego a outro, de urna empresa a outra, mento (ou da mformac:;iio, informática, digital, etc.). Sem entrar na discus-
do emprego ao desemprego, etc. A segunda vía, que podemos chamar de sao.sobre o ma~or ou o menor acerto de cada urna dessas express6es _que
flexibilidade interna, consiste em buscar novos mercados mediante novos muttas vezes sao usadas de maneira indistinta, embora nao devesse ser
produtos, o que sup6e fazer coisas novas com o quadro de pessoa\ antigo. assim -~ é n~cessário _compreende~ o peso decisivamente maior que adqui-
(Deixemos de lado as implicac:;oes de tais estratégias para os demais fatores rem hoJe a mformac:;ao, o conhec1mento, a qualificac:;ao e a educac:;ao nas
da produc:;ao: maquinário, financiamento, etc.) Nesse caso, o trabalhador coordenadas da nova economía e da nova sociedade que, com suas Iuzes e
mantém seu emprego, mas este se transforma internamente, exigindo dele suas sombras, já se tornam visíveis por toda parte.
readaptac:;oes sem dúvida maiores do que se tentasse conseguir o mesmo
tipo de emprego anterior em outra empresa.
O que as duas estratégias tem como efeito comum é que o trabalhador
·N. de R. Broca , J.B. Na década modernista: Machado de Assis a u dessu.s e la melée. Revista
precisa desenvolver urna gama mais ampla de aptid6es, destrezas, conhe- do L!vro, Rio de Janeiro, set. 1948.
36 MARIANO FERNÁNDEZ ENGUITA
EDUCAR EM TEMPOS INCERTOS 37
A economía o u, em termos mais restritos, a produc;ao pode ser inter- da propriedade como urna forma de poder social nao pensamos nos meios
pretada como um sistema pelo qual fluem tres elementos: matéria, ener- de consumo, mas na propriedade diferencial dos meios de produc;áo; por
gía e informac;ao. Cada um deles apresenta, nesse ambito, suas peculiari- exemplo, a que separava o nobre proprietário de terra dos camponeses
dades. A "matéria" do sistema económico produtivo nao é a mesma que a sem-terra ou da que separa o capitalista do trabalhador assalariado. Quan-
de um sistema físico, mas incluí todos aqueJes elementos que, por si mes - do nos referimos a autoridade, nao se trata de qualquer forma desta, como,
mas, sao inertes a partir da perspectiva do sistema, embora possam ser por exemplo, a parental, a patriarcal ou a política, mas da autoridade pura
utilizados como meios de produ~ao - entre os quais se incluí a energía e simples sobre o trabalho de outras pessoas, a que possui o diretor ou o
física, além das instalac;oes, o maquinário, os instrumentos e os materiais capataz. Quando mencionamos, finalmente, a qualifica~ao, nao estamos
de trabalho. A "energía" do sistema económico é o trabalho, sem o qual pensando neste ou naquele nível absoluto de informac;ao ou de conheci-
nenhum meio de comunicac;:ao selia capaz de produzir nada (no extre- mento (todo mundo tem algo de ambos), mas na posse de urna informac;ao
mo, nem mesmo o maquinário automático) e que se encarrega de utilizar e de um conhecimento maiores do que os de outros e/ ou simplesmente
ou de ativar todos eles. E a informac;ao é simplesmente isto: a informa- diferentes, porém mais escassos (em relac;áo as necessidades económicas).
c;:ao, o conhecimento ou essa parcela deles que é economicamente perti- Poderíamos dizer também que essas tres formas de poder sao tres formas
nente e útil. de capital: económico, social e cultural. O importante, porém, é assinalar
Em urna economía de subsistencia plimitiva, os meios de produc;ao, o que, antes ou acima de suas diferenc;as, tem um elemento comum: todas
trabalho e a informac;ao atingem dimensoes muito limitadas, manejáveis elas sao poder, embora com características distintas, e todas elas estao
em escala individual ou doméstica. Em outras palavras, cada habitac;ao desigualmente disttibuídas.
tem urna quantidade de meios de produc;ao (armas de cac;a, instrumentos O característico da economía da informac;:ao, ou da sociedade do co-
de pesca, terra ou o que seja) suficientes para suas necessidades e possibi- nhecimento, é o crescimento espetacular do papel da qualificac;ao. A pri-
lidades e essencialmente equivalente a de qualquer outra; cada indivíduo meira revolu~ao industrial, cujo cenário inicial foi o norte da Europa e que
em idade útil conta com seu trabalho, e a habitac;ao típica conta com um nao casualmente se identifica coma máquina a vapor, com os altos fomos,
número limitado de unidades de trabalho, embora as habitac;:oes mais nu- com o tear automático ou com a estrada de ferro, foi, antes de tudo, urna
merosas tendam a ser mais exíguas; por último, a acumulac;ao da informa- revoluc;ao nas dimensoes dos meios de produc;ao e, devido a isso, na estru-
c;ao, as destrezas e os saberes de um homem e de urna mulher adultos tura da propriedade. A segunda revolu~ao industrial, cujo cenário inicial
(levando em canta que a divisao sexual é a primeira forma de divisao do foram os Estados Unidos, e que se identifica com o taylorismo e o fordismo
trabalho) praticamente equivalem ao conjunto do saber social (exceto o (e com a grande corporac;ao, isto é, com a concentrac;ao do capital por
saber esotérico do xama). Mas as coisas mudam quando qualquer desses meio das sociedades por ac;:oes), foi, mais do que tudo, urna revoluc;:ao nas
tres elementos comec;a a ser utilizado em grande escala, isto é, quando os dimensoes e, por isso, nas formas de organizac;ao do trabalho (e do capi-
meios de produc;ao alcanc;:am um volume tal que apenas alguns poucos tal) e, portanto, na estrutura da autoridade. A terceira revolu~ao industrial,
podem obte-los ou controlá-los (porque tem autoridade para isso se forem que também qualificamos como tecnológica, ou científico-técnica - a que
coletivos ou públicos, porque podem pagar o prec;o se forem particulares vivemos hoje - com um cenário mais difuso, porém localizado em certas
o u privados, etc.); quando os trabalhadores devem cooperar regularmente regioes interconectadas, embora nao-contíguas, que sao viveiros das novas
em grandes grupos cuja eficácia requer urna autoridade coordenadora; tecnologías centradas na informática e nas telecomunicac;oes, é, acima de
quando a informac;ao e o conhecimento aumentam de forma tal que cada tudo, urna revoluc;ao nas dimensoes e no papel do conhecimento (a ciencia
indivíduo só pode possuir urna parte deles, mas essas partes nao tem todas e a tecnología) e, portanto, na estrutura da qualificac;ao. Essas revoluc;oes
elas a mesma utilidade. nao foram (nem estao senda) monoaxiais, mas há sempre um elemento
O poder diferencial sobre esses tres elementos do sistema económico que predomina claramente sobre todos os outros, embora também os in-
é o que chamamos, na ordem correspondente que vem sendo apresentada duza. A escalada dos meios de produc;ao resultante da primeira revoluc;:ao
neste capítulo, de propriedade, autoridade e qualificac;ao. Quando falamos industrial exigiu, de imediato, novas formas de organizac;:ao, em particular
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a submissao da mao-de-obra a disciplina fab ril, 8 e precisou de formas de todo o niilismo educativo que encontramos por toda parte, a instituic;ao
trabalho mais qualificadas, embora minoritárias (o projeto do próprio escolar tem hoje urna importancia económica e social nunca antes alcanc;ada.
maquinário, su a manutenc;ao , etc.). A segunda revoluc;ao industrial, isto é, Tanto o sistema económico em seu conjunto como seus atores indivi-
a transformac;ao nos métodos de organizac;ao do trabalho representada duais necessitam e requerem do sistema escolar a qualificac;ao do trabalho,
pelo fordismo (e do capital, pela corporac;ao), tomou possível o uso de algo que tal sistema, por sua vez, pode e deve oferecer-lhes. É preciso en-
meios de produc;ao em volumes e quantidades até entao insuspeitados e tender a qualificac;iio como o conjunto de habilidades, de destrezas, de
criou novas qualificac;oes, embora ainda minoritári.as (as oficinas de proje- informac;oes, de conhecimentos, de capacidades, etc. necessárias ou úteis
to e de métodos). O uso intensivo da infotmac;ao e do conhecimento que a para o processo de trabalho e discutir amplamente sobre o papel relativo
nova revoluc;ao industrial trouxe consigo permitiu novas formas de mobili- das capacidades gerais e específicas das aptidóes e das atitudes, das des-
zac;ao dos meios de produc;ao e de coordenac;ao do trabalho, em grande trezas formais e das habilidades informais, etc. Com fins heurísticos, sugi-
escala e mediante estruturas reticulares, que escaparam as deseconomias ro entender a qualificac;ao como a capacidade de:
da grande fábrica, inclusive de "empresas sem fábricas", mas que os orga-
nizaram e coordenaram em urna escala ainda mais ampla. a) aplicar certos procedimentos ou rotinas a certas tarefas;
Cada um desses desenvolvimentos deu lugar a urna nova divisao so- b) diagnosticar cada caso ou problema para determinar qua! é o pro-
cial, ou aprofundou-a e ampliou-a em níveis e limites antes inimagináveis. cedimento ou a rotina adequada; e
A prime ira revoluc;ao industrial multiplicou numericamente e consolidou a e) identificar novos problemas e criar novos procedimentos ou reti-
burguesía como classe privilegiada, coro a contrapartida de um proletaria- nas para estes, ou para a melhor resoluc;ao de problemas antigos.
do formado por todos aqueJes que, nao possuindo meios de produc;ao (ero
grande ou em pequena escala), viam-se abrigados a vender seu trabalho a Trata-se de tres formas distintas de saber que poderíamos designar,
terceiros em troca de um salário. A segunda revoluc;ao industrial permitiu respectivamente, como conhecimento operacional, profissional e científi-
a proliferac;ao e a reafirmac;ao dos diretores, isto é, a burocracia (se nao a co. O primeiro, o conhecimento operacional, surge da divisao de tarefas e é
entendemos apenas como pública) , colocando, diante deles, trabalhadores configurado por ela: urna vez que as tarefas se multiplicam devido ao sur-
definitivamente subordinados ao processo de trabalho. A terceira revolu- gimento de novas processos de trabalho e a constante subdivisiio dos ve-
c;ao industrial está trazendo consigo o desenvolvimento e o fortalecimento lhos, é tao impossível que um indivíduo possa dominá-las todas como é
das profissoes, em contraste coro grupos de trabalhadores náo-qualifica- importante especializar-se em algumas deJas. O segundo, o conhecimento
dos, ou pouco qualificados, que se veem relegados a urna petmanente con- profissional, aufere sua necessidade da incerteza: visto que os casos e pro-
correncia com as máquinas que ameac;am substituir seu trabalho por terem blemas nao tem - ou nem sempre tero - estampado um rótulo que nos
um custo menor. informe de antemao sobre o modo de abordá-los e de resolve-los, em mui-
Precisamente do fato de estarmos em meio a terceira revoluc;ao indus- tas situac;óes requer-se nao só urna análise e um juízo prévio sobre a na tu-
trial, que atribuí a informac;ao e ao conhecimento um papel cada vez mais reza do problema, como também urna escolha entre as diversas rotinas e
decisivo na produc;ao, multiplica o poder da qualificac;ao e divide a socie- procedimentos disponíveis, mas nem todos aplicáveis nem igualmente efi-
dade a sua volta , decorre, como nao poderia deixar de ser, urna importan- cazes, como é de se esperar. O terceiro, o conhecimento científico , é efeito e
cia redobrada da educac;ao . Enguanto a concentrac;ao da propriedade de- condic;ao da própria mudanc;a, pois obedece a situac;óes, a necessidades e a
pende principalmente do funcionamento do mercado (do que se permite possibilidades novas, ao mesmo tempo em que as cría por si mesmo.
comprar e vender e da estrutura das dotac;oes iniciais) e a da autoridade, A contraposi~ao dessas formas de conhecimento deve ser entendida
do desenvolvimento das organizac;oes (de suas dimensoes e de suas regu- em um sentido limitado. A incerteza surge da ampliac;ao da variedade e
lamentac;oes externas e internas), a concentrac;ao da qualificac;ao depen- das possibilidades e, portanto, é acompanhada do aumento das tarefas
de, essencialmente - mas nao apenas -, da estrutura das oportunidades singularizáveis, e a mudanc;a cría também novas incertezas e novas tare-
escolares e do funcionamento do sistema educacional. Assim, nao obstante fas . Assim, até certo ponto, os tres tipos de conhecimento podem fazer
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parte de um mesmo pasto de trabalho, mas em combina¡;óes muito dife- padroniza¡;ao, isto é, porque as tarefas de processamento da informa¡;ao
rentes. O trabalho predominantemente científico de um pesquisador, por contidas neles eram de pouca complexidade e podem ser atribuídas a au-
exemplo, incluí diagnósticos profissionais (como decidir que tipo de entre- tomatos. Ao mesmo tempo, significativas tarefas de diagnóstico profissio-
vista aplicar em um projeto sociológico, o u que tipo de tintura utilizar para nal já podem ser realizadas por mecanismos informáticos simplesmente
observar certas células) e rotinas operacionais (como repassar as respostas por sua velocidade no tratamento da informa¡;ao ou pelo desenvolvimento
a um co mputador ou contar os exemplares em um microscópio). O traba- dos chamados sistemas especialistas e da inteligencia artificial (por exem-
lho predominantemente profissional de um médico incluí, em geral, roti- plo, os cálculos de seguros e de empréstimos, a detec<;ao de problemas
nas operacionais, como as que se aplicam para a realiza¡;ao de certos exa- mecanicos nos automóveis, as análises clínicas ou até mesmo, com limita-
mes e, eventualmente, inova¡;óes científicas, cpmo as que podem surgir da ¡;oes, o diagnóstico médico) .
observa¡;ao de um grupo de casos ou a modifica¡;ao experimental de certos lsso tem efeitos sobre o conteúdo técnico do emprego, pois cresce a
tratamentos. As rotinas predominantemente operacionais de um mecanico demanda de conhecimentos científicos profissionais de alto nível, tanto no
exigem, normalmente, algum tipo de diagnóstico prévio e, ainda que de conjunto do. mercado de trabalho como na configura<;ao interna de nume-
forma esporádica ou excepcional, podem dar lugar a inova¡;:óes. Pode-se rosos empregos singulares. Em contrapartida, destroem-se em massa em-
notar, no entanto, que a rela¡;áo é assimétrica. Os trabalhos centrados na pregos operacionais e empregos semiprofissionais. lsso nao significa que
inova¡;:ao requerem sempre os diagnósticos e os procedimentos estabeleci- tais empregos deixem de existir: primeiro, porque continuam senda de
dos; os trabalhos rotineiros podem nao incluir o diagnóstico e raramente longe os mais numerosos; segundo, porque aparecem outros novos, de
implicam inova¡;ao. Sempre que é possível separar os diferentes compo- nível similar, em setores novas da produ¡;ao (por exemplo, transportado-
nentes - pesquisa, diagnóstico e rotinas -, também é possível confiar sua ras, embora os que saem dos velhos empregos nao sao necessariamente os
realiza¡;:ao a pessoas diferentes. De fato, a divisao do trabalho que poded- que entram nos novas) ou se mantem e inclusive proliferam em setores
amos chamar de vertical - a separa¡;ao entre concep¡;ao e execu¡;ao - con- cujas tarefas nao podem ser normalizadas o suficiente para serem atribuí-
siste, em grande medida, exatamente nisso. das as máquinas (por exemplo, na confec¡;ao, diferentemente do setor tex-
O desdobramento da informa¡;ao e do conhecimento tem diferentes til, que foi a principal vítima da primeira revolw;ao industrial). Tuda isso
efeitos sobre cada um desses componentes da qualifica¡;ao e, portanto, representa urna sensível polariza¡;ao do mercado de trabalho, com cresci-
sobre os empregos em que cada um deles predomina. Por um lado, as mento simultaneo dos empregos mais ou menos qualificados e redu¡;ao
dimensoes gigantescas da informa<;ao, a amplia¡;ao global do conhecimen- dos intermediários. Nessas circunstancias, a educa¡;ao redobra sua impor-
to, a diversifica¡;ao de produtos e processos, a própria inova¡;:ao e se u papel tancia, já que é o que mais entra emjogo- as probabilidades de ir parar em
central na concorrencia economica refor¡;am a importancia do diagnóstico um dos dois extremos.
profissional e da pesquisa científica. Por outro, a crescente capacidade de Mas qua! educa¡;ao? Naturalmente, nao a mesma das fases manufa-
processa r a informa¡;ao por meios nao-humanos permite substituir as pes- tureira e fordista da sociedade industrial. A relevancia crescente da infor-
soas nas fun¡;oes que requerem processos menos complexos, fun¡;óes que ma¡;ao e do conhecimento desloca o peso da qualifica¡;ao do componente
sao principalmente operacionais e, apenas algumas, profissionais. Um exem- operacional para o profissional e de ambos para o científico. A aprendiza-
plo de substitui¡;ao em massa de postos de trabalho operacionais - e ao gem profissional era essencialmente prática (baseada na repeti¡;ao das ta-
mesmo tempo dos diferentes efeitos da terceira revolu¡;ao industrial em refas típicas) e dirigida (sob a supervisao imediata do professor), pois o
compara¡;:ao com as precedentes- pode ser visto na robotiza¡;ao da fabri- que se espera do operário é que ele realize tarefas simples e repetitivas,
ca¡;ao de automóveis. Essa indústria, que nos anos 1960 ou 1970 era o mas exatas. A aprendizagem profissional tem de ser, sobretudo, mais abs-
paradigma do traba)ho nao-qualificado, coma utiliza¡;ao em massa de ope- trata, já que se trata de adquirir um conhecimento a partir do qua! deverao
rários literalmente a servi¡;o da máquina, hoje pode suprimir grande parte ser abordados os casos particulares, e um pouco mais ativa, já que o profis-
desses postas de trabalho justamente por sua baixa qualifica¡;ao e elevada sional deverá atuar por canta própria . A aprendizagem científica tem de
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ser ainda um pouco mais abstrata e, sobretudo, muito mais ativa (mais 6. Somente na década de 1980, por exemplo, dobrou a propon;ao de estudan-
crítica em face do saber estabelecido), já que cabe ao cientista questionar e tes universitários, mas o emprego manteve, ou mesmo ampliou, a estrutura
renovar os conhecimentos existentes. piramidal de antes.
Como se vé, nao se trata apenas de mudan<;as no conhecimento a 7. Este item resume alguns aspectos e desenvolve outros de urna comunicar;ao
partilhar ou a adquirir que se deslocaria do concreto para o abstrato e do apresentada na Fundar;ao Santillana (Fernández Enguita, 2002b).
8. Ure dizia, por exemplo, que o mérito de Arkwright nao estava no tear meca-
prático para o simbólico, mas também de mudan<;as nas atitudes a favo-
n~co_ (~eio de pr~dur;ao), que ele apenas aperfeir;oou, mas na regular;ao da
recer e a desenvolver. A atitude que se espera de um operário é a submis- disc1plma (orgamzar;ao, autoridade) necessária para faze-lo funcionar.
sao, isto é, a capacidade de seguir instru<;óes; e também, talvez, certa
indiferen<;a em rela<;ao ao conteúdo de trabalho, isto é, a capacidade de
trabalhar em algo que nao suscite seu interesse. O que se espera de um
profissional, ao contrário, é sua confiabilidade, a tranqüilid ade para o
cliente ou usuário ou o consumidor final de que o trabalhador atinge o
nível de competéncia que o estado da técnica permite (é o que espera-
mos, por exemplo, do médico que acompanha o paciente: que ele esteja
atualizado e que aplique isso, e nao que invente ou seja habilidoso), e
também um certo grau de compromisso com os objetivos de seu traba-
lho. O que se requer, finalmente, de um cientista ou de um profissional
de alto nível é a crítica e a criatividade, necessárias para resolver proble-
mas novos ou encontrar novas solu<;óes para velhos problemas.
Portanto, nao se trata simplesmente de se familiarizar com o uso e
com o manejo da informa<;ao. Pode-se padecer por falta de informa<;ao,
evidentemente, mas também por excesso, se nao se souber o que fazer com
ela. O conhecimento é justamente a capacidade de compor e de manejar
essa informa<;ao. O que separa o conhecimento profissional do operacio-
nal, a parte urna informa<;ao possível, mas nao necessariamente maior -
urna digitadora ou um guarda de transito, por exemplo, manejam informa-
<;óes o tempo todo -, é a capacidade de discernir e de se orientar em meio
a e la. E o que distingue o conhecimento científico de ambos é a capacidade
de refletir críticamente, de ir além deJa.
NOTAS
cífica, co mo a antiga "Formac;ao do Espírito Nacional" (que nome acerta- na continuidade de um discurso que vai desde as esperanc;as depositadas
do e sincero!), sob o franquismo, o u suas mais discretas variantes con- pelos Ilustrados na educa~ao como o melhor remédio contra a tiranía até
temporáneas, como formac;ao cívica, educac;ao para a convivencia, etc. as defini~oes ampliadas da alfabetiza~áo dadas hoje pelos organismos in-
Aqui e em Pequim. As ditaduras e as democracias, o século XIX e o ternacionais, que incluem aspectos como a capacidade de ter urna vida
século XX (e o XXI), as nac;oes soberanas e os nacionalismos independen- plena, de participar na vida da comunidade, etc.
tistas , os revolucionários e os reacionários, os radicais e os moderados.
Todos os poderes políticos se servem da escala para formar, sob seus pés,
A EDUCA~O INTERCULTURAL NA SOCIEDADE MULTICULTURAL
uma cultura homogenea e leaP As diferen~as sao de grau e de toleráncia,
segundo o nível de fanatismo e a disposic;ao para nao deixar que se ouc;am Uma coisa sáo os propósitos do poder político, e outra, bem diferente,
outras vozes. O grau, naturalmente, pode chegar a ser urna questao muito sua realizac;ao. Ainda que os Estados-Na~a o europeus tenham alcanc;ado
importante, inclusive a mais ou a única importante, pois o nacionalismo de um alto grau ,d~ mtegrac;ao e de homogeneizac;ao interna (por exemplo, a
predomínio cívico da ilustra~á o ou da democracia espanhola e do catala- Fra.n~a. a Suecra ou Portugal), outros (por exemplo, a Espanha, 0 Reino
nismo nao sao a mesma coisa que os delhios arcaizantes do franquismo ou Umdo o u, a o que parece, a Itália, para nao fa lar das desaparecidas Iugoslá-
a fantasmagoría étnica do abertzalismo: vw ou Checoslováquia) nao deram conta da co nsistencia e da inércia das
O reverso da nac;ao é a cidadania. A nac;ao se torna coesa mediante a ~acionalidade~ integradas neles, isto é, de coletividades territoriais que
homogeneiza~ao cultural e a identifica~ao de seus membros com ela. Mas,
reumam tambem, por sr mesmas, todos o u alguns dos requisitos que facili-
em contrapartida, estes sao declarados iguais e sentem-se e convertem- tam a co.nstru.c;ao de urna na~áo, tais como uma língua própria mais ou
se em titulares de direitos perante o coletivo. Ao mesmo tempo, a lealda- menos drfund1da e uma história comum mais ou menos assumida (a falta
de a nac;ao e os direitos perante ela exigem a supressao de todas as sempre de um: o poder político independente) . Isso pode ser entendido
corporac;oes intermediárias. A família, a aldeia, o gremio, a profissao, a co~o um éxito das nacionalidades, que resistem e sobrevivem a política
cidade, etc., todos os coletivos, que antes definiam por si mesmos os di- umfrcado~a ou de assimilac;ao, ou como um fracasso da construc;ao do Es-
reitos de seus membros - embora, por sua vez, estes deves se m ser reco- tado-Nac;ao, qu~ se transformaria assim, para usar as palavras de Anthony
nhecidos (exceto a família) pelas autmidades políticas superiores mediante Smrt~, em Na!ao-Estado (em urna na~ao, poderíamos dizer, que há urna
cartas fundacionais, etc. -, ficam relegados a mera agregac;ao de interes- exrstenc1a pohtrca- o Estado-, mas nao cultural). 6 No item seguinte, nos
1,
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ses individuais, os únicos que se reconhecem como verdadeiramente le- deteremos no problema da superposic;ao da comunidade cultural e da co- i,
gítimos perante o coletivo nacional. munidad~ política ou, se preferirern, da cultura e da cidadania. Por ora, l.
