Você está na página 1de 154

i f r i f ” '"w ' T*r -w-

Ungulani Ba Ka Khosa

alcance
ec!it;rs.s
Titulo: CHORIRO
Autor: UNGULANI BA KA KHOSA

Revisão: BENILDE VIEIRA


Fotografias da Capa: JESUS

Editora: ALCANCE EDITORES

© A L C A N C E E D IT O R ES
comercial@alcanceeditores.co.mz
Tel: +258 826 714 444 • Fax: +258 21 312 704
Maputo, 1.a edição, Setembro de 2009
R LIN LD N.° 5999

No Alcance de uma Educação de Futuro.


As médicas Ana Olga Mocumbi
e Luísa Panguene,
minhas infalíveis curandeiras nos ossículos da modernidade.
A Salomé, óbvio.
Notas do Autor

Este retrato de um espaço identitário, de uma utopia que se fez verbo,


assentou na rica e impressionante História do vale do Zambeze no chamado
período mercantil. A intenção do livro foi a de resgatar a alma de um tempo, a voz
que não se grudou aos discursos dos saberes. O fundamento Histórico valeu-me
como porta de entrada ao mundo de sonhos e angústias por que o vale do Zambeze
passou durante mais de quatro séculos.
Aos que me abriram as portas, a referência maior fica para Allen e Barbara
Isaacman, casal iluminado na reconstrução do edifício social, económico, político
e cultural do vale do Zambeze desde a primeira escopetada de um desconhecido
português em finais do século XVI. Outras portas e janelas foram franqueadas no
inesgotável manancial que o Arquivo Histórico oferece aos que buscam tochas
para o seu passado.
Sempre imerso no seu sonho,, bebeu duma vez o chá morno. Estava
amargo. A glória, como vós sabeis, é uma coisa amarga.

Yukio M ishim a
Choriro
CHO RIRO

A notícia correu célcre. Os batuques, em profundos e largos tons, ru ­


faram em toda a plenitude durante três dias e três noites por todo o reino.
Os mensageiros, localmente conhecidos por chuangas, fizeram chegar aos
pontos mais distantes a notícia de que Luís António Gregódio, o mambo das
terras a norte do rio Zam beze, havia m orrido sem sobressaltos, durante a
madrugada de quinta-feira.
Aos próxim os, gente grada, a notícia da morte não os colheu de sur­
presa, pois a enferm idade que tocara Gregódio levara-os a privar com ele
na intimidade dos seus aposentos durante as semanas de agonia do mambo,
term o por que os locais designam os seus reis. Chicuacha, o m esm o que
andarilho em portuguesa língua, no dizer das populações das línguas fran­
cas e indígenas do vale do Zam beze, fora dos prim eiros, entre as figuras de
relevo do reino, que se dera conta da gravidade da doença que am arrava à
cam a o branco Gregódio.
Tirando este e aquele tributo, Chicuacha não gozava de um estatuto
hierárquico especial, mas era respeitado por todos, não por ser branco como
Gregódio, m as pela sua notória capacidade de aculturação que rem ontava
aos tempos em que queria largar a sotaina, vestim enta de pouca valia nos
sertões africanos, por ser incómoda e de significado algum para os cafres,
mas de proveitosa serventia na protecção física, pelo seu valor espiritual,
ante as constantes e inesperadas arrem etidas de facínoras c burlões que
m edravam o vale do Zam beze à busca de escravos e presas de elefante de
tanta procura no Vice-Reinado das índias. Mas o ardente e inclemente clima
tropical foi adiando, por m otivos que não lhe vinham à mente, tal decreto
até ao dia em que tomou, não por mero arrebatam ento ou cansaço, mas por
decisão espiritualm ente assumida, o acto de abandonar as batinas e os es­
critos sagrados que o acom panharam nas m onotcístas aventuras sagradas
por terras do além -m ar quando, nas terras de Gregódio, viu com todo o es­
panto do mundo, os cafres a m anufacturarem pólvora à base da casca de
uma árvore, m isturada com salitre ou terra em papada de ácido de urina de
coelho. Feita a mistura, queim avam -na e dela extraíam a pólvora por entre
os resíduos carbonizados.

12
Ungidani Ba Ka Khosa

Perante tal feito, inédito em mentes concebidas como selvagens, António


G onzaga, dc nom e, e C hicuacha de alcunha, abjurou os pecam inosos
adjectivos que ainda sobravam no seu dim inuto léxico sobre o m odo de
vida dos pretos da savana e, sem espantar ninguém, abandonou em defini­
tivo os incómodos hábitos de padre que trouxera de Lisboa, longínqua terra
portuguesa, concubinando-se em seguida, num gesto não desusado, porque
frequente entre os senadores de Deus, com Fita, uma das acólitas dos swe-
quiros ou mubalas, consoante a margem do rio, patrilinear a sul, matrilinear a
norte, m as de igual significado em portuguesa língua, pois diz-se médiuns
ou oficiantes de G regódio, chefe das terras à m argem norte do rio Zam ­
beze, c há três dias de m archa forçada, da fronteira mais a sul, à feira do
Zum bo, o m ais longínquo entreposto português à montante do rio Zam ­
beze.

C oberto até ao pescoço por um lençol, o corpo de Luís A ntónio


G regódio estava deitado na cama. Quem o visse apercebia-se pelo rosto
sereno e tranquilo que recebera a morte com a certeza de que o seu espírito
estaria para todo o sem pre entre os vivos da terra que erigira com o seu
reino. A rodeá-lo, as seis mulheres, os filhos e os m aiores do reino. Destes,
o seu lugar tenente, o muanamam bo M akula Ganunga; o responsável dos
ferreiros, o messiri Tyago Chicandari; o responsável junto à realeza pelos
actos fúnebres, o sabevira Leio M puka; o chefe dos m ensageiros e
cobradores de impostos, o chuanga K am ute M atega; o responsável pelos
bichos, escravos encarregues das tarefas domésticas, Jili Ndoro; os médiuns
N yazim biri, Chatula e outros. Chicuacha, um pouco afastado dos princi­
pais do reino, estava entre os demais de não m enos importância. E todos,
grandes e não m enos grandes, cham ados às pressas dos seus cómodos, en­
treolhavam -se, não surpreendidos, porque o acto já era esperado, mas em ­
baraçados com a morte com odam ente estam pada no corpo de Gregódio.

13
CHORIRO

O quarto não era de todo estranho a Chicuacha, pois nele entrara nos
princípios da doença dc G regódio. E fora num a m anhã. Os raios de sol
entravam pelas frestas do tecto de palha e espalhavam-se pelo quarto amplo
onde, além da cam a artesanalm ente trabalhada, pontificavam potes, cinze­
lados uns, lisos outros, cheios dc raízes e folhas secas, zagaias, peles de
anim ais e lanças desordenadam ente expostas. As espingardas de fabrico
caseiro e de carregar pela boca que os nativos chamam de gogodelas ou
gugudas, dependendo da pronúncia, alinhavam-se ao acaso e em número de
sete, pela parede à cabeceira da cama. Os acatem o, designação local para
os machados de caça, espalhavam-se sobre as peles de cabrito e de leopardo
que cobriam grande parte do chão dc adobe. N a borda da cama, como que
a precaver-se dc qualquer incidente, estava a espingarda dc percursão que
Gregódio não dispensava nos seus adereços dc rei, por ser m oderna em re­
lação às gogodelas c às espingardas dc pederneira. A isso e expostos sobre
a corda que atravessava a largura do quarto, acresciam os panos das trocas
com erciais e vários chimpote - denom inação dos colares de missangas que
reluziam aos fiapos dc luz semelhantes às estalactites brilhando em peque­
nas grutas dc sombras fugidias que o quarto meio soturno projectava, dando
ao aposento o tom lusco-fusco, próprio de quartos afeitos a refregas do
amor, mas que Gregódio, assumido rei de um estado militar, transform ara
em cenário predilecto aos solitários e interm ináveis conluios à sua
manutenção no poder quando se sentava na cadeira adornada com peles de
leão e leopardo que ora ofereceu, com um ligeiro descair da mão direita, a
Chicuacha para se sentar.
Relutante, dissim ulando trem ores dos m om entos dc im previsão,
roçando com a calça dc ganga um a bacia com chocalhos, afastando com o
pc um acatcmo, Chicuacha estendeu vagarosam ente as mãos pelos braços
da cadeira real e assentou o traseiro com as cautelas de um intruso com
olhos atentos à desordenada geom etria de objectos expostos no quarto com
luz difusa, silêncio carregado, objectos inertes. Era a África de sons e vozes
ausentes. Era a África dos chocalhos e am uletos repousando num quarto
meio soturno. Era a África de cores novas expostas num espaço preenchido
de objectos que outros cham ariam de bricabraques, mas que ali assumiam
um significado presente e não passado.

14
Ungulani Ba K a Khosa

De cabeça recostada num a alm ofada feita de palha, G regódio p a­


ssava lentam ente a m ão esquerda pela cabeleira em caracóis. Os olhos,
desgastados com a doença, assom aram na m eia claridade do quarto, per­
correram os longos cabelos dc Chicuacha e detiveram -se nos olhos de um
azul de céu de tarde limpa, sem pre inquietos e vorazes, como os vira há
mais de dez anos no pequeno adro da igreja da vila de Tete.
- O que te deu, Chicuacha?
- Os teus ossos, homem. Eles dorm em muito...
- Estão velhos.
- É preciso m exer o corpo.
-A s dores não estão contigo.
- Espalharam -se pelo reino, Gregódio.
- É verdade... O tem po passa e não nos dam os co n ta... Agora que te
vejo lembro-mc do dia ...
-A in d a me recordo.
-T e m p o s novos aqueles...
- Todos os tem pos são novos, irmão.
- M as cada um tem o seu.
- É verdade... Eras jovem ...
- É ... Era jovem .
A vila de Tete, nos então anos quarenta, cinquenta, do século
dezanove, era um a pequena povoação com cerca de cem brancos que se
intitulavam portugueses europeus, como forma de se distanciarem dos mais
de cento e cinquenta filhos de Goa que m uito se orgulhavam em ser por­
tugueses. O trato entre eles não era de todo cortês por os brancos, inco­
modados com a presença sempre crescente dos canarins, cham arem -nos,
quando os nervos vinham à pele em m om entos de infortúnio, nas incum ­
bências do comércio, judeus asiáticos, pelas felizes e lucrativas artimanhas
que tinham no trato com as m ercadorias trafegadas e outras ocupações
ligadas ao com ércio dc panos e bebidas e diversas quinquilharias de maior
e m enor valia aos pequenos e grandes reinos do sertão africano. A falta de
tacto no com ércio devia-se, em pejorativa argum entação dos governantes
portugueses conluiados com os bancanes, designação depreciativa que se
dava aos canarins, à indolência provocada pelo crescente e vergonhoso con­

15
CHO RIRO

cubinato de brancos com as cafrcs da terra e as centenas de mestiças que


despontavam , colorindo de alegria e ritmo o mapa racial de Tete. M as os
dctratores, em geral governantes recém -chegados, cedo se rendiam aos
encantos das negras c m estiças, deixando, am iudadas vezes, as poucas
senhoras brancas na solidão dos quartos calorcntos.
Tirando as explicações caluniosas, era facto que havia poucas mulheres
brancas para o crcsccntc número dc brancos amancebando-se com devota
paixão com negras e mestiças que, por força do casam ento ou herança se
tom aram Donas dc vastas terras c governantes de muita riqueza e prestígio,
com o a Dona Josefm a Castelbranco, filha de um antigo prazeiro com uma
negra forra, que à jusante do rio Zam beze e nas proxim idades da garganta
de Lupata, conseguiu am pliar a fortuna herdada graças, não só ao com ér­
cio com o interior e ao fornecimento de escoltas aos caçadores, mas tam ­
bém aos despojos, segundo as más línguas, das barcaças naufragadas com
mercadorias que não conseguiam transpor os rápidos e as inúm eras saliên­
cias rochosas que afloravam no leito do rio junto à garganta de lupata. Para
outros, e a ter-se em conta o diz e não diz, a riqueza e fama da D ona Jose-
fina devcram-sc, em grande medida, ao tráfico sexual.
Era prática, na aringa da Dona Josefma, a comercialização de mulheres
virgens, especialm ente treinadas a engrossarem os haréns dos senhores dc
terras e eventuais caçadores c com erciantes. Ela com prava-as ainda
impúberes e treinava-as nos complexos rituais da sensualidade e nos modos
de estar em casas senhoriais. A coadjuvá-la estavam as inhacodas, mulheres
adultas e experim entadas no trato com mulheres que, em prazos antigos,
desem penhavam o papel de chefes de m ulheres escravas. A elas cabia dis­
ciplinar as noviças, am aciá-las e tom á-las sedutoras e apetecíveis. As que
não se prestassem , por relutância ou desprezo, eram entregues, com o se
ouvia dizer em lugares distantes com o Tete ou Zum bo, por castigo, e a
servir de exemplo, a m acacos especialmente adestrados para as desvirginar.
Verdade ou mentira, tais práticas com símios nunca se confirm aram , pois
Chicuacha, nas suas deam bulações pelo baixo Zam beze e pelo tem po
ligeiram ente largo de estada nas terras da D ona Josefína, não pôde
com provar o desvirginam ento de moças por símios. M as pôde atestar, por
ter presenciado, o lançamento dc escravos revoltados às águas infestadas de

16
Ungulani Ba Ka Kltnsa

crocodilos. Era prática, em m uitos reinos do interior, atirarem os insub-


missos aos crocodilos ou submetê-los ao ordálio, prova que consistia na ca­
pacidade dc resistência dos arguidos em culpa m aior ou m enor a um a
bebida venenosa.
Ao tem po que C hicuacha conhecera D ona Josefina, esta era uma
m ulher de ancas abertam ente perturbadoras e seios fartos ondulando sob
os panos coloridos que animavam o sorriso aberto e m alicioso que lançava
aos visitantes. Quem a conhecesse de superfície dificilm ente im aginaria
que por detrás daquelas m aneiras suaves se ocultava um rosto autoritário e
disciplinador.
Fora a actividade com ercial corrente c a educação das virgens, ela
transform ara a aringa num discreto m as lucrativo serralho. Os com er­
ciantes, m ilitares e funcionários coloniais que se faziam à propriedade
encontravam os leitos mais aquecidos da região. A aringa tornou-se, com o
tempo, um a passagem obrigatória aos que à jusante ou à montante se deslo­
cavam em direcção à Sena ou Tete. A D ona era, aos olhos de todos, um a
m ulher respeitada. A vida de muitos dos notáveis passava, em m atéria de
alcova, pelas suas m ãos c ouvidos. E poucos ousavam dizer, de form a
aberta, que ela se amancebava com um preto membrudo que sc fazia passar
por guarda-costas. Aos olhos da época um a gentia que se casasse com um
branco não podia am ancebar-se com um preto serviçal. Mas ela não ocul­
tava a sua paixão pelo preto Nazaré. Chegava a dizer que ninguém a podia
adm oestar pelo facto de ter um preto na cam a porque eles, hom ens brancos
e canarins, nada tem erosos com a palavra do Senhor, quebravam o ju ra ­
mento feito no altar, am asiando-se com pretas ainda frescas, requestadas
na sua propriedade. Por que não poderia ela, dona do seu nariz, ter um preto
se homens à sua altura rareavam ? Ninguém , em abono da verdade, a criti­
cava abertamente.
A ssim a viu, altiva, má, generosa, Chicuacha, quando pelas terras do
baixo Zam beze se aventurou à busca de um olhar sobre a África im agi­
nada.
N a verdade, António Gonzaga, ou Chicuacha, muito antes de Gregódio
o ter acicatado a aventurar-se pelas terras do interior, já se havia entediado
com a pacatez da vila de Tete. O apelo à aventura tocava fundo. N o seu

17
CH0R1R0

im aginário a África era mais profunda e densa que aquele povoado de ruas
poeirentas, sombras dispersas, gente indolente, casas mortas ao sol, o rio,
largo e silencioso, espreitando e seguindo, com desdém, curva adiante, em
direcção à costa. Para ele, aqueles sons tristes e secos que ecoavam cm cada
esquina, sobre as pedras e galhos que os cabritos teimavam em levar à boca,
não eram a África do seu imaginário. A sua África era das densas encostas
que iam diminuindo de densidade ao atingirem a planície de chitas velozes
que cortavam a savana à caça de gazelas, que em saltos rápidos, se im is­
cuíam na floresta de ram os densos que se batiam quando bandos de
pássaros se faziam aos céus de nuvens brancas e dispersas. A sua África,
sonhada e vista, era a das manadas de elefantes abrindo ruidosamente carreiros
por entre a folhagem alta e verde, onde leões e leopardos se acoitavam ,
atentos e participantes no inevitável equilíbrio da m ãe natureza na caça de
kudus e im palas e búfalos em cavalgadas vibrantes ao longo das savanas.
A sua África estava nos m isteriosos crocodilos que em ergiam das turvas
águas do Zambeze, espalhando-se, depois, em grupos, ao longo das manhãs,
pelas m argens onde diligentes pássaros os esperavam para a quotidiana
limpeza de parasitas nos desnivelados c pontiagudos dentes que sobressaíam
das largas e profundas mandíbulas. Essa era a Á frica idealizada que foi
avistando à m edida que navegava à m ontante do rio, ao tem po da sua
chegada ao continente e à região dos rios Sena e Tete.
De Sena à Tete, os canoeiros, em alm adias ou em outras barcaças
apropriadas, bastante experim entados nas navegações fluviais, sabiam
como enfrentar as traiçoeiras correntes do rio que se tom avam fatais na
época das chuvas. Mas em período bom a navegação fazia-se sem grandes
sobressaltos, exceptuando os m om entos em que os hipopótam os, querendo
dar largas ao domínio que tinham das águas, mantinham os olhos à super­
fície, obrigando os canoeiros a parar e esperar, por largos minutos, que eles
submergissem e voltassem a emergir, de m odo a conhecerem a rota a tomar.
Caso não fizessem essas paragens, bem ao gosto desses gigantes fluviais,
corriam o risco de ver as canoas abarloadas.
Era frequente, em presença de uma m anada, os canoeiros fazerem-se
à margem e esperarem por bons m om entos, porque o m ais perigoso nas
andanças fluviais eram as canoas interporem-se entre uma fêm ea e a cria.

18
Ungulani Ba Ka Khosa

N esses momentos o instinto protector da fêm ea vinha ao de cim a na furia


expedida em m ais de um a tonelada de peso. As canoas, quais ramos sem
direcção, revoluteavam sobre as águas furiosas, deixando hom ens e
mulheres a servir de pasto aos crocodilos que se refastelavam com a iguaria
prendada. Fora esses inadvertidos contratem pos de imprecisa regularidade,
a viagem, durante o dia, fazia-se com m uito agrado. As canoas, em remadas
com passadas, cortavam as águas ao som do canto dos homens que se im is­
cuía com natural entrosam ento nas m elodias que a natureza ofertava. A
energia melódica, brotando dos corpos negros e suados, ritm ava com o bor­
bulhar das águas nos costados das canoas, deslizando sobre as águas
prateadas.
Por serem cenas jam ais vistas, agradava ao padre apreciar os mus-
culados e suados troncos negros dos canoeiros a reflectir a luz através das
gotas de água que os remos atiravam às costas e braços, serpenteando de­
pois pelas salientes veias despontando no alegre e natural esforço de remar
as centenas de canoas que sulcavam as águas do rio Zambeze, transportando
escravos e marfim, m issangas e panos, dor e alegria. Eram braços, vozes,
cantos, choros, era o rio, era o Zambeze da fortuna e da desgraça, abrindo-sc
por milhas e milhas de extensão.
Devido às correntes, sempre fortes em troços já conhecidos, a viagem
de Sena a Tete fazia-se por m ais de duas semanas. E era no decorrer do
bom período de navegação que as centenas de ilhas desertas, geralmente
submersas, se transform avam em postos de paragem ao longo das noites.
Os canoeiros acostavam às margens baixas e im precisas e, juntam ente com
os carregadores, apressavam -se em confeccionar o jan tar feito invariavel­
m ente dc nsim a, o m esm o que farinha cozida de cercais com o o m ilho c a
mexoeira, acom panhada de peixe seco ou fresco e, em algumas ocasiões,
de carne seca trazida do interior.
Em geral, os indígenas, nas frequentes c animadas conversas em volta
da fogueira, dc tanto acharem natural a beleza circundante, não se extasiavam
com o interm itente luzir dos pirilam pos, a miríade de estrelas abarrotando
o céu, o sussurro das folhas das árvores, ou o longíquo rugir de um leão na
savana dos predadores da noite. Eles pasm avam -se com o encantam ento
de Chicuacha ante o nascim ento, na entrada abrupta da noite, das ilhas de

19
CHO RIRO

fogo com que os canoeiros c carregadores pintavam as noites ao longo do


leito do Zam beze. N a escuridão das águas, era-lhe possível observar os in­
trigantes olhos dos crocodilos que à direita c à esquerda perscrutavam os
m ovim entos humanos. Seguros nos pequenos e confortantes pedaços dc
terra, os canoeiros pouca atenção prestavam aos reptéis das águas. Estes,
silenciosos, reluziam os olhos enquanto as línguas de fogo iam, aos poucos,
fencccndo com a m adrugada que ia abatendo as estrelas.
Diferentes dos carregadores, os canoeiros envergavam túnicas sem
mangas e um pano de chita, a que cham am dc capunda, por volta da cintura
e por cim a de um a p eça interior conhecida p o r negonda. O utros, m as
poucos, envergavam calções. Em actividade eles apresentavam -se quase
sempre de tronco nu.
A precaridade no vestuário condizia com as elevadas tem peraturas,
nada benéficas aos hábitos de padre que tanto o incomodaram , mas que por
religiosidade assum ida e jurada, fazia questão, nos iniciáticos momentos
de evangelização, de m ostrar e distanciar-se dos dem ais, de modo a que a
ponte entre a tenra e os domínios do Senhor ficasse demarcada na sua pessoa
através das vestes que espantavam homens e mulheres que ostentavam com
a naturalidade dos inocentes os seios, as nádegas, c as coxas cobertas no
enclave dos prazeres por uma tira que não conseguia tapar os encaracola­
dos tufos de cabclo em ergentes, que tanto perturbavam o seu espírito de
padre. Jovem ainda. Chicuacha mal disfarçava a inquietude no rosto quando
as veias do desejo iam cntumescendo em presença das sorridentes negras.
Para sua consolação, a água tépida do rio ajudava-lhe a ablar as erupções
nada condicentes com a sacralidade assumida.
- O teu destino estava traçado, disse Gregódio.
- É verdade... A lgo me dizia que a m inha vida se enterraria nestas
entranhas.
- N ão tens saudades da batina?
- Não me tom ou descrente.
- Lá isso é verdade, disse, olhando de frente para Chicuacha.
Sabia que a entrada do hom em nos seus aposentos tinha a ver com
questões que não passavam pela doença. C onhecia o ar fugidio, mas
profundo, de Chicuacha. Há mais de dez anos que conviviam juntos. E

20
Ungulani Ba K a Khosa

desde que ele assentou nas terras, Gregódio qui-lo como cronista e confi­
dente. Deu-lhe terras e bandázios, outro nom e por que eram conhecidos os
bichos. Abriu-lhe as portas da confiança junto aos grandes e pequenos do
reino. Ao tom ar Fita como sua prim eira esposa, Chicuacha teve em G regó­
dio o padrinho à altura. Depois, e fazendo ju stiça às práticas locais,
Chicuacha tomou a liberdade de ter outras mulheres. Hábitos novos foram-se
grudando ao corpo, enquanto o espírito rem ovia com a paciência do tempo
as lianas mais endurecidas dos costum es de outrora.
A proxim idade ao Gregódio não o afastou do com panheiro de jo r­
nada, o João Alfai Sabão. Os laços entre os dois rem ontavam aos saudáveis
conluios na pequena e solitária igreja de Tete, local onde os dois, fartos de
árvores sem sombra, resolveram tom ar a estrada da aventura. De sorriso
fechado, poucas falas, gestos com edidos, andar silencioso e um a afabili­
dade de difícil percepção a um indivíduo m enos atento, João Alfai tinha
passos lestos e curtos. A sua quase anã altura, de m etro e meio, em muito
contribuía para a fala sussurrante. Chicuacha, que não era dado a grandes
alturas, para ouvi-lo, enquanto cam inhavam, via-se obrigado a curvar-se.
Como muitos negros serviçais, João Alfai nasceu em Tete. Seu pai,
Alfai Sokire, estabelecera-se ainda jovem , como liberto, na vila, exercendo
trabalhos de servente em lojas, a pedido do avô trafegante de m ercadorias
pelo sertão a mando de portugueses. Cedo aprendeu os rudim entos da lín­
gua portuguesa com o pároco habitualm ente etilizado e pouco atento a
Deus, sempre às m oscas na igreja vazia de crentes, e a maldizer, com a lín­
gua picara, o clim a tórrido e seco da vila de Tete. D a escrita, o seu domínio
reduziu-se ao estritamente necessário e palpável. Com Chicuacha. já adulto,
deu-se ao luxo de redigir, de forma tosca e aos solavancos, pequenos dita­
dos. M as era na fala, frequente e diária, o seu cam po de eleição e de outros
indígenas residentes na vila. O sotaque sibilado, cortante, seco, a fazer lem­
brar os caniços a racharem-se à beira do rio, ao sabor do vento m atinal e
vespertino, era o som dom inante a cobrir a vila carenciada de árvores de
som bra quando o português tom ava o corpo dos pretos. Em presença desse
precioso presente dos brancos, a língua m ãe era subalternizada e quando
dela se socorriam m anifestavam estados de alm a que o português não
conseguia exprimir. Os em préstim os nas línguas locais eram, ao tempo, tão

21
CHORIRO

abundantes nas populações dc vilas e locais de crescente m iscigenação


como Tete e Sena, que se ficava com a sensação de se estar cm presença de
um a língua e civilização novas. M as as fecundações linguísticas e raciais
pouco preocupavam o C hicuacha, cada vez m ais intrigado com o alhe
amento da população da vila à com pra e troca de escravos à luz do dia, nos
improvisados mercados onde vergastadas de cavalo-marinho sibilavam nas
cansadas espáduas dos escravos sem destino e em perm anente exibição nos
palanques com o sangue estiolando-se de am argura na gasta m adeira
rangendo às pragas dos senhores de escravos. Os pretos da vila, em número
bem m aior ao dos brancos e canarins, distanciavam -se, para m ágoa do
pároco, dos cenários de am argura com a naturalidade de pagãos confessos.
- São estrangeiros, padre, dizia Alfai ante a estupefacção de
Chicuacha.
E eram, de facto. Distantes dos demais c aprisionados ao pescoço por
forquilhas presas umas às outras, com cordas em filas semelhantes a récuas,
os pretos perfilavam -se junto aos estrados de madeira, à espera de serem
com ercializados por panos e m issangas e outras m ercadorias com m ais
apreço que a alma humana. M uitos desfaleciam , fruto do cansaço das lon­
gas cam inhadas de doenças sem registo na fauna do com ercio humano e de
maus tratos, acabando alguns, não poucos, por m orrer como simples deste­
rrados. A esses, bastava um descam pado ou m oita sem referência para a
sepultura de quem pertencera a um muzim u, entidade espiritual ligada a
uma linhagem ou comunidade.
- Estrangeiros ou não, são homens como nós, Alfai.
- Para eles estas coisas são como a carne que fica entre os dentes.
Irrita um pouco. M as ao tirá-la a gente esquece e volta à vida.
- É mau.
- A nossa palhota ainda não pegou o fogo.
- Até os elefantes nunca esquecem o lugar de repouso.
- Viver com os brancos faz as pessoas esquecerem -sc do ventre da
mãe.
- O caracol não deita fora a sua concha.
- Aqui m uda-se a alma, padre.
Eram im agens, cenários vividos que lhe assaltavam a m ente nos

22
Ungulani Ba K g Khosa

instantes de silêncio no quarto soturno de Gregódio. Um Gregódio mar­


cado por traços indeléveis das refregas travadas ao longo dos anos. M as a
doença que o prendia à cama não lhe tirava a energia alimentada nas crcnças
em espíritos africanos. Desde que o conhecera, Gregódio jam ais dispensou
a consulta aos ossículos para os afazeres de m aior e m enor importância. E
essa entrega em m uito se devia à apegada dedicação de Nfuca, prim eira
m ulher de entre as da corte e as que pelo território foi deixando em oca­
sionais encontros como soberano.
- Estás distante...
-N u n c a tinha entrado no teu quarto, Gregódio.
- A estender a pele no lugar da esteira.
- N ão estou a deixar a perna de fora.
- Então esprem e o tumor.
Chicuacha não se sentia à vontade cm tocar o tem a que o vinha
afligindo desde a altura em que Gregódio resolvera assumir, para além dos
lim ites da vida, a legitim idade das terras e da gente a seu mando. Sentia
agora que o reino havia sido tocado pelos espíritos da morte que pairavam
com a notória presença de estranhos abutres, que o m undo em redor
estava prestes a tom ar outros rumos.
- Vais adiante, Gregódio?
- É a razão da lua visita?
- Também.
- Já esperava.
- Porque?
- A tua indecisão, a falta de fé.
- A minha m antém -se, apesar dos abalos.
- N ão me refiro à tua fé. Refiro-m e à dos outros. A minha.
- O que te faz crcr nisso?
- Pela ligeireza com que vens observando.
- Impressão tua.
- Será?.. Será que acreditas no tratam ento que venho fazendo?
- Há áreas que só a Deus pertencem , Gregódio.
- N ão acreditas mesmo nos espíritos?
- Com o alcance do Senhor, não.

23
CH0RIR0

- O que fazes aqui, então?


