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\Nwre PrN Ny > M" View FLUSSER | DOSSIE Boa noite. Tendo como pano de fundo as transformagées que estéo ocorrendo na cena cultural, 6 possivel abordar a rela¢o texto/ima- gem de maneira inteligente. Para projetar tal pano de fundo, eu sugiro alguns farrapos de pensamentos, nao necessariamente plausiveis, mas espero que sejam férteis para a produgao do debate. Acho que a reviravoita peia qual estamos passando é muito mais profunda do que os ter- mos empregados para nomeé-la, termos tais “passagem de uma sociedade industrial para uma sociedade pés-industrial" ou “passagem da sociedade do objeto para a sociedade da infor- magao". A mutagéo é muito mais profunda e para sustentar essa minha crenca eu gostaria de recorrer a dois exemplos. Primeiro: eu chamaria essa reviravolta pela oveit PRR qual estamos passando de uma “inversao de ge 1984 apr welo 8 ast interesse”. Nos séculos X e XIll depois de Cristo, m dezemd!? Fam Fiusset Pe debate tiie naquele periodo de fim da Antiguidade e comeco ido filosof promovey Barave da Idade Média, houve, de maneira mal articula- am JO, PAULO Po artista A aradiO: cae da e talvez com grande parte inconsciente, uma EM oom a preseac™ tavares fam 0! eu inversdo de interesse. As pessoas deixaram de se atou o @ ONIN og nao fatal da Inver interessar pela sociedade que era representada _rittos @animada OM ajou-s® Me -qurad? Pon pelo império Romano e comegaram a concentrar Noite Rumorade® ojygd0 10S TotreiMAager™, sau interesse em apenas dois pontos: Deus ¢ 3 jes Dem Trita © 4% Tore ialetio® "i rgindO."Ty;. Alma. Creio que Sto Agostinno articulou ise sao 4 estar! 28 dizendo: “Eu quero conhecer Deus e a Alma, a ims nada mais, nada”. Conhecer, no sentido biblico. Sexualmente conhecer. Isso no quer dizer que o interesse pelo Império e por tudo que ele repre- sentava tenha de repente desaparecido. Mas OTEXTO NO UNIVERSO DAS IMAGENS TECNICAS quer dizer que, todas as pesquisas, todos os interesses, todos os comportamentos e. direi mais, todos os gestos dos homens passaram para dentro de um novo campo de interesse, digamos, religioso Segundo: Gostaria de citar a passagem da Idade Média para 2 idade Moderna, quando de repente o interesse da humanidade, mal articula do (eu diria subliminar) passa a ser dirigido para aquilo que atuaimente chamamos de “Razao" “Natureza”. N&o que os interesses teolégicos tenham sossegado. Passamos para um novo campo para o qual me ‘altam os termos, mas do qual a Ciéncia da Natureza é representante. Ha 100 anos que esse novo tipo de interesse esta surgindo. Nao sei caracteriza-lo, mas como pal- pite eu diria: o interesse do homem moderno, do durgués, 6 modificar 0 mundo para que o mundo corresponda mais ao desejo numano. O que, portanto, centralizou os estorcos do homem mo- derno 6 0 “trabalho”. Me parece que isso esta retrocedendo agora, cedendo e retrocedendo para o horizonte, e que o interesse se concentra atualmente em dar sentido @ vida num mundo absurdo. Nao se trata mais de descobrir o signifi- cado do mundo, mas de assumir que ele é absur- do e procurar um sentido para aquele conjunto dentro do qual fomos iangados sem termos sido consultados e dentro do qual morremos, sem podermos escapar deste destino. A causa dessa transferéncia de interesse provém do fato de que estamos cada vez mais manipulando simbolos em vez de manipular ma- 37 téria e energia. Esta manipulacdo simbdlica chamada na economia de “setor terciario", u: nome muito superficial para aquilo que signific: Camadas crescentes da populagao estao mexer do com isso. O poder decisivo esté passanc daqueles que possuiam energia, matérias, e < maquinas para transformé-las, para aqueles qu sabem elaborar e manipular informacdo. Mas que eu sou polémico e que esse encontro polémico, eu vou dar um passo mais adiant: Queria dizer que as duas revolugdes que cit: como exempio sdo menos profundas que as e: tamos passando agora. Se eu quero buscar ur exemplo da radicalidade do processo do qui estamos testemunhando e sendo vitimas, dev recuar um pouco @, com a sua permissao, € gostaria de esbo¢ar rapidamente as revolucde anteriores. A 1* revoiugao, a fundamental, é tao remot que é dificil intuir sobre o que os