O papel da escoJa nao é menos importante nesse aspecto. Por um lado,
basta assmalar que no seio de urn Estado-Na~ao com liberdade de movi-
ela própria é um desses direitos: desde os argumentos ilustrados pela ex-
rnentos e de esta belecimento (como cabe a toda na~ao moderna), a
tensao das luzes em face da superstic;ao até a atual conversao da escolari-
plurahdade de c~letividades territoriais (nacionalidades e religioes) logo
zac;ao universal em um dos pilares do Estado social, considera-se que um desemboca, medrante as mrgra~oes internas, na pluralidade de culturas no
1
dos primeiros direitos dos cidadaos é o direito a educac;ao. Por outro lado, interior de cada urna delas.
a escolarizac;ao bem-sucedida apresenta-se ao mesmo tempo como a con- Por outro lado, certas minorías podem ter ficado arnargern do proces-
di~ao si ne qua non para o exercício de todos os direitos, como se manifesta so de construc;ao nacional, principalmente por estratégias excludentes da
mawna, mas também, em alguma medida, por estratégias de isolarnento
próprias, reativas ou nao (porexemplo, os ciganos, osjudeus, os lapoes) . A
segregac;áo dessas minorias pode ter a ver particularmente com seu modo
'N . de T. Do basco abertzale, patriota. Diz-se do movimento político e social basco, mais o u
menos radical, partidário do nacionalismo, e também de seus seguidores. Diccionario de la de vida, com diferenc;as religiosas, com sua presumida lealdade a poderes
extra ou supranacionais, mas o resultado é sempre a exdusao da ciclada- 1
Lengua Española. Real Academia Española .
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nia, em geral primeiramente de direito e depois de fato. Quando essas as demais, na melhor das hipóteses, nao sao mais do que aproximac;óes
minorias vivem afastadas do grupo dominante, como os lapóes, é provável acompanhadas por insuficiencias o u por desvíos e, na pior, alguma forma
que a relac;ao consista em urna combinac;ao de expropriac;ao das oportuni- de barbárie. Onde ficaria a escala se a cultura escolar aparecesse como
dades económicas, como, por exemplo, a terra, e estereótipos culturais mais urna entre as possíveis, sem maiores nem melhores direitos do que
depreciativos ; quando , ao contrário, vivem misturados com a maioria ou qualquer outra? E o que seria dos professores de ensino fundamental- e,
;.:
nos interstícios da sociedade, como ciganos e judeus, embora de maneira em menor medida, mas também, dos professores de ensino médio - se,
distinta, é fácil apontá-los como povo pária, como bode expiatório das iras e em vezde urnas poucas certezas, tivessem de se mover entre urna infini-
das fobias da maioria, sobretudo da plebe. dade de perguntas, dúvidas , op<;:óes e alternativas?
Por último, os grupos imigrantes, a pattir de cetta entidade e ao cabo É justamente essa a situac;ao criada pela coexistencia de diferentes
de urna ou duas gerac;óes , tomam-se minorías étnicas . Ao contrário do que culturas dentro de urna mesma comunidade política, qualquer que seja a
muitas pessoas pensam, o projeto inicial do imigrante raramente consiste origem delas (nacionalidades, minorías, imigrantes). A primeira resposta
em se assentar no país de acolhida. O propósito mais comum é o oposto: escolar é a assimila~éío pura e simples, a acultura<;:ao; isto é, a imposic;ao da
ganhar e economizar dinheiro para se instalar por canta própri~ no país de cultura escolar acima de qualquer cultura popular, étnica, grupal, estran-
origem, para pagar um casamento ou um dote, ir embora, etc. E o fracasso geira. E "cultura escolar" significa, evidentemente, a cultura dos grupos
total ou parcial na consecuc;ao de tal objetivo que prolonga o período de dominantes na socied ade : da etnia majoritária, da classe alta, dos homens,
permane ncia, impulsiona a reunificac;ao familiar (ou a criac;ao de urna fa- dos estratos já educados, etc., embora passada pela peneira eficaz desse
mília no ponto de destino) e, como tempo, converte o país de acolhida em grupo social que tem na cultura sua principal posse- as novas classes mé-
local de residencia definitivo. Um elemento decisivo nesse processo, embo- dias funcionais em geral e os professores em particular.
ra naturalmente imprevisto, sao os filhos . Essa segunda gerac;ao, que co- Comumente, a segunda resposta é a tolerancia. A cultura escolar con-
nhece apenas referencias e talvez por visitas breves o lugar de o rige m, que tinua senda a cultura com maiúsculas, mas já nao se reprime m- ou tenta-
nao encontra nele nada que se compare as possibilidades do lugar de des- se nao fazé-lo , ou acredita-se nao fazé-lo - as manifestac;óes de outras
tilia e que é socializada sem concessóes, pela escala, na cultura de acolhi- culturas. Trata-se simplesmente de evitar a recusa do outro e procurar aceitá-
da, converte-se logo na principal oposic;ao ao retomo. Passam, assim, pau- lo como é (algo como o velho To 'er mundo e'güeno!),* mas sem o menor
latinamente, de imigrantes a mi noria. 7 esfon;o para compreendé-Jo. Seja como for, ainda se atribuí a cultura esco-
Tudo isso nos leva a questao da relac;ao entre as diferentes culturas lar e própria urna posic;ao de supetioridade. Já nao se trata de impó-la
dentro de urna única comunidade nacional, o que normalmente se desig- como única, com a supressao de todas as demais, mas como necessária,
na, com difere ntes termos pouco satisfatórios, como o problema do ainda que possa coexistir com elas. É problema de cada um aquilo que faz
pluralismo, do multiculturalismo ou do interculturalismo. Ou, mais exa- na sua vida privada, mas todos devem ater-se as mesmas regras, aos mes-
tamente, ao problema da atitude da sociedade de acolhida em relac;ao as mas valores e significados na esfera pública. Portanto, o membro de outra
culturas de origem dos imigrantes . Para a instituic;ao escolar, esse é um cultura tem simplesmente a oportunidade de se desdobrar entre a socieda-
problema inteiramente imprevisto, diante do qual se encontra desarma- de global e o grupo, a escoJa e a família, a esfera pública e o recluto priva-
da, confusa e, para dizer de maneira branda, pouco disposta. A escala do, as leis e as cren<;:as, etc. Em seu limite máximo, essa política de toleran-
nasceu como mna instituic;ao decididamente de assimilac;ao, uniformiza- cia pode incluir mecanismos ou institui<;:óes formais nas quais o grupo
dora, urna máquina de fabricar súditos ou cidadaos, mas, em todo caso, minoritário possa difundir e desenvolver su a próptia cultUra, como os Black
iguais, com urna única cultura comum, compreendidos nesta a lingua-
gem, as crenc;as, a identidade, os valores, as diretrizes de conduta, etc. O
pressuposto que se oculta por trás do trabalho da escala, que fica bastan-
te patente nas metáforas sobre a ilustrac;ao , a missao, a civilizac;ao, a
' N. de R.T "Todo mundo é bom" , no falar do sul da Espanha : refere-se a um filme de
modernizac;ao, etc. , é que existe uma cultura, a boa, diante da qua! todas sucesso popula r, do genero "ca mara oculta", dirigido por Manuel Surnrners ern 1982.
52 MARIANO FERNÁNDEZ ENGUITA
EDUCAR EM TEMPOS INCERTOS 53
studies, os estudos sobre a mulher, as associa«;éíes de defesa da cultura «;éíes e, por isso, quem quiser fazer parte dessas sociedades, seja como imi-
cigana ou as aulas complementares sobre o país e a cultura de origem para grante ou como refugiado, como convertido religioso ou como dissidente
imigrantes marroquinas ou portugueses em algumas escalas espanholas. político, como nacional que deseja mudá-las ou como estrangeiro que as
A terceira resposta é o reconhecimento, o respeito. Implica aceitar que encontra dadas, tem de admitir suas regras básicas de convivencia e as
a cultura, independentemente de sua origem e forma, é um elemento regras sobre como mudar as regras. Da perspectiva da sociedade liberal,
constitutivo da identidade dos indivíduos e, portanto, deve ser respeitado. democrática e de bem-estar ocidental (da perspectiva da proclama«;ao do
E, ao mesmo tempo, aceitar que todas as culturas, mesmo que sejam dife- indivíduo como sujeito de direitos civis, políticos e sociais), é inevitável
constatar que em outras culturas existem desigualdades e rela«;éíes inter-
rentes, contem elementos de valor, que podem coexistir urnas junto as ou-
tras e que a diversidade cultural é um bem em si mesma. Mas até que nas de poder que foram abolidas ou enfraquecidas nela, e nao se pode
ponto? Nao é a mesma coisa a ora«;ao na dire«;ao de Meca e a obriga«;ao de esquecer que a liberdade de consciencia, a igualdade entre os sexos ou a
vestir o xador; nao é a mesma coisa a circuncisao e a abla«;ao do clitóris; autonomía individual sao o u devem ser direitos reconhecidos e protegidos
nao é a mesma coisa a valoriza«;ao da virgindade pré-matrimonial e o para todos; os indivíduos, e nao apenas para os que tenham nascido no
apedrejamento por adultério, etc. Pessoalmente, sou contra todas e cada Ocidente. E impossível acreditar nos direitos humanos, na liberdade ou na
urna dessas cren«;as e práticas, mas algumas sao toleráveis e outras nao. Se igualdade sem tentar estende-los, a nao ser que se acredite que sao apenas
o multiculturalismo é entendido nao como urna simples denomina«;ao para para urna parte seleta da humanidade- a qual sempre pertence o que faz a
distin«;ao -, como tantas vezes ocorreu na história (nao se esque«;a que a
a coexistencia de fato de diferentes culturas, mas como urna afirma«;ao de
seu igual valor e, portanto, de sua necessária autonomía total - como democracia, demokratia, e a igualdade, isonomia, foram inventadas na
relativismo cultural -, acaba entrando em choque, por um lado ou por Grécia associadas ao escravismo, nem de que o liberalismo floresceu na
outro, com qualquer defini«;ao universalista dos direitos humanos e civis (e Europa e na América de origem européia junto com o colonialismo e a
escravidao comercial para o resto do planeta).
de suas corresponden tes obriga«;éíes).
Por onde cortar? Antes de mais nada e em primeiro lugar, distinguin- O respeito a outras culturas nao pode consistir em petrificá-las, em
do claramente a esfera pública da esfera privada. Pode-se aceitar o véu hipostasiá-las. De fato, as pretensas tentativas de mante-las impolutas, li-
quando é voluntário, mas nao quando é imposto; a divisao sexual do traba- vres da influencia ocidental, algumas vezes levaram a refor«;ar suas desi-
lho se for livremente assumida, mas nao a desigualdade de genero nos gualdades e sua opressao internas, ou em faze~las voltar atrás ou percorrer
direitos; a difusao de doutrinas sobre a desigualdade ou as diferentes fun- caminhos nao-desejados, como no caso em que os compradores europeus
«;éíes de homens e mulheres, mas nao a escolariza«;ao segregada, etc. Sem de peles de castor para chapéus levaram grupos de índios hortícolas a se
converterem em ca«;adores, em que a indica«;ao de supostos homellS de
dúvida, essa delimita«;ao será sempre extremamente complexa e potencial-
respeito como porta-vozes e mediadores refor«;a o poder de certos caciques
mente conflituosa, urna tarefa de Sísifo, um conto que nunca termina. Mas
ciganos ou em que a introdu«;ao nas escalas laicas de professores nomea-
o importante, pelo menos no primeiro caso, é o duplo reconhecimento de
que, por um lado, a sociedade política dispoe de competencias próprias e dos pelas autoridades islámicas criam inesperadas redes de propaganda e
nao tem por que se submeter ao ditame dos diferentes grupos que a cons- de proselitismo integristas. As culturas mudam, nao podem deixar de mu-
tituem, nem se colocar simplesmente a seu servi«;o, claudicando diante das dar, e é de se supor que o contato com a cultura ocidental, com sua maior
for«;as centrífugas; por outro, as culturas nao podem ser pisoteadas, e há riqueza material, seu desenvolvimento mais amplo de oportunidades e seu
um espa«;o privado (nao individual, nem doméstico, mas sim privado, que ámbito mais extenso para a liberdade individual tenha efeitos corrosivos
também pode ser coletivo, grupal) para sua existencia e seu desenvolví- para as culturas tradicionais. Sempre foi assim em qualquer lugar do pla-
neta e em qualquer momento, independentemente de processos de retro-
mento autónomos.
cesso, como o do atual fundamentalismo islámico, o de certo indigenismo
Além disso, é preciso entender que toda cultura é um conjunto de
rela«;éíes de poder. O terreno percorrido pelas sociedades ocidentais- direi- latino-americano que aparece e desaparece, como o Guadiana, e também
tos civis, políticos e sociais - nao permite voltar atrás, nem admite exce- o recorrente eslavismo antiocidental na Rússia, etc.
54 MARIANO FERHÁHDEZ EHGUITA EDUCAR EM TEMPOS IHCERTOS 55
lsso tudo nao significa que nós, ocidentais, tenhamos o direito de des- competencia. Os sufixos nao sao inocentes : a multiculturalidade é urna
denhar as outras culturas, nem as maos livres para decidir o que mante- situac;ao dada; o interculturalismo, urna visao de futuro .
mos e o que tiramos delas. Sao as comunidades políticas, as Nac;óes-Esta- Será que é preciso explicitar que nem a instituic;ao escolar, nem os
do , nao as culturas em si, que tem o direito de impor certas regras, já que professores estao, em princípio, equipados para isso? Seguramente, nao.
elas mesmas sao a fonte e a garantía únicas de todo direito individual ou Seguramente, é,d.esnecessário dizer que se requer urna formac;ao mais ampla
coletivo, mas somente as regras necessárias para a manutenc;ao da convi- e menos dogmattca dos professores, orientac;óes curriculares mais atentas
vencia e da vigencia desses direitos. Além disso, a evoluc;ao de cada cultu- a natureza mutável da sociedade, relac;óes mais fluidas e úteis entre as
ra deve ser urna evoluc;ao autonoma, entendendo por autonomía nao viver autolidades públicas e as minorías , etc. Ao mesmo tempo, é preciso adver-
em urna redoma, nem em um gueto, nem sob a protec;ao incondicional do tir que ne~hum plano vindo de tima pode abarcar a potencial e imprevisí-
multiculturalismo ou de algum departamento universitário de antropolo- vel d1vers1dade do ambiente e do público escolares e, por isso, os mecanis-
gía, mas em permanente contato e, portanto, em intercambio com as de- mos de a~uste devem estar muito mais atrelados ao terreno prático, mais
mais culturas. Nesse processo, nao apenas evoluíram as culturas minoritárias perto da mformac;ao e das necessidades reais: nas escalas e nos profissio-
ou convidadas, mas também as majoritárias ou anfitrias. É provável que a nais do ensino. Diremos algo sobre isso em um capítulo posterior.
cultura ocidental, baseada no conjunto de direitos tantas vezes já mencio-
nado , tenha muito a aprender com os ciganos em matéria de solidariedade
intergeracional, com os árabes em matéria de caridade, com os asiáticos A FORMA<;ÁO HUMANISTA NA SOCIEDADE GLOBAL
em matélia de autoridade, etc., isso para nao falar de sua literatura, de sua
arte, de sua técnica, etc. Mas o importante nao é fazer agora um catálogo ~ outra face da diversidade e da diversificac;ao interiores é o reforc;o
classificatólio do bom e do menos bom de cada cultura - algo que segura- dos vmculos e dos lac;os de dependencia exteriores: isso foi chamada de
mente ninguém podelia fazer, com toda certeza nao o autor destas linhas- globaliza~áo. Se fizéssemos um levantamento dos objetos presentes em
, e sim admitir essa permeabilidade entre elas, sua possibilidade de mudan- q~alquer casa, encontraríamos mercaderías procedentes de países muito
c;a, seus conflitos internos. lsso é o interculturalismo, na falta de urna outra diversos; se desmontássemos algumas dessas mercadorias, por exemplo
palavra, e desde que nao se entenda como um novo míx determinado pelos um computador, oficialmente made em um único lugar, encontraríamos
sábios, pegando um pouco aquí, um pouco ali - que seguramente acabaría componentes procedentes de urna lista nao menos diversificada deles; se
em muito daqui e muito pouco dali -, que seria apenas outra forma de pudéssemos chegar a unidade de produc;ao de qualquer desses componen-
etnocentrismo vergonhoso. tes, por exemplo, urna memória ou um disco rígido, encontraríamos traba-
Na confusao de neologismos em que se incorre tao facilmente no mun- lh~dores nacionais e imigrantes de diversas origens, ou urna empresa com
do da educac;ao , mais urna vez nos debatemos entre termos que, as vezes, umdades de produc;ao espalhadas por meio mundo, ou ambas as coisas.
nao sabemos muito bem se significam a mesma coisa ou coisas diferentes: A circulac;ao internacional das mercadorias é a parte mais trivial e
tolerancia, respeito, reconhecimento, multicultural, plurinacional, multiétni- menos nova desse processo, pois desde o início da civilizac;áo conhecemos
co, pluricultural, intercultural, diversidade, necessidades especiais, plura- o tráfico de especiarias e de materiais preciosos (pense-se na rota da seda
lismo, segregac;ao, assimilac;ao, incorporac;ao, integrac;ao, etc. Parece-me n~ comércio a longa distancia do sal, etc.) e até o início da industlializac;a~
que as expressóes multiwlturalidade e interculturalismo captam, cada urna, nao faltaram mercaderías que circularam por todo o mundo (tecidos da
um dos aspectos do problema, mas que nenhuma delas é capaz de captar Holanda, cristais da Boemia, porcelanas de Sevres, lás de Jersey, vemizes
ambos por si mesma. Multiculturalidade significa reconhecer a existencia, chines~s, chá do Ceilao, etc.). Também nao é novo o movimento do capital
o valor e a autonomía das diferentes culturas existentes. Interculturalismo produttvo nem o do trabalho qualificado. Os capítais europeus se dirigí-
significa compreender que sao sistemas em processo de mudanc;a, por sua raro, desde o primeiro momento, as colonias, em busca de lucros rápidos, e
dinamica tanto interna - evolU<;ao, conflito - como externa - imitac;ao, os artesaos e os comerciantes medievais se moviam sem muitas dificulda-
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des entre as cidades e os reinos . Outra coisa é a descentraliza~áo dos pro- bem e para o mal. Por urn lado, as rnelhores manifestac;:oes culturais per-
cessos produtivos: urn computador norte-americano pode repartir sua pro- corrern o mundo sirnultanearnente, por meio dos rneios de cornunicac;:ao
dw;:ao entre Massachusetts, México e Coréia do Sul; calc;:as espanholas se- de rnassa ou incorporadas a mercaderías baratas produzidas ern série, corno
rem cortadas na Galícia e costuradas no Marrocos; urn autornóvel alernao livros, discos ou vídeos. Por outro lado, os produtos de baixa qualidade
ser produzido de forma cornpartilhada na Polonia, no Brasil e na Espanha. apoderam-se da rnaior parte do mercado: séries televisivas norte-america-
Ou a inusitada velocidade com que o capital financeiro vai de urn lugar do nas, telenovelas caribenhas, best sellers editaríais, músicas DJ, concursos-
mundo a outro ern busca de lucros rápidos, nao rnais saltando de urn setor fórmula, cinema de efeitos especiais, etc. Essa homogeneizac;:ao cultural
de produc;:ao a outro, mas de urn produto financeiro a outro (ac;:oes, obriga- através do mercado - isto é, da sorna de decisoes individuais - choca-se
c;:oes, bónus, fundos, depósitos, etc.). Ou as novas rnigrac;:oes, novas nao rnais ou menos diretamente como ernpenho ern reproduzir a cultura nacio-
por serem mais numerosas do que as do século XIX, por exemplo, mas por nal através do ensino - isto é, da ilustrac;:ao despótica decidida pelas auto-
se dirigirem nao apenas a países de colonizac;:ao recente (como erarn os da ridades e pela profissao. A escoJa está mal-equipada para competir nesse
América e da Austrália), mas tarnbém as velhas metrópoles (européias), e teneno: por _um lado, suas rotinas rnais elernentares sao particularmente
por nao se tratar rnais de urn trabalho altamente qualificado (corno o que tediosas e exigentes, em cornparac;:ao corn a divertida e confortável triviali-
já rnigrava pela Europa), mas de trabalhadores que vern dispostos a assu- dade da televisao, videojogos e computadores; por outro, suas penosas e
rnir ernpregos pouco qualificados no local de destino (ainda que, parado- áridas incursoes na cultura, no sentido pleno do tenno, nada podern fazer
xalrnente, costurnern ser, contra outra crenc;:a rnuito difundida, dos traba- ern face do acúrnulo de oportunidades oferecido por urn mundo globalizado.
lhadores rnais qualificados no lugar de origern, justamente os que, por es- o principal problema desse processo de globalizac;:ao nao é a rápida
tarem nos setores rnais modernizados da economía, tern conhecimento de circulac;:ao das mercadorias, dos capitais ou, o que constituí a novidade
algumas oportunidades no exterior e podem aspirar a e las) . Assim, as es- diante dos processos anteriores, dos bits de inforrnac;:ao. O problema é que,
peculac;:oes de urn operador da bolsa na Ásia podem fazer corn que evapo- assim como nos processos anteriores, mercadorias e capitais vao avanc;:an-
rem as economías de milhares de aposentados britanicos, a instabilidade do ern seu rnovirnento para as pessoas, e, todos eles, para as instituic;:oes.
política argentina pode provocar a queda na bolsa das rnaiores empresas Tambérn os mercados nacionais foram criados antes dos Estados nacio-
espanholas, e a forte demanda de telefones rnóveis pode alimentar as guenas nais, e a soluc;:ao nao foi frear aqueles, mas sirn potencializar estes. Assisti-
civis na África central. rnos a urna globalizac;:ao económica galopante, na qua] o comércio se de-
Outro ámbito da globalizac;:ao é o do rneio ambiente. As indústrias senvolve sem outras travas a nao ser as muitas que os países ricos poem
inglesas provocarn chuva ácida na Alernanha, as correntes de vento que aos produtos dos países pobres, e as poucas que os países pobres podem
passam por Chernobil trazern risco de cáncer ao leste espanhol, a alirnen- pór a apropriac;:ao de seus recursos naturais pelos países ricos, e na qua] a ¡
tac;:ao das vacas inglesas provoca um desastre ern todo o rebanho europeu, emigrac;:ao ultrapassa as baneiras impostas pelas cidadelas dos ricos. Mas
etc. Nao se trata rnais de sofisticadas especulac;:oes sobre o efeito que a essa globalizac;:ao económica nao vem acornpanhada da correspondente
batida das asas de uma borboleta pode ter no outro hernisfério, mas de globalizac;:ao política - ou, na visao rnais otimista, digamos que se adianta
algo muito rnais prosaico e evidente: a escala atingida pela explorac;:ao dos a ela, tanto que se mistura nas vidas de rnilhoes de pessoas. Os irnigrantes
recursos naturais na produc;:ao, a intensidade alcanc;:ada pelos intercam- chegam sem direitos, os capitais se rnovirnentam sem controle, as doenc;:as
bios dos produtos intermediários e de consumo e a interdependencia dos se expandem gratuitamente, mas os medicamentos sao pagos, os países
produtos financeiros sao de tal monta que urna ac;:ao de determinada enti- pobres se tomam cada vez mais pobres em termos relativos- e, em alguns
dade em qualquer lugar do mundo pode ter conseqüencias espetaculares casos, inclusive absolutos, etc.
