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10 P refácio

a antropologia da índia, que me ocupara até então, e o novo


empreendimento, mas isso era pressupor ad q u irid a ou deixar
implícita uma concepção da antropologia que não é com um en-
te admitida pelos especialistas nem, a fortiori, fam iliar ao
grande público. Quero aqui, na introdução que se segue e IN TR O D U Ç Ã O
que deve servir de ponte entre as duas vertentes do livro, re­
troceder ainda mais, até à origem em m im dessa concepção da
antropologia. Não existe nisso dificuldade algum a, p o rq u a n to
o percurso foi retilíneo; mas, de qualquer m odo, é v o ltar
atrás mais de quarenta anos, num plano em que o pessoal se
mistura estreitamente com o científico, e a lem brança daquela
que me acompanhou ao longo de toda a jornada, até 1978, é
inseparável de tal recapitulação. Por isso dedico este livro à
sua memória.
Para terminar, gostaria de aproveitar a o p o rtu n id ad e para
expressar um agradecimento geral a todos aqueles que, de di­
versos modos, me encorajaram nos últim os anos num em p reen ­ Esta introdução tem duas tarefas a cumprir. Por uma parte,
dimento que podia parecer destinado a ficar sem repercussão. deve servir de ligação entre as duas partes do livro, ultrapas­
É-me impossível dizer a que ponto eles me aju d aram e me sar a distinção que separa uma especialidade da “ ciência so­
ajudam a persistir no esforço. Sua inspiração acom panha a cial”, a antropologia social, de um estudo que deriva da “ his­
presente coletânea. tória das idéias”, ou da história intelectual de nossa civiliza­
ção ocidental moderna. Mostrar como, numa perspectiva de
A b ril de Í9 8 3 antropologia social, se justifica ou se recomenda um estudo
do conjunto de idéias e valores característico da modernidade.
Mas, se entendi bem o desejo de Paul Thibaud, como se diz
no prefácio, isso não é bastante: é preciso ainda que o ponto
de vista, a orientação, digamos, o espírito do estudo ideológico,
deixe de parecer arbitrário ou imposto, e passe a ser visto co­
mo algo que resulta naturalmente da perspectiva antropoló­
gica.
Tudo o que se segue e, em particular, a segunda parte do
livro, é que deverá responder, certamente, a essas necessidades.
À introdução cabe dirigir, desde já, a atenção para os princí­
pios, destacar as linhas de força que conferem unidade a estes
ensaios e recuperar a inspiração de tudo isso. Não é missão
difícil, uma vez que, para começar, a inspiração possui um
rosto, um nome: chama-se Marcei Mauss. Assim como os seus
ensinamentos estiveram na origem de meus esforços, também
esta introdução pede que seja construída a partir dele.
Mas, antes de se chegar a Mauss em pessoa, cumpre re­
cordar que existem duas espécies de sociologias, quanto aos
12 Introdução ° In dividualismo 13

seus respectivos pontos de partida e à abordagem global de fato sociológico independentemente da referência à sociedade
cada uma delas. Na primeira, parte-se, como é natural nos m o­ global em questão.
dernos, dos indivíduos humanos para vê-los em seguida em
Eis, agora, o segundo aspecto, mais im portante ainda, se
sociedade; por vezes, tenta-se até fazer nascer a sociedade da
interação dos indivíduos. Na outra espécie de sociologia, parte- possível, do que o primeiro: entre as diferenças, há uma que
domina todas as outras. É aquela que separa o observador,
se do fato de que o homem é um ser social e, portanto, consi­
dera-se irredutível a toda e qualquer composição o fato global como portador das idéias e valores da sociedade moderna, da­
queles que ele observa. Mauss pensava, sobretudo, nas socie­
da sociedade — não de “ a sociedade” em abstrato, mas de tal
dades tribais, mas o caso não é fundamentalmente diferente
ou tal sociedade concreta, com suas instituições e representa­
no tocante às grandes sociedades de tipo tradicional. Essa dife­
ções específicas. Já que, para o prim eiro caso, falou-se de indi-
rença entre nós e eles impõe-se a todo o antropólogo e, de
- vidualismo metodológico, seria lícito falar de holism o m etodo­
qualquer modo, é onipresente em sua prática. Supondo-se ad­
lógico neste último.1 Na verdade, esse enfoque im põe-se, na
quirida a familiaridade com a cultura estudada, o grande pro­
prática, toda a vez que nos encontramos diante de um a socie­
blema para aquele está, como dizia Evans-Pritchard, em “ tra­
dade estrangeira, e o etnólogo ou antropólogo não pode exim ir-
duzir” essa cultura para a linguagem da nossa e da antropolo­
se-lhe: ele só poderá comunicar com as pessoas que pretende
gia que faz dela parte. Cumpre acrescentar ainda que a ope­
estudar quando tiver dominado a língua que elas têm em co­
ração é majs complexa do que um a tradução. Mauss refere-se,
mum, a qual é o veículo de suas idéias e de seus valores, da
com freqüência, às emboscadas que aí nos esperam, às difi­
ideologia em que pensam e em que se pensam . É basicam ente
culdades e precauções que essa diferença fundam ental impõe.
por essa razão que os antropólogos anglo-saxões, m algrado a Entre outras, as nossas rubricas mais gerais, como a moral, a
forte propensão para o individualismo e o nom inalism o, que é política, a economia, aplicam-se mal às outras sociedades e só
fruto da própria cultura deles, não puderam dispensar a socio­ se lhes pode recorrer com circunspecção — e mesmo assim a
logia de Durkheim e de seu sobrinho, M arcei M auss. título provisório. Em última análise, para verdadeiramente
No ensino de Marcei Mauss há uma característica que, do compreender, cumpre investigar no campo todo, pondo de lado,
ponto de v,ista do que acaba de ser dito, é essencial: refiro-m e se necessário, esses compartimentos, aquilo que corresponde
à ênfase atribuída à diferença. E isso sob dois aspectos d istin­ neles ao que conhecemos, e em nós ao que eles conhecem; por
tos. Em primeiro lugar, um aspecto geral. M auss recusa deter- outras palavras, é imprescindível esforçar-se por construir aqui
se, à maneira de Frazer e da prim eira escola antropológica in­
e lá fatos comparáveis.
glesa, no que as sociedades teriam em comum, negligenciando Talvez caiba sublinhar um aspecto geral do que se passa
suas diferenças.2* Sua grande preocupação, seu “ fato social aqui. Sob o ângulo mais imediatamente pertinente para o es­
total”, é, por definição, um complexo específico de um a dada tudo, o das representações sociais de que ele participa, o ob­
sociedade (ou de um tipo de sociedade), impossível de se so­
servador é aqui parte obrigatória da observação. O quadro que
brepor a qualquer outro. Interpretem os um pouco: não existe
ele fornece não é um quadro objetivo, no sentido de que o
sujeito dele estaria ausente; é, outrossim, o quadro de alguma
coisa vista por alguém. Ora, sabemos a im portância de que se
1 A palavra “holismo” figura no suplem ento do Vocabulaire tech n iq u e reveste essa consideração para a filosofia das ciências, a qual
et critique de la philosophie, de André Lalande, Paris, PU F, 1968, 2.* edi­
ção. como rara em francês, com a seguinte definição: “T eoria segundo a começa precisamente quando o quadro “ objetivo” é relacio­
qual o todo é plgo mais do que a soma das partes” (p . 1254). P ara o nado com o sujeito que o fornece. Na antropologia a que nos
significado da palavra aqui. cf. o léxico no final deste volum e. referimos, tal como na física nuclear, encontramo-nos de ime­
2 Honio hierarchicus: le Système des castes et ses im plications, P aris,
Gallimard, col. “Tel”, 1979 (reedição am pliada), p. 324, n o ta 2; desig­ diato nesse nível mais radical em que não se pode abstrair do
nado doravante como H H . Designar-se-á igualm ente por H A E I a o b ra observador. Reconhecemos que a coisa não está inteiramente
seguinte: Homo aequalis, op. c it. explícita em Mauss. Q uando, a propósito do estudo da reli-
14 Introdução O Individualism o 15

