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[aossie 9 Universidade Federal de Santa Catarina Resumo ‘A sitmacio humana no mmindo dos aparatos maquinicos ¢ das formas tecnolégicas de relacio e subsisténcia exige uma revisio da antocompreensio humanista, A tecnologia moderna estabelece uma ruptura com os modos de vida milenares baseados em artefatos pré-cientificos, mas isso nao implica uma perda ou destruicio da esséncia natual ¢ menos ainda humana. Pois, a existéneia bumana nao é antes poética e depois por acidente técnica; e também no € antes carente e indeterminada e por isso técnica, e mito menos ptiotitariamente desejo natural e entio derrelicio tecnolégica. © tumano instaurou-se poética ¢ tecnologicamente ao conformar 0 mundo pelo uso de artefatos: 0 seu ter nmundo é sempre tum perfazer smundo por meio do artificio. Palavras-chave: Humano; Técnica; Ficcao. Abstract The human situation in the world of machinic apparamses and technological forms of relationship and livelihoods requires a revision of the humanist image. Modern technology provides a break with the ancient ways of life based on pre-scientific artefacts, bnt this does not imply a loss or destruction of the nature and human essence. Thus, human existence is not before poetic and then by accident technique; and also not before needy and indeterminate and so technical, much less prior natural desire then technological error. The human brought up poetic and technologically and conform the world by the use of artifacts: his have world is always make up the world through fiction. Keywords: Human; Technique; Fiction, Filosofia e Educagao Volume 6, Nimero 3 dossié 10 conto The machine stop de E. M. Forster, de 1909, apresenta a utépica situagao na qual os humanos sio a condigao para a vigéneia da maquina, conquanto vivem como simbiontes que possibilitam a reproducdo do sistema maquinico que, tal como as plantas em relagio aos insetos, deles dependem para se reproduzir. O que era entio utopico ainda permanece fora de nossa vista; todavia, a atual populagdo humana, nos pontos basicos de sua sociabilidade e relago com o ambiente natural, pode apenas subsistir por meio do uso sistemitico e continuo de artefatos técnicos ¢ sistemas maquinicos: alimentagdo, acesso a agua potavel, transporte, communicagio, energia, informagio, recreagio, sade, socializagao, educagio, Os lnmanos agora dependem do fimcionamento continuo e eficiente de suas priprias eriagdes para viverem do modo como vivem:; sistemas maquinicos e ambientes tecnolégicos conformam o mundo humano ¢ a formagao das novas geragdes. A era industrial no completou duzentos anos, e mio é menor o seu impacto na cultura hoje, mesmo se j nao ouvimos humanos guitarem: Ah poder exprimir-me todo como um motor se exprime! Ser completo como uma méquina! Poder ir na vida triuufante como wn automével iltimo-modelo! Esses so versos da Ode Triunfal, de 1914, de Alvaro de Campos, um attificio do poeta Femando Pessoa, Ui séeulo depois o firurismo ja nao 6 180 poético, embora os seus cantores estejam por toda parte: apenas as palavras mudaram, pois hoje se ouvem no mesmo tom esperangoso como mantras as palavras “singularidade”, “pés-humano”, “inteligéncia artificial”, “rede”, “complexidade”, “informagao”, “bioinformatica”. O desejo de ser outro que humano talvez esteja até mais agugado. Essa atragao que nos Filosofia e Educagao Volume 6, Nimero 3 utubro de 2014 dossié di Janga em busca das mais ousadas téenicas ¢ tecnologias ndo ¢ de todo imumana, pois nao foi assim que nos algamos para alm da vida animal e dos ciclos naturais? Hamlet quer ser maquina A sitagio humana no mundo dos aparatos maquinicos e das formas tecnolégicas de relagdo e subsisténcia foi objeto de consideragdo por varios pensadores do século pasado, entre os quais destacam-se Heidegger, Simondon e Elull, Nas suas consideragdes sobre a técnica e os sistemas tecnoldgicos sobressai claramente o fato de que a tecnologia modema estabelece uma muptura com os modos de vida milenares baseados em artefatos técnicos pré-cientificos. Com efeito, até o surgimento dos rel6gios, teares mecinicos e moinhos a vapor, os humanos viviam de tal modo que eles mesmos podiam ainda, individualmente ou em grupo, fazerem os instrumentos e apetrechos necesssirios para manutengao e reprodugao da sa vida. Uma diferenga produziu-se no momento em que os conhecimentos da nova ciéneia foram usados para produzir instrumentos ¢ méquinas que, embora sejam meios necessitios para as vidas individuals, nao sao ja obras, individuais nem estdo sob o controle de individuos e pequenos grupos, como exemplificam os sistemas de tens e as redes de eletricidade. A cigncia modema, com a ajuda da nova ciéneia contemporanea, fundada no projeto de uma linguagem formal que apreende todos os eventos como diferencas de informagio, expandiu a decodificagio dos processos naturais bisicos como algoritmos expressiveis e ealculiveis. Com efeito, desde a explosio atmica, da descoberta do cédigo genético, da concepeio in vitro, dos transplantes, da reprogramagao genética, das plantas geneticamente modificadas, da automatizagdo computadorizada e telecomunicagdes em rede ete, pouco hi para se falar em processos naturais indisponiveis ao Filosofia e Educagao Volume 6, Nimero 3 utubro de 2014 dossié 12 cileulo ¢ & manipulagdo. Estamos uo antropoceno, dizem os socidlogos e bidlogos, com isso querendo dizer que estamos na era geolégica cujos tragos principais sao determinados pela agao do homem. Isso porém diz apenas tum, aspecto, a ommipresenga e 0 predominio da espécie humana sobre as condigdes da biosfera, Todavia, o fator principal é o império do artificial alcangado sobre o natural em niveis geologicos. A logica do fieticio e do antificio agora determina e inflete os proprios processos naturais fundantes, das condigdes da vida, atingindo inclusive a propria espécie biolégica humana. A questiio da prevaléncia dos aparatos técnicos, do predominio das normas e formas tecnolégicas de agio ¢ interagaio, nao pode mais ser posta como se uma de suas respostas possiveis fosse o retomo a natureza e a vida provincial. A terra, a flora, a fauna e o artefato, essa série nio indica apenas um afastamento da origem teliriea e familiar. Pois, essa série traga um caminho cujo vetor nao é reversivel. A terra é provineia, mas o provineiano nao é mais capaz de nos satisfazer, pois 0 retraimento em diregdo ao natural ao provincial indicam, como sempre, o caminho de reniincia a hnumanizagao. Todavia, a oposigao entre naturalizagao ¢ hipertecnificagao é uma falsa imagem do problema, pois 0 humano se perde por qualquer una dessas duas vias (Braida, 2011). Nesse ponto a arte ja est mais em casa com a nova realidade humana. A pega de Heiner Miiller, Hamfermachine, de 1977, serve como sinal dos novos tempos, assim como a pega Pinokio de Roberto Alvim, de 2012: a era na qual o lnmano é uma condigao para aquilo que ele mesmo estabeleceu na terra, o mundo dos humanos em parabiose com objetos tecnicos e sistemas cibeméticos A técnica e a tecnologia, e sobretudo os seus produtos, as técnicas e dispositivos técnicos, poem, pela sua simples existéncia, seja da téenica da destilagdo ou técnica da fertilizagio in vitro, seja da maquina de debulhar Filosofia e Educagao Volume 6, Nimero 3 utubro de 2014 dossié Leossig milho ou da estagao orbital, uma série de questdes para a autocompreensio do ser humano e para a compreensdo da natureza. Quem somos nés, esses que fazemos maquinas? O que é a natureza, que se deixa moldar como miquina? Nao somos nés mesmos efeitos das téenicas de controle e cultura? Nao é a natureza mesma um ensaio diante da maquina? Se as técnicas