(boas ou más) sobre rnilhares ou rnilhoes de pessoas que nern sequer sa- A maior esperanc;:a para suprir tal defasagem é precisamente a globa-
biam de sua existencia nern, rnuito menos, de seu vínculo corn isso. lizac;:ao cultural. A extensao da democracia representativa- inclusive quan-
O terceiro grande ámbito da globalizac;:ao, rnais diretarnente relacio- do oculta regimes autoritários de fato ou corruptos -, a aceitac;:ao quase
nado com a educac;:ao, é, corno nao poderia deixar de ser, a cultura. Para o universal dos direitos humanos -inclusive quando se trata de declarac;:oes
58 MARIANO FERNÁNDEZ ENGUITA
EDUCAR EM TEMPOS INCERTOS 59
para a platéia- nao sao produto de mecanismos políticos, mas culturais. A . Certamente, a escola nao vai criar nem substituir as institui~oes glo-
informa~ao instantanea sobre as condi~oes de vida, sobre as catástrofes, bats das quats carec:mos, mas pode desempenhar um papel muito impor-
sobre os conflitos bélicos, sobre os confrontas civis, etc., nao faz com que tante no desenvolvtmen~o e na consolida~ao da comunidade moral que
todos se tornero mais conscientes de que somos parte de um só mundo e de deve lutar por elas e servn-lhes de apoio, pois essa comunidade moral nao
que somos também, cada vez mais, parte de urna única ra~a e de urna é senao a a~rega~ao de muitas consciencias morais conscientes dos que as
única na~ao: a humanidade. 8 As recentes interven~oes humanitárias- ain- ~ne.!: func;~o dos edu~a~ores nao é predicar nem vociferar contra a globa-
da que alguns as condenem -, as mostras de persegui~ao por toda parte hza~ao, e stU: po;enc~ahz~r os valores morais que sao necessários para
dos crimes contra a humanidade, o debate sobre o perdao da dívida dos corngt-la e onenta-la, 1sto e, para govemá-la coma finalidade de distribuir
países mais pobres, sao sinais tímidos, porém inequívocos, de que se está ~elhor seus benefícios e seus custos e proteger os mais fracos contra seus
ampliando a consciencia da necessidade de institui~oes de governo univer- nscos.
sais (nao necessariamente um governo universal, mas instituic;oes de media-
~ao, de arbitragem dos conflitos, de controle dos movimentos economicos,
NOTAS
de prote~ao dos direitos humanos, de interven<;:ao em situa<;:oes de emer-
gencia, etc.). As mercadorias, incluídas as mercadorias culturais, ultrapas-
l. Conu·a. a cre~c;a e_m um movimento continuado a favor da insUcu;:ao univer-
sam as fronteiras sem consciencia alguma, movidas pelos interesses sem
sal, CUJa teona fm proporcionada pela Ilustrac;ao e cuja implementac;ao veio
contrapartida de compradores e vendedores; os imigrantes, inclusive, emi-
~os govemos em finais do século XIX e princípios do século XX, o certo é que
gram por necessidade, nao por cosmopolitismo. Os direitos individuais, a foram algu~as ordens religiosas, primeiro, e o movimento operário organi-
solidariedade e a democracia, ao contrário, requerem consciencia; urna zado, depms, que tomaram a iniciativa de educar os trabalhadores e as das-
importante e, sem dúvida, grandiosa missao para a escola é trabalhar por ses populares, com evidente apreensao de muitos ilustrados e de todos os
essa outra globaliza~ao. govemos (ver Femández Enguita, 1988).
A generalidade dos critérios e dos valores sobre os quais se assentam 2. A es~o~arizac;ao universal constituí, junto como sistema público de saúde e 0
a liberdade, a democracia e a justic;a é universalista. Já nao nos falam do substdiO ao desemprego, o núcleo dos direitos humanos (o Estado de bem-
povo eleito, de urna ra~a superior nem de um grupo plivilegiado, mas de e:tar), m~s .é' ao mesmo tempo, a precondic;ao para urna vigencia efetiva dos
dtreltos ctVIs (o Estado liberal) e, sobretudo, políticos (o Estado democráti-
direitos humanos, de igualdade entre os homens, de deuses de todos, de co).
sujeitos autonomos por serem racionais e morais. A nao ser que se adote 3. Nao q~~ro dizer com isso que se possa construir urna nac;ao com quaisquer
abettamente urna perspectiva sexista, classista, racista ou imperialista, tudo m~tenms. Pode-se, tsto s1m, construir a partir do nada, mas 0 nada já nao
o que dizemos para sustentar a idéia da igualdade ou da dignidade de existe. O que existem sao comunidades, produtos de algum poder passado
nossos concidadaos pode ser considerado válido para qualquer ser huma- ou presente, que as vezes já nao se encaixam com facilidade em outras mais
no. Tudo, menos a eficácia que só pode ser garantida pelo Estado (ainda am~las. Mas, como sustentava Hegel em face da essencialidade de sua épo-
que possa também nao garantí-la: Ibn Jaldún dizia que os govemos sao ca, e o Estado que faz o povo, e nao o contrário. Basta apenas olhar a volta
para testemunhar isso.
necessários para resolver todas as injustic;as, menos as que eles próprios
4. Ag~ra qu~ f~ram reeditadas estas pérolas da pedagogía que foram as
produzem). Por isso, podemos dizer que a humanidade é urna comunidade
E~nclopedza Alvarez, Hemando, etc., podemos voltar a ver aquelas ilustra-
moral , mas cada Estado-Na<;:ao chega a ser urna comunidade política. A c;oes que e~ g~os~as linhas compactas separavam sem remissao os países,
diferen~a entre urna comunidade política e urna comunidade moral é que, enquanto deb~t~ lmhas pontua~as sugeriam a permeabilidade das regioes
na primeira, existem mecanismos coercitivos para tomar efetivos os direi- nos mapas poht1cos, ou nas qua1s estas apenas se distinguiam pelo maior ou
tos que a própria comunidade reconhece, enquanto que, na segunda, o menor número de espiguinhas ou chaminezinhas nos mapas economicos.
único mecanismo é a reciprocidade. E a reciprocidade, como se sabe, ape- 5. Nesse .sentido, nao há muita diferenc;a entre explicar que Deus escolheu Franco
nas funciona de forma aceitável nas distancias curtas, ou muito curtas. para hmpar a Espanha dos vermelhos, educar as crianc;as com urna cartilha
60 MARIANO FERNÁNDEZ ENGUITA
4
adaptac;ao da pedagogía de Freire na qua! a "palavra geradora e Sandmo.
6. Compreendo que essa distinc;ao entre "Estado-Nac;ao" e "Nac;ao-Estado", ou
a idéia de urna "nac;ao" formada por "nacionalidades", possa surpreender _o
leitor nesse contexto, mas ele nao é o indicado para entrar em detalhes. F1z
isso em Fernández Enguita, 2002, Capítulos IX e, principalmente, X.
7. Esse processo, sem dúvida, torna ainda mais dramático. o f.e~omen~ d.a imi-
grac;ao e ajuda- apenas ajuda- a explicar tanto a contnbmc;ao do:_ 1m1gran-
tes para o seu próprio isolamento como as diflculdades de, ~ntegrac;ao. escolar
Encontros e Desencontros
da segunda gerac;ao. Nesse sentido, a imigrac;ao europe~a, conceb1da, em
princípio, como provisória, é um pouco distinta da amencana, mms comu- Família-Escola
mente empreendida como definitiva. Sobre esse ponto, ver Pwre (1979) e
Castles, Booth e Wallace (1984).
8. Quando Joe Luis derrotou o alemao Max Schmeling, uns ~ outros quiseram
ver no combate urna !uta entre o nazismo e o mundo hvre, entre a rac;a
ariana e a rac;a negra. Após essa vitória, o jornalista Jimmy Can~,on escreveu
com acerto: "Luis é um orgulho para su a rac;a ... a rac;a humana ·
Se nao me falha a memóría, foi Octavio Paz quem dísse que a história
da Espanha e da América era a de um encontro, um desencontro e um
reencontro. A seqüencía é particularmente sugestiva para a escoJa, pois a
semelhan<;a entre a educa<;ao (dos indivíduos) e a civiliza<;ao (das socieda-
des) nao é absolutamente nova. A descoberta da América pelos espanhóis e
a coloniza<;ao européia da África subsaariana e dos mares do Su! alimenta-
ram urna idéia da evolu<;ao da humanidade, da barbárie a civiliza<;ao, que
logo se projetaria sobre a escoJa. Segundo Hegel, a crian<;a deve percorrer
em sua educa<;ao as diferentes fases seguidas pela humanidade em seu
processo de civiliza<;ao. A ontogenese- o desenvolvimento do indivíduo -,
diríamos boje, deve seguir os passos da filogenese - o desenvolvimento da
espécie. O Emílio de Rousseau nao era senao a transposi<;ao do bom selva-
gem, conduzido suavemente por seu mentor a maturidade, isto é, a civili-
za<;ao.1
O período de expansao da escolariza<;ao foi e ainda é um pouco como
a conquista da América. Também se disse sobre o encontro entre os dois
mundos que foi antes um encontrao, e o mesmo se poderia dizer da escolari-
za<;ao: famílias carentes de educa<;ao em vez de índios alheios aciviliza<;ao,
aldeias e bairros de absor<;ao em vez de assentamentos, professores em vez
de missionários, escolas em vez de igrejas ou missoes, a letra - que com
sangue entra - em vez da cruz - mas, geralmente, misturada com ela -, a
EDUCAR EM TEMPOS INCERTOS 63
62 MARIANO FERNÁNDEZ ENGU!TA
obrigatoriedade escolar em vez do rep~r~imiento : da e_ncomienda, etc.* ~s Por um lado, urna comunidade pequena, na qua! todos se conhecem direta
famílias por um lado, nao podiam reststn- a essa mvasao e, por outro, nao ou indiretamente ao longo de gerac;oes - toda pessoa é o filho de ... - e
viam p;r que fazé-lo, dado que, ao fim e ao cabo, t~mbém abría para seus sabem a que família pertence cada crian~a, permite um controle difuso de
filhos um mundo de oportunidades inéditas e promtssoras_ Na melhor das todas as criam;:as por toda a gerac;ao adulta. Além disso, os limites sao
hipóteses, a generalizac;ao da escolaridade. pós a instituic;~o em contato reduzidos e acessíveis, nao há estranhos, os veículos motorizados nao tem
com urna infinidad e de famílias diferentes, sttuadas e percebtdas por .ar_n.bas alternativa a nao ser andar devagar; etc. Por outro lado, numa família ex-
as partes em um escalao abaixo daquela na escala da cultura: da ctvthza- tensa na qual se reúnem várias gerac;oes de adultos e ramos contemporane-
c;ao, da modemidade e do progresso. Ao mesmo tempo, po.rem, a escola os do mesmo tronco que no resto do ano vivem separadas, os jovens tam-
pressupunha a família, contava com_ ela com? ~ase de apo10, emb~r~ os bém estao livres de escala e trabalho e podem cooperar em algumas tarefas
professores, em seu ambito de atuac;ao, substttmssem com plenos dtrettos domésticas - deveríamos dizer as jovens -, os rapazes adultos estao em
casa ou perto dela - como no tempo em que iam apenas até a horta ou a
os país (in loco parentis). .
Tudo isso mudou de forma radical. A família já nao se encontra mms pequena oficina artesanal-, etc. Nesse ambiente, o controle das crianc;as e
no lugar designado ou, pelo menos, já nao é a mesma família, :om as dos adolescentes é urna carga relativamente leve e compartilhada.
mesmas possibilidades e funcionalidades de antes do ponto de vt.sta .da Para o bem e para o mal, essa forma de vida tradicional se foi para nao
escala. Isso supoe um deslocamento da família para a esc~la: en:_ pnmetro voltar, embora reaparec;a de maneira folclórica nas férias. Praticamente,
lugar, das func;oes de custódia e, e m segundo, l.u~~r, ~a soCl.ahzac;ao e~ .sua nao existem mais famílias extensas, com mais de dois adultos (avós, ir-
forma mais elementar. Por outro lado, a famthap nao acetta com facthda- maos ou primos dos pais, etc.), com um rosário de irmaos entre os quais os
de urna posic;ao de subordinac;ao obsequiosa perante os professores, o que maiores cuidam dos menores e com urna mae permanentemente em casa,
gera um terceiro problema: o de quem controla quem. Vamos por partes. a par de tudo. Em lugar disso, ternos famílias nucleares, sem mais adultos
que o casal de progenitores, ou talvez com apenas um deles (geralmente a
mae, embora hoje as famílias com pai e filhos sejam as que crescem mais
COMUNIDADE, FAMÍLIA E CUSTÓDIA: O ADEUS ATRADI<;ÁO rapidamente), nas quais todos tem um emprego remunerado fora de casa,
ainda que em tempo parcial e com urna média de menos de dois filhos, isto
As criaw;as adoram ir durante as férias para vilarejos, pois para elas é, a maioria com um ou dois filhos - e, mesmo nesse caso ou no caso de ter
esse é um espac;o no qual podem mover-se livremente, .sem se verem fecha- mais, com idades tao próximas que nenhum está em condic;oes de cuidar
das nas escalas _ sao férias - nem em suas casas - a vtda se faz na rua. Os de outro. A mudanc;a mais importante, sem dúvida, é a ida da mulher para
pais, embora talvez preferissem o Caribe - sem filhos -, também, po~s o o mercado de trabalho, mesmo quando isso acorre em condic;oes precárias
tamanho pequeno do local, o fato de todo mundo se conhec~r ~ a p~ova~el ou em tempo parcial. O próprio magistério, com seu notável nível de
inflac;ao de parentes adultos em casa permitem urna socmhzac;ao nao- feminizac;ao, é o melhor testemunho disso, mas as professoras nao deve-
institucionalizada dos cidadaos infantis: dao de comer a eles nas horas riam esquecer-se de que nem todas as mulheres conseguem trabalhos de
certas _ ou nem sequer isso - e deixam-nos soltos o resto do dia. Essas jornadas curtas e férias langas e, menos ainda, que coincidam exatamente
férias retro, tao pouco atratívas em muitos outros a~pectos, t~n:· a ~~rte as com os horários e calendários escolares de seus filhos.
várias func;oes,z a espetacular virtude de reproduztr as .condtc;oes J.a .desa- Por outro lado, também desapareceram as pequenas comunidades tra-
parecidas de socializac;ao e controle das crianc;as na soctedade trad1cwnal. dicionais (aldeias, vilarejos, inclusive bairros urbanos nos quais as mesmas
famílias viviam por várias gerac;oes), nas quais o conhecimento era geral e
as crianc;as podiam sentir-se protegidas- e controladas- por todos os adul-
'N. de T. Repartimiento: sistema mediante o qual se repartía um determin~do número de tos. Elas foram "varridas" do mapa pelas grandes cidades, nas quais ninguém
índios entre os colonizadores espanhóis. A atribuíc;ii.o era fe1ta em encomtenda, o u seJa, em conhece riinguém, primeiro pelo número de pessoas e, segundo, pela intensa
urna rela<;ii.o de encomenaación ou patrocínio, pela qual os índios ficavam deve~do obe-
mobilidade geográfica, social e profissional, o que constituí um obstáculo
diencia ao encomendero. Diccionario de la Lengua Española. Real Academia Espanola.
64 MARIANO FERNÁNDEZ ENGUITA
EDUCAR EM TEMPOS INCERTOS 65
a mais para as relat;ües entre os vizinhos, que podem nao ter em comum Lamentar-se por tal deslocamento das funt;5es de custódia das crian-
nada além da residencia -, tanto ínter como intrageracional. Ela trouxe t;as para a escola é um absurdo. Se os pais tivessem mais tempo para estar
consigo as vantagens da densidade demográfica, a multiplicat;ao das opt;ües com seus filhos a todo momento, muitos deles poderiam simplesmente
e das oportunidades, a liberdade do anonimato, mas também a ausencia dispensar a institui<;ao e os que trabalham neJa. Nao é tanta nem tao óbvia
de regras, o risco, a violencia, etc. Para as famílias com filhos, a rua deixa a superioridade dos professores em relat;ao as famílias quando se trata da
de ser a extensao da casa para se converter em um lugar mais temido do educat;ao infantil e fundamental. É certo que já proliferam os movimentos
que qualquer outra coisa. desescolarizadores, ou por urna educat;ao sem escolas, em que basta, por
Nao estou lamentando nada, nem mesmo sugerindo que qualquer exemplo, o acordo de cinco famílias afins e com filhos da mesma idade
tempo passado tenha sido melhor. Poderíamos fazer urna extensa lista para substituir por turnos a escoJa, com vantagens evidentes e com des-
das vantagens trazidas por essa evolut;ao: maior liberdade pessoal, maior vantagens nao tao evidentes. A escolarizat;ao é um todo que compreende,
diversidad e social, maior riqueza cultural, desaparecimento do angustian te além do ensino, a custódia e outras funt;5es, que antes nunca tinham sido
controle das pequenas comunidades, emancipat;ao progressiva da mu- oferecidas separadamente. De fato, quando os professores reclamam o apoio
lher, etc. Mas também é evidente que a custódia das criant;as, antes assu- do público geral ou de sua clientela particular para obter das administra-
mida sem problemas pelos muitos parentes e pela pequena comunidade, t;5es meios que, ao mesmo tempo, signifiquem melhorias de suas perspec-
e que nao era um problema, passou a ser a grande preocupat;ao de mui- tivas profissionais (a ampliat;ao da escolaridade obrigatória ou de oferta
tas famílias. Cidades inacessíveis e hostis e habita<;oes exíguas já sao par- assegurada, a cria<;ao ou o financiamento de mais classes, etc.), nao en-
te do problema, pelo menos tanto como parte da solut;ao. Nessas circuns- tram nessas considerat;5es, que só vem posteriormente, depois de terem
tancias, a sociedade se volta para o que tem mais a mao, e em particular conseguido tudo o que queriam. A questao é, simplesmente, estudar como
para essa institui<;ao mais próxima a medida das criant;as, muitas vezes combinar ensino e custódia, assegurando que ambos sejam formativos.
ajardinada e que dispoe de um quadro de pessoal profissionalizado na
educat;ao: a escola.
Ainda que sejam freqüentes entre os professores as críticas a "transfe- A SOCIALIZA~O DA SOCIALIZA~ÁO E O IMPERIALISMO ESCOLAR3
rencia" de responsabilidades por parte da família (querem ficar livres das
criant;as o maior tempo possível; veem na escola urna creche ou um alber- A crise da família e da comunidade como instituit;oes de custódia é
gue; etc.), nao há nada de surpreendente nesse processo. Trata-se, em que também, em parte, sua crise como instituit;5es socializadoras. E aquí con-
pese a redundancia, de urna socializat;ao da custódia análoga a de qual- fluem outros processos similares, como os que afetam a aprendizagem e a
quer outra atividade para a cobertura de nossas necessidades. As residen- religiao. Em todos os casos, instituit;oes que antes compartilhavam a socia-
cias sao cada vez menos auto-suficientes, e todos consumimos o que nao lizat;ao (a domesticat;ao, o disciplinamento e a moralizat;ao, para ser mais
preciso) das criant;as, agora desaparecem, retraem-se, inibem-se ou, sim-
produzimos e produzimos o que nao consumimos, como cabe a urna socie-
dade baseada no intercambio. Além disso, a maior parte do que produzi- plesmente, perdem a eficácia a esse respeito, fazendo com que aumentem,
mos é feíto em cooperat;ao, o que gera significativas economías de escala e por mera exclusao, a necessidade e a carga relativas a escola.
garante certa normalizat;ao, isto é, certa qualídade. Confia-se (em parte) a A aprendizagem dos ofícios desaparecen na prática. Quando urna pro-
custódia a escola como se confía a produt;ao do pao ao padeiro, a do leite port;ao significativa de famílias vivi a e m economías de subsistencia ecomo
ao leiteiro, etc. Seria simplesmente impensável as mulheres saírem para a parte do campesinato) ou do trabalho por conta própria (campesinato,
esfera pública (ou aos homens, se já nao tivessem deixado as mulheres artesanato, pequeno comércio), quando a lei permitía urna incorporat;ao
para trás) sem essa socializat;ao, isto é, sem essa maneira coletiva de assu- mais precoce ao trabalho assalariado, a escolarizat;ao era menos difundi-
mir a custódia. Hoje, a escola complementa a família como fazia antes a da, e diversos grupos ocupacionais controlavam as condit;oes de acesso ao
ofício o u a profissao. Em funt;ao disso, os adolescentes e os jovens logo se
pequena comunidade a sua volta.