- Respirar c viver este presente que pode fugir. Os assuntos depois da
morte não estão nas mãos dos homens.
- Só o teu Deus c que os pode decifrar?
- Ele c que separa as águas da vida c da morte, Gregódio.
- O trabalho dos curandeiros c um a palhaçada, então?...
O tom das vozes fez entrar Nfuca. Silenciosa, m eio furtiva, ela, como
sempre, não se fazia sentir nos passos, só na sombra que vagava pelo chão
e pelas paredes, levando pessoas a procurarem pelo dono, no caso, a patroa
da silhueta fluída, esguia, que se m aterializava num a m ulher parca em
carnes nas zonas mais apetitosas, precipitando, na sua falta, a passagem do
olhar do umbigo às pernas pela estreita faixa que não dava azo à im agi­
nação, pois as bordas das coxas assem elhavam -se, pela estreiteza e secura
de carnes tão fartas e ardentes em outros corpos tropicais, a nudez de rochas
escarpadas, mas que Gregódio, marido, as respeitava, assim secas e estri­
adas, por serem as coxas que há mais de trinta anos o rei dos Anscnga, povo
matrilinear que se estendia para além do Zum bo, na margem norte do rio
Zam beze, lhe ofertara com o esposa, em sinal de cordialidade e boa
am izade, para além dos bons serviços que ele e os seus guerreiros achi-
cunda lhe prestaram nos frequentes e devastadores conflitos que o mundo
mercantil espalhou pelo vale do Zam beze.
- Precisam de algum a coisa?, perguntou Nfuca.
- N ada, respondeu G regódio com um a ligeira tossidela. Está tudo
bem. Podes sair.
-A h !...
E saiu, silenciosa como sempre. O feixe de luz que entrara pela porta
entreaberta desfez-se. A sombra esfumou-se. O quarto voltou aos tons som ­
brios. G regódio endireitou a alm ofada e arrum ou o feixe de cabelo
descaído. C hicuacha levou a mão direita ao queixo e fixou o olhar no
doente. A cadeira estava no seu lugar. O tem po nada alterara na penum bra
do quarto.
- Acho m elhor continuarmos a nossa conversa noutro dia, Gregódio.
- N ão sei se terei outro dia, Chicuacha.
- N ã o é tua intenção lutares por estares sempre aqui, entre os teus?...

24
Ungulani Ba Ka Khosa

- Estás a brincar comigo, António.


- N ã o é meu propósito go zar... N o fundo, podes crer, admiro a crença
em quereres ter o controlo daquilo que só Deus tem nas mãos.
- E só esperares.
- Tu és branco, Gregódio.
- A um branco não pode acontecer?
- O teu m undo não é deste reino.
- Aos deste pode acontecer?
- É o que eles acreditam.
- Eu sou o rei, homem.
- N ã o de espírito, mas de carne.
- Q uer acredites quer não, o m eu m undo é este, Chicuacha. A minha
carne desfar-se-á nestas terras e o meu espírito, transform ado em espírito
de leão, rugirá por estas selvas.
- A ssim espero.
- De ti basta-m e o registo do m eu reinado passado, presente e futuro.
- A tua vontade será feita.
- É o que te peço.

Perante o silêncio dos dem ais, M akula Ganunga, a segunda m ais im ­


portante figura do reino, por todos cham ado m uanam am bo, por assim se
designar, em língua local, o adjunto do m am bo, quebrou o silencio ao
ordenar K am ute M atega, chefe dos m ensageiros e colectores de impostos,
que m andasse os seus homens, os chuangas, anunciar por todo o reino a
m orte do mambo A ntónio G regódio. A ssim o farei, disse K am ute, afas­
tando-se do grupo que ainda se m antinha cm silêncio à volta do cadáver.
Diga-lhes que o enterro será, como é norma, daqui a três dias. Aos reinos
vizinhos mande em issários especiais... Que rufem os tambores!...
Leio M puka, pessoa responsável pelas cerimónias fúnebres da casa
real, mais conhecido por sabevira que por nome próprio, pediu aos presentes
que se retirassem do quarto porque era hora de iniciar os preparativos do
corpo. O sol raiara. Chicuacha, meio surpreso ainda, reencontrou-se com a

25
CHO RIRO

realidade do quarto e do tempo. O aposento pouco m udara desde que ali


estivera. A morte, como é natural, deslocara objectos. Os acatemo e as peles
de leopardo foram agrupados a um canto do quarto. A corda onde pendiam
os chimpotes, os conhecidos colares de m issangas, foi retirada para dar es­
paço às figuras do reino. O corpo, inerte, estava estendido no meio da cama.
A anua que se destacava à beira do leito havia dado sumiço. Gregódio está
morto, pensou, seguindo os demais em direcção à porta.
As m ulheres do defunto agrupavam m ais objectos cm locais apro­
priados. O sabe vira juntava sobre um pano preto os pós, as folhas, os óleos,
as facas, as lâminas e todos os outros materiais ligados à oficina dos m or­
tos. O corpo ia ser limpo de pelos e cabelos e barba. O quarto seria exor-
cisado. As viúvas, os filhos e outros parentes próxim os iriam ser preparados
para o luto.
Já fora do quarto e em gestos displicentes, os maiores espreguiçavam-se ao
sol que crcscia. Aaringa estava em alvoroço. Os batuques troavam. Os escravos
dom ésticos, tam bém cham ados bandázios, cruzavam -se, apressados, em
direcção a nada, confundidos com as vozes de com ando que se desauto­
rizavam constantemente. Os achicundas, mais serenos, lim pavam as lanças
e as gogodelas. As danças guerreiras em honra ao finado iriam preencher
os três dias de luto, term o aqui em pregue e assum ido num a asserção fúne­
bre de am plitude alargada, pois para eles a morte do suserano era sentida
em choros e anarquia que podiam levar a assassinatos sem julgam ento
porque nos três dias de ausência de poder tudo era permitido, daí o termo
choriro, que em tradução franca se pode dizer choro pela ausência de
ordem.
Tyago Chicandari, chefe dos ferreiros, localmente chamados messiri,
mandou apagar o fogo dos fomos. As cham as de luto seriam outras. O tra­
balho iria parar. Os que se achavam no am anho da terra deixariam o tra­
balho. Os que na caça se encontravam largariam as arm adilhas e
recolheriam à capital do reino. O choriro com eçava. N habezi, doutor ou
curandeiro em língua local, nome por que era conhecido Luís António Gregó­
dio, morrera.

26
Ungulanl Ba Ka Khosa

Antes, muito antes dc se fixar nas vastas terras a norte da vila de Tete,
Gregódio estabelecera-se primeiro na vila de Sena, precisamente na fortaleza
de S. M arçal, por a sua condição de soldado de infantaria assim o obrigar.
A fortaleza, situada a m enos de uma légua da vila, perdera, na entrada dos
anos oitocentos, a grandiosidade de outrora. De pedra e cal, sím bolo da
conquista e da grandeza do império, ficara a porta de entrada da fortaleza,
encim ada pelo escudo real esculpido na pedra, e os seus quatro bastiões. O
resto do forte eram edifícios de tijolos cozidos ao sol e de adobe simples que
ruía facilm ente com o tempo, m ostrando a decadência da vila de Sena no
trato do com ércio com o interior, face à anarquia vigente com a inclusão,
no tráfico de escravos, de escravos guerreiros, atrás referenciados como
achicundas, que eram o sustentáculo das entidades prazeiras no trato mer­
cantil.
Da trintena de soldados que existiam no forte, G regódio encontrou
uma dúzia deles, equipados com cinco peças de artilharia de calibre oito,
três de cinco e duas de três, perfazendo um lote que pouca segurança ofere­
cia à vila aberta aos desmandos dos prazos em ruína e de outros emergentes
que se faziam passear com escravos guerreiros armados de espingardas de
carregar pelo cano e outros artefactos de guerra. Alguns desses senhores
deviam ainda lealdade à coroa portuguesa que lhes outorgava títulos, mas
muitos não prestavam foros à coroa por se acharem independentes e livres
de qualquer coacção, daí o capitào-m or de Sena, em presença de um a
enfraquecida artilharia, de soldados em constante defecção, de uma popu­
lação europeia, canarim e patrícia, entregue a negociatas à margem da lei,
sentir-se incapaz de enfrentar qualquer levante. O ofício dos soldados de
caserna era entregar-se, por meios que a consciência de cada um ditava, à
acum ulação de riqueza, ou a outros misteres que não obedeciam à disci­
plina castrense.
A ntes dc aportar as terras de Sena, já diziam a Gregódio que Sena
era uma vila de malcriados, de gente desobediente, pouco tem erosa a Deus
e entregue à sorte de todo o tipo de superstições. N a verdade, a vila tinha
seis igrejas, sendo cinco particulares, não havendo para a sede e circunscrições
vizinhas, onde outras igrejas afloravam, um único vigário perpétuo para a

27
CHORIRO

administração das mesm as c das almas que se perdiam no trato com as con­
fissões cafreais. Com a expulsão, no século do terram oto de Lisboa, dos
padres jesuítas, os dom inicanos, proprietários de vastas terras e cscravos,
entregavam -se com m aior afinco à actividade com ercial e à cobrança de
dízimos restando-lhes, como é natural, pouco tem po à conversão dos indí­
genas. A autoridade civil estava entregue a um ju iz que mal arbitrava as
contendas, pois havia leis para os portugueses e goeses e outras para os
negros, e a estes o ju iz mal arbitrava os litígios por a sua autoridade não
conseguir sobrepor-sc aos donos dos pretos. Os três vereadores que a vila
possuía passavam o tempo na gestão das suas terras, aparecendo em público
só cm dias de procissões e condecorações aos insignes da vila e arredores.
O procurador e o escrivão, por mais que se afoitassem na fixação dos preços
agrícolas, estes não eram cum pridos porque os agricultores, os poucos que
ainda se davam ao gosto dc am anhar a terra, ditavam os preços dos m anti­
m entos à sua benquerença. A vila, ao tem po de G regódio, vivia do con­
senso dos mais notáveis.
Situada na m argem esquerda do rio Zam beze, a vila de Sena era, nos
meses de Junho e Julho, invadida por moradores do sertão que vinham em
almadias, cochos, batéis e palas comerciar as suas mercadorias. A vila libcr-
tava-se do seu tom sombrio e tomava cores alegres. As brigas eram constantes.
Mas em período morto, mom entos em que a vila vivia de si, era frequente
verem -sc as D onas, título que as filhas de portugueses, brancas, raras,
mestiças, muitas, exibiam , passeando pela vila com mais de vinte escravas
serviçais, mostrando os vestidos de seda e guarda-sóis coloridos, sob o olhar
nada repreensível dos párocos cm as perm itir assistir à m issa com as es­
cravas não convertidas. Herdeiras de títulos e fortunas, muitas destas alti­
vas e flatulentas patrícias, nome por que eram conhecidas as m estiças,
tom aram -se, com o tempo, donas de vastos territórios ao longo do vale do
Zambeze. Ao tempo, segundo quartel dos anos oitocentos, destacavam-se,
entre outras, pela opulência, as D onas U rsula de S. Gom es, Ignes Alm eida
e Domingas Cordeira. Quando se faziam à rua, eram acom panhadas por
mais de cinquenta escravas que as seguiam por estradas sem grandes de­
lim itações, pois as casas, bastante afastadas um as das outras, não se
prestavam aos arruamentos típicos de vilas ordenadas. Nesses momentos de

28
Ungulani Ha Ka Khosa

exibição pública dos vestidos espampanantes, véus e chapéus c sombreiros,


costurados mais para terras não bafejadas com a canícula tropical, os pre­
tos assom avam dos outeiros, abeirando-se dos carreiros, para assistirem,
por entre risos contidos, a procissão das Donas que saíam das suas pro­
priedades com destino a outras, em visita de cortesia ou a festas, em dias
que não o domingo, pois neste elas diziam dedicado ao Senhor, mas na
prática servia de pretexto às ostentações reflectidas nos tapetes e coxins
que estendiam nos lugares de honra da igreja, sob o caucionário olhar do
prior que se lim itava a cum prir a form alidade terrena de ligar as preces
colectivas ao Senhor, não denotando o fervor doutrinário que aprendera em
sem inários de evangelização aos infiéis que eles, párocos, pouca conta
davam à sua conversão nas missas cada vez mais espaçadas que faziam nos
terreiros das aldeias que circundavam a vila.
O núm ero de fiéis, à m edida que o comércio com o sertão crescia, ia
decrescendo, m ercê da forte devoção dos brancos, patrícios e canarins,
cham ados por m uitos dc baneanes, pelos ossículos de adivinhação e as
raízes da sorte e do exorcismo. N essa demanda, alguns párocos foram aban­
donando as sotainas, entregando-se, sem pejo de qualquer sorte, à prática
do concubinato e outras que o tempo e as línguas locais não haviam ainda
configurado no seu m undo lexical. O núm ero de m estiços por conta das
paróquias crescia em quantidade e algazarra.
Em época natalícia a vila exalava, para o gaúdio de Luís A ntónio
G regódio, um intenso cheiro a m anga podre e a goiaba m adura. M as os
ilustres da terra, na tentativa de contrapor esses e outros cheiros orientais,
m antinham nas suas propriedades a serenidade rosa, gris e roxa das
buganvílias que cobriam os largos espaços das casas senhoriais onde
jacarandás e franjipanis brancos e rosa expandiam os seus perfum es nos
verdes e silenciosos espaços, tratados com esmero artesão por escravos de
tronco nu e sorriso aberto. Doze a quinze casas senhoriais destacavam-se
na vila de Sena. Todas elas de adobe seco, caniço, cobertas de palha, pavi­
mentadas de terra batida, forradas de esteiras, largas e arejadas. As cozinhas,
por tem or ao fogo, como se dizia, erguiam-se a uma curta distância da casa
senhorial e longe dos aposentos dos serviçais que dorm iam na propriedade
senhorial. Lá concentravam -se os cozinheiros, os padeiros, as doceiras, os

29
CHOR.1RO

mainatos, os serventes, os jardineiros e dezenas de guardas.


De toda a paisagem hum ana e física da vila, o que Gregódio reteve
para a sua vida, para além dos cheiros orientais que sc grudavam à pele, dos
paladares apim entados que a farta cozinha oferecia e do colorido das m u­
latas, foi a intensa neblina que cobria a vila durante grande parte do ano.
Situada nos baixos, a vila cncobria-se durante largas horas da m anhã por
um a espessa cacimba que o sol tardava em abrir. Das pessoas circulando di­
visavam-se silhuetas fugidias e tremidas nas espaçadas e frequentes tosside-
las que os pântanos provocavam . A hum idade grudava-sc à carne,
tom ando-a mole. A terra, fértil e traiçoeira com o toda a terra pantanosa,
libertava o cheiro de barro húm ido que se m isturava, na época dos frutos,
ao odor da manga podre e da goiaba madura.
Nas m anhãs que sc abriam a custo, as pessoas tenteavam os cam i­
nhos, esbarrando-se com árvores, ou arbustos não m emorizados. As vozes,
comidas pela rouquidão tropical, furavam a espessura da neblina, à procura
do eco de outras vozes. A vila vestia-se, quase sempre, de cinzento. E só
pela m anhã dentro c que o sol, já alto, rasgava por com pleto o manto
acinzentado. Ao cair do dia, com o sol já posto para além das m ontanhas,
a neblina voltava de novo a cobrir, sem a intensidade m atinal, a vila e
arredores. As pessoas circulavam com tochas, assem elhando-se a pirilam ­
pos gigantes de luz trem ente e perm anente. Este cenário da vila ribeirinha
fazia lembrar a Gregódio as frias manhãs de nevoeiro do seu Portugal inte­
rior que o tempo foi esboroando da memória que se ia fertilizando com os
cheiros e sabores da vila dos seus primeiros passos no trato com os cafres.
Frequentem ente longe da ociosidade do forte, G regódio cedo sc
am ancebou com uma negra forra de nome Luiza, a trabalhar em funções
m enores na adm inistração de Sena, local onde pleitava diversas matérias
com o seu amigo escrivão João Andrade, homem alto e já m etido em idade,
pois este andava pelos quarenta e ele nos vinte. A am izade dos dois foi tão
forte que o escrivão, na hora de partida de Gregódio, ofereceu uma cópia
passada pelo seu punho da cópia da carta régia que concedia o estatuto de
vila às povoações de Senna, na ortografia da época, Q uellim ane, Tette,
Zumbo, Sofalla, Inhambanc e Ilhas de Quirimba. João de Andrade orgulhava-se
do escorreito português da carta régia. E na alegria da despedida leu, com

30
Ungulani Ba Ka Khosa

um gozo profundo, as régias palavras:


«...Calixto Rangel Pereira de Sá, G overnador e Capitão da Praça de
M oçam bique, Rios de Senna e Sofalla. Amigo. Eu, El-Rei vos envio muito
saudar. Porque fui informado de que o Governo Civil e económico da Praça
de M oçam bique se acha em ruína total, que na m esm a Praça não há quem
adm inistre a prim eira instância a justiça às partes, nem quem tenha a seu
cargo o bem comum do Povo, para n ’elle cuidar: Hei por bem, erigir em vila
a referida praça concedendo-lhe todos os privilégios de que gozam as vil-
las d ’este Reino, assignando-lhe por term o não só o recinto da ilha, mas
tam bém todos os logarcs, povoações e fazendas que na terra firme adja­
cente à m esm a ilha se acham estabelecidas e estabelecerem por tem po
futuro. E ordenando que para o Governo da m esm a villa e seu term o façais
logo eleger um Juiz O rdinário, três Vereadores, um Procurador do C on­
celho e um Escrivão da Câm ara para servirem por tem po de um anno; dois
A lm otaceis para servirem por tempo de um m ez, aos quacs se seguirão su­
cessivam ente outros 2 em cada m ez, até que o prim eiro anno seja fmdo
para depois d ’elle se elegerem e ficarem elegendo os Juizes, Os Vereadores,
os Procuradores do C oncelho c todos os outros officiaies da C âm ara na
form a da Ordenação do prim eiro livro, título 67, servindo todos debaixo
dos Regimentos que na mesma Ordenação do Reino são expressos; como tam­
bém praticarão o Alcaide pequeno, o seu Escrivão, o Carcereiro e o Pregoeiro que
deveis nomear com provimento de 6 em 6 mezes e com sallários da Lei em
quanto me não informares sobre esta matéria para eu com maior conhecimento
da cauza lhe estabelecer os emolumentos que forem competentes.»
- Isto é que é portuguez, Gregódio!... Ouve mais...
- N ão, João. N ão precisas de ler mais. Fico contente por ter as
palavras do rei comigo. O tem po urge. Tenho que partir.
- Faz um a boa viagem , Gregódio. Eu estarei p o r estas terras até a
reform a que tarda chegar. Já não tenho idade para aventuras por esse sertão
fora. Filhos e m ulheres me esperam no aconchego do lar. A aventura é tua,
Gregódio!...
- Agradeço-te, Andrade. A carta estará sempre na minha cabeceira. Se
isso disse em presença do amigo, na sua ausência não cumpriu, pois nunca,
pela vida fora se dignou a ler a carta régia na íntegra c, o que não é de todo

31
CHO RIRO

grave, eolocou-a sempre entre outros achados de pouca importância, ate que
em um dos dias de rem em orações dela se lembrou e em jeito de desem ­
baraço, apressou-se a depositá-la nas mâos de Chicuacha, seu confidente e
cronista, em terras já suas e com título de M ambo, e não de Governador, ou
Capitão General, ou Juiz e Procurador, mas Rei, como o é de Portugal, mas
em terras de m enor lonjura.
S. Marçal era um a rota do seu percurso, m arca de um passado de que
pouco se orgulhava, não prestando por isso a devida atenção a Chicuacha
quando lhe afiançou, com a certeza dos seus conhecimentos eclesiásticos,
que S. Marçal teria sido um dos setenta c dois discípulos de Cristo que o
teria seguido fervorosam ente, sendo baptizado por Pedro sob as ordens dc
Jesus. Ele seria o garoto que na Biblia tinha os cinco pães e os dois peixes
com os quais Cristo realizou o prim eiro milagre da m ultiplicação desses
alimentos. Esteve presente na últim a Ceia, ajudando Cristo a lavar os pés
dos seus discípulos. Ficou fam oso por ressuscitar os m ortos, curar os
paralíticos e debelar incêndios apenas com o toque do seu cajado mágico.
A fé nele fez com que muitas das chamas do terram oto dc Lisboa fossem
extinguidas por um a simples oração em seu louvor. S. M arçal é o padroeiro
daqueles que se prestam a socorrer os necessitados, Gregódio.
- Se é protector dos necessitados, como dizes, nunca, em tem po da
m inha estada na fortaleza de S. Marçal de Sena, o vi estender a mão aos es­
cravos em pranto contido que passavam pela vila com destinos que só Deus
sabe.
- Ele é o defensor dos que se convertem na fé do Senhor, Gregódio.
- Balelas... Aqui as regras são mais simples. N ão são precisas missas
c orações chatas para que tenhas a protecção dos espíritos. A fé está em
aceitares as regras que a dura vida nos impõe.
- São maneiras diferentes de encarar a fé.
- S im ... São m aneiras diferentes... Aqui não são precisas batinas,
Chicuacha.
- Tens a tua razão.
- Se tenho...
Eram outros tempos e não a época em que Gregódio, mal conhecendo a
lenda de S. Marçal, vagueava pela vila de Sena, preocupava-se com o negócio

32
Ungulam Ba Ka Kho.sa

do marfim e não com o sofrimento e o destino dos escravos que transitavam


pela vila. E foi por essas alturas de grande apetência pelas incubências do
com ércio com o sertão que privou com o hom em que viria a ser o seu lugar
tenente para o resto da vida: M aluka Ganunga.
Ainda moço achicunda, M aluka abandonou o prazo de M assangano
por este, na época de grande traficância de escravos, não poder com portar
as suas am bições em ser um grande caçador, indo, como era prática, que­
brar a mitete - pedido de vassalagem de um negro escravo, ou livre, que
consistia em quebrar ou rasgar um objecto ou pano do senhor a que se pedia
guarida - num branco caçador de elefantes do baixo Zam beze de nom e
Bento Roiz Perdigão, que teve o triste destino de ser transformado em papas
por um elefante tresloucado.
O elefante, animal de hábitos mansos, não se tresloucou por ferimento
de bala ou gritos ensurdecedores, m as, a fazer fé na sabedoria dos
caçadores, pelo m al estar que a época do acasalam ento provoca em alguns
elefantes privados da cópula, levando-os, por isso, em fúrias sensatas, a
quebrar árvores e arbustos e a perseguir, no caso, os caçadores, apanhando
então o branco Bento Perdigão desprevenido de todo e sem chances de levar
a espingarda ao ombro. A trom ba elevou-o pela cintura, atirando-o depois
ao tronco de um a árvore que arrancou e quebrou junto ao corpo transfor­
m ado em peças irreconhecíveis. Já mais sereno, o elefante arrancou os
ram os da árvore abatida e colocou-os sobre os pedaços do corpo, urinando
em seguida com certa sofreguidão.
Na versão de M akula, a morte de Roiz não se deveu só a testerona em
dem asia, m as à brusca traição do vento e ao excesso de confiança do
caçador branco. M uitos dos caçadores do vale do Zam beze tinham por
hábito fazerem -se acom panhar de cães especialm ente adestrados. E em
m uitos destes animais era adm inistrada lupata, um a droga que tom ava os
canídeos extremam ente ferozes e eficazes em enfurecer e desnortear os ele­
fantes. Os cães, ao desviarem a atenção dos elefantes, facilitavam o tra­
balho dos caçadores. M as Roiz sem pre se recusara a utilizar cães,
preferindo o seu faro e as suas técnicas de aproxim ação ao paquiderme.
C olocados, com o sem pre, contra o vento, este, por m ágicas que só a
natureza entende, m udou repentinam ente de direcção, apanhando os

33
CHO RIRO

hom ens totalm ente desprevenidos. Separado da sua m anada e em urros


estridentes, o elefante investiu toda a sua força sobre o grupo de homens,
apanhando, como ficou dito, Bento Roiz Perdigão. Os tiros que se seguiram
foram m ais de vingança que de rotina de caça. Os urros foram dim inuindo
de intensidade à medida que as cinco toneladas de peso iam desabando es­
trondosam ente sobre a ram agem destruída na furia de cópulas insatisfeitas
na lógica reprodutiva dos anim ais da savana. O paquiderm e tom bou de
lado, deixando um dos dentes virado para o poente. Na partilha, feita em
silêncio, M akula não seguiu o preceituado. Era regra em todos os elefantes
abatidos que o prim eiro dente a tocar a terra fosse para o suseranos das
terras do abate. Em m em ória de Roiz, M akula reservou para si a presa do
elefante.
Em caçadas norm ais, a cam c era distribuída em função dos que iam
infligindo os prim eiros golpes sobre a presa. Como os tiros foram dispara­
dos atabalhoadam ente, M akula priorizou os seus lugar-tenentes ICamba-
m ula e N gulube c aos demais distribuiu a carne de form a aleatória. Assim,
a cabeça e a perna direita traseira couberam a K.ambamula, braço direito de
M akula, hom em de tiro certeiro e especialista em estocadas com lanças
entre as espáduas dos elefantes. Era jo v em e bastante astuto. Quando
M akula se tornou m uanam am bo, deixou para K am bam ula a organização
das caçadas. A perna dianteira ficou para N gulube, outro jovem caçador
que se tom ou responsável pela segurança de Nhabezi. Os risos e gritos, fre­
quentes no espostejam ento da carne de caça, não se fizeram ouvir.
M akula era, então e por mérito, cham ado necum balum e, o mesm o
que mestre caçador. A seu m ando estavam quinze escravos libertos que
Gregódio se apressou a contratar, formando a sua prim eira equipa nas an­
danças pelo interior do baixo Zambeze, a dedicando-se em exclusivo à caça
de elefantes e enjeitando term inantem ente a prática dc converter homens
em escravos. Chicuacha interpretaria, anos mais tarde, a recusa da prática
esclavagista nos seus prim eiros tempos de caçador a factores logísticos que
ideológicos. Sem terras a seu m ando e m uito menos homens em quanti­
dade e treinam ento para a captura de escravos, Gregódio contentou-se com
o crescente lucro que a caça de elefantes lhe fora dando. Anos mais tarde e
já em terras suas, Chicuacha traficaria, ainda que em m enor grau e em cs-

34
Ungulani Ba Ka Khosa

cala dom éstica, escravos. Os escravos que foi com prando serviam como
carregadores, domésticos e trabalhadores agrícolas.
Ao tempo de caçador profissional de elefantes, Gregódio conheceu
proprietários de terras que foram perdendo homens que fugiam à anarquia
crescente na captura de escravos que tocava, pela ganância, pessoas das
próprias herdades. Os achicundas, braço armado dos prazeiros, face à anar­
quia e ao risco de se converterem em escravos de destino incerto, foram
abandonando os prazos, carregando arm as e refugiando-se em terras do
interior, ou entregando-se a novos senhores. Por outro lado e fruto de lutas
intestinas entre clãs nguni, os grupos de Zw angendaba e Nguana M aseko,
fugidos de Tchaka Zulu e à procura de um exílio m ais seguro, foram
arrasando prazos e pequenos reinos ao longo do vale. M ulheres e jovens
foram capturados pelas hostes nguni à medida que avançavam em direcção
a terras m ais a norte do Zam beze. M uitas aldeias achavam -se abandonadas
ao longo do vale. Culturas apodreciam ao abandono dos campos. O Zam ­
beze estava em chamas.
Tyago Chicandari, responsável dos messiri, contaria, anos mais tarde,
a Chicuacha que ao chegarem à terra dos ansengas, na região do Zum bo, os
chefes locais m ostraram -se desconfiados porque experiência ruim com
gente guerreira tiveram com as hostes nguni que por ali passaram. M as o
tacto dem onstrado por Gregódio no trato com os chefes cedo se m ostrou
frutífero, pois os indígenas, que jam ais haviam convivido com um branco
que se am bientou na língua e nos costum es, acolheram -no como um dos
seus. De aniamatanga, o mesmo que branco, passaram a chamá-lo Nhabezi,
o curandeiro, por mostrar grandes habilidades no trato de ervas e mezinhas.
O seu sentido de orientação pelas estrelas era tão certeiro que muitos guias
com ele aprenderam a m elhor m aneira de se posicionar na floresta. A
introdução do arroz, milho e feijão junto aos reinos ansengas e outros con­
tribuiu para que lhe dessem, em definitivo, terras de cinco dias de com pri­
mento e três de largura. A cim entar os laços, o rei ofertou-lhe a filha N fuca
como esposa e conselheira nos rituais do M bona, o culto das chuvas. Junto
à capital ficaram mubalas, invocadores da chuva, como chefes espirituais
do reino que nascia.
Gregódio deixou de ser o simples caçador branco que acampava em

35
CHORTRO

terras estranhas e ofertava, em pom posas cerim ónias, o prim eiro dente
caido em terra e pedaços dc carne aos reis e senhores de terras. A gora era
um igual. Aos seus homens de confiança, o círculo da prim eira quinzena de
caçadores, foi-lhes adstrita terra para gerirem como governadores ou fumos,
como os cham avam . Ao longo do território em crescendo foi construindo
aringas que o protegiam. As populações passaram a prestar-lhe tributo de
rei. Com os reis vizinhos foi celebrando alianças m atrim oniais e alargando
as suas influências.
Querendo um a autonom ia espiritual que o levasse a invocar os es­
píritos ancestrais achicundas a que cham avam de muzimu, Nhabezi foi in­
troduzindo espécies de árvores apropriadas aos rituais aos antepassados
achicunda. Sem se divorciar dos cerim oniais clânicos matrilineares, rituais
patrilineares típicos dos achicundas foram -se introduzindo, graças à
chegada de mais guerreiros fugidos da escravidão, de gente proscrita e p e­
ssoas que desertavam das secas cíclicas das agrestes terras próxim as de
Tete. A todos, N habezi recebia. Uns quebravam o m itete, outros inte­
gravam-se simplesmente. O cxcrcito era respeitado nas redondezas. Grupos
nguni não se atreviam a m olestar as populações na colecta dos habituais
impostos. O branco N habezi era rei e senhor de vastas terras na confluên­
cia dos rios Lângua e Zam beze. Cruzavam-se no seu reino povos matrilineares
e patrileneares, mas o poder achicunda, tipicam ente patrilienar, foi prevale­
cendo sobre os casam entos e sucessões.

