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REPRESENTAÇÕES FOTOGRÁFICAS

DE VELHOS FERROVIÁRIOS EM NATAL/RN

WAGNER DO NASCIMENTO RODRIGUES*

Este trabalho faz parte


do início de minha pesquisa de
doutorado na qual enveredo
nos meandros da história oral,
usando a fotografia como
estratégia de aproximação dos
entrevistados. Vim entrar em
contato com o conjunto de 31
fotografias por ser bisneto do
ferroviário Liecy Bonifácio do
Nascimento, cujo acervo pessoal ainda é composto por sua caixa de ferramentas, sua
identidade ferroviária, entre outros documentos diversos. Liecy atuou como chefe das
oficinas metálicas da EFCRGN de 11 de agosto de 1954 a 17 de março de 1956.
Dezenove fotografias são compostas de eventos relacionados ao Central Futebol Clube
(CFC) e a Liga Artística Operária. Nessas são registrados as diversas sociabilidades do
clube: carnavais, missas, jogos de futebol, entre outros. Doze fotografias estavam
relacionadas ao seu período de “mestria”. Ao final da função de mestre, ele registrou
cuidadosamente em um documento as Locomotivas que passaram nas oficinas
metálicas, indicando o início dos reparos e sua finalização, subdividindo os reparos em
“gerais”, “médios” e “pequenos”. Ao fim dos reparos, reunia sua equipe e a fotografava
juntamente com a locomotiva consertada. (Fig.01)
Após um período de menos de dois anos, Liecy seria substituído por outro
mestre, que continuaria o mesmo trabalho que havia feito. Ele era soldador e o cargo
exigia a especialização de serralheria, que não possuía. Provavelmente quis registrar
com afinco essa passagem fugaz pelo cargo e romper o tempo

*
Doutorando do Programa de Pós Graduação em História da Universidade Estadual de Campinas –
Unicamp. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP.

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”linear/horizontal/prosaico”, valorizando o “tempo vertical” dessa experiência, o
condensado em instantes mágicos (SILVA, 2008: p. 92). Ao fim de cada conserto, onde
uma locomotiva passava cerca de 3 meses nas oficinas, a única fagulha dessa jornada
era registrada em uma fotografia, que buscava recuperar a experiência vivida e
perpetuar uma temporalidade fadada a ser destroçada pelos autômatos ritmos industriais
da sociedade. Para Lissovsky, esse paradoxo, transparece bem na posição singular de
Walter Benjamin quanto à fotografia:
Pois, se a fotografia é a “conquista fundamental de uma sociedade onde a
experiência declina”, isto é, uma sociedade submetida ao choque e ao tempo
indiferente dos ritmos industriais, uma sociedade, portanto, que se torna
cada vez mais instantânea, a recuperação dessa experiência – como
experiência do tempo – só pode se dar em um instante particular, destacado
de uma série supostamente homogênea, e no qual toda temporalidade está
subitamente implicada. (LISSOVSKY, 1998: p. 25)
Tive oportunidade de conhecer esses instantes da vida de Liecy a bem pouco
tempo. A convivência que tive com ele foi superficial e inconstante, que veio falecer
quando eu tinha 8 anos de idade. Conheci sua história quando a família decidiu vender a
velha casa do centro, me chamando para olhar a assustadora “mala da cobra” que ele
guardava cuidadosamente, longe do olhar curioso dos netos e bisnetos. Sua velha caixa,
fechada com um sólido cadeado, guardava algo além de seus preciosos instrumentos de
trabalho. Dentro dela estavam também esses documentos e fotografias, separados em
uma caixa de papelão. As lembranças guardadas nessa caixa também se estendiam a
vida familiar, contendo fotos de seu primeiro filho, primeiro neto e uma fotografia
minha, seu primeiro bisneto. Qual não foi minha surpresa ao me ver duas vezes naquela
caixa. Me vi representado numa fotografia de uma criança agora distante, e estudando
seu espaço de trabalho no mestrado, sem saber dessa ligação tão próxima de minha
história familiar com os trilhos.
Abrir a caixa naquele momento, enquanto estava finalizando o mestrado, me
deixou com saudades de uma convivência que não tive com Liecy e com sede de
conhecer mais sobre seu universo de trabalho, as pessoas que estavam naquelas fotos e
o significado daquelas imponentes locomotivas para ele. Queria fazer emergir o tempo
naqueles instantâneos.