e as, uniiquinas sio artefatos, nao foi assim que 0 ocidente se autocompreendeu desde os gregos e cristios, como artefatos e brinquedos de um deus artesio? ‘As avaliagdes filosoficas da situagao atual findam-se em geral na percepgao da tecnologia como uma condigao deterministica, no sentido de que a condigao tecnolégica se impde como algo auténomo e fora do controle humano. Haveria uma légica ‘mica e coetcitiva por tris da tecnologia inchzindo-nos a um fururo incontomvel, salvifico para os ut6picos, malético para os distopicos (Cooper, 2002: 3). O refido mais, recorrente entre 0s filosofos é negativo: a existéncia humana estaria, como num quadro de Giger, enearcerada na trama dos sistemas tecnolégicos sem possibilidade de escolha e agdo fora das possibilidades que esses sistemas estabelecem por sua propria logica ‘Uma abordagem critica da técnica ¢ da era tecnologica precisa se posicionar como uma recusa de posigdes que nao so opcdes reais. Para isso & necessirio deixar de ver, por um Indo, a ténica como um suplemento compensatério para uma caréneia inauténtica e, por outro, um artificio corruptor da esséncia humana. A simples oposigao dualista entre o bem eo mal, entre vantagem e perigo, é falsa e redutora, pois nem a vida humana hem a natureza € a tecnologia so assim constituidas. O ponto principal da genealogia da técnica consiste em localizar as maquinas e 0s objetos técnicos no desdobramento continuo da humanidade, sem pressupor que nisso esteja continuamente atuando uma esséncia atemporal. A tecnicidade nao seria entio una ruptura, mas antes © modo atual de realizagao humana. Filosofia e Educagao Volume 6, Nimero 3 utubro de 2014 [aossie 4 A pautir dessa visada abre-se uma agenda positiva para o pensamento sobre técnica e os aparatos tecnolégicos, na qual desaparece a problema da submissAo do humano ao maquinico on da submiss4o do maquinico ao humano. Nenhuma corupgio ou perda da esséncia; as maquinas e as tecnologias realizam as possibilidades humanas do mesmo modo que a invengao da escrita no passado realizou e abriu a era espititual. A leva & tampouco natural quanto a usina atdmica e rede mundial de computadores. Todavia, um raciocinio compreensivo em tomo da tecnicidade pervasiva atualmente em curso desvela um aspecto importante, qual seja, 0 fato de que 0s individuos humanos foram por muito tempo usados para realizar atividades que um mecanismo ou um automatismo pode realizar tio bem ow até de modo mais eficaz, A emergéneia de objetos técnicos ¢ miquinas inteligentes libera © humano de sua condigio prévia de mecanismo de produgio, Mas assim liberados, 0 que fazer? O humano suporta viver sem tarefa? O fato & que no inicio desse século as coisas se tomaram mais urgentes, tendo em vista a intromissio pervasiva das tecnologias e dos artefatos inteligentes na vida intima € nas relagdes sociopoliticas mais, imediatas. A urbanizagao e a automagdo do campo, a interligagio entre comunicagao interpessoal ¢ controle de massas, seja pelas corporagdes seja pelos govemos, determinam um novo nicho ecolégico para a pessoa e para as contidades: ndo apenas o nosso espago vital agora é de saida um lugar dentro do espago artefactual e maquinico, também os espagos mentais € sociais esto em interagao ¢ so fundados por ambientes cibernéticos. Esta liltima predicagao é decisiva, Nao se trata apenas do fato de que nascemos e morremos no interior de um acontecimento cujo regime € maquinico integralmente (Ellul, 1992), mas também do fato de que pensamos ¢ sentimos em termos computacionais e informaciouais. Se a pouco mais de Filosofia e Educagao Volume 6, Nimero 3 utubro de 2014 dossié eessig 100 anos a maior parte da populagio humana vivia e moria em conformidade com os ciclos naturais, internos e externos, ¢ se defrontava durante toda a sua vida apenas com instrumentos ¢ utensilios cuja serventia podia ser dispensada no principal de seu modo de vida, hoje isso & simplesmente impensivel, pois a situago da vida humana agora é de dependéucia em relagio ao ambiente attificial maguinico e de procedimentos e operagdes computacionais. O uso de drogas e remédios, 0 uso da eletticidade e dos meios de transportes, © uso dos compntadores & meios de telecomunicagées ¢ tal que nossa vida cultural, social ¢ biolégica perfaz-se integralmente como figura sobre 0 fimdo constituide por miquinas, procedimentos téenicos ¢ algoritmos. As maquinas e redes imteligentes, contudo, instauram um outro modo ao situarem sta atuagao no plano das decisdes, pensamentos e desejos, agindo antes e ali mesmo onde o individuo e sobretudo 05 grupos ainda nem sequer sdo conscientes do que indo escolher e fazer Essa situagio impde-se como fato ¢ exige reflexdo. Desde o inicio do século pasado muitos pensadores responderam no plano do pensamento a0 avango da técnica e dos regimes maquinicos. Os fatos principais, todavia, eram exteriores ao pensamento, no sentido de que a realidade técnica ainda era concebida sob o paradigma da instrumentalidade e da dominagao das forgas naturais. A seguir vou mencionar algumas reagdes_principais associadas a Heidegger e a Simondon, com o objetivo de ilustrar os impasses © as ambiguidades dessas respostas. O ponto basico é que a evolugdo (a natureza) nos conduziu a conceber 0 universo, o mundo, ¢ a propria natureza, em termos de um senso comum, um esquematisme de objetos, propriedades e relagdes, que a cigncia contempordnea mostra em todas as diregdes ser um equivoco. A nova imagem do universo, em termos de informagio e algoritmos, desfaz, por liquidificagao, tanto o mundo dos Filosofia e Educagao Volume 6, Nimero 3 utubro de 2014 dossié 16 objetos quanto o mundo dos sujeitos individuais, com identidade garantida na prépria substincia, No mundo tecnolégico, e também na imagem do universo qnantico, entidades e identidades s4o apenas momentos figazes de uma realidade sistémica e indivisa. Areagao de Heidegger A posigio de Heidegger na historia da formagao da filosofia da tecnologia ancora-se na exploragao da ambiguidade da ago humana quando ela é mediada por autefatos, pois ela tanto pode ser consistente com a natureza quanto destrutiva, A resolugao dessa ambiguidade faz-se pela distingao entre dois ethos, © postico ¢ o explorador, a qual permite Heidegger pensar uma diferenga radical entre os aparatos téenicos, como uma ponte eum moinho de vento, ¢ 0s aparatos tecnolégicos, derivados da ciéneia modema, como uma hidroelétrica ou um avilio. Essa diferenga teria a ver com o fato de que as técnicas seriam poétieas @ as tecnologias exploratérias em relagio 4 natureza, Um outro aspecto da abordagem de Heidegger consiste na postulagdo de uma independéncia da tecnologia em relagao a decisao e agio Lumana. O seu ponto de partida, pode-se dizer, esta justamente na recusa de pensar a té&nica e a tecnologia como instrumentos do homem, que, por conseguinte, se assim fosse deveriam ser pensados a partir de uma visada antropologica. A tese é ontolégica: “sendo desencobrimento da dispouibilidade, a técnica modema nao se reduz a um mero fazer do homem” (Heidegger, 2012, p. 22). A isso que conduz o processo, Heidegger denomina “armagio” (Ge-stell), a saber, “o apelo de exploragao que retine o homem a dis-por do que se descobre como disponibilidade” (Heidegger, 2012, p. 23) A visada heideggeriana apreende a técnica a partir do acontecer do ser, ¢ nao a partir da historia humana, Desse modo ele pode dizer que “como Filosofia e Educagao Volume 6, Nimero 3 utubro de 2014 [aossie 7 modo de desencobrimento a armagao é um envio do destino. Destino nese sentido é também a produgao da poiesis.” (Heidegger, 2012. p. 27) Os fenémenos da técnica e da tecnologia s4o submetidos ao conceito de poiesis conquanto indica um produzir (hervorbringen) nd limitado ao produzir artistico, e menos ainda ao “poético” e ao téonico-artesanal, mas que inelui a pirysis, como wna produgio desde si (em hauté), como o brotar de uma flor, € a produgao artistica “desde outro” — ew allo. Desde essa apreensio, a técnica antiga € vista como um deixar desabrochar, como um trazer luz, enfim, como um fazer algo aparecer naquilo que Ihe é proprio, a0 desencobrir 0 ser da coisa a partir da propria coisa. A técnica modema nio seria mais poesis; ao contritio, pois teria como caracteristica a produgao a partir da armagao (Gestei!) impositora, tal como se di exemplarmente no plano inclinado de Galileu. Diferente da técnica antiga, a ténica moderna explora a natureza”, forga-a segundo uma logica que Ihe € estranha © descobrimento dominante na técnica moderna nao se desenvolve porém, numa produsdo no sentido de poiesis. O descobrimento que rege a técnica modema é a exploragio que impde & natureza a pretensio de fomecer energia, capaz de como tal ser beneficiada e armazenada (Heidegger. 