- Preciso saber sc os meus homens estão a apagar os fornos, disse


Tyago à Chicuacha que se aproxim ava, saindo da casa grande.
- Venho de lá - adiantou João A lfai, aproxim ando-se dos dois. Já
estão a apagar os fom os.
- Ainda bem, ripostou Tyago.
- Vamos para um a sombra, disse Chicuacha.
- É boa ideia, asseverou Tyago.
A relação entre Tyago e Alfai estreitara-se tanto com o tem po que
Chicuacha deixara gradualmente de ser o confidente próxim o no mom ento

36
Ungtilatti Ba K a Khnsa

em que se deslum braram com as técnicas de fabrico de pólvora e armas de


fogo. Fora lá, nas resguardadas oficinas de fogo e ferro e a mando de Gregó­
dio, que Chicuacha e Alfai se deram conta de outras capacidades que não
divisavam nos pretos. Rodeadas de secretismo e rituais, as oficinas de armas
e utensílios de ferro encontravam -se interditas aos não iniciados. A elas só
os indicados por N habezi, Makula, Tyago e alguns mais podiam se iniciar
nas artes de fabrico de pólvora, armas de fogo e outros artefactos letais e
não letais. Tal como os que se dedicavam à caça, canoagem ou ao comér­
cio a actividade ferreira tinha os seus rituais. Tyago era o responsável. A ele
cabia proteger as oficinas, zelar pela qualidade do produto, conservar de
olhares intrusos a pólvora tem ida pelos cam poneses que não se aproxi­
m avam dos carreiros que levavam ao bosque onde dia e noite pequenas
m as dissim uladas volutas de fumo se desprendiam do intenso m atagal,
envolvendo as oficinas onde as armas, a pólvora e outros objectos de uso
nas com unidades tom avam forma.
Crescido em am bientes com o o da vila de Tete, João Alfai jam ais
im aginara que os pretos dominariam técnicas de fabrico de armas e pólvora.
Via-os como simples força braçal que o chicote e os impropérios impeliam
ao trabalho escravo. D a estupefacção incontida pela destreza dos ferreiros
no amanho do ferro nas bigornas, largou de pronto os cordatos modos de
sacristão e quis, sem jeito e traquejo, envolver-se nas artes de fabrico de
artefactos da felicidade e da morte.
Chicuacha, que resolvera ao tempo, abandonar os hábitos de frade,
não só não se opôs, com o o incentivou a enrijecer as brandas m ãos de
sacristão ocioso. Relutante em o iniciar, por a idade não ser apropriada a um
dcbutante, Tyago deixou-se, ainda cedo, envolver pela abnegação de Alfai
em dar um destino mais terreno e prático às mãos e ao cerébro. A proximi­
dade de idades entre o mestre e o dcbutante contribuiu para uma cum plici­
dade que ganhou raízes.
A princípio a relação tendeu a azedar-se por Alfai querer registar em
letra os procedim entos do fabrico da pólvora e das gogodas, facto que irri­
tou Tyago, pois só a ele e poucos outros, cabia passar o testem unho, dizia
o messiri. E esses testemunhos não se fixam em letras que tremem ao vento.
Tudo deve estar na nossa mente. Papéis aqui não, Alfai, sentenciou Tyago.

37
CHO RIRO

E não mais João Alfai ousou praticar os rudim entos da escrita que havia
aprendido nos tempos de estudante sasonal e sacristão dedicado. E isso não
o m agoou, porque a preocupação em grafar tinha em vista o seu rápido
aprendizado e não a preservação do conhecim ento para gerações que não
o preocupava. Diziam que a estranha abnegação ao trabalho de ferreiro
devia-sc ao apego à vida celibatária, prática incom um àquele m undo
poligâm ico que levava frades a abandonarem os altares dos envagelhos e a
concubinarem -se com as cafres. O utros divisavam um fracasso à vida
m onogâm ica pela proxim idade a Suna, m ulher escrava de Nzinga, um a das
principais consortes de Nhabezi. Habituados a vê-los em posições próximas
à confidência, as pessoas auguravam a A lfai um a prolongada vida celi­
batária por Suna nunca, em terras de Gregódio, ter mostrado simpatias aos
hom ens que a rodeavam . Fiel à sua senhora, Suna em pedrava-se aos
olhares masculinos. Alfai é um ornamento, diziam. Vai m orrer solteiro, se
insistir nessa m ulher, rem atavam . Alheio a tudo, Alfai entregava-se com
devota paixão ao trabalho de messire. Por isso, e por mérito próprio, foi,
gradualmente, ocupando o posto im ediato, em term os de responsabilidade,
ao de Tyago.
Distante do amigo, Chicuacha esforçava-se por dizer aos que lhe per­
guntavam que a vida celibatária era a doença dos que se entregavam com
alma ao Deus branco. A cura está em se tom ar infiel a certas doutrinas de
Deus, rematava Chicuacha.
- A vida vai e vem, disse Tyago.
- E o traço do destino, anuiu Chicuacha.
- M as há os que têm o privilégio de traçar o seu destino.
- O que está para além da morte só a D eus cabe definir, Tyago.
-A q u i os reis transm utam -se em espíritos de leão, Chicuacha.
- Não sei se ainda terei vida para ver e acreditar.
- Vamos aguardar.
- No fundo não acreditas na mudança.
- A questão não está em acreditar. É necessário que a alma seja aceite.
- Por quem?
- N ão perguntes a mim.
- É a cor?

38
Ungulani Ba Kg Khosa

- N unca um branco se transform ou em mpondoro.


- Nhabezi é cobaia?...
- O tem po dirá.
- Com preendo menos.
Sem mostrar simpatias para um e outro, Alfai foi seguindo, sem muito
interesse, o assunto que já era notícia antes dc N habezi falecer. Todos
sabiam que G regódio queria, após o desaparecim ento físico, transm utar-se
em espírito de leão como outros soberanos das terras à m argem sul do Zam ­
beze se haviam transformado e governado espiritualm ente os seus homens.
M as m uitos duvidavam da real capacidade de o espírito de N habezi em
coabitar com outros no selecto reino das divindades africanas.

Chiponda Macanga, responsável pela actividade comercial de Nhabezi,


aqui conhecido por m ussam badezi, por o nom e designar com m aior pro­
priedade o líder de caravanas de m ercadorias entre o sertão e os entrepos­
tos e não o indivíduo que se postava por trás de um balcão, com o alguns
com erciantes brancos e canarins, tom ou conhecim ento da m orte de Luís
António Gregódio no regresso das terras dos soli, etnia que se espalhava a
norte e a oeste da região habitada pelos ansengas, korekores, tauras e tandes.
O acam pam ento havia já sido m ontado, com o findar do dia, quando lhe
informaram que o mambo Nhabezi m orrera na m adrugada de quinta-feira.
A notícia não o surpreendeu, pois dias antes e em terras soli, havia
com entado com o rei M ukula M akusc o estado de saúde de N habezi,
augurando, então, tem pos difíceis com a im inente m orte do mambo. Os
dois eram próxim os desde o tempo em que Chiponda, então responsável
pelo com ercio a longa distância, tratara do casamento de Gregódio com
Nzinga, uma das filhas do rei M bada M akuse, pai do actual monarca.
Rica em elefantes, a terra dos soli, ao tempo da chcgada dos homens
de Nhabezi, não era ainda ambicionada pelos caçadores que se contentavam
em perseguir m anadas de elefantes que ainda abundavam no vale do rio
Chire e outras zonas do médio e baixo Zam beze. De riso fácil e m uito dado
a conversa, Chiponda cativou dc imediato a corte soli com as m issangas

39
CHO RIRO

coloridas, os espelhos de encantam ento, os panos da adm iração, o sabão


da surpresa, o vinho da em briaguez estrangeira, as armas de fogo e outros
produtos de m aior e m enor valia que raram ente chegavam em quantidades
desejadas. A apetência era tal que as chefaturas não se davam ao gozo de
regatear. Sem grandes hábitos de com ercialização, pontas de m arfim
serviam dc ornamento e abarrotavam as palhotas dos excedentes.
Prevendo concorrentes futuros, Chiponda tratou de estabelecer re­
lações profundas com o rei. De estatura mediana, olhar recolhido e um a ro­
bustez a resistir à gordura, M bada M akuse era um indivíduo bastante
circunspecto. Os espaçados fios brancos que assomavam nos cabelos de­
nunciavam um a idade que o tempo não lacerara em demasia. Devia rondar
os sessenta anos de idade. Do seu governo não constavam tum ultos dc
monta, senão as frequentes e necessárias quezílias dc um reino governado
com probidade. As vastas terras, ricas em caça, não eram motivo de cobiça.
O tráfico de escravos não havia ainda manchado de sangue as rotas da so­
brevivência do seu povo. A caça e agricultura eram o m odo de vida pre­
dominante. Os espíritos estavam em paz com as almas terrenas. Fechados
ao m undo mercantil, os soli davam largas à sua autossuficiência.
H abituados a tactear terrenos lamacentos, Chiponda e seus homens
impuseram com relativa facilidade a linguagem do comércio nas terras soli.
Vivam ente aconselhado pelos próxim os que se em beveciam com a m agia
das m issangas e o esplendor dos espelhos e panos, Mbada, por largo tempo
indeciso ante a relutância de alguns curandeiros que viam na m agia dos
ossículos tempos conturbados, não cm vida do monarca, mas em momentos
de sucessão, acabou aceitando abrir-se ao mundo exterior que o espreitava.
Aos que auguravam tempos sombrios com o vinho da em briaguez branca,
Chiponda tratou de encantar as consortes com volum es m aiores de panos,
m issangas e espelhos. A decisão estava tomada: o reino soli abria-se ao
com ércio exterior.
Dos vários acordos ficou program ada a visita que culm inaria com o
enlace m atrim onial que Nhabezi faria, tem pos depois, acom panhado por
num eroso e colorido séquito onde pontificavam o m uanam bo M akula
Ganunga, N gulube, responsável pela segurança, o médium N yazim biri, o
tocador do tam bor real, o nsalikanjali M etupi, cozinheiros, roupeiros, e

40
Ungulani Ba Ka Khosa

outros bichos, para além dos cento e cinquenta guerreiros achicundas


equipados de gogodas e espingardas de pederneira que criaram pânico, pela
novidade, na população local.
Foi a prim eira grande viagem de estado de Gregódio. A vida errante
de caçador de elefantes, as noites de tecto de estrelas, o aprendizado dos
rituais das chefaturas locais, o tributo da caça prestado com m esuras de
subordinado aos chefcs locais, deixara de fazer parte dos seus dias
africanos. A gora era rei. E por onde andasse, o tocador real, o nsalikanjali,
fazia sentir a sua presença com as cadenciadas batidas do tam bor real. Os
bichos revezavam -se com os sombreiros da realeza e a cadeira do poder.
N habezi, c não mais Luís A ntónio Gregódio, erguia-se como rei e senhor
de terras no alto Zambeze.
Para além dos excessos que as repetidas e prolongadas festas provo­
caram no corpo e na m ente, o que ficou retido por largo tem po na m em ória
das populações da visita de N habezi foi a sua cor de anim al esfolado.
M uitos ouviram falar de hom ens sem pele e alguns afirm aram que pelas
terras soli já haviam passado hom ens assim, mas nunca os tinham visto de
perto. Daí que m uitos, assustados com a espécie andante sem pele, tiveram
dc ser forçados a aproxim ar-se e tocar o rei dos guerreiros achicunda para
se certificarcm de que cie respirava e falava como os demais. A rotina do
reino modificara-se. Por onde quer que andasse o nsalikanjali, havia um
bando de miúdos curiosos em avistar o rei sem pele; os velhos da corte, ha­
bituados aos m aneirism os sóbrios da realeza e tem endo possíveis contá­
gios, assustavam -se com os pequenos e frequentes gestos de mãos
abrindo-se em leque do Nhabezi, hábito herdado dos tempos das caçadas
em que as ordens se faziam, usualm ente, por gestos; o M bada, intrigado
como muitos com a cor dc gazela esfolada, cedo se habituou à espontanei­
dade de N habezi e, em gestos reais transm itidos nos frequentes e prolon­
gados abraços, afastou qualquer tem or de contágio do hom em que
doravante seria genro por laços m atrim oniais que foram festivamente sela­
dos durante a estadia.
Mas mais duradouro que as histórias da pele do branco ficou o cultivo e
consum o de arroz que N habezi espalhou pelo interior do alto Zam beze.
Encantados com o sabor do prato que se lhes assem elhava na cor à caca de

41
CHO RIRO

pássaros em dieta, o rei e seus colaboradores rasgaram francos elogios aos


pequenos grãos cozidos pelos homens de Nhabezi.
- Deixarei sementes e pessoas que ensinarão a sem ear e tratar a terra.
E planta que precisa de muita água, disse Nhambezi ao rei M bada.
- Agua ó o que mais abunda. Há muitos riachos que cortam as terras
antes de desaguarem no Cafué.
- Os meus homens ensinarão as tuas m ulheres no trato da semente
com a terra, disse Nhabezi.
- Agradeço.
- Que novos dias tragam mais felicidade, disse Gregódio, brindando.
Era noite do dia importante. No terreiro, engalanado a propósito, mais dc
trezentos convivas distribuíam-se em volta de pequenas fogueiras. Os coros
das mulheres de seios ao léu enchiam a noite cortada com o som forte e ca­
denciado dos batuques. M bada e os próxim os confraternizavam na fogueira
real com Nhabezi, M akula Ganunga, o médium N yazim biri, Chiponda e o
chefe da guarda real, o N gulube. Os achicundas, arm ados de gogodas,
guarneciam a aldeia real. As m ulheres da corte, apartadas dos hom ens,
preparavam -se para o grande mom ento da noite: N zinga, a filha mais velha
da quarta m ulher de M bada, iria ser entregue como esposa à Nhabezi.
Em laços m atrim oniais desta natureza o rei pouca escolha tinha para
a consorte. Sem a ver, e fazendo-se valer da descrição que Chiponda fizera
da m oça, N habezi gostou do esboço. D urante a viagem à terra dos soli,
Chiponda foi respondendo à curiosidade crescente do rei. Tirando Nfuca,
filha de rei ansenga, todas as outras conhecera-as dc véspera. Com N zinga
fez-se valer dos gostos de Chiponda, hom em responsável por todos os gru­
pos de m ercadores negros ao serviço da corte e indivíduo atento aos gos­
tos sexuais do seu amo. N habezi acreditava no bom gosto do seu
mussambadazi. O hom em sabia que o que m ais detestava nas m ulheres e
nos hom ens eram os dentes podres que tanto o im portunaram nos seus
patrícios brancos.
Entregues à dura vida do sertão, m uitos brancos desm azelavam -se
no trato dentário. N as cafres, pelo contrário, reconfortava-lhe ver a alvura
dos dentes em sorrisos inocentes. N ão conseguia entrever m aldade, má-fé,
naqueles risos abertos e brancos que as m ulheres espalhavam do alvorecer

42
Ungi/lani Ba Ka Khosa

até as noites de prazer. Via virtudes, candura, pureza. Com o tempo e o con­
vívio profundo com os hom ens, foi hierarquizando os rom antism os dos
tempos da descoberta. Mas os dentes ficaram como um indicador de beleza,
do contraste entre o branco e o preto, entre a luz e a noite. Depois eram os
seios, os botões em ergindo no cum e das encostas lisas e duras que elas os­
tentavam ao sol e à lua sem a vergonha dos corpetes que ocultavam os flá­
cidos seios das raras e chatas m ulheres europeias tostadas pelo inclemente
sol dos trópicos que as deixavam indolentes.
- Espero que não mc desiludas, Chiponda.
- É uma graça, mambo Nhabezi.
N zinga era um a m oça de m ediana altura e traços alongados como
um a gazela. D e uma cintura delgada e ancas de fraca protuberância, ela não
apresentava os traços fortes das conterrâneas de coxas fartas. Tinha dezoito
anos. Os olhos apresentavam o brilho fugidio das águas ao amanhecer. Os
dentes, com pactos, eram o marfim dos desejos de Nhabezi. Como muitas
da sua elasse, ela sabia que os casam entos eram negociados. A mãe, Norina
de nome, havia sido entregue em casam ento aos soli. Pertencia aos lenjes,
etnia que mais ao interior se situava e à qual os portugueses nunca deram
nota de realee por se situar fora das jurisdições almejadas, mas que Capelo
e ívens, dois exploradores portugueses que ligaram o Atlântico ao Índico
através das terras continentais, fizeram rasgados elogios por estes os terem
acolhido com sim patia e generosidade quando já se achavam perdidos no
interior da selva. Deram-lhes guias e carregadores que lhes permitiram per­
correr com m aior celeridade as terras do interior, passando como m eros
fantasm as pelas terras dos soli, longe de im aginarem que anos atrás um
conterrâneo havia desposado um a m ulher de ascendência local. A História
havia-lhes traçado destinos diferentes. A H erm enegildo Carlos de Brito
Capelo c Roberto Ivens, destem idos exploradores da causa imperial, como
ficaria registado à posteridade na H istória das explorações coloniais, não
lhes interessava os hom ens e os seus hábitos, m as os traços sinuosos dos
rios, os m ontes e vales, a geografia da exploração. O sextante e o m ag-
netóm etro eram instrum entos de m aior valia que os cansados carregadores
de amostras da selva e savana africanas. A Nhabezi, trânsfuga do exército im­
perial, os hábitos e costum es das gentes da terra im pregnaram -se no

43
CHORIRO

sangue. Com ungava os mesmos verbos que os locais. N ão era estrangeiro.


Traçara o destino da aculturação como um patam ar à integração que o con­
turbado tempo guiado pelas trocas mercantis via como aventura utópica em
tem po de intenso trabalho escravo. Legiões de hom ens desbravavam as
terras à procura de ouro, m arfim e escravos que atulhavam galeões que
cortavam os mares, distribuindo raças estigmatizadas em terras novas e velhas.
O tem po pouco se prestava ao são convívio humano.
N zinga nunca vira um branco. E quando lhe inform aram que o ania-
matanga, o mesmo que homem branco na língua dos achicundas, iria ser o
m arido, estrem eceu. A pclc do hom em m etia-lhe repugnância por a achar
desprotegida e propensa a doenças e cheiros. Esse asco, essa antipatia, ficou
nela até ao dia das núpcias. N a sua m ente o branco não tinha pele. Para o
seu descontentam ento o processo matrim onial, em tratando-se de acordo
entre reis, foi rápido. Troca de oferendas. Panos c m arfim m udando de
mãos. Cânticos e danças. Discursos. Aturdida ainda com os ruidosos acor­
dos nupciais, N zinga viu-se repentinam ente como esposa e em baixadora
soli.
Mas a noite, a noite da entrega, até aí tranquila nos cânticos e danças,
traria alguns em baraços, porque N zinga, para o espanto das que a
rodeavam , m ostrou-sc arredia cm partilhar a cam a com o Nhabezi.
- Isso criou pequenos burburinhos, diria Chiponda, anos mais tarde,
a Chicuacha.
- O Gregódio não se perturbou?
- Há m uito que se habituara aos receios c m edos das m ulheres do in­
terior em enlaçarem -se a ele. A cabam por gostar, dizia.
A com panhada da escrava, a jovem Suna, N zinga foi conduzida com
algum a dificuldade à casa em que Nhabezi se hospedara. A m ãe, preocu­
pada com os trem ores da filha, seguiu-a à distância, esperando da escrava
os detalhes do com portam ento da filha. Havia dito que não conseguiria
dorm ir com o branco.
- O corpo trem e-m e, mãe.
- Ele é hom em como outro qualquer. O scr rei nada lhe acrescenta à
m asculinidade.
- Im agina as carnes desprenderem -se dos ossos?

44
Ungidani B a fCa Khosa

- É im possível, filha. Ele é pessoa como nós. N ão é leproso.


- E l e não é normal.
- N ã o é doente, filha.
- N ão tem pele, mãe.
Era a obsessão de Nzinga. Por mais que a mãe e outras mulheres ten­
tassem dem ovê-la de tal cenário, ela m ais se com penetrava da fragilidade
das carnes do branco Nhabezi. Imaginava as veias a desprenderem -se, o
sangue a jorrar, as carnes a descolarem -se dos ossos, os olhos a cairem, os
lábios a desfazerem -se, os dentes sem resguardo c o esqueleto a vibrarem,
desamparado.
- N ão posso dorm ir com esse homem.
- O casam ento está feito.
- Prefiro morrer.
- H á que encontrar m aneiras, m urm urou a mãe, olhando as mulheres
conselheiras. Estas, estupefactas com tal decisão, não conseguiam racioci­
nar. Para elas seria um privilégio dorm ir com um homem que se averm e­
lhava por tudo e por nada. O corpo devia ser m uito quente, im aginavam. O
sangue que enrubescia, ao sol, o rosto redondo, devia palpitar com outra in­
tensidade. O sexo teria o vigor dos felinos e a m orosidade extasiante das
serpentes nos caprichosos enlaces amorosos. O calor libertado aqueceria
com o nunca as vísceras insatisfeitas das mulheres que copulavam para a
reprodução. N ão seriam só os hom ens a arfar dc gozo, pensavam . Com o
hom em branco o sexo teria a liberdade da natureza animal e não os sufo­
cados guinchos nas palhotas escuras do sexo nocturno. Elas imaginavam os
fios de cabelo feitos lianas enlouquecidas envolvendo os seios, o rosto, a
vulva, as coxas, o corpo. N zinga está doente, pensavam . Está a delirar.
Como c que vai im aginar o sexo como um acto de defuntos?
V isivelm ente inquieta e sem soluções à vista, a m ãe ia olhando as
paredes m aticadas e o tecto dc palha. N ada lhe ocorria. As conselheiras,
em núm ero de cinco, levitavam em espaços não com ungados, porque o
sexo im aginado em terrenos alheios ao lar levava ao campo do adultério. O
mais que podiam , quando surpresas em devaneios inconfessáveis, era a
troca de olhares cúmplices. O que não foi o caso dessa noite, pois nenhuma

45
CHO RIRO

delas ousara im aginar que as oulras tivessem tido a liberdade de associar o


rei branco aos seus devaneios sexuais. Elas lim itavam -se a olhar para
N orina com o sorriso de pecadoras primárias.
O silêncio im perava na palhota real. Fora, sob um céu polvilhado de
estrelas, as vozes dos homens, o som dos batuques, o latir espaçado de cães
abafavam a orquestra nocturna da selva. A aldeia real estava em festa.
N orina, mais que preocupada, esperava das dam as conselheiras palavras
de conforto. Mas estas, já em terreno real c com sorrisos contidos no imaginário
em festa, nada diziam. Foi necessário que Suna, encostada a uma das pare­
des da casa e de olhos postos no umbigo, abrisse réstias de luz nas mentes
nebuladas.
- Eu dormirei com o branco diante da Nzinga.
- O quê? interrogou-se a mãe. As conselheiras, estupefactas, abriram
os olhos redondos. Jamais imaginaram que os seus devaneios pudessem ser
experim entados por uma escrava.
- Está maluca, Norina, disseram, em uníssono.
- N ã o entendi, Suna, disse N orina sem ligar o coro das conselheiras.
Disseste o quê?
- Disse que posso dorm ir com o rei branco, mãe Norina.
- Porquê?
- Se experimento a comida dc N zinga, por que não poderei mostrar-
-Ihe que as carnes do branco são como as nossas?
Estupefacta, N zinga olhou para Suna. O brilho dos olhos fulgiu, por
m om entos, na retina incrédula. N orina sorria, boquiaberta. Serena, braços
envolvendo os seios e recolhida no seu canto de escrava, Suna esperava
uma resposta. Quem a conhecia jam ais a imaginaria com ideias fixas. Sendo
escrava doméstica, os seus gestos medidos e a voz cuidada, estavam sem ­
pre à sombra dos senhores. As ideias bordejavam o leito dos amos. Cresceu
na som bra e à sombra de Nzinga. Em criança, desligada dos progenitores
que a viam de longe, Suna não teve outra com panheira que não Nzinga. O
seu papel foi sempre o de tecer palavras reconfortantes. N ão se podia dizer,
com toda a certeza, que elas eram, ao tem po, am igas, pois à Suna cabia
afastar os m aus hum ores e criar espaços de alegria. Os seus sentimentos
pouco contavam na relação. Os seus devaneios eram libertos em função

46
Ungulani Ba Ka Khosa

dos gostos dc Nzinga. Vivia para Nzinga. Os m aus hum ores desta recaiam
sempre na escrava. Dois anos m ais velha e com um corpo mais avantajado
nas ancas, cabia-lhe pôr-se na dianteira em situações de perigo. Cumpria-
-lhe defender N zinga da agressividade de outras crianças da corte. As lutas
entre crianças rivais faziam-se com as respectivas escravas. Suna esmerava-
-se por defender Nzinga. M uitas histórias ficaram desse tem po de alegrias
contidas e incontidas. M as as duas, já em terras de N habezi, haveriam de
se recordar, de entre outras façanhas, da cobra que paralisara o corpo dc
Nzinga. A serpente, enrodilhada sob as cobertas de Nzinga, assustou-se e
pôs-se em posição de ataque. Era uma serpente venenosa. N zinga não
m exeu um músculo.
- Sempre tiveste medo de cobras. Com os crocodilos pouco te preo­
cupavas, disse Suna.
- As serpentes são mais traiçoeiras.
- Os crocodilos atacam , as cobras defendem-se, retrucou Suna.
- N ão importam as m anhas, mas as cobras perturbam -m e. Mas de­
fendeste-me.
- Libertei-me do medo.
- N ã o me vou esquecer dos teus olhos...
- De medo.
- De raiva, Suna.
- De medo.
- É o segredo que fica.
- N u n c a tivem os segredos.
M aneiras suaves de term inar conversas. Hábitos herdados da infân­
cia habitada por longos silêncios cortados por frases simples e leves. Em
adultas, mais do que na adolescência, achavam -se am igas e até íntimas,
pois entrcgavam -sc com m aior frequência a confidências que não se es­
tendiam a outras m ulheres da corte. N a verdade e para sc ser mais preciso,
a am izade entre as duas cim entou-se quando perderam a virgindade. Até aí
a relação tocava o superficial, navegava em generalidades e pontuava-se
no óbvio. A grande virada na vida delas deu-se precisam ente na noite em
que Suna propôs-se dorm ir com o branco Nhabezi.
Ainda aturdida com as palavras de Suna, N orina levou tem po a

47
CHO RIRO

digerir as ideias da escrava. As conselheiras, sem nada a dizer, limitaram-


-se a olhar para os paus do tecto de capim. Suna esperava. Incrédula com
o gesto, Nzinga não tirava os olhos do rosto de Suna. Ao olhá-la apercebeu-se
de que estava em presença de uma mulher de facto. Até então não havia reparado
nos dois picos que despontavam, ameaçadores, do peito descoberto de Suna.
Com parados, os seus não passavam de suaves colinas encimadas por dois
inquietos olhos; os dela eram mais enérgicos. Pequenas tatuagens cortavam
o estreito vale entre os picos, e percorriam o centro do ventre sem estrias,
desaguando com um a precisão m ilim étrica no umbigo feito poço onde pe­
quenos e dispersos pêlos despontavam. Os dela não passavam , dentro do
seu im aginário em autoflagelação, de m eros côm oros envergonhados num
espaço aberto onde pontificava a pequena elevação do seu um bigo da ver­
gonha. As suas tatuagens não passavam de um carreiro sinuoso e sem graça.
Ligeiram ente mais alta c delgada, N zinga apresentava um rosto alongado.
O dc Suna era redondo e em estreita consonância com as nutridas ancas
que afloravam na saia de peles. É bonita, pensou Nzinga. E recordou-se da
infância comum, do tem po partilhado nos ritos de iniciação, das dores sem
hierarquia, dos choros comuns e das contas perdidas na soma das estrelas
que em panturravam o céu tropical em noites dc histórias de ogres e ani­
mais da floresta. Suna era, de facto, a única pessoa que atravessara sem so­
bressaltos a sua infância e adolescência. N a sua m em ória não transcorriam
imagens de conflitos, cenas tumultuosas, turbulências de carácter. A relação
entre as duas situou-sc na norm alidade das relações amo/servo. As peque­
nas culpas, os desvios da infancia, os desvarios da juventude, eram assumi­
dos por Suna. Sem se arm ar em heroína, ela vergava-se às descomposturas
da mãe com um sorriso cúmplice nos lábios. As vergastadas que lhe cabiam
iam para Suna, que as recebia sem desagravos em palavras e actos maledi-
ccntcs. As mentiras de N zinga eram as verdades públicas de Suna. Nunca,
até essa noite, se dera conta da im portância de Suna na sua vida. Sempre a
vira como m ais um adereço nos habituais adereços da corte. Agora, em
adulta, surpreendia-se ao dar-se conta do tempo que perdera em guardar
para si algumas inquietudes da juventude. Apercebia-se que os medos nunca
partilhados foram sempre assumidos pela reservada Suna. Ela adiantava-se
nos m om entos de vacilação. Suna conhecia-a. Ela, como ninguém, conseguia

48
Ungulani Ba Ka Khosa

ler o seu m apa interior. Os anos de observação perm itiram -lhe decifrar os
seus códigos de conduta, as estradas temperamentais, os lagos das emoções
e as escarpas dos seus desesperos. E ela pouco sabia da sua escrava. M as
em parte asscm elhavam -se, pensava. Como ela, Suna nunca fora m ulher
de espaços abertos, de libertar a voz ao vento, de trocar segredos no rio. Os
seus passos não despertavam curiosidade e pouco se preocupava cm puxar
as sementes à sua esteira. Sabia que havia escravas que se abriam ao terreiro,
que se davam aos segredos nos poços de água, que se entregavam como
am ásias c que sc faziam de correios dos segredos da alcova. Suna esteve
sempre longe das intrigas da corte. E tal distanciam ento deveu-se à força
m atrilinear de Norina. N as poucas, e foram duas, tentativas em desposá-la,
Suna refugiou-se em prantos à m ãe Norina, dizendo preferir a morte a ter
que separar-se dc Nzinga. Na prim eira ela tinha dezasseis anos c N zinga
catorze. Um guerreiro de etnia vizinha, encantado com o rosto de sorriso
fechado, quis esposá-la, m as as lágrimas de N zinga e o incontrolado choro
de Suna levaram Norina a afastar o pretendente. Na segunda, Suna interpôs-se
com a razão dc m ulher adulta entre os pais biológicos e a mãe N orina, afir­
m ando que seu desejo não estava no casam ento, m as na protecção de
Nzinga. Tinha dezoito anos. O destino estava traçado.
- U m a escrava não entra nos aposentos mais íntimos do rei sem que
ele levante a mão da anuência. Tu não és nada, Suna.
- Eu só quero ajudar.
- Sei, disse Norina. Nervosa e com pouco espaço de manobra, N orina
andava de um lado para o outro. A palhota tom ara-se pequena para os seus
passos angustiados. Queria ajudar a filha. iMas não encontrava o meio apro­
priado. De fora, m as m uito de fora, a hipótese de solicitar o apoio ao rei. E
cada vez que tal im agem lhe perpassava p ela m ente, ela repelia-a com
veem ência. Onde sc viu um rei interferir em assuntos de alcova m al re­
solvidos? O rei fica de fora, pensou. Cabia-lhe a ela e só a ela, a tarefa de
encontrar uma solução ao problema. As conselheiras pouco se prestavam às
decisões do mom ento. E foi nesse ínterim que a filha resolveu sair dos seus
devaneios e dizer a m ãe que ela e a Suna iriam resolver o problema.
- Como?, perguntou a mãe.
- Encontrarem os a maneira.