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Durante o processo de construção do projeto de doutorado, foi preciso fazer um
levantamento inicial das fontes. Decidido a trabalhar com os ferroviários e suas
sociabilidades no espaço de trabalho, realizei algumas entrevistas, primeiro com
parentes, depois com outros ferroviários indicados pela família. Utilizei as fotografias
de Liecy como forma de aproximação dos entrevistados, que facilitou o contato e abriu
espaço para narrativas relacionadas a seu universo de trabalho.
Ao ouvir as entrevistas para o processo de transcrição, me deparei com uma
postura que não havia percebido durante as entrevistas. Fiz um trajeto semelhante ao de
João Moreira Salles no documentário Santiago, sobre o mordomo que trabalhou anos
em sua família. Após rever o antigo material de um documentário mal sucedido, pegou-
se tão comprometido em uma narrativa do próprio passado – chegando a manter as
antigas relações de poder patrão- mordomo – , que pouco escutou o que Santiago tinha a
falar. Eu também estava armado do desejo de recriação de um passado não vivido, de
forma que não escutava o que esses velhos ferroviários tinham a dizer. Apercebi-me
dessa postura quando perguntava insistentemente por Liecy, ficando impaciente quando
falavam de suas vidas ou quando as fotografias relembravam situações diversas. Vi o
quanto era difícil opor subjetividade e objetividade nesse trabalho, que resulta da
“interação entre pesquisadores, pesquisados, produtos e contextos históricos.”
(FELDMAN-BIANCO, 1998: p. 12)
Felizmente muitas das imagens mentais desses ferroviários foram registradas
durante esse levantamento preliminar. Este artigo trata especificamente desse grupo de
fotografias e a leitura que dois ferroviários deram a esses instantâneos, leituras
permeadas por ambigüidades e fluidez. As fotografias que utilizei foram produzidas em
contexto bastante específico, entretanto “o observador da foto incorpora-a entre suas
imagens mentais, tranferindo-a de um tipo para outro de memória.” (MOREIRA
LEITE, 1998: p. 42-43)
As fotografias despertariam a memória, seriam as Madelaines que Proust aponta
em “Busca do Tempo Perdido”. O autor faz o mesmo tipo de relação com as imagens,
que também emprestariam o “movimento continuo do pensamento”:
A memória visual involuntária exerce uma função cognitiva emprestando
várias dimensões e movimentos à imagem fixa de duas dimensões. (...)
A transposição da fotografia para a memória empresta-lhe o movimento
contínuo do pensamento, que é o que se torna necessário fazer para que a

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foto isolada exprima o seu conteúdo latente e não explícito. (PROUST apud
MOREIRA LEITE, 1998: p. 38)
Movimento, sobretudo físico, sempre presente nas memórias desses ferroviários.

Eufrázio Trindade, 84 anos. Funcionário burocrático aposentado da EFCRGN. Duas


entrevistas, uma realizada em 11/07/2008 e outra em 31/07/2008.
Eufrásio Trindade entrou na EFCRGN em 1947 como diarista e em 1950 passou
no concurso promovido pelo DASP como telegrafista. Entretanto nunca chega a
desempenhar a função, ocupando-se em serviços burocráticos, de desenho técnico e
arquivo.
Numa série de fotografias dos eventos promovidos pelo CFC, a fotografia de um
estandarte de carnaval o fez deter-se durante alguns instantes. Eufrásio fazia desenho
técnico e freqüentemente era chamado para desenhar essas peças. Relata então uma
contenda em que esteve envolvido, acontecida no carnaval, quando a rivalidade de
blocos e clubes era bastante acirrada. Eufrásio participava de outro bloco de carnaval,
“os Deliciosos”, mas foi chamado pelo CFC para fazer o estandarte do seu bloco,
reproduzindo nele o ramal da EFCRGN, sobreposto a uma locomotiva. Posteriormente
foi perguntar a secretária quem iria fazer o estandarte do bloco, que se recusou a falar:
Aí toda vida fui sabido, de trouxa, metido a sabido, fiz dois originais.
Menino! Quando eu cheguei, passou o carro cantando: prepararam o
estandarte! Doutor Walmor mandou me chamar. A turma da metálica tava
toda lá! Acabaram comigo!"Mas rapaz, Eufrásio, a gente ajuda você e você
não ajudou a gente!" Ai eu digo: "Vamo devagar com o santo que o andor é
de barro!" (risos) Aí eu olhei assim... (...) Aí fizeram de cetim! Cetim róseo,
azul e branco. Aí fizeram na máquina de costura e parece que a mulher, a
pessoa que botou não apertou... chamava-se bastidor, aquilo que a mulher
bordava. Rapaz, todo engilhado! Aí os caras, metade em peso contra mim!
(...) Cheguei, fui na seção, abri meu armário, tirei o original, que eu fiz os
dois. (...) Pois eu tenho esse retrato, quem desenhou esse retrato, da máquina
400, fiz o ramal, com o mapa do Rio Grande do Norte. Quando ele viu o
estandarte, aí disseram que eu tinha feito sabotagem. (TRINDADE, 2008)

