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A LUTA DOS POVOS INDÍGENAS DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL E A

DIALOGICIDADE COMO PROPOSTA PARA A CULTURA DE PAZ

Íris Pereira Guedes – CIMI


(irispguedes@gmail.com)
Jaqueline Rosa da Cunha – IFRS Porto Alegre
(jaqueline.cunha@poa.ifrs.edu.br)

Eixo temático: 7) Paulo Freire: políticas públicas,


lutas e resistências ao conservadorismo

Resumo

Os povos indígenas, originários e verdadeiros donos da Terra Brasilis, lutam e resistem há mais
de 500 anos contra a opressão, a invisibilidade e as consequências do processo de aculturação e
genocídio ao qual foram submetidos pelo Estado brasileiro desde o período de colonização. As
políticas institucionais voltadas para os Povos Indígenas, as quais preconizavam a exploração,
escravidão, esbulho de suas terras sagradas e extermínio de populações inteiras, infelizmente se
mantiveram vigentes por longos séculos sob o argumento da necessidade do desenvolvimento
econômico do país. Atualmente, no entanto, mesmo com os avanços significativos obtidos com a
promulgação da Constituição Federal de 1988, que reconhece o direito à diferença e as terras
tradicionais de cada Povo, seguem pautadas diversas medidas ofensivas aos indígenas,
almejando o retrocesso de direitos e a retirada de suas terras. É o presente de um passado que
teima em não passar. Este texto vem à luz a fim de denunciar, por meio de um relato de
experiência, a opressão vivida por esses Povos no Estado do Rio Grande do Sul, nos tempos
atuais; bem como, realizar a reflexão a partir das ideias de Paulo Freire, Carolyn Boyes-Watson e
Kay Pranis e Marshall Rosenberg, demonstrando que se seus conceitos forem verdadeiramente
compreendidos e incorporados na sociedade de forma séria e responsável, é possível mudar o
cenário sombrio que envolve os indígenas e a sociedade em que estão inseridos.

Palavras-chave: Opressão aos Povos Indígenas. Dialogicidade. Cultura de paz. Direito


Indígena. Estado do Rio Grande do Sul.

Introdução
O presente artigo tem por objetivo estabelecer um diálogo entre a realidade em que se
encontram as comunidades indígenas no Estado do Rio Grande do Sul e as reflexões que podem
ser obtidas a partir dos estudos de Paulo Freire, Carolyn Boyes-Watson e Kay Pranis, e Marshall

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Rosenberg. Portanto, de forma breve, serão abordados os principais embates e barreiras que
existem quando se pensa em concretização de direitos, e a elaboração e implementação de
políticas públicas que podem ser positivas ou negativas, negligência e descaso estatal.

No quarto capítulo do texto Pedagogia do Oprimido, Freire (1987, p. 78) registra,

Não se é antidialógico primeiro e opressor depois, mas simultaneamente.


O antidiálogo se impõe ao opressor na situação objetiva de opressão,
para, pela conquista, oprimir mais, não só economicamente, mas
culturalmente, roubando ao oprimido conquistando sua palavra também,
sua expressividade, sua cultura.

O excerto acima representa a temática que pretendemos tratar neste texto: a opressão
sofrida pelos Povos Indígenas, que se dá de todas as formas das mais sutis às mais diretas e
cruéis. Infelizmente essa é uma situação que ocorre há séculos de forma ininterrupta em toda a
América Latina. No entanto, para este artigo, que tem o caráter de relato de experiência, fizemos
o recorte da opressão vivida pelas comunidades indígenas que habitam o Estado do Rio Grande
do Sul. Importante ressaltar, de forma inicial, que atualmente no Estado vivem três (3) Povos
autodeclarados das etnias Guarani, Kaingang e Charrua. Neste sentido, o objetivo deste trabalho
é, para além de registrar a luta e resistência das aldeias indígenas, denunciar a insistente opressão
e desejo de invisibilização da cultura, língua e história dos Povos Indígenas do nosso Estado.
Lançaremos mão da obra freireana Pedagogia do Oprimido e da sua ‘teoria da dialogicidade’,
bem como, das noções de cultura de paz, de Kay Pranis e de comunicação não-violenta, de
Marshall B. Rosenberg, como um embasamento da reflexão que faremos a partir das memórias
junto aos indígenas.
Em um primeiro momento, vamos discorrer sobre as opressões que são direcionadas aos
indígenas, a forma como são obrigados a viverem nas beiras das estradas, longe de seu território
tradicional, sem condições adequadas de subsistência, enquanto aguardam a demarcação de suas
terras. Posteriormente, realizaremos uma reflexão à luz de Freire, finalizando por meio de
considerações de como as ideias desenvolvidas por Boyes-Watson e Pranis, e Rosenberg
apontam para um caminho que cessa a opressão e constrói a paz, a tolerância, o bem-viver
através da dialogicidade.