49
CHO RIRO

Com esta frase N zinga estreitou, em definitivo, os laços entre as duas.


A partir dessa noite, mais do que nos tempos da infância e da adolescência
de segredos m al com ungados, a am a e a serva tom aram -se íntimas.
- Espero que saibam resolver a questão, disse Norina. A voz, meio
apagada, m ostrava o desalento de não ter encontrado uma saída a seu con­
tento. D eixar as duas entregues aos humores do rei branco, expunha-lhe a
uma situação de irresponsabilidade na condução das questões de alcova.
Se algo corresse mal as culpas cairiam nas suas costas. Daí as advertên­
cias, os repetidos conselhos... A m ágoa de não ter urdido a noite nupcial
persegui-la-ia por toda a sua vida. Já a cair 11a idade do esquecim ento,
Norina diria, com a mágoa a contorcer-lhe o espírito, às pessoas mais próxi­
mas que os sabores da alcova nupcial não foram para sua filha N zinga, mas
para a escrava Suna. Ela é que casou com 0 branco Gregódio.

- N a prática fui o padrinho do casamento de Nhabezi, disse Chiponda


ao Chicuacha. Supervisionei a cerimónia. E na noite das coisas, para 0 meu
espanto, ele chamou-me. Queria entender os receios da noiva.
- Os da corte não foram ouvidos...
- Não. E ninguém se apercebeu do que por lá aconteceu. Eu tinha a
vantagem de conhecer a língua soli. Sentia-me à vontade. O N yazim bire
limitou-sc a lançar os ossículos e a dizer que o casam ento traria outra ale­
gria a Nhabezi.
- Ficou-te a responsabilidade dc estabeleceres a p o n te ...
- Foi o que aconteceu.
- E o que é que aconteceu, afinal?
- O rei cham ou-me. Queria estar ao corrente das preocupações da
noiva. Traduzi-lhe a letra. E depois retirei-me.
- O homem não se m ostrou surpreendido?
- Lim itou-se a rir. As m oças espantaram -se. Pareciam gazelas sur­
preendidas. Ninguém esperava aquela reacção calma e serena do Nhabezi.
Eu fiquei surpreendido. M as N habezi, naquele seu jeito de caçador, recon-
fortou-m e, dizendo: Vai descansar, Chiponda, que isto resolvo eu. E acres­
centou: se nas cobras os m achos enrolam-se para ver quem chega à fêmea,
aqui vou dcixá-las enrolarem -se... N ão te preocupes. E fu i...

50
Ungulani Ba K a Khosa

- O caso passou...
- Houve chatices com a mãe. N ão me largava. Quase que levantava
suspeitas. Para o Nhabezi o caso ficou entre nós. M ais ninguém devia saber.
Aliás, na m anhã seguinte, só me disse que foi agradável o desbaste da mata.
São m ulheres m aravilhosas, sentenciou. E não falamos mais do assunto. A
mãe é que queria notícias.
- Que notícias?
- Não acreditava na filha. Dizia que a moça ocultava-lhe a verdade.
- Porquê?
- Pela tranquilidade de N habezi. Achava que a filha não seria feliz.
Queria, a todo o custo, a opinião do rei.
- Preocupação legítima.
- Mas calci-lhe com panos. Dissc-lhe que eram oferta do rei pela generosi­
dade da filha e da cscrava. Mas ela continuou desconfiada. Nunca lhe ocorrera tal
situação na vida.
N a verdade N orina não esteve cm si durante a noite de núpcias. Após
a saída da filha, tratou de rejeitar a com panhia das conselheiras, dizendo-
-lhes que estava tranquila e que passaria bem a noite e que fossem à von­
tade e que nada dissessem a terceiros sobre a conversa que tiveram. Con­
trariadas, as conselheitras retiraram-se. Ficou só e às voltas com os seus
pensamentos. Sorte sua foi o rei não a solicitar. Caso a cham asse notaria o
seu não à vontade. E isso contrastaria com a natural alegria das mães em noites
dc núpcias. M as na m anhã seguinte o rei M bada quis pormenores. Aliás, a
corte soli estava expectante. Todos queriam saber das qualidades da carne
branca em entranhas negras. Em tais ocasiões os rum ores correm rápido.
D iziam à boca pequena que N zinga virara palha revolvida até à exaustação
pelo m usculado branco, m etam orfoseado em elefante que urrou de satis­
fação na noite de trem ores na palhota de hóspedes. Os cabelos do branco
transform aram -se em trom bas inquietas sobre os seios erectos que am ole­
ceram como o m uchém atacado pela fúria devoradora de pangolins fam éli­
cos. Outros afirm avam que o branco e a preta conubiaram -se de tal ordem
que tom aram a forma de zebras felizes no preto e branco das cores de paz
e tranquilidade. A felicidade estava com eles. Os mais cruéis, dado o silêncio
que tocava a palhota de hóspedes na m anhã das incertezas, aventaram a

51
CHORIRO

hipótese de N zinga ter sido devorada com o algum as aranhas no acto


primeiro e único onde os machos oferecem o abdómen, mas no caso, a força
do branco contrariou as leis da natureza.
Esses com entários nada abonatórios circularam à boca pequena. E
quando Suna saiu pela porta da casa de hóspedes ninguém aventou a
hipótese de ela ter partilhado o leito real. Todos acharam natural a presença
da escrava em palhota real na hora em que os amos se espreguiçavam .
N orina não a deixou cum prim entar as pessoas que tentavam se accrcar.
Puxou-a para a sua palhota. O rei queria notícias. As conselheiras, já dc
atalaia, apressaram -se cm ocupar os seus lugares na casa da Norina.
- Conta, Suna.
- Correu tudo bem , mamã.
- Como?... Conta tudo, moça!
- E o branco?... O que fez?... Perguntaram as conselheiras.
N ada de substancial tiraram da boca de Suna. Passados os m inutos
cruciais de perguntas e respostas breves e secas, N orina deixou de se
interessar pelo que fizeram durante a noite. O facto de a noite ter-se passado
sem sobressaltos tranquilizou-a. As conselheiras que sc esfalfassem com
as perguntas da m á língua. O m ais im portante agora era a atitude futura do
branco. Em causa estava a filha. Sempre a quis bem. Antes dela partir que­
ria ter certezas. E ao saber que N habezi partiria na m anhã seguinte, ficou
desconcentrada.

A noite havia caído no acam pam ento quando C hiponda resolveu


cham ar Adaliano Gregódio, filho único de N habezi com Nzinga. Pequenas
fogueiras alteavam -se dentro das im provisadas cabanas erigidas com paus,
ram os e folhas da floresta. As nuvens escuras que se divisavam por entre a
espessa folhagem da floresta haviam deixado cair algumas bátegas sobre o
acampam ento. A chuva, frequente na zona, era intervalada por m inutos, e
até horas. A lto, forte, olhos brilhantes, cabelos encaracolados, claro, a
puxar para o pai, Adaliano Gregódio era já um homem nos seus já dezassete
anos de idade. Louco por viagens c línguas, Adaliano colara-se ainda criança
a Chiponda. Devia ter sete anos quando encetou as prim eiras viagens pelo
sertão e aos entrepostos de Zum bo e Tete.

52
Ungulani Ba Ka Khosa

- Senta, Adaliano, disse Chiponda, mostrando o espaço vazio no catre


im provisado de paus e coberto de peles. Dez paus entrelaçados por cascas
de árvore em forma de cone constituíam o esqueleto dos abrigos do acam ­
pam ento. Fáceis de erguer e remover, os abrigos tem porários acolhiam de
um a a três ou quatro pessoas, caso não fossem feitos para abrigar um a só,
com o era o de Chiponda. O interior, não muito espaçoso, era acolhedor.
- E má notícia?
- E, disse. Pegou num pau e revolveu pequenos cavacos que ardiam
na fogueira trem ente. D epois, e em voz pausada, disse: Terem os que
levantar o acam pam ento para ganharm os tem p o ... O teu pai, o nosso
mambo, morreu. Informaram -me há p o u co ...
- Eu já esperava.
- É. Todos esperávam os... Foi-se um grande homem.
- E. Foi um grande homem.
- E. Era um grande homem.
M antiveram -se em silêncio. Dos olhos de A daliano não despontou
lágrima. O olhar inquieto pervagava pelo reduzido espaço cm que se en­
contravam. Do pai, tirando alguns m em oráveis momentos da infância em
que ele se fazia presente no nedarc, -espaço reservado à educação das crianças
pelos anciãos-, c contava histórias sobre a caça dos elefantes, as armadilhas
que faziam, os rem édios que tom avam e a furia incontrolada dos elefantes,
pouca confidência teve. Da vida anterior à de caçador de elefantes pouco
falava e quando a ela se referia não era em tom nostálgico. Pela m ão de
Chiponda, um pai nos ensinam entos da vida, conheceu João de Andrade,
am igo do pai, escrivão reformado na vila de S. M arçal de Sena, dono de
terras e escravos e de uma loja de com ércio gerida pelos filhos que a Que-
limane se deslocavam com relativa frequência à busca de m ercadorias que
trafegavam com o interior. Sem a sum ptuosidade da vila de Tete, Sena
apareceu aos seus olhos como uma vila muito mais acolhedora que Tete. Tal
aferição sc deveu, em parte, à humidade que muito se aproxim ava às chu­
vosas terras do seu interior. Tete era um a vila seca, extrem am ente quente e
desprovida das frondosas árvores que deram som bra à sua infância e
juventude. As pessoas eram apressadas e distraídas. E naquele calor árido
só viam, para seu desconsolo, pedras e m ais pedras, e cabritos, e vento, e

53
CHO RIRO

hipótese de N zinga ter sido devorada com o algum as aranhas no acto


primeiro e único onde os machos oferecem o abdómen, mas no caso, a força
do branco contrariou as leis da natureza.
Esses com entários nada abonatórios circularam à boca pequena. E
quando Suna saiu pela porta da casa de hóspedes ninguém aventou a
hipótese de ela ter partilhado o leito real. Todos acharam natural a presença
da escrava em palhota real na hora em que os am os se espreguiçavam .
N orina não a deixou cum prim entar as pessoas que tentavam se acercar.
Puxou-a para a sua palhota. O rei queria notícias. As conselheiras, já de
atalaia, apressaram -se em ocupar os seus lugares na casa da Norina.
- Conta, Suna.
- Correu tudo bem, mamã.
- Como?... Conta tudo, moça!
- E o branco?... O que fez?... Perguntaram as conselheiras.
Nada de substancial tiraram da boca de Suna. Passados os m inutos
cruciais de perguntas e respostas breves e secas, N orina deixou de se
interessar pelo que fizeram durante a noite. O facto de a noite ter-se passado
sem sobressaltos tranquilizou-a. As conselheiras que se esfalfassem com
as perguntas da m á língua. O mais im portante agora era a atitude futura do
branco. Em causa estava a filha. Sempre a quis bem. A ntes dela partir que­
ria ter certezas. E ao saber que N habezi partiria na m anhã seguinte, ficou
desconcentrada.

A noite havia caído no acam pam ento quando C hiponda resolveu


cham ar Adaliano Gregódio, filho único de N habezi com N zinga. Pequenas
fogueiras alteavam-se dentro das improvisadas cabanas erigidas com paus,
ramos e folhas da floresta. As nuvens escuras que se divisavam por entre a
espessa folhagem da floresta haviam deixado cair algumas bátegas sobre o
acampamento. A chuva, frequente na zona, era intervalada por m inutos, e
até horas. A lto, forte, olhos brilhantes, cabelos encaracolados, claro, a
puxar para o pai, Adaliano Gregódio era já um homem nos seus já dezassete
anos de idade. Louco por viagens e línguas, Adaliano colara-se ainda criança
a Chiponda. D evia ter sete anos quando encetou as prim eiras viagens pelo
sertão e aos entrepostos de Zum bo e Tete.

52
Ungulani B a K a Khosa

- Senta, Adaliano, disse Chiponda, mostrando o espaço vazio no catre


im provisado de paus e coberto dc peles. Dez paus entrelaçados por cascas
de árvore em form a de cone constituíam o esqueleto dos abrigos do acam ­
pam ento. Fáceis de erguer e remover, os abrigos tem porários acolhiam de
um a a três ou quatro pessoas, caso não fossem feitos para abrigar um a só,
como era o de Chiponda. O interior, não m uito espaçoso, era acolhedor.
- É m á notícia?
- E, disse. Pegou num pau e revolveu pequenos cavacos que ardiam
na fogueira trem ente. D epois, e em voz pausada, disse: Teremos que
levantar o acam pam ento para ganharm os tem p o ... O teu pai, o nosso
mambo, morreu. Inform aram -m e há pouco...
- E u já esperava.
- É. Todos esp eráv am o s... Foi-se um grande homem.
- É. Foi um grande homem.
- É. Era um grande homem.
M antiveram -se em silêncio. Dos olhos de Adaliano não despontou
lágrima. O olhar inquieto pervagava pelo reduzido espaço cm que se en­
contravam. Do pai, tirando alguns m em oráveis m om entos da infância em
que ele se fazia presente no nedare, -espaço reservado à educação das crianças
pelos anciãos-, e contava histórias sobre a caça dos elefantes, as armadilhas
que faziam, os rem édios que tomavam e a fúria incontrolada dos elefantes,
pouca confidência teve. D a vida anterior à de caçador de elefantes pouco
falava e quando a ela se referia não era em tom nostálgico. Pela mão dc
Chiponda, um pai nos ensinam entos da vida, conheceu João de Andrade,
amigo do pai, escrivão reform ado na vila dc S. M arçal de Sena, dono de
terras e escravos e de um a loja de com ércio gerida pelos filhos que a Que-
limane sc deslocavam com relativa frequência à busca de m ercadorias que
trafegavam com o interior. Sem a sum ptuosidade da vila de Tctc, Sena
apareceu aos seus olhos como uma vila muito mais acolhedora que Tete. Tal
aferição se deveu, em parte, à humidade que m uito se aproxim ava às chu­
vosas terras do seu interior. Tctc era uma vila seca, extrem am ente quente e
desprovida das frondosas árvores que deram som bra à sua infância c
juventude. As pessoas eram apressadas e distraídas. E naquele calor árido
só viam, para seu desconsolo, pedras e mais pedras, e cabritos, e vento, e

53
CHORIRO

poeira. Uma vila de pedras e árvores teimosas em suster-se sem a tranquili­


dade das sombras. Em Sena, pelo contrário, a vida era mais calma e acolhe­
dora. As pessoas eram m ais aconchegantes. Os homens da sua cor não o
olhavam com o desdém que os tetenses lhe prestavam. Scntia-sc em casa.
O senhor João dc Andrade, aflorando simpatia, apresentou-lhes a numerosa
família. Os netos, em particular, eram moços de uma curiosidade extrema.
E provável que os distintos pergam inhos que Andrade apresentara do pai
tivessem atiçado a curiosidade dos moços nas duas semanas que esteve em
terras de S. M arçal de Sena. Dos mais velhos estendeu-se o sorriso dc bom
acolhim ento e as respostas à altura da solicitação. A quantidade de m arfim
e a cera de qualidade tiveram o condão de afastar quaisquer susceptibili­
dades. O único problem a que lhe tocou de início foi a língua portuguesa.
Tirando os rudim entos que fora aprendendo com Chicuacha e Chiponda,
mais por sua insistência do que por vontade deles, o domínio era fraco. E
culpava Gregódio por não se preocupar em disseminar o português nas suas
terras. Nhabezi não gostava de sc expressar em português. É uma língua que
faz eco na floresta, dizia a brincar. B asta a m inha cor para afugentar os
animais. A língua que fique para as vilas, rem atava. E entregava-se com
satisfação a grandes conversas em várias línguas do sertão.
A em patia dos habitantes c o à vontade de Chiponda nas trapalhadas
da língua, fê-lo libertar-se dos temores e habituar-sc aos seus próprios erros.
Adm irava Chiponda no trato que fazia à língua.
- Ela não me diz nada, Adaliano. N ão sonho com ela. Importa-me
os negócios. N habezi, teu pai, diz que ela pouca valia tem no trato com o
nosso interior. Ela é im portante lá onde as águas dizem saber a sal.
- M as eu quero dom inar essa língua, Chiponda.
- De nada te serve.
- Os brancos estão chegando.
- Eles aprenderão mais de nós.
- E nós deles.
- O teu pai diz sem pre que tem os que ter cuidado com o hom em
branco. É ganancioso. Hoje o m arfim. Amanhã a terra. Afasta-te deles.
E calavam-se. Era sempre assim. As lições de Chiponda partiam do nada,
de uma simples conversa, dum bate-papo casual e acabavam abruptamente.

54
Ungiilani B a K a Khosa

Pareciam os rápidos de um rio. De repente a água revolve-se, provoca ondas


e, em espasmos contínuos e vigorosos, cai abruptam ente, para depois, na
lisura do leito as águas voltarem à calmaria. A vida voltava à normalidade
e a lição ficava na alma. Era a bondade em pessoa, e a m anha no negócio,
Chiponda. Os chefes indígenas conheciam -no. M urm uravam nas suas
costas; diziam que a troca não lhes era favorável, m as de frente, cara a cara,
não conseguiam rebater os argumentos apresentados pelo mussambadazi.
O sorriso do homem era tão cativante que fechavam o negócio em risos e
abraços. D izia-se que os modos no negócio aprendera-os com os canarins,
em tem pos anteriores à sua ligação com N habezi. M as isso era outra
história. E enquanto houver vida, contar-te-ci, dizia, com o eterno sorriso
no rosto.
Por ser distante, Sena não era a rota habitual do comércio. As trocas
faziam-se, habitualm ente, em Tete ou no Zumbo. M as N habezi, a pretexto
de preços m ais concorrenciais, m andou Chiponda à vila de Sena. Tenho lá
o m eu amigo João Andrade. Ele vai-te receber com o parente, disse-lhe sem
outros segredos.
Com um a caravana de m ais de cem hom ens, C hiponda atirou-se à
estrada, carregado de pontas enorm es de marfim, carne seca dos m elhores
kudus e cera de grande qualidade. O velho Andrade, que na altura rondava
os setenta anos dc idade, rejuvenesceu de alegria. Era um homem de hábitos
precisos e austeros. D c tanto a vida o obrigar a estar sentado na estafante
tarefa de escrivão, desenhando com prim or as letras que deviam constar no
livro de assentamento oficial, a coluna dobrara-se, levando-o a deslocar-se,
com esforço, com um a bengala. Mas na prática pouco saía da loja. Deixava
estar-se sentado, nas manhãs e tardes, na cadeira de balouço, contemplando
a rua e os poucos transeuntes e, o que era frequente, em cavaqueira com outros
poucos funcionários aposentados. Pouco dado ao trato da terra, A ndrade
deslocava-se de tem pos a tempos às suas terras. Os filhos tom avam conta
da propriedade. As terras, reocupadas por abandono, foram em tem pos
passadas por aforam ento no Estado da índia, a 10 de Dezem bro de 1744
pelo vice-rei da índia, M arquês de Castelnovo, a D. U rsula de S. Payo que
não deixou, na terceira vida, herdeiros a reivindicarem a fortuna dos terrenos,
tinham dez léguas de com prim ento c seis de largura. Produzia milho,

55
CHO RIRO

m cxoeira, feijão, tabaco, algodão, arroz, m adeira e cera. Em registo não


actualizado, A ndrade arrolou: «possue de portas adentro para seu serviço
diário quarenta e nove escravos, entre grandes e piquenos, assim mais sin-
coenta e três pretas grandes e piquenas: tem hum cozinheiro preto com seu
aprendiz: assim mais duas cozinheiras e três conserveiras pretas: tem cinco
padeiras pretas: dous carpinteiros pretos e seus padeiros tam bém pretos.
Possue a terra por nom e M onga, nesta produz m ilho e m exueira, m ilho dá
annoalm ente trezentos alqueires e m exoeira secenta ditos: tem algum as
m angueiras, pereiras e cajueiros: tem na dita terra cinco povoações dc seus
escravos que terão cento e cinquenta entre machos e fêmeas; tem mais nesta
terra povoações de cafres livres, donde m orão outros seus agregados de
m ayor número que não pode saber com individuação o número certo delles
e suas mulheres. Possue cinqoenta cabeças de gado vacum e cem cabeças
de gado miúdo. Possue quatro cazas de adobes, duas cubertas de telha e outras
de palha.» M ais tarde montou engenhos de mandioca e de espremer cana dc
asucar- na grafia da época. A seu serviço pôs ainda ferreiros, pedreiros e
ourives. Muitas das bijutarias que se trocavam no interior fabricava-as ele.
- Este é então o filho do Gregódio, perguntou A ndrade ao Chiponda
no prim eiro contacto que tiveram.
- É ... É um dos filhos.
- Deve ter tantos como e u ... Falas português, moço?
- Um bocado, respondeu, um pouco envergonhado por não estar à
altura do domínio que o velho e outros tinham da língua portuguesa. M as
afeiçoara-se ao meio. Os mestiços com que se cruzara não eram empolados
com o os de Tete. D ele, visitante do outro m undo, queriam notícias do
interior profundo, guerras imaginárias, canibalismos ausentes. Eram jovens
da sua idade, os netos de João Andrade. A vida na vila e na propriedade
pouco m ais lhes dera que os rudim entos que a escola m issionária lhes
incutiu, as caçadas fugazes e de entretenim ento, o sonho de mais vezes se
deslocarem à Quelimane c a fornicação com cafres e mestiças que aumentavam
dc núm ero e qualidade.
Rejuvenescido com as notícias do seu soldado da fortuna, o velho
A ndrade alterou por semanas os seus hábitos. Passou a circular com maior
frequência pelas artérias da vila; dedicou mais dias e noites ao prazo que

56
Ungulani B a K a Khosa

distava da vila em uma manhã e meia tarde de marcha e abriu o seu coração
às recordações que o tem po agastara. Sem o saber, m orreria de sono tran­
quilo, m eses depois da visita de Chiponda e A daliano Gregódio.
- O António não saberá da morte do pai, disse Adaliano a Chiponda.
- Isso não o afcctará.
E era facto, pois Nhabezi, ao tomar conhecimento da existência de um
filho com a finada Luiza dos serviços auxiliares de Sena, qui-lo em suas terras
no convite formulado por C hiponda na segunda e última viagem que fez à
vila dc Sena. M as .António recusou viver com o pai e outros pretos do sertão
profundo.
- N ão nasci para viver em aringas, disse. E em tom sentencioso,
rematou: O pai é um foragido da coroa. Eu sou português.
Ante as estranhas palavras, Chiponda e Adaliano não se deram ao tra­
balho de entender o que era coroa e foragido e m uito m enos o ser por­
tuguês. Trataram dos seus negócios e, no fim, limitaram-se à despedida de
rotina. N ão mais se cruzaram. A ntónio term inaria os seus dias como um
simples e obscuro funcionário das alfândegas de Quelimane. Pensara que
a sua cor mestiça seria de grande valia na vila onde, em núm ero crescente,
outros mestiços se firm avam em grandes famílias que locupletavam a vida
urbana, pródiga de histórias que as Donas, senhoras mestiças de prestígio
firm ado, protagonizavam . Mas a condição de m estiço do interior e sem
apelido nobre, rem eteria António Escrivão à condição de cidadão subal­
terno. Casado com uma m estiça da vila interior do Chinde, António deixaria
a vida com a m esm a pacatez com que a vivera e uma prole de seis filhos que
renegariam, por incompatibilidade, à nobre condição de mestiço, raça desta­
cada do ordinário cafrc que assumia, sem se importunar, apelidos detestáveis
como João Sem Vontade, ou Francisco Pega Merda, o apelido de Escrivão,
retomando o do desconhecido Gregódio que morrera feliz em terras altas da
Zambézia.
Em proles num erosas a relação afectiva é m uito ténue e quando
irm ãos crescem em m undos diferentes a relação tende a tom ar-se m ais
precária. Adaliano adm irou em António o conhecim ento deste da língua
portuguesa que a sua postura urbana. N ão o cativou aquela vida sedentária,
cheia de regras e poses e aqueles maneirismos no trato da roupa e do cabelo.

57
CHO RIRO

A ele se referiria, anos mais tarde, como um hom em sem carácter. O An­
tónio é uma pessoa sem vida. Ele não tem cheiro, dizia. Sempre m etido
naquelas roupas engom adas, o tipo não sabia a nada. Era com o a água: não
consegues segurar. Um hom em sem sab o r... Outra lem brança que ficou do
fugaz relacionam ento foi um alm anaque de banalidades com o qual se ape­
gou com fervor de um neófito ao longo de toda a sua existência, la sole­
trando as mesm as letras e frases com o à vontade de um principiante. D a
vida do irmão nada dc assinalável ficou para a história senão que João de
Andrade o registou com o nom e de António, em lem brança do pai de des­
tino incerto, e Escrivão, em alusão à profissão alm ejada por Andrade para
a criança que cresceria na repartição, aprendendo as regras dc assentamento
para a alegria do tutor que m uito se entristecera por os filhos não se
quedarem à escrita e aos afazeres burocráticos.
E tudo começou quando aos dois anos perdeu a mãe e João de An­
drade, cm presença do órfão sem outra ancestralidade que o pai desconhecido,
tratou de o registar e m andar à escola paroquial onde se destacou nas con­
tas c cópias. N ão se lhe conheciam amigos de peito. Os filhos de Andrade
tratavam -no com cordialidade e distância, em parte devido ao seu carácter
recatado e sombrio. D istanciava-se dos colegas c agarrava-se a Andrade,
fazendo-se de moleque para todos os afazeres da administração de Sena. Ao
tem po da prim eira visita de Chiponda ele desem penhava as funções de es­
crivão auxiliar por a raça não perm itir ocupar lugar cimeiro, mas que no
quotidiano a escritura c outros trabalhos burocráticos ficavam à sua inteira
responsabilidade, dado que o escrivão de nomeação entregava-se com maior
dinamismo às demandas das suas terras que às escrituras públicas.
N a m anhã em que A ndrade os apresentou, ele estava absorto na pilha
de livros de assentam ento na casa civil da administração. Com uma caneta
de aparo entre o polegar e o indicador, o homem ia arrumando letras nas linhas
horizontais. A casa, com três divisões, era um edifício de tijolos queimados
coberto de telhas. De dimensões modestas, o edifício ficava a poucos passos das
largas e imponentes casas onde outrora viveram os Exmos Governadores da
A dm inistração c os G enerais dos Rios de Scnna, hoje desgastadas e
habitadas por oficiais e funcionários de baixa patente, por os superiores se
encontrarem em Tete, vila que assumira a responsabilidade administrativa do

58
Ungulani Ba Kci Khosa

vale do Zambeze por determinação do tenente-general Baltazar Pereira do Lago,


em 1767.
Entroncado como o pai, António apresentava uns olhos brilhantes e
fixos como dos corvos. E quando o olhar atento se fixava num a pessoa, fi-
cava-se com a sensação de o homem estar em outras paragens por os olhos
não apresentarem o brilho da curiosidade. O cabelo, encaracolado, era alisado
com brilhantina que o deixava colado ao couro. Ali sentado, com o ar
bsorto nas letras que ia desenhando, ninguém im aginaria que tivesse uma
altura superior à m édia dos habitantes da zona. Era parco em palavras mas
rico em obstinação, pois a paciência que tinha em preencher de gatafúnhos
aqueles calham aços sob o calor húm ido só se com pararia ao caracol em
andanças pelo monte, pensou Adaliano, anos m ais tarde, ao recordar-sc do
ar solícito e subserviente do irmão frente a Andrade. Mas naquela manhã,
ao vê-lo levantar-se com um arrastar apressado da cadeira, só lhe veio à
mente a imagem do pai. Eram parecidos no físico, mas diferentes na postura.
Sentiu no irmão uma quietude de minhoca em digestão, coisa que o pai não
tinha naqueles gestos largos e efusivos de caçador triunfante.
- A prova de que o teu pai está bem vivo, está neste homem, disse
Andrade virando-se para Adaliano que contemplava o irmão sem ares dc es­
panto. Os dois abraçaram -se em silêncio, sob o cheiro de goiaba que
Adaliano tanto adorou, e que fez questão dc carregar juntam ente, com as
m angas ainda m iúdas e verdes, para m ostrar aos do sertão que em zonas
baixas outras frutas desconhecidas cresciam com muito sabor.
A luz do sol há muito que havia afastado a neblina que cobria as manhãs
da vila de Sena quando os irm ãos se lim itaram ao sim ples «prazer em
conhecer», c ao sorriso da praxe. Reparou que cm António faltava-lhe um
canino que ocultava naquele seu sorriso incom pleto. O Zam beze, com o
sempre, corria, sereno, em direcção à costa.
- Vamos levantar o acampamento, disse Chiponda, cortando o silêncio
que pairava havia m inutos no precário abrigo.
- Vamos. Vamos ganhar tem po, retrucou Adaliano ainda sentado na
cama de paus. O olhar íixava-se nas cham as que se agarravam aos cavacos
am ontoados no centro do cone de paus que formavam a cubata.
- Será que ele vai conseguir, Chiponda?