giao, ele chama a atenção para "quem são as pessoas que crêem linear da hum anidade, assim como uma causalidade socioló­
nisso", ele não diz "em relação a nós, que cremos n isto "; gica a que Mauss tampouco renunciara por completo. A crítica
somos nós quem o acrescenta, apoiando-nos em outras e n u ­ radical por Polanyi do liberalismo econômico e do próprio eco-
merosas passagens em que Mauss insiste no caráter particu lar, nomismo faz ressaltar a distância que nos separa aqui de
mais ou menos excepcional, de nossas idéias m odernas. A força Mauss; mas essa distância não afeta, em absoluto, a concepção
dessa perspectiva consiste em que, no fim de contas, a ela se fundam ental, em Mauss, da comparação e da antropologia, tal
vincula tudo o que a antropologia social ou cultural jam ais fez como é retomada aqui. Aliás, o próprio Mauss já se distan­
de essencial. Ela acarreta, é verdade, com um a com plicação ciara discretamente do cientismo e do que há de hybris socio­
garantida, servidões temíveis que explicam , talvez, o fato de lógica em Durkheim . E, num sentido amplo, “ a história social
ela não se ter expandido. Citarei apenas duas: os jargões da das categorias do espírito hum ano” está sempre na ordem do
sociologia institucionalizada são postos fora de circulação e, dia, apresenta-se-nos tão-só como infinitamente mais complexa,
por outro lado, o universal distancia-se no horizonte: só se m últipla e difícil que aos durkheimianos entusiastas do começo
pode falar do "espírito hum ano” a p artir do instante em que do século. Por outro lado, se lermos atentamente o que Mauss
duas formas diferentes são incluídas num a mesm a fórm ula, disse em 1938 sobre os resultados das pesquisas deles, perce­
em que duas ideologias distintas se apresentam como duas beremos que suas pretensões são bastante modestas.4
variantes de uma ideologia mais am pla. Esse m ovim ento de Deixemos bem claro que o retrato que fiz de Mauss em
inclusão, sempre a renovar, aponta o espírito hum ano sim ulta­ 1952 e que é aqui reproduzido como dizendo o essencial, está
neamente como seu princípio e como seu lim ite. longe de ser a apreciação crítica que hoje poder-se-ia esperar.5
Excetuando-se esta últim a digressão, tentei esquem atizar Tratava-se então de o apresentar a colegas ingleses que o co­
o menos possível o grande princípio, decorrente dos ensina­ nheciam pouco e corriam o risco de se desorientarem — ou
mentos de Mauss, que orientou, que com andou todo o m eu serem repelidos — por uma interpretação brilhante mas exa-
trabalho. Se uma confirm ação exterior fosse necessária, encon­ geradamente abstrata. A situação é hoje muito diferente, quan­
trá-la-íamos na repercutente dem onstração, por K afl Polanyi, do a figura de Mauss desfruta, na profissão e no plano m un­
do caráter excepcional do caso m oderno sob a relação da eco­ dial, de um grande prestígio e diria mesmo de uma reverência
nomia: em qualquer outro lugar, aquilo a que cham am os fatos m uito rara — talvez passageira mas que não deixa de ser co­
econômicos está inserido no próprio tecido social, e só nós, movente para aqueles que o conheceram. Por mais difícil que
modernos, daí os extraímos e erigimos num sistem a distin to .3 seja a tarefa, chegou o momento, sem dúvida, de uma discussão
Existe, contudo, entre Mauss e Polanyi um a nuança e talvez circunspecta mas profunda das teses de Mauss e das interpre­
mais. Em Polanyi, a m odernidade, sob a form a de liberalism o tações que elas receberam; mas não é esse o nosso objetivo
presente, já que nos propomos tratar aqui apenas do funda­
econômico, situa-se nos antípodas de todo o resto. Em M auss,
mento. ,
ainda pode parecer que todo o resto para aí se encam inha:
Em termos práticos, ou de método,, Mauss ensina-nos a man­
existem momentos em que um resto de evolucionism o vem ter sempre uma dupla referência. Referência à sociedade glo­
coroar as descontinuidades, ainda que firm em ente reconheci­ bal, por uma parte, e, por outra, referência comparativa
das. É o que ocorre quando ele se refere ao grande projeto recíproca entre o observado e o observador. 1Fui levado, sub-
durkheimiano da "história social das categorias do espírito h u ­
mano", o qual não deixava de evocar um desenvolvim ento
4 Ver o início da conferência sobre “La notion de personne”, Marcei
Mauss, Sociologie et Anthropologie, Paris, PUF, 1950, pp. 333-334. .
3 O livro que Karl Polanyi dedicou ao caso m oderno acaba de ser tra ­ 5 Ver, para alguns detalhes, meus comentários em La Civilisation m-
duzido para o francês: La Grande Transformation, Paris, G allim ard , dienne et nous, Paris, A. Colin, 1964, pp. 91-92, e no prefácio para
1983 (cf. o meu prefácio). E. E. Evans-Pritchard, Les Nuer, Paris, Gallimard, 1968, p . ix.
16 Introdução O Individualism o 17