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EDUCAR EM TEMPOS INCERTOS 67
convertiam em aprendizes, ajudantes, assistentes, pagens, auxiliares de mais na escola é tempo a menos na família, na comunidade e no trabalho
comércio, mensageiros e similares (ou em ajudas familiares), permanecen- o ~ue, por si só, já justifica um papel maior da escola na moraliza~ao da~
do sob urna tutela difusa dos trabalhadores adultos. Os estatutos de apren- cnan~as .
dizes refletiam muito bem essa rela~ao dual: transmissao das qualifica- . Assim, progressivamente, a escala varreu todas as institui~oes extra-
~oes, por um lado, e forma~ao moral, por outro (e, em troca disso, o apren- fami~Iares antes encarregadas da socializa~ao da infáncia, da adolescencia
diz trabalhava de gra~a. ou quase, e servía o mestre). 4 Hoje, o trabalho por e da J~Vent~de e foi acua~do a própria família. É importante assinalar que
conta própria é minoritário e, em urna elevada propor~ao, profissional (o os ~atores znteressados msso foram os professores, que viram na expansao
que excluí a incorpora~ao a ele se nao se possui um diploma superior); as ~o ~1ste~a educacional formal e informal urna fonte de oportunidades pro-
empresas familiares sao poucas e, muitas vezes, seus proprietários nao flsswnais. A esc~lariza~ao, ,e ainda mais a pública, foi sempre apresentada
querem ser sucedidos por seus filhos, ou, entao, sao estes que nao o dese- como a alternativa necessaria a doutrina~ao religiosa, a urna aprendiza-
jam; de maneira geral, os gremios perderam o controle sobre a forma~ao e ~em s~postamente ineficaz e limitada pelo conservadmismo dos gremios e
o acesso aos ofícios. A forma~ao profissional hoje tem sua sede no sistema as desigualdades sociais e culturais de origem. Mas tais demandas eram
educacional formal. 5 a presentadas como se bastasse pedir e obter mais (mais tempo de escolari-
Algreja passou de urna forte integra~ao a urna rela~ao superficial com dade e para mais gente) para chegar a solu~ao de todos os males, enguan-
a comunidade local e de um lugar principal a um papel secundário na to agora se reclamam meios adicionais para que nao sejam alteradas as
socializa~ao de crian~as e adultos. Se preserva um peso significativo é, em velhas condi~6es de trabalho (a velhafalta de recursos).
boa medida, pela escola e através dela, pela capacidade desta de promover A escoJa é a primeira institui~éio pública (pública versus doméstica
e de manter centros privados, por seus privilégios nos públicos e por sua seja estatal ou privada) a qua! as crian~as tem acesso de modo sistemátic~
influencia sobre o magistério. É a religiao que está em dívida com a e prolongado. I_ss?, ~or si só, indica-a como o lugar de aprendizagem de
escolariza~ao, e nao o contrário. As práticas e as cren~as religiosas foram formas de COnVIVencia que nao cabe aprender na família, na qua! elas sao
privatizadas e amenizadas, passando de urna submissao a um poder onipo- estrutura~as pelos la~os de afeto e de dependencia pesso_al. A família pode
tente (o temor a Deus) a urna simples sublima~ao da moral. Embora eu nao educar eficazmente para a convivencia doméstica, mas é constitucional-
alimente a menor dúvida de que ganhamos muito mais do que perdemos mente incapaz de faze-lo para a convivencia civil, visto que nao pode ofe-
(e assim continuará sendo) com a seculariza~ao da sociedade, urna das recer um marco de experiencia. Nisso, pode cooperar com a escola mas
coisas perdidas, para nao mais voltar, é esse comodo mecanismo vigilante nao pode entregar-lhe o trabalho feíto. No mais, a escola pode con~tatar
do Deus onipresente que ve tudo e castiga quase tudo, 6 insubstituível para que a sociedade mais ampla e sua própria lógica institucional empurram-
conseguir um comportamento conforme as normas na clandestinidade (a na em d!re~oes distintas as da família, ou as de algumas famílias, inclusive
solidao), em todo caso, e no anonimato da grande cidade, tanto mais a
medida que a comunidade difusa nao cumpre essa fun~ao.
:m t_errenos nos quais a socializa~ao doméstica é eficaz (por exemplo, no
amb1to das rela~6es de genero, no qua! aquela tende a ser mais igualitária
A escala, por sua vez, também mudou. Se antes ocupava apenas um do que esta).
lugar discreto na vida das pessoas (4 a 6 anos para a maioria, menos o u _ Além di~so, ~ escola é, para a maioria, o primeiro lugar de aproxima-
nada para muitos, e mais do que isso apenas para alguns poucos encami- ~ao com a dzverszdade existente e crescente na sociedade global. Nela a
nhados as profissoes liberais e burocráticas), passou a absorver pratica- cr~an~a é levada a conviver de forma sistemática com crian~as de outras
mente a infancia, a adolescencia e boa parte dajuventude; 10 anos obriga- ongens, ra~as, culturas, classes e capacidades comas quais, fora da escola,
tórios por lei (fundamental e ensino médio), mais S ou 6 anos obrigatórios tem urna rela~ao nula ou restrita- algo que inclusive se aplica, em muitos
de fato (infantil e médio superior).· É desnecessário dizer que es se tempo a casos, a alunos de outro sexo e de outros grupos etários. Embora 0 respeito
para com o outro ou a igualdade de direitos de todos os cidadaos possam
'N. de R. Dados referentes a realidade da Espanha. ser pregados pela família, de maneira alguma podem ter nela a materiali-
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dade prática e continuada que encontram na escola. Essa experiencia, es- de-se mais das es colas para a educar;ao da infancia e da juventude como se
sencial para a convivencia civilizada, nao pode ser oferecida pela família, depende mais dos hospitais para atender aos doentes, dos asilos para aten-
pois é exatamente o contrário desta: a convivencia buscada, criada, cons- der aos idosos, da polícia e do judf.ciário para a manutenr;ao da ordem
ciente, com os outros, em oposic;ao a comunidade natural com os nossos. social ou do mercado e do Estado para a provisao de bens e de servir;os.
A escola é, ao mesmo tempo, a primeira experiencia com a coerféíO e Ocorre coma educac;ao o mesmo que coma comida, mas ao contrário: esta
coma autoridade impessoais. Nao falo da clássica denúncia da "escola-pri- nós compramos semipronta no comércio e acabamos de faze-la em casa;
sao", "escola-quartel" ou "escola-jaula", mas da autoridade e da coen;ao aquela enviamos com metade por fazer a escoJa. Nesse contexto, a velha
necessárias e inevitáveis que toda sociedade exerce sobre todos seus mem- crítica de que as famílias nao se interessam pela educar;ao nao faz o menor
bros, ao exigir que se adaptem a normas de convivencia independente- sentido (como afirmac;ao generalizada).
mente de suas afinidades e de sua fobias. O reverso disso é que a atitude Ao prolongar-se a escolaridade obrigatória, os professores de ensino
do indivíduo em face da autoridade tende a ser menos efetiva e tradicional médio (e, em particular, os de bachillerato)' recebem em massa alunos que
e mais instrumental (relac;ao meios-fins) e racional (cálculo custo-benefí- antes estava!ll fora da escola (ou na formac;ao profissional), e o magistério
cio) do que no contexto familiar, como possível questionamento aberto da tem de lidar com alguns al unos de idade cada vez mais avanc;ada. Ao mes-
autoridade do professor e das exigencias da instituir;ao, aberto a qualquer mo tempo, a crescente sensibilidade social com respeito as condic;oes da
tipo de manifestac;ao, ainda que nao necessariamente atentatória contra a escolarizar;ao, aos direitos e ámbitos da liberdade das crianr;as, etc., leva a
convivencia. urna limitac;ao da autoridade dos professores de todos os níveis, dos funcio-
A principal funféÍO da es cola nunca foi ensinar, mas si m educar. Para o nários e dos profissionais em todos os ámbitos - mas, perante as crianr;as,
bem ou para o mal, o objetivo da instituir;ao escolar, como de qualquer tudo parece permitido -, ao mesmo tempo em que a retrac;ao de outras
forma de educac;ao, sempre foi mais o de modelar a conduta, as atitudes, instancias de socializac;ao e controle de crianr;as, adolescentes e jovens e as
as disposic;oes, etc., do que o conhecimento teórico ou as atividades práti- carencias da família possibilitam que os alunos cheguem as salas de aula,
cas. Algumas vezes de maneira explícita e outras de maneira implícita (me- por assim dizer, mais domesticados. O crescente alarme sobre a violencia
diante as atitudes e as práticas associadas a aquisir;ao de saberes e destre- nas salas de aula, ou nas relar;oes com os país, nao passa de urna injustificada
zas), a escola sempre serviu para formar súditos ou cidadaos, trabalhado- e injustificável tempestade em copo d'água, alimentada pelo mal-estar ge-
res subordinados ou profissionais autonomos, mentes submissas ou críti- neralizado dos professores e pela avidez de acontecimentos que os direto-
cas, etc. De fato, professores de nível fundamental e médio sempre reivin- res de escolas insistem em dar importancia exagerada o u apresentam como
dicaram seu papel de educadores em oposir;ao ao de simples professores,* sinal dos tempos que nao pass a de casos excepcionais. 7 Contudo, continua
mas só agora, pela primeira vez, podemos encontrar o oposto ("Sou um em pé o fato de que, ao mesmo tempo em que se limita e se circunscreve a
geógrafo, nao um trabalhador social"). Essa é a idéia latente por trás das autoridade dos professores perante os alunos, a diversificac;ao destes colo-
fórmulas tao velhas, como educaféío integral, multilateral, completa, etc., ca novos problemas, entre eles alguns de convivencia e disciplina.
de que o indivíduo é um todo, e a escola nao pode pretender ocupar-se Nessas circunstancias, nao creio que tenha sentido ficar se perguntan-
apenas de urna parte. do sobre se os pais abdicaram de controlar a conduta de seus filhos ou se
A socializaféío da socializaféÍO (a coletivizar;ao da educac;ao, para en- foram os professores que fizeram isso, se as famílias exigem demais da
tendermos) que supoe o papel crescente da escola em face da família e da escoJa ou se é esta que oferece muito pouco, e assim sucessivamente. O
comunidade e o caráter peremptório das demandas dirigidas aquela nao que importa é compreender que a família e a escoJa ficaram sozinhas nessa
sao mais do que outro aspecto da socializar;ao galopante da vida. Depen- tarefa, que nenhuma outra instituir;ao virá nem pode vir socorr~-las, a nao
'N. de R.T. Na Espanha, o bachillerato é urna modalidade de ensino de nível médio, poste-
'N. de T. No original em espanhol, o termo é enseñantes, de enseñar (ensinar). rior ao ensino médio. Sua dura<;iio é de dois anos.
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EDUCAR EM TEMPOS INCERTOS 71
ser em fun<;oes secundárias e que, portanto, cabe a elas buscar urna nova
muitos com níveis académicos iguais ou superiores aos seus, sempre dispos-
divisao de tarefas adequada, suficiente e eficaz.
tos a conceder um período de gra<;a, mas nunca um cheque em branco ao
e?uca~or. Sua palavra já nao é urna revela<;ao, suas decisoes podem ser
A DERROCADA DA HIERARQUIA ESCOLA-FAMÍLIA dtscuttdas, sua capacidade e seu desempenho profissional chegam a ser
ques~10nados. Em poucas palavras, o status- ou, se preferirem, 0 prestígio _
A redistribui<;ao das fun<;oes de custódia e de socializa<;ao e controle relattvo do professor, sobretudo do ensino fundamental , perante seu públi-
soma-se a mudan<;a nas posi<;oes relativas de família e escola, pais e pro- co, de_tenorou-se, e nao po_rque sua fonna<;ao tenha piorado, mas sim por-
fessores. Quando já parecía que a escolariza<;ao fundamental era parte in- que nao melhorou, em me10 de um processo de democratiza<;ao do acesso
dispensável da própria vida, tao inevitável, como se costuma dizer, como a o ensino universitário. E isso a pesar das melhorias enormes na remunera-
sao apenas os impostos e a morte; quanJo já parecia que o conjunto da <;ao e nas condi<;6es de trabalho nos tres últimos decenios.
popula<;ao nao precisava ser convencido ou for<;ado a recorrer a escola, No e_r:sino médio, com a universaliza~ao (particularmente agora, com
mas que ele próprio reivindica va isso e nao podia pensar de outro modo (a a Educa_cw~ . Secundari~ Obligatoria, embora a implanta~ao do EGB. já
escolariza<;ao como direito e, em consonancia com isso, como demanda), tenha s~gntftca~o ~ ~mversaliza<;ao do que em muitos outros países _
constatou-se que nao, que alguns grupos nao-incorporados ou incorpora- seus dms, ou tres ult1mos anos - tenha sido considerado nível médio)
dos de forma tardía, de má vontade e de maneira inadequada, podem ser chegam as salas de aula alunos que já nao sao incondicionais e mais
suficientes para romper a aparente calma. É o caso, sem ir mais longe, de freqüentemente do que o desejável nao muito convencidos da co~venien
imp01tantes grupos de ciganos que foram embutidos nas salas de aula por cia de fic~r tanto te~~o na escola, ou pelo menos nesse tipo de escola
pressao dos trabalhadores sociais, das políticas de erradica<;ao da miséria academtc!sta e de utthdade duvidosa ou pouco visível para eles; nesses
social e dos subsídios mínimos de integra<;ao, os quais costumam exigir a g!upos, sao ~omuns os chamados opositores escolares (um qualificativo
escolariza<;ao das crian<;as em troca de seus servi<;os e transferencias aos tao t~ndencw_so _como engenhoso, pois esquece o quanto é freqüente,
adultos; e também o de alguns grupos de imigrantes procedentes das zo- ta~be~, a obje~ao escolar- essa sim imprevista- entre os professores).
nas rurais e dos bolsoes de pobreza pouco modernizados. Quando a esco- Alem dtsso, urna parte desse público, ao atingir a maioridade, já vem só,
lariza<;ao era apenas nominalmente universal, a desescolariza<;ao de fato e sem parentes a quem os professores possam recorrer para pedir ajuda
o absenteísmo eram a válvula de escape que livrava a escola da pressao toda vez que algo escapa a seu controle. Tudo o que acontece com os
interna dos grupos mais resistentes. Quando a universalidade se tomou professores de ensino médio já tinha acontecido antes com os de ensino
efetiva, problemas que antes estavam fora das salas de aula passaram a fundame~tal, mas certamente o desinteresse dos alunos pela escola eres-
estar dentro . Nao quero dizer que se deveria prolongar a situa<;ao anterior, ce coma tdade, como cresce também a difículdade de mante-los sob con-
com grupos excluídos ou segregados de fato como houve até os anos 80, trole nessas circunstancias.
embora talvez se devesse ter abordado sua incorpora<;ao de outro modo, . Em ~m ambito ~ais propriamente político, a transi<;ao espanhola da
buscando um maior consenso de suas famílias e de suas comunidades. 8 dttadura a democracia trouxe consigo importantes mudan~as nas rela~6es
Quero dizer apenas que o problema está aí, sornando-se a outros que a entre a profissao e seu público. Do dever de oferecer, por parte da adminis-
institui<;ao enfrenta. tra~ao, das institui~o:s dos profissionais, e do direito a recebet; por parte
No outro extremo, no qua! o professor encontrava típicamente pais e dos a!unos, Uffi serv1~0, paSSOU-Se a idéia do direito de todos OS setores
maes com um nível académico e profissional muito inferior ao seu, sempre envolvidos de participar na gestao do sistema e das escolas. Embora em
dispostos a aceitar sua autoridade como legítima e indiscutível, apoiada
em sua condi<;ao de funcionário público ou eclesiástico e em sua qualifica-
<;ao profissional, agora encontrou todo tipo de interlocutores, entre eles
·N. de T. EGB: Educación General Básica.
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princípio todos parecessem estar de acordo quanto a essa proposta de co- 6. Recorde-se a inefável imagem daquele triángulo com olho- ou invertido-
gestao, o que permitiu que fosse incluída na Constitui<;ao Espanhola de colocado em urna árvore para repreender por seus pecados Caim, Saulo ou
1978 e em urna série de leis organicas posteriores, logo se viu que nao era quem incorresse em falta.
essa a idéia que os professores tinham sobre quem deveria gerir as escolas 7. Dá-se urna importáncia exagerada a qualquer incidente em que a vítima
seja um professor e minimizam-se ou ignoram-se aqueles em que vítima e
nem sobre quais deveriam ser suas rela¡;oes com os alunos e com os país.
agressor sao alunos (isso para nao falar daqueles em que o agressor é o
Desde entao, ternos assistido a um progressivo afastamento dos professo- professor). Contudo, antes de provocar um professor, um aluno normal-
res dos conselhos escolares e a um empenho sistemático em burocratizá- mente treinou vigorosamente com seus colegas. Deste pó, aquele lodo.
los, convertendo-os, em vez de órgaos de gestao colegiada e bipartida pro- 8. Analisei detidamente a escolariza<;iio dos ciganos em Femández Enguita, 1999.
fissao-público, em meras instancias de controle pro forma das decisoes que 9. Ver Fernández Enguita, 1993.
sa(} tomadas na assembléia de professores e - menos - pela direc;ao, mas
também em instrumentos para a mobiliza¡;ao ocasional dos pais em apoio
as decisoes e as reivindica¡;oes dos professores. E, como conseqüéncia, te-
rnos presenciado também um progressivo desencanto de pais e al unos com
quaisquer mecanismos de participa<;ao. 9 Isso, no entanto, nos leva a recon-
siderar a fundo a organizac;ao escolar e suas relac;oes com o meio, assim
como a dinamica da profissao docente, que trataremos mais detalhada-
mente em capítulos posteriores.
NOTAS
DESIGUALDADE SOCIAL E IGUALDADE TERRITORIAL sua segrega<;ao, e em outros casos sob os planos e a batuta dos agentes do
grupo dominante (como nas escolas-ponte para os ciganos espanhóis), o
Na primeira fase da expansao da escola, determinou-se que diferentes que devia ser lido como urna mensagem de assimila<;ao.
grupos sociais deviam receber diferentes tipos de educa<;ao, ou que uns Essa aceita<;ao de urna hierarquia escolar, que mais ou menos
deviam recebé-la e outros nao. Voltaire, o príncipe da luz, nao vacilou em corresponde a hierarquia economica, social e política (mas sem se esque-
protestar contra os freres des petites écoles que alfabetizavam alguns po- cer de que a escola é hoje, como a Igreja foi ontem, a única fonte de mobi-
bres, o que considerava um perigo, e Rousseau, o des~,:obridor da especifici- lidade social de alguns setores, enquanto que para outros é um acréscimo,
dade da infancia e inspirador da pedagogía moderna, nao levou suas preo- um acompanhamento e urna fonte de legitimidade), era compatível com
cupa<;é:ies com a educa<;ao além dos limites da pequena nobreza. Os mes- demandas igualitárias de caráter territorial. Demandas, por exemplo, de
mos autores e outros ainda poderiam ser invocados como defensores da equipara<;ao das províncias com a capital, das regié:ies mais atrasadas com
nao-educa<;ao ou de urna educa<;ao plenamente distinta, e claramente in- as mais avan<;adas, do interior pobre com a periferia próspera ou do cam-
ferior para a mulher. Nos povos colonizados e em outros considerados in- po com a cidade. Durante muito tempo, as desigualdades em matéria esco-
feriores ou primitivos nem sequer pensaram, mas fez isso por eles, mais de lar identificaram-se em grande medida com as desigualdades tenitoriais -
um século depois, Jules Feny, o criador de l'école unique para a metrópole, entre outras coisas, porque havia urna segrega<;ao residencial entre as das-
que sempre afirmou que os direitos humanos- e, com maior razao, os civis se sociais mais onipresente e visível, e porque a escassa informa<;ao admi-
e os políticos - nao eram feítos para as colonias. nistrativa disponível era apenas territorial - e, por isso, as propostas se
Depois viria o estabelecimento de urna dupla rede separada entre as limitavam a dotar por igual as províncias, as cidades ou as aldeias (um
duas divisé:ies mencionadas: ricos e pobres, homens e mulheres, maioria e instituto em cada capital de província, urna escala em cada pueblo, etc.).
minorías (nas colonias, numericamente, seria o oposto: minoría e maio- As políticas igualitárias, seja como for, apresentavam-se como um proble-
ria). As classes populares foram confinadas as escolas elementares, popu- ma de provisao de infra-estruturas públicas: ande havia ou nao escalas
lares, petites écoles, escolas alemds (como eram chamadas na Itália suficientes e ande deviam ser criadas.
renascentista), enquanto os setores favorecidos iam para os ginásios, para As desigualdades sociais nao-territoriais, porém, logo entraram em
os liceus ou para os institutos. Essa divisao entre dois sistemas indepen- cena. Primeiro, foram as desigualdades de classe, que dominaram o de-
dentes se converteu mais tarde em um ensino médio bifurcado: Centres bate sobre a política educacional praticamente até os anos 60 do século
d'En.seignement Technique em oposi<;ao a Lycées, Hauptschulen em oposi<;ao XX; depois, e mais ou menos a partir dessa década e da seguinte, as desi-
a Gymnasia, secondary modern em oposi<;ao a grammar schools, continua- gualdades de género; por fim, a partir dos anos 80 - embora antes nos
~ao de estudos o u forma<;ao profissional em oposi<;ao a bacharelato, e assim países de imigra<;ao em massa, como os Estados Unidos -, as desigualda-
sucessivamente. As mulheres foram escolarizadas separadamente, em cen- des étnicas. Ainda que toda desigualdade seja, em última instancia, urna
tros específicos nos quais a quantidade e a densidade da popula<;ao toma- desigualdade entre indivíduos, nem todas sao percebidas da mesma ma-
va isso possível ou, onde nao era, em grupos específicos dentro da mesma neira. A aten<;ao prioritária as desigualdades territoriais pode ser consi-
escola, e apenas nos mesmos grupos que os homens quando nao havia derada como o efeito de urna dinamica política elitista, mas nao atenta,
outra forma a nao ser esta (em pequenas escolas rurais, se possível a cargo ou nao necessariamente, as desigualdades individuais como tais. Pode-se
de professoras, enquanto os professores se ocupavam dos alunos, e sempre reclamar um instituto o u urna universidade em cada província, por exem-
com um programa de estudos formal e informalmente diferenciados). As plo, ao mesmo tempo em que se descuidam dos níveis educativos inferi-
minorías, enfim, foram escolarizadas separadamente, em alguns casos em ores. Essa costuma ser, de fato, a dinamica do nacionalismo e, de forma
urna rede completamente segregada, com planos de estudo próprios e pro- atenuada, de todo regionalismo ou localismo: mobiliza-se a todos sob a
fessores de seu grupo social (como se fez com os negros nos Estados Uni- demanda e a promessa de obter melhoras gerais, mas os únicos que, se-
dos), o que devia ser entendido como urna mensagem em si mesma sobre guramente, melhoram as posi<;:é:ies sao os membros das elites; os outros
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raramente melhoram e, muitas vezes, pioram. Algo assim pode acorrer, ou em parte, na própria a~ao) , enquanto aumentou enormemente em rela-
embora em menor medida, com as reivindica~oes feministas e étnicas . ~ao comas atribuídas (aqueJas baseadas em tra~os de nascimento, ou nao-
Pode-se reivindicar a elimina~ao de qualquer mecanismo discriminatório modificáveis) . Portanto, isso significa que perderam relevo as desigualda-
de genero , por exemplo, ao mesmo tempo em que se defende um des de classe e ganharam as de genero e as de etnia.