59
CHO RIRO

- O quê?...
- Ele vai conseguir?
-A h !... N ão sei, Adaliano.
- M as tu é que levaste os curandeiros.
- Isso não quer dizer nada. Há outros que tentaram viver para além
da m orte, m as nada conseguiram . N ão é qualquer espírito que entra no
m undo dos espíritos m pondoro. Não basta ser rei. E preciso ter espírito de
rei.
- Ele conseguiu ter.
- É. Teve espírito de rei.
O olhar de Chiponda abriu-se à noite dos tempos. E as imagens foram
chegando, em catadupa. D ezenas, centenas e centenas de achicundas
entregavam-se a Nhabezi, fugindo à fome, à deportação e à razia dos reinos
de M onom otapa e dos Angunis. Estes, subindo e descendo pelo vale em
vagas sucessivas, durante anos, foram arrasando prazos na margem norte e
sul do rio Zambeze.
Os prazos, sistema que os portugueses criaram ao longo do século
dezasseis, dezassete e que consistiam no aforamento de terras por três vidas,
c por via uterina, iam desaparecendo, fruto de grandes convulsões que
abalaram o vale. Fangala, jovem chicunda, contara à chegada às terras de
N habezi que fugira da escravização e da fome que assolava o prazo onde
servia a A lberto Lacerda, branco exilado em Quelimane, dono dc terras de
mais de dois dias de m archa e com dez povoações de mais de três centenas
de colonos, entre machos e fêmeas, que se dedicavam ao am anho da terra,
produzindo milho, mexoeira, mandioca, feijão de todas as qualidades e fruta
a perder-se em pomares dc laranjas, limas, limões, bananas c outras que os
nomes, por serem com plicados, não se fixavam por tem po longo na mente,
mas que produziam fruta boa que a todos alim entava, trazendo alegria ao
prazo que os achicunda guarneciam e alim entavam de carne farta, caçada
nas incursões ao interior em busca de presas de elefantes. Mas a ganância
do filho de A lberto Lacerda, o mestiço Timóteo Lacerda, levou à ruína do
prazo. Tom ara-se hábito, ao longo do vale, os senhores de prazos deixarem
o marfim por acharem que os escravos eram mais lucrativos nas trocas comer­
ciais. A procura era tanta que os donos dos prazos viravam -se para os seus

60
Ungulani 8a Ka Khosa

escravos. Timóteo com eçou a arrasar as povoações e a perseguir os cafres


livres que viviam nos limites das terras do seu pai. A agricultura com eçou
a cair, a fruta tornou-se silvestre e insonsa pela quantidade de capim que ia
crescendo nos pomares que serviam de pasto às gazelas e macacos e coelhos.
Os homens desertavam a cada dia que passava. E nós, achicunda, guerreiros
por natureza, quebrám os o vínculo que nos unia a Alberto Lacerda, pai de
Timóteo.
Era norm a, dizia Fangala, desde os tempos dos nossos avós, quebrar
o m itete - ritual já descrito e que os prazeiros absorveram , tom ando-o
prática corrente na regulação da vida prazeira. Assim, rasgado ou quebrado
um pano ou objecto do novo proprietário, este deixava de ter o direito de
vender a pessoa. Ele e a fam ília ficavam, para todo o sempre, ligados ao
prazo. Para nós era uma questão de honra. Prestigiava-nos servir o nosso
amo. Cabia-nos a sua segurança, o sucesso na caça ao elefante e o controle
do território. Tínhamos armas. Éramos escravos livres. Mas Timóteo e outros
prazeiros do vale tornaram-sc gananciosos. A o obrigar-nos prender homens
que viviam nas povoações, vim os que tarde ou cedo o hom em virar-se-ia
para os próprios achicunda. A insegurança instalou-se no vale. As revoltas
fizeram -se sentir. As povoações foram abandonadas em massa. Dos cam ­
pos não vinham mais os cantos dos negros na lavoura. Os achicunda, re­
ceosos em juntarem -sc ao exército de escravos encam inhados para a costa,
com eçaram a desertar. A fome instalara-se. As doenças eram com uns nas
mulheres, homens e crianças. N ovas estradas se abriram para o interior.
M uitos resolveram voltar à desconhecida terra ancestral. Procuravam
raízes em zonas que desconheciam porque, na verdade, o passado e o pre­
sente dos achicunda esteve sem pre nos prazos. Eram escravos livres de um
senhor. N ão tinham outra pátria. Os que se entregavam aos reinos do inte­
rior eram acolhidos como estrangeiros c, seguindo as normas locais, tinham
que sujeitar-se a práticas que lhes eram estranhas. Os que se juntavam em
m ussitos - aldeias fortificadas, habitadas por escravos fugitivos, e
localizadas em zonas distantes das rotas m ercantis -, depressa se cansavam
da pacatez da vida que levavam . Q ueriam acção. Por isso que m uitos
se entregavam aos novos senhores que nasciam no vale.
- O teu pai, A daliano - disse Chiponda, em ergindo do longo

61
CHO RIRO

silêncio - criou um lar para muitos. Não temos outra terra que não a que o
N habezi nos deu. Estão lá as árvores que plantám os aos nossos antepassa­
dos. As nossas memórias encontram-se resguardadas em cada canto de terra
que ele marcou como sua c nossa. Ele c o símbolo da nossa existência. E
a raiz não pode morrer.
- U m a raiz bem branca.
- N unca sentim os isso. Q uando desposou a tua prim eira m ãe, a
Nfuca, não estranhou os espíritos locais. O culto à chuva dos ansengas foi
por nós absorvido. Não tínhamos terra ainda. Não tínhamos as nossas árvores,
os nossos panteões. Socorrem o-nos aos invocadores da chuva ansenga.
Depois im portám os as nossas próprias árvores. Das terras N iunguc vieram
os nossos swequiros. Com eçám os a invocar os nossos espíritos, os muzi-
m os da nossa gente. O que nos falta agora é esse grande espírito que é o
mpondoro. Se N habezi se transform ar em mpondoro, o domínio das terras,
dos frutos e dos homens estará para todo o sempre estabelecido entre nós.
Os nossos filhos e netos c bisnetos invocarão na felicidade e desgraça Nhabezi.
A terra será, de facto, nossa.
- E livres de verdade.
- E ... O im portante para nós, achicundas hom ens de diversas ori­
gens, é ter um espírito territorial que nos proteja.
- Assim espero, Chiponda.
- É . .. Ele virá.
- Chicuacha não partilha dessa fé.
- Ele tem o seu Deus.
- De que não ouvimos a voz.
- As palavras Dele estão nos livros. Nós temos a voz encarnada pelos
swequiros.
- Temos que esperar.
- E. Vamos esperar.
A noite já havia coberto a floresta, o vale e a planície que teriam ainda
de percorrer até chegar ao reino. Da fam iliar terra dos soli trocaram panos
c missangas, armas e pólvora, por m arfim e cera. O com ércio com esses e
outros povos do interior já não era lucrativo como outrora. Agora, por esses
e outros recantos, andavam outros com erciantes e vários caçadores com

62
Ungulani Ba K u Khosa

homens armados, à busca não só do marfim que escasseava no baixo Zam ­


beze e ao longo do vale do rio Chire, como de escravos. As emboscadas,
frequentes e assassinas, m inavam a benquerença de um com ércio que sc
queria justo. A ganância crescia de tom. Chiponda, mussambadazi já batido
nas trafegâncias pela sertania, andava, por precaução, com uma escolta re­
forçada de mais de cinquenta achicunda que guarneciam os mais de oitenta
carregadores. A pesar de se sentir seguro com os seus homens, ele olhava o
futuro com certo pessimismo. Os sinais de incerteza tom avam -se evidentes
a cada dia que passava. Os caçadores queriam escravos e acicatavam a dis­
córdia. A violência tomara-se a linguagem no trato dos caçadores e comer­
ciantes com os gentios - term o m uito ao gosto dos m issionários que
em pregavam em alternância com a gasta e pesada palavra «pagão».
Chiponda assistiria, na contida revolta da velhice, à em ergência de
grandes senhores de guerra como Kanycmba, o feroz, em língua local, de
nom e português José Rosário de Andrade. Diferente de muitos mestiços do
vale do Zam beze e territórios adjacentes, cuja paternidade se colava às
fam ílias portuguesas e goesas, fruto das relações com m ulheres escravas
ou forras c, em alguns casos, de casam entos negociados nas chcfaturas lo­
cais, Kanyemba nascera da estranha relação entre a goesa M aria e o chefe
tande Chowufumbo. Criado na família patem a, Kanycm ba não abdicou do
seu nom e português e dos laços com a família que residia em Tete.
Educado a seguir as pegadas do pai, guerreiro aclamado cm m em o­
ráveis contendas com os korekores e Tongas, reinos que se situavam à
margem sul do rio Zam beze, K anyem ba recusou, em idade adulta, renun­
ciar ao nom e português c suceder o pai. Com a investidura do irm ão
C hinhum bc com o rei Tande, K anyem ba e seus apoiantes optaram pelo
desterro. Homem de tez escura e olhos brilhantes, K anyem ba era visto, do
lado dos portugueses, com o um misto renegado, mas o estatuto de grande
caçador e com erciante de sucesso, levou a que m uitos portugueses o baju­
lassem . Entre com erciantes brancos era frequente ouvir-se que não era
K anyem ba que veneravam mas o seu marfim. Ele tem os melhores dentes
da região. Esses e outros motivos, m ais ligados à carência de elefantes, que
o ressentim ento dissim ulado que sentia no trato que lhe concediam ,
levaram -no a deslocar-se para zonas a norte dc Tete e fundar um estado

63
CHORIRO

que viria a dom inar a região circundante de Zumbo.


Nhabezi havia já morrido. A estar vivo não acreditaria nos estranhos
modos do mestiço m andar alimentar os abutres que circunvolavam , de tem ­
pos a tem pos, a sua aringa, com escravos que ordenava matar. A estes
hábitos acrescia o não respeito às regras locais de entrega às chefaturas do
prim eiro dente caído cm terra no abate de elefantes em regiões de outros
senhores. Os escravos tomaram-se mercadoria ambicionada por ele e outros
chefes de guerra em ergentes. Frederick Sclous, com erciante inglês que
durante o terceiro quartel do século dezanove andou em actividades ex­
ploradoras pelo alto Zam beze, testem unhou os actos dc K anyem ba,
deixando à posteridade detalhados episódios sobre o tratam ento que reser­
vava aos escravos nas surtidas que os seus hom ens faziam pelos reinos do
interior: “ Esqueci-m e de m encionar com o os escravos são am arrados à
noite, quando capturados em núm ero considerável. G rossos troncos de
vinte a trinta centímetros de diâm etro são cortados pelos escravos e nestes
troncos abrem-se buracos através dos quais seja possível passar à justa o pé
de um homem ou mulher; fazem -se então outros furos nos quais se cravam
cavilhas de madeira, que atravessam os buracos através dos quais os pés
foram introduzidos e que apenas deixam espaço para o tornozelo, tornando
impossível retirar-se o pé. Desta m aneira fixa-se com segurança cinco ou
seis escravos por tronco. D e dia cam inham com os paus term inados cm
forquilha à volta do pescoço.” M as Selous, a inferir pelos escritos que
ficaram , era um hom em de elevados sentim entos. Adem ais, a sua pátria
havia já assumido, por questões que não vem a propósito na narrativa em
curso, o papel de fiscalizador no abolido tráfico de escravos. Coube-lhe
dizer que: “ a prim eira coisa que feriu os m eus preconceitos de súbdito
inglês na m anhã seguinte foi a visão de dez mulheres batongas acabadas dc
capturar na última incursão, acorrentadas um as às outras. Cada um a delas
tinha um a argola de ferro à volta do pescoço e entre um as c outras havia
um a corrente de cerca de m etro e meio; algum as eram m ães com bebés
pequenos às costas, outras eram raparigas solteiras. Enquanto aqui estive
nunca as desam arraram , mas todas as manhãs eram levadas num a grande
canoa para a margem sul, para cavarem num campo de milho durante todo
o dia, em linha e acorrentadas um as às outras.”

64
Ungulani Ba Ka Khosa

Os reinos korekore, mazururu, batonga, na m argem sul, solis, ansen­


gas, laias, lenjes e bisas, na m argem norte, já não viviam em concórdia.
Q uando o nom e de K anyem ba se fazia ouvir, as pessoas, transidas de
terror, fugiam sem outro destino que as matas sem dono onde se refugiavam
com os seus parcos bens. H om ens arm ados saqueavam e incendiavam
celeiros, espalhando a desolação por aldeias e cam pos. O pavor que se
abraçava às populações estendeu-se até à morte desse homem de olhar m is­
terioso e frio. M as o que espantou os que sobreviveram à m orte de
Kanyemba foi o terem-se dado conta de que o espírito desse hom em que es­
palhou o terror e a anarquia pelas terras altas da Zam bézia, havia se trans­
formado em mpondoro. A estupefacção foi geral, pois m uitos esperavam
que o espírito de K anyem ba se transfonnasse num negozi- espírito mau, e
frequente em suseranos que em vida houvessem transform ado os seus
reinos num redil de barbárie. M as esqueceram -se que Kanyemba fora tão
somente rei e senhor dos achicunda, homens que o ser\'iram com veneração
e a quem deviam fidelidade, e não guardião dos simples serviçais e escravos
que foi subm etendo no alargamento das fronteiras das terras que as armas
e o terror foram anexando. Aos seus homens, esse exercito de achicunda,
os actos de Kanyemba eram o corolário natural das actividades a que se
obrigava executar para o fortalecim ento do estado que albergava mais de
dez m il hom ens arm ados, disciplinadam ente espalhados pelos quatro
cantos onde pontificavam as fortalezas de pedra, cuja actividade era o saque
e a escravização das com unidades que m uito se ressentiam do despovoa-
m ento forçado. M as este equívoco, esta crença de que o espírito de
Kanyemba se transform aria num negozi alicerçou-se a partir da m aneira
como a morte se anunciara.
Os que puderam assistir disseram que o aviso chegou com os raios
que o atingiram, em tarde serena e limpa, deixando-o inválido da cintura aos
pés. Para muitos era o sinal óbvio de quão tortuosos seriam os cam inhos do
além. Para outros, os guerreiros que o protegiam, era o aviso de que a morte
se aproxim ava e que nela entraria com a lucidez dos que se transm utam
para além da obscuridade das regiões além-tum ulares. Dias depois, e em
pungente agonia, Kanyem ba m orreria soltando grunhidos de porcos em
m atança colectiva. Aos próxim os, tais grunhidos eram o exorcism o final, a

65
C llO R IR O

limpeza da alma, a purificação do espírito. Durante meses e em permanente


estado de vigília dos curandeiros reais, as pessoas esperaram pelos sinais dc
transfiguração do monarca. M uitos duvidavam da natureza do espírito que
viria à terra, se o negozi, essa errante e m alvada alma, eternam ente conde­
nada ao desvario de lançar maus agoiros e de nunca desfrutar de sossego,
ou o m pondoro, esse protector espírito dc hom ens em espaços bem dem ar­
cados.
O toque adveio dc um rapaz de aparência norm al que com eçou a
tornar-se possesso. D e aspecto franzino e com cerca de doze anos, o m iúdo
despertou a atenção dos idosos por se expressar, quando possuído, como um
adulto e em línguas estranhas às da terra. Em presença dc curandeiros a
voz de José Rosário de A ndrade fez-se ouvir. K anyem ba sobreviveu às leis
naturais da morte. Não era o negozi dos infindáveis torm entos, a alm a
errante nas doridas noites africanas, o espírito do mal franqueando portas
inocentes. Não. A sua voz, a sua alm a veio assegurar a vida espiritual de
m ilhares e milhares de achicunda que o serviram com a abnegação de súb­
ditos electrizados com o carism a ditatorial com que m arcou a vida das
pessoas à m ontante do Zam beze ao longo do terceiro quartel do scculo
dezanove.
O moço, Alimação de nome, transformou-se, até a morte em provecta
idade, no abrigo terreno do espírito de K anyem ba. Depois, com o que a
provar a sua imortalidade, o espírito alojou-se no belo c sorridente corpo dc
Joaquina, mulher que viria a m orrer em tempos da independência da nação
de dim ensões im ensuráveis aos espíritos regionais m pondoro. M as o es­
pírito de Kanyemba guiaria ainda as suas gentes pelos cam inhos da pacifi­
cação e do chibalo e com eles percorreria o tem po da dolorosa construção
da barragem de Cabora Rassa - local onde centenas e centenas de descen­
dentes dos guerreiros das aringas pereceram sob as pedras que se despren­
diam das encostas escarpadas, em m anhãs e tardes de trabalho
desprotegido, apagando as ancestrais marcas dos canoeiros que viam um
novo mundo em ergindo na vasta bacia que os hom ens criaram à m ontante
da barreira de cimento que regulava as águas do Zam beze, dando em pre­
gos dc subsistência na artesanal pesca do mpende, peixe de elevado sabor,
conhecido quando seco e com ercializado por Chicoa, por ser zona de

66
Ungulani B a K a Khosa

origem, que estrangeiros elogiavam em fartas refeições turísticas.


Os tempos eram outros e as armas não eram mais as gugudas que não
deixaram memória, por a indústria de armas varrer do m apa da m em ória os
m essiris que nada relegaram aos netos e bisnetos feitos cam poneses ou
funcionários adm inistrativos do escalão inferior da discriminação. Os que
entoaram os cânticos da independência dum território nunca im aginado
pelos m pondoros, depressa recusaram , a favor de racionalidades unifi­
cadoras de um cam pesinato e proletariado uno e universal, os valores an­
cestrais e toda um a genealogia, pois o passado, n a nova cartilha de
aprendizagem , só assentava na luta libertária onde não prefiguravam os
achicundas que m arcaram a vida e o ritmo do vale do Zambeze.
Mas esses e outros cenários deram -se em tempos que a narrativa só
antecipa nos detalhes m ais genéricos e que Chiponda, m agoado com o pre­
sente cm turbulência, não imaginaria nos seus contornos evolutivos, porque
a m orte o tocaria em adiantada idade de ainda poder contar, com evidentes
lapsos de m em ória, os feitos de N habezi, seu único e grande amo. M as
antes da m orte o abraçar, assistiria, com pesada mágoa, a desestruturação
do seu reino pelo sacana do M ataquenha, dono de um exército dc mais de
cinco mil achicundas que am edontraria a região com armas mais m oder­
nas que as gogodelas de fabrico caseiro.

A noite entrara ao som dos batuques na aringa de Nhabezi. Os habitu­


ais chirlcios do findar do dia não se fizeram ouvir para lá das copas das ár­
vores, porque os tam bores abafaram as sonatas da natureza com os
ritm ados sons cm cadência de luto. O sol perdera-se no túm ulo da noite
sem a atenção das m ulheres na habitual ronda vespertina aos objectos de
uso. Fogueiras alteavam-se ao longo do terreiro onde centenas de homens, em
círculos de vinte a trinta pessoas, iam sorvendo o dóbué, bebida feita à base
de raízes, e o cucese, aguardante de frutas silvestres que m uito animava os
grupos onde não se cansavam de falar do finado N habezi, contando, entre
risadas contidas, histórias reais e im aginárias do suserano, tais como a que
vivenciaram ou ouviram dizer, nos tem pos em que ele participava nas
caçadas de elefantes quando, ao longo do vale do rio Luângua, um dos afluentes

67
CHO RIRO

do Zam beze, assistiu à descuidada morte dc três dos seus caçadores, ver­
gonhosam ente trespassados pelas pontiagudas estacas de paus enterradas
em armadilhas destinadas a elefantes; o passo em falso, inadmissível em
caçadores experim entados, deveu-se, numa prim eira leitura, ao susto que
tiveram dos urros do elefante à borda da armadilha, mas, segundo se veio
a saber, tal cena incaracterística teve a ver com o não cum prim ento do
mukho - proibição de ter relações sexuais com esposas ou concubinas em
noites que precediam a caça. Quem quebrasse o tabu veria a caça fugir-lhe
ou corria o risco de ser abatido pelo elefante. Sabiam que quem infringisse
o interdito seria perseguido pelo elefante, pois este, dotado de um faro
incom um , detectava os odores sexuais im pregnados na carne. E esses
olores, no dizer dos caçadores, embriagavam os elefantes que já pouco con­
trole tinham de si em épocas dc acasalamentos.
Sabendo, por outro lado, que o tem po de estada nas matas era, em
geral, superior a duas semanas, os achicundas estenderam a abstinência às
mulheres que em casa aguardavam pelos seus homens. E para que a fideli­
dade fosse efectiva os achicunda impuseram o likankho. Para tal, os homens
m atavam uma cobra venenosa donde extraiam o pâncreas que secavam e
m oíam . O pó, conservado longe de olhares intrusos, era m isturado, em
quantidades bem sopesadas, em véspera de partida à caça, na com ida da
mulher. Se ela ousasse m anter relações sexuais, o hom em m orreria, e o
m arido, em plena caça, sentiria dores e febres prenunciadoras do adultério.
Temendo o vitupério e o ostracism o, muitas suicidavam-se, e outras,
como Laika, mulher de um dos homens de Kambamula, o responsável pelos
caçadores, aqui designados necum balum es, preferiam internar-se nos pân­
tanos dos afluentes do Zam beze que suicidar-se e deixar o corpo insepulto,
entregue aos abutres como sinal de infâmia. Como m edida dissuasória, as
m ulheres adúlteras viam o cabelo rapado com o o das viúvas e, para as
distinguir das que a morte separara dos maridos, usavam argolas de baixa
categoria que tilintavam com relativa frequência no pescoço que vergava dc
vergonha. M uitos dos hom ens preferiam entregar as m ulheres adúlteras
com o escravas dom ésticas a outras com unidades que assisti-las ostra-
cizadas. Mas em geral poucos foram os casos de infedilidade publicamente
assistidos em vida de Nhabezi.

<55
Ungukmi Ba K a Kfiosa

R ecatadas, sabedoras dos seus destinos, ciosas dos seus segredos,


altivas nos ostensivos m acajú - tatuagens diferenciadoras que ornavam o
rosto, o ventre, e as coxas - , as m ulheres achicunda, diferente de muitas,
em reinos arm ados ou não, sabiam estar entre os seus, reivindicando
espaços a passos de caracol. Laika, terceira m ulher de Mpuluca, caçador es­
pecializado em estocadas certeiras aos elefantes, fora uma rebelde que
M puluca não teve forças de amestrar e integrar no sistema poligâmico achi­
cunda. Diziam que a altivez da m oça, baixa em estatura, roliça de corpo, e
com dentes do m axilar superior ligeiram ente adiantados no queixo
arredondado, dcvia-sc ao facto de ser filha de um soberano carecido de terras
e gente que a escravização dispersara e aculturara em outros espaços.
Diziam tam bém , e a contrastar com os encantos da mulher, que M puluca
poucos atractivos encontrara na m oça. Ao recusar subm eter o corpo às
tatuagens integradoras, M puluca não m ais se im portou com a miúda. Ela
nunca foi um a m ulher chicunda, dizia um , para outro, entre dois sorvos
prolongados do cucese, dizer que m ulher chicunda não é infiel ao seu
homem, guerreiro por natureza, caçador sem igual nas florestas e savanas
de caça grossa e miúda; ela teve vergonha de estar entre outras mulheres,
dizia outro. Por isso se internou como uma louca pelos pântanos adentro.
Já não podia pertencer ao m undo dos achicundas, acrescentou outro dos
convivas. O adultério não foi feito para nós. É, c verdade. Quem ousa de­
safiar o likankho? Só os incautos e os não iniciados respondiam , quase em
uníssono, os jovens do grupo.
- É. M as não esqueçam que o likankho o nasceu do adultério. Em
tempos idos as m ulheres escravas que nos eram entregues, davam-sc muito
à devassidão, a bargantaria. Nas caçadas que nos tom avam ausentes por
sem anas, as m ulheres transform avam as nossas aringas em antros de
vergonha, de salacidade.
As palavras, pausadas, vinham de uma voz autorizada, um hom em
adulto de barba branca, um velho sage, localmente conhecido por tessan-
culo - expressão reservada aos anciãos de sexo m asculino que se outor­
gavam do direito de evocar com a dignidade m erecida os feitos militares e
cinegéticos dos achicunda. Os tessanculos eram a m em ória, o saber acu­
m ulado de gerações.

69
CIIO RIRO

- É verdade, diziam, anuindo a cabeça, os que se encontravam em


redor do tessanculo.
- M ais verdade, continuou o velho sage, era quando os não inicia­
dos, jovens que ainda não haviam afilado os dentes, essa m arca dos achi­
cundas, se davam conta dos perigos do adultério. Um verdadeiro achicunda
não trai o com panheiro que nas m atas caça os elefantes, enfrentando o
traiçoeiro leopardo, a venenosa cobra, o búfalo tresm alhado. Não. O
likankho, guerreiros, é a defesa da família, da nossa integridade. N ão se es­
conde a ninguém a existência do likankho... É sem pre o prim eiro aviso
que um estrangeiro recebe de n ó s ... É proibido dorm ir com m ulher de um
achicunda ... E quem transgride...
- Morre.
- E a lei dos guerreiros.
- E verdade.
- Vamos beber.
Retomaram as pequenas conversas, os diálogos sem im portância, o
diz e não diz, deixando o cucese correr de caneca em caneca, e os olhos,
vermelhos, inturgescerem de álcool e fumo que evolava das fogueiras e se
im iscuía pelas retinas lacrimejantes. Os mais velhos, como que a pedir aos
mais ladinos para baixarem a voz, deixavam-se preguiçosam ente levar pelo
sono, encostando descuidadamente a cabeça em troncos ou estirando-se de­
sajeitadam ente em esteiras, sob o céu de estrelas arrum adas cm conste­
lações de que pouco se preocupavam em decifrar no em aranhado de pontos
celestiais, por acharem que a noite não era do seu domínio,, m as dos
espíritos que tom avam vida em variegadas form as, vagando c ditando
regras cm total liberdade e livres das im pertinências dos vivos que se refu­
giavam no sono e em estranhos sonhos onde executavam tarefas tão dís­
pares que acordavam, para o espanto de muitos, alquebrados e adoentados.
Um pouco ao longe, fora dos batuques meio adormecidos, estava a
casa grande dc N habezi. A distância, e com pequenas cham as flutuando
em velas de cera de abelhas que afloravam dos castiçais de madeira, a casa
senhorial assem elhava-se a um galeão fundeado em águas perdidas e
paradas num a floresta onde descaiam, em traçados desiguais pela proa e
costados, lianas e folhas gigantes adonde emergiam insectos que cirandavam

70
Ungulani Ba Kci Khosa

sobre as cham as titubeantes, incom odando homens e mulheres em cochi­


chos de luto. Os sussurros que se ouviam pelas divisões da casa asseme-
lhavam -se ao restolhar dos roedores sobre as folhas, secas e verdes, ramos
e gravetos que atapetavam o chão da floresta e aos ruidosos acasalamentos
de ratos cujas fêm eas não desgrudavam os órgãos genitais m asculinos
depois do orgasmo, contentando-se em deixar o macho cm apuros por minutos
que se prolongavam por quinze a vinte de duração, ficando cia e ele gru­
dados e de cabeças viradas em rodopios crescentes, ao som de folhas que
se chocavam , dc ram os que rolavam e de grilos cm estrilos que os ratos
interpretavam com o de louvor, m as que eram de sedução às fêm eas,
enquanto borboletas nocturnas sobrevoavam em círculos cada vez mais
concêntricos em volta do casal dc ratos tem porariam ente iluminados pelos
vaga-lum es que enchiam a noite.
D ebruçada sobre o parapeito da larga varanda da casa grande, N fuca
deu-se ao luxo dc, por m om entos, ficar a sós na noite prestável aos de­
vaneios dc viúva prim eira de N habezi, o Gregódio, como ela, na intim i­
dade dos convívios, cham ava o homem da sua vida. Dc olhos atirados aos
pirilam pos e sem se dar conta do tem po e dos tambores e das borboletas,
foi desfiando a memória, passando, ao de leve, pelos prim eiros tem pos de
casada, m om entos em que Gregódio, preocupado com o alargamento e or­
ganização das terras a seu mando, mais tempo ficava fora de casa, deixando
a N fuca os cuidados a ter com as gravidezes que, em partos sucessivos,
deram Lefasso, o prim ogénito c herdeiro natural do trono; Luíza, a mimada
e protegida menina de olhos reluzentes cujo nome, Nfuca, anos depois viria
a saber, em conversas inadvertidam ente escutadas entre C hiponda e
N habezi, viera da m ulher com que Gregódio se am ancebara cm terras de
Sena quando m ilitar na fortaleza de S. Marçal; o Sejunga, o viciado na caça
e outras aventuras do sertão; e o Ignácio, moço pouco dado a travessuras e
sonhador de lugares onde os brancos m ais conviviam entre si, e não do
mundo de caçadas e rituais dc tudo e nada. Daí N habezi, ante a insistência
do miúdo, o ter despachado para Tete, a fim de aprender os rudim entos da
escrita e da fala em língua portuguesa. O A daliano, meio-irm ão, que tanto
se apegava ao estudo da língua portuguesa com Chicuacha, não se molestou
com o facto de o pai ter optado em m andar o menino Ignácio à vila de Tete,

71
CHORJRO

pois Nhabezi, sabendo que quebrara as regras que sempre defendera de os


filhos crescerem e correrem pelas matas, aprendendo nos nedare - espaço
nas aringas reservado à aprendizagem dos m oços com os tessanculos, - c
nos goweros - locais onde os ritos de iniciação à idade adulta se faziam, -
o modo de ser achicunda, apressou-se a dizer, para afastar mal entendidos
entre os filhos, que Ignácio, para a sua infelicidade, levara a sua costela de
branco agarrado à arm a do desprezo e da escravização. N ão se prcocupcm
com ele. O Ignácio c um a peça desgarrada do nosso conjunto. E ninguém
m ais se im portunou com o moço que ainda cedo, oito a dez anos, tom ou o
rumo da vila de Tete. Esqueceram -no. Ou fizeram -se por esquecer. M as
N fuca teve-o sempre na mente, muito por ser o último filho e o achar, pelos
desajeitados modos dem onstrados na infância da aprendizagem das técni­
cas de caça, indefeso, fraco, coisa que não era de espírito, pois ao chegar a
Tete, as am bições alargaram-se de tal m odo que, feitas as aprendizagens
rudim entares, tratou de rum ar para Q uelim anc, onde anos m ais tarde, o pai
já morto e o reino desagregado, conseguiu, pelas habilidades dem onstradas
no trato com as línguas c os m odos suaves de se im iscuir em terrenos
alheios, aliar-se a Capello e Ivens, grandes exploradores portugueses que de
costa a costa, ligaram Angola a M oçam bique por terra, em venturas que
ficaram grafadas em livro, e com eles em barcar para Portugal onde, sem ser
pessoalmente recebido, esteve a passos do monarca do império, acompanhando
Capello c Ivens, que em Setembro do ano da graça de 1885, e em louvor ao
abnegado trabalho feito em terras do Além-mar, foram triunfalm ente rece­
bidos pelo rei D. Luís, cham ado pela G raça de Deus, Rei de Portugal e dos
A lgarves, dAquém e dA lém -m ar cm África, Senhor da G uiné e da C on­
quista, Navegação e Comércio da Ethiópia, Arábia, Pérsia e índia, monarca
que Ignácio Gregódio adulava, chegando a extravasar a paixão por ele na
m em orização do pom poso e vasto nom e de Luís Filipe M aria Fernando
Pedro de Alcântara António Miguel Rafael Gabriel Gonzaga Xavier Fran­
cisco de Assis João Augusto Júlio Valfãndo de Bragança, que dedicava, nos
versos de literatura dc cordel, trauteados cm fados de em balar nos bairros
de Lisboa onde, em com panhia de m estiços e negros, feitos sim ples
operários de obras, ou senhores de ofícios ligados à cordoaria, tecelagem,
tinturaria, tanoaria ou a charutaria, bebericava vinho em tabernas com