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Metodologia

A metodologia deste artigo baseia-se em relatos de vivências e observações junto às


comunidades indígenas do Rio Grande do Sul sendo, portanto, uma pesquisa qualitativa realizada
em ambiente natural. Dessa forma, as situações de opressão a que estão impostas as comunidades
indígenas foram coletadas, pela militante e pesquisadora indigenista que colabora no Conselho
Indigenista Missionário (CIMI), a partir do local onde os participantes vivenciam o problema, e
serão analisadas a partir da lente teórica, selecionada pela educadora, militante no movimento de
educação popular e apoiadora do movimento indígena, inspirada em Freire, Pranis e Rosenberg.
O trabalho realizado nas comunidades indígenas é fruto de anos de dedicação e esforços
de indigenistas que já trilharam esse caminho e seguem repassando o conhecimento que
adquirem junto com os Povos Indígenas. O CIMI age, sempre que é chamado a atuar pelos
indígenas, como apoiador nas lutas dos Povos e comunidades indígenas pela recuperação,
demarcação e garantia da integralidade de seus territórios tradicionais. A terra é compreendida
como condição de vida e como condição para a realização plena da cultura de cada povo
indígena. Além da luta pela demarcação dos territórios tradicionais, o CIMI também atua na
formação a serviço da autonomia dos Povos Indígenas, formação esta construída de forma
coletiva e que visa estabelecer reflexões permanentes sobre os desafios, perspectivas e caminhos,
a partir da experiência de cada comunidade, Povo e organização indígena. Outra dimensão de
atuação diz respeito à educação, saúde e autossustentação, buscando reconhecer e valorizar as
formas de vida de cada Povo, entendendo que é “necessário conhecer, compreender em
profundidade e respeitar radicalmente as diferentes cosmovisões, construindo com os Povos
Indígenas, e a partir de seus próprios sistemas, ações diferenciadas de atendimento à saúde,
escolas específicas e propostas autossustentáveis” (CIMI). Por fim, também busca atuar com os
indígenas que se encontram nas cidades, expulsos de suas terras, no auxílio das mobilizações e
articulações do movimento indígena brasileiro e na promoção e incentivo do debate intercultural.
Portanto, o trabalho que vem sendo realizado desde o ano de 1972, no Brasil, busca apoiar os
Povos Indígenas, sempre que estes assim o desejarem, tendo como premissa o respeito à
diferença o respeito e reconhecimento suas culturas, usos, costumes, organizações sociais e
formas de vida.

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O trabalho realizado no Estado do Rio Grande do Sul pauta-se por essas orientações,
obviamente adaptando-se à realidade em que estamos inseridos, o que inclui acompanhamento
das terras indígenas demarcadas e dos processos demarcatórios em andamento, e a situação
precária daquelas comunidades que se encontram vivendo nas beiras das rodovias e estradas,
aguardando a demarcação de suas terras, o apoio e o diálogo com agentes públicos e o Estado
como um todo diante da falta de assistência de saúde e educação, bem como, outras necessidades
básicas de subsistência, o acompanhamento processual envolvendo questões fundiárias e de
criminalização de lideranças indígenas e o apoio nas atividades de articulação do movimento
indígena quando necessário. Ressaltando que tudo isto só é possível e é realizado quando a
comunidade assim o deseja. A forma de aproximação pode variar, pois em alguns dos casos
recebemos denúncias, ou somos informados por apoiadores ou somos procurados pelas próprias
comunidades indígenas. Nossa atuação nunca interfere no desejo e aspirações dos indígenas,
sendo eles os responsáveis pelas decisões e iniciativas. A partir do diálogo feito com os
pertencentes da comunidade analisamos as demandas e as necessidades, que podem variar de
acordo com a ampla atuação que temos, em casos específicos são acionados os órgãos estatais
responsáveis, podem ser realizadas denúncias por ações, omissões ou negligências que acarretam
na violação dos direitos humanos coletivos dos indígenas ou é dado o apoio solicitado. Em
outros casos as visitas nas comunidades têm cunho informativo sobre as demandas anteriores ou
apenas para uma conversa mais próxima em decorrência dos vínculos criados.