seqüentemente, a esqilfematizar ou objetivar a oposição en tre ciedades diferentes.8 Acrescentemos que aquelas poucas teorias
o observador e o observado sob a form a de um a oposição de que dispomos — se o term o não é ambicioso demais —
entre moderno e tradicional e, mais am plam ente, entre m oder­ aplicam-se, quando muito, a um tipo de sociedade, a uma re­
no e não-moderno. É certo que esse gênero de distinção não gião do mundo, a uma "área cultural” ; elas perm anecem em
é hoje bem acolhido. Ironiza-se dizendo que as oposições b i­ "u m baixo nível de abstração” , o que se deplora. Mas se existe
nárias e desse gênero já tiveram seu m om ento de glória no aí uma servidão, também encontramos aí a marca da eminente
século XIX, ou então opina-se, como -Mary Douglas, que dignidade da antropologia: as espécies sociais de homens em
as oposições binárias constituem um procedim ento questão impõem-se-lhe em sua infinita e irredutível complexi­
analítico, mas sua utilidade não garante que o exis­ dade, digamos, como irmãos e não como objetos.
tente (em inglês: existencé) se divida dessa m a­ Com efeito, o título que dei à minha apresentação sumária
neira. Devemos desconfiar de quem quer que diga de Mauss permanece atual. Somos “ uma ciência em devenir” .
que existem duas espécies de pessoas, ou duas es­ O aparelho conceptual de que dispomos está muito longe de
pécies de realidade ou de processo.6 responder às exigências de uma verdadeira antropologia social.
O progresso consiste em substituir pouco a pouco, se necessá­
A isso responderemos tranqüilam ente que existem duas rio um a um, os nossos conceitos por outros mais adequados,
maneiras de considerar um conhecim ento qualquer, um a m a­ isto é, mais libertos de suas origens modernas e mais capazes
neira superficial que deixa fora de questão o sujeito conhece­ de abranger os dados que começamos por desfigurar. Essa é
dor, e uma maneira profunda que o inclui. A rigor, isso b a s­ a m inha convicção: o quadro conceptual que ainda é o nosso
taria para justificar a nossa distinção. não só é insuficiente ou rudim entar mas, com freqüência,
Entretanto, o leitor não-especialista está no pleno d ireito também é enganador, mentiroso. O que a antropologia possui
de se surpreender, pois eis-nos, sem dúvida, bastante longe d a de mais precioso são as descrições e análises de uma determi­
imagem que o público pode estar inclinado a fazer de um a nada sociedade, as monografias. Entre essas monografias, a
"ciência social” . Digamos, pois, sum ariam ente, como a a n tro ­ com paração é, na grande maioria dos casos, muito difícil. (Fè-
pologia se distanciou da ciência social, em p articular nas ú lti­ lizmente, cada um a delas já contém, em maior ou menor grau,
mas décadas. Desde que se abandonem as idéias ingênuas sobre uma com paração — um a comparação de ordem fundamental
a determinação de uma parte da vida social po r um a o u tra
entre “ eles” e "n ó s” , os que falamos deles, — e modifica, em
parte ("infra-estrutura” e "superestrutura” ) e os com partim en­ m edida variável, o nosso quadro conceptual!) Essa comparação
tos mutiladores a que já aludimos, percebe-se que é m u ito
é radical, porquanto emprega as concepções do próprio obser­
pouco interessante elaborar, para os sistemas ou subsistem as
sociais, classificações análogas às usadas para as espécies vador e, em minha opinião, ela comanda todo o resto. Desse
naturais. Sir Edmund Leach zombou recentem ente dessa "co le- ponto de vista, a nossa maneira de nos concebermos não é,
cionação de borboletas” .7 E quanto mais se enfatiza, p a ra além evidentem ente, indiferente. Donde resulta que um estudo com­
da simples organização social, os fatos da consciência, as parativo da ideologia moderna não é um hors-d’ocuvre para a
idéias e os valores, aquilo a que D urkheim cham ava as " re p re ­ antropologia.
sentações coletivas”, mais se procura fazer um a antropologia
abrangente, "compreensiva”, e mais difícil fica com parar so­ Para sermos completos, cumpre acrescentar ao que pre­
cede, e que deriva diretamente de Mauss, um elemento ou
princípio que surgiu no decorrer da investigação e, combinado
6 Mary Douglas, “Judgements on James Frazer” , Daedalus, o u tono de
1978 (pp. 151-164), p . 161.
7 Edmund Leach, Rethinking Anthropology, Londres, A thlone P ress, 8 Sobre este ponto, ver o que dizemos no capítulo V II sobre a tenta­
1961, p. 5. tiva de Clyde K luckhohn e seu grupo.
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I ntrodução O Individualismo