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A importância dessa peça, fotografada
com destaque e ladeada de lideranças do clube
(Fig. 02) transparece bem no relato de Eufrásio.
Sua confecção envolvia toda a empresa e o
resultado final era compartilhado por todos os
funcionários. Sua fidelidade ao clube estendia-se
a empresa de maneira geral. Fazer parte de outro
bloco o colocou em posição de defesa, fazendo-o
reproduzir o mesmo desenho para se resguardar
de possíveis acusações. Eufrásio faz questão de
referenciar elementos específicos da EFCRGN
no desenho, tais como o traçado da linha e o
desenho da locomotiva 400. O número apareceu nesse relato como importante elemento
de identificação da locomotiva, que chega a se personalizar em forma de nomes
próprios femininos e apelidos.
Ao apresentar as fotografias dos grupos de ferroviários com as locomotivas,
Eufrásio não conseguiu distinguir quem pousava, nem mesmo de qual locomotiva se
tratava. Comecei então a enunciar os números das locomotivas, que prontamente
começou a descrever. Um tecido constituído de números, procedências, apelidos,
maquinistas, dimensões:
102, 105, Inglesa. 208 era da Great Western. Era bronze, alemã. Tinha as
catitas, as máquinas pequenininhas, as máquinas pra manobras. Pra não
tirar as máquinas da sala. 401 era Genésio Luzia o maquinista. Humberto
Cavalcanti era 400.A 401 e 403 era Valentim. Valentim não, era um velho
bem alto, que era da Great Western, que era das manobras. A 100 era
Osvaldo, a máquina era inglesa. A caldeiras da Great Western eram todas de
bronze. 212 era Inglesa. A dois era a catita, eram as duas pequenas. Pode
colocar catita, que era o apelido! Catita! (...) A 400 era alemã. 401, Alemã.
212, Inglesa, era Amaro o maquinista. Tinha Antonio Patrício, que chamava
Carnaúba. Tinha Serafim, Miranda, tem os nomes dos maquinistas, eu me
lembro de um bocado deles, né?(TRINDADE, 2008)
Após enumerar as locomotivas Eufrásio relembra o momento em que as
locomotivas a vapor foram substituídas pelas movidas a diesel. Os números o fizeram
relembrar o momento em que as máquinas foram vendidas e desmontadas no próprio