Desenvolvimento

A realidade das comunidades indígenas no Estado do Rio Grande do Sul é


recorrentemente invisibilizada. Esta invisibilização permite a manutenção de processos históricos
de opressão, descaso, omissão e violações dos direitos humanos dos indígenas. Em que pese após
a promulgação da Constituição Federal de 1988, em especial os artigos 231 e 232, e a
internalização de Tratados e Convenções de Direitos Humanos internacionais1, voltados para a

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Neste sentido, se destacam: a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, aprovada pela
Assembleia Geral das Nações Unidas em 13 de setembro de 2007; a Convenção 169 da OIT sobre Povos Indígenas e
Tribais em Países Independentes, adotada pela Conferência Geral da Organização Internacional do trabalho em 07
de junho de 1989; O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU; O Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos da ONU; Convenção Americana de Direitos Humanos da Organização

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proteção e promoção dos direitos indígenas, terem avançado significativamente, rompendo com
antigos paradigmas de aculturação (SILVA, 2015)2 e reconhecendo o direito à diferença e à terra
tradicional, na prática esses Povos têm sido jogados para as beiras das rodovias, sendo-lhes
negadas as condições mínimas de bem viver e enfrentando duras barreiras para alcançar um
diálogo com o Estado.
Os principais problemas que os indígenas têm enfrentado no Brasil giram em torno da
falta de demarcações das terras, a instauração de conflitos fundiários com fazendeiros e o
agronegócio, e a discriminação com a sua cultura e formas de vida percebidas como diferentes, o
“outro”, aquilo que é distante e pelo desconhecimento deve ser banido. Esses problemas têm sido
inflados por uma série de discursos de ódio e de medidas nocivas que tramitam no Poder
Legislativo, merecendo destaque a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215 e o Projeto de
Lei 1610 de 1996, dentre outros projetos de lei que visam a exploração de recursos minerais em
terras indígenas. Ainda no Poder Legislativo, os Povos Indígenas enfrentam poderosas bancadas
como a Frente Parlamentar Mista da Agropecuária (FPA), conhecida como Bancada Ruralista,
formada por aproximadamente 250 deputados e senadores que encabeçam tais projetos de lei e
de emendas à Constituição para ceifar os direitos indígenas já consagrados em prol do
agronegócio (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2017).
Já no Poder Judiciário, encontramos outros problemas como novos entendimentos e
reinterpretações de lei, o não cumprimento Dos Tratados e Convenções Internacionais, como a
Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), e o não cumprimento de
recomendações oriundas do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, como é o caso da
construção das barragens de Belo Monte. Esse cenário nocivo tem possibilitado o aparecimento
de novos institutos contrários aos direitos indígenas, como é o caso da implementação do “marco
temporal” e de uma série de novas “condições”, 19 ao todo, que os Ministros do Supremo
Tribunal Federal (STF) criaram ao julgar o caso da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra
do Sol. Na prática, essas condições deveriam dizer respeito apenas à demarcação da Terra

das Nações Unidas (OEA) 1969 e a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de
Discriminação Racial.
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A aculturação é, em suma, formas de dominação da cultura do outro, em geral do dominado, pela cultura do
dominador, sendo fruto de uma concepção política colonialista, e que se utilizou da construção dos instrumentos
jurídicos para manter-se como prática vigente ao longo dos anos. A aculturação é um fenômeno que não pode ser
visto de forma isolada, mas sim, como uma consequência (extensão) do processo de colonização, sendo necessária a
compreensão das formas em que ela foi implementada ao longo dos anos. A aculturação em si pode ser então
implementada através da assimilação e da integração, sendo estas duas últimas espécies da primeira.