darwinismo extremo. Ou pode-se reivindicar um lugar ao sol para as eli-
te s deste ou daquele grupo étnico sem que isso signifique que se queira a
igualdade dentro dele (por exemplo, entre homens e mulheres) - algo AS POLÍTICAS JGUALITÁRIAS E SEUS RESULTADOS DESJGUAJS
que será tanto mais provável quanto mais fechado for o grupo em si ,
quanto mais constituir por si mesmo urna comunidade, um espa~o auto- Até os anos 70, na Espanha, fa lar de desigualdades sociais equivalía a
nomo de convivencia. Mas, em todo caso, enguanto as demandas de igual- falar de desigualdades de classe, pois estas eram tomadas como o conjunto
dade interterritorial sao demandas de igualdade entre pessoas que nao daquelas; contudo, na literatura dos inícios da reforma inclusiva dos anos
convivem no dia-a-dia, as demandas de igualdade entre os indivíduos, 80 se ve urna identifica~ao do todo - o social - com a parte - a classe - , e
isto é, contra as desigualdades de classe, genero ou etnia, sao demandas sempre com essa mesma parte - isso para nao faJar da literatura pró e
de igualdade intraterritorial, ou seja, entre aqueJes que convivem ordina- contra a Ley General de Educación das décadas anteriores. 1 O objetivo das
riamente: é isso, sua rela~ao com a experiencia vivida, e nao seus efeitos reformas inclusivas, na Espanha e em outros países, nos anos 70 (a LGE) e
últimos, que !hes confere um caráter individual. nos anos 80 (a futura LOGSE) era o combate aos efeitos de urna série de
Ao mesmo tempo, as demandas de igualdade genérica ou étnica re- desigualdades de origem que se identificavam com os recursos econ6mi-
presentam algo diferente das demandas de igualdade entre as classes. Quan- cos, com as expectativas sociais, com o capital cultural familiar, com o
do pensamos na igualdade entre mulheres e homens ou entre ciganos e domínio originário da linguagem, com a atitude em rela~ao aos estudos,
aldeoes, ternos em mente a elimina~ao de qualquer forma de desigualdade etc., isto é, desigualdades entre famílias- e nao dentro das famílias, o que
ligada a origem, a tra~o s atribuídos, a características que as pessoas nao excluía as desigualdades de genero- e dentro de urna mesma cultura, sem
podem nem ne cessitam mudar; ao contrário, quando criticamos as desigual- considerar a possibilidade de discrimina~ao por motivo de ra~a, de nacio-
dades de classe, se é que o fazemos, opomo-nos as conseqüencias, ou a nalidade, etc. -, o que excluía as desigualdades étnicas. Nao que essas
a!gumas deJas, de atos que as pessoas fazem por si mesmas e livremente- outras fontes de desigualdade, de genero e de etnia fossem inteiramente
ao menos em um sentido formal, que é muito importante: trabalhat mais ignoradas, mas eram consideradas secundánas, acidentais, incorporadas
ou menos, melhor ou pior, nisto ou naquilo, gastar muito ou pouco, inves- nas divisoes de classe ou coisa de filme americano.
tir aquí ou ali, com a conseqüencia de empobrecer ou enriquecer- pois, As desigualdades de classe ocuparam, portanto, o centro da política e
por mais que relacionemos o empobrecimento de alguns com o enriquecí- dos debates escolares, do mesmo modo que - na Europa, mas nao nos
mento de outros, o que é bastante sensato, continua-se tratando de atos Estados Unidos - ocupavam o centro da cena econ6mica, social e política
pessoais, nao obrigatótios. Quando faJamos das desigualdades de classe em geral. Assim correspondía ao papel central e poderoso da classe operá-
em face da educa~ao nao nos referimos aos efeitos da classe sobre quem se ria, dos sindicatos e dos partidos de esquerda tradicionais - poderosos e
convetteu em parte deJa por meio de sua própria a~ao - mais ou menos centrais, certamente, embora nao tanto como a burguesía, as organiza~o es
condicionada, porém livre - , mas sim a seus efeitos sobre quem faz parte patronais e os partidos de direita, quando nao nos regimes políticos ditato-
deJa sem ter a ver com isso; nao nos referimos, na realidade, ao operátio riais. Pouco a pouco, porém, foi se abrindo o caminho para a preocupa~ao
ou ao patrao, ao rico ou ao pobre, ao autónomo ou ao assalariado ou ao com outro tipo de desigualdades, específicamente as de genero, primeiro,
rentista, mas a seus filhos. Trata-se também, como nos casos do genero e e as étnicas, depois. O primeiro foi mais silencioso, a pesar de- talvez por-
da etnia, das oportunidades iniciais das pessoas , nao de seus destinos fi- que- tratar-se da metade da popula<;:ao, embora sempre tenha sido assim,
nais. Pode-se afim1ar que a sensibilidade social diminuiu consideravelmente e provavelmente se viu favorecido pela feminiza~ao galopante dos profes-
em rela~ao as desigualdades adquiridas (aqueJas baseadas , inteiramente sores. O segundo tem-se mostrado mais complexo, visto que, por um lado,
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tambem já estava presente, mas era visto de outra forma- os ciganos, por Menos promissor, naturalmente, é o panorama das desigualdades ét-
exemplo, do ponto de vista da escala, eram simplesmente pobres, ou tal- nicas. E também, como tuda indica, menos homogéneo. É claro que há
vez algo piar, mas em nenhum caso eram considerados como outra cultura grupos de fácil integrac;ao a escoJa , seja por urna tradic;ao cultural desen-
- e, por outro, tratava-se aqui de urna realidade inteiramente nova - a volvida e pela impültancia atribuída a educac;ao (como os judeus em toda
Espanha passava da condic;ao de país de emigrac;ao a país de imigrac;ao, parte e os asiáticos na América), seja porque provém de urna mesma cultu-
coma itTUp<;ao acelerada de urna segunda gerac;ao imigrante concentrada ra e nao encontram uma barreira no idioma (como os latino-americanos
em certas áreas escolares e sempre na escala pública. na Es pan ha). Outros, no en tanto, justamente os mais numerosos e piar
O paradoxo reside na falta de correspondencia entre meios e resulta- situados económica e socialmente, parecem topar com batTeiras.intrans-
dos . Apesar da centralidade, da prioridade e da ambigüidade da !uta con- poníveis, ou quase, como os negros e os hispanices nos Estados Unidos ou
tra as desigualdades de classe perante a educac;ao, estas, embora se te- os ciganos na Espanha.
nham atenuado d e forma significativa - a classe já nao é um obstáculo lsso pode ser explicado pelo papel de diversos fato res, alguns dos quais
intransponível para quase ninguém, e todo mundo tem assegurado um estao fora do alcance da instituic;ao escolar, mas outros nao. Em primeiro
nível mínimo relativamente alto de educac;ao, pelo menos no que se refere lugar, as desigualdades económicas (a capacidade de pagar pelos estudos e
a provisao -, continuam tendo um peso bastante importante, como revela de prescindir do trabalho e de rendimentos enquanto estuda), que sao
vez ou outra qualquer aproximac;ao nao-anedótica, mas sim estatística - irrelevantes para a divisao de género (supondo que as famílias estejam
embora ess es efeitos se situem cada vez mais acima, isto é, dizem respeito dispostas a investir em suas filhas os mesmos recursos que em seus filhos,
a planos cada vez mais elevados da educac;ao. As reformas foram invaria- o que requer uma verdadeira revoluc;ao cultural) . As desigualdades econó-
velmente seguidas por diversos movimentos reativos, tais como o prolon- micas sao, porém, o centro das divisoes d e classe (as classes sao, antes de
gamento dos estudos e a conseqüente transferencia das desigualdades mais mais nada , isto : agregados de posic;oes económicas, independentemente
para cima, a diferenciac;ao social deles ou o recurso a escala privada, razao de serem também ou nao estilos de vida, comunidades ou atores sociais), e
pela qua! os setores min01itários privilegiados em geral, ou que confiam comumente acompanham, as vezes com muita intensidade, as divisi5es ét-
seus privilégios a educac;ao em particular, trataram de manter distancia nicas (alguns grupos étnicos sao também verdadeiros bolsoes de pobreza).
com relac;ao a maioria que ia em se u encalc;o. 2 Enfrentar essa dimensao económica da desigualdade está apenas parcial-
Com menos tempo, menos meios e menos ruído, no entanto, a igual- mente ao alcance da escala, por meio de urna provisao igual para todos e,
dade entre homens e mulheres já é algo praticamente conquistado dentro em certas circunstancias, maior para aqueles que partem de posic;oes ini-
do sistema educacional. As mulheres atingem os mesmos níveis que os ciais particularmente desvantajosas eurna política compensatória).
homens e os superam de maneira sensível no acesso, na aprovac;ao e no Em segundo lugar, as desigualdades culturais, isto é, a maior ou a
éxito escolares, ainda que persistam alguns bastii5es masculinos (como certas menor proximidade entre a cultura de origem e a cultura escolar, e as
especialidades de engenharia e de formac;ao profissional, porém, sem dú- relac;oes harmónicas ou conflituosas entre ambas, ou entre alguns de seus
vida, cairao, como já aconteceu com outros) . O porém aqui nao está na componentes. Aquí, mais urna vez, a divisao de género parece irrelevante,
esca la, mesmo que reste algum porém, mas fora dela, na esfera doméstica ou muito pouco relevante, pois os papéis de género sáo distintos dentro de
e no mercado de trabalho. Neste, porque um mesmo diploma nao conse- urna mesma e única cultura. O domínio da linguagem e seus usos, o consu- .:,,
gue o mesmo reconhecimento, nem produz os mesmos efeitos debaixo do mo artístico e cultural, o ócio, a valorizac;ao geral da educac;ao, etc. , tuda o
brac;o de urna mulher e do de um homem e, com isso, as mulheres se vol- que costumamos chamar de capital lingüístico, constituí um contexto úni-
tam a urna estratégia de titulac;ao para rebater suas desvantagens de géne- co, em cada família, para homens e mulheres. Entre as classes, no en tanto,
ro. 3 Na esfera doméstica, porque a divisao interna do trabalho resiste mui- pode haver importantes diferenc;as culturais. Embora pertenc;am a urna
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to mais a mudanc;a do que a externa, como resultado da chamada (quase) mesma cultura - as classes sáo classes dentro de urna nac;ao e urna nac;áo é
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dupla jornada das mulheres trabalhadoras. sempre, em si mesma, urna cultura, embora possa combinar-se com outras -,
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82 MARIANO FERNÁNDEZ ENGUITA
EDUCAR EM TEMPOS INCERTOS 83
usam a linguagem de modo diferente, percebem de forma distinta asocie-
é vivida como urna agressao contra sua cultura e se mostra pouco funcio-
dade, organizam de maneira diversa suas vidas; ou seja, constituem o que
nal para seu modo de vida - como é o caso dos ciganos.
costumamos chamar de subculturas, ou variantes fortes dentro de ou em
torno de urna cultura com um. 4 A cultura escolar nao pode chegar a ser
inteiramente alheia a elas, mas pode mante-las a certa distancia; de fato, a O DIFÍCIL EQUILÍBRIO ENTRE IGUALDADE, LIBERDADE E DIVERSIDADE
escolariza¡;;ao da classe operária foi e é o instrumento de sua incorpora¡;;ao
a comunidade nacional, oferecendo-lhe certas oportunidades sociais em A escoJa foi e continua sendo um importante instrumento de equipa-
troca de neutralizar sua oposi¡;;ao radical a ordem social existente. Final- ra<;ao social, ao contrário do que, muitas vezes, de forma unilateral, é afir-
mente, os grupos étnicos costumam ser precisamente isto: culturas, em mado sobre seu pretenso papel exclusivamente reprodutivo. Nao há con-
sentido estrito (digo "costumam" porque isso também deve ser relativizado, tradi<;ao entre proclamar, ao mesmo tempo, o papel reprodutor e transfor-
já que a etnicidade pode ser constituída sobre a base de qualquer combi- mador da institui<;ao escolar, e nao porque as coisas possam ser pretas e
na¡;;ao de fatores, como a língua, a ra<;a, a aparencia, a origem nacional ou brancas ao me.smo tempo, nem porque vale tudo, mas porque se requerem
as cren¡;;as religiosas, que, embora normalmente fa¡;;am, ou farao, parte de afirma¡;;6es mais precisas do que esses juízos sumários quando se trata de
um todo cultural específico, podem separar-se dele). Por isso é que a esco- analisar urna institui¡;;ao social em toda sua complexidade. É verdade que a
Ja pode ser para eles algo particularmente distante e hostil, a ponto de escoJa refletiu e reflete em grande medida as desigualdades sociais exis-
suscitar sua recusa ou de gerar um compromisso claramente limitado e tentes (ri~ueza, propriedade, nacionalidade, cultura familiar, etc.) e que,
instrumental. ao recobn-las com um verniz académico e meritocrático, legitima-as, e
Em terceiro lugar, as mulheres, as classes trabalhadoras e populares, também que cría por si mesma novas desigualdades (aqueJas vinculadas
as minorías étnicas ou os indivíduos que comp6em tais coletivos nao sao, justamente a o éxito escolar); mas também é verdad e que, a o ser concebida
naturalmente, meras criaturas passivas da economía ou da cultura. De for- como cenário da realiza¡;;ao de um direito social igual para todos- o direito
ma individual, grupal e coletiva podem adotar e adotam diversas rea¡;;6es, a educa¡;;ao -, cujas concretiza<;6es foram ampliadas, além disso, a um rit-
atitudes, táticas e estratégias, conforme se identifiquem mais ou menos mo galopante (período de escolaliza<;ao obligatólia, período de oferta obri-
com o conteúdo da cultura escolar e com a experiencia da escolaridade e gatória, provisao pública por aluno), foi gerada urna dinámica igualitária
vejam ou nao neJas um meio para obter outros bens economicos, sociais, de proje¡;;6es sociais mais amplas. Seria difícil nao ver, por exemplo, a in-
políticos ou culturais. Assim, a rapidez com que as mulheres alcan<;aram e fluencia que a igualdade escolar alcan¡;;ada pelas mulheres teve e tem so-
superaram os homens na escoJa pode ser explicada, junto com os fatores bre suas demandas nos ámbitos político, trabalhista e doméstico, ao
economicos e culturais antes assinalados, como a resposta razoável quando, estimulá-las a que as apresentem e combatam os argumentos patliarcais
primeiro, a escoJa !hes proporciona na ida de escolar urna experiencia mais tradicionais.
igualitária e gratificante do que qualquer das alternativas disponíveis - a Mas esse tipo de igualdad e é, por assim dizer, fácil; consiste essencial-
casa e o trabalho - e, segundo, os diplomas escolares sao para elas o ins- mente em nao fazer nenhuma distin¡;;ao, em tratar todos de forma burocra-
trumento mais acessível e eficaz para compensar suas desvantagens de ticamente igual. Como, em geral, consistiu apenas e m escolarizar mais gente,
origem no mercado de trabalho e na atividade economica em geral. No por mais tempo e com mais meios, encontrou apoio inequívoco em alguns
extremo oposto, as minorías étnicas podem encontrar-se a todas as distan- professores- e em alguns aspirantes a professores- para os quais era sino-
cias imagináveis da cultura escolar- e em todas as rela<;6es com el a -, por nimo de melhorias trabalhistas e maiores oportunidades profissionais. O
isso, podem elaborar tanto estratégias de incorpora<;ao social através deJa, problema ocorre quando, por um lado, é preciso compatibilizar a igualda-
quando a educa<;ao aparece como o recurso social mais acessível a elas - de com a liberdade e a responsabilidade; por outro, quando, ao passar das
como no caso dos judeus, dos palestinos ou dos asiáticos orientais fora de palavras aos fatos, esbarra-se, dentro e fora da institui¡;;ao, com a diversi-
suas respectivas pátrias, por exemplo -, quanto estratégias de recusa, quando dade do público potencial e real.
84 MARIANO FERNÁNDEZ ENGUITA EDUCAR EM TEMPOS INCERTOS 85
É possível que educar seja dar- o u, como con·esponde a sua etimología, les que querem a igualdade a qualquer prec;o (igualdade de resultados,
extrair -, mas aprender requer fazer. A educac;ao, em outras palavras, nao inevitavelmente fictícia) , como aqueles que querem impor acima de tudo a
depende apenas do professor, mas também do aluno. lsso leva a conclusao eqüidade (meritocracia) ou aceitam qualquer distribuic;ao desigual como
imediata de que a igualdade de op01tunidades - incluídas as dotac;oes em eqüitativa, desde que esteja ligada a contribuic;oes desiguais.?
seu sentido mais amplo, isto é, os recursos materiais e a dedicac;ao de re- E o problema nao termina aí, pois a desigualdade como produto das
cursos humanos - e a igualdade de resultados nao sao compatíveis. A úni- opc;oes livres de pessoas potencialmente iguais acrescentam-se as desigual-
ca maneira de igualar os resultados seria reduzir as oportunidades claque- dades naturais de certa relevancia. Refiro-me as incapacidades e as capaci-
les que estejam mais dispostos a aproveitá-las (urna coisa diferente é ten- dades excepcionais. Com relac;ao as primeiras, coloca-se o problema da-
tar garantir a todos resultados mínimos, ainda quando requeiram recursos queles que, em circunstancias iguais, nao poderiam conseguir os mesmos
extraordinários; isto é, urna igualdade básica). Nossa organizac;ao social resultados, talvez nem os mais elementares, nem com o maior esforc;o:
global, no mais, nao se baseia em que todo o mundo fac;a o mesmo e o que aqueJas pessoas com as quais, por assim dizer~ a própria natureza foi injus-
!he dizem - o que exigiría, além disso, um imenso aparato totalitário de ta. Diante delas, coloca-se o dever da so1idariedade, isto é, o dever de com-
controle -, e sim em que cada um fac;a o que pode e quer, mas que, ao pensar de maneira suficiente sua desvantagem de origem. E suficiente signi-
mesmo tempo, pague ou se beneficie das conseqüencias de fazer ou náo fica aqui até o ponto que obtenham os resultados mínimos que queremos '. .'
fazer. A outra face da liberdade, dito de outro modo, é a responsabilidade. para todos - por exemplo, que um cego curse a educac;ao obrigatória - e
Ao contrário do que alguns acreditam, essa idéia igualitário-meritocrática também que possam participar no jogo da eqüidade com probabilidades
da ordem social, que combina igualdade e eqüidade é, em termos mais similares as de todos - por exemplo, que um cego possa fazer um curso
gerais, comum a modelos sociais muito distintos, tao distintos como o libe- universitário. Nem é necessário esclarecer que, para equiparar as probabi-
ralismo e o socialismo (incluído o marxismo). 5 O liberalismo propoe que o lidades, e para que cada um dependa apenas de seu esforc;o, devem-se
mercado distribua as recompensas de acordo com a demanda pelos outros multiplicar os recursos para aqueJes que, abandonados a própria sorte,
daquilo que cada um oferece; o marxismo, se nos atemos a definic;ao mar- nao poderiam de antemao realizar o mesmo esforc;o ou nao poderiam faze-
xista do socialismo (outra coisa seria o comunismo), pretendía fazé-lo de lo com os mesmos resultados. E a isso vale acrescentar urna pergunta: que
acordo com o trabalho de cada um; ambos sao, entao, critérios de eqüida- fazer com aqueJes com quem a natureza foi injusta, senao a história, que
de, nao de igualdad e em sentido estrito. 6 O problema da es cola nao é, . está tao fora de seu alcance como aqueJa? Por exemplo, os locais de imi-
portanto, inventar novos critérios de justic;a para opor aos da sociedade, grantes, de minorías étnicas ou de grupos em situac;ao de grave pobreza,
mas sim aplicar os que esta considera legítimos. O professor, como cidadao, cujo entorno imediato dificulta enormemente um desempenho escolar norc
pode apoiar qualquer outra coisa, mas, como profrssional, e mais ainda como mal, e perante os quais se coloca também, portanto, o dever de urna ac;ao
funcionário, deve aplicar o que a sociedade quer; e se, por alguma razao, educativa compensatória, isto é, solidália.
considera que os critérios desta devem mudar, 01.!- nao sao aplicáveis a esco- Por outro lado, há aqueJes que possuem capacidades excepcionais.
Ja, deve, em todo caso, ater-se aos procedimentos democráticos- incluindo Assim como os incapacitados nao tem culpa nenhuma por sua incapacida-
que a escola é um servic;o público, nao dos professores -, e cabe a ele, no de, os superdotados nao tem qualquer mérito por sua capacidade excepcio-
debate, o onus da prova. E, se a escoJa deve ser um pequeno microcosmo nal. Por um mero critério de justic;a, a coletividade poderia tranqüilamente
da convivencia ciclada, ainda que seja amenizado como convém a pouca afirmar que os resultados dessas capacidades excepcionais em sociedade
idade dos cidadaozinhos e evitando qualquer forma de exclusao, (isto é, os que se podem obter, por exemplo, escrevendo, cantando, inven-
desqualificac;ao, estigma, efeito Pigmaleao, profecía auto-satisfatória, etc., tando, pintando, empreendendo ou fabricando para outros, portanto, se e
a eqüidade deve ter nela um lugar importante. Por isso, é difícil combinar apenas se há outros para apreciá-lo) nao sao urna propliedade do indiví-
universalizac;ao e meritocracia, que se manifesta, por exemplo, no debate duo, ou nao só. Contudo, essa questao se coloca mais em tennos de efrcá-
sobre a promoc;ao de ano na ESO. Sem dúvida, é extremamente difícil en- cia. Se desejamos que os indivíduos com capacidades excepcionais que
contrar o equilíbrio e a fórmula adequados, mas se equivocam tanto aque- podem beneficiar a todos nós as utilizem ao máximo, urna maneira de
. ,¡
86 MARIANO FERNÁNDEZ ENGUITA EDUCAR EM TEMPOS INCERTOS 87
fazer isso- a que se mostrou mais eficaz- é incentivá-los com recompen- XX, quando era a única opc;ao) e foi desaparecendo amedida que se esten-
sas excepcionais; outra questao é se isso deve ser feíto por meio do merca- deu a universalizac;ao.
do, deixar-se ao mecenato dos ricos ou recomendar-se a urna oficina nacio- Outra questao é a que se coloca diante das divisoes étnicas. A deman-
nal de méritos excepcionais designada ou eleita sabe-se !á como, mas toda da inicial de igualdade foi sendo mesclada progressivamente como a de-
civilizac;ao desenvolvida utiliza-se de algum mecanismo. Vejamos: se a es- manda de reconhecimento da diversidade. Mas nao um mero reconheci-
cola deve ir antecipando para os alunos a organizac;ao social adulta e se me?to passivo ("Voce também é legal"), mas sim ativo, isto é, apoiado nos
deve ser o lugar em que comec;am a se revelar e cultivar essas capacidades mews e nos recursos do sistema escolar. Deve a escoJa servir de veículo a
excepcionais, deve haver nela um lugar importante para a excelencia. Con- ?u;ra~ culturas? Urna coisa é, por exemplo, expor a cultura cigana ou
tuda, um problema visível hoje é que tanto a instituic;ao como seus agen- Islamica, mas outra bem diferente é pregar a submissao e a reclusao da
tes, que incorporaram até certo ponto a idéia de solidariedade e articulam m~lher ou as excelencias da guerra santa. E como conseguir tempo? ou,
com maior ou menor perspicácia fórmulas para implementá-la, nem de ate que ponto se pode forc;ar a pressao incluindo objetivos adicionais? Mais
longe da o a mesma atenc;ao a excelencia. 8 ~ma vez, nos .~ncontramos diante de dilemas que nao tem urna soluc;ao
A outra parte do problema é como conciliar a igualdade e a diversida- SI~ples, qu~ colocam a necessidade de busca de equilíbrio e de compro-
de, entendida agora como diversidade coletiva. As políticas igualitárias em missos medwn~e aproximac;oes sucessivas; mas que, seja como for, ressal-
face das desigualdades de classe e de genero já esbarraram na crítica de tan: a complexida~e da instituic;ao escolar, as dificuldades da política edu-
que nao faziam outra coisa senao incorporar seus supostos beneficiários caciOnal e a magmtude dos problemas que ainda estao por se resolver.
