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CFESS Manifesta

O trabalho de assistentes sociais em situações de calamidades


Brasília (DF), 21 de março de 2022
Gestão Melhor ir à luta com raça e classe
em defesa do Serviço Social www.cfess.org.br

SÉRIE
situações de
‘desastres’
requerem
assistentes
sociais.

E agora?

responsabilidade ética, leitura crítica,


prevenção, planejamento, respostas concretas às
demandas imediatas e articulação com os movimentos
sociais são alguns dos caminhos para intervenção
do serviço social em situações emergenciais, que
quase nunca são eventos isolados, e sim resultados
da sociedade capitalista.
CFESS Manifesta O trabalho de assistentes sociais em situações de calamidades Brasília (DF), 21 de março de 2022

sociais e de uma histórica expropriação e capitalização do


território, o que implica em ocupações precárias e em áre-
as de risco. Estas não são situações pontuais, imprevisíveis,
naturais. Estas são, senão, expressões próprias da “questão
social” em sua forma mais agudizada.

N
este mês de março de 2022, completam-se dois
anos desde que a Organização Mundial de Saúde A responsabilidade ética e a
(OMS) declarou o estado de pandemia de Co- leitura crítica
vid-19. Neste contexto de crise, que não é só
sanitária, mas social, econômica, ambiental e po- O Código de Ética do/a Assistente Social, no artigo 3º, alínea
lítica, grande parte da categoria de assistentes sociais foi con- d, prevê a participação da categoria nas situações de cala-
vocada para atuar na chamada linha de frente, para atender midades: “participar de programas de socorro à população
às camadas sociais mais expostas à situação de calamidade. em situação de calamidade pública, no atendimento e defesa
Situação essa que não se resumiu só à questão sanitária. de seus interesses e necessidades”. Contudo, há que se fazer
Em dezembro, janeiro e fevereiro, os estados da Bahia, Minas uma leitura das provisões deste artigo sob a perspectiva da
Gerais e Rio de Janeiro foram atingidos por temporais que atuação crítica.
alagaram municípios, causando desmoronamentos, rompi- A ausência das condições mínimas de moradia, com segu-
mento de barragens e encostas, que resultaram em centenas rança e dignidade para um número considerável da classe tra-
de mortes e milhares de famílias desabrigadas. balhadora, especialmente a mais precarizada, são reflexos da
Então, para se falar do trabalho de assistentes sociais em própria lógica do capital, produtora de desigualdade e pobre-
situações de calamidades, em primeiro lugar, é necessário afir- za, associada à ausência de compromisso do Estado neoliberal
mar: a crise ambiental é resultante do modelo capitalista e da na implementação de políticas públicas que tragam soluções
sua ganância infinita e sem limites, voltada à exploração exa- efetivas e permanentes para as demandas dessas populações.
cerbada das diversas frações da classe trabalhadora e do plane- Dessa forma, as práticas político-institucionais adotadas
ta, necessárias para o processo de acumulação no capitalismo. pelo Estado concorrem para vulnerabilizar certos grupos so-
O processo de desenvolvimento econômico se dá na cria- ciais. E uma apreensão sem um olhar crítico sobre esse pro-
ção de zonas de sacrifício. Desenvolve-se sacrificando pesso- cesso contribui para individualizar e culpabilizar os sujeitos
as, sacrificando os corpos. Esses corpos têm classe, cor, raça, pelas adversidades que os acometem.
gênero e etnia. Por isso, uma das tarefas da categoria nesse processo é,
Não à toa, a legislação ambiental vem sendo fragilizada, por meio da dimensão investigativa do trabalho profissional,
ignorando a existência dos povos e comunidades originárias colaborar para a construção de respostas que se distanciem
e tradicionais, do que se evidencia o desmantelamento das de ações pontuais, fragmentadas, imediatistas, com base no
legislações brasileiras, a entrega da Amazônia a madeireiros, argumento de que se trata de situações esporádicas, inespe-
grileiros, garimpeiros e dos territórios para multinacionais. radas e inevitáveis. Nas situações de calamidades, é certo que
Este é o chamado racismo ambiental, que expressa a carga as mais diversas expressões da “questão social” já presentes
desproporcional dos riscos, dos danos e dos impactos sociais nos territórios se ampliam e se agudizam.
e ambientais sobre os grupos étnico-raciais mais vulneráveis. E mesmo diante de situações de calamidades que exi-
Portanto, quando se fala em situações de calamidades, é gem respostas profissionais imediatas e, na maioria das ve-
preciso compreender que não se trata de “desastres naturais”, zes, nunca vivenciada por assistentes sociais, a profissão
eventos isolados, inesperados, casuais, descolados da socia- oferece fundamentos teórico-metodológicos, ético-políticos
bilidade burguesa. e técnico-operativos que asseguram o trabalho profissional
O que é chamado de “calamidade” ou “desastre” faz par- na direção de construção de respostas qualificadas frente às
te de uma histórica política desigual de acesso às riquezas mais diversas demandas.
Brasília (DF), 21 de março de 2022 O trabalho de assistentes sociais em situações de calamidades CFESS Manifesta