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Indígena (T.I.) Raposa Serra do Sol, portanto não se vinculariam a nenhuma outra terra, no
entanto, o STF e demais tribunais de instâncias inferiores as têm utilizado, desconsiderando as
especificidades de cada caso concreto, formando novas barreiras para as demarcações.
Feito este breve resgate do recorte nacional, necessário para que se possa compreender o
grau de ofensividade que os indígenas seguem enfrentando nos dias atuais e, que reflete
diretamente nas condições precárias em que se encontram diversas comunidades no Rio Grande
do Sul, serão abordadas as realidades de duas Comunidades Indígenas que são afetadas
diretamente tanto pela falta de diálogo com o Estado e com a sociedade, como pelos fatores
supramencionados, sendo elas: a Comunidade Indígena de Irapuá e a Comunidade Indígena de
Capivari do Sul.
Como mencionado anteriormente, o Estado atualmente possui três (3) diferentes etnias,
sendo elas a Guarani, Kaingang e Charrua, que se dividem em comunidades abrangendo todo o
território, sendo as duas primeiras etnias encontradas também em outros Estados do Brasil. Um
fato comumente diagnosticado para quem transita nesses espaços geográficos é a presença de
comunidades indígenas vivendo nas beiras das rodovias e estradas, com pequenas moradias
feitas de lona preta, sem acesso à água potável, saúde, educação e sem terra para o plantio de
suas sementes crioulas dependendo, muitas vezes, da venda de artesanato para a sua subsistência.
No entanto, o que não se fala é da violência a que estão expostos, seja pelo perigo das estradas
seja pelo risco de mortes por atropelamentos; ou pela violência do frio e da fome ou pelas
constantes ameaças advindas do crescimento do conflito no campo, do descaso e da falta de
diálogo com o Estado e com a sociedade no seu entorno.
A Comunidade Guarani Mbyá de Capivari do Sul vive às margens da RS 040, entre os
Km 60 e 62, local em que estão há mais de 40 anos, aguardando a demarcação de suas terras
tradicionais. Em realidade a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) já realizou estudos
preliminares na região e como resultado constatou a presença de evidências antropológicas,
históricas, arqueológicas, sociológicas e ambientais que comprovam ser uma área de ocupação
tradicional do povo Guarani Mbya. No ano de 2012, a FUNAI instituiu oficialmente o Grupo de
Trabalho (GT) para proceder, em definitivo, os estudos de identificação e delimitação das terras
reivindicadas pelos Guarani, porém estes Grupos de Trabalho atualmente estão paralisados por
decisões políticas e pressão dos fazendeiros da região. Sem condições adequadas de subsistência,
sem acesso à água potável e vivendo em casas improvisadas com lona preta, a comunidade segue

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resistindo, motivo pelo qual tem sido alvo de diversas ofensivas, como o desmembramento das
famílias causado pela remoção forçada para locais distantes por parte dos fazendeiros e do
próprio Estado; o envenenamento dos córregos rasos com agrotóxico por parte também dos
fazendeiros, água esta que já não pode ser considerada potável, pois circunda a plantação de
arroz e soja, mas que ainda é utilizada pela comunidade para as suas necessidades básicas como
banho, consumo, lavar roupas, pescar e etc.; o perigo constante de atropelamentos, o risco de
conflito armado, ameaças e intimidações, e destruição de suas pequenas construções para
moradia e pequenos feixes de plantação.
A Comunidade Guarani Mbyá de Irapuá, localizada no Município de Caçapava do Sul às
margens da BR -290 vive uma situação parecida com seus parentes de Capivari do Sul. A
comunidade está no local há 22 anos e segue aguardando o direito de viver em seu território
tradicional de acordo com seus usos e costumes. A comunidade tem passando por situações
críticas de fome e sede, uma vez que não possuem espaço para o plantio e não há água corrente
próxima além daquelas que se encontram dentro das fazendas. Os indígenas têm sofrido
violências e ameaças por parte dos fazendeiros da região, sendo duramente coibidos a não
entrarem nas fazendas em busca de água, coletas de frutos ou pesca. Os fazendeiros também têm
sido responsáveis pela destruição de parte do acampamento, de um poço artesiano, assim como,
de árvores frutíferas e da escola local.
Ambas as comunidades aguardam seus os processos demarcatórios há muitos anos, os
quais atualmente estão completamente paralisados, sem direcionamento de verbas e sem previsão
por parte do Estado para que sejam retomados. Da mesma forma, o Estado tem agido de forma
omissa na prestação de assistência básica a saúde destas comunidades, sendo alvos de constantes
denúncias no Ministério Público Federal pela falta de implementação e cumprimento de políticas
públicas para resguardar a vida das pessoas.