(trabalhadores e mulheres) a urna escoJa feíta pela medida aos outros (a
burguesía ou os homens), submetendo-os a seus valores e interesses e fa- NOTAS
zendo-os embarcar em umjogo de cartas marcadas, no qua! estavam inevi-
tavelmente destinados a perder (é possível, contudo, compartilhar algu-
l. ~ssa metonímia, que toma a parte pelo todo (a classe pelo social), nao é um
mas das premissas de tal raciocínio, mas nao outras, nem suas conseqüen- Simples erro nem um preconceito ideológico: etnocentrico e androcentrico.
cias, por exemplo, se consideramos que foram de fato incorporados a esco- Visto que o social se ve reduzido a classe, o resto se converte por contraste
Ja do outro, com toda a assimetria que isso acarreta, mas que também a em natural; por exemplo, quando se deixa escapar expressóes como "desi-
modificaram em benefício próprio e que, seja como for, os benefícios pe- gualdades sociais e de genero". Parafraseando um bom título de um mau
sam mais do que os prejuízos). Em consonancia com essa crítica, susten- filme, poderíam?s nos perguntar por que dize:m genero quando querem di-
tou-se, por exemplo, que o melhor para a classe operária nao seriam as zer sexo, ou etma quando querem dizer rac;a.
reformas inclusivas, que a afastavam da consciencia e da defesa coletiva 2. Contra urna idéia bastante difundida, a educac;ao nao é parte essencial da
:;stratégia d: repr~?u<;iio do vínculo de classe dos "ricos", do "capital" ou da
de seus interesses, infundido-lhes falsas esperanc;as de promoc;ao indivi-
cl~s.se d~mman~e em geral - embora jogue um papel muito útil em sua
dual, mas sim a melhoria da formac;ao profissional dentro de um sistema leg¡t1ma<;~o _-, pms :sta ?aseia-se na propriedade. Mas é, a o contrário, para as
que se mantivesse segregado. 9 Ao mesmo tempo, sustentou-se que as me- classes medias fun:w~rus, sobretudo para os profissionais (e, entre eles, para
ninas sao prejudicadas pela co-educac;ao, dado que os professores (de ambos os ~ro~essores). Nao e a velha burguesía, nem grande, nem pequena (nem ! 'i
os sexos) prestam mais atenc;ao nos meninos e que estes tem urna atitude cap~talistas, ~ero pequen os comerciantes, artesiicis, etc.), que confia seu desti-
hostil com suas colegas, razao pela qua! se deveria restabelecer a educac;ao no a educa<;ao, mas a nova. A "nova burguesía" seria agora a chamada classe
separada, mas com um currículo comum. 10 Mas nao há por que se escan- "profissional-diretiva" (Ehrenreich e Ehrenreich, 1979), e a "nova pequena
dalizar, pois as classes cultas sustentam a todo momento que seus filhos bu~guesia", as profissóes de menos importancia (Baudelot e Establet, 1974).
3. Alero d~ tudo, deve-se recordar algo bem simples: que empregos e outras
nao deveriam ser misturados com a "gentalha". 11 Contudo, a defesa de
oportum~ades econ6micas e sociais sao o fim, e a educa<;iio é antes um meio
urna (boa) educac;ao separada da classe operária nunca encontrou muito (ero rela<;ao a eles, e apenas um: outros sao a heran<;a, a sorte, a ambi<;iio, as
eco (fora o movimento de auto-instruc;ao do século XIX e início do século
88 MARIANO FERNÁNDEZ ENGUITA
EDUCAR EM TEMPOS INCERTOS 89
rela<;oes, o delito, etc.), e por isso urna redistribui<;fw dos meios pode tradu-
educa<;ao de todas com a educa<;ao a parte de algumas poucas e seletas. Ou
zir-se em urna redistribui<;ao dos fins (que é o que desejam e prometem os
seja, urna compara<;ao totalmente inadequada.
reformadores da educa<;ao). Nao digo que seja este o caso (recorde-se o que
11. Dispostos a sustentar, e como há gente para rudo, em 2000, pude assistir a
foi dito no Capítulo 2), mas simplesmente que a eficácia igualitária da edu-
um curioso debate no Reino Unido. Pela primeira vez acontecía ali o que na
ca<;ao nao pode ser considerada já as sentada. . . .
Espanha vinha acontecendo desde há muito tempo: que as mulheres tinham
4. O termo subcultura nao implica, portanto, urna attibui<;ao de valor mfenor,
superado os exitos escolares dos homens. Alguns pensaram entao que os
embora se fale comumente da cultura escolar e da subcultura da sala de aula.
resultados dos meninos estavam caindo porque a presen<;a das meninas, prin-
Quer destacar, simplesmente, que, dentro de urna cultura (nacional) existem
cipalmente na adolescencia, distraía-os das preocupa<;oes mais nobres e pro-
ou podem existir diversas variantes classistas, profissionais, locais, etc. Nes-
puseram o restabelecimento da escala segregada por sexos, em benefício
se sentido, a cultura escolar é também urna subcultura, embora o problema
deles. As mulheres que tao penosamente tinham conseguido a co-educa<;ao
nao resida aí, mas sim em que seja a subcultura de um grupo determinado,
devem ter pensado coisas muito pouco agradáveis nesse momento sobre suas
prevalecendo assim sobre esta e colocando em desvantagem os demais.
companheiras partidárias da segrega<;ao.
S. Ainda que se excluam dela seus extremos, por exemplo, o liberalismo selva-
gem ou o capitalismo manchesteriano, de um lado, que negam qualquer
igualdade básica, tachando-a de socialismo rampante, ou o maoísmo da Re-
volu<;ao Cultural e o comunismo a albanesa ou a combojana, de outro, que
denunciavam como desvío pequeno burgues qualquer forma de eqüidade.
6. Na realidade, se acrescentamos, com Marx, que o trabalho deve ser social-
mente necessário ternos que marxistas e liberais dizem a mesma coisa, pois a
necessidade social se expressa por meio da demanda. É verdade que, no
mercado, só contam as necessidades solúveis; mas é verdade também que,
sem mercado, o capricho se equipara a necessidade, pois todo o mundo quer
o que é gratuito. Mas essa é urna outra história.
7. Um problema óbvio da escala, mesmo que se aceite seu caráter meritocrático,
é a falta de correspondencia entre as diferen<;as nas contribui<;oes (os esfor-
<;os ou os resultados) e as diferen<;as entre as recompensas. A rela<;ao escola-
emprego, específicamente, funciona em muitos aspectos como um jogo no
qua! o ganhador leva tudo, ainda que ganhe por muito pouco.
8. Desenvolví mais amplamente os conceitos de igualdade, eqüidade, solídarie-
dade e excelencia, assim como suas diferen<;as e rela<;oes, em Femández
Enguita, 2000c, 2002.
9. Quem sustentava isso há alguns anos era, por exemplo, Christian Baudelot,
perante um público espanhol um tanto quanto at6nito, que nao imaginava
que pudesse ser essa a conseqüencia de sua denúncia- com Roger Establet-
da dupla rede.
10. Essa é uma postura que alguém sempre mantém, talvez por dar a nota. Nao
faz muito, participei da banca de urna tese em que a doutoranda tentava
demonstrar, comparando dois colégios, que quando as meninas sao educadas
junto com os meninos obtem pi ores resultados do que quando sao educadas
sem eles, do que decorreria a recomenda<;ao corresponden te. Mas, eis que as
meninas educadas sozinhas eram todas filhas de famílias de profissionais,
enquanto as outras eram das classes populares. Quase toda a literatura sobre
a boa educa<;ao segregada das mulheres consiste nisto: em comparar a co-
6
As Escolas, sua
Organiza~ao e seu Entorno
destes tres aspectos da organiza<;ao escolar: sua crise como sistemas racio-
desfilam agora, para todos os alunos, tres ou quatro professores especialis-
nais, sua tendencia a atuar como sistemas naturais e sua necessidade de
tas e, para urna minoría significativa deles, outros.professore~ compleme.n-
faze-lo como sistemas abertos.
tares e/ou alternativos (de compensa<;ao, de apo10, logoped1stas, especia-
Aproveitando a terminología da análise de sistemas de comunica<;ao,
listas em certas minorías). Ao lado de todos eles, é preciso considerar ain-
poderíamos dizer isso de outro modo. As organiza<;oes, incluídas as escola-
da responsáveis por refeitórios ou cafés da manha, monitores de ativi~a
res, sao um conjunto de elementos materiais e humanos destinados a um
des extra-escolares, especialistas aos quais se solicitam atividades ocasw-
fim ou a um conjunto de fins. Em si mesmos, tais elementos apenas consti-
nais etc. E tudo isso sem contar com a confusao devido a distribui<;ao de
tuem um agregado, urna cole<;ao de singularidades, mas, unidos por urna
gru~os e horários, destinos e interinidades, ause.ncias e sub~t~tui<;oes, tare-
série de rela<;oes que, alcan<;ando um nível maior de complexidade, consti-
fas de dire<;ao e cursinhos, etc. O professor, no smgular, dec1~1v? ~a forma-
tuem urna estrutura e, visto que perseguem fins e podem transformar-se
<;ao de gera<;oes anteriores, simplesmente passou para a h1stona. Ago~a,
em fun<;ao deles, formam um sistema. 2 '
mesmo em condi<;oes normais, urna boa educa<;ao depende da coopera<;ao
horizontal e da coordena<;ao vertical de um conjunto de pessoas, o que nao
pode ser obtido por vía esponüinea, mas apenas por me~o de mecanismos A CRISE DA ORGANIZA~ÁO ESCOLAR OU A QUEBRADO SISTEMA RACIONAL
organizacionais. Além disso, o direito a urna boa educa<;ao deve ser prote-
gido contra a eventualidade de um mau professor. . . As escolas de ensino fundamental foram concebidas como mecanis-
Toda escola é urna organiza<;ao e, como tal, um s1stema. Urna orgam- mos de transforma<;ao do meio, nao de adapta<;ao a ele, e os institutos,
za<;ao é a ordena<;ao de certo número de atividades pessoais e ~ei~s rr;-ate- para atuar de modo seletivo com e sobre apenas urna parte previamente
riais para a obten<;ao de certos fins. Nesse sentido, toda orgamza<;ao e um aceita e adaptada dele. Como tais, sao apenas sistemas racionais e unifor-
sistema racional, o que nao significa que seja necessariamente urna orde- mes, projetados com caráter geral para obter, por meio de um mesmo e
na<;ao correta dos meios, a melhor possível ou simplesmente boa, n:m único processo, os mesmos ou diferentes resultados conforme recebam os
muito menos que os fins sejam bons ou desejáveis em si mesmos, mas tao- mesmos ou diferentes insumos. Assim, por exemplo, a antiga Educación
somente que consiste na sujei¡;ao de certos meios a certos fins. A racional~ General Básica da Lei de 1970, ou as escolas de ensino fundamental ante-
dade nao é mais do que essa rela<;ao instrumental entre recursos e propo- riores a esta, produziam fracasso escolar em massa, mas nao se sentiam
sitos. Mas, ao mesmo tempo, toda organiza<;ao é também um sistema natu- muito aflitas com isso, pois, sendo o ensino o mesmo para todos, os resul-
ral, o que significa que procura sobreviver permanecendo mais ou ~enos tados distintos eram atribuídos a características ou a condutas diferentes
igual a si mesma, independentemente do que isso implique para os fms em por parte dos alunos. No outro extremo, o bacharelato (ou, com mais ra-
virtude dos quais foi criada nem para o ambiente no qual se desenvolve; zao, a universidade)- muito mais antes da massificaréío acorrida as véspe-
logicamente, o que a leva a tentar sobreviver nao sao seus próprios desejos ras e no período da LGE - funcionavam com base na suposi<;ao de que
ou interesses, pois a organiza<;ao como tal nao é urna entidade de causa todos os alunos deveriam ter exito, pois se nao tivessem seria simplesmen-
própria que possa te-los, mas sim os interesses e desejos de seus membros, te porque nao haviam sido selecionados antes de maneira adequada. Isso
que nasceram da- ou ajustaram-se a- existencia da organiza<;ao em geral era perfeitamente resumido nas velhas expressoes: presta ou néío presta
e de- o u para- alguma forma de exístencia em particular. Por último, toda para os estudos. Sob o sistema da Ley General de Educación, os que presta-
organiza<;ao é também um sistema aberto em um duplo sentido: primeiro, vam obtinham o diploma de gradua<;ao escolar e podiam ter acesso ao
porque processa algo que recebe de seu ambiente e que o devolve transfor- bacharelato; os outros tinham de se conformar como certificado de escola-
mado a ele, que no caso da escala sao pessoas, específicamente alunos; ridade - de ter estado ali - e podiam ir para a rua ou para a forma<;ao
segundo, porque nao pode funcionar, nem para alcan¡;ar seus .fins con:o profissional conforme sua idade, e sem muito empenho em urna coisa nem
sistema racional nem para satisfazer seus membros, como um s1mples SIS- em outra. Antes da LGE, ainda sob o regime herdado da Ley Moyano de
tema natural, sem utilizar os recursos que lhe proporciona seu ambiente - 1857 e suas sucessivas reformas parciais, o ensino fundamental nao levava
e inclusive explorá-lo. Nos próximos itens trataremos, respectivamente,
94 MARIANO FERNÁNDEZ ENGVITA EDUCAR EM TEMPOS INCERTOS 95
a parte alguma por si mesmo, e os al unos do ensino médio eram seleciona- massificar-se - como se preferir, embora a escolha nao seja inocente - o
dos mediante um exame chamado exame de admissao: os que prestavam ensino médio nao-obrigatório, e a o chegar a o obrigatório (como o ensino
conseguiam entrar, e os outros ficavam de fora. médio comum) até os institutos e m que antes só entra va u m público (em-
Por outro lado, as organizat;6es escolares foram projetadas típicamen- bora cada vez menos selecionado). Por outro lado, na ida para o mercado
te para a obtent;ao de alguns poucos fins sólidos e certos e por procedi- de trabalho, no qual importam apenas os éxitos escolares absolutos, os
mentos homogéneos, simples, amplamente aceitos e largamente estabele- éxitos relativos, comparativos, com os quais, em meio a urna expansao
cidos. Foi isso que permitiu montar a escola de ensino fundamental com generalizada da educac;ao, nenhum ciclo ou diploma pode valer o que va-
base em um corpo profissional com urna formac;ao curta e superficial, e a lía antes por si mesmo, mas em func;ao de sua escassez agora menor, o que
de ensino médio em estudos especializados sem nenhuma orientat;ao es- possibilita essa estranha mistura de urna titulac;ao crescente com o descré-
pecífica para o ensino. Recorde-se de que o magistério é apenas urna dito geral dos diplomas escolares que se assinala nos recorrentes lamentos
diplomac;ao recente e mal-integrada na universidade e com níveis de exi- sobre o desemprego das pessoas formadas, o subemprego, a sobrequalifica¡¡,éio
gencia, tanto para o acesso como para a promoc;ao académica e profissio- ou a conversaJ) da universidade em umafábrica de desocupados. 5
nal, sensivelmente infetiores aos de outros cursos, 3 ainda que os professo- O processo de mudanc;a longitudinal, temporal e diacrónico, em con-
res de ensino médio possam chegar as salas de aula sem terem recebido seqüencia disso, manifestou-se, ao mesmo tempo, como diversidade trans-
como educadores nenhuma formac;ao além dos caóticos e inúteis Cader- versal, espacial e sincrónica nas escalas e nas salas de aula. Em urna mes-
nos de Aptidao Pedagógica e equivalentes. 4 O caráter imposto e homo- ma turma podem coexistir e coexistem - embora nem sempre convivam -
geneizador do ensino fundamental seletivo e auto-reprodutivo do ensino os filhos de profissionais com um alto nível cultural e académico que ba-
médio é que tomou possível, além das convuls6es devido ao empenho em seiam sua estratégia de reproduc;ao social- seu esforc;o pelo futuro de seus
usar o magistério e os professores como instrumentos de penetrac;ao políti- filhos - em !hes garantir urna trajetória escolar frutífera e bem-sucedida,
ca (que se podía trad uzir tanto e m demissoes e m massa como e m expurgos os dos trabalhadores manuais inseridos em urna cultural tradicional e para
ideológicos ou promoc;oes patrióticas) ou das premencias associadas as quema escola é apenas urna passagem obrigatória antes da incorporac;ao a
pretensoes doutrinadoras dos regimes da vez (que se supria com mudan- labuta, os das famílias marginais que veem na sala de aula apenas um
c;as em planos, programas e textos e recorrendo a doutrinários especializa- albergue e/ou urna imposic;ao associada aobtenc;ao de certas ajudas públi-
dos, como padres ou falangistas na Espanha), a mesma estrutura organiza- cas o u apenas urna forma de evitar problemas com as autoridades e os pais
dona! sobreviver, quase idéntica, durante mais de um século e meio. imigrantes com urna atitude dual em relac;ao a escola, para eles ao mesmo
O problema dessas organizac;oes é que poderiam ter continuado fun- tempo imposic;ao e oportunidade, meio de incorporac;ao a sociedade que
cionando bem ou medianamente bem, como ao menos o faziam e pelo os acolhe e instrumento de negac;ao de sua cultura de origem. 6
menos como o faziam, durante mais de mil anos, se seu entorno nao tivesse Finalmente, as reiteradas reformas gerais e parciais da educac;ao pu-
mudado de fotma radical. Esse processo de mudanc;a teria lugar, seja como seram a prova os hábitos das organizac;oes escolares. A confusao de atri-
for, fora da escola, como reestruturac;ao das classes sociais, da piramide do buic;oes entre professores e licenciados (e professores licenciados) nos li-
emprego, do acesso a cultura e das aspirac;oes sociais e educacionais da mites do ensino fundamental e do ensino médio, a substituic;ao dos perío-
populac;ao, o que supunha um contexto geral distinto. Mas também, dos por ciclos como unidades do planejamento docente, a segregac;ao dos
logicamente, na articulac;ao entre a estrutura social e a escola. Por um professores especialistas, o aparecimento de outros profissionais em fun-
lado, no acesso e na permanencia, ao ampliar-se a educac;ao básica obriga- c;oes transversais ou auxiliares (psicólogos, orientadores, terapeutas, etc.),
tória e comum (como nome de primária, básica ou secundáría obrigatória, as adequac;oes e as afinidades, e outras fotmas de mobilidade dos profes-
nao importa), o que produziria urna explosao da diversidade entre os alu- sores entre matérias e áreas, a compressao do tempo de permanencia com
nos que, logicamente, mostram-se tanto mais distintos individualmente a jornada contínua ou matinal, criaram tensao entre organizac;oes baseadas
quanto mais velhos sao; e também ao ampliar-se, democratizar-se ou tradicionalmente na estrita e simples divisao por escolas (nas escolas fun-
96 MARIANO FERNÁNDEZ ENGUITA
EDUCAR EM TEMPOS INCERTOS 97
damentais unitárias), por períodos (nas escolas fundamentais graduadas) crianc;as e os adolescentes, se m condic;oes de fazerem valer seus direitos, e
ou por matérias (no ensino médio). os país, com pouca informac;ao e parco conhecimento a respeito e apanha-
Como sistemas racíonaís, as escolas sao estruturas, conjuntos de rela- dos por onde mais lhes dói -, coloca urna situac;ao claramente distinta
c;oes estáveis, voltadas a obtenc;ao de um fim implícito ou imposto de fora. tanto daquela da maioria das empresas privadas como da dos demais ser-
Sua resposta a mudanc;a é sempre negativa, reativa. Sao capazes de repor as vic;os públicos, na qua! se abrem duas perspectivas de conseqüencias muito
relac;oes ro m pidas, de voltar ao estado anterior a alguma alterac;ao, de retar- díspares. Por um lado, a apropriac;ao das organízac;oes pelos participantes,
dar a desordem que as ameac;a, isto é, de manter um equilíbrio. Sua relac;ao isto é, sua subordinac;ao, dentro de certos limites, aos interesses de seus
com o ambiente é altamente seletiva, cuidadosa em manter limites definidos membros. Podemos considerar isso, também, como o predomínio do siste-
com o exterior. Em urna escola, esse funcionamento estruturado pode mani- ma natural sobre o sistema racional ou o desmoronamento da estrutura
festar-se particularmente na forc;a da divisao do trabalho herdada, na qual organizacional em um agregado de elementos pouco coordenados. Por outro
cada um tem urna func;ao claramente definida, e todos estao unidos por lado, a garantía da func;ao da organizac;ao escolar para com a sociedade
diretrizes de coordenac;ao estabelecidas de forma mais ou menos precisa. que a criou e que a financia mediante sua abertura ao público e ao meio,
Nas coordenadas atuais, isso poderia expressar-se em um bom projeto subordinando tanto os interesses dos membros como tais como a própria
curricular de escola, isto é, em urna boa coordenac;ao interna, mas alheia as organizac;ao - mais urna vez, dentro de certos limites - a suas func;oes
condic;oes externas. Do ponto de vista administrativo, pode significar um sociais, isto é, aos fins da educac;ao. Em sentido contrário, isso poderia ser
centro nuclear em tomo do corpo docente como expressao coletiva e da considerado a conversao do sistema racional em um sistema aberto ou a
direc;ao como instancia representativa dos professores, em face dos demais evoluc;ao da estrutura em sistema, na acepc;ao plena do termo.
setores envolvidos. Isso também gera um modelo de profissionalizac;ao e um
tipo de profissional: o professor que se atém as suas tarefas, fortemente
delimitadas, mas a quem se pode recorrer caso exista algum desequilíbrio A ORGANIZA~ÁO ESCOLAR COMO SISTEMA NATURAL OU
organizacional (o que explica, por exemplo, a paradoxal combinac;ao de urna A DISSOLU~ÁO EM SEUS ELEMENTOS
especializac;ao extrema por matérias com urna disponibilidade para tudo
que se reivindica, por parte da administrac;ao - a quem cabe, em última Toda organizac;ao está ameac;ada de decomposic;ao nos elementos que
instancia, zelar por manter e m funcionamento a estrutura com meios limita- a compoem. Poderia entender-se como o princípio de entropía, pelo qual
dos- mediante figuras como adequac;oes, afinidades e outras). todos os sistemas tendem a desorganizac;ao e a morte, ou como a tenden-
Quando a organizac;ao sobrevive sem variac;oes substanciais aos fins cia do sistema racional a ser envolvido pelo sistema natural. No extremo, a
que devia perseguir ou ao contexto para o qua! foi projetada, podemos organizac;ao pode se ver submetida aos interesses, opostos a ela ou a seus
dizer que os meios se sobrepoem aos fins. Essa confusao, ou inversao da fins expressos, dos elementos que a constituem, como é o caso quando um
relac;ao meíos-fíns, é o que Merton (1957) chamava de ritualismo burocrá- grupo de diretores devora os benefícios da empresa, urna burocracia sindi-
tico, como conduta, que tem sua expressao na personalidade burocrática, cal coloca seu próprio bem-estar acima dos desejos e dos interesses dos
como caráter. Poderíamos considerá-la também como a derrocada do siste- filiados ou um grupo profissional situa seus interesses trabalhistas acima
ma (as metarrelac;oes, as relac;oes entre as relac;oes, ou a articulac;ao das das finalidades da instituic;ao que o abriga. Sem ir tao longe, a decomposi-
relac;oes em func;ao dos fins) na estrutura (as relac;oes em si, independen- c;ao da organizac;ao pode limitar-se a sua incapacidade para responder as
temente dos fins que as originaram). Nessas circunstancias, a combinac;ao mudanc;as no entorno, inclusive a manter a próp1ia regularidade de suas
da condi<;ao funcional dos professores- funcional na escola pública e qua- func;oes, pelo enclausuramento dos membros nos compartimentos herda-
se funcional na escola privada, dadas as condic;oes de contratac;ao, os usos dos da divisao do trabalho, as rotinas, os direitos adquiridos, as definic;oes
nas relac;oes trabalhistas do setor e a elevada proporc;ao de religiosos - corporativas de direitos e obrigac;oes ou a simples falta de compromisso
com a notável indefensibilidade do público objeto de seu trabalho - as com a organizac;ao.