2012, p.18-19) A consideragao heideggeriana esta determinada em grande parte pela experiéneia do cariter assombroso e violento da técnica que 0 europeu vivenciou na primeira metade do século XX, sobretudo pelas duas grandes guerras. A oposigiio entre duas atitudes poéticas, do dispor (shesei) e do deixar nascer (pipsei), orienta sua avalizagao para uma apreensdo angustiada da era teenoldgica. Se Heidegger pereeben o potencial transformador da tecnologia, ele mais vin seu carater negativo em relagao a Filosofia e Educagao Volume 6, Nimero 3 utubro de 2014 dossié 18 condigao humana. O avango da técnica e da ciéucia como fator preponderante em todas as esferas da vida humana era, naquela época, praticamente um avango de dominagao violenta, Os paradigmas de tecnologia por ele considerados so todos exemplos de disposigio e liberagio de forgas € energias antes bem guardadas pelos ciclos naturais. Ainda sio os mitos de Prometeu e de Pandora que ensombrecem os caminhos da floresta negra, 0 mito da liberagao de forgas descomunais que ameagam a vida natural, incluindo a humana Todavia, essa apreensao ficou datada depois da transformagio da tecnologia e da ciéncia pela computagdo digital, pela transformagio da sociedade pela informatica e pelas tecnologias de controle ¢ estatistica. As tecnologias atuais, baseadas no conceito de informagao e de programagio, bem como 0 redirecionamento das téenicas pelos conceitos de equilibrio e autossustentabilidade, se nao eliminam os perigos da condigao tecnologica, também nio estio fimdados ua exposigiio de forgas descontroladas. Com efeito, ua segunda metade do século XX, a tecnologia mostrou-se muito mais frutifera do que destrutiva. Ainda que 0 cardter de exploragao e de desafio em relagao as forgas.naturais continne, o aspecto informacional e de reprogramagao emergem como caracteristicas prineipais da era tecnoldgica, a tal ponto que se tornou visivel a sua face espiritual, Com efeitos ainda nao imteiramente refletidos, Heidegger fez uma analise, tipica da fenomenologia, como descrigio da esséncia (ontolégica), que elimina de antemao a possibilidade de transformagao do erlos da tecnologia da ciéncia modema, portanto, que a fixa no seu estégio inicial como sua esséncia atemporal. A resposta final de Heidegger (2012, p. 29) esti cifiada nessas fiases: Quando 0 descoberto j4 nfo atinge © homem, como objeto, mas exclusivamente como disponibilidade, quando, no dominio do nfo Filosofia e Educagao Volume 6, Nimero 3 utubro de 2014 [aossie 9 objeto, o homem se reduz apenas a dispor da disponibilidade — entao € que chegou a titima beira do precipicio, la onde ele mesmo 56 se toma por disponibilidade. E & justamente este homem assim ameacado que se alardeia na figura do senhor da terra. Cresce a aparéncia de que tudo que nos vem ao encontro sé existe A medida que € um feito do bomem, Esta aparéncia faz prosperar uma derradeira iusto, segundo a qual em toda parte © homem s6 se encontra consigo mesmo. Esta resposta supde uma esséncia da técnica e uma esséneia do humano. A ilusao de encontrar-se consigo nos aparatos tecnolégicos esconde © petigo da desumanizagao pela prevaléneia da teenicidade: A ameaga, propriamente dita, jé atingiu a esséncia do homem © predominio da im-posigao arasta consigo a possibilidade ameagadora de se poder vetar ao homem voltar-se para um desencobrimento mais origindrio e fazer assim a experiéncia de una verdade mais inaugural. (Heidegger, 2012, p. 30-1) Desse modo, nfo podemos deixar de ver hoje no pensamento de Heidegger as marcas da nostalgia das paisagens bucdlicas de um tempo anterior 4 emergéncia e predominio da técnica moderna e suas maquinas de transformagao, motores, usinas e fabricas, Em sens textos a imagem da ponte de madeira e do moinho sto recorrentes, exatamente nas passagens onde se fala de exploragio, de intimagao e de forgamento da natureza pelas novas tecnologias. Porém, mesmo que essa diferenga de esséncia entre 05 objetos téenicos antigos e os produzidos pela técnica modema fosse real, ainda assim seria questionavel a equago heideggeriana pela qual 0 “humano”, 0 “pensar” ¢ a “poiesis” auténticos estariam em perigo pela Filosofia e Educagao Volume 6, Nimero 3 utubro de 2014 dossié 20 instauagao do undo baseado ua ciéneia e nas técnicas modemas. O humano agora estaria diante de um acontecimento para o qual ele nao tem defesas, que é a omnipresenga da técnica exploradora que tudo dispde como mera disponibilidade. A tmica altemativa seria o exercicio do “pensar” para além do mero caloular, que Heidegger denominou de pensar meditante (das besinntiche Denken). Esse peusat seria poiesis tal como a teclne antiga, ua qual estavam conjugadas a atengao a verdade e a atengao ao fluir da propria coisa Agora, tem razio Heidegger em nos admoestar a partir dessa oposigiio? » 10 estaria ele preso a um esquematismo que opde de saida arte e técnica, obra postica e artefato téenico, técnica e tecnologia, por pensar a partir do pressuposto naturalista de uma esséneia do humano, de uma esséncia da natureza, a qual poderia ser desvirtuada por um acontecimento do ser na sua deriva ontologica? De onde avalia Heidegger para atribuir 0 valor “perigoso”, “violéucia”, “ameagador” a ciéucia e a técnica modema? No ceme da argumentagiio de Heidegger est a diferenga entre uma técnica que explicita as potencialidades de uma coisa ou situago e outta que a transforma ¢ explora a partir das potencialidades de um artefato. Moinho de vento ¢ usina hidroelétrica seriam os exemplos paradigmiticos. Porém, nao estaria Heidegger forgando uma oposigao ali onde nao ha nenhuma? 