com os precedentes, perm itiu o seu desenvolvim ento. Se se talvez, quando por mim descrita, é indispensável porque res-
considera os sistemas de idéias e valores, pode-se ver os dife­ titui uma dimensão importante e negligenciada do dado.
rentes tipos de sociedades como representantes de outras tantas Se assim é, por que aparece, perguntar-se-á, tão tardia­
opções diferentes, entre todas as alternativas possíveis. Mas tal mente? Em primeiro lugar, esses estudos são tão difíceis e
modo de ver não basta para consolidar a com paração, para complexos que jamais vão muito além de seus primórdios,
formalizá-la, por pouco que seja. Para tanto, cum pre levar em como aludimos acima. Em seguida, a hierarquia é precisamen­
conta, em cada sociedade ou cultura, a im portância relativa dos te o objeto de uma aversão profunda em nossas sociedades.
níveis de experiência e de pensamento que ela reconhece, ou Finalmente, se é a comparação, a discordância entre duas hie­
seja, usar os valores mais sistematicamente do que tem vsido rarquias diferentes, que impõe, por si só, o reconhecimento do
feito, de um modo geral, até agora. Com efeito, o nosso sis­ princípio hierárquico, observa-se, por uma parte, que entra
tema de valores determina toda a nossa paisagem m ental. Veja­ muito de implícito nesses sistemas de representação; e, por
mos o exemplo mais simples. Suponha-se que a nossa sociedade outra, que o nosso próprio implícito nos é relativamente trans­
e a sociedade observada apresentam ambas, em seus respecti­ parente, de modo que não é inútil para o esclarecimento do
vos sistemas de idéias, os mesmos elementos A e B. Basta que todo que nós figuremos em um dos dois pólos da comparação.
uma subordipe A a B e, a outra B a A para que resultem dife­ É esse, talvez, o ponto mais importante: reencontramos aí o
renças consideráveis em todas as concepções. Por outras pala­ que designamos por comparação radical, na qual nós próprios
vras, a hierarquia interna da cultura é essencia_l para a com­ omos parte.
p aração .^ >
Os dois ensaios com que se conclui este volume explici-
Sublinhemos com clareza a estreita união, a unidade desse
am e articulam a concepção da antropologia que acabamos
princípio com os precedentes: acento sobre a diferença, isto
e resumir. São recentes, porquanto não poderíam vir a lume
é, sobre a especificidade de cada caso; entre as diferenças,
nquanto o estudo da ideologia moderna não tivesse recebido
acento sobre a diferença entre “ eles” e “ nós” e, portanto, entre ím esejnvolvimento suficiente. O primeiro, “ A Comunidade
moderno e não-moderno, como epistemologicamente funda­
n ropológica e a Ideologia” (cap. VI), estava inicialmente
mental; enfim, acento no interior de toda e qualquer cultura eservado, em meu espírito, para uso interno da profissão: ele
sobre os níveis hierarquizados que cada um a apresenta, ou
Jrocuia extrair as conseqíiências da orientação teórica a res­
seja, ênfase sobre os valores como essenciais para a diferença peito do estado atual da disciplina e de seu lugar no mundo
e para a comparação: tudo isso perm anece. É verdade que, de
íodierno, e constitui, ao mesmo tempo, um esforço de apro-
fato, foi o campo indiano, ao qual se aplicava a m inha inves­ undamento da perspectiva maussiana. A este último título,
tigação, que me levou, de certo modo, a redescobrir a hierar­
quia, mas é evidente, em retrospecto, que estava aí um elem en­ em distintamente seu lugar neste livro.
O últim o ensaio (cap. V II) nasceu da oportunidade de
to necessário ao aprofundamento da com paração. Diga-se de pfeiecer uma idéia da hierarquia numa linguagem mais habi-
passagem, eis a razão por que uma monografia, o estudo de ual para os" antropólogos, a linguagem dos “ valores” . Ao abor-
uma única sociedade, contribui para o quadro teórico geral. Jar frontalm ente o contraste entre moderno e não-moderno,
Creio que a introdução da hierarquia perm ite desenvolver a íle propõe, em suma, o esquema de uma antropologia da mo­
inspiração fundamental de Marcei Mauss. A final de contas, dernidade. Como tal, pode servir de conclusão para esta coletâ-
ela parece ter cruelmente faltado aos durkheim ianos. Por in­ f K-nnrlo entendido que a própria pesquisa só admite, neste
cômoda que ela possa parecer, por balbuciante que seja ainda, 9

Sem dúvida, após as considerações precedentes, compreen­


9 Para uma idéia esquemática de tal com paração, remetemos o leitor de-se que, se a antropologia for concebida como fizemos aqui,
a HH, § 118.
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Introdução O Individualismo
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sociedades não-modernas. Será esse o ponto de vista principal,


as idéias e os valores que nos são fam iliares como m odernos mas com precisões, limitações e complicações notáveis. ideo­
não lhe são estranhos mas, m uito pelo contrário, entram em logia moderna é individualista •— sendo o individualismo de­
sua composição. Todo o progresso que se possa fazer no co­ finido sociologicamente do ponto de vista dos valores globais.11
nhecimento dessas idéias e valores será um avanço da an tro ­ Mas trata-se de um a configuração, não de um traço isolado*
pologia, não só quanto ao seu objeto mas tam bém em seu fu n ­ por mais im portante que seja. O indivíduo como valor tem
cionamento e em seu quadro teórico. A tese com plem entar, atributos — como a igualdade — e implicações ou concomi­
que falta demonstrar ou, pelo menos, defender, é que, inver­ tantes para os quais a comparação sensibilizou o investigador.
samente, uma perspectiva antropológica pode perm itir-nos co­ Vejamos um exemplo para se apreciar a diferença entre
nhecer melhor o sistema m oderno de idéias e valores, sobre
o discurso ordinário e o discurso sociológico de que estamos
o qual acreditamos saber tudo pelo simples fato de ser nele tratando. Alguém opõe ao individualismo o nacionalismo, sem
que pensamos e vivemos. Eis uma pretensão aparentem ente explicação; sem dúvida, é preciso entender que o nacionalismo
ambiciosa demais e que, no entanto, devo em penhar-m e em corresponde a um sentimento de grupo que se opõe ao senti­
justificar, com a ajuda dos quatro ensaios que se seguem mento “ individualista” . Na realidade, a nação, no sentido pre­
(caps. I-IV). ciso e moderno do termo, e o nacionalismo — distinto do sim­
( Dou o nome de ideologia a um sistema de idéias e valores ples patriotismo — estão historicamente vinculados ao indivi-
que tem curso num dado meio social. Chamo ideologia m oder­ dqalismo como valor. A nação é precisamente o tipo de socie­
na ao sistema de idéias e valores característico das sociedades dade global correspondente áo reino do individualismo como
modernas .j (A fórmula difere da precedente; reverterem os a valor. Não só ela o acompanha historicamente, mas a inter­
este ponto na conclusão desta Introdução.) dependência entre ambos impõe-se, de sorte que se pode dizer
Em primeiro lugar, a perspectiva antropológica ou com­ que a nação é a sociedade global composta de pessoas que se
parativa tem uma inestimável vantagem, a qual consiste em consideram como indivíduoSyU/H, ap. D, p. 379). É um a série
permitir-nos ver a cultura moderna em sua unidade. E nquanto de Jigações desse gênero que nos autoriza a designar pela pala-
permanecermos no interior dessa cultura, parecem os condena­ vra “ individualism o” a configuração ideológica moderna.1' Eis
dos simultaneamente por sua riqueza e por sua form a própria como a comparação ou, mais exatamente, o movimento de re­
a fragmentá-la de acordo com o traçado de nossas disciplinas tom o da índia para nós, fornece o ponto de vista, de certo
e especialidades, e a situar-nos em um ou outro de seus com­ modo a grade conceptual13 a aplicar ao dado.
partimentos (cf. cap. V II). A aquisição de um ângulo de visão Q ue dado? Os textos ou, pelo menos, essencialmente os
exterior, a colbcação em perspectiva — e talvez só ela — per­ textos. Por duas razões. Em primeiro lugar, por comodidade:
mite uma visão global que não seja arbitrária. Ai está o a nossa civilização é, em grande parte, numa proporção sem
essencial. precedentes, uma civilização escrita, e seria inimaginável coli-
O caminho está aberto desde 1964. No ponto de partida, gir-se de qualquer outro modo uma massa comparável de da-
a trama conceptual da investigação foi fornecida, m uito n atu ­
ralmente, pela inversão do enfoque metodológico que tinha
sido necessário para a compreensão sociológica da índia. A 11 N ão se quis passar aqui em revista os diferentes termos utilizados,
análise dos dados indianos exigira que nos emancipássemos de os quais são definidos no decorrer dos ensaios. Para comodidade o
leitor, reagrupamos suas definições num léxico colocado no final des e
nossas representações individualistas a fim de apreender os
conjuntos e, em última análise, a sociedade como um todo.10 volum
12 O e.fato de eu ter adotado como título, pela comodidade da antítese
Desse ponto de vista, pode-se opor a sociedade m oderna às com a sociedade hierárquica, H om o aequalis, não deve ser interpreta o
como assinalando uma preponderância da igualdade em relaçao ao in -
* • * * ’ ' — ■— fr» do indivíduo.