72
Ungulani Ba K a Khosa

batentes, contando histórias não vividas de um a África que os brancos tanto


se deleitavam em ouvir, no findar dos turnos das obras de construção do
porto de Lisboa. Sempre calm o e conciliador, e assum idam ente solteiro
para não dizer viúvo, Ignácio viveu os últimos anos da monarquia com a in­
génua alegria de muitos dos frequentadores das baiucas da baixa de Lisboa.
Com a m orte do D. Luís, afeiçou-se ao filho, o rei D. Carlos, por
m uitos achado im popular, dadas as extravagantes ideias do m onarca de,
entre outras coisas, querer electrificar as ruas de Lisboa, depois de ter ilu­
minado o palácio das Ncccssidades. Achava-se espiritualm ente ligado ao
m onarca por este, tal como ele, scr um afícionado pela ornitologia. Dizia,
aos próxim os, que o m ar e os pássaros eram a sua paixão. De D. Luís, tam ­
bém conhecido como o rei m arinheiro, ligou-se-lhe a paixão pelo mar. Do
filho, o am or às aves, afeições que sempre o acom panharam , apesar de o
mar o ter tocado em idade adulta. A costela monárquica, o apego ao detalhes
sobre a vida da corte, o gosto de ouvir histórias da m onarquia, eram tão
fortes que sofreu um abalo a 1 de Fevereiro de 1908 quando, em pleno Te­
rreiro do Paço, assistiu ao baleam ento do rei. No meio da confusão, entre
gritos e choros, ficou tão atordoado que só se recom pôs quando, ao anoite­
cer, soube que Alfredo Costa e M anuel Buiça, autores do atentado, haviam
sido m ortos na hora. A alma apazigou-se. A justiça fora reposta. A m onar­
quia estava de pé. D. M anuel II, o estudioso, o que gostava das palavras e
dos livros, ascendia ao trono. E a sua vida, entre os biscates nas obras da
baixa lisboeta, foi seguindo o seu curso normal no bairro de A lfama, zona
de residência, fam osa em tem pos pela Fofa, dança lasciva que o espião
francês M. D um ouriez, considerou desm esuradam ente nacional ao de-
screvê-la, no seu État présent du rovaume de Portugal em 1 • année MD-
CCLXVI, como: «A dança nacional é cham ada fofa; c dançada a dois, tal
com o o fandango, ao som da viola; os m ovim entos são extrem am ente
indecentes, pois imitam de perto o momento do orgasmo; o dançarino geral­
m ente acrescenta à gesticulação meneios obscenos e palavras lúbricas, a
que o público acha graça». M as a Alfama, na entrada do século vinte, já
não era tanto a zona da balbúrdia, dos barulhos, e das traficâncias, como os
cronistas do século anterior a caracterizavam . E G regódio, com ido pela
idade e pela boém ia das A lfam as e M ourarias, torm ou-se mais caseiro. De

73
CHO RIRO

Capcllo e Ivens, seus antigos patrões, nenhum contacto ou notícia, desde


que o em pregaram nas obras da construção do porto de Lisboa, ante a re­
cusa dc ir trabalhar para Leixões, onde porto igual se construía. Não ficou
mágoa ou ressentimento, antes agradecimento por o terem transportado das
águas do Índico ao Atlântico, esse m ar sempre revolto, cortado por chuvas
miúdas e persistentes, que entravam Tejo adentro. A feiçoara-se à vida lis­
boeta, às noites ruidosas, aos foliões, às prostitutas e às festas aos Santos.
Sentia-se feliz por ser português e estar a passos das portas da coroa, coisa
que os seus, lá para as Africas, jam ais imaginariam. Que dêem a coroa preta
ao branco africano que ele, m estiço, m uito se contentava cm ver o rei real,
e não o das m atas, passeando em coches debruados em ouro pelo Terreiro
do Paço, dizia para si quando as im agens do pai branco, rei de terras
africanas, lhe vinham à mente por entre os efeitos nostálgicos que o vinho
c o fado provocavam. E sentiu-se feliz e reconfortado, na velhice da vida,
quando a morte em prestou-lhe a graça de aparecer horas antes de o Palá­
cio das N ecessidades, residência do rei D. M anuel II, ser bom bardeado
pelos homens da República. Era 5 de Outubro de 1910. A República nascia.
Os achicunda entravam na memória.
M as nesses tem pos N fuca não pôde p rever na noite das rem em o­
rações e m uito m enos saber que Ignácio, na hora da m orte do pai, se
encontrava em Q uelim ane, vila da qual se encantara, apesar do sufoco que
o calor e a humidade traziam ao corpo, pela beleza das m ulheres, o sorriso
presente nos hom ens, a vivacidade dos m achileiros de passos rápidos e o
encanto dos luanes, propriedades onde pontificavam as senhoras, local­
mente chamadas Donas, festivamente engalanadas em largas saias de folhos
de cores brancas e garridas e corpetes onde despontavam, nervosos, os seios
túrgidos c calorentos, acompanhadas por dezenas de m ucam as que enchiam
a casa com risos e gargalhadas, confeccionando com prazer e alegria para
os inevitáveis convidados que se faziam chegar às dezenas ao luane, para
deglutirem os pratos com picantes sabores da índia, ou os cam arões cozi­
dos em molho dc coco, para não falar das cascas dc caranguejo recheadas
de ovos e outras iguarias que Q uelim ane oferecia aos que nela habitavam
ou em trânsito se encontravam , o que não era o caso de Ignácio que tratou
dc se fixar e procurar o m ar de que tanto falavam e que o m agnetizou na

74
Ungulani Ba K a Khosa

vastidão do seu rumorejar, na loucura das suas ondas e nos pescados que à
superfície chegavam para o contento dos pescadores, transportados, não
em canoas ou alm adias do Zam beze distante, m as em barcos com velas
desfraldando ao sabor dos ventos acalorados ou calm os, dependendo da
hora e da época.
D epressa se adaptou à vila de Q uelim ane, mercê dos dotes em de­
senho na nobre função de topógrafo que o levou a conhecer pessoas, lu­
gares c a dem arcar com precisão terrenos conflituantes. A m ãe não
reconheceria o filho, assum ido cidadão português dc terceira categoria. E
esse desconhecim ento fê-la impetrar, com m aior fervor, aos ancestrais es­
píritos a protecção do filho contra as maleitas dos brancos. Coisa que não
fez à Luiza, filha que fugira com um dos homens de D avid Livingstone, e
se instalara no baixo Chire, tom ando-se uma das dam as de grande prestí­
gio na corte do famoso estado dos makololos. Por ela, quando as imagens
afloravam, abanava fervorosamente a cabeça, em sinal de esconjuro. Coisa
que ora fazia, despertando a atenção de Salinda, que passava pela varanda
com um com penetrado ar de viúva recente e preocupada.
-A p e n s a r, N fuca, perguntou Salinda, segunda consorte de N habezi,
accrcando-se dela.
- A noite está prestável.
- Não há nuvens.
- Nem vento.
- O tem po está m uito bom.
- .. .para pensar.
- N o nosso homem.
- N o dia de amanhã, Salinda...
- Tens razão. O teu filho Lefasso terá estas terras às costas.
- É o que me preocupa.
- Porquê?
- O batuque não foi bem esticado.
- O fogo que arde para as crianças, aos adultos já não serve.
- N ada se pode mudar.
- O que foi gerado não faz vomitar.
- É ... Q uem deu à luz não sc admira.

75
CHO RIRO

- Nem que nos dispam em público.


- E isso ... Nem que nos dispam cm público.
E calaram -se, deixando a noite entrar pela pele adentro através da
brisa que tocava as folhas e as faúlhas cm estalidos curtos e sccos que aflo­
ravam das fogueiras ainda em vida na larga praça. Baixa e anafada, de sorriso
fácil, sempre pronta às travessuras da corte, que não eram poucas, aten­
dendo à solidão a que as mulheres do suserano estavam votadas face aos es­
paçosos tempos de intimidade com o rei, Salinda era mãe de três meninas.
Albertina, a mais velha, jovem de hábitos recatados, parca em discursos, en­
tregue, em acordos m atrim oniais, a um rei das terras Bisa, região m ais a
norte dos ansengas c da qual N habezi gozava de privilegiadas relações nas
trocas com erciais, entregando, sem perigos, as gogodas, armas de fabrico
local, muito requeridas para a caça de elefantes cujas presas, de peso su­
perior à média, eram as m ais desejadas. Lucrécia, m oça sem discurso
próprio, cortejada por M ataquenha, alcunha de José de A raújo Lobo,
mestiço de ascendência goesa, hom em que viria a destacar-se como senhor
de um forte estado, a norte de Zum bo, destruturando, em consequência, o
reino pós-N habezi, subjugando populações ansengas e outras povoações
dos reinos lim ítrofes e distantes, com um exército de a chicunda em
crescendo, sem pre exigindo m arfim e hom ens e m ulheres tom ados es­
cravos aos reis carecidos de mão soberana em ordenar a trafegância de mer­
cadoria algum a, porque tudo que se trocasse ou vendesse teria de ter a
anuência de M atequenha que em conivência com Kanyemba, governante de
terras na margem sul do rio Zam beze, seu sogro cm outro casam ento dc
conveniência, se tom ou num dos donos e senhores da alta Zam bézia à en­
trada do últim o quartel do scculo dezanove.
Ao tem po do nam oro com Lucrécia, José de Araújo Lobo, homem
de estatura média, olhos entrados no rosto afilado num corpo magro e frágil,
de ascendência goesa, m uito habituado a com idas picantes e à malagueta
que sem pre o acom panhava no condim ento dos pratos secos do interior,
diferentes dos que em Tete c Quelimane se habituara a servir, apresentava-sc
como um caçador respeitador das regras básicas da actividade cinegética,
hom em dc ouvido e fala pausada e hum ilde, daí a estima granjeada junto a
alguns reinos que se mostraram, depois da m orte de Nhabezi, estupefactos

76
Ungulani Ba K a Khosa

com o intenso coriscar de olhos de felino que tom aram conta de José de
Araújo Lobo, agora chamado Mataquenha, por suas atitudes assemelharem-se
a esse m inúsculo e introm etido anim al, cientificam ente conhecido por
«tunga penetrans», dotado de capacidades de se alojar em carne hum ana e,
sem dó de qualquer espécie, corroer o tecido humano com toda a ferocidade
de um parasita hem atófago feito dono e senhor dum território conquistado
na falsidade, no embuste, na perfídia e na violência que se tomou característica
dos métodos de conquista de espaços quando a m áscara da im postura se
tom ou evidente para m uitos dos reinos A nsengas, Am bos, laias, e outros
que com frequência se submetiam às forças de Matakenya, deixando, como
relatavam os anciãos, que «em cada aldeia houvesse um chicunda repre­
sentante de M atakenya responsável pela cobrança dos im postos da popu­
lação local em benefício dele. Estes chicundas controlavam o com ércio de
m arfim, escravos e cobre em nom e de M atakenya. A dquiriam estes artigos
pela força junto dos habitantes locais, ameaçando m atar a tiro ou escravizar
qualquer aldeão e respectiva fam ília que vendesse m ercadorias destas sem
autorização do representante local de M atakenya». Este m étodos nada
suaves para com as populações locais ficaram grafados nos apontamentos
de um expedicionário inglês de nome Sharpe que, em passagem pelas terras
dc M ataquenha, cscrcveu ser « ... verosímil que estejam a ir para a caça aos
elefantes, mas isso quer indubitavelm ente dizer que, tal com o em todas as
incursões de M atakenya, vão fazer guerra de extermínio a todas as tribos
mais fracas que encontrarem pela frente, roubar, matar, etc., e afigura-se- me,
pela grande quantidade de provisões que trazem , segundo se diz, devem
fazer tenção de sc instalar perm anentem ente no luapula onde, diz-se, abun­
dam os elefantes». A alta Zam bézia m udava dc paisagem e de canto. M as
Lucrécia pouco se preocupará com as actividades de M ataquenha. Bastou-
-Ihe aquele olhar profundo e negro que reluzia quando molestado c os ca­
belos negros c corridos, bem lustrados com óleo, para se em bevecer com o
príncipe pouco afeito aos Nhabezi, muito em particular a Lefasso, que tanto
menosprezará, por o achar inútil na governação das terras e na perm anente
hesitação em se entregar ao tráfico de escravos, m ercadoria em grande
procura nos mercados paralelos que se montavam na costa indica, longe
das naus fiscalizadoras que sulcavam as águas dos oceanos, com destino às

77
CHO RIRO

plantações de cana das ilhas M aurícias, Reunião, Seichelles e outras, ávi­


das de mão de obra que m uita fortuna trazia e que Lefasso, analfabeto, não
podia entender, apegado que estava aos costum es da terra e à benquerença
nas relações. O teu irmão só serve para afundar o reino que o teu pai ergueu,
dizia à m ulher M ataquenha, em momentos de furia, quando os ansengas, ali­
ados naturais dos Nhabezi, fugiam do compulsivo recrutamento construindo,
no interior profundo, m ussitos, fortificações de defesa aos escravocratas,
m uito em voga em terras do interior desde os prim órdios da escravatura.
Do ventre dc Salinda saiu ainda Felismina, a mais nova, m oça dada
a conversas e perguntas, bonita de corpo e alma, que em adulta se radicaria
em Tete, casando-se com um dos filhos de Ignácio de Jesus Xavier, popu­
larmente conhecido por Calizamimba dor de barriga, em tradução livre, por
infundir respeito e medo que dava voltas aos intestinos das populações do
seu estado, localizado um pouco a norte de Tete, tendo Chicoa como um dos
pontos mais distantes e sem pre em terras à margem sul do rio Zam beze. A
proxim idade às autoridades portuguesas contribuiu para as perm anentes
conivcncias no trato com os gentios como na época se dizia, em tom eu­
femístico, aos pretos selvagens. Dos portugueses receberia, em época áurea
de cum plicidade, o grau m ilitar de coronel de que m uito se orgulhava
quando em cerimónias se m ostrava garboso no vistoso uniform e com as
dragonas de coronel.
O m arido de Felismina, por sinal António X avier de nome, não iria
pertencer à fauna de homens que pelo interior foram erguendo estados que
ora se entrosavam com o m odo de estar das gentes locais, convivendo e
harmonizando-se em hábitos, ora digladiando-se, infundindo terror e medo
em populações que iam se desestruturando, apagando marcas seculares de
convívio com a terra, a água, o vento e o fogo. Desse António Xavier e outros
filhos do Calizamimba, sairia a fornalha dos Xavier, apelido de que a provín­
cia de Tete é pródiga em filhos e netos e toda uma prole de gente miscigenada,
em tom claro e escuro, que percorreu o século vinte, assimilando-se e desassimi-
lando-se, ao gosto dos tempos e das conveniências, agarrando-se depois do
fracasso das loas a uma sociedade horizontal, para o restauro da dignidade,
aos cacos daquilo que em tempos fora o espelho e orgulho das populações do
vale do Zambeze e sertão vizinho: o ser chicunda.

78
Ungulani B a K a Khosa

As duas continuavam caladas e pouco propensas à fala vazia, às


frases sem sentido, expendidas ao acaso para aliviar tristezas, am ansar lá­
grimas, ou provocar sorrisos de uma consternada m iserabilidade em ane­
dotas de sentido nenhum. N fuca, serena e furtiva nos gestos e no andar,
olhava de soslaio para Salinda; sabia-a nervosa cm ocasiões de luto, por
não conseguir apagar o sorriso dos lábios, afugentar o brilho dc vida nos
olhos, aquietar os gestos largos e abertos e assum ir o olhar desmaiado, a
fala arrastada, os gestos com edidos, sóbrios, atentos. Nunca fora feita para
o luto, pensava Nfuca. Como segunda m ulher de N habezi, N fuca dava-lhe
os espaços de prim azia, os lugares de relevo, pela sua espontaneidade na
fala, no andar e no sorriso sem pre perene, a atestar um a juventude sem
ocaso, características de que Nhabezi, adestrado à vida de quartéis e à frieza
da caça, muito gostava de se rodear cm momentos de descompressão. Ria-se
com ela, aproximava-se às filhas, sempre desejosas de estar perto do pai que
pouco tem po prestava ao pequeno exército de raparigas, ficando com os
rapazes, sem pre atentos às danças e outros rituais ligados à caça. E esses
m om entos, roubados ao suserano com as habilidades encantatórias de
Salinda, agradavam Nfuca, pouco dada a extroversões. Daí que quando as
outras m ulheres da corte, sem pre propensas aos m exericos, levantavam
pequenas nuvens de palavras negras, dizendo, em voz exaltada, que mulher
de tais atitudes, extravagante na fala e nos gestos, não se prestava aos rigores
da disciplina da corte, onde as m ulheres, colocadas na som bra das grandes
decisões, não deviam vir à luz dos acontecim entos e m uito menos tom ar a
dianteira, em palavras, ao rei, pois a este cabe, por gestos e olhares, deter­
m inar o m om ento de elas se expressarem. Por isso, Nfuca, refrea os ânimos
de Salinda, porque m ulher de tais visibilidades já é por dem ais sabido não
ser prestável aos cenários da corte, onde a probidade se manifesta nos silên­
cios que os ritos de iniciação nos infundiram a ter para com os hom ens,
N fuca, ao que esta, nos seu habitual m odo pausado de se expressar,
retorquia, dizendo que Salinda nascera em pleno dia de sol, os seus largos
gestos dão-se com a luz, como as nossas vozes sussurradas se dão com a
noite; não é a vida que lhe impôs o sorriso das águas em manhãs de sol, mas
o ventre da bondade da mãe prendada pelos espíritos da razão e do bom
senso. M as o sorriso transborda das águas e invade terras sazonadas, Nfuca.

79
CHORTRO

Que ela se m antenha no seu leito e dê as cam balhotas que quiser, mas que
deixe o rei cm paz dc espírito... Vocês não sc m elindram com o sorriso de
Salinda, mas com a incapacidade de se colocarem ao lado do N habezi, e
com ele se rirem das coisas banais da vida, tom arem -se com uns, humanas,
e gozarem o sol com o vosso hom em , e não im pacientarem -se com a
dem ora aos prazeres da noite!...
- Entreguem -se às vossas vidas de mexericos longe da Salinda!... E
contentem -se com as parcas noites que o N habezi vos dispensa. Vá,
andem !..., sentenciava N fuca, visivelm ente nervosa.
E elas, M assita, de olhos atrevidos, Sajinga, dc ancas fartas, aci­
catadas por M alidza, a mais jovem das m ulheres, sempre m etida em quere­
las de tudo e nada, ávida em ocupar lugares cimeiros, lá onde a atenção de
Nhabezi é m ais cuidada, recuavam , pouco convencidas das falas de Nfuca,
m ulher que respeitavam mais por ser a prim eira do rei e responsável por
elas no dia a dia da corte, do que pelos seus dotes dissuasórios.
Longe delas e rem etida ao seu mundo, estava Nzinga, terceira esposa
de Gregódio e pouco m etida nos assuntos da corte com outras consortes.
Passava grande parte do seu tempo com a escrava Suna. Era frequente vê-las
passeando pelos mais de dois quilóm etros de extensão da aringa real,
dando-sc ao respeito dos súbditos que as viam sem as penas da jactância de
algumas m ulheres de N habezi, pródigas em vitupérios às niapungo, anciãs
que se dedicavam à iniciação de jovens, por estas não prestarem a devida
educação às raparigas pouco afeitas às genuflexões de tudo e nada, sempre
acom panhadas pelas escravas que tam bém se davam ao deslustre de
afrontarem as anciãs, para além do tratam ento vexatório que dispensavam
às simples mulheres com que se cruzavam, no dia a dia da aringa real, local
de residência de mais dc três mil pessoas, divididas em seus múltiplos afazeres,
c querendo sempre distância das coisas da corte, por acharem um mundo
melindroso às suas vidas de súbditos já privilegiados por viverem na aringa
real e executarem tarefas de m aiores privilégios e não sujeitos a adm oes­
tações ou trabalhos forçados a que os acutemos, os chamados escravos agrí­
colas, estavam sujeitos, a trabalhar, m anhã e tarde, em terras altas,
cham adas m efala, cultivando m exoeira, m apira e milho, ou em zonas ad­
jacentes ao rio, conhecidas por dimbas, onde afloravam os vegetais, batata-doce,

80
Ungulani B a K a Khosa

m ilho e arroz, em quantidades invejáveis, por serem zonas irrigadas pelo rio
Aruângua que também se mostrava generoso no abundante fornecimento de
peixe à aringa real, afastando o ccnário de fom e que muitos dos achicunda
conheceram em recuados tempos de serviços a senhores de outras regiões do
vale do Zam beze e que agora, com a abundância das vitualhas prendadas
pela terra e água em dem asia, agradeciam a N habezi por este os tratar com
a respeitabilidade hum ana que não viam em muitos brancos e mestiços, não
desejando, portanto, que as suas mulheres, em quezílias sem im portância,
fossem mal vistas junto à corte, daí a sujeitarem -se aos esgares e insultos
das mulheres escravas de algumas das consortes de Nhabezi, coisa que não
viam em Suna, m ulher de m uito respeito para com as esposas dos achi­
cunda c outras, solteiras e jovens, ligadas às niapungas que as adestravam
para a sexualidade e outras urgências de m ulheres adultas.
A dm iravam Suna por ser das poucas, senão a única, a conseguir
arrancar um sorriso, uma gargalhada funda, de João Alfai, homem de que
se desconhecia relação com mulher, facto sujeito a mexericos das escravas
da cortc e não só, m as que Suna, pelo seu silêncio, não deixava avivar, m o­
rrendo o boato, ou circunscrevendo-se à pequena corte dc intriguistas,
invejosas em ver os seios de Suna ainda hirtos, provocadores, não sujeitos
aos estragos dos afagos nocturnos ou à am am entação, causa prim eira do
am olecim ento dos seios e não as carícias, que essas não existiam, pois os
prelúdios sexuais não eram prática nos achicunda, ou em outros povos do
sertão, lim itando-se as m ulheres, nos frequentes encontros am orosos, a
entregar a vulva e a m enear as coxas, em ritmos cadenciados ou convul­
sivos, dependendo dos estrebuchos do companheiro.
- Ele virá?, perguntou Salinda, tentando sair do silêncio que a
perturbava.
- E o que todos nós esperam os, respondeu Nfuca.
- E o que será de nós?
- Nós o quê?
- A nossa vida.
- Ele vai dizer.
- O quê?
- N ã o sei.

81
CUORTRO

Calaram-se. Salinda, perturbada com a sua condição dc viúva, olhava


para a noite com os olhos fixos cm nada. N fuca poisou o queixo na palm a
da mão direita. Os vaga-lumes cirandavam , com a sua interm intente luz,
pelos espaços em redor da casa grande, enquanto os grilos machos se ani­
mavam, no constante roçar das asas, com os trilos, atraindo as fêmeas aos
pequenos pátios à entrada das tocas. N fuca apercebia-se dos tem ores de
Salinda que, de pergunta em pergunta, se fora dando conta da possibilidade
real de Nhabezi vir a transformar-se em espírito de leão e vigiá-la para todo
o sempre, facto que a consternava, pois não se dava conta da dim ensão do
ciúme que um espírito im ortal poderia ter; daí o retom ar de perguntas que
N fuca respondia evasivam ente e ao sabor dos mom entos, como as do dia
em que ela, meio perturbada com a em inência da morte do mambo, foi crua
e directa:
- Como é que ele nos vai possuir?
- Não é altura de pensares nisso, Salinda. O Gregódio está doente. E
as coisas da noite tratam -se em outras ocasiões.
- M as é im portante saber, Nfuca. Serei possuída por um animal, ou
ele virá cm sonhos, possuindo-m e com a brisa da m adrugada?
- Falam os depois, dizia N fuca, por não saber, em pormenor, como
se daria a transm utação do seu Gregódio, dado se tratar de hábitos que os
ansengas não cultuavam , por seguirem com a religiosidade necessária o
culto das espíritas que em sociedades m atrilineares invocavam outros
poderes que não os da territoriedade e do controlo do corpo e do espírito,
próprio de sociedades patrilineares que os achicunda im puseram às
com unidades locais, habituadas desde os ancestrais tem pos aos cultos à
chuva e à fertilidade.
Os tem ores de Salinda foram acinzentando o sorriso e amolecendo os
gestos, muitos interpretando tais m udanças de hum or ao estado de saúde de
N habezi e não as interrogações que se iam avolum ando na m ente pouco
dada a cogitações duma am plitude tão tortuosa que a foram agastando até
ao dia da morte do monarca.
Com a morte do mambo, os temores passaram a ser visíveis no olhar
inquieto, suspeitando sempre de sinais que pudessem dar o toque da pre­
sença de Gregódio que ela im aginava surgindo em form a dc vento ou em

82
Ungulani Ba K a Khosa

chamas invisíveis que ardiam, vulva adentro, contorcendo-a de dor e prazer,


ou pelo pénis de um desconhecido indicado pelo curandeiro a satisfazer
os desejos de Nhabezi. E quando triste ou encium ado, nos desconhecidos
territórios da espiritualidade, o curandeiro indicaria um leproso que a acari­
ciaria com as feridas insaráveis, para m ostrar o quão perpétuo e incon-
tom ável era o poder do mambo.
Se em vida se sentia livre, pensava, com a morte de Nhabezi os seus
passos estariam sob o eterno olhar escrutinador do homem que em vida
pouco se preocupou com a conduta das mulheres, por as achar fiéis no rigoroso,
controlo m oral a que estavam sujeitas dentro da aringa. Q uem tem a
eternidade do dia e da noite nas mãos, jam ais dará felicidade aos mortais,
m urm urava para si, ao sentir-se vigiada nos passos a dar pela aringa, nas
conversas a ter com os homens ou nos sonhos a serem controlados. Serei
sempre uma pecadora, dizia para consigo.
- Eu não vou aguentar, Nfuca, disse Salinda, voltando à realidade da
noite.
- O que é que não vais aguentar?
- Ter o Gregódio em tudo o que é canto.
- Estás com medo?
- Pior que o medo por um leão, ou um leopardo. N ão o vemos, Nfuca.
M as cie entra no nosso corpo. Guia-nos. A tem oriza-nos. E a voz, o que é
pior, não se faz ouvir. Mas sentim o-lo presente.
- E um consolo sentires o teu homem presente no sonho e na reali­
dade.
- Sem poderes falar?...
- Tens o curandeiro, ou a pessoa que irá incarnar o espírito dele. Vai
responder a tudo. É o que disse o curandeiro.
- H averá regras a cumprir.
- Sempre tivemos.
- E para nós, m ulheres dele, o corpo estará em prim eiro lugar.
- Pertence ao Gregódio.
- E as mais novas?... O que será da vida delas?...
- Ele dirá.
- Estás m uito tranquila...

83
CHORIRO

- Fui-lhe entregue, Salinda.


- Gostaria de ter a tua paz.
- E só quereres.
- ... Uma pessoa não pode estar tranquila com um espírito zanzando
cm nosso red o r... A escolher, Nfuca, preferiria o N habezi vivo que morto.
- Nunca tiveste campo de escolha, Salinda.
- Pelo m enos falava com ele.
- Para cumprir.
- Mas falava.
- Foi o teu consolo.
- E... A morte tirou-m e a palavra.
- Agora vais aprender a dialogar com o silêncio.
- É o reinado dos espíritos.
- E o tem po dos espíritos nos tocarem no corpo.
- M as os nossos nunca foram assim.
- Vê os súbditos... São milhares de pessoas a esperarem pela voz de
Nhabeze.
- E se vier um negozi?
- A mão dc N habeze foi sem pre pacífica.
- E sc acontecer?
- Teremos uma viuvez tormentosa.
- Livra-me!...
Uma cscrava acercou-se de Nfuca, segredando-lhe algo ao ouvido.
Salinda olhava incrédula para o céu, com as m ãos entrelaçadas sobre a
cabeça coberta por um lenço negro. A noite adensava-sc. Os batuques
troavam. Espaçados e ténues, os cânticos ainda se faziam ouvir na noite a caminho
lento c desapiedado à madrugada que emergia com o desaparecimento de
estrelas com luzes mortiças. Em volta das fogueiras dorm itavam alguns, e
outros, mais afeiçoados ao álcool, consum iam o cucese, tartam udeando
palavras ininteligíveis em frases desconexas. Os animais, acalentados pelo
luto humano, rem etiam -se ao silêncio, acidentalm ente quebrado pelo rugir
distante de um leão desatento, ou o bram ir de um leopardo insurgente na
noite de tréguas dos predadores. As zebras e os kudus, libertos dos sentidos
perscrutadores, tomavam a liberdade incomum de se acercarem, noite adentro,

84
Ungulani Ba Kci Khosa

das águas onde os hipopótam os, afastados das margens, sacudiam os pesa­
dos lom bos a cam inho da m ata do dejejum. O rio A ruângua brilhava na
noite. Os crocodilos, em respeito ao espírito que se libertava do corpo, va­
gavam à superfície das águas sem o apetite egoísta de séculos.
- O N yazim bire aguarda-nos, disse N fuca, olhando para Salinda
debruçada sobre a varanda de madeira da casa grande.
- Vamos.
As viúvas dirigiram -se à palhota de N yazim bire, local onde recebe­
riam m ezinhas a m isturar nas águas do banho purificador. A ntes de o sol
raiar teriam que tom ar o banho de ervas e envergarem os panos do luto.
Dispostas em redor do N yazim bire, as viúvas contiveram sorrisos
ao verem outras consortes com as cabeças totalm ente rapadas. Pareciam
escravas recém aprisionadas a cam inho do cativeiro. Numas sobressaiam
socalcos, pequenos vales, noutras, cordilheiras alcandorando-sc em planí­
cies ponteadas de pequenas elevações a condizerem com term iteiras aban­
donadas. Envergonhadas da nudez do couro cabeludo, as viúvas olhavam,
de soslaio, para as outras, para se sentirem fortificadas na solidão da viu­
vez. Pela natureza da poligam ia, as consortes de Nhabezi raram ente se en­
contravam e entre cias form avam laços de solidariedade em função de
interesses e sim patias. Daí que a Salinda se sentasse ao lado de N fuca, à
direita de Nyazimbire, seguida de Malidza, M assita e Sanjinga, estas muito
juntas e defronte ao Nyazim bire. A esquerda deste e ligeiram ente afastada
das dem ais estava N zinga, m ãe de A daliano, filho único do seu ventre,
jovem dado a aprendizagens de costum es. Silenciosas, e trocando olhares
de expectativa, iam-se respeitando no silêncio da viuvez comum, respondendo,
quando necessário, com o menear da cabeça e um ocasional sim ou não aos
falares de Nyazimbire. A dizer algo só a Nfuca cabia discursar em nome delas.
O curandeiro ia abanando, em movimentos circunvolares com o pulso
direito, a cauda de hipopótamo, enquanto espalhava pós e líquidos sobre os
corpos das viúvas sentadas nas peles de gazelas e cabritos e leopardos e
outros animais que cobriam o chão de adobe da casa de cerim ónias do ofi­
ciante N yazim bire. Tirando N fuca, nenhum a das outras cinco m ulheres
havia entrado na casa das rezas dc Nyazimbire, curandeiro de confiança de
Nhabezi e que afiançara ao rei, cm sucessivas consultas ao ossículos, da

85
CHO RIRO

verticalidade do curandeiro Chatula, hom em proveniente das terras m ais a


sul do rio Zam beze, vidente experim entado em macomas, rem édios desti­
nados às realezas com fim de os transm utar, após a morte, em espíritos de
leão, ou de m pondoro, como os povos tauras, korekores e outros desig­
navam à essas grandes almas territoriais que os ansengas desconheciam ,
por os seus oficiantes, cham ados mubalas, lim itarem os trabalhos à invo­
cação dos antepassados, ao culto da chuva e outros rituais de dim ensão
restrita que N habezi absorveu e alargou, impondo, nos últim os tem pos da
sua existência, os rituais achicunda que m uito se aproxim avam dos cultos
das sociedades patrilineares a sul do rio Zambeze.