0 moinho nao transforma a forga dos ventos em energia cinétiea e depois em forga mecdnica que finalmente desintegra o gro, a madeira, a pedra, ete.? Por acaso 0 vento nao passa agora a ser algo distinto dada a existéncia do moinho, tal como 0 rio devido a existéncia da usina? O vento ¢ 0 rio nao sto agora dispostos segundo a logica do artefato que esta preparado para fazer do vento e do rio fontes de energia que nao € mais vento nem Agua tio somente? Por acaso, quando os humanos usaram sinais gréficos para registrar a voz eles ndo alteraram definitivamente esses sinais ea propria Filosofia e Educagao Volume 6, Nimero 3 utubro de 2014 dossié 21 visio? Pensar nao se trausformou em outta coisa ao se deixar inscrever e ler? Nao receberam assim uma fimedo que antes nao tinham? O letramento nao dispde o pensar eo dizer jé como disponiveis? Com efeito, temos de reconhecer que a técnica antiga e a moderna alteram aquilo que antes era natureza tio somente, e do mesmo modo, fazendo-as matéria-prima e reserva para um artefato que produz algo diferente. Essa é a esséncia de um artefato, a ficgdio de uma realidade que nao apenas faz as vezes da natural mas também cria novas realidades no naturais. A invengao da eserita ea invengao da rede inteligente instauram, uma dimensao de realidade e sentido nao-natural, e submetem a natureza sua légica dispondo-a como matéria-energia — conquanto indicam a presenga do humano. A proposigao de Simondon A questo da autonomia do feudmeno da técnica ¢ também visivel na teorizagao de Simondon. Todavia, sua perspectiva ¢ diferente. Ao considerar © aspecto de autonomia que se mostra nos objetos técnicos, Simondon sinaliza para a independéncia em relagao aos interesses hnumanos, mas pensa esse aspecto a partir da logica intema desses objetos. Na sua anélise da técnica, € © processo de concretizagdio convergente que caracteriza a tecnicidade. Na base da coneretizagao de um objeto téenico individual, como um motor 4 combustio, ocorre um processo evolutivo caracterizado pela unificagao de suas partes e fungdes em um todo orientado pelas necessidades de sintonia e acoplamento (Simondon, 1989, p. 19, 54). Visto a partir do seu desenvolvimento e coneretizagao, a forma atual de um objeto tecnico individual é uma resultante de necessidades intemas. Falamos entio de “descobertas”, de modificagdes “necessérias para o aperfeigoamento” da uxiquina. E do ponto de vista da operagio, nbs mesmos Filosofia e Educagao Volume 6, Nimero 3 utubro de 2014 dossié 22 somios executores passivos, e sobretudo adaptamo-nos ao funcionamento e caracteristicas das méquinas. Os humanos fabricam os instrumentos ¢ artefatos tecnologicos para obterem os resultados desejados, sem diivida, mas a questo € que nem eles nem os seus desejos permanecem inalterados no percurso de desenvolvimento € concretizagio dos objetos técnicos. A primeira vista, esses objetos parecem ser apenas meios empregados pata afinar a relagio entre 0 homem e a natureza: todavia, j4 os primeiros antefatos e técnicas alteraram os termos da relagiio, no sentido de que tanto 0 elemento humano quanto 0 artefato ¢ a natureza nao permaneceram sendo o que eram, E esta alteragdo se da justamente pelo fato de que a introdugao de um instrumento ou técnica altera a situagio e a condigao humana. Por isso. na abordagem de Simondon, o objeto téenico nao é apenas um mediador entre humano e natureza, constituindo antes uma totalidade hibrida cujas partes fungdes séo inseparaveis em que se conjugam “humano” € “uatureza”: “un misto estivel de Iumano e natural; ele dé a seu contetido humano uma estrutura semethante & dos objetos naturais, ¢ permite a insergiio, no mundo das causas e efeitos naturais, desta realidade Imana” (Simondon, 1989, p. 245). A insergao de artefatos ¢ téenicas, j4 nos seus primeiros estigios, instaura uma nova dimensio ontolégica, pois “wma convertibilidade do Inmano em natural e do natural em humano institui-se por meio do esquematismo técnico” (Simondon, 1989, p. 245). Simondon percebe que essa situago constitui um novo patamar de individuagao, pois propriamente o objeto técnico distingue-se das entidades individuais tipicas, fisicas ¢ biologicas. © objeto téenico é “o suporte & 0 simbolo da trausindividualidade”, uma vez que é por meio do objeto téenico que uma relagdo inter-humana se estabelece. Trata-se de uma relagao (relation) que nao poe os individuos em ligagao (rapport) por meio de sua individualidade constituida, separando-os uns dos outros, nem por meio do Filosofia e Educagao Volume 6, Nimero 3 utubro de 2014 dossié que hi de idéutico em todo sujeito humano, [...] mas por meio dessa carga realidade pré-individual que € conservada com o ser individual, e que contém potenciais ¢ virtualidade (Simondon, 1989, p. 247). Nesse sentido, 0s objetos téenicos, e mais ainda os sistemas tecnolégicos atuais, estabelecem formas de ser transindividuais que implicam uma unio entre o Lumano e o maquinico, portanto, un regime transumano, Simondon (1989, p. 09) & claro quanto a esse ponto: A oposigio sustentada entre a cultura e a técnica, entre o homem e ‘maquina, & falsa e sem fundamento; ela esconde ignorincia e ressentimento, Por tras de um humanismo ficil, ela mascara uma realidade rica em esforgos lnumanos e em forgas naturals, € que constitu o mundo dos objetos tecnicos, mediadores entre a natureza e ohomem, A compreensiio da técnica e da tecnologia desdobrada por Simondon 6, de saida, pré-ativa ao evitar o negativismo e as falsas oposigdes entre humano e técnica, ou entre ténica e natureza. A chave para essa compreensao est na abordagem genético-genealogica, a qual ao invés da atitude pessimista e saudosista, pensa a situagdo do mundo permeado pela técnica sem toma-lo como o decaimento do homem e da natureza nem como a emergéncia de uma realidade ut6pica e ideal, Uma das. preocupagies centrais de Simondon é com a educagao Inumana justamente para liberd-lo da falsa escolha entre ser escravo ou senor da maquina. L’humanisme doit viser a libérer ce monde des objets techniques qui sont appelés devenir médiateurs de Ia relation de Thomme au monde, [...] La relation de homme au monde et de Vindividu a la communauté passe par la machine, [...] Entre la communauté et Filosofia e Educagao Volume 6, Nimero 3 utubro de 2014 [aossie 4 Vindividn isolé sur lui-méme, il y @ la machine, et cette machine est ouverte sur le monde, Elle va au-dela de le réalité communautaire pour instituer la relation avec la Nature (Simondon, 2005, p. 527) O que ele propde, afinal, ¢ uma genealogia das relagdes homem- mundo que apreenda os objetos técnicos e as tecnologias como uma forma de se fazer mundo. A técnica insere-se no continuo da deriva da cultura como modo de dar sentido e significado experiéneia, couquanto ela também ¢ um modo de interagdo homem e mundo, humano e natureza, Nesse sentido, Simondon aborda a educagdo tecnolégica como estando no mesmo patamar de sentido humano que 0 mito, a religiao, a arte, a ciéncia e a dtica, © saber teenologico insere-se no continuo da cultura que coustitui a ‘natureza” humana, pois ali onde ha o lumano, hi artefatos e téenicas, e a tecnologia nfo rompe com essa correlagiio, mas sim a reitera e realiza. O império da técnica A sittag3o hnmana na vida condicionada pelas tecnologias, na forma de sistemas maquinicos e cibernéticos, mas também nas tecnologias sociais e educacionais, emerge como propriamente inumana, Se em Heidegger e Simondon a consideragao ainda era de adverténcia ao homem para que ele nuao se perdesse sob os artefatos tecuologicos, uas cousideragdes de J. Ellul de Teixeira ouve-se claramente a nota do pés-humano como o futuro da sociedade tecnolégica: © mundo pés-evolutivo nao seri nem melhor nem pior do que o atual, O desenvolvimento da tecnologia parece ser nossa tinica saida para sobreviver 4 involugo. A parabiose, ou seja, nossa mistura com as méquinas, nfo é um aperfeigoamento artificial da espécie Filosofia e Educagao Volume 6, Nimero 3 utubro de 2014 dossié humana, mas sim uma de suas iiltimas tentativas de sobreviver, (Teixeira, 2010, p. 154) © ponto de partida para a reflexdo é justamente o da autonomia da técnica. Para Ellul (1969, p. 129), a “civilizagdo técnica” indica 4 primeira vista uma forma de vida humana, mas essa expresso também indica a submissiio do humano aos regimes maquinicos, no sentido de que ela est “construida para a técnica (tudo 0 que esta nessa civilizagao deve servir a uum fim técnico)” € que ela “é exchusivamente técnica (exelni tudo o que nao © ou reduz a sua forma técnica)”. © humano sucumbe ao ordenamento téenico que ele eriow: A vitoria atual é do utensilio; e