A dialogicidade como proposta para a resolução dos conflitos

Os indígenas possuem a cultura do diálogo e produção do saber coletivo; os não-


indígenas, a da escrita rebuscada em papel, muitas vezes, sem pronunciar palavra alguma ou,
pior, a do tiro de bala, gás lacrimogênio e spray de pimenta. Essa é uma forma de opressão e de
embate claro entre o dialógico e o antialógico, tanto no sentido denotativo quanto no freireano.
Sem o diálogo, não há como o oprimido se expressar. Isso colabora para que pouco a pouco, a

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sua consciência histórica de sujeito social também vá se calando/apagando e a sua cultura
desaparecendo. Calar o outro é a melhor maneira de fazê-lo desaparecer sem que seja derramada
nenhuma gota de sangue.
Os Povos Indígenas vêm demonstrando resistência e lutam para seguirem vivos, se
manifestando culturalmente de acordo com sua forma de vida e organização social, contra as
tentativas sistemáticas de aculturação, integração e assimilação, impostas pela sociedade não-
indígena (SILVA, 2015). Mas há 517 anos, o colonizador e seus descendentes abafam os Povos
Indígenas. Tiraram a vida de milhões, e dos que sobraram, oprimem a sua expressão linguística,
cultural, artística e etc. O Brasil, que possui 305 etnias indígenas e 274 línguas tradicionais
indígenas (IBGE 2010), dispõe como língua oficial apenas a língua portuguesa e incentiva
línguas estrangeiras de massa, como o inglês, invisibilizando os aspectos multiculturais por
completo. A linguagem, nesse caso, tem colaborado para reforçar essa pressão que inferioriza as
pessoas indígenas e as leva a serem excluídas da sociedade. Ela tem sido utilizada sutilmente de
forma cruel levando ao segregacionismo e, simultaneamente, ao reducionismo. Basta ver que se
nomeiam os Povos Indígenas como um grupo pertencente às “minorias”, aos sem cultura, aos
sem nada. A linguagem constitui o sujeito que fala e o que é “falado”. Ela permite que a classe
dominante – que estatisticamente não é a maioria, mas intitula-se como se fosse -, nomeie o
outro, afirmando-o ou negando-o. A linguagem é a ferramenta que usamos para tratar da
alteridade também quando tratamos de inclusão e assimilação social, pois é através dela que se
dão as rodas de diálogo fraterno, única forma de reinventarmos uma sociedade pacífica e
inclusiva para todos.
Os Povos Indígenas, possuem formas diferentes de diálogo, que varia de etnia para etnia,
e que atua como base da sua cultura, a qual conta com valores civilizatórios, dentre eles, a
circularidade, o cooperativismo, a oralidade, a memória e a ancestralidade. Com esses valores
milenares, as comunidades indígenas resolvem seus problemas por meio do diálogo próprio,
pautado pelo entendimento coletivo, mútuo e de alteridade, vendo-se no outro e relembrando a
história dos seus antepassados, para chegarem ao consenso de qual solução será mais benéfica
para a comunidade como um todo. Esta seria, portanto, uma alternativa: a sociedade não-
indígena deve aprender a respeitar as diferenças culturais e as diferentes formas de solução de
conflito, seja pelo diálogo intercultural, como é o caso das rodas de conversa estabelecidos por

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alguns Povos, ouvindo o outro, a fazer silêncio para que possa refletir, a abrir a guarda, enxergar
o outro, e enxergar-se no outro como seres humanos semelhantes que todos somos.
As comunidades indígenas, principalmente as do Rio Grande do Sul, têm se aberto aos
apoiadores não-indígenas e indigenistas que lutam por uma sociedade em que haja paz,
tolerância e bem-viver através da dialogicidade e do cooperativismo. Afirmação essa que ficou
registrada há alguns anos na fala do líder Kaingang Augusto Ópẽ da Silva,

Através da luta de todos esses movimentos indígenas, na história do Brasil, foi criado
vários movimentos com a luta indígena. Na luta, nas retomadas... E hoje temos vários
companheiros e queremos se juntar, se fortalecer cada vez mais. Que na história, os
colonizadores, eles cortaram nossos galhos, cortaram nossos troncos, mas se
esqueceram de arrancar nossas raízes. Aí, hoje, ela brota e brota cada vez mais forte.
(SILVA, 2013, n.p.).