La Civilisation indienne et nous, o p . c it., ed. de 1975, p . 24.


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Introdução O Individualismo 23
dos.. E. também porque a dimensão histórica é essencial; a
configuração individualista de idéias e valores que nos é fam i­ certa medida, o contrário, visto que, de uma parte, existiu e
liar não existiu sempre nem apareceu de um dia para o outro. existe continuidade histórica e intercomunicação, e, de outra,
Fez-se remontar a origem do “ individualism o” a um a época conforme já foi corroborado por Mauss e, sobretudo, por Po-
mais ou menos remota, segundo, sem dúvida, a idéia que dele lanyi, a civilização moderna difere radicalmente das outras
se fazia e a definição que se lhe dava. Se refletirm os bem , civilizações e culturas. Mas, precisamente, ^o nominalismo, que
deve-se poder, numa perspectiva histórica, desvendar a gênese confere realidade aos indivíduos e não às relações, aos elemen­
da configuração em questão em suas principais articulações. tos e não aos conjuntos, é muito forte entre nósT) Em última
De fato, basta para isso um trabalho ao mesmo tem po am plo instância, nada mais é do que um outro nome do individua­
e preciso que, por uma parte, recolha os m elhores frutos das lismo ou, melhor dito, de uma de suas faces. Propõe-se, em
diversas disciplinas e, por outra, não tenha um respeito supers­ suma, analisá-lo, e ele recusa-se a ser analisado: nesse sentido,
ticioso pelos compartimentos disciplinares. Considere-se ape­ a oposição chega a um impasse. Só quer conhecer João, Pedro
nas, por exemplo, que os tratados de Locke considerados polí­ e Paulo, mas João, Pedro e Paulo só são homens em virtude
ticos contêm a ata de batismo da propriedade privada; e que das relações que existem entre eles. Voltemos ao assunto de
a filosofia “ política” de Hegel dá a form a do E stado à com u­ que nos ocupávamos: num texto dado, de um dado autor,
nidade, oposta à simples sociedade (civil). existem idéias que têm entre si certas relações e, sem essas
Pode-se fazer a tal empreendim ento toda a espécie de relações, elas não seriam nada. Essas relações constituem, em
objeções. Pode-se objetar, antes de tudo, com a im ensidade cada caso, uma configuração. Essas configurações variam de
do campo e a complexidade do objeto de’ estudo. G ostaria de um texto, de um autor, de um meio a um outro, mas não
fazer neste ponto uma advertência a fim de afastar m al-enten­ variam de todo em todo e podemos esforçar-nos por ver o que
didos. Reconhecemos que o em preendim ento nada tem de elas têm em comum em cada nível de generalização.
fá c il,e le exige muito cuidado, m uito rigor e num erosas pre­ De um modo geral, é falacioso, em ciência social, preten­
cauções, e, por via de conseqüência, tam bém exigirá m uito der, como se tem feito, que os detalhes, elementos ou indiví­
ao leitor, a quem não se poderá fornecer a exposição contínua duos são mais acessíveis à compreensão de que os conjuntos.
e sem lacunas, o vasto quadro de conjunto que o enunciado Vejamos, pois, como pensamos poder apreender objetos tão
da tarefa parece prometer-lhe. Reconhecemos até que, em toda complexos quanto as configurações globais de idéias e valores.
a sua extensão, a tarefa é desproporcional às forças do inves­ Podemos apreendê-los em contraste com outros e somente sob
tigador que a iniciou. certos aspectos. E m contraste com outros: a índia e, de um
Admitimos tudo isso mas para logo acrescentar que, em modo menos preciso, as sociedades tradicionais em geral, são
nossa opinião, os resultados obtidos até agora já justificam a a tela de fundo sobre a qual a inovação moderna se destaca.
iniciativa e desmentem a objeção radical que a declara im pos­ Somente sob certos aspectos : aí está, portanto, objetar-se-a,
sível, em princípio. Consideremos, por um instante, essa obje­ onde o arbitrário se reintroduz. Nada disso. Afirmamos .mais
ção: nega-se a possibilidade de apreender, na prática, um objeto acima que as idéias ou categorias de pensamento especifica­
tão complexo e tão vago quanto uma configuração de idéias mente modernas aplicavam-se mal às outras sociedades. Por­
e valores como aquela que visamos, a qual, no fim de contas, tanto, é interessante estudar o nascimento e o lugar ou função
não existe realmente e só pode ser uma construção do espírito. dessas categorias. Por exemplo, constata-se o surgimento nos
Assim como não há espírito de um povo, dir-se-á, tam pouco modernos da categoria econômica. É possível acompanhar sua
pode haver, acima de todas as diferenças entre indivíduos, gênese, que foi o objeto do livro já citado (Homo aequalis /).
meios sociais, épocas, escolas de pensam ento, línguas diferen­ O trabalho consiste em realizar o inventário mais completo
tes e culturas nacionais distintas, uma configuração comum possível das relações que essa categoria mantém com os^ ou­
de idéias e valores. Contudo, a experiência nos ensina, em tros elementos da configuração global (o indivíduo, a política,
a moralidade), em apurar como ela se diferencia e, finalmente,
24
In trodução O Individualism o 25

que papel essa categoria desem penha na configuração global.