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pátio ferroviário, uma cena que assistiu da janela de seu escritório. O bronze das
caldeiras, exposto no pátio, assim como a violência das marretas, procurando
vorazmente o metal nobre dão o tom de sua fala:
Tinha a máquina alemã e inglesa. A máquina alemã, a caldeira era toda de
bronze. Quando a estrada de ferro passou pra rede, aí houve uma
concorrência de vender máquinas velhas. Então apareceu um baiano, que
comprou tudo é que foi de máquina velha. (...) Lá no escritório central,
trabalhava no lado da sombra, no primeiro andar, via todo o movimento. A
primeira máquina que ele comprou, veio 10 trabalhadores com ele. Era com
a marreta! Não era com fogo não. Era só pra quebrar os pontos pra soltar o
bronze. A primeira máquina que ele abriu era bronze. (TRINDADE, 2008)
Eufrásio tenta descrever o ambiente onde aconteceu o desmonte, mas o espaço,
importante elemento de constituição da memória, parece se desfazer, deixando-o
bastante angustiado: “Do outro lado tinha a vila ferroviária e depois vinha... o...
Apagou. Tá me dando um apagão que eu me esqueço assim das coisas. Eu queria pegar
certo, pra fazer o negócio tudo direitinho. Entendeu?”
Nesse momento identifico Liecy em uma das fotografias, fazendo-o relembrar
um acidente apareceu nas outras entrevistas, ocorrido com Valentin, o Mestre das
Oficinas Metálicas que assumiu depois da saída de Liecy. Por várias vezes citou o nome
de Valentin na entrevista, inclusive quando descreveu as locomotivas através dos
números, sugerindo a força desse evento na constituição de suas lembranças.
O Mestre da Oficina, Liecy, se ele tivesse na gestante, quando houve o
desastre, quem ia era ele. Foram até Angicos, pra inauguração. Entre
Fernando Pedrosa e Angicos, tinha uma ponte. Nessa ponte ele vinha do
tender. Por que a máquina é completa. O tender, nas laterais, são tanques,
por isso tem o nome de tenders. (...) Quando ele desceu aqui, que passou, já
vinha na parte alta, aí o vergalhão da ponte, pegou nisso aqui dele (aponta
para a testa), abriu! Foi pra traz! Morreu na hora! (TRINDADE, 2008)
A morte e o medo do esquecimento são elementos importantes no seu relato,
aspectos que aparecerão de outra forma na fala do próximo entrevistado.

Paulo Ferreira de Jesus, 76 anos. Soldador aposentado das oficinas metálicas da


EFCRGN, atual presidente da Liga Artística Operária. Uma entrevista, realizada em
4/8/2008.

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Paulo Ferreira entra na EFCRGN em 1949, por influência do pai, que também
era ferroviário, através da verba de "empedramento" na quarta divisão da estrada,
responsável pelos serviços de alvenaria da estrada de ferro. Entretanto não se adapta ao
serviço e resolve mudar para as Oficinas Metálicas, lá trabalhando durante mais de 30
anos.
Paulo começa passar as
fotografias e para em uma delas, onde
dois ferroviários posam na frente da
locomotiva. (Fig. 03) Um deles prende
os dois braços na parte posterior da
máquina e olha para a câmera,
enfrentando o observador. Outro, na
parte lateral, não se segura em parte
alguma, colocando um pé a frente,
parece acompanhar o movimento do
trem. Ele não olha para a câmera, seu rosto está voltado para o trajeto da locomotiva, o
óculos rayban, escondendo o seus olhos, magnifica uma postura tão altiva, impiedosa e
indiferente quanto a da máquina. O ângulo da fotografia coloca o trem em perspectiva,
acentuando a impressão de movimento. Ele se detém algum tempo nessa imagem, muito
provavelmente estruturada cuidadosamente pelo fotógrafo, e anima essa cena com uma
de suas memórias, embalada por velocidade, aventura, perigo e sangue:
Uma máquina dessa passava seis meses ali pra fazer reparo. Passava seis
meses. Aí quando aquela seção terminava de fazer o serviço, aí viajava com
ela pra Angicos, pra esses cantos assim, ou pra Nova cruz. (...) a gente ia
aqui na frente da máquina, aí era aquele troço todo. Aí um dia, a gente ia se
acabando ali, vindo de Nova Cruz. Quando chegou ali em Canguaretama, a
máquina não teve força pra subir, aí desceu, aí fez carreira, passou com
tudo! Quando chegou na frente pegou um cavalo, aí o cavalo veio aqui
assim, em cima da gente! Se ele bate na gente mesmo, a gente tinha caído
com ele. Ai no que o cavalo caiu, a máquina... (imita o ruído da locomotiva)
Ficou só os pedacinhos! Quando a gente chegou em Goianinha, foi que foi
lavar tudinho isso aqui, e a catinga tava que ninguém agüentava!... Ave
Maria!... (Silêncio) Isso aqui é pra mim é uma coisa muito importante, uma
coisa dessas... (Silêncio) É rapaz... (JESUS, 2008)