somente o utensilio que tem o poder @ que detém a vitéria [...] © homem obedece e nfo tem mais vitéria que tbe seja propria, Nao pode alias ter acesso a esses aparentes ttiunfos a mio ser tomando-se ele priprio objeto da técnica. tomando-se produto do acoplamento entre a miquina e o homem, Ellul, 1969, p. 149) A fusdo humano-maquina, enquanto configura 0 mundo atual faz infletir os destinos da propria biosfera é 0 que se denomina antropoceno. A espécie humana, ao construir seu meio ambiente por meio do estabelecimento de aparatos maquinicos e da introdugio de_prodttos sintéticos, se impde agora como o principal fator determinante da vida ou morte das demais espécies e, talvez, dos ciclos geolégicos. Todavia, ao se erigir sobre os sistemas tecnolégicos os humanos a cada novo ciclo de expansio adaptam-se as necessidades dos objetos téenicos e dos sistemas maquinicos. Por conseguinte, Filosofia e Educagao Volume 6, Nimero 3 utubro de 2014 dossié 26 A técnica nfo tem mais [..] freio algum em sta marcha; nao encontra mais obsticulo; pode avangar & vontade, nao tendo outro limite sendo o das suas proprias forgas. Ora, essas forgas parecem inesgotaveis ¢ ilimitadas. © fato de uma técnica sem limites, no entanto, nao é em si mesmo inquietante. & preciso admitir afinal de comtas que nossa sociedade € técnica, O que nos parece mais impressionante, porém, & que esse carter da técnica a toma independente do préprio homem. (Ellul, 1969: 311) Ellul nao é um defensor da ideia de pos-lmanidade, contudo. A sua tese & de que a espécie humana esti em processo de tomarse voluntariamente dependente dos sistemas tecnolégicos e dos aparatos maquinicos, na exata medida que estes eliminam sua dependéncia em relagao a natnreza, Por isso, seu diagnéstico incide sobre o risco de perda de autonomia do humano em relagdo a ordem maquinica e teenologica: Nao se trata mais, entio, de fazer desaparecer 0 homem, mas de levi-lo & composigao, de levé-lo a enquadrar-se na técnica, a deixar de experimentar os sentimentos € as reagdes que Ihe seriam pessoais. Nao ha téniea possivel com um bomen livre, Pois, quando a técnica penetra em todos os dominios da vida social. choca constantemente o homem, na medida em que o funcionamento da técnica deve necessariamente chegar a determinado resultado. (Ellul, 1969, p. 140) Todavia, esse diagndstico negativo sobre a situagdo humana na era tecnolégica nao pode ser mantido sob pena de se reconhecer na técnica uma poténeia extra-humana, Ellul fala de um “poder dotado de forga propria” p. 143, que se sobrepde ao “poder” humano de controli-lo, Ellul (1969, p. 146) Filosofia e Educagao Volume 6, Nimero 3 utubro de 2014 [aossie 7 parte, sem diivida, de um diagnostico coreto: Nada mais é do dominio dos deuses, dos poderes nao narurais. O homem vive no meio técnico sabe bem que mio ha mais nada espiritual em parte alguma. E, no entanto, assistimos a uma estranha reviravolta; o homem no pode viver sem o sagrado: transfere seu senso do sagrado para aquilo mesmo que destréi tudo o que era sen objeto (do sagrado): para a técnica. No mundo em que vivemos foi a técnica que se tomou o mistério essencial Prosseguindo assim no aprofundamento da visio negativa tipica do séeulo XX. Todavia, justamente esta consequéncia, que a vida humana anrténtica esta em perigo pela omnipresenga da técnica, supde que o human configurado historicamente até o inicio do séeulo XIX era o humano auténtico segundo sua esséncia, Esta suposigdo nao tem nenhum cabimento nem fundamento, a elisdo dessa crenga nos libera para pensar 0 acontecer € © evoluir das técnicas e tecnologias, dos objetos téenicos e dos sistemas tecnolégicos, como um acontecimento espiritual exatamente no mesmo sentido que a passagem do humano cagador-coletor para o humano agricultor o foi, ou a passagem da lingua para a escrita. Uma consideragao liicida sobre a situagdo humana atual tem de admitir que em todas as relagdes fundamentais e em todos os aspectos da vida as mediagdes tecnolégicas esto presentes como condigdo que altera e impde nao apenas esses fimdamentos como os proprios relatas. Ainda assim, essa consideragao ndo pode cair na ilusio de que esas mediagdes tecnolégicas sejam algo cuja deriva nada tem a ver com a orientagao principal da espécie humana, Contudo, é certo que atalmente essa espécie biolégica subsiste como dominante frente s outras apenas enquanto esta em Filosofia e Educagao Volume 6, Nimero 3 utubro de 2014 dossié 28 parabiose com 0s artefatos tecnolégicos. Sob uma visio panoramiica sobre a atnal situagao da biosfera terrestre so bem marcantes as transformagdes em curso, tanto nas condigées vitais gerais quanto na sobrevivéncia e extingao de espécies, decorrentes da introdugiio de produtos e de modificagdes em nivel mineral, orginico e ecossistémico, propiciados pela ciéncia e pela tecnologia modernas. Essas transfoumagdes témm origem na ago de grupos e individuos da espécie hnmana. Mas, também é evidente o fato de que essa espécie agora depende para se manter, nos atuais niveis populacionais & vitais, do uso sistemstico e contimo de instrumentos, maquinas ¢ procedimentos tecnolégicos. A condigao artefactual € tal que a cultura do artificial e do tecnolégico é percebida como uma condigio urgente A genealogia do artificio A linguagem, e sobretudo a linguagem escrita, esto entre os mais antigos artefatos a ganharem independéneia em relagao aos individuos e grupos humanos. Uma lingua e um alfabeto, desde os seus comegos eram ja artefatos cuja logica intema submetia os individuos de modo cogente & incontornavel; também una coustituigdo e una organizagao de instituigdes, como os primeiros impérios se apresentavam como algo maior e independente do homem. A concretizagao plena de uma lingua e de uma técnica de eserita é hoje tida como um acontecimento da maior importancia na conformagio do humano, exatamente por alterar a propria autocompreensio de si e estabelecer relagdes antes impossiveis, fazendo assim emergir tm novo plano de realidade na qual tanto 0 gmpo quanto os individuos humanos, nas suas relagdes consigo e com o meio ambiente, nao so mais os mesmos de antes. A projegao de uma explicagao nao-natural e nao-lumana desse acontecimento é recomente, ao se atribuir aos deuses, a0 se Ver nesses artefatos o dom divino. Filosofia e Educagao Volume 6, Nimero 3 utubro de 2014 dossié A técnica moderna aparece como diferente justamente pela auséncia de uma justificagao transcendente, mais ainda, pela propria impossibilidade de ser projetada como natural ou divina, restando apenas a agao humana como sua fonte. O que era o homem submetido ao império do estado ou da igreja, sentio escravo e mao de obra? Nao exercia ele as fungdes sob a mesma exigéncia que agora fazemos a uma maquina? A preciso no cumprimento das ordens e promessas, a infalibilidade nas tarefas, 0 rigor na disciplina religiosa ¢ militar, a organizagio e a projegio de metas; 0 exéreito, a igreja, o estado, nao eram ja aparatos artificiais cuja racionalidade ideal agora foi transferida para instrumentos e dispositivos? ‘A grande diferenga est no fato que nos tiltimos cem anos o tinico vetor de melhoramento € sustentagao da condigao humana consiste nas novas tecnologias ¢ novas miquinas (Winner, 1989, p. 5). Aparatos, plantas € animais modificados, circuitos eletrénicos, bioengenharia, ete.: as sociedades agora jogam todas as suas fichas na ciéncia e na tecnologia como fouma de progresso e de melhoramento das condigdes de vida. Os adoradores e os dettatores da técnica, mesmo quando fazem uma reflexio emudita, ao sacralizarem a técnica como um acontecimento ontologico e até mesino teolégico, obuubilam os fatores Lumanos