Verificar-se-a que a configuração é constituída de ligações n e­ essa dim ensão ausente foi, de certo modo, substituída pela
introdução sistemática da dimensão comparativa. Num outro
cessárias e que a concepção econômica é a expressão acabada
do individualismo. É possível que, nessa pesquisa das rela­ plano, a antropologia caracteriza-se pela conjunção da atenção
ções, tenhamos apenas visto parte delas e que outras nos te- dedicada aos conjuntos e da preocupação meticulosa com o
detalhe, com todos os detalhes. Daí a preferência pelo estudo
n am escapa o. Isso. teria ocorrido involuntariam ente e não
monográfico, intensivo, de conjuntos de dimensões reduzidas,
porque tivéssemos rejeitado deliberadam ente averiguar a even-
ua existência de outras^ relações. Pelo m enos, aquelas que e a exclusão rigorosa de toda a intrusão ou pressuposição,, e
revelamos e elucidamos são razoavelm ente certas. todo o recurso à idéia preconcebida, ao vocábulo demasia o
cômodo, ao resumo aproxim ativo, à paráfrase pessoal. Ora, a
Há, no que precede, um aparente paradoxo: um a consi-
história das idéias é, evidentemente, um campo privilegia, o
eraçao que pretende ser global confessa-se incom pleta e, por- para todos esses procedim entos, dos quais fica difícil presein
an o, parcial; todo o discurso é, com efeito, parcial, com o dir, e que ameaçam encobrir os problemas na medida em que
quer o nominalista, mas pode ter em vista o conjunto, com o fazem prevalecer as concepções próprias do autor. Portan o,
aqui, ou nao. O nosso discurso talvez seja, a m aior p arte do recorrer-se-á o mais possível à monografia, seja, Por
tempo, incompleto, mas refere-se a um objeto global dado. É o
na obra citada, o capítulo sobre a Fábula das Abelhas e
inverso de^ um discurso que se considerasse com pleto mas se M andeville, ou o estudo, palavra por palavra, de passagens
retensse tao-só a objetos arbitrariam ente postulados, ou esco- de Adam Smith sobre o valor-trabalho. Esse recurso nem sem
i os. sto deve fazer ver que seria errado concluir, com
pre é possível, ou suficiente; em tais casos, teremos de nos
ase na amp ítude do objeto visado no presente estudo, que
contentar com um meio-termo. Não se podendo dispensar por
o investigador está possuído de uma am bição desm edida. A
ambiçao mantem-se no fim de contas, dentro dos lim ites do com pleto os resumos, cuidar-se-á, pelo menos, de lhes contio ar
rigorosam ente a redação. O leitor menos atento talvez se aper
descritivo, submetida ao dado. Se em algum a p arte existe
ceba apenas de uma parte dessas precauções, as quais serão
y ris nao será certamente aí mas, antes, na pretensão de reveladas, entretanto, por um a leitura cuidadosa ou um estudo
outros autores em construírem um sistema fechado ou ainda
especial. Em todo o caso, está aí o suficiente para fazer com­
em so atribuírem um sentido à realidade através de sua crítica.
preender ao leitor por que só em certa medida se lhe po e
Cumpre dizer algumas palavras sobre os procedim entos aplanar o caminho, e por que se deve, na maioria das vezes,
f. ° - ° % a ev*tar ° erro e assegurar o rigor da inves- evitar os atalhos fáceis que ele poderia esperar paia encur ar
trnnolõpira ^ 6 ^ Ue SC CSta ^0n8e de uma investigação an- cam inho.
v;irPfl1anma r. c 0 sensu mas, no entanto, procurou-se conser­
var a guma coisa das virtudes da antropologia. T am bém é ver- Resta-me apresentar sucintamente os quatro estudos que
vWos e que “no * C° m° • 'í '6'.05 de. estud° textos e não hom ens se seguem (caps. I-IV). Q uanto à forma, o leitor poderia, sem
completar o asrw tn01186^11-611013’ na0 se está em condições de dúvida nenhum a, desejar coisa melhor. Ele tem a sua frente
o ideológico npla “ consciente Pel° aspecto observado de fora, uma série de estudos descontínuos, de datas diversas, cada um
oem anefè antmnnlC'0mPOrtament0.” - Neste sentido- ° trabalho dos . quais, no original, devia ser auto-suficiente; daí resu tam
pYnliauei , , iP °®'Ca ou soc'°logicam ente incom pleto, e algumas repetições, sobretudo quanto às definições de ase.
exphquei-me a tal respetto (HAE J, p p . DCBA36-38 ), observando que
M odificaram-se e completaram-se os títulos, a fim de me or
assinalar o lugar de cada ensaio no conjunto, mas abstivemo
hert^on aueHSaSãm ,PCp n m enSaÍ0 aqui reim Presso (cap. I), R oland Ro- nos de alterar os textos (salvo, eventualm ente, quando assina
ciologia d eM a x W e b ^ R e U g i o T u , ' m l pp S ‘fp re ^ e n T e lado em nota). Por incapacidade para proceder de. outro nio o,
mas tam bém por princípio. Cada um desses ensaios, com e ei
pesquisa situa-se voluntariam ente à margem cb paradigm a w e b e rb n o .
to, condensa um trabalho extenso; o conjunto é o precipi a o,
26 Introdução O Individualism o 27