nossos antepa: sados pré-humanos fizeram para se afastar c mundo € assumir um sujeito e o mundo com seu objeto. Esta revolugao pode ser visualizac pela erecdo do corpo e pela liberagao das mao: Mudando um pouquinho: essas m4os nao ma seguram galhos e nao mais seguram 0 que é bo: para comer, bom para copular ou algo perigos: Essas maos, seus gestos, agora caracteriza uma revolugao: flutuam naquele abismo de ali: nago que se abriu entre o animal e o mund Disso resulta o que chamamos de 'artefato”. Is: 6, estas maos arrancam pedagos do mundo, tr: zendo-os para ca. Este gesto, ao meu ver, artic: la uma manifestacdo total do ser que resulta naquilo que chamamos de existéncia. Tudo que se fala e sobretudo tudo que eu falo nao passa de palpite, mas repito: nao quero ser plausivel quero provocar em vocés pensamentos contra- rios aos meus. A 2° revolugao (que ja se aproxima do nos- so tema) merece ser mais detaihada. As maos nao tateiam cegamente pelo mundo: elas sao guiadas peio olho, aquilo que atualmente chama- mos de "dialética entre a teoria e a pratica”. E extremamente dificil imaginar como os seres de 40.000 anos atras conseguiram coordenar a vi- s&0 com 0 ato. Podemos verificar essa sincronia nas paredes de Lascaux. Para guiar a mao era preciso que a visdo fosse fixa. E nao apenas fixa, mas acessivel a outros. Imagino que naquele estagio surgiram dois problemas: como fixar uma viséo efémera, e como transformar uma visdo subjetiva em visdo intersubjetiva? O que caracteriza a visdo ¢ que ela nao vé a nao ser superficies. A mao mergulha na coisa, ela se movimenta na 3° dimensao enquanto o olho re- duz tudo na 2" dimensao. O problema da imagi- nagao era o problema de decodificacdo, de transcodagem de 3 dimensées para as duas. As imagens mostram como isso foi conseguido. Eu creio que quando surgiu a imaginagao na cons- ciéncia humana, surgiu nossa espécie. A espécie homo sapiens se caracteriza pelo curioso poder de abstrair uma dimensao do mundo objetivo ¢ reconstituir novamente essa abstracao uma vez a 3 dimensao abstraida. A medida em que se passaram milénios @ dezenas de milénios, a imaginagao se tornou mais poderosa e as imagens dela produzidas se tornaram cada vez mais modelos de comporta- mentos e de conhecimento —e de valores. Pode- mos ver na imagem um poder mediador entre o sujeito @ 0 mundo objetivo perdido. E toda me- diagao tem uma dialética interna: representa aquilo que media e encobre o representado. Quando as imagens se tornaram mais ricas e 38 mais plenas, deixaram de ser mapas que possar nos orientar no mundo e passaram a ser biombe Que encobrem o mundo. Em vez de o homer agir, ele usou a imagem para a sua acdo n mundo. O homem passou a agir em funcdo a. imagem no mundo. A idolatria foi aquilo que projetou. Surgiram profetas, e, por exempio, o pré-socraticos; surgiu uma situagéo de dupl: alienagao. de loucura. na qual a imagem er: tomada como real e © mundo como campo de experimentagao do real. Isso me leva 4 3* revolugdo: a invengao de escrita e sobretudo da escrita linear e mais espe: cificamente do alfabeto. Permitam que eu face um pouco de fantasia fenomenolégica. Era preci so rasgar as imagens para encontrar 0 caminhc de volta ao mundo objetivo perdido. E para ras: gérlas $6 tinha um método comprovado nos tijo- los mesopotamicos. Arrancavam-se pictogramas da superficie da imagem e alinhavam-se tais pic togramas segundo regras espontaneas ou del beradamente inventadas para formarem linhas. & um gesto bem conhecido, o gesto de arrancar pedrinhas a partir de um encontro para faze: dessas pedrinhas um colar, colares. Em: vez de pedrinhas, eu poderia ter dito pérolas, mas eu disse pedrinhas porque pedrinhas em latim se chamam célcuios. Estou falando do gesto de cdlculo. A fim de elucidar o que é vagamente chamado de magia e mito, a fim de libertar a sociedade de tal alienacdo, algumas pessoas co- mecaram a calcular, a contar elementos. &, com essa dissolugéo da superficie da imagem em ¢édigo unidimensional da escrita, o mundo obje- tivo nao mais se apresenta como contexto, como conjunto relacional, mas como proceso, come evento. Eu sugiro aos srs. que o gesto de escre- ver linearmente nao apenas provoca a conscién- cia histérica como da inicio