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Enfatiza no início do relato o tempo duro e rotineiro que antecedia esses
instantes, congelados e glorificados nas fotografias. Mais a frente lamenta o
desconhecimento dessa rotina por parte do “pessoal de fora”. Assim como os
trabalhadores do porto, os ferroviários construíam muito de sua cultura compartilhada a
partir de uma crença “de que os „outros da sociedade‟ os consideram um grupo de
„status baixo.‟” (SILVA, 1995, p. 12)
O pessoal aí fora dizia: o pessoal das estradas de ferro são uns malandros!
Mas a pessoa que quisesse ver, fosse lá pra dentro, pra ver. Por que (...)
quando era pra desmontar uma máquina dessas, a gente passava uns dois
dias pra desmontar ela e era dando duro mesmo! Botava um macaco na
frente, botava outro lá atrás (...) pra roda sair e depois a gente botar ela em
cima de um estaleiro, pra puder ir tirando de peça em peça. Aquelas peças a
gente levava pra uma seção, pra encher de solda e levava pra outra pra
tornear e assim ela passava seis meses pra poder sair. E era duro! Não era
negocinho de dizer: não, essa peça aqui é manerinha! (JESUS, 2008)
A valentia e força são enfatizadas por Paulo tanto no ambiente das oficinas
como nas viagens de teste que finalizavam os consertos. Esses “símbolos de virilidade”
eram sempre acionados como elementos de hierarquização e disciplinamento (SILVA,
1995, p. 34). Ao ver as fotografias dos eventos sociais promovidos pela CFC, afirma
não ter participado e que por conta disso era motivo de chacota entre os colegas, que
tinham as festas e a bebida como importantes elementos de sociabilidade no grupo e
também como símbolos de virilidade.
Eu toda vida fui um cabra medroso. (risos) Os caras me chamavam de
covarde. Quando chegou o sindicato dos ferroviários, teve muitas festas.
Mas aí chegava a zuada: Hoje ninguém trabalha! Aí todo mundo ia pra festa,
e eu pegava ia pra casa! (risos) Aí no outro dia o cara: mas rapaz, você é
covarde! Não é não rapaz... é que eu não gosto mesmo de festa... Aí não ia
né? Aí quando chegou o négócio da revolução, houve muitos colegas meus
presos, sem entender de nada, que não sabia que era subversivo. Mas porque
ficava na frente lá e esculhambando. Aí parece que tinha gente do exército e
tirava o retrato dele, no fim aconteceu muitas besteirasinhas. Olha aí... eu
como não entendia nada mesmo.(JESUS, 2008)
Os eventos sociais promovidos pelo CFC estariam ligados a movimentos mais
amplos de sindicalização, luta por direitos trabalhistas e de filiação a partidos de
oposição? Ainda não conseguimos esclarecer devidamente esse aspecto. Entretanto,

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além da não identificação com esses eventos, transparece também o medo de ser
confundido com os “subversivos” e ser capturado pelas lentes do policiamento.
Um medo do presente é que dá o tom do relato da memória de Paulo, quando vê
uma fotografia de um “Auto de Linha” (Fig. 04).
Ó pa você vê como é as coisas hoje. Hoje em dia pode sair um carro desses,
daqui pra Nova Cruz, daqui pro fim da outra Linha, cheio de dinheiro pra
fazer pagamento dessa linha aí todinha? Podia fazer um negócio desse, com
um carro desse? Por que um carro desse, meu amigo, um carro desse todo
aberto aqui, não tem segurança de nada! (...) Ia aqui sabe o que? Dois
pagador, três pagador, e o cara manobrando isso aqui, pra Nova Cruz, pra
esses canto tudinho. Hoje em dia nós temos essa segurança? Então, não tem!
(JESUS, 2008)
A insegurança contemporânea é enfatizada, agravada pela fragilidade de seu
corpo envelhecido. O plano do presente é quem aciona o passado. (BOSI, 1979)
Os dois ferroviários
tiveram experiências bastante
diversas em relação as
fotografias, em parte ancoradas
pelas funções que
desempenharam na ferrovia.
Nota-se no relato de Paulo uma
maior intimidade com as peças e
a tecnologia ferroviária. Suas
memórias sempre estão
articuladas a um contato muito próximo das locomotivas. Os eventos sociais fora do
ambiente de trabalho parecem se anular frente a importância desse maquinário nos seus
relatos. Achutti (2000) enfatiza essa intimidade dos operários com as locomotivas, onde
o viril e o lúdico sempre estão presentes nos seus ambientes de trabalho:
(...) apesar do trabalho pesado os mecânicos pareciam-se com meninos com
seu brinquedo preferido. Toda uma vida ao lado de locomotivas que
conheciam pelo nome, as mais antigas tinham apelidos, e a mais antiga de
todas, que não era mais usada para puxar os trens, estava lá como um
brinquedo de estimação ainda em funcionamento. Os meninos também
falavam da potência das maquinas como conversa de homens quando se
juntam para falar de sexo. (ACHUTTI, 2000)