ou a ata final, da investigação e, ao reproduzi-lo ipsis verbis rentes nas diferentes línguas ou nações, mais exatamente nas
o autor afirma-se o seu responsável exclusivo. As próprias diversas subculturas que correspondem mais ou menos a essas
repetições talvez não sejam inúteis: concepções e definições línguas e a essas nações. Tomando cada uma dessas ideologias
pouco familiares ganham em ser recordadas cada vez que mais ou menos nacionais como um a variante da ideologia mo­
utilizadas. derna, devia ser possível, e isso pela prim eira vez, propor o
Quanto ao fundo, situemos agora esses estudos no con­ começo de uma comparação sistemática e, portanto, de uma
junto da investigação que realizamos e que prossegue. Desde verdadeira intercompreénsão entre essas variantes — seja a
o começo, procurei pôr à prova o m étodo em vários planos, francesa, a alemã, a inglesa — as quais permanecem até agora
segundo várias direções. Temos, em prim eiro lugar, o quadro relativamente opacas umas às outras. Na prática, o trabalho
global, ou seja, a visão comparativa, antropológica, da m oder­ incidiu principalm ente sobre a variante alemã comparada —
nidade, a perspectivação hierárquica da ideologia moderna-. É de um modo mais ou menos explícito — com a francesa. Aí
esse o objeto de estudo, como se disse, do capítulo V II. Im ­ se encontrará somente um artigo sòbre “ O V olk e a nação em
punha-se, em seguida, um prim eiro eixo de pesquisa. O eixo
H erder e Fichte” (cap. III). É breve mas o tema é absoluta­
cronológico: era preciso acom panhar na história a gênese e o
mente central para a filosofia social do idealismo alemão e,
desenvolvimento da ideologia m oderna. Nesse plano, dispõe-
se hoje de três estudos, dois dos quais figuram neste livro. por outro lado, trata-se de um a etapa importante na consti­
Referem-se a períodos históricos diferentes »— não sem certa tuição da idéia moderna de nação. Com efeito, a pesquisa de
sobreposição — e mais ainda a aspectos distintos da ideologia. conjunto está bastante avançada e espero poder fornecer em
O primeiro estuda a Igreja dos prim eiros séculos, com um a breve outros resultados; mas não resisti à tentação de apresen­
K extrapolação sobre a Reforma, e m òstra como o in divíduo tar aqui (cap. IV) alguns pontos de vista inéditos, a propósito
cristão, estranho ao m undo na origem, vê-se progressivam ente do hitlerismo.
envolvido, de um modo cada vez mais profundo; esse é o pri­ Resta um terceiro eixo de pesquisa ou, melhor dizendo,
meiro capítulo. O segundo estudo m ostra o progresso do indi­ uma terceira perspectiva que é, em grande medida, a resul­
vidualismo, a partir do século X III, através da em ancipação tante das duas precedentes. O que acontece à ideologia mo­
de uma categoria — a política — e do nascim ento de um a derna, uma vez aplicada na prática? A visão comparativa da
instituição — o Estado. É o segundo capítulo. (É tam bém , o ideologia perm itirá elucidar os problemas apresentados pela
primeiro em data desses estudos, daí súa apresentação m uito história política dos dois últimos séculos e, em particular, o
geral e um aspecto algo arcaico em relação aos desenvolvim en­ totalitarismo, definido como uma enfermidade da sociedade
tos recentes.) Finalmente, um terceiro trabalho descreve, a par­ m oderna? O cap. IV é uma contribuição para o estudo do
tir do século X V II, a em ancipação da categoria econômica, nacionalismo. Situa-se, por uma, parte, no plano geral ou inter-
a qual representa, por sua vez, em relação à religião e à polí­ cultural do m undo contemporâneo; de outra, no plano da ideo­
tica, à Igreja e ao Estado, um progresso do individualism o. logia alemã, cuja crise histórica ele explorou. Estuda-se o lugar
Esse trabalho adquiriu a dimensão de um livro, G enèse et Épa- do racismo anti-semita no conjunto das representações que o
nouissement de Vidéologie économique (H A E I), e não pode, próprio H itler dá como suas em seu livro M inha Luta.
portanto, figurar aqui. Eis, em suma, não um a gênese com ple­ Sobre esse ponto, particularm ente sensível, do totalitaris­
ta, por certo, mas pelo menos três aspectos principais da gê­ mo, gostaria de acrescentar algumas palavras. Num extenso
nese da ideologia moderna. artigo consagrado, em grande parte, a uma análise deveras be­
Um segundo eixo de pesquisa foi escolhido desde logo: nevolente e penetrante de H AE I, Vincent Descombes abordou
a comparação entre culturas nacionais na Europa. Com efeito,
a relação entre a sociologia de Durkheim , de Mauss e o tota-
a ideologia moderna reveste-se de formas notavelm ente dife-
Introdução O Individualism o 29
28