A respeito da importante atuação de dialogicidade de Augusto no movimento, o


antropólogo Sérgio Baptista da Silva (2014), escreveu em seu artigo de homenagem ao líder
Kaingang, por ocasião de seu falecimento,

Augusto soube estabelecer e construir relações intensas com o mundo não indígena. As
alteridades dos cosmos dos fóg foram paciente e tenazmente amansadas e pacificadas
por este sábio guerreiro kaingang, sempre pronto a conversar, a ouvir, mas com precisão
e diplomacia, sempre sagazmente disposto a nos brindar com seus comentários
aguçados e sinceros, que atingiam, por exemplo, os pontos débeis ou não pensados pelas
políticas governamentais ou por nós mesmos. Esta sua capacidade crítica, argumentativa
e construtiva certamente estava alicerçada em um amplo e profundo conhecimento da
epistemologia kaingang. E também em seu pleno e abrangente modo de viver e
experenciar a socialidade de seu coletivo. (SILVA, 2014, p. 298-299).

Assim vemos que a alteridade e a dialogicidade são as armas da resistência contra a


opressão. Para tanto, pensamos que a cultura de paz é uma forte aliada para apoiar essa luta
pacífica e lograr êxito. Carolyn Boyes-Watson e Kay Pranis (2011), a partir de estudos sobre os
“círculos de construção de paz” dos povos tradicionais, desenvolveram um guia de práticas
circulares de dialogicidade, que tem por base central seis fatores: a busca do verdadeiro “eu”;
interconectividade, “buscar o feedback sobre como os outros experimentam nosso poder”; os
humanos desejam estar em bons relacionamentos com os outros, “o que sugere que as pessoas
estão dispostas a intercambiar ‘poder sobre’ por ‘poder com’”; todos possuímos dons, “todos
temos oportunidades de experimentar o poder saudável à medida que expressamos nossos dons”;
tudo de que precisamos já está aqui, “não precisamos de poder sobre os outros para fazer

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mudanças, nem precisamos roubar o poder dos outros para suprir nossas necessidades”; os seres
humanos são seres holísticos, “a experiência humana tem dimensões mentais, físicas, emocionais
e espirituais. O poder opera em todos esses domínios e é importante prestar atenção em como o
poder opera em cada um deles.”
As autoras complementam que as práticas circulares de dialogicidade foram pensadas,
pois observaram em suas pesquisas que,

o poder está composto em nossa sociedade tem causado muito dano. Isso ocorre
porque a sociedade em que vivemos está estruturada em hierarquias. Níveis
mais altos da hierarquia têm poder sobre níveis mais baixos. Estas hierarquias
classificam o mérito de acordo com os níveis de hierarquia e, assim, aos níveis
de poder. Uma pessoa com mais poder é considerada como tendo mais mérito
como ser humano - e é tratada assim. (BOYES-WATSON, PRANIS, 2011,
p. 29).

Nesse sentido, acreditam que


o processo do círculo ajuda os indivíduos e o grupo a experimentar o poder saudável na
presença um do outro. Cada pessoa tem voz; cada pessoa é valorizada; ninguém é mais
importante do que ninguém no círculo. O poder individual no círculo é
autodeterminante - ter voz, escolher se quer falar. O poder coletivo no círculo é “poder
com” - decisões tomadas por consenso que não privilegiam nenhum ponto de vista ou
posição. (BOYES-WATSON, PRANIS, 2011, p.30).

Para reforçar esse pensamento, lembramos as noções de Comunicação Não-Violenta


(CNV) propostas por Marshall Rosenberg, as quais orientam os tipos de linguagem, pensamento
e comunicação podem oferecer alternativas pacíficas à violência. Esse método teve seu início em
1960. Há 40 anos, Rosenberg tem “contribuído para uma transformação social na maneira de
pensar, falar e agir, mostrando às pessoas como se conectar de maneira que inspire resultados
compassivos. A CNV foi utilizada em locais dilacerados pela guerra, como Serra Leoa, Sri
Lanka, Ruanda, Burundi, Bósnia, Sérvia, Colômbia e Oriente Médio.” (ROSENBERG, 2006, p.
284 - 285)
Nos últimos anos, Rosenberg e sua equipe tentam ampliar o método que inspira uma
comunicação pacífica para todo o planeta,
tem buscado financiamento para apoiar projetos na América do Norte, América Latina,
América do Sul, Europa, África, Ásia meridional, Brasil e Oriente Médio. Verbas de
fundações ajudaram a iniciar projetos inovadores de aprendizado do CNVC para criar
recursos para educadores, e outros projetos voltados para os pais, para mudanças sociais
e trabalho em prisões em várias regiões geográficas do mundo. Trabalha-se em sinergia
com outras organizações cujas missões estão em sintonia. (ROSENBERG, 2006, p.
285).