religiosos, compreensões equivocadas de solidarieda-


de, compaixão, generosidade são enaltecidas, em
Alerta para o imediatismo e detrimento dos valores ético-políticos profissio-
para as ações focalizadas nais presentes no Código de Ética. Pode haver
também uma percepção equivocada do Códi-
Historicamente, nas situações de calamidades, assistentes so- go de Ética, que, ao atuar em calamidades, a
ciais são chamados/as para o trabalho de enfrentamento aos categoria está “promovendo o bem comum”,
impactos pós-situação de calamidades e nos atendimentos reforçando, inclusive, uma imagem conser-
delas decorrentes. Há, portanto, uma ação posta para o Servi- vadora da profissão.
ço Social neste campo, que direciona a categoria a compare- Ao ser convocada para cumprir o dever
cer para o trabalho junto aos órgãos de proteção e defesa ético de socorro à população em situação
civil, e ainda e especialmente na direção das provisões da de calamidade pública, a categoria de
política pública de assistência social. assistentes sociais deve fazê-lo de ma-
Essa dinâmica acaba impondo, muitas vezes, um trabalho es- neira competente, articulando, na
porádico, focalizado e eventual, tratado como ações emergenciais. prática, as dimensões ético-política
Ainda que necessárias, é preciso refletir sobre tais demandas. e teórico-metodológica do Serviço Serviço social
A reflexão crítica, sustentada pelo arcabouço teórico-me- Social. É assumir os compromissos
todológico do Serviço Social, não busca invalidar o trabalho éticos com um novo projeto socie-
de assistentes sociais em situações de calamidades nos mo- tário, livre de exploração (de recur-
mentos de emergência, mas qualificar as ações da categoria, sos humanos e ambientais), opres-
na direção de suas competências profissionais, fundamenta- são de classe, raça, etnia e gênero.
das na Lei 8.662/1993.
Nessas situações de emergência, é comum a tendência
de ações fragmentadas, focalizadas e sem continuidades, que Planejamento/continuidade
podem ocorrer nos espaços de trabalho vinculados à Defe- das ações
sa Civil, nas respostas construídas via Política Nacional de
Assistência Social (PNAS), e também nas frentes construídas É preciso pensar nas intervenções de assistentes sociais não
pelos municípios, envolvendo os diversos serviços em que somente na execução, mas em todo processo de planeja-
a categoria está inserida para o atendimento às famílias: a mento, elaboração e execução. A categoria tem condições de
retirada da população das áreas; o cadastramento de famílias contribuir na prevenção das situações de calamidade, gerar
para concessão de benefícios, entre outros direitos; a gestão conhecimento sobre os riscos, construir respostas e frentes
de abrigos e donativos, etc. que busquem a viabilização do acesso a direitos diante das
É preciso estar alerta à ausência de preparo técnico prévio - calamidades, assim como atuar na recuperação e reconstru-
não ofertado pelos municípios, estados e governo federal - dei- ção dos territórios, impactando social e culturalmente nas
xando as equipes multiprofissionais sem respaldo, sem orien- vidas das pessoas afetadas.
tações, suporte, o que impacta diretamente na qualidade dos Ou seja, trabalhar na construção de respostas, mas tam-
serviços prestados e agrava o quadro de situações imediatistas. bém nas respostas posteriores aos impactos. Para isso, são
Assim, construir estratégias que exijam, das autoridades e do necessárias condições éticas e técnicas asseguradas pelos ser-
poder público, capacitações com vistas a preparar os serviços e viços e políticas sociais.
equipes é uma ação que deve estar na agenda de assistentes sociais. É nessa direção que é preciso defender a continuidade das
ações, visando a enfrentar a realidade vivenciada após o mo-
mento de emergência, quando a mídia para de noticiar, o ime-
não é voluntariado, diato passa e a realidade dos sujeitos e da família permanecem.
e sim trabalho profissional O que se observa é a sobrecarga das equipes e dos serviços - já
que as expressões da “questão social” se agravam e mais famí-
Infelizmente, tem sido presente no exercício profissional lias precisam das políticas sociais. E as demandas ocasionadas
nas situações de calamidades - desde os rompimentos de pelas situações de calamidades, em sua maioria, não foram
barragens, pandemia, deslizamentos de terra, enchentes, atendidas, quando muito, apenas parte das demandas.
etc; - uma cultura voluntarista, em que valores pessoais e