litarismo.151
6Ele pergunta-se que relação haverá en tre o holism o derna, aparece de im ediato como um empreendim ento de men­
de Durkheim e de seus discípulos e o totalitarism o. N ão terá tira e opressão, e o nazismo denuncia-se como uma mascarada.
Durkheim, ao desejar para as nossas sociedades “ horas de efer­ O individualism o é o valor fundam ental das sociedades mo­
vescência criadora”, em 1912, idealizado sem qu erer o nazis­ dernas. H itler não lhe escapa mais do que qualquer outro e o
mo vindouro, e Mauss não confessou seu em baraço diante do ensaio que lhe diz respeito neste livro tenta, precisamente,
acontecimento (op. cit., pp. 1023-1026)? H á m ais: Descom- m ostrar que um individualism o profundo está subentendido em
bes parece sugerir, em últim a análise, que eu reproduzo, por sua racionalização racista do anti-semitismo.
minha vez, o “ infortúnio” de D urkheim , a “ catástrofe da esco­ Com efeito, o totalitarism o exprim e, de m aneira dram á­
la durkheimiana” perante o totalitarism o. O ra, é grande a dis­ tica, algo que se encontra sempre de novo no m undo contem­
tância entre a definição do totalitarism o como contraditório porâneo, a saber, que o individualism o é, por uma parte, oni­
que eu dou e que a crítica cita (p. 1026) e o ponto de vista potente e, por outra, perpétua e irrem ediavelm ente perseguido
comum de um simples retorno à com unhão prim itiva ou m e­ por seu contrário.
dieval, que Mauss retomou por sua vez. Parece, p ortanto, haver Eis um a formulação m uito vaga e, no plano geral, é difícil
aí desatenção. Acontece que, num ponto preciso e fundam ental, ser mais preciso. E, não obstante, no estágio atual da pesquisa,
eu assinalava a superação das form ulações durkheim ianas. essa coexistência, na ideologia do nosso tempo, do individua­
Logo no começo de HH, distinguindo os dois sentidos da p a­ lismo e de seu oposto impõe-se com mais força que nunca.
lavra indivíduo (o homem particular em pírico e o homem É nesse sentido que, se a configuração individualista de idéias
como portador de valor),10 eu m ostrava num a nota (3.a), com e valores é característica da m odernidade, não lhe é coex-
base no exemplo de uma passagem do próprio M auss, a neces­ tensiva.
sidade da distinção. Ora, uma vez estabelecida essa distinção,
Donde provêm, na ideologia e, mais am plam ente, na so­
é impossível a confusão que Descombes censura nos durkhci-
ciedade contem porânea, os elementos, aspectos ou fatores não
mianos. Foi ao que a crítica não prestou suficiente atenção.
individualistas? Estão vinculados, em prim eiro lugar, à perm a­
É certo que Durkheim viu, de fato, o individualism o como nência, ou “ sobrevivência” de elementos pré-modernos e mais
valor social,17 mas não o descreveu de modo indelével em seu ou menos gerais — como a família. Mas também têm a ver
vocabulário, não acentuou suficientemente a distância que esse com o fato de que o próprio emprego dos valores individua­
valor abre entre os modernos e os outros,18 e só foi por isso listas desencadeou uma dialética complexa que teve por resul­
que ele pôde, ocasionalmente, na passagem de Formes elemen- tado, nos mais diversos domínios, e para alguns desde fins
taires que Descombes sublinha, im aginar para os .m odernos do século X V III e começos do X IX , combinações em que eles
uma “efervescência” comunitária à m aneira das tribos aus­ se m isturam sutilm ente com seus opostos.10
tralianas. A questão é relativamente simples — e, graças a Karl
O mesmo já não ocorre quando se distinguem os dois Polanyi, clara — em matéria econômico-social, onde a aplica­
sentidos de “ indivíduo” e quando se coloca nessa base a in­ ção do princípio individualista, o “ liberalism o” , obrigou à in­
compatibilidade entre individualismo e holism o ( HH, § 3. ): trodução de medidas de salvaguarda social e redundou, final­
todo o retomo pretendido ao holismo, no plano da nação mo- mente, no que se pode cham ar o “ pós-liberalismo” contem­
porâneo.
' Um processo mais complexo, muito im portante mas só ti­
15 Esse estudo foi publicado em Critique, 366, novem bro de 1977, p p .
m idamente detectado até agora, vamos encontrar no domínio
998-1027, sob um título deveras inesperado: “Pour elle un Français doit
mourir” .
16 Cf. no fim do volume, o léxico, s .v . indivíduo.
17 Cf. Steven Lukes. Émile Durkheim, Penguin Books. 1973, p- 3 j>8 e ss. 19 Abordei esse ponto a propósito das idéias econômicas, no final do
is Foi essa mesma distância que vimos acentuar-se nitidam ente ao pas­ meu prefácio para Lã Grande Transformjation, op. cit.
sar de Mauss para Polanyi.
30 Introdução
O Individualism o
31
das culturas e resulta, em suma, na sua interação. As idéias
e os valores individualistas da cultura dom inante, à m edida
gico, alguma outra coisa que nada tem ° reS’ n° p Ia n o ideoI°-
que se propagam através do m undo, sofrem localm ente m odifi­
definiu diferencialm ente como moderno v Tfr C° m -° que se
cações que dão origem a novas formas. O ra, e está aí o ponto isso: descobrimos que numerosas idéincl,, i bem mais do 3ue
inapercebido, essas formas modificadas ou novas podem pas­ vam como intensamente modernas sã o ^ ° rCSi.3 U? se a c e ita "
sar, por sua vez, para a cultura dom inante e nela figurar como tado de uma história em cujo transcurso 3 rcaic^ e’ ° resup
elementos modernos de pleno direito. A aculturação à m oder­ m odernidade ou mais exatamente, as id é ia T v Ílm è sIn d fv W u í
nidade de cada cultura particular pode, assim, deixar um p re ­
cipitado duradouro no patrim ônio da m odernidade universal. listas e suas contrarias combinaram-se intimamente
Poder-se-ia assim falar de “ pós-modernidade” para o mun­
Além disso, o processo é, por vezes, cum ulativo, no sentido de
do contemporâneo, mas a tarefa consiste muito mais em anaH-
que esse mesmo precipitado pode, por sua vez, ser transfor­
sar essas representações mais ou menos híbridas em acomna-
mado numa aculturação subseqüente. nhar no concreto as interações desde o instante em que nasce­
Não se imagina por isso que, através dessas adaptações, ram e seu destino ultenor, em suma, cm estudar a história e
a ideologia moderna dilui-se ou debilita-se. M uito pelo con­ a ideologia dos dois últimos séculos numa perspectiva inter-
trário, o fato notável, e preocupante, é que a com binação de cultural.
elementos heterogêneos, a absorção pelo individualism o de ele­
mentos estranhos e mais ou menos opostos, tem por resultado
uma intensificação, um recrudescim ento em potência ideoló­
gica, das representações correspondentes. Estamos aqui no ter­
reno do totalitarismo, com binação involuntária, inconsciente,
hipertensa, do individualism o e do holism o.
Aliás, foi a propósito do breve estudo sobre H itler que
introduzi esta digressão, que é tam bém um a conclusão. O m u n ­
do ideológico contem porâneo é tecido da interação de culturas
que teve lugar desde, pelo menos, o final do século X V III,
é feito das ações e reações do individualism o e de seu c o n trá­
rio. Não é este o lugar para desenvolver esse ponto de vista
e é muito prem aturo fazê-lo; ele é som ente o resultado geral
da pesquisa empreendida até agora ou, m elhor dizendo, a
perspectiva sobre a qual ela se debruça, como um a nova ver­
tente a explorar. Isso é acom panhado de um deslizam ento do
ponto de vista em relação ao início desta pesquisa, e até, no
plano do vocabulário, de um certo em baraço, o preço pago
pelo caminho percorrido. Para com eçar, procurou-se isolar o
que é característico da m odernidade, em oposição ao que a
precedeu e ao que com ela coexiste, e descrever a gênese desse
algo a que chamamos aqui individualism o. D urante essa e ta p a ,
houve a tendência acentuada para identificar individualism o
e modernidade. O fato maciço que ora sc im põe é que existe
no mundo contem porâneo, mesmo em sua parte ‘ avançada ,
“ desenvolvida” ou “ m oderna” por excelência, e até no plano

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