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CENTRO DE HUMANIDADES

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
CURSO DE GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
DISCIPLINA: HI0007 – HISTÓRIA DA AMÉRICA II
DOCENTE: ANA AMÉLIA DE MOURA CAVALCANTE DE MELO

LAÍS DELFINO NOGUEIRA 422412

DITADURA ARGENTINA E LITERATURA: PRODUÇÃO LITERÁRIA, CENSURA E


RESISTÊNCIA

FORTALEZA
2022
LAÍS DELFINO NOGUEIRA

DITADURA ARGENTINA E LITERATURA: PRODUÇÃO LITERÁRIA, CENSURA E


RESISTÊNCIA

Trabalho apresentado à disciplina HI0007 -


História da América II do Departamento de
História da Universidade Federal do Ceará
como requisito para a obtenção da nota
semestral.

Docente: Profa. Dra. Ana Amélia de Moura


Cavalcante de Melo.

FORTALEZA
2022
DITADURA ARGENTINA E LITERATURA: PRODUÇÃO LITERÁRIA, CENSURA E
RESISTÊNCIA

Durante os anos de 1976 a 1983, a Argentina viveu sob um dos mais nefastos e
sanguinários regimes ditatoriais da América Latina. O anunciado “Processo de Reorganização
Nacional” se propunha a controlar e eliminar qualquer ameaça aos planos regeneradores da
ordem instituídos pelos militares, perpetrando barbáries em nome de um suposto “interesse
nacional”. O período foi marcado pela perseguição e repressão a todas as existências
consideradas dissidentes e as atrocidades cometidas pelo terrorismo de Estado escreveram um
dos capítulos mais brutais da história recente do país; em sete anos, estima-se que o regime
deixou um saldo de mais de 30 mil desaparecidos. Dentre os mecanismos de opressão e
violência utilizados pelo governo golpista para silenciar seus opositores, a tortura, a morte e a
censura foram os mais aplicados. Com os meios de comunicação de massa controlados pelos
militares, a imprensa sufocada pela censura oficial e a sociedade em geral imersa em um
clima de autocensura, dezenas de milhares de argentinos que lutavam contra o governo se
viram obrigados a fugir do país. Nesse devastador cenário, o discurso literário se estabeleceu
como ferramenta de resistência para combater o discurso militar, que preenchia de silêncios os
sentidos, como um meio metafórico para se falar aquilo que era proibido, para denunciar o
indizível, servindo ainda de relato, de arquivo e de protesto.
Os anos de ditadura provocaram mudanças profundas no campo intelectual e cultural
da sociedade argentina. As políticas de silenciamento ressoavam nas listas de obras proibidas,
na perseguição a autores considerados “subversivos”, na queima e destruição de livros, no
controle de publicações e na censura às bibliotecas. No caso dos escritores, a perseguição e a
censura faziam parte de um processo racional e planejado de repressão, uma verdadeira
infraestrutura de controle que operava por meio da violência física e simbólica. Impedir a
circulação das ideias contrárias ao regime era fundamental para o êxito do projeto militar. Mas
para além disso, havia ainda a pretensão maior de disciplinar a sociedade, de impor uma nova
forma de viver e de pensar, a partir da produção de discursos, imagens e tradições culturais
que solidificassem os valores do suposto “ser argentino”. Nesse sentido, os pesquisadores
Judith Gociol e Hernán Invernizzi, autores da obra Un golpe a los libros – Represión a la
cultura durante la última dictadura militar (2003), defendem que a ditadura atuou de forma
muito bem planejada e nada casual: “[...] la estratégia hacia la cultura fue funcional y
necesaria para el cumplimiento integral del terrorismo de Estado como estratégia de control e
disciplinamento de la sociedad argentina” (GOCIOL; INVERNIZZI, 2007, p. 23).
O medo, um sintoma existente em todo o período autoritário, esteve também presente
nos anos anteriores ao golpe, frente ao cenário extremamente conturbado em que o país se
encontrava. Os autores Marcos Novaro e Vicente Palermo situam a Argentina pré-1976 em
meio a uma crise terminal: a inflação disparava, o déficit público alcançava recordes
históricos, o governo se debatia em uma grave crise institucional e a violência política
registrava números assombrosos. Às margens de um inferno dantesco, a sociedade foi tomada,
segundo os autores, por um sentimento generalizado de apatia e descrença, resultado de um
processo de desmobilização popular experimentado em meados dos anos 1970; tratava-se de
um “[...] resignado acatamento da vontade militar, muito mais do que uma adesão entusiasta a
seu programa e sua suposta ‘missão salvadora’ ou à instauração de um regime autoritário
prolongado.” (NOVARO; PALERMO, 2007, p.32). Encurralada pela violência, pela
corrupção e pelo desvario governamental, a sociedade argentina encontra-se desarticulada em