Instrumental em mãos e
articulação com movimentos
sociais

Um pressuposto central para uma atuação crítica é conhecer


também o aparato legal, instrumental que pode orientar o
trabalho nessas situações. Por exemplo: os Planos de Respos-
tas a Emergências e/ou Planos de Contingência; a Política Na-
cional de Proteção e Defesa Civil (Lei 12.608/12); os progra-
mas e projetos que os municípios/estados podem construir; e
as próprias legislações da profissão.
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É fundamental também estar ao lado dos mo-


vimentos sociais no processo de mobilização popu- É preciso olhar para as
lar junto a pessoas atingidas e suas comunidades (ir)responsabilidades públicas
em organizações, como o Movimento de Atingidos e privadas envolvidas nas
por Barragens (MAB), o Movimento de Atingidos ‘calamidades públicas’, para que
por Mineração (MAM), a Comissão Pastoral da Ter- assistentes sociais possam, junto
ra (CPT), os Movimentos de Lutas por Moradia nos com as populações atingidas,
grandes centros urbanos, lideranças populares nos cobrar justiça e proteção social e
territórios, entre outros, que estão cotidianamente seguir mantendo vivas na memória
apresentando este ponto de alerta na defesa da po- as marcas das “tragédias”, para
pulação, sobre o uso da terra, a função social da que elas se transformem em luta e
propriedade e a territorialidade, na perspectiva do para que nunca mais aconteçam.
direito à cidade.
Portanto, é nas situações de calamidades que É na aposta de um trabalho profissional sentes no projeto profissional do Serviço Social.
assistentes sociais devem defender ações vin- mediado pelo projeto ético-político do Ser- Para que mudanças ocorram, assistentes so-
culadas a outras etapas de enfrentamento que viço Social, que se reforça a necessidade de ciais têm a escuta como instrumento de traba-
envolvem a gestão das calamidades públicas, de se enfrentar: a) a abordagem hegemônica de lho primordial: é necessário ouvir das pessoas
planejamento e avaliação das políticas institucio- “desastres”, calamidades públicas; b) a culpa- atingidas pelas “calamidades públicas” sobre
nais; demonstrar sua competência na construção bilização dos sujeitos pelas suas condições de suas necessidades e interesses, para além da-
de respostas qualificadas vinculadas às atribui- vida e moradia; c) a prevalência de práticas quelas obviamente imediatas.
ções, ancoradas em valores ético-políticos e fun- imediatistas. É preciso olhar para as (ir)responsabilida-
damentos críticos, que possibilitem inclusive É fundamental que a categoria conheça pro- des públicas e privadas envolvidas nas “cala-
enfrentar relações subalternizadas, a mercê das fundamente o território onde atua; é urgente midades públicas”, para que assistentes sociais
ordens e interesses de outras profissões. exigir das prefeituras capacitações prévias para possam, junto com as populações atingidas, co-
as situações de calamidades. O que pressupõe brar justiça e proteção social e seguir manten-
o planejamento do trabalho profissional e um do vivas na memória as marcas das “tragédias”,
Formação e qualificação amplo conhecimento dos pressupostos da pro- para que elas se transformem em luta e para que
contínuas fissão, bem como seus marcos legais elaborados nunca mais aconteçam.
pelo Conjunto CFESS-CRESS.
É importante salientar que o processo de for- Assistentes sociais podem e devem contri- Dicas de
mação de assistentes sociais habilita a catego- buir na elaboração dos planos diretores, nos leitura