Os homens de Nkambam ula, chefe dos caçadores, atrás designados


necum balum es, haviam já entrado nas terras mais a norte do território de
Nhabezi quando tiveram a notícia, pela voz de um chicunda, da sua morte.
- As cerimónias estão a decorrer na capital, disse o achicunda.
A um a pergunta sobre o paradeiro do chuanga, responsável do
mambo pelos actos adm inistrativos junto às aldeias ao longo do território
de N habezi, o achicunda lim itou-se a dizer que o hom em havia partido
m anhã cedo em direcção à aringa principal.
- Vamos descansar esta tarde e parte da noite. Sairemos de m adru­
gada, dissem N kam bam ula, dirigindo-se aos hom ens mais próxim os. A
ordem foi retransm itida aos cerca de cem hom ens da caravana. Desses,
quarenta eram caçadores armados de gogodas e espingardas de pederneira.
Os restantes, carregadores responsáveis pelas presas de elefante, carne seca
e a cera que foram colhendo ou trocando em terras do interior.
Em regra, as expedições de N kam bam ula levavam um a dois meses,
repartidas em três a quatro cam panhas por ano. Por isso a notícia da morte
apanhou-os de surpresa, pois quando saíram da aringa grande, N habezi não
se havia ainda acamado. Circulava com algumas dificuldades pela aringa,
c isso não era motivo de alarme, atendendo à idade, pois o corpo, apesar de
talhado com as agruras da vida, ainda mantinha algumas chamas dos tempos
da caça grossa e dos em bates com algumas hordas dos nguni N ham passene

86
Ungulani B a K a Khosa

em razias que faziam às terras sob sua protecção. Sentia-se algum a fres­
cura no hom em . Os cabelos brancos davam um brilho hum ano ao rosto
marcado pela dureza das noites sem tecto e dos dias de febres exaltadas,
m olificadas pelas ervas dos niangas, nom e que os curandeiros tinham.
N kam bam ula recordou-se de o ver, nos dias que antecederam à partida, re­
unido com os seus lugar tenentes, ouvindo c ditando ordens a serem exe­
cutadas; via-o circulando pela aringa, prestando atenção às árvores, ao latir
dos cães c às preocupações dos homens. Naqueles dias alegres, Nhabezi deu-
-se ao luxo de visitar, em pleno dia, as casas das mulheres, demorando-se em
conversas que provocaram risos prolongados pela tarde e noite adentro.
Acompanhado por Ngulube, responsável pela sua segurança, Gregódio passou
m anhãs e tardes entre as bigornas, vendo os m essiris tratando o ferro e
fabricando a pólvora. Agradava-lhe estar na m ata cerrada, verdadeira ilha
dentro da aringa, vendo as gogodas tom ando forma. As oficinas de armas
eram o seu orgulho.
- E difícil acreditar que o hom em que vim os circulando pela aringa
tenha m orrido, disse N kam bam ula, virando-se para Sejunga, filho de
Gregódio e terceira sorte de Nfuca.
- Ele já se queixava dos ossos.
- É um a doença que o vinha atacando há anos.
- Terá morrido disso?
- Não morreu, Sejunga. Libertou-se dos ossos que o incomodavam há
anos. A gora virá de uma outra forma. O seu espírito irá habitar na carne de
uma pessoa por ele escolhida.
- Seremos nós, os filhos?
- N inguém da família.
- É pesado alguém transportar duas almas.
- Mas c uma honra que cabe a poucos.
- Se o espírito for bom.
-N h a b e z i não m orreu contrafeito com a vida. E ninguém lhe lançou
pragas.
- G ostava de ouvir Chicuacha.
- Não é pessoa para se ouvir, Sejunga. Ele ainda tem alma branca. É
diferente do teu pai.

87
CHO RIRO

-N u n c a gostaste dele.
- Para te ser sincero, não.
E cra verdade. H á anos que se evitavam . E sem razões aparentes.
Nkambamula, pura e simplesmente, nunca se deu com Chicuacha. Achava-o
um intrometido na corte, um vigarista como muitos que vira em tempos do
falecido Bento Roiz Perdigão. Tivera, na época, oportunidade de ver bran­
cos com sotainas açoitando, sem motivos plausíveis, homens e mulheres nas
propriedades que iam erguendo pelo vale do rio Chire e outras zonas cir­
cundantes ao rio Zam beze. Recordava-se do padre D om enico, hom em de
barba farta, entroncado em músculos e grosso na fala semelhante aos grunhi­
dos de porco, cujos hábitos, em dias santos, era obrigar os escravos a
assistir à missa aprisionados por cordas e forquilhas; dizia ser a única forma
de os indígenas se libertarem da vida dissoluta e inerente ao Senhor. Era dc
se ver, aos domingos, cerca de duzentos pretos, em terreiro circundante à
igreja, ouvindo m issa em língua que os pretos e brancos como Roiz não
entendiam , pois Dom enico m inistrava as liturgias num latim que soava a
cana-de-açúcar a rachar-se. Fora isso e o apregoado celibatarismo que só os
céus podiam entender, os pretos fingiam acreditar que o número crescente
de patrícios, designação que se dava aos mestiços, era fruto da devoção das
m ulheres ao Deus que resolveu aclarar, em gerações abençoadas, a tez
negra do pecado. Desses e outros acontecim entos que vivenciou, levaram
N kam bam ula a apartar-se dos actos genuflexivos que muitos prestavam a
esses servidores de Deus que rasgavam o interior africano com as suas bati­
nas e cruzes e bíblias. C hicuacha, filho dessas seitas dc corpos enver­
gonhados, não o convencia.
- Ele tem-se mostrado um bom homem, disse Sejunga, cortando o silêncio.
- Q uando a cobra resolve m udar dc pele finge-se morta.
- Chicuacha já é da casa.
-V a i-te fiando...
- São vossas zan g as...
- E possível, m as o coração dos homens de batina bate de maneira
diferente ao nosso. E entra ardilosam ente nas nossas m entes. Vê o que
fizeram ao Alfai.
- Boa pessoa.

88
Ungulani Ba K a Khosa

- M as sem a nossa alma. O veneno dos padres está no seu sangue.


Vais me dizer que o Alfai não dorme com mulheres?
- Nunca ouvi nada.
- Nós estam os aqui. As nossas m ulheres estão lá, sozinhas, durante
meses. E o fulano a assistir?..
- O likankho não funciona?
- H á curandeiros que podem anular a força do likankho. Alfai é uma
pessoa viajada.
- M as não é homem de frequentar curandeiros para esses tratamentos.
- E o que te disse?
- Que o grande curandeiro deve estar dentro de nós. E o que sempre
diz.
- Já viste?!...
- O quê?...
- Isso ... N unca confiei esse homem. E por isso que só fala convosco,
os jovens.
/

- E uma pessoa fechada, Khambamula.


- A víbora não cam inha à vista de pessoas.
- N ão ... Riu-se. Dos filhos de Gregódio era o que tinha os cabelos
mais corridos e a tez m ais clara. Dele diziam ser o muzungo que o sangue
negro não conseguira manchar. Com o o pai, gostava da caça, das aventuras
do interior, do urro de trovão do elefante em ergindo, elegante e vaidoso
por entre as moitas da savana, com a trom ba balançando à direita c à es­
querda e os dentes brancos e tesos na curva ascendente, deixando no solo
trem ente arbustos e ram os m arcando novas rotas nos trilhos que abria,
acautelando-se das armadilhas humanas. M as o que mais o fascinava, na
savana aberta e nos largos espaços por entre o verde im enso, era o trote in­
vulgar, cheio de energia e força, da manada de búfalos em direcção ao rio.
Agradava-lhe ouvir aquele som cadenciado que fazia trem er a terra e afu­
gentava os macacos que acorriam às árvores onde as aves se levantavam
assustadas, dos ram os trémulos. A coroar a chegada triunfal dos búfalos às
margens do rio, elevava-se aos ares o bram ido tem eroso desses ruminantes
com chifres fundidos pelas bases, form ando uma casca poderosa e
intransponível quando resolviam m arrar contra um a árvore ou um ser

89
CHO RIRO

humano que se reduzia a um mero insecto na força do impacto. Já o hipopó­


tamo, com a cabeça grande e truncada num focinho arredondado e nada
atraente, não lhe provocava simpatia. Aquele grunhir desconfiado e patético
não lhe dava a elegância do nom e que lhe fora atribuído: o cavalo do rio.
Desde miúdo que o achava cobarde nesses estranhos hábitos nocturnos de
comer. Perguntava-se por que razão, um animal de peso invulgar precisava
refúgiar-se na noite para se alimentar. Ao que lhe disseram que o sol não era
am igo dos hipopótam os, daí a pele tisnar-se de vermelho quando o sol o
atacava. N unca sim patizou com esse bicho, apesar de gostar da sua carne
suculenta.
- O teu pai, continuou Khambamula, confiou-m e a m issão de estar
sempre contigo. M as tu, em m om entos livres, corres para o Alfai como um
menino carcnte.
- Isso só foi nos tempos da curiosidade infantil.
- E stou a brincar. E n o rm al... Vocês, filhos de N habezi, sem pre
tiveram o gosto pela aventura. O Ignácio, m ovido pela aventura do
desconhecido, quis viver com os brancos. O A daliano sem pre com o
Chiponda pelo mato adentro. Tu comigo. A tua irmã Luiza, nova ainda, a
fugir com um homem. Aventuras.
- E altura de se contar a história d ela...
- É um a história longa, disse K ham bam ula, puxando o jovem
Sejunga pelo braço, a cam inho de uma casota cilíndrica, m aticada até m eia
altura onde, em espaço aberto, sobressaíam quatro troncos, de dim ensão
média, sustentando um tecto de palha. Uma porta a m etade dava acesso a
um a mesa de ramos e troncos e bancos implantados no chão de adobe. Em
todas as aringas havia centenas desses lugares de lazer e reflexão a que
davam o nom e de messaça, o m esm o que lugar de abrigo. A ju n ta r-se a
K ham bam ula e Sejunga, acercou-se M puluka com ar de espanto e dor. O
sol descia, ao longe, por entre as copas das árvores cm tom verde amarelo
num céu rasgado, a espaços, por um a nuvem de pássaros chirreando
melopeias que lem bravam o m ar em tarde marulhenta.
- Já devem saber, disse Mpuluka.
- Informaram-nos.
- A desordem entrou, sentenciou Mpuluka.

90
Ungulani Ba K a Khosa

- Que Lefasso tenha gordura para untar a ferida, retrucou Khambamula.


- A brasa dá cinza, KJiambamula.
- N ã o há nariz sem ranho...
- O corpo está quente, introm eteu-se Sejunga, encostando as costas
à parede dc m eia altura. Os braços repousavam sobre as bordas de adobe.
Pássaros poisavam e descolavam na messaça.
- Tem razão, Sejunga, disse Mpuluka. Uma abóbora dada não tem
molho.
- A vida não acaba.
- Aprendi a caçar com ele.
- Eras o filhinho dele, adiantou N kambam ula.
Com dez, onze anos, e coberto nas partes íntimas por um pano feito
à base de cascas dc árvore a que chamam de mecuende, M puluka foi en­
contrado por Nhabezi e seus caçadores, famélico e à deriva, órfão de pai e
mãe, em terras que desconhecia. Sabia o seu nome, Mpuluka, e dizia ser
originário de terras a norte dos sualis; feito escravo, ele e a fam ília que
restara, pai e mãe, que acabaram m orrendo de fome na fúga encetada das
caravanas de escravos dos ajauas, viu-se, passados meses, perdido em terras
de estranhas línguas. Nhabezi se afeiçou ao moço, por muitos considerado
acaiende, indivíduo sem base linhageira. Alto e seco de carnes, M puluka
chamava atenção pelos pés enormes e as mãos compridas e finas, diferentes
das dos dem ais, que as tinham curtas e grossas. O nariz não se estatelava,
como era norma, no rosto, abrindo fossas nasais em curvaturas semelhantes
às entradas de cavernas paleolíticas, m as erguia-se, estreito e fino, num
rosto comprido. As feições fugiam do bantu comum, inscrevendo-se, pelo
cabelo pouco riçado, nas tribos de terras mais a norte do continente, lá onde
sc dizia existir lagos brilhando em terras altas, e rios que não secavam
quando cruzavam terras agrestes e areias quentes e infinitas, percorridas
com ligeireza por animais de bolsas estranhas nos lombos.
M puluka m ostrou, ainda cedo, capacidades de caçador hábil ao se es­
pecializar, como ninguém, nas estocadas infalíveis aos elefantes. Era a sua
especialidade. A prendera com Nkam bam ula. Deitado sobre um ram o que
atravessava o trilho dos elefantes, M puluka esperava. Dizia-se que homens
amestrados em tais tipos de caça eram tratados com nedimas, mezinhas que

91
CHO RIRO

os tom avam indetectáveis à visão e ao faro apuradíssim o dos paquidermes.


Mas M puluka tinha a virtude de se contundir, pela elasticidade do corpo,
com um a jibóia em plena digestão. Valendo-se dos com pridos braços, ele
esperava pelo m om ento exacto em que o elefante passava p o r baixo do
ramo, e com uma precisão m ilim étrica espetava, entre as espáduas do ani­
mal, a pesada lança de lâmina larga que penetrava nas carnes moles, ferindo
de morte o elefante. Poucos dom inavam essa técnica.
N a realidade, m uitos dos caçadores não eram dados em altura, daí a
concentrarem -se na costum eira táctica de os cães, drogados com a lupata,
triaga destinada a enfurecer os caninos que não cessavam de latir, enfure­
cendo os elefantes que esqueciam , m om entaneam ente, a presença dos
homens. E estes, destros, abeiravam -se das patas traseiras do elefante e,
com um golpe potente e certeiro dos acatemo, os conhecidos machados de
caça, seccionavam os tendões do elefante. O anim al im obilizava-se em
breves minutos, tombando, depois, como um fardo inútil. A í os caçadores,
em gritos e cânticos, atiravam -se ao elefante, m atando-o e espotejando-o
em secções que já conheciam. Em geral com eçavam pela trom ba que cor­
tavam com tal precisão que o sangue jorrava, ainda quente, em golfadas
rápidas e vulcânicas.
Todos tiravam lições destas caçadas, aprendendo os altos, descom-
plexando-se os de m eã altura, e rindo-se os de m édia m edida, mas
irmanando-se todos nas oportunidades que a natureza oferecia a cada ser na
m edida das suas capacidades. O gigante integrou-se facilm ente na com u­
nidade já cm si sincrética, pois todos vinham de etnias díspares e com
hábitos particulares que se foram fundindo na alma única de ser achicunda.
Por ordem expressa de N habezi, M puluka não se sujeitou, como os
demais, às tatuagens no rosto e ao afilam ento dos dentes, por o m onarca
achar que a pele do moço, de tanto estar colada aos ossos, não se prestaria
às incisões. D eixem -no com a altura e corpo de girafa. Ele servirá de guia
na planura da savana, sentenciou o m onarca. K ham bam ula, então desta­
cado necum balum e, foi-lhe guiando nos cuidados a ter na caça aos ele­
fantes. Deu-lhe os unguentos e am uletos de que se servia, em especial o
mácua, pom ada que se esfregava pelo corpo para dar m aior resistência
física ao organism o e o nechola, rem édio que os defendia da fúria dos

92
Ungulani Ba Ka Khosa

elefantes. Este era o de preferência de Khambam ula, por o recordar Bento


Roiz, seu prim eiro amo, hom em despreocupado e averso à utilização de
cães na caça e ao em prego de nechola, por achar que os elefantes, quando
enfurecidos, davam à caça a dignidade que ela m erecia. Caiu no buraco
que cavou, explicou K ham bam ula a M puluka, recordando os m om entos
dramáticos da morte de Roiz ao lhe entregar a nechola. Não há tatuagens
sem sangue, avançou Khambamula. Por isso, moço, deves ter a pele sem­
pre esticada. Ao que o gigante agradeceu, dizendo saber que num fruto
maduro não faltam bichos.
- N a verdade, disse M puluka, afastando o olhar do horizonte aver­
melhado, N habezi foi pai para todos. Somos o que somos graças a ele.
- É verdade, retrucou Kham bam ula. Mas tu, em particular, foste o
filho protegido m ais pela tua altura de girafa envergonhada que por seres
estrangeiro de terras desconhecidas.
- E s tá s a exagerar, retrucou, esboçando um sorriso.
- N ão vês a palhota do homem, Sejunga?...
- É da altura de dois hom ens com três gazelas à cabeça.
-V o c ê s abusam ...
- Que abuso!.. Sabes o que dizem as m ulheres, Sejunga?
-N ão .
- Que as parles servem de almofada.
- Estam os de luto, disse M puluka, fugindo da conversa.
-N h a b e z i nunca quis que chorássemos.
- A creditava que a alma entraria em outros corpos.
- A questão não é acreditar, Sejunga. É certeza. N habezi deixou o
corpo branco.
- M uitos não acreditam nisso, avançou M puluka.
- E a prim eira vez que os achicundas terão um M pondoro seu. É nor­
mal que duvidem. N habezi reuniu-nos e deu espaços aos nossos muzimos.
A gora quer que o espírito de M pondoro se sobreponha aos m uzim os fa­
miliares. Teremos um a protecção maior.
- O homem não morrerá, murmurou Sejunga com o olhar a distanciar-se
do grupo.

93
CHO RIRO

- Enquanto existirm os como com unidade, viverá sempre!


- I s s o cansa...
- O que cansa é o corpo, Sejunga.
- O corpo branco já estava cansado, adiantou M puluka.
- M as lembrar-se-ão do branco de carnes em sangue.
- Do branco preto, Sejunga. Ele era diferente de Chicuacha.
- Chicuacha não faz mal à minhoca, disse M puluka.
- Não disse o contrário. N unca nos fez mal. E a prova foi ele tirar as
roupas compridas do Deus envergonhado.
- O homem queria casar, adiantou M puluka.
- As m ulheres sempre entraram nas roupas compridas.
- Tens razã o ... A o falares dele vem -m e à cabeça o outro b ran co ...
- Quem?., perguntou Khambamula.
- O Levistone
- Sorte tua em pronunciares esse nom e na hora do luto.
Era o David Livingstone, m issionário e explorador inglês, que em
viagem exploratória pelo rio Zam beze, partindo das terras de Angola, onde
entrara pela costa meridional, acompanhado por homens da tribo Makololo,
deslumbrou-se ao avistar, a cerca de ccm metros de altura, as águas do Zam-
beze, em mais de mil e setecentos m etros de largura, desprendendo-sc em
nuvens turbulentas dc água em pó alcandorando-se a mais de quinhentos
metros do verde frondoso de terras que viriam a estar sob custódia da rainha
Vitória, nome com que baptizara as conhecidas cataratas do Zambeze, poster­
gando o mosi oa tunya, o fumo que troveja, em tradução livre, designação por
que eram localmente conhecidas as cataratas do Zambeze.
Ao entrar nas terras dc Nhabezi, a caminho da jusante e ainda encantado
com as cataratas desse magnífico c pujante rio, contaria, maravilhado, a dádiva
de Deus a que fora dado assistir a N habezi e próxim os que pouco se es­
pantaram com tais achados, despertando somente a atenção de Mpuluka,
homem já da confiança não só do rei, mas de muitos dos m aiores do reino
que o acarinhavam pelo seu m odo peculiar de estar e ser, reflectido no
espontâneo riso brotando m ais dos olhos que dos lábios, que o explorador
quis contratar, por o achar, em fisionom ia, estranho às terras m eridionais
que bem conhecia e mais prestável às terras por conhecer mais a norte.

94
Ungitlani Ba Ka Khosa

Avcrso ao tráfico de escravos, David Livingstone passaria uma breve


tem porada nas terras dc N habezi, anotando, com o vinha fazendo, desde
que partira da África do Sul, atravessando o deserto de Kalahari e desbra­
vando a costa ocidental até Luanda, não como os turistas que os tempos
m odernos criaram em quantidades de se perder a conta na superficialidade
dos conhecim entos que lhes chegam cm folhetos descartáveis, mas de
hom em preocupado com o destino de outras culturas, os hábitos das gentes
locais.
Mas a passagem de David Livingstone pelas terras de N habezi não
deixaria saudades na corte local. E tal facto se deveu a Luíza, segunda sorte
dc Nfuca, m oça de treze a catorze anos de idade, que resolveu apaixonar-
-se por M aluka, um dos hom ens de confiança de Livingstone, jovem
m akololo de vinte e dois anos, ajeitado nas roupas ocidentais - longos
calções de caqui, botins com polainas, capacete de cor condizente c camisa
casaco com bolsos enorm es e muito dado a galanterias.
Com seios am eaçando precocem ente, as tiras de pano em volta do
peito, e as ancas em rodopios voluptuosos e inapropriados à im púbere
idade, Luíza m ostrava-se, em fase de iniciação, m uito encorpada para a
idade, e um pesadelo para a m ãe inconsolada em afastar da filha as per­
guntas concupiscentes sobre o sexo oposto. De pequenos galanteios surgi­
dos ao acaso do olhar, M aluka, no seu jeito meio maroto e entre risos a cair
num a ingenuidade falsa, foi-se aproxim ando e apaixonando pela filha de
Nhabezi, m iúda que o pai se negava negociar em casam entos futuros com
senhores de terras, reis de etnias vastas, ou sim ples com erciantes em
trafegâncias pelo sertão, preferindo, para os casam entos de conviniência,
reservar Albertina, filha de Salinda, ou Lucrécia que brincava às m cninices
dos sete, oito anos.
Primeira sorte em matéria de filhas, Luíza aparecia aos olhos de Nhabezi
como a jóia de ostentação, o diamante que lhe fazia lembrar as patrícias alti­
vas e bonacheironas no trato com os brancos e canarins, mas arrogantes e
ríspidas no contacto com os indígenas de que se apartavam, denotando o
desprezo com a catinga ressumando dos corpos negros e suados nas longas
jornas no pequeno e buliçoso cais da vila de S. Marçal dc Sena.
David Livingstone, que por essas épocas se mostrava pouco preocupado

95
CHO RIRO

com a actividade m issionária, mas interessado em conhecer os povos, ad­


m irou a organização dc António Gregódio, branco diferente de outros por­
tugueses que fora conhecendo em outras latitudes, por ser humano e avesso
à traficância de homens e m ulheres e crianças e dado, como poucos, à as­
sim ilação dos hábitos indígenas. C onhecedor de mais de doze dialectos
africanos e denotando pouca instrução para os itens avaliadores do expe­
dicionário inglês e m édico de formação, este m uito se contentou em par­
tilhar algumas semanas com o português, enquanto adm irava as estranhas
feições de M puluka, cogitando serem de zonas que teria de explorar,
quando à região dos grandes lagos entrasse na agenda de viagens. A o olhar
com atenção desusada a pele m orena de M puluka, vinham -lhe à m ente, dc
form a insistente, as palavras do profeta Isaías no Oráculo contra a Etiópia:
. .Correi, mensageiros velozes, a um povo esbelto e bronzeado, a um povo
sem pre tem ido, a uma nação poderosa c longíqua, cuja terra sulcam os
canais..” M puluka estava longe dessas ancestralidades e dos dizeres da
bíblia desconhecida.
Passadas duas semanas e ante a recusa dc M puluka em o acompanhar,
invocando lealdade ao hom em que o tirou da indigência de um sem abrigo
e família, Livingstone despediu-se de N habezi em noite m uito entrada de
despedidas e danças c comes e bebes, no vasto terreiro da aringa real, longe
de im aginar que na caravana de mais dc duzentas pessoas haveria de em ­
barcar um a im púbere e virgem m oça, perdidam ente apaixonada pelo
M aluka que se esmerou, a despeito de conselhos contrários, em a ocultar do
m issionário e explorador britânico durante o percurso à jusante do rio. O
m issionário, m ais com penetrado com as anotações sobre os costum es dos
indígenas que os amores arrebatados dos seus homens, só viria a saber do
rapto em vésperas do em barque dc regresso à Grã-Bretanha.
Consta que o despautério à hospitalidade de Nhabezi m arcou-o de tal
modo que se coibiu de anotar aspectos da sua estada em terras do m onarca
branco nos livros sobre Viagens M issionárias e Pesquisas na Á frica do
Sul, e a N arrativa de um a Expedição ao Zam beze e seus Tributos.
Em segunda expedição pela parte central e m eridional dc Á frica,
Livingstone circularia mais por terras a oriente do Zambeze, encantando-se
com o lago N iassa e terras circundantes, não se atrevendo a descer pelo

96
Ungulani B a K a Khosa

Zambeze, apesar de ter visitado e explorado com maior cuidado as cataratas


de Vitória, sua jóia em terras africanas.
Não se sabe se o desinteressse pelo médio e baixo Zambeze deveu-se
ao constrangimento dc encarar N habezi e seus próximos, mas o que é fiável
na história do explorador inglês foi o crescente e obsessivo interesse pela
nascente do rio Nilo, tara obsidiante que levou o exército rom ano da época
do im perador N ero a tentar encontrar a nascente do rio, guiado pelo postu­
lado do m atem ático e astrónom o grego Eratóstenes que em século segundo
A.C. afirm ara serem os lagos equatoriais a nascente do rio, mas que os pân­
tanos do Sudd, vasta pradaria inundada pelo N ilo branco em terras dos
núbios, im pediram o avanço das legiões rom anas que viram parte dos seus
hom ens a serem tragados pelas assom bradas e pantanosas terras que se
abriam na vastidão das planuras para além de Assuão. Séculos depois, a
obsessão pela nascente do rio voltaria a despertar a curiosidade do geográfo
árabe M uham m ad Al-Idrisi, que em conjecturas a roçar o credível afirmou,
no seu compendium de geografia, que o rio Nilo e N íger nasciam de um
lago. A verdade viria a scr confirm ada, nos seus contornos mais gerais, em
1858, pelo explorador John Speke, ao descobrir, como prim eiro europeu, o
lago que chamaria também de Vitória, atribuindo-lhe a matricial idade do rio
que despertaria, como ficou dito, anos depois, o interesse do explorador in­
glês D avid Livingstone a intem ar-se, com o um louco, por terras pouco
aconselháveis em época de intensa chuva. A malária, sua eterna companheira
e a incontrolável desinteria foram fatais ao explorador em período de total
ausência de m edicam entos supridores.
Para sua profunda mágoa, D avid Livingstone, hom em de sentim en­
tos fraternos que N habezi jam ais reconheceu, não atingiria a nascente do
mítico N ilo, rio e terras que lhe faziam recordar a estatura e pele m orena dc
M puluka maravilhado com as caçadas aos elefantes em terras altas do Zam ­
beze. Os seus m ais leais hom ens de confiança, Chum a c Susi, únicos
colaboradores que haviam restado da aventura exploratória, enterrariam o
coração do explorador na base de um a ávore e, em balsam ado o corpo,
transportá-lo-iam , por nove meses seguidos, à ilha de Zanzibar onde seria
em barcado para Inglaterra e sepultado na abadia de W estminster, longe,
m as m uito longe da felicidade de Luiza e M puka, casal engendrador, com

97
CHORJRO

outros senadores de David Livingstone, do estado dos Makololos, no baixo


Chire. O filho, único do casal, por sinal David de nom e, m orreria ainda
jovem , em forte peleja com as tropas portuguesas com andadas pelo jovem
oficial João de Azevedo Coutinho, cm momentos cham ados de pacificação,
termo que os gentios não entenderam na virada das suas vidas e do século
que os agrilhoaria para todo o sem pre ao patrão colonial. A m em ória do
súbdito britânico perder-se-ia com o tem po nas fogueiras de histórias dos
m akololos, salvando-se, para o gaúdio do império britânico, nos livros da
assim ilação obrigatória dos pretos de fato e gravata.
Já entrada em idade, e ainda ressentida da precipitada mas feliz fuga
da casa dos pais, Luíza assistiria à retirada apressada dos portugueses do
baixo Chire, em consequência de um ultimato que desconhecia, mas que
viria a saber, por outras vozes e em term os mais práticos, que o português
das terras ao longo do vale do Zam beze não mais seria em pregue no vale
do rio Chire, por os novos patrões estabelecidos na região espalharem outra
língua e m anterem grandes distâncias a concubinato de brancos com
Kaffires, term o então em voga p o r essas terras. R espeitada e adm irada
entre os makololos, Luíza morreria velha e feliz. Para a posteridade ficariam
os com pridos cabelos encaracolados, muito disputados pelos curandeiros
que os queriam encimando as caudas detectoras de espíritos malignos em
actos de exorcismo.
- Foi ele que levou a Luíza, inferiu Sejunga.
- Não. Foi o M aluka, um dos homens dele, precisou K ham bam ula
com uma voz arrastada a cam inhar por sulcos de um passado que não se
queria presente.
- E porquê tanto segredo?
- Era a m enina protegida do teu pai, disse K ham bam ula a Sejunga.
Dos filhos dc N habezi era o mais entroncado e de olhos vivos. Habituado
a servir-se dos acatem o e das gogodas, apresentava calos salientes nas
mãos. A vida da selva não lhe escurecera a tez ainda clara e brilhante ao sol.
A caça adestrara-lhe os músculos e avivara-lhe a mente.
- E essa foi a causa do silêncio?
- N unca se rapta im punem ente um a pessoa da corte.
- E N habezi não teve formas de se vingar?