que dirigem 0 inteiro processo. As técnicas e tecnologias so formas de realizaglio da espécie Iimana e, por isso, tem de ser consideradas como modos de atagio da nossa espécie. Ja se disse que ao humano é natural o uso de artefatos, e esse aspecto agora precisa ser repensado sob a tese de que a atual fase tecnologica da humanidade néo é nenhuma ruptura com a esséncia do Lumano e também nao com a natureza Nesse aspecto € que as investigagdes de Simondon sao relevantes, pois ele dispensou a ideia de que a técnica seja algo independente do homem, mas também que 0 homem seja independente da técnica: tanto o Filosofia e Educagao Volume 6, Nimero 3 utubro de 2014 [aossie 3 homem quanto a técnica sto seuresséucia, no sentido de serem intrinsecamente constituidos histérica e relacionalmente. Isso. significa abordar as técnicas € os objetos téenicos sem pressupor que eles sempre tiveram e tém hoje a mesma fimgio, a mesma finalidade, a mesma posigao. enfim, o mesino sentido, A abordagem genealégica esté justamente nessa disciplina. Em diferentes culturas, os objetos téenicos tém diferentes status, pois sua natureza é relacional. Ao sugerir que na sua forma atual, na sociedade tecno-industrial, os artefatos e aparatos finalmente aparecem na sua esséncia funcional ¢ instrumental pura, diz-se que aleangamos a esséncia e a finalidade metafisica da técnica e dos artefatos tecnicos. Ora, isso é uma perspectiva mito curta, pois nao deixa ver o quanto de valor e sentido nao-instrumental esto investidos nos nossos artefatos técnicos, ao mesmo tempo que se sugere assim uma contimuidade de esséneia que anularia as transformagoes, reais. Um automovel, un telefone celular, um vestwitio, um compleso industrial, ufo existem na forma e ua posigio em que existem em uma sociedade apenas porque sio instrumentos, pois a propria instrumentagao € explicada em termos nao-instrumentais. Embora se possa falar da instrumentalidade (ou do carter funcional) dos objetos técnicos, esse aspecto mnea é ele mesmo puro e capaz de explicar a presenga e sobretudo a forma e o sentido de sua complexidade interna e menos ainda de sen propésito dentro da cultura, A anilise de Pierre Clastres, do papel configurador do cesto € do arco na cultura Guayaki* ilustra esse ponto: 0 " Chastres, 2003, “O arco ¢ 0 cesto”, p. 117-143: *Podemos entao medir o valor € o aleance dda oposigao socioecondmica entre homens @ mulheres porque ela estrutura 0 tempo ¢ 0 espaco dos Guayaki. Ora, eles no deixam no impensado o vivido dessa praxis: tém uma conscigncia clara © o desequilibrio das relagGes econdmicas entre os cagadores © suas esposas se exprime, no pensamento dos indios. como a oposigdio entre 0 arco e 0 cesto Cada um desses dois instrumentos ¢, com efeito, micio, © signo ¢ o resumo de dois “estilos” de existéncia tanto opostos como cuiddadosamente separados” (p. 123); “A dura lei dos Guayaki nao the deixa altemativas. Os homens s6 existem como cagadores, ¢ eles ‘mantém a certeza de seu ser preservando 0 seu arco do contato da mulher. Inversamente, se Filosofia e Educagao Volume 6, Nimero 3 utubro de 2014 dossié cesto eo arco so sim instrumentos, objetos téenicos, talvez os mais sofisticados dessa cultura, mas a sua fimgao e a sua posigio dentro da economia seméntica nao se esgota nem se explica apenas por essa funeio tecno-instrumental. Neles também est inserito a propria norma pela qual os seus artesdes se autoconfiguram como humanos. No caso das ditas civilizagdes industrializadas, isto é, marcadas profundamente pelos sistemas tecnolégicos, a relagdo entre certos objetos técnicos e a forma de sociabilidade pode nio ser to direta, mas ndo € menos premente. Nessas sociedades, a evolugio de um objeto técnico e de uma tecnologia é caracterizada por rupturas, retomadas, reinterpretagdes e reapropriagdes, nas quais nem a forma nem o sentido permanecem intactos. A desctigao disso que ai esta em dada situagao nao é capaz de explicar como isso veio a ser, € a descrigdo da historia de formago nao explica o sentido e a fimgio atuais: além disso, a descrigio das relagdes objetivas de um objeto tecnico com outros objetos ainda ndo nos diz uada sobre a sua histéria de formagio, e esta historia ndo explica a sua posigio na autoconfiguragdio humana. Por isso, a abordagem genealégica, tal como proposta por Nietzsche, e em parte aplicada por Simondon, mostra-se melhor preparada do que a abordagem fenomenolégica na tarefa de compreensio do lugar e do papel dos objetos técnicos. Neles nao opera uma esséncia, nem o vigor de um destino, mas sim exercita-se um agenciamento semovente que se apropria do que quer que seja com vistas a0 empoderamento e 4 antoconstituigao. Kojéve (1979) esbogou a figura do esnobe japonés como o maximo da attificialidade; embora isso seja um equivoco histérico, a tese assim exemplificada tomou-se un dos refides mais repetidos e repeusados. A tum individuo nfo consegue mais se realizar como cagador, ele deixa ao mesmo tempo de ser um homem: passando do arco para 0 cesto, metaforicamente ele se forna wna mulher: Com efeito, a conjnngao do homem ¢ do arco nao se pode romper sem transformar-se no seu inverso e complementar: aquela da mulher e do cesto.” (p. 125) Filosofia e Educagao Volume 6, Nimero 3 utubro de 2014 [aossie 3 tecnologia e as téenicas coustituem o humano em qualquer momento de sua historia, por isso nao ha como colocar esse aspecto como a fonte da des- historicizagao do homem. Da perspectiva aberta por Hegel, e seguida por Kojeve e Agamben (2002, p. 16-20), a dissolugdo do Humano com o fim da historia ¢ o seu tomar-se animal outra vez, 0 voltar a se integrar a natureza, Noutra perspectiva, Heidegger manteve e exasperou a separagio entre animal e hnmano, mas pensou o humano em termos bucélicos, como pastor da physis e do ser. A partir de Nietzsche, a dissolugao nao é outra coisa que © desmoronamento de um artificio idealista-cristao que, ao se realizar como visio de mundo cientifica modema, abriu a possibilidade da emergéucia, nao do animal-natureza recalcado e esquecido, mas de outras possibilidades de espirimalizagao e artificializagao. O iibermenschlich nao & um animal ou ‘um nio-animal, mas um além outro da realizagio do espirito da tema, que, nesse devir, néo retoma a sua esséneia de outrora, mas sim realiza sua poténeia que é sempre possibilidade de outtidade. devir animal do humano, na leitura de Kojéve do texto hegeliano, 4j4 continha a nota da consciéncia infeliz, que indica que o fim da histéria nao torna o homem feliz, mas isso também se aplica ao devir-artefato do lumano. Nao esta em questo a felicidade ou a realizagao do humano na forma que ele pensa que € e se projeta, mas a experiéncia do além-de-si do homem fixado pela historia passada, delineado pela técnica da escrita e das, leis ético-politicas, conquanto este agora se realiza como méquina inteligente-espiritual. O que se realiza assim ainda ¢ humano, mas apenas em parte confirma a auto-imagem delineada nos tiltimos cinco mil anos; pois, em parte também ealiza algo que tem de ser nomeado apropriadamente de inumano Filosofia e Educagao Volume 6, Nimero 3 utubro de 2014 dossié [eossig Um ambiente artefactual © mundo dos artefatos, por mais complexa que seja a rede de conexdes € acoplamentos, determina-se pela forma de vida humana e suas necessidades. Todavia, esse fato, de que 0 humano agora é condigo para a existéncia de algo, constitu o problema principal, pois se antes a inteira natureza era colocada como condigao para a historia e a formagao do humano, agora a existéncia humana parece estar em fimg30 de sua propria criagio, os artefatos tecnologicos Ainda assim, as estruturas ¢ as fungdes, portanto 0 