ria a intervir em diferentes frentes. Todavia, o processos de regularização fundiária, na gestão sobre o
processo de formação não deve se extinguir de terras, na elaboração dos planos de constru- tema
com o fim da graduação. Posto isto, ao atuar ção e distribuição de moradias populares, na Onde estamos e para onde vamos?
nas situações de catástrofes, calamidades e “de- educação ambiental crítica, com a perspectiva Notas sobre o exercício profissional de
sastres”, assistentes sociais devem estar atentas/ da participação popular, voltada à mobilização assistentes sociais em desastres
os aos pressupostos e fundamentos da própria da população. Adriana Soares Dutra
profissão, para superar, na imediaticidade da Com as mais diversas ações educativas, que Atuação do Sistema Único de
emergência que se instala, ações conservadoras, vão desde a realização de cartografias sociais, ações Assistência Social (Suas) em situações
desprofissionalizadas, subalternizadas e que fo- educativas sobre os determinantes estruturais e de calamidade pública e emergências
gem completamente das atribuições e compe- conjunturais sobre calamidades, assim como ações Alessandra Celita
tências profissionais. mais diretas junto aos órgãos e responsáveis. Calamidades públicas: como fica a
Assim, cabe à categoria a exigência de ca- Tem-se, portanto, colocada a urgência de se atuação profissional neste contexto?
pacitações continuadas para atendimentos em pensar o trabalho profissional nas situações de Série de conteúdos do CRESS-MG
situações de emergência, bem como a manu- calamidade para além da imediaticidade em que Política Nacional de Proteção e Defesa
tenção contínua das devidas articulações com essas situações se impõem, e pensar a inserção de Civil (Lei 12.608/12)
as diferentes políticas sociais e a aproximação assistentes sociais nos espaços de gestão de situ- Governo Federal
e apropriação da realidade das famílias que vi- ações de calamidade reconhecendo como espaço Plano de Resposta às Emergências em
vem em territórios de “risco”, inclusive porque de exercício profissional, cuja contribuição deve Saúde Pública
muitas dessas famílias são vítimas de ações tru- ser fundamentada nos princípios e valores volta- Governo Federal
culenta de despejos, sem provisão do direito à dos para a garantia de direitos, da democracia, Serviço Social contra a Covid-19
moradia digna. da equidade, da justiça social, entre outros pre- Site do CFESS

Gestão Melhor ir à luta com raça e classe em defesa do Serviço Social (2020-2023)
Presidenta Elizabeth Borges (BA) Suplentes CFESS MANIFESTA
Vice-presidenta Maria Rocha (PA) Elaine Pelaez (RJ) O trabalho de assistentes sociais em situações de
1ª Secretária Dácia Teles (RJ) Carla Pereira (MG) calamidades
2ª Secretária Daniela Möller (PR) Mauricleia Soares (SP) Conteúdo (aprovado pela diretoria):
NOSSO ENDEREÇO
SHS Quadra 6 - Bloco E -
1ª Tesoureira Kelly Melatti (SP) - licenciada Agnaldo Knevitz (RS) Comissão de Orientação e Fiscalização (Cofi)
Complexo Brasil 21 - 20º Andar 2ª Tesoureira Franciele Borsato (MS) Dilma Franclin (BA) CRESS-MG
CEP: 70322-915 - Brasília - DF Emilly Marques (ES) Organização: Comissão de Comunicação
Fone: (61) 3223-1652 Conselho Fiscal Ruth Bittencourt (CE)
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Revisão: Diogo Adjuto
cfess@cfess.org.br Lylia Rojas (AL), Priscilla Cordeiro (PE) Eunice Damasceno (MA) Artes, ilustrações e diagramação:
www.cfess.org.br e Alessandra Dias (AP) Kênia Figueiredo (DF) Rafael Werkema e Rebecca Santana (estagiária)

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