98 MARIANO FERNÁNDEZ ENGUITA
EDUCAR EM TEMPOS INCERTOS 99
Nas empresas e nas associa<;oes existem mecanismos que se contra- professores mais do que aos dos alunos ou das famílias . Entre os 210 días
poem com mais ou menos exito a essa tendencia. As empresas devem sub- legais e os 160 e tantos reais de docencia da Espanha- que, como sabemos,
meter-se ao veredicto do mercado, que as impede de descer abaixo de nao sao os únicos de trabalho, mas também nao sao muitos mais - medeia
certo limite de eficácia, a menos que sejam monopólios ou que desfrutem urna constante pressao dos professores - as vezes, iniciada ou secundada
de fundos limitados procedentes de outro lugar. As associa<;oes também pelos país - para reduzir o calendário, estendendo os períodos de férias,
estao submetidas, de maneira geral, a algum tipo de concorrencia, como inventando pontes, suspendendo as aulas por motivos diversos, etc. Acres-
mostra a pluralidade de partidos, sindicatos, organiza<;oes de consumido- cente-se a isso a jornada contínua - também as vezes, mas poucas vezes,
res, etc. Seja como for, os outros membros da organiza<;ao sao típicamente promovidas pelos país por motivos diversos -, imposta pela vía de fato no
adultos coro plenos direitos dentro e fora da organiza<;ao e coro instrumen- ensino médio e por procedimentos pseudodemocráticos no ensino funda-
tos de poder específicos (por exemplo, os chefes dos partidos, as correntes mental em diversas comunidades autónomas, que serve claramente aos in-
.dos sindicatos, os proprietários ou os trabalhadores nas empresas), embo- teresses de professores que querem a tarde livre, mas tero efeitos muito va-
ra muito desiguais por sua natureza e por sua potencia. Contudo, nas ins- riados sobr~ alunos muito desiguais, efeitos que podem ir desde a libera<;ao
titui<;oes, há sempre algum tipo de assimetria essencial entre o quadro de da tarde para atividades mais o u menos essenciais que a escola nao é capaz
pessoal, geralmente uro grupo profissional (médicos, professores, vigilan- de oferecer, até levá-los para diante da televisao ou para a rua em detrimento
tes, etc.), e os institucionalizados, típicamente diminuídos de fato ou de de seu rendimento academico e de sua forma<;ao .7 Por outro lado, o tempo
direito em suas capacidades (internos, doentes, alunos). fora da sala de aula que os professores conseguiram para suas atividades de
A escola nao é urna exce<;ao a isso. De fato, nela se dao as condi<;oes prepara<;ao da docencia, forma<;ao contínua, entre outras - nao apenas nas
mais favoráveis para a derrubada do sistema na estrutura e de ambos em horas trabalhistas em que nao sao docentes, mas também nos días que nao
seus elementos. A institui<;ao conta coro um público cativo, pois, além da sao de férias -, é, para dizer de forma branda, utilizado de forma diversificada
escolariza<;ao ser obrigatótia, a liberdade de escolha de escola, por um pelo coletivo, que se distribuí entre todas as variedades inimagináveis, des-
lado, é urna fic<;ao (ero muitos casos é impossível, em outros nao existe de aqueles que sempre necessitam e usam mais tempo para seu trabalho até
informa<;ao, em outros requer a renúncia de fato e/ ou de direito a aqueles que estao convencidos de que este termina ao deixar a sala de aula.
gratuidade) e, por outro, significa elevados ou enormes custos (nao ape- A indiferen~a coma organizaráo manifesta-se na falta de compromisso
nas economicos, mas também sociais e pessoais: mudan<;a de ambiente e coro qualquer problema ou oportunidade que exceda totalmente ou em
de amizades das crian<;as, distancia da casa, etc.). Além disso, os resulta- parte os limites da própria sala de aula ou da própria matéria ou área.
dos tanto do trabalho individual como do processo coletivo sao, por sua Significa que o professor se adapta a defini<;ao recebida de sua incumben-
própria natureza - urna forma de processamento de pessoas: os alunos -, cia, mas nao quer saber de nada além deJa. Urna clara expressao dessa
de difícil avalia<;ao, mas nao impossível, e os próprios atores envolvidos indiferen<;a é a renúncia a participar de fun<;oes diretivas e de coordena<;ao
costumam ocupar-se de tornar a escola ainda mais enfadonha mediante e a nega<;ao de que estas, simplesmente, superem os níveis mínimos. O
urna estrita delimita<;ao de esferas, o estabelecimento de barreiras a visibi- diretor ideal é, para muitos, um diretor invisível, um emissário entre a
lidade, o estabelecimento de objetivos imprecisos, o manejo de jargoes escola e a administra<;ao- para pedir recursos, normalmente o trabalho de
intencionalmente confusos, etc. Que as escalas mostram fortes síntomas outros - e nao da administra<;ao para a escola, o que poderia supor pedir
desse processo é algo que fica patente em quatro conjuntos de fenomenos: presta<;oes de contas adicionais sobre o habitual trabalho próprio. Outra
a erosao do tempo de trabalho, a indiferen<;a coro a organiza<;ao e a dire- manifesta<;ao é a forte disposi<;ao a evitar todas as fun<;oes que nao a de
<;ao, a hostilidade coma participa<;ao da comunidade e a resistencia a ino- instru<;ao, desde que singularizada pela política educacional ou inclusive
va<;iío . Digamos, brevemente, algo sobre cada uro peles. pelos próprios professores, tal como ocorre coro a orienta<;ao e as tutorías
Por erosáo do tempo de trabalho refiro-me a dois processos só até certo no ensino médio ou coro a aten<;ao aos alunos com necessidades especiais
ponto distinguíveis. Por um lado, a tendencia irrefreável a reduzir e a con- no ensino fundamental. Outra, enfim, é a tendencia a deixar de lado todos
centrar o horário e o calendário escolares e a submete-los aos interesses dos os problemas de conduta e disciplina, ou de convivencia e forma<;ao em
1QQ MARIANO FERNÁNDEZ ENGUITA
EDUCAR EM TEMPOS INCERTOS 1Q1
geral, desde que ocorram fora do recinto da sala de aula, do horário de A NECESSÁRJA PRIMAZJA DO SISTEMA OU A ABERTURA PARA O ENTORNO
docencia e discencia ou do ambito da turma: isto é, a tendencia a se desin-
teressar de tudo que nao seja estritamente próprio. Em um contexto diverso, mutável, incerto e, como gostam de dizer os
A hostilidade com a participa~éío da comunidade se faz notar particu- teóricos dos sistemas, turbulento, urna organiza¡;ao nao tem outra solu¡;ao
larmente na atitude em rela¡;ao aos país, em suas associa¡;6es e nos conse- para sobreviver, prosperar e desenvolver suas fun¡;6es a nao ser compor-
lhos escolares. Preferem-se os país sob convoca~éío, isto é, um a um e só tar-se como um sistema flexível e aberto. Ou seja, atuar como um sistema
quando o professor reclama sua colabora¡;ao. Curiosamente, a constante ab erto, e nao simplesmente racional ou natural; ou como um sistema em
cantilena em torno da falta de apoio e de colabora¡;ao das famílias - por sentido amplo (como um conjunto de metarrela¡;6es, ou de rela¡;6es entre
outro lado plenamente justificada no caso de um setor destas - coexiste as rela¡;6es) e nao como urna simples estrutura (rela¡;6es entre os elemen-
com rea¡;6es puramente defensivas em rela¡;ao a sua aproxima¡;ao indivi- tos) ou um mero agregado (soma de elementos) .
dual e francamente hostis asua mobiliza¡;ao coletiva, a nao ser como linha Flexibilidade quer dizer capacidade de transformar a si mesmo, de se
de frente das reivindica¡;6es dos professores perante a administra¡;ao. As reorganizar~ se for preciso, para alcan<;ar os fins propostos, inclusive de
associa¡;6es de pais sao vistas, mais comumente do que o contrário, com articular, de outra maneira, os fins parciais, ou de substituir os fins gerais
receio; e os conselhos escolares, como um obstáculo imposto pela adminis- para sobreviver como organiza¡;ao. Urna escola faz isso, por exemplo, quan-
tra¡;ao. Resta acrescentar que, quando se imp6e essa atitude de reserva em do passa do trabalho por matérias ao trabalho por projetos, do agrupa-
rela¡;ao ao público direto, nao cabe sequer pensar em urna abertura mais mento rígido ao agrupamento flexível de seus alunos, do horário fixo e
ampla para a comunidade, como quer que se entenda esta, pelo menos que dividido em partes iguais para o horário desigual e variável ou dos progra-
nao vá além de declara¡;oes puramente retóricas. mas únicos as adapta¡;oes e flexibiliza¡;6es curriculares. Com isso, nao que-
a
Por último, a resistencia inova~éío deve ser entendida, antes de tudo, ro dizer que o novo ou aquilo que ainda nao se pos em prática seja sempre
como resistencia a mudan¡;a, independentemente do conteúdo desta, e ao melhor, mas sim qu e a organiza¡;ao em si é melhor quando é capaz de
compromisso com os fins organizacionais. Certamente, urna parcela consi- decidir sobre a manuten¡;ao ou a modifica¡;ao de sua estrutura, em vez de
derável dos professores mostra-se aberta as propostas de inova¡;ao ou as simplesmente recebe-la e considerá-la irremovível.
promovem ou aplicam por si mesmos, na medida de suas possibilidades. Isso requer urna certa rela¡;ao entre a organiza¡;ao e seus elementos
Outra, sem dúvida, milita a favor de métodos mais tradicionais, as vezes ou, mais exatamente, urna certa atitude destes em rela¡;ao aqueJa. Se cada
inclusive ultramontanos.' Mas, provavelmente, a mais ampla é a que, sem elemento da organiza¡;ao, específicamente cada elemento humano, cada
ter urna postura de princípio a favor destas ou daquelas formas de ensinar membro, fecha- se na fun¡;ao recebida e nao está disponível para nenhuma
e de aprender, apenas nao quer que mudem sua metodología de trabalho, outra, entao nao haverá reorganiza¡;ao possível, por mais evidente que
nem suas rotinas aprendidas, nem está disposta a se ver envolvida em seja a necessidade. Por trás da eterna demanda de mais recursos as vezes
mudan¡;as de resultado duvidoso. lsso se traduz em desconfian¡;a e hostili- está latente essa atitude, mas também pode ler-se do seguinte ~odo: na~
dade nao só em rela¡;ao as autoridades educativas externas a escola, mas pretendam que se fa¡;a outra coisa nem adicional, nem diferente, se nao
também em rela¡;ao a dire¡;ao ou aos colegas que se envolvem nas propos- mandarem outra pessoa para fazer isso. Ao contrário, a flexibilidade orga-
tas daquelas ou mostram o que se considera excessiva iniciativa pessoal. nizacional só é possível se os membros tem urna atitude de compromisso
com o conjunto da organiza¡;ao e com seus fins, nao com sua incumbencia
nela tal como um dia foi definida ou como eles entendem ou querem en-
tender que foi.
Nas escalas, tal como evoluiu até hoje a cultura da profissao, isso
'N . de R.T. O adjetivo "ultramontano", usado aqui em sentido extensivo, refere-se aquele implica urna mudan¡;a radical no papel de dire¡;ao. Por mais que doa aos
que apóia e defende 11 autoridade e o poder absoluto [do papa] (cf. Dicionário Houaiss). partidários da democracia de base - geralmente tao de base como inope-
;
rante e inexistente -, que na realidade, e salvo efémeras experiencias, cos- 1 poucos provedores ou clientes do que a de muitos trabalhadores e inclusi-
tuma identificar-se com um corpo docente capaz de parar tudo, nenhuma ve acionistas, e as análises organizacionais costumam considerá-los como
organiza<;ao pode ser flexível nem eficaz sem urna din!<;ao que dirija, isto parte real da organiza<;ao, embora formalmente nao o sejam. Na escala, no
é, nesse caso, que seja capaz de subordinar as partes ao todo e os meios aos
fins. Embora nao soubesse dizer qual é a via para alcan<;ar isso, com os 1 entanto , a imensa maioria dos professores nao vacilaría em afirmar que os
pais sao alheios a organiza¡;:ao, apesar de toda a verborragia sobre a parti-
necessários contrapesos de participa¡;:ao democrática- interna e externa- e cipa<;ao das famílias ou sobre o supremo interesse das crian<;as - cujos
autonomía profissional individual e colegiada, nao tenho a menor dúvida representantes legais sao os pais.
Quanto ao intercambio de recursos, este pode e deve ir atualmente
de que é incompatível com a inadequadamente hoje chamada "dire<;ao
participativa", que costuma consistir em urna mera subordina<;ao da dire- 1 muito além do velho intercambio baseado na divisao do trabalho: asocie-
<;ao ao corpo docente . dade entra com as crian<;as e o dinheiro, e os professores entram com o
Visto que a escala funciona como um sistema e, portanto, como urna trabalho e o conhecimento. Hoje em dia, é impensável que urna escola
organiza¡;:ao flexível, pode-se buscar o grau de realidad e e de relevancia de possa, por si só, manter-se a par do desenvolvimento das necessidades e
seu projeto educacional de escala. A urna escala-agregada, preocupada das oportunidades do desenvolvimento economico, social e cultural. Muí-
apenas com sua sobrevivéncia, corresponde normalmente um tipo de pro- tos dos recursos que se requer para urna educa<;ao apenas carreta, a altura
jeto que nao é mais do que um brinde ao Sol, um conjunto de banalidades das circunstancias, nao estao nem podem estar na escola - a nao ser que
sem nenhuma conseqüéncia sobre as práticas cotidianas nem sobre a es- fa<;amos desta urna duplica<;ao da sociedade, urna proposta que encanta
trutura da organiza<;ao . A urna escola-estrutura apegada a si mesma acima alguns, mas que está fora de lugar-, porém esta o e pode m ser obtidos no
das mudan<;as e das necessidades e oportunidades do ambiente, corres- entorno das escalas . Aí se encontramos saberes profissionais, os conheci-
ponde típicamente um projeto educacional que é a extensao do projeto mentos técnicos, as destrezas práticas e as experiencias sociais de que a
curricular, isto é, que dá como supostas a virtude da organiza<;ao e das escola necessita como apoio a seu trabalho; ou, se prefe1irmos, os grupos,
práticas herdadas. Urna escala-sistema, que seja realmente urna organiza- as organiza<;óes e as institui<;óes que os possuem, e com os quais pode
¡;:ao flexível, terá no projeto educacional um referente a partir do qua\ seja entrar em rela¡;:óes cooperativas. Que sentido tem, por exemplo, que um
possível avahar periodicamente ou em momentos-chave qualquer ativida- professor tente formular por si mesmo um discurso sobre a solidariedade
de da organiza¡;:ao. como Terceiro Mundo se, virando a esquina, há urna ONG com cem vezes
Perante o exterior, um sistema aberto manifesta-se na variabilidade e mais experiencia e disposi<;ao para relatá-la? O filao disponível para as
na permeabilidade de suas fronteiras. Variabilidade porque está disposto a escolas entre os grupos de interesses, as associa<;óes voluntárias, as insti-
incorporar como próprios elementos que, de urna perspectiva fechada, se- tui¡;:óes públicas, as organiza<;oes sociais, as empresas privadas e os grupos
riam apenas do ambiente. Permeabilidade porque entra em um constante profissionais presentes em seu entorno é simplesmente ilimitado, e renun-
intercambio de recursos com o exterior. Em urna escala, a questao pode ciar a tirar proveito dele para nao alterar o sonho dos que se acostumaram
colocar-se, por exemplo, quando se trata de decidir se os pais devem ou aos velhos limites pode ser muito comodo, mas promete pouco e amea<;a
nao ser considerados parte da escala. Infelizmente, é possível desenvolver deixar a institui<;áo escolar a margem da corrente principal.
a mais vazia e pretensiosa retórica sobre a colabora<;ao família-escola, os O primeiro instrumento dessa abe1tura para o entorno já existe: é o
interesses partilhados, a comunidade escolar ou a grande família ao mes- conselho escolar. Mas, para que desempenhe esse papel, é necessário
mo tempo que se estabelece um limite intransponível para as famílias (an- entendé-lo como um órgao efetivo da comunidade e da gestáo da escola,
tes para a comunidade e depois para os al unos, para os trabalhadores nao- nao como um lugar em que, por infelicidade, é preciso ratificar as decisóes
educadores e para os educadores nao-professores ... ). Os limites da organi- que o corpo docente já tomou e que preferiría tomar completamente só.
za¡;:ao como sistema sao algo bastante mais complexo do que pode parecer Entretanto, na maioria das escolas, o conselho é pouco mais do que um
a primeira vista- e, naturalmente, nao se resolve lendo os estatutos. Para órgao informativo (consultivo e de controle na melhor das hipóteses) 11 e
urna empresa, por exemplo, pode ser mais importante a opiniao de alguns apenas exerce urna parte de suas competencias, sendo composto por pro-
104 MARlANO FERNÁNDEZ ENGUITA EDUCAR EM TEMPOS INCERTOS 105
fessores que atuam de forma corporativa e com pressa de voltar ao colegia- sensacionalistas sobre a inutilidade dos estudos- quando nao sao meramen-
te gratuitas - costumam basear-se na escolha inadequada das faixas de ida-
do, e por país que aprendem logo o que se espera deles: que nao devem se
de comparadas. Se alguém compara, por exemplo, o nível de atividade eco-
meter onde nao sao chamados pelos professores. Adire<;ao, por outro lado, nomica e de emprego de jovens de 20 a 24 anos, pode constatar que os que
caberia um importante papel na colabora<;ao entre a escola e a comunida- tem menos estudos apresentam taxas de atividade e/ou ocupac;ao superio-
de, mas para isso seria preciso que deixasse de ser a dire<;ao dos professo- res, mas isso se deve a que os outros ainda estao estudando, as vezes, nessa
res para ser a dire<;ao da comunidade e sobre os professores, embora res- trama informal de masters e similares, ou que nao aceitam os primeiros em-
peitando sua autonomía profissional relativa. pregos que !hes sao oferecidos (ou que o analista nao conhece bem o que
Quando a organiza<;ao escolar abre-se a si mesma (torna-se flexível) e analisa). A educac;ao sempre paga, a questao é saber quanto.
flexibiliza sua rela<;ao como entorno (torna-se aberta), passamos do nível 6. Embora seja verdade que coexistem cada vez menos, pois se está produzindo
urna white jlight: a fuga dos pais de classe média que nao querem que seus
da estrutura ao do sistema em sentido pleno. Seu equilíbrio já nao é mera-
filhos compartilhem a sala de aula com outros que consideram problemáti-
mente homeostático, mas sim, por assim dizer, dinamico, mutável. Nao se cos ou acham que farao baixar o nível.
empenha em manter configura<;oes próprias nem rela<;ües com o entorno 7. o prob1ema nao é que a jornada contínua ou matinal nao possa ser adequa-
que já caducaram, ou que nao respondem nem aos fins, nem ao contexto, da e útil para urna parcela maior ou menor de alunos e de suas famílias; o
mas busca e consegue novos estágios de equilíbrio. Entao, a organiza<;ao problema é que, seja ou nao, !hes é proposta ou é imposta. Ver Fernández
se desenvolve, evolui para responder a necessidades e oportunidades Enguita, 200lb.
mutáveis. Para isso, requer de seus membros, naturalmente, urna atitude 8. Sao numerosos os conselhos nos quais professores e pais se limitam a relatat~
de disposi<;ao a coopera<;ao (em vez de puramente individualista ou ri- de maneira superficial, o que cada um fez ou fará em seu ambito preten-
tual), proativa (em vez de estática ou reativa) e de compromisso com seus samente exclusivo. Para ser exatos, os professores fiscalizam por cima as
atividades extra-escolares organizadas pelos país, e os país sao informados
fins (nao de apego as suas posi<;oes ou as suas rotinas).
pelos professores daquilo que escapa a rotina. Pura informac;ao, ainda que
assimétrica. Em outros, os país chegam a conseguir urna informac;ao um pouco
melhor sobre as cantas, os resultados gerais, etc., mas nao se espera deles
NOTAS
senao que aprovem ou, quando muito, que se mostrem preocupados: esse é
um trabalho puramente de controle, embora muito limitado. Finalmente, é
l. Pense-se, por exemplo, em dois sucessos cinematográficos recentes, particu-
possível que se estabelec;a um bom clima no qual os país possam perguntar
larmente aplaudidos pelos professores: La lengua de las mariposas e Tout
ou falar sobre o que quiserem, mas cabe exclusivamente aos professores
commence aujourd'hui. Além do herói solitário magisterial, eles tem em co-
decidir se levarao isso em conta: sao func;oes consultivas. Há conselhos que
mum ressaltar .a idéia do ambiente hostil e ingrato, seja do fascismo da guer-
gerem seus centros, mas sao poucas excec;oes.
ra civil espanhola ou da desagregac;ao do velho norte industrial franck
2. Tomo essa terminología de Wilden (1972). Na Espanha, foi muito utilizada
por Ibañez (1985). De minha parte, desenvolví essa idéia em Fernández
Enguita (2000d).