todas as instâncias quando do momento do golpe. Dessa maneira, os autores concluem que a
“profundidade da crise” de caos e desgoverno deixou o caminho livre para os ativistas
golpistas.
Em análise sobre as marcas deixadas pela ditadura na literatura argentina a partir da
década de 1970, o jornalista David Marcial Pérez aponta que o tema da polarização política,
que durante esse período convulsionava a sociedade argentina, já estava presente em obras
como O Matadouro, de Esteban Echeverría, em meados do século XIX. Escrita entre 1838 e
1840, a obra, considerada como o primeiro conto argentino, faz uso das cenas de um
matadouro em Buenos Aires como metáfora para versar sobre a brutalidade do regime de Juan
Manuel de Rosas. Questões como a perda do indivíduo em meio à barbárie do autoritarismo,
perseguição e violência política são abordadas na obra por meio do uso da alegoria como
ferramenta literária.
A ditadura acabou por ter na censura e no exílio as principais consequências da
produção literária. A censura, em suas múltiplas faces, nem sempre se manifestava de maneira
explícita; não se fazia presente apenas nas proibições diretas e anunciadas, mas também no
impedir, no ocultar e no destruir. As marcas do exílio, por sua vez, promoveram na literatura
uma fratura sentida através de gerações. O escritor e professor Mario Goloboff assinala que a
literatura que nasce do exílio é gerada também pela ausência, pelo espaço, pelo vazio das
páginas em branco: “a literatura daquilo que não se tem e de onde não se está”. “Hay una
buena parte de una buena literatura que se nutre de la pérdida y de la ausencia, y eso me há
llevado a pensar, extremando quizás las cosas, que la propia literatura es exilio, pérdida,
ausencia”. (GOLOBOFF, p. 13, 1987).
Para o escritor Julio Cortázar, um dos nomes mais conhecidos da literatura argentina, o
exílio – sendo fato real ou tema literário – e o sentir-se ou não estrangeiro eram um problema
de múltiplas facetas. Em suas palavras, representavam uma “interrupção do contato de uma
folhagem e de um enraizamento com o ar e a terra conaturais, como o brusco final de um
amor, como uma morte inconcebivelmente horrível porque é uma morte que se continua
vivendo inconscientemente." (CORTÁZAR, 2001, p. 149).
Além da perseguição, da repressão, da tortura, e do desaparecimento e morte aos
milhares de dissidentes políticos, cidadãos civis, intelectuais e artistas que insistiam em
resistir, o governo golpista também foi eliminando, pouco a pouco, os centros culturais e
editoriais com o objetivo de impedir qualquer tipo de divulgação de conteúdos críticos ou
questionadores. Neste período, surgem como espaços de resistência as oficinas literárias –
iniciativas de professores demitidos das universidades que, buscando sua subsistência e a
continuidade do incentivo à criação literária, promovem cursos paralelos na clandestinidade.
Dessa maneira, ao passo que buscavam eliminar a resistência, os órgãos de poder autoritário
tentavam também invalidar toda a produção intelectual que os questionasse, em um duplo
movimento de menosprezar o valor da cultura e associá-la ao subversivo e ao criminoso.
Nesse sentido, Cortázar nos aponta uma outra dimensão da censura: “e há uma coisa ainda
pior, aquilo que poderíamos chamar de exílio interior, posto que nos nossos países a opressão,
a censura e o medo esmagam in situ muitos jovens talentos cujas primeiras obras prometiam
tanto”. (CORTÁZAR, 2001, p. 149-150).
Em uma realidade onde as vozes dissidentes deviam ser silenciadas ou desterradas, a
produção literária, ainda que profundamente atravessada pela dor da perda, da censura e do
exílio, emergiu como espaço de resistência. Esta deu-se, de maneira geral, a partir de duas
frentes: uma interna, composta por alguns dos escritores que permaneceram na Argentina e
que, portanto, viviam sob a mira da censura e da violência política, enfrentando o regime com
os recursos alegóricos de uma literatura criativa e crítica; e outra externa, exercida a partir do
trabalho de denúncia feito pelos escritores exilados. Ambas desempenharam um papel
fundamental na construção de uma rede de oposição e de uma resistência possível em tempos
de agressiva repressão.
Marcando um ano do golpe que depusera Isabel Perón, naquele que seria o seu último
trabalho, Rodolfo Walsh denunciava as barbáries do governo militar:
A censura de imprensa, a perseguição a intelectuais, o mandado de busca na minha
casa em el Tigre, o assassinato de amigos queridos e a perda de uma filha que
morreu combatendo-os, são alguns dos fatos que me obrigam a esta forma de
expressão clandestina depois de ter opinado livremente como escritor e jornalista
durante quase trinta anos. (WALSH, 1977).