a histéria sensu strictu. A histéria comega pela escrita, Supo- nhamos que eu tenha potes no meu armazém que formam um conjunto, uma gestalt. O proble- ma @ contar 0 que eu vou exportar. Mas para poder exporté-ios, preciso conté-los. A meu ver, odo texto 6 critica de imagem e eu critico a imagem. E, ao traduzir a imagem em cédigo, 3stabeleco novas regras, por exemplo, as regras writméticas, 1, 2, 3, 4. E, assim, crio uma estrutura, inear, processual, que faz nascer em mim uma rova sensacao de espaco e uma nova sensacao je tempo. N&o sou o primeiro a dizé-lo: estamos pas- sando por uma revolugao comparavel a invengao das imagens técnicas. A Escola de Frankfurt se inciinou sobre o problema com grande serieda- de. Quando surgiram os textos, vieram para ex- plicar as imagens — o que é implicito nelas. Desmitificar mitos, desmagicizar atos. A escrita foi inventada para acabar com as imagens, torné- las irrelevantes, permitindo que o homem aja no mundo segundo regras lineares e ldgicas da ma- tematica € da sintaxe. Platao sabia disso enga- jando-se violentamente contra as imagens. Sao dialéticas internas e externas: & medida que os textos iam explicando as imagens, as imagens iam ilustrando os textos. A imagem explicada passou a explicar o texto que a explica. Eu creio que a historia da humanidade e sobretudo da humanidade ocidental pode ser vista como uma luta dialética entre imagens e textos. Entre imagi: nacdo e conceituacao, entre pensamento imagi- nativo € pensamento conceitual. final, encon- tramos mais imagina¢ao nos textos conceituais, como 0 sdo os da ciéncia pura, e encontramos maior conceitualizagao naqueles projetos de “ar- te conceitual" que foram uma tendéncia durante uns 10 ou 20 anos. A imprensa foi uma invengao muito importante porque praticamente eliminou 38 imagens da vida cotidiana. As imagens fica- “am confinadas em guetos giorificados chama- dos museus e ganharam uma aura tipicamente durguesa. E para possuir essa informagao é pre- 0 adquirir a imagem ou roubé-la. Com a escrita, a informagao assenta leve- mente na superficie e pode ser faciimente ievan- iada de uma superficie para outra. A escrita é sopiada, coisa que se tornou conceito apenas apés a Imprensa. A multiplicidade da mensagen: na escrita desvalorizava desde j4 a obra. Um livre nao € obra no mesmo sentido no qual o é umz pintura, porque todos os multiplos do livro valerr a mesma coisa e fundamentalmente nao valerr nada. O valor esta na informagao e nao no obje to. O atual desprezo do objeto provém da inven: edo da escrita. De repente surgem imagens que n&o sao anteriores aos textos que lancam ume imaginagao pré-textual e pré-historica nas ima: gens que se assentam nos textos. Assentam so- bre pretextos, o termo grego @ “programas”. & fotografia é 0 primeiro exemplo primitivo, as ima- gens sintéticas feitas com computador sac exemplos mais avangados. Para fazer tais ima- gens, é preciso primeiro conceber, € a partir dc conceito desse texto eu projeto a imagem. Trata- se de uma nova imaginagao. De um poder de imaginagao até entao desconhecido e que abre horizontes absolutamente insuspeitaveis. Trata- se de uma nova faculdade, de uma nova cons- ciéncia. Esta imaginagao que esta surgindo éc poder de colocar conceitos em imagens. O poder de imaginar conceitos. Fotografia é um exemplo ainda muito fraco. Imaginem equacées transtormadas em imagens, imaginem no seus terminais conceitos abstratos como os calculos econdmicos, calculos geoldgi- cos. Nao quero fazer profecias. Nao creio que esta nova imaginagao va suprimir textos, nem as imagens tradicionais. Mas creio que as imagens tradicionais e a literatura vao agora se dar urr horizonte novo. Nao surgia algo tao novo ha uns 400 ou 150 anos. Agora os textos nao mais vac contra a imagem para explica-la, nem se batem com a imagem na dialética fértil e aventurose entre imaginacao e pensamento conceitual. Mas agora os textos projetam imagens de si com as pontas dos dedos. Manipulam simbolos no tabu- leiro. O gesto de escrever linhas cede lugar pare 0 gesto de bater contra as teclas. Surge o mundc dos conceitos imaginarios. Nesse mundo, nos- sos netos estdo sentados frente a terminais. 29

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