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O excerto acima mostra que, a partir de um diálogo empático, levando em conta a
alteridade é possível confirmar o que Freire (1987), em Pedagogia do Oprimido, onde registrava
que “as pessoas são seres da transformação e nunca de adaptação. De transformação porque os
seres humanos são capazes de tomar consciência de sua realidade e de mudá-la, ou seja,
transformá-la. São capazes de tomar a transformação para si, a fim de que esta passe a ser parte
deles próprios.”

Considerações/Resultados
Boyes-Watson e Pranis, Rosenberg e Freire possuem pensamentos que se intercruzam: a
alteridade positiva, ou seja, ver o outro não como um erro, um menor, um menos ou um nada,
mas ver o outro como apenas “o outro”, alguém diferente do “eu” que possui uma identidade,
uma cultura e um contexto que deve, assim como prevê a Educação Popular, serem levadas em
consideração individualmente. Além disso, seus pensamentos e métodos vão ao encontro da
esperança de um mundo melhor, mais fraterno, em que as relações se deem de forma pacífica e
os diálogos ocorram, em primeiro lugar, e com respeito e honestidade. A proposta de
dialogicidade para as relações sociais não são ideias inovadoras dos teóricos mencionados, elas
são práticas ancestrais de Povos Indígenas, como demonstramos ao citar as ações do líder
kaingang, da dita minoria que os poderes econômicos e políticos tentam exterminar. A atual
situação em que vivem os Povos Indígenas no Rio Grande do Sul nos permite perceber a
intransigência e barreiras ao diálogo criadas pelo Estado, que discrimina, invisibiliza e oprimi
qualquer manifestação cultural diferenciada.
Freire deixou-nos um legado muito grande e lutou por uma sociedade onde todos tenham
realmente o direito de viver, direito esse que há mais de 500 anos está sendo retirado dos Povos
Indígenas. Com suas palavras inspiradoras, encerramos este texto na esperança de que possamos
colocar em prática suas orientações com relação à dialogicidade, sempre levando em
consideração os princípios da aprendizagem dialógica (diálogo igualitário, inteligência cultural,
igualdade na diferença, transformação, solidariedade, dimensão instrumental e criação de
sentido).

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REFERÊNCIAS

BOYES-WATSON; Carolyn PRANIS, Kay. No coração da esperança: guia de práticas


circulares. O uso de círculos de construção da paz para desenvolver a inteligência emocional,
promover a cura e construir relacionamentos saudáveis. Tradução de Fátima de Bastiani. Porto
Alegre: Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul/Departamento de Artes Gráficas,
2011.
CÂMARA DOS DEPUTADOS. Frente Parlamentar Mista da Agropecuária – FPA.
Disponível em: < http://www.camara.leg.br/internet/deputado/frenteDetalhe.asp?id=53476>.
2017.
CIMI. Atuação. Disponível
em:<http://www.cimi.org.br/site/ptbr/?system=paginas&conteudo_id=5688&action=read>
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. Disponível
em: http://portal.mda.gov.br/portal/saf/arquivos/view/ater/livros/Pedagogia_do_Oprimido.pdf .
Acesso: 20 abr. 2017.
IBGE 2010. Estudos Especiais. Disponível em: < http://indigenas.ibge.gov.br/estudos-especiais-
3.html>.
ROSENBERG, Marshall B. Comunicação não-violenta: técnicas para aprimorar
relacionamentos pessoais e profissionais. Tradução de Mário Vilela. São Paulo: Ágora, 2006.
SILVA, Augusto Ópẽ da. Depoimento [out. 2013]. Entrevistadora: Lourenço, M. S. Museu
Nacional, 2013. Arquivo mp3. Entrevista concedida ao projeto Cristianismo e transformação
Kaingang.
SILVA, Paulo Thadeu Gomes da. Os Direitos dos Índios: fundamentalidade, paradoxos e
colonialidades internas. 1 ed. São Paulo: Editora Café com Lei, 2015.
SILVA, Sérgio Baptista da. Interculturalidade na UFRGS: a contribuição de Augusto Ópẽ da
Silva. Espaço Ameríndio, Porto Alegre, v.8, n.2, p.298-302, jul./dez. 2014.

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