Rodolfo Walsh, jornalista, escritor e militante argentino, foi emboscado em 25 de


março de 1977, horas depois de distribuir aos jornais cópias de sua Carta Aberta à Junta
Militar, considerada como um dos documentos mais importantes contra a ditadura. Seu corpo
nunca foi encontrado. Com uma vida dedicada à luta política e atravessada pela brutalidade do
autoritarismo, Walsh comprometeu-se até o último momento com o árduo dever de denunciar
o inominável, de difundir a informação com vias a derrotar o terror e o obscurantismo.
“Aquilo que os senhores chamam de acertos são erros, aquilo que reconhecem como erros são
crimes, e aquilo que omitem são calamidades.”
Em conclusão, compreende-se que a literatura produzida durante a ditadura militar
argentina despertou uma série de “consciências literárias” sobre as trajetórias e experiências
sob o autoritarismo, tanto em sua dimensão documental como em seu caráter ficcional e
imaginativo. Não seria possível assimilar uma realidade política tão complexa, brutal e
pungente sem o exercício de reflexão através do signo da memória e o deslocamento que só a
imaginação pode nos proporcionar. Uma vez que reconhecemos o importante papel do
discurso literário no diagnóstico da violência vivenciada pela sociedade do período, podemos
entender a sua potencialidade enquanto espaço de resistência. Apenas a palavra é capaz de
superar o silenciamento e o esquecimento; apenas a palavra é capaz de evocar os sentidos
perdidos e violados. Valendo-se das estratégias de resistência possíveis, as produções literárias
insurgiam contra o monopólio do discurso, disputando lugares e forças, insistindo em não
sucumbir.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CORTÁZAR, Juilo. Obra Crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. Capítulo
América Latina: exílio e literatura.

FERRI, Daniara Zampiva. Máquina de fazer silêncios: O reflexo da censura nas bibliotecas


e na produção literária da Argentina durante o Golpe Militar de 1976. Orientador: Profa. Ma.
Marlise Maria Giovanaz. 2017. Trabalho de conclusão de curso (Bacharelado em
Biblioteconomia) - Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação, Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, [S. l.], 2018.

GOLOBOFF, Mario. Las lenguas del exilio. Disponível em:


<http://www.persee.fr/doc/ameri_0982-9237_1990_num_7_1_1010> Acesso em: jul. 2022.

INVERNIZZI, Hernán; GOCIOL, Judith. Un golpe a los libros: represión a la cultura durante
la última dictadura militar.2 ed. Buenos Aires: Eudeba, 2003.

NOVARO, Marcos & PALERMO, Vicente. La dictadura argentina (1976-1983): del golpe
de estado a la restauración democrática. Buenos Aires: Paidós, 2003.

SADER, Emir; JINKINGS, Ivana et. al. (Coord.). Enciclopédia contemporânea da América


Latina e do Caribe. São Paulo: Boitempo Editorial, 2006.

WALSH, Rodolfo. Carta aberta de um escritor à Junta Militar. Archivo Nacional de La


Memória: Argentina, 1977.

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