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Intimidade muito bem representada nos filmes The Train de John Frankenheimer
e La bête Humaine de Jean Renoir. Ambos são ambientados em paisagens ferroviárias e
mostram um processo de trabalho ainda artesanal nas oficinas mecânicas e um
conhecimento quase psicológico das locomotivas, onde elas tem órgão, nomes e até
mesmo sentimentos.
Eufrásio, mesmo distante do ambiente das oficinas, mantêm essa relação de
intimidade com o maquinário. O suporte de sua memória é diverso, não conhece tão
bem a tecnologia, mas teceu uma rede de nomes, números, materiais e dimensões, a
partir de um vocabulário que manteve contato, mesmo que a distância, de seu escritório
situado também no pátio ferroviário. Os eventos sociais promovidos pelo CFC para ele
tem outro peso, deles participou e pode firmar sua voz.
Paulo suspira e silencia enquanto relembra suas aventuras nas locomotivas,
Eufrásio teme o esquecimento do espaço de trabalho em sua memória. Também
partindo do medo do esquecimento, fui em busca dos sujeitos dessas fotografias.
Encontrei leituras bastante diversas das quais esperava, que ampliaram não só o
entendimento a respeito das imagens, mas também da complexa relação entre a
memória e as fotografias.

Bibliografia
Acervo pessoal do ferroviário Liecy Bonifácio do Nascimento.
ACHUTTI, Luiz. Sobre barcos e trens, ou a história da foto que não fiz. In: Revista
Studium, n. 2. Campinas: Unicamp, 2000. Disponível em:
http://www.studium.iar.unicamp.br/dois/2.htm. Acesso em 20/05/2009.
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade. São Paulo: T.A. Queiroz, 1979.
_________. O Tempo Vivo da Memória. 2. Ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.
FELDMAN-BIANCO, Bela; MOREIRA LEITE, Míriam Lifchitz (orgs.). Desafios da
imagem. Campinas: Papirus, 1998.
LISSOVSKY, Maurício. Sob o signo do “Clic”. In: FELDMAN-BIANCO, Bela;
MOREIRA LEITE, Míriam Lifchitz (orgs.). Desafios da imagem. Campinas: Papirus,
1998.
JESUS, Paulo Ferreira de. Natal: 2008. 1 cassete son. (90 min). Entrevista concedida a
Wagner do Nascimento Rodrigues.

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LA BÊTE Humaine. Direção: Jean Renoir. Produção: Raymond Hakim e Robert
Hakim. Interpétres: Jean Gabin, Simone Simon e outros. Paris: Paris Film, 1938. 1
DVD (100 min).
MOREIRA LEITE, Míriam L. Texto visual e texto verbal. In: FELDMAN-BIANCO,
Bela; MOREIRA LEITE, Míriam L. (orgs.). Desafios da imagem. Campinas: Papirus,
1998.
SANTIAGO. Direção, Produção e Roteiro: João Moreira Salles. Brasil: Videofilmes
Produções Artísticas Ltda., 2007. 1 DVD (79 min).
SILVA, Anaxsuell F. da. A religiosidade em pessoa. São Paulo: Blucher Acadêmico,
2008.
SILVA, Fernando Teixeira da. A carga e a culpa. Santos: Hucitec, 1995.
THE TRAIN. Direção: John Frankenheimer. Produção: Roteiro: Franklin Coen, Frank
Davis, Albert Husson, Walter Bernstein. Interpretes: Burt Lancaster, Paul Socofield e
outros. EUA/França/Itália: Dear Film Produzione, 1964. 1 DVD (140 min).
TRINDADE, Eufrázio. Natal: 2008. 2 cassetes son. (180 min). Entrevista concedida a
Wagner do Nascimento Rodrigues.

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