3. A contrapartida está no penoso périplo geográfico, hoje consideravelmente
reduzido pela fragmentac;ao autonomica e amenizado pelo desenvolvimento
das comunicac;óes, as concentrac;oes escolares e a jornada continua.
4. Naturalmente, todos podem fazer mais e muitos fazem, mas a ordenac;ao da
carreira docente nao abriga a isso e, embora as vezes o incentive, o faz com
muita timidez e pouca eficácia.
5. Con tu do, e como procurei explicar no Capítulo 2, a educac;ao conta, e muito.
Como quer que sejam vistos, os dados disponíveis indicam que as pessoas
com mais educac;ao obtem melhores empregos, maiores rendimentos, etc.,
mesmo controlando outras variáveis relevantes. As afirmac;oes alarmistas ou
7
As Transforma~oes da Profissao
ría abastada - como podem ser os norte-americanos que vivem no Haití res ~u~ dominam a cultura específica - local - e talvez ignorem ou sejam
como dirigentes, profissionais ou funcionários intemacionais, ressalvadas hostis a co~um_. Os abus~s, ~o nacionalismo espanhol nós já conhecemos,
as distfmcias -, mas a outra, sem dúvida, urna minoría mais típica e tópica, os dos nacwnahsmos penfencos talvez ainda estejam por vir.
isto é, urna minoría que se distingue da maioria por características como a
língua e em certa desvantagem com rela~ao a ela no mercado de trabalho, ESTRATÉGJA COLETIVA E JURJSDI~ÁO PROFJSSJONAL
na educa~ao, etc. (Que a minoría sejam os aragoneses, aos lado dos
andaluzes, dos castelhanos, etc., ou que entrem todos no saco de gatos dos E~ _meados dos anos 70, nos últimos anos do franquismo sem Franco,
charnegos,* como os imigrantes for~ados de todos os confins da África para urna sene de plataformas, como o Ilustre Colégio Oficial de Doutores e
a América do Norte entraram no dos negros, ou no mais politicamente Lic:nc~ados, etc., de Madri, a Escola d'Estiu da Catalunha ou o Colégio de
correto dos afro-americanos é, para esses fins, totalmente indiferente.) Vale~c~a, ~ntre outros, aprovaram um conjunto de documentos nos quais
Duas vías migratórias interiores relativamente distintas sao os merca- se retvmdi:ava urna transformac;ao profunda do sistema educacional. Ou-
dos e as burocracias de ambito nacional. Através do mercado, migram al- tro tanto fizeram os partidos políticos da esquerda e da direita que prefería
guns capitais produtivos das zonas mais ricas as mais pobres- e com eles ser chamada de centro, os incipientes sindicatos, os movimentos de reno-
os empresários e os dirigentes- e massas de trabalhadores das mais pobres v~c;ao pedagógic~. Todos se antecipavam em dizer como deveria ser orga-
as mais ricas; através das burocracias costuma migrar urna parte dos filhos mzada a educac;ao. Quando se examinam aqueles documentos, constata-
das famílias de classe média das zonas mais pobres, em busca das oportu- se que alg~mas expressoes se repetem até o ponto de que, as vezes, na
nidades que a economía local nao pode oferecer-lhes. Assim, na Espanha, fa!ta de m~wres especifica~oes, parece ha ver consenso onde realmente nao
o acesso ao magistério e a docencia, assim como a fun~ao pública em ge- ha. Es~e ttpo de expressoes, de pouco significado já por si mesmas, mas
ral, a milícia o u ao clero, foi sempre mais cobi~ado, rebus sic stantibus, nas
5
assumidas por todos, constituem o que podemos chamar de retórica de uso
zonas pobres do interior e do sul que nas mais ricas da periferia norte. Isso obrigat~rio para qualquer um que deseje intervir no diálogo e nao ser
significo u, por exemplo, que juízes, policiais, militares o u professores fos- desquahfi~a~o des~e o início. Do mesmo modo que na Europa medieval
sem típicamente castelhano-aragoneses, o que possivelmente favorecen a qualquer Ideia devta ser defendida em termos da doutrina crista, ou que
castelhaniza~ao da petiferia através da escola pública. Hoje, no entanto, em _b~a parte do _mundo hoje em linguagem islamica, o u que nos países do
vivemos exatamente a situa~ao contrária. Urna política agressiva de nacio- socialismo real tmha de ser, há até pouco terripo, no jargao do marxismo,
naliza~ao da escola por parte dos govemos autónomos, particularmente no m~n~o da educa~ao sucedem-se retóricas as quais é preciso prestar
no País Basco e na Catalunha, trouxe urna mudan~a radical na composi~ao reverencia quando se deseja simplesmente ser ouvido. A retórica dos anos
étnica dos professores em cada urna dessas comunidades (e em outras, 70: que durou até bem depois da metade dos anos 80, falava, entre outras
com menor intensidade, ou em alguns casos, maior- Canárias -,mas aí as c01sas, de democratiza~éio, gestéio democrática e autonomía das escoJas e
diferen~as culturais sao irrelevantes). Nao é necessário para isso pedir cer- carac~erizava ~s _pr~~essores _como ~rabalhadores do ensino. Hoje em dia,
tificados de pureza de sangue nem cole~oes de sobrenomes, mas simples- essa e urna ret~nc,a Ja esquecida, pois desde finais dos anos 80 foi paulati-
mente outorgar um alto valor nos critérios de sele~ao ao manejo da língua namente substitUida por outra que fala de profissionalizaféio, reconheci-
6
própria, algo em que o nativo sempre levará vantagem sobre o de fora. me~to, dignifica~éio, etc., e caracteriza os professores como profissionais do
Como resultado, passa-se de professores que apenas dominavam a cultura enstno.
comum- espanhola- e ignoravam ou eram hostis a específica, a professo- A mudan~a nao foi, de modo algum, casual. No final da ditadura e nos
primei:os anos da ~emocracia, os professores sentiam que sua afirma~ao
profisswnal dependia, sobretudo, de adquirir competencias que, na época,
est~vam nas maos das administrac;oes públicas, particularmente do Minis-
'N. de T. Charnegos: Na Catalunha, imigrante de outra regia o espanhola de fala nií.o-
téno da Educac;ao. Visto que tais competencias eram apropriadas legal-
castelhana. (Idem.)
116 MARIANO FERNÁNDEZ ENGUITA EDUCAR EM TEMPOS INCERTOS 117
mente, a maneira de obte-las era a mobiliza<;ao, e esta seria tanto mais os país e os alunos da total inutilidade de tentar qualquer coisa sem a
efetiva quanto mais gente arrastasse. Por isso, era essencial contar com o concordancia dos professores ou contra eles. A auto-identifica<;ao como
concurso dos pais e a simpatía da comunidade em geral, e as reivindica- profissionais desempenha aqui a fun<;ao justamente contrária a anterior
<;i5es encontrariam tanto mais apoio quanto mais se identificassem com o como trabalhadores: é profissional quem dispoe de um conhecimento ex-
interesse geral, ou com a soma dos interesses setoriais. Em conseqüencia, clusivo, inclusive esotérico, em um ambito determinado, no qual todos os
nao se pedía mais poder aos professores, mas sim para as escalas, sem ser demais, e em particular o público, ficam relegados a condi<;ao de leigos.
muito explícitos, ou se propunha a participa<;ao de todos os setores envolvi- Nao há nada particularmente surpreendente nisso, quase todos ternos
dos e outras fórmulas similares, visando a que o máximo de pessoas, e nao algo que queremos conservar e desejamos algo de que carecemos. Se esses
apenas os professores - embora estes fossem os porta-vozes -, pudessem algas sao bens sociais escassos (recursos, empregos, competencias, etc.),
ou acreditassem reconhecer-se nelas. Ao mesmo tempo, ao proclamar-se entao, inevitavelmente, conservar é conservar contra alguém e desejar é
trabalhadores, os professores assinalavam sua identidade de natureza de desejar o que alguém tem; desejamos coisas que outros querem conservar
interesses com os país dos alunos e, em geral, com as for<;as de esquerda l. e queremos conservar coisas que outros desejam. Exigimos urna repartifáo
lt
que, na época, pareciam ser as protagonistas da transi<;ao política. Um dos mais justa daquilo que os outros tem e nós nao, mas também exigimos
resultados desse processo de mobiliza<;ao foi a transforma<;ao radical da
gestao do sistema educacional nao-universitário, sobretudo através da LODE tf respeito aos direitos adquiridos que nós ternos, mas outros nao. É possível
ser; por exemplo, sindicalista e racista (o movimento operário sul-africano
e, posteriormente, da LOPEG: até recentemente ou o sindicalismo norte-americano em suas origens), co-
Hoje as coisas mudaram. Se há 20 anos os professores viam I1a admi- munista e machista (quem conheceu a ex-URSS sabe bem disso), ou radi-
nistra<;ao o principal obstáculo a sua autonomía profissional, hoje tendem cal de esquerda para cima e fascista para baixo (Herri Batasuna). Salvo
a ver isso na presen<;a dos pais nos conselhos escolares e nos direitos de nos extremos superior e inferior da sociedade, nos quais se tem tudo ou
suas associa<;i5es, nos direitos dos alunos e nos procedimentos de garantías nao se tem nada, nos demais espa<;os sociais, em que a maioria das pessoas
que os protegem. A retórica da profissionalizafáO, da dignificafáo, etc., nao se encontra (embora se aproxime mais de um extremo do que de outro),
é mais do que a expressao debilmente sublimada do desejo de se livrar de vive-se constantemente essa dualidade de interesses e de atitudes, que Parkin
qualquer controle externo, mas particularmente do controle do público. chamou de estratégia de fechamento social duaU No caso dos professores, a
Perante a administra<;ao, muitos professores desejariam mais autonomía: dualidade sempre existiu, primeiro dominada pela estratégia de usurpa<;ao
alguns para poder experimentar ou inovar mais ou para adaptar o funcio- para cima e agora pela estratégia de exclusao para baixo.
namento das escalas a ambientes altamente específicos, e outros para ter Urna forma parecida de dualismo, ou de estratégias sucessivas apa-
liberdade de atuar a sua maneira. Muitos, no entanto, nao a desejam, já rentemente contraditórias, pode ser vista e m rela<;ao a o horário escolar. Os
que mais autonomía pode significar também mais responsabilidade, mais professores espanhóis sao hoje partidários de forma esmagadora da joma-
incerteza e mais risco de erro- urna renúncia que fica patente na triviali- da contínua, que supoe formalmente a concentra<;ao do mesmo tempo le-
dade de muitos projetos educacionais e a descarada oficialidade de outros tivo em menos tempo natural, eliminando tempos intermediários; e, infor-
tantos projetos curriculares. As pretensoes sao mais inequívocas quando se malmente, a redu<;ao do tempo, pois mais cedo ou mais tarde - mais cedo
trata de manter o público nos limites determinados, sobretudo se ele pre- do que tarde- acaba havendo urna série de pequenos recortes dos tempos
tende intervir coletivamente na gestao das escolas, para nao dizer no con- reais de aula para evitar que os al unos estourem. Também veem com bons
trole- por mais leve que seja- do trabalho dos professores. Entao se recor- olhos, como nao poderia deixar de ser, qualquer corte no calendário, algo
re a um conjunto de táticas legalistas, geralmente destinadas a convencer patente no fato de que o calendário real seja apenas quatro quintos do
oficial, em que foi preciso ocasionalmente proibir os conselhos escolares
de aprovar pontes extra-oficiais e nos discursos inflamados com que os
'N. de R. T. LODE: Ley Orgánica 8/1985 Reguladora del Derecho de Educación. LOPEG: Ley sindicatos recebem qualquer tentativa de ampliar em alguns dias o calen-
Orgánica 9/1985 de la Participación, la Evaluación y el Gobierno de los Centros Docentes. dário real. Contudo, houve um tempo em que os professores, especifica-
EDUCAR EM TEMPOS INCERTOS 119
118 MARIANO FERNÁNDEZ ENGUITA
Pois bem, a docencia é, sem dúvida alguma, por sua origem e por sua bém, e sobretudo, que a atividade docente nao pode ser organizada como
configurac;ao, urna profissao organizacional. Sua origem como profissao, urna prática individual (a nao ser que se trate de urna docencia muito
para a escola estatal, está na func;ao pública e, para a escola privada, nas especializada: por exemplo, professores de canto, preparadores judiciais,
ordens religiosas. Fora esses casos, e a partir de certa expansao, o exercício instrutores de xadrez, monitores desportivos, etc.).
propriamente "liberal" (preceptores privados) foi puramente episódico, ou Essa retórica liberal, aplicada a urna profissao burocrática, corrói a
pelas mesmas pessoas que atuavam dentro de organizac;oes, e de qualquer eficácia das organizac;oes escolares. Amparada nela, urna parcela nada
modo se m um reconhecimento similar eum professor particular, por exem- desprezível dos professores desinteressa-se tanto quanto pode pelas orga-
plo, nao pode dar diplomas, qualquer que seja sua própria titulac;ao e por nizac;oes nas quais trabalham, como se sua única responsabilidade fosse
mais que ensine e que seus alunos aprendam; ao contrário, dentro de urna sua sala de aula, seu grupo, suas horas de aula, sua área ou matéria. Toda
instituic;ao escolar de qualquer nível, isso pode ser feíto, no que lhe diz coordenac;ao que vá além de assegurar a nao-interferencia, isto é, toda
respeito, pelo mais inepto dos professores). Os professores cumprem todos direc;ao efetiva da organizac;ao, tende a ser rejeitada como urna intromis-
os requisitos da caracterizac;ao clássica da burocracia feíta por Max Weber sao ilegítima na autonomía individual do professor. Essa reac;ao se esten-
(1922): selec;ao mediante exames, exigencia de fidelidade a finalidade de, de forma cada vez mais freqüente, as intervenc;oes da administrac;ao-
objetiva e impessoal da organizac;ao, existencia assegurada a perpetuida- desde a resistencia ou recusa aos trabalhos habituais de inspe<;ao até o
de, prestígio social estamental (isto é, carisma coletivo e institucional, e ceticismo generalizado, que muitas vezes chega ao cinismo -, com a fun-
nao pessoal), remunerac;ao fixa condicionada pelo nível, promoc;ao mais <;ao de legitimar a redu¡;ao ao mínimo da colabora¡;ao, diante das reformas
ou menos automática, etc. que afetam as rotinas cotidianas, com relativa independencia de qua! seja
Contudo, difundiu-se entre a profissao urna espécie de desejo genera- seu conteúdo.
lizado de obter o estatuto de urna profissao liberal. Nao que os professores O modelo liberal característico do profissional que atua por canta pró-
do ensino fundamental ou do médio queiram trabalhar por conta própria, pria nao pode funcionar no ensino, simplesmente porque nao existem os
naturalmente- isso nunca-, mas sim que se generalizam demandas inspi- contrapesos do mercado, nem de urna fácil verifica¡;ao dos resultados, nem
radas no modelo liberal que podem ter efeitos destrutivos em um contexto sequer de um público direto adulto e consciente de seus direitos. Diferente-
organizacional. Por exemplo, a pretensao de ter plena autonomía na sala mente da rela¡;ao do cliente com o médico, com o arquiteto ou com o advo-
de aula ou a idéia de que, fora das horas na aula, o professor deve dispor gado, a rela¡;ao do aluno - e conseqüentemente dos pais - com o professor
de seu tempo a ponto de nao ter de permanecer na escola para nada. As nao é simplesmente assimétrica, mas nao é sequer urna rela¡;ao livre, que se
queixas dos professores em tomo de sua relac;ao com seu público (que a possa escolher, en tabular ou romper a vontade. O diagnóstico do médico, os
maior parte deles ve como urna invasao de suas competencias profissionais argumentos do advogado ou os planos do arquiteto podem ser errados e,
por um público leigo) quase sempre tem como contraponto a desejada como tais, ao ser avaliados por sua autoridade moral profissional, induzir
situac;ao dos médicos: por acaso existem conselhos de pacientes nos hospi- erro ao cliente, o que eventualmente tem conseqüencias negativas para ele
tais ou ambulatórios, como há conselhos escolares nas escoJas? Que mae (das quais, certamen te, pode tentar ressarcir-se por vía judicial, quando for
exige que o pediatra fac;a a consulta em horário de trabalho como se recla- o caso), mas nao o obrigam; no caso do professor; ao contrário, seus méto-
ma para as tutorías? Desde quando se questiona um diagnóstico médico dos sao obrigatórios e indiscutíveis para o aluno, assim como seus diagnósti-
como se discute urna qualificac;ao escolar?, e assim sucessivamente. Nessa cos, e aqueJes nao tem oportunidade de se desligar destes.
retórica dos agravos, sao esquecidas coisas tao elementares como a forma- O modelo burocrático, por sua vez, é insuficiente, porque a comple-
c;ao mais extensa e intensa dos médicos, sua eventual responsabilidade xidade dos contextos e das situac;oes do ensino nao poderiam ser regula-
pelos resultados de sua atuac;ao, a maior facilidade para mudar de médico das de cii:na por administrac;ao nenhuma. Nesse ambito, a informac;ao e o
do que para mudar de escoJa, a subordinac;ao da medicina privada ao dita- conhecimento locais no terreno de que dispoem professores e país nao
me do mercado, a existencia de um código deontológico médico e a podem ser substituídos. Daí a importancia da autonomía das organiza-
inexistencia de qualquer coisa parecida para os professores, como tam- c;oes e, dentro deJas, dos profissionais, mas nao apenas destes. Para sair
122 MARIANO FERNÁNDEZ ENGUITA EDUCAR EM TEMPOS INCERTOS 123
do impasse entre os modelos burocrático e liberal é necessário um mode- propriedade levaram a que quase toda família basca ou n avarra contasse
lo distinto, no qua! urna autonomía individual do profissional, limitada com urn amplo quadro de padres e freiras. ·
em seu ambito e em seu alcance , se combine com urna autonomía 6. Nao é preciso ser um incondicional das virtudes heurísticas do materialismo
grosseiro para compreender que um dos motivos do forte enraizamento do
colegiada e participativa centrada na organizac;ao . Colegiada, porque deve
nacionalismo (e de todo regionalismo ou localismo) entre os profess ores de
basear-se nao na soma de decisóes individuais , mas na cooperac;ao das todo~ os ciclos é o desejo de jogar coro vantagem n as oposic;:oes ao corpo.
equipes de profissionais (fundamentalmente os professores, mas também 7. Parkin destgna como fechamento qualquer tentativa de obter ou conservar
outros envolvidos , conforme os casos); participativa, porque deve faze-l o oportunidades vitais , um conceito no qual cabe praticamente tudo. Utilizo-o
em cooperac;ao como público, ou seja, os alunos e seus pais, conforme as em uro sentido mais restrit~, para me referir a repartic;:ao de competencias
idades daqueles. Isso é o que corresponde ao que antes denominamos entre as autondades educactonais, os professores e o público.
sistemas, ou organizac;óes, flexíveis e abertos. Mas, para isso, é preciso
substituir, na cultura profissional do professor; tanto a passividade obe-
diente , porém indiferente, do modelo burocrático como a anarquía indi-
vidualista e irresponsável do modelo liberal por um novo tipo de compro-
miss o: o compromisso com os fins da educac;ao, tal como sao formulados
pela sociedade através de sua representac;ao legítima, como objetivo de
toda atuac;ao individual ou colegiada, e com a organizac;ao escolar como
o instrumento privilegiado da comunidade para conseguir isso . Tal com-
promisso deve respeitar a autonomía individual, mas também o compro-
misso com a escala como equipe de trabalho e a abertura ao público
como titular de direitos e protagonista de necessidades .
NOTAS
l. Sobre o conceito de semiprofissao, ver Etzioni, 1969. Sobre sua relac;ao com
a feminizac;ao, Simpson e Simpson, 1969.
2. Parsons, 1968.
3. Sem dúvida, ainda há urna parcela significativa de professores por vocac;ao,
seja originária ou tenha-se manifestado depois, mas apenas urna parcela.
Recentemente dirigí urna pesquisa que nada tinha a ver com a educac;ao nem
com a docencia, mas na qual entrevistávamos casais sobre sua biografia e
sobre as decisoes que a balizavam, e urna parte deles contava com algum
professor, presente ou passado. No contexto de urna entrevista em que nao
havia razao para pagar tributo ao politicamente correto nem a legitimac;:ao
do coletivo, a razao mais mencionada foi , de longe, o tempo livre (Femández
Enguita e Gutiérrez Sastre, 2001).
4. De qualquer modo, coro a atual explosao dos meios de comunicac;:ao, hoje é
cada vez mais difícil que exista urna pessoa a quem a escola possa ainda reve-
lar um mundo. O que se deveria revelaré outra maneira de ve-lo.
5. Mas outros fatores podem operar coro mais forc;:a em sentido contrário. Por
exemplo, a forte influencia eclesial e a estratégia de nao dividir a pequena
Epílogo
Prometeu e Epimeteu
j
126 MARIANO FERNÁNDEZ ENGUITA
rava que fizessem. As vezes com a concordancia dos deuses, as vezes con-
tra eles, empenharam-se em difundir um fogo que os alimentava e que
julgavam necessário e benéfico para os outros. Tal tarefa, que deve reno-
var-se a cada gera<;ao, continua hoje mais atual do que nunca, mas justa-
mente por isso atinge dimensoes que em determinados momentos pare-
cem situá-la além das for<;as da institui<;ao escolar e de seus agentes.
É quando, entao, eles, as vezes oprimidos pela tarefa, devem escolher
entre um dos dois caminhos. Podem seguir Epitemeu, o que olhava para Referencias
trás, que deixou os seres humanos abandonados a sua sorte, mas nao atraiu
para si a ira dos de cima; é o que fazem aqueles para quem qualquer tempo Bibliográficas
passado foi melhor: quando havia menos alunos, quando nao havia imi-
grantes, antes da ESO, quando o nível era mais alto, quando éramos cate-
dráticos, quando podíamos suspender, quando nao havia conselhos, etc.
Ou podem seguir Prometeu, o que olhava para a frente, e arriscar-se a
entregar aos homens o fogo roubado dos deuses; é o que fazem aqueles
que apostam na responsabilidade pessoal, na atitude inovadora, no traba-
lho em equipe e na colabora<;ao com o meio, empenhados em mobilizar
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todos os recursos para ajudar a se formarem futuros trabalhadores qualifi-
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Epitemeu, sem dúvida, poupou-se de problemas, mas nao foi muito
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apreciado por sua obra (nao, ao menos, pelos homens). Prometeu pagou ethnic minorities, Londres Pluto, 1987.
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