sentido, dos antefatos e sistemas tecnolégicos, apenas podem ser compreendidos a partir dos interesses necessidades da populagao humana, Essa condigao fornece a racional da tecnologia, até mesmo quando o hnumano aparece como apenas uma parte ou um trago interno aos sistemas maquinicos: uma espécie que red: f= seu metabolismo para se adequar a um nicho adverso de modo a sobreviver e se expandir, A légica da expansio teenolégiea e do aumento de aparatos maquinicos no ambiente humano representa uma atuagdo da espécie © dos individuos homo sapiens em nada diferente das atuagdes evolutivas transformadoras de outras espécies. O ambiente artefactual, contudo, € propriamente o mundo constrangido pela atitude teorética cujo ceme esta na prévia apreensio do que se da sempre como objeto manipulivel, A atitude teorética que dispoe tudo 0 que é experienciado como objeto ainda nao é a atitude teenologica. Esta emerge quando os objetos mesmos sio constituidos a partir de uma visada que os apreende enquanto potencialmente “argumentos” e “fungdes”, isto € uma apreensio objetiva funcional. A partir dessa apreensio a queda € entéo transforma-se ou em agua fragmenta-se em “queda” e “Agu fomecedora potencial de Agua a uma certa distancia, ou em fomecedora de energia, ou em reserva hidtica, ou em lago artificial para criagao artificial de Filosofia e Educagao Volume 6, Nimero 3 utubro de 2014 [cssig dossié peixes ou para recreagao ete. A queda ou Agua, ou ambas coujuntamente, agora so dados como argumentos de uma fingao cujo resultado & determinado exclusivamente pela fangao0. As posigdes de Heidegger e de Simondon podem ser sumarizadas como apreensdes diante do poder do artificial. Se Heidegger reclama para si © pensar meditante capaz de subsumir 0 pensamento que conduz 0 fenémeno da técnica modema sob a rubrica do perigo e da perda da esséncia do homem, Simondon nao € menos arqueolégico ao exibir positivamente o fato de que apenas educando-se tecnologicamente o homem pode estar a altura da autonomia dos objeto téenicos. No inicio desse século, todavia, essas posigdes sdo invidveis para quem quer continuar pensando. Nao é apenas o fato de que os exemplares de tecnologia, tomados por Heidegger e Simondon como paradigméticos, terem sido ultrapassados pelos novos artefatos maquinicos. Embora possamos sempre adicionar mais € mais exemplos que mostrariam os limites daqueles exemplares, o que importa sobretudo a atitude tedrica, isto é, 0 ethos da apreensio, que tem de ser abandonado, pois nela subjaz uma dicotomia metafisica, a qual, por seus prineipios, instaura como linha de inteligibilidade a baliza da separagao entre real e imeal, auténtico e inauténtico, fato e esséncia, poiesis exploragao, A retérica da integralidade, que opde a conservagao do natural e do tradicional, caracteristicos da técnica antiga, & exploragdo e ao desafio da natureza, inerentes 4 téenica moderna, permanece cativa da compreensio do ato de Galileu, ao submeter os corpos ao plano inclinado, como uma ofensa @ submissiio da natureza aos planos da razio. Em dois pontos essa compreensio da cigncia e da técnica dela derivada esta ultrapassada Primeiro, ela ndo mais é capaz de aprender a propria transformagao da ciéncia modema a partir de Newton, Darwin, Mendel, e sobretudo as teorias Filosofia e Educagao Volume 6, Nimero 3 utubro de 2014 dossié [eossig do século XX, pois a concepgao de natureza e de teoria so muito diversas da de Galileu; segundo, a separagao entre realidade fisical e realidade orgénica desaparece a partir das teorizagdes da termodinamica ¢ da quimica contemporanea, As entidades naturais, na perspeetiva da ciéneia atual, nao sio esséncias imutiveis e isoladas na sua identidade, que, por meio de um acontecimento qualquer, entologico ou pritico, poderiam ser desintegradas. Apenas quem fixou a vida humana e a natureza, digamos, na forma de uma pequena aldeia no alto Reno em meados do século XV, como configuragio poética da existéncia, pode pensar uma usina hidroelétrica e um motor a combustio como ruptura destrutiva e como perigo irreversivel. ‘A técnica e as tecnologias nao so o perigo, nem ameagam a esséncia do homem, pois nao se poe essa questao, visto o homem ser insepardvel do artefactnal. Justamente ao homem nao cabe a diferenga entre poético e explorador, pois essa oposigao mesma supde a vigéneia de uma vida que ndo & mais natural, pois, ua sua base estio atos e fatos poético- disposicionais que supde a natureza como sendo sempre ja disponivel para transformagdes e derivas. Em ontras palavras, “natureza” e “condigao Inumana” nao sao termos naturais ow esséneias que ao se alterarem por atos de ficgdo perderiam sua integralidade. Esses termos indicam antes fixagdes habituais de uma forma de vida que estabilizou sua situagao como ideal e etema, Os objetos téenicos antigos e os sistemas tecnolégicos contemporangos nio sto uma affonta a natureza e ao ser (esséneia), mas sim seu desdobramento e realizagao. Nem a natureza nem o humano se perdem, por exemplo, nas téenicas de modificagao genética na medicina e no uso de aparatos ciberéticos na educagito e ua socializagaio das eriangas: pois, o que ai estava e que agora é transformado foi também o resultado imprevisivel de alteragdes e rupturas a partir do que antes existia como natural. No sentido mesmno da ideia de educagio esti a ideia de desenvolver o que ai est em Filosofia e Educagao Volume 6, Nimero 3 utubro de 2014 [aossie 3 tensio com a ideia de instaurar através de artficios algo diferente. No gesto de recusa que quer afastar 0 tecnolégico, ao pensi-lo como contratio ao espitito, também se pode ver o desprezo pela educago em nome de alguma esséncia inaudivel ‘Uma resposta a altura que constitua uma projegao de futuro tem de recusar de saida a separago entre objetos técnicos e objetos autisticos, entre ante e tecnologia, pois ela que relega a vig éncia da técnica ao nio-espiritual € ao inumano. Recuperar a unidade entre ars et scientia, enguanto realizagdes e concrecoes do espirito, & 0 tinico caminho que preserva aquilo que constitui os humanos como humanos ¢ ao mesmo tempo abre a possibilidade de um uso criativo da tecnologia, Do mesmo modo que Husserl podia dizer que a atitude teorética cria uma postura humana que imediatamente engrena em toda a restante vida prética, com todas as suas exigéncias e fins, os fins dessa tradigdo histérica no interior da qual se fot educado ¢ de onde retiram a sua vatidade, a atitude tecnolégica perfaz 0 mundo e a educagio sob os quais formam-se os humanos atuais. Essa atitude quer ser universal, tal como a atitude teorética, mas diferente desta, quer dispor proprio mundo nos seus termos, isto é, requer-se também, como pritica, Por isso, a communidade tecnolégica ndo & mais apenas humana; o termo apropriado seria “trans-lhmana”, pois o proprio elemento Imumano 6, tal como o dado historico e o dado natural, ageneiado como um, objeto que vale enquanto argumento no interior do ambiente fimeional. © liame dessa comunidade, diferente da palavra franca na assembleia, & a palavra cifrada dos cédigos de maquina e linguagens artificiais A sepatagio, no plano da esséneia, proposta por Heidegger, entre arte ¢ técnica, e entre a antiga poiesis e a produgao tecnolégica, acentua a fenda que exclui a mentalidade tecnocientifica das mais altas balizas do espitito, as quais sio deixadas apenas com os artistas. Essa separagio nao é Filosofia e Educagao Volume 6, Nimero 3 utubro de 2014 dossié [cssig esseucial nem necessiia, e muito menos um destino, mas sim um autoengano herdado da compreensio nao-naturalista do espizito. Uma vez eliminado o engano dessa cisto, as manifestagdes artisticas ¢ tecnolégicas passam a ser vistas como uma apresentagao indivisa da mesma poténcia pela qual o humano se autoinstaurou como espirito frente a natureza, Recusar umas em favor das outras, como o fez Heidegger, ao aproximar a arte do fluir natural, € no perceber que tanto os artefatos tecnicos quanto os artefatos artisticos sio fatores constifuintes da naturezagenealégico- performativa do humano. Nesse sentido, a proposta de Simondon continua valida, qual seja, a de que a educagao das novas geragdes inclua a educagao para a convivénei nem servil nem dominadora, com os objetos técnicos. Apenas faz-se necessirio acrescentar que uma educagdo para a dimensdo espiritual inclui a educagao artistica. Por isso, uma nova educagao, baseada na fusdo entre arte € tecnologia, enquanto ambas so as concregdes do espitito, ¢ a tinica alternativa capaz de evitar tanto a catistrofe que seria o império da exploracio e da dominancia tecnocritica quanto a derrocada do espirito que seria 0 retrocesso ao liame naturalista. A. conjungao de modos de decisio, instituigdes, habitos, normatizagio, conformagio do desejo e da imaginagao, do discurso cientifico e das artes, das perspectivas de fituro e da propria vida individual e coletiva, na forma de aparatos teenolégicos que se interligam em sistemas de acoplamento sincronizagao, perfaz 0 mundo atual como uma maquina que, embora ainda nao absoluta, retira suas forgas nao mais da relagio imediata com os ciclos da biosfera, mas sim de algoritmos e mecanismos, conformando assim uma existéncia maquinica na qual humano tanto se instaura quanto se conforma. O sentido e a forma da vida humana agora esta indissociavelmente ligado configuragaio do espago vital pela logica dos Filosofia e Educagao Volume 6, Nimero 3 utubro de 2014 dossié sistemas tecnolgicos. Nesse espago esto os germes da nova face humana e as indicagdes da nova educagao para uma atitude transumana, Sem divvida, sempre poderemos recuar para estagios anteriores ou nos fixarmos em figuras passadas do espirito. Todavia, 0 ceme da espiritualidade sempre esteve associada a semovéncia antes que ao apego ao passado. Ainda assim, sem assombro, a nossa hora exige uma espiritualidade licida que recuse tanto © canto sedutor da renaturalizagio quanto as tentagdes da vida maquinica, © humano agora precisa recuar de sua soberania irrefletida sobre a natureza, sobretudo quando ela se explicita como construgao de maquinas inteligentes, 0 que nao significa de modo algum o retomo a vida bucélica pré-modema Nada perdeu a poesia Uma constante no discurso negativo e alarmista diante do carter pervasivo dos sistemas teenolégicos é 0 refiiio da perda da arte e da poesia, estas associadas intrinsecamente & vida espiritual. O avango das técnicas e tecnologias na configuragao da vida humana implicaria o perigo da perda da dimensio poética. Contudo, essa apreensao claramente uma ilusdo, tanto em relagao ao poético quanto em relagao ao espirito. Com efeito, em todas as passagens para atitudes transformadoras, houve poetas que cantaram © “antes do fim” tanto quanto o “depois do fim”, nenhum foi menos poeta ou menos espiritual. Femando Pessoa era liteido quanto a isso: Nada perdeu a poesia, E agora hé a mais as maquinas Com a sta poesia também, e todo 0 novo género de vida Comercial mmundana, intelectual, sentimental, Que a era das maquinas veio trazer para as almas (Ode Triunfal) Filosofia e Educagao Volume 6, Nimero 3 utubro de 2014 dossié [eessig 9 Os defensores dos “velhios bons tempos” podem sempre fazer a pose do Velho do Restelo? e amaldigoar os “novos tempos”, porém 0 fato & que eles mesmos educaram as geragdes para esse desejo e para essa forma de mundo. Essa réplica, todavia, é inexata, pois menhuma geragio passada conseguit evitar o futuro que as colocatia como ultrapassadas. Nesse sentido, a era tecnolégica, configurada que & pelos aparatos e sistemas maquinicos, impée-se como se fosse um destino e nio uma escolha do homem politico ow religioso. Da natureza biolbgica nés nos afastamos a unuito tempo, Esse afastamento ndo foi também uma decisio, mas ainda assim também nfo foi um destino, mas uma escolha reiterada por milénios e milénios a cada vez que um gmpo um individuo optava por uma regra arbitréria contriia & deriva natural, Ao agir assim por reiteragdo do artficio, © espirito humano alcangou a fase de sua existéncia na qual sen gesto se quer ndo-biolégico e nfo-orginico. Esse espirito agora configurase espelhando-se na figura da retocdvel perfeigdo maquinica. Assim provocados, nés temos a oportunidade de rever a secular violéncia contra a natureza em nés ¢ fora de nds pela qual nés nos configuramos. Diante de uma méquina inteligente, nil podemos nao ver isso que se mostra como aquilo que as mais das vezes e seguidamente gostariamos de ser, mas também de perceber o quanto a natureza ainda vive através de nosso espirito cultivado Nada perdeu a poesia, nada perdeu a humanidade na era dos aparatos tecnoldgicos. As minhas consideragdes, se ndo compactuam com a tese de que a era tecnologica significa a perda da esséncia humana e natural, também nao se unem Aqueles que enxergam na técnica e na tecnologia o complemento superador da suposta caréneia natural do humano. Ao evitar Personagem d'Os Lusiadas, de Camdes (canto IV, estincias 94-104). (N. do Ed.) Filosofia e Educagao Volume 6, Nimero 3 utubro de 2014 dossié conceber a tecnologia seja como perda, seja como complemento, o que se evita é pensi-la como um acontecimento exterior 4 realizagao do espitito. Artefatos, técnicas e sistemas tecnolégicos so expressdes e expansdes do espirito do mesmo modo que arte 0 é. Nao tanto a necessidade, a caréneia, enfim, a finitude, esta na origem das técnicas e tecnologias, mas antes aquele impulso que quer ir além da vida e da uatureza enquanto elas nto bastam, como disse Pessoa sobre a arte e a literatura, Ao recusé-las, a técnica ¢ a tecnologia, recusa-se o espirito do mesmo modo que com a renegagao da arte, O visado é uma posigio que nao mistifique o acontecimento, ¢ mantenha desassombrada frente ao perigo e a sedugao da absolutizagio dos sistemas tecnolégicos. © humano habita poética e tecnologicamente o mundo: o seu ter mundo é sempre um perfazer mundo por meio do attificio, Aexisténcia humana néo é antes poética e depois técnica; e também nao € antes carente e indeterminada e por isso técnica, ¢ muito menos prictitariamente desejo e entio tecnoldgica, Os artefatos, técnica e tecnologias abrem o mundo humano, e a atitude poética emerge em sua plenitude apenas quando assume essa abertura, Nesse ponto o filme de Tarkowski, Stalker, continua sendo uma imagem mais acurada da condigao humana. O cientista e o artista, ambos apostam nos favores da abertura, apenas aquele que & capaz de os conduzir até 14, ali se orientar e voltar para casa no pode gozar nem da viagem nem da experigncia. A figura basal do espirito humano é a do sraiker, embora sejam 0 engenheiro € 0 escritor os que paregam melhor apresenti-la de modo completo. Uma reviravolta em diregdo a uaturalizagdo do humano nao esti 4 vista nem & desejavel, pois, isso significaria um desabrigo do espirito. Mas disso nao se segue que © Imumano nao possa se projetar como uma forma de existéncia pos- tecnolégica, no sentido de uma vida humana que, se nio se submete aos Filosofia e Educagao Volume 6, Nimero 3 utubro de 2014 dossié [ecssig a aparatos técnicos, também nao se reduz aos ciclos naturais, justamente por emergir poeticamente com base e para além dos aparatos tecnolégicos. Referéncias AGAMBEN, Giorgio. L'perte: L'somo ¢ lanimake. Torino, Bollati Botinghiesi, 2002 BRAIDA, C. R. 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