98
Ungulani Ba K a Khosa

- Deixou Levistone sair em paz das suas terras.


- Não foi o culpado, de facto.
- Para onde vai o fumo vai o fogo, adiantou M puluka, entrando na
conversa. Aos olhos das pessoas o branco Levistone cra o culpado do luto
que se abatera na terra, disse ainda M puluka.
- Duas semanas depois do rapto foram executados dois achicunda e
a m ulher escrava.
- Uns coitados...
- Cabia-lhes zelar pelos trilhos da tua irmã. M as a noite enganou-os.
M aluka foi mais ágil.
- Esse é que foi o grande culpado.
- A multa cobra-se ao dono, Sejunga. M aluka pertencia ao Levistone.
- Um hom em de princípios, disse M puluka. Gostei d ele... Conhecia
terras... Am ava os h o m en s...
- Mas quebrou as regras da hospedagem.
- F o i traído.
- Então devia pagar a multa, retractar-se perante o Nhabezi, devolver
a Luíza. M as não fez.
- Era um v iajan te...
- Um viajante que conhecia as regras, a nossa maneira de viver, M pu­
luka! De que lhe valeu conhecer terras e gente?
- Tens razão... Deveria m andar em issários... M as algo me diz que só
soube tarde da traição de Maluka.
- Isso não é desculpa.
r
- E, não é desculpa...
- Estás a dar-me razão.
- A perdiz que anda pelo chão é também apanhada pela armadilha.
- É por isso que a corda deve estar esticada.
- A carga da boca não pesa, Khambamula.
- M aluka era o hom em de confiança de Levistone.
- As mulheres, hom em ...
- Luíza não era Salika, M puluka, riu-se Khambamula.
- N unca foi m inha mulher, retrucou, visivelmente irritado.
- Quem é a Salika?, perguntou Sejunga.

99
CIIORIRO

- U m a das m ulheres do M puluka. Aliás, fo i...


- M inha, não...
- O que fez?
- Era adúltera... M ulher infiel.
- Eu andava na caça.
- O que aconteceu com ela?
- Fugiu de vergonha.
- Se é vergonha aq u ilo ...
- Toda adúltera envergonha-se.
- Mas o que tem a Luíza a ver ?...
- E só brincadeira com M puluka.
- ... Espero que seja feliz lá onde estiver.
- Quem?.. A Saiika?
- A Luíza.
- Nasccu para ser feliz, Sejunga. Aquele riso, aquele olhar, encantava
o teu pai. Ela espalhava beleza na aringa.
- O que me intriga é o N habezi não ter perseguido a caravana.
- O teu pai, no fundo, com preendeu a cham a do am or e da aventura
da filha, disse Kham bam ula. Q uando lhe inform aram do desaparecim ento
da Luíza, os homens de Levistone levavam um a m anhã de avanço. E nós
conhecíamos as terras como ninguém. Eles eram estrangeiros. Mas o teu pai
não quis persegui-la. Pediu aos homens que deixassem em paz a caravana
do branco Levistone.
- N ão acreditava no que estava a acontecer, disse M puluka.
- N o fundo, lá dentro dele, N habezi tinha a certeza que a filha viria,
arrependida, ao regaço do pai. E esse erro de cálculo fê-lo m andar executar,
fora do tem po e em jeito de vingança, os homens e a m ulher que protegiam
a miúda. O nome da Luíza não mais foi pronunciado na corte por pessoas
acordadas e a dormir.
- Foi um a dor grande.
- Só o M akula é que te pode dar a dim ensão da dor do teu pai. Foram
sem pre íntimos. #
- Nunca m ais brincou com outras irmãs minhas.
- Tom ou-se ríspido.

100
Ungulani Ba Ka Khosa

- Mas o coração continuou aberto, suavizou M p u luka... Quem mais


sofreu foi Nfuca.
- Perdeu dois dos meus irmãos: A Luíza e o Ignácio.
- Foi duro. Mas Nhabezi sofreu mais. Sofreu como pai e como rei.
A rrependeu-se de não ter perseguido a caravana de Levistone. E isso ficou
m arcado...
- Fragilizou-lhe, m urm urou Sejunga.
- Ele nunca pensou que a cham a do am or fosse arrebatadora. Não
era de paixões. Dividia o mundo pelos seus compartimentos. Não misturava
nada. Pensar que um a filha, ainda menor, tivesse a coragem de abandonar
a família e aventurar-se, pelo sertão fora, com um homem, nunca lhe passou
pela cabeça.
- E por isso que somos homens.
- Um rei está acim a do vulgar.
- M inha cabeça, disse M puluka.
- A s vezes ver longe é ver nuvens.
- Tens razão.
- D eixando isso, N habezi teve um a vida feliz, disse Sejunga.
- Teve tudo o que um hom em pode ambicionar, adiantou K ham ba­
mula.
- A g o r a é só esperarm os, disse M puluka.
- Ele virá.
- Para um a vida sem prazeres.
- Estás a pensar muito, Sejunga.
- Os espíritos sofrem m ais que a carne.
Era do seu género desconfiar, interrogar-se, porque o hábito de
caçador ensinara-lhe a farejar, esquadrinhar espaços, procurar indícios, con­
jecturar hipóteses. Q uando o pai adm itiu na corte o curandeiro Chatula,
afam ado botânico e tratador de alm as de ten-as a sul do rio Zam beze,
especialista em rem édios reservados à realeza, augurou nuvens cinzentas
sobre o reino. Sabia, por intermédio de necum balum es famosos, que espe­
cialistas em m acom as, rem édios destinados à realeza, tinham por tarefa
conferir poderes perpétuos sobre a terra e os homens aos suseranos que a
eles se submetessem. Há anos que Nhabezi vinha percustrando tal hipótese,

101
CHO RIRO

questionando aqui e ali, a re a l capacidade dos niangas. N yazim bire, nianga


de confiança, homem que o pai recrutara em terras dos Bárué, em época de
passagem às terras altas de Zum bo, chum bara m uitos dos pretensos
conhecedores de macomas nas provas divinatórias dos ossículos. Nhabezi
confiava no seu curandeiro particular. Depositava nele a palavra definitiva
sobre o estado das suas terras. Havia outros, os oficiantes locais da chuva,
e dos espíritos ancestrais das terras: os mubalas. M as N habezi inclinava-se
aos conselhos de Nyazim bire. Cabia a este pronunciar-sc sobre m uitas das
m atérias da corte. Dizia-se, com algum a razão, que M akula Ganunga. o
m uanam am bo, para evitar rixas desnecessárias, subm etia as suas opiniões
à peneira decisória de Nyazim bire. A palavra do curandeiro era de grande
valia na cortc. Por isso, quando Chatula passou pelos ossículos divinatórios
e estabeleceu-se na corte, Sejunga tratou de alertar o irmão m ais velho:
- Os teus tempos estão chegando, Lefasso. N habezi está a preparar a
morte.
- Terei os olhos abertos quando a altura chegar.
- A s nuvens que se aproxim am são m uito negras, irmão.
- O reino não desabará, Sejunga.
- Que os espíritos te oiçam.
- Eles protegem-me.
Jovem sonhador, Lefasso dem onstrava poucas simpatias para com o
irm ão caçador e o andarilho Adaliano, irm ão dc outra mãe. E isso por as
actividades ligadas à caça e ao com ércio, razão da existência do estado,
não lhe despertarem grande interessse. N os gow eiros, ritos iniciáticos à
vida adulta, dava pouca atenção às actividades ligadas à caça e as m anhas
no trato com as m ercadorias. Fugia dos exercícios físicos, das lutas
iniciáticas e das caçadas. O seu jeito prendia-se com as arm adilhas que
urdia com gosto para os animais de pequena e grande envergadura. M as o
seu gosto, o prazer supremo da sua vida, era internar-se no bosque das bigornas
e aspirar o fumo do ferro em brasa. Passava parte do tem po com João Alfai
e Tyago, fabricando peças de enfeite, com o pulseiras adornadas com
m otivos de caça, colares em formas de serpente e brincos com contornos de
árvores e frutos. A paixão por esse trabalho de ourives isolava-o de outros
m essires que se entregavam com paixão mercantil à fabricação de gogodas

102
Ungulani B a K a Khosa

e pólvora, acatem os e enxadas, lanças e facas, material de m aior utilidade


na rentável econom ia virada à crescente procura de marfim. E a m edida
que a idade adulta ia entrando, Lefasso entregava-sc com uma ferocidade
sem limites à fabricação de objectos à base de ferro e m adeira de que muito
se servia como matéria de ensaio. Pouco preocupado com a sucessão, Nhabezi
secundarizava o alheamento do filho às questões da corte, dizendo que o
tem po daria ao filho a sabedoria de o suceder.
- E necessário endireitar a árvore enquanto pequena, retrucava
M akula Ganunga, o muanamam bo, preocupado com os longos silêncios de
Lefasso frente às pequenas figuras de animais que esculpia.
- Por mais que o galo não cante, am anhece sempre, M akula.
- É o mesmo que fazer uma panela para deitar fora. É preciso utilizá-la,
pô-la à prova do fogo.
- Conheço o tecto da m inha casa.
- Dc tanto se ter a certeza esquecem o-nos, às vezes, que a galinha
m orre no ovo.
- U m a perdiz dá sempre um a perdiz, Ganunga.
- U m a boa perna, um bom pontapé.
- Uma panela fraca parte panelas fortes.
- Cada um conhece os seus remédios.
- Bateste as tripas.
A ssim defendia-se Nhabezi às crescentes críticas do alheam ento de
Lefasso aos assuntos da corte. Preocupado com as m acom as da sua
eternidade, Nhabezi passava ao largo das crescentes críticas ao filho que se
entranhava com um vigor desusado na arte de cinzelar. O futuro da nação
afigurava-se negro aos olhos dc Sejunga. Para ele o irmão Lefasso não fora
talhado para os assuntos da corte. A m ãe há m uito lhe dissera ser ele,
Sejunga, a figura apropriada para dirim ir as questões da corte.
- O teu irmão nasceu para contar estrelas, Sejunga.
- N ão fui dado à língua, m ãe N fuca. A pessoa indicada para as
questões da cortc é o Adaliano.
- E filho de m ulher terceira. Jam ais poderá suceder o teu pai.
E N fuca deixava-se levar pelos seus silêncios de m ulher e mãe. Pouco
falava com os filhos sempre ausentes. Sejunga, sua terceira sorte, sempre

103
CHORIRO

metido nos interiores da caça, pouco espaço tinha a entregar à mãe. Quando
se encontravam, os diálogos eram curtos e rápidos, seguidos de silêncios de
dias e meses. Lefasso, fisicamente próxim o, dialogava com a màe através
de oferendas de esculturas representando o m agôa, nom e que o abutre
tom ava nas línguas locais. G ostava desses animais que apareciam em ban­
dos, grasnando ruidosamente quando a carne morta exalava o cheiro pútrido
pela savana. Os abutres em ferro e m adeira que esculpia aproxim avam -se
a essa espécie em abundância nas terras de Nhabezi: os abulres-dc-capuz,
animais de cabeça cor de rosa e sem penas, ostentando um capuz acinzen­
tado, num corpo coberto por um a plum agem castanho escura.
Por o acharem um a palhota sem tecto, poucos se preocuparam , de
início, em entender a ligação de Lefasso aos anim ais da morte, do m au
agoiro, do luto. Para ele e fora do socialm ente aceite, os abutres eram os
purgadores das im purezas terrestres, seres talhados a retocar a natureza,
devolvendo o odor natural que a carne pútrida em pesta à terra. Ninguém
dava im portância aos seus devaneios. E poucos lhe deram ouvidos quando
a natureza se enganou c fez chegar às terras ansengas os abutres barbudos,
espécie típica das montanhas, animais de cabeças e pescoços em plumados,
pormenores ausentes nos primos da savana e outras zonas áridas e semi-áridas,
bichos que Lefasso considerava de elite por se alimentarem quase exclusi­
vam ente de ossos donde retiravam a m edula óssea, daí não terem o pescoço
nu, por não se entregarem à desgastante tarefa de introduzir a cabeça e o
pescoço entre os ossos à procura de restos. São os eleitos, dizia Lefasso.
N inguém ligava, por acharem norm al, depois do espanto da novidade, a
natureza ofertar-lhes visitas de espécies de outras latitudes, como há tem ­
pos acontecera com a chegada de chimpanzés que alarmaram centenas de
babuínos em permanente atalaia ante a inédita espécie que não quis guerrear
pelo espaço, por se acharem minoritários e perdidos, dado o seu habitat situar-se
na região dos grandes lagos c não nas terras do vale de A ruângua, zona
privilegiada de babuínos que não encontravam concorrentes da sua espécie
na disputa de espaços terrestres. Havia os de vida m ais arborícola. M as os
babuínos gostavam de se locom over pela terra. E os chim panzés também.
D aí o receio, os pequenos tem ores dos donos dos espaços terrestres. Em

104
Ungulani B a K a Khosa

silêncio chegaram e retiraram -sc, passado pouco tempo, para alívio dos
babuínos.
De princípio, as palavras encom iásticas de Lefasso soavam a vento.
M as quando os abutres barbudos, também conhecidos por quebra-ossos,
ou abutres-das-m ontanhas, acam param por um a tem porada relativamente
longa, a inquietação tom ou conta das pessoas e as palavras de Lefasso
passaram a ser tomadas em conta. Ele pode ter razão. Interpretemos ao con­
trário o que ele diz, afirmavam.
A m edrontadas com o novo, as populações aliaram a presença dos
desconhecidos necrófagos a um sério aviso à eterna desgraça que se abate­
ria sobre as terras com a crescente invasão de caçadores desonestos,
invadindo terras sem o respeito pelas regras secularm ente instituídas. O
N yazim bire, o conhecido curandeiro-mor, que acabara de accitar os prés­
tim os de C hatula nos assuntos da m acom a, alvitrou o aparecim ento dos
quebras-ossos ao anuim ento dos espíritos de terras desconhecidas à trans­
m utação de N habezi em espírito aglutinador dos achicundas. Por isso, e
fazendo uso das suas qualidades prestidigitadoras, tratou de apaziguar os es­
píritos m ais cépticos, as almas mais frágeis e os ouvidos menos selectivos.
Os quebra-ossos são a benção da natureza, a saudação dos espíritos dis­
tantes cm aceitar a transm utação de um branco em protector espiritual dos
pretos que dera terra e segurança, dizia aos da corte de modo a trasm itirem
confiança nos achicundas e população em geral. Animais assim, acrescen­
tava, não vinham de terras onde pessoas, com intenso calor, pouco valor
davam à vestimenta, mas de terras onde o frio e a areia branca obrigavam
as pessoas a refugiarem -se em vestes incómodas que lhes dificultavam os
passos e a fala. Estes magôas não são nossos, vêm de longe, lá de terras de
fraco sol. A legrai-vos com a presença destes visitantes que não procuram
carne morta, mas ossos do branco que perm anecerá entre nós com o seu
espírito protector. M anhã e tarde, com sol ou chuva, os quebra-ossos
postavam -se nas paliçadas da aringa real como que à espera dos ossos do
branco Nhabezi.
Relutante em aceitar a teoria de N yazim bire estava N habezi que em
vida nunca vira abutres de montanha e jamais lhe passara pelo imaginário con­
frontar-se com abutres de pescoço coberto. A sós e longe dos ouvidos atentos

105
CHOR1RO

da cortc, N habezi confessaria a N yazimbire que jam ais vira, em terras bran­
cas, abutres daqueles, ao que este retorquia, dizendo que os ossículos foram
concludentes ao lhe apontarem terras com areia branca e gente coberta com
casacos de peles de animais e casas dc pedra. As casas, sim, Nyazim bire,
são de pedra, a areia branca em zonas de m ontanha têm aparecido e o frio
é intenso em época própria, nisso os ossículos dizem verdade, mas no que
toca aos abutres,... Isso, Nhabezi, é ciência tua achares que a areia branca
só devia cobrir a tua varanda c a dos teus avós; os osssículos falam de terras
altas e longíquas. É bem possível, povos há que não estão adestrados à
navegação por não possuírem m ar ao rebordo da terra. Estes m agoas não
conhecem o m ar c nem se aventuram por terras quentes, m as em sinal dos
teus antepassados de terras frias e altas, aqui se encontram para te dar forças
nos desígnios que te propuseste atingir ao quereres transform ar-te em
espírito protector que se alojará em pele preta, ou nas carnes do m pondoro
que rugirá dc satisfação em noites de precipitadas fugas de caçadores
furtivos nos teus espaços de caça. Se assim o dizes, satisfeito fico com as
adivinhações dos ossículos. Pouco preocupado estarei, agora, com a m inha
sucessão. Aí tc enganas, Nhabezi. O Lefasso terá que aprender os rudimentos
da cortc. Para isso estás tu e o Makula, o Chiponda e o Tyago e outros que o
protegerão das insuficiências no trato com reinos vizinhos e caçadores de es­
cravos que vão espreitando as nossas terras. O perigo está em o suserano tomar
outros horizontes, Nhabezi. Para isso estará a mãe a refrear os desvios. A morte
de um louco nunca afecta a corte, Nyazimbire. Assim espero, Nhabezi.
-D e s c a n s a a cabeça, Sejunga, disse Mpuluka.
- Estou a lem brar-m e do Lefasso e dos abutres.
- Foi o prim eiro a dar-se conta dos quebra-ossos, introm eteu-se
Nkambam ula.
- É verdade... Eles não vieram das terras dos teus avós, M puluka?
- Era m iúdo quando de lá sai. N unca os vi.
- São animais esquisitos.
- E a alimentarem-se de carne do interior dos ossos, disse Nkambamula.
- E por isso que não se sujam e não chciram mal, avançou Mpuluka.
- Deixam que outros anim ais lim pem os ossos.
- D á para acreditar nas palavras de Nyazim bire, disse Sejunga.

106
Ungulani Ba Ka Khosa

- Estão à espera dos ossos de Nhabezi, avançou N kam bam ula.


- Mas para quê?... perguntou Mpuluka.
- A carne tem cor. O espírito não.
- Eles vêm buscar a carne do branco? perguntou Mpuluka.
- Dos brancos que aqui morrem , os espíritos voltam à terra. O de
N habezi não volta à terra de origem , disse Nkambam ula.
- Então?...
- Eles vêm buscar os restos da carne.
- Não será sepultado?
- Exum aremos o corpo.
- E s tá s a inventar, K liam bam ula... disse Sejunga.
- Que interesse tenho em inventar? ... Nyazim bire explicou tado.
- Q uer dizer que os magôas ficarão à espera dos ossos?
- Se partirem virão na altura da exum ação. São pássaros, M puluka.
V ão e vêm.
- N ã o haverá carne nos ossos, Khambamula, disse Sejunga.
- Então a palavra caberá ao Chatula.
- Até agora nada disse, avançou M puluka.
- Lim ita-se a conversar com Nyazim bire.
- Lá se entendem.
- M as o que é certo é os magôas quebrarem os osssos do N habezi e
desaparecerem daqui. É provável que o corpo fique insepulto no bosque
das oferendas.
- Os abutres de capuz tomarão conta do corpo. É crime o corpo de rei
ficar insepulto, Nkambam ula, afiançou Sejunga.
- Tens razã o ... Para vos ser sincero, nunca assisti a uma cerimónia de
enterro de rei. Sou cego como vocês.
- A gora é que estás a falar, disse M puluka.
- Caberá ao C hatula a palavra final. O homem terá que explicar a
presença dos quebra-ossos.
- H om em esquisito, disse Khambamula.
- É ... É esquisito, rem atou Sejunga.
A chuva abriu a m anhã na corte. Durante horas as águas caíram sobre
as copas das árvores em choro de adulto sofrido ao longo do vasto terreiro

107
CHO RIRO

da aringa grande. Cortinas de água tom bavam do tecto das casas em sons
abafados c agudos na terra em papada e escorregadia, a fugir do tom
castanho escuro para o preto da lama que se enroscava nos tornozelos dos
bandázios em correrias de serventia de luto. Os cães dc caça, que para
espanto de m uitos haviam cessado de latir com o anúncio da m orte de
Nhabezi, ocupavam, com os rabos encolhidos e o olhar de felino espantado
com a caça perdida, os espaços vazios nas messaças, conhecidos lugares de
reunião e lazer, onde os m aiores dos reinos vizinhos conversavam sobre
tempos passados e presentes, augurando épocas difíceis com a morte do rei
branco que paz e concórdia trouxe às terras que margeam o Zam beze e o
Aruângua.
Sob a copa das árvores e com reforço de folhas e cestas c gravetos,
dezenas de homens, m ulheres e crianças teim avam em enfrentar o vento e
a chuva, por quererem ter os olhos c ouvidos presentes no acontecimento
prim eiro e único que a vida lhes dava a assistir: as cerim ónias fúnebres do
prim eiro rei branco em terras do alto Zambeze. Em grupos de dez a quinze,
as pessoas prendiam-se à volta das árvores com olhares suspensos. A chuva
não os dem ovia desses incómodos lugares no terreiro da aringa. Cientes do
seu papel secundário no curso da história do estado, os hom ens ou o vulgo,
ensopados e em silêncio, olhavam o presente m olhado sem pressas c sur­
presas. Sabiam que N habezi preparava-sc para perpetuar a sua existência
para além da m orte física. Sabiam que m uitos curandeiros de nom eada
foram riscados no trato das mezinhas e que Chatula, curandeiro de fama,
fora o eleito na m edicação da macoma. N o íntimo das suas existências não
consultadas, pairava a dúvida sobre a possibilidade de o branco de pele
fraca e indefesa às arrem etidas violentas dos raios solares sobre o corpo
que sem pre se averm elhava resistir, em espírito, na selva nocturna das
almas protectoras. Era-lhes difícil conceber um branco que lhes servira com
o talento terreno como uma entidade espiritual tomando as rédeas dos vivos
no tum ulto da vida feita de incertezas. Desconfiavam dos espíritos antigos
em aceitar um a alma que tenha vivido em corpo que chegara, como outros
da sua raça, às terras pretas em galeões, vencendo ventos que zuniam nas
enxárcias e gáveas das naus com velas tesas, desafiando os revoltados es­
píritos do mar, c fazendo-se à terra com a força dos canhões e m osquetes

108
Ungulani Ba Ka Klioxa

que ensurdeciam a selva habituada aos naturais rugidos e bram idos,


/unidos e assobios dos animais tropicais, ora confrontados com as desm e­
didas am bições dos homens de cabclos com pridos que abatiam, sem pejo
e medida, elefantes e crocodilos e leões c leopardos, com erciando peles,
dentes de elefante, e pessoas, com objectos de pequena medida, m as de
elevado brilho no corpo dos pretos espantados com os espelhos que reflectiam
os rostos apavorados com a dim ensão descomunal dos lábios e narizes com
as grutas escancaradas. Os espíritos antigos não iriam coabitar com a alma
da raça que habitou em corpos que foram erguendo, pelo sertão adentro,
retábulos onde se benziam c oravam, em língua estranha, a da comunicação
diária, convidando, coercivamente, os pretos a largarem os seus espíritos,
as árvores sagradas, os ossículos de adivinhação e a entregarem-se, em ge­
nuflexões sem conta, a um espírito que não se fazia ouvir nos represen­
tantes terrenos cobertos de panos até aos artelhos. D ele diziam existir nas
palavras grafadas em papcis e não em vozes, como dos nossos que se fazem
ouvir quando os curandeiros, na consulta da vida, entram cm êxtase. Como
acreditar nesse espírito branco que se quis negro quando seus irmãos vão,
pela força, recrutando mulheres e homens que arrastam em direcção ao mar,
em barcando-os, depois, em naus que os espalham p o r m undos onde re­
com eçam a decifrar estrelas, nom ear novas árvores, com er novos frutos,
experim entar outras iguarias e conviver, sem a harm onia hum ana, com
raças autóctones que vão desaparecendo em núm ero e significado?
Os espíritos antigos e novos não aceitarão o espírito do branco que se
fez preto na fala e nos costum es; eles não com ungarão das mesm as regras,
porque o espírito do branco será sem pre um intruso no panteão dos espíri­
tos da benfeitoria. Revoltado, o espírito branco vagueará pelas noites como
um espírito rejeitado c sofrido. Aí seremos nós a sofrer com as angústias de
um espírito sem tecto e corpo onde poisar. Teremos noites insones por sen­
tirmos um espírito a fustigar as nossas pobres mentes que inocentemente
ousaram, em vida do branco, aceitar que os curandeiros o submetessem ao trata­
mento das macomas, remédios reservados somente aos insignes filhos da terra.
N ós c que sofreremos com estas tentativas de transform ar o espírito
de Nhabezi em mpondoro! Jam ais se viu, por estas terras, um espírito de
branco perenizar-se nas gerações presentes e futuras!... Vamos esperar,

109
CHO RIRO

diziam os m enos cépticos, ante a reprovação dos demais em acharem im ­


prudente a façanha do curandeiro Chatula em eternizar o espírito de Nhabezi.
A tem pestade vem a cam inho, diziam. M as as palavras, os diálogos,
circunscreviam -se aos círculos do vulgo, não se alteando, com a m esm a
clareza, aos patam ares próxim os da realeza. E quando lá chegavam já
tinham sido apimentados com sabores e imagens mais infaustas que o imaginário
popular poderia alentar.
Próximos, mas alheios à divagação do vulgo, os batuqueiros aque­
ciam, em silêncio de cansaço, as peles dos tam bores em fogueiras ressus­
citadas, enquanto fum avam e observavam a chuva caindo pelas largas c
abertas varandas dos alpendres onde jovens, em época de iniciação e de
aprendizado, se sentavam, ouvindo histórias de caça c lutas.
A chuva, forte e contínua, teim ava em acom panhar a manhã cinzenta
quando Chiponda M acanga, acom panhado pelo séquito de carregadores e
achicunda, entrou pela porta grande da aringa. Sem se preocupar cm ditar
ordens aos lugar tenentes, nem em trocar a roupa ensopada, apressou-se em
cam inhar em direcção à casa grande onde M akula Ganunga, Nyazim bire,
o m essire Tyago, o herdeiro Lefasso, Jili Ndoro, responsável dos bichos, e
Chicuacha, entre outros, se encontravam de vigília na sala grande. Larga e
comprida, a sala de vigília estava despojada de grande parte do seu mobiliário.
Em redor das paredes ornadas com cabeças embalsamadas de leões, leopardos
e gazelas, viam -se cadeiras e peles estendidas no chão de madeira. Com a
entrada de C hiponda, os m aiores levantaram -se e dirigiram -se a um
aposento contíguo.
Adaliano, livre da carga, acorreu em abraçar a m ãe que se pôs em lá­
grimas. Ao tentar retirar-se do quarto feito palco de intimidades, Suna foi
detida pela voz de Nzinga.
- Fica. Há novidades da terra.
- O brigada, Nzinga.
- Os tempos estão a mudar, mãe. As pessoas já não se sentem tran­
quilas, disse Adaliano, acercando-se da cama. Pingos de chuva esmagavam-se
nos bordos da janela aberta ao céu plúm beo. U m c outro pássaro atrevia-se
a cortar o céu fustigado pelo vento forte a moderado. Da terra dos Lambas
e dos Bisas, descera caçadores arm ados à procura de m arfim e escravos,

110
Vngulani Ba Kg Kho.sa

continuou Adaliano, já sentado na cam a da mãe e nada preocupado com a


encharcada roupa da caça. O tio M ukula M akuse vai aguentando com o
reino. M as sofre com os hom ens que vêm das m ontanhas e da floresta. N e­
gociando aqui e ali, cie vai-se aguentando. Deu-m e um a bolsa de missan-
gas e panos que vêm do m ar à nascente do Zam beze. Acho que vais gostar,
mãe.
- Fala de mais coisas alegres, filho. Dc tristeza basta a morte do teu pai.
- E verdade. Foram as dores de que vinha sentindo, não?
- E isso. Os ossos com eçaram a partir-se, meu filho.
- Que dor!
- M as resistiu aos estalidos. Tinha esperança.
- E ... Tinha esperança.
- Fala da minha família.
- Estão na paz dos espíritos. Para quando o enterro?
- Para amanhã.
- Tenho que ir à casa grande.
- M uda de roupa, filho.
- Vou. Vou m udar de roupa.
Sem se dar conta, a imagem do irm ão António passou-lhe m om en­
taneam ente pela mente. Que sentiria ele?, perguntou-sc, longe de im aginar
que António Escrivão já se havia radicado em Quelimane, casara com uma
m estiça de ascendência hum ilde e apascentava, por não encontrar outro
ofício para as horas vagas, nas cercanias da vila, o seu pequeno rebanho dc
três m eninas c um petiz. Por essas alturas, doença e m orte do m am bo,
havia-se cruzado, por uma dezena dc vezes, com Ignácio e o reverenciara
pelos m odos corlescs, próprios de um jovem letrado, pois dizia-se natural
de Tete e filho dc prazeiro, m as que Escrivão não pensara, nunca, que
aquele jovem fosse seu irmão, apesar de o achar pessoa dc sua parecença,
por ser de grande com penetração no andar e olhar. M as viviam em m undos
diferentes. Escrivão, em seus serviços dc escrivão auxiliar, cncafuava-se
nos escritórios das alfândegas, preenchendo livros de entradas e saídas de
mercadorias, no seu jeito de camaleão no desenho das letras e no atendimento
público; já Ignácio, mais m undano, andava pelos mundos da topografia,
m edindo e desenhando espaços que sc alargavam pelo interior mercantil.

111
CHO RIRO

Nunca Ignácio, em sua estada por Q uelim ane, se dera conta da presença
mortiça de Escrivão. Casado, preocupado com as econom ias caseiras, A n­
tónio Escrivão já não se esm erava na roupa e no cabelo que outrora aiisava
com a felicidade fugaz e ilusória de um funcionário de carreira. Não dava
nas vistas. N ão tinha padrinhos. Era mais um m estiço na selva de patrícios
que Quelimane engendrava e alimentava.
N a roda das poucas mas crescentes e risonhas Donas que enchiam de
alegria os luanes, pequenas propriedades que se erguiam em redor da vila
de Quelimane, onde o apimentado do oriente, as frutas c doces africaniza-
dos, os cânticos em sintonia com o rufar com passado dos tam bores, os
panos de cores vistosas engalanando corpos dengosos, davam ritm o e ale­
gria aos brancos, canarins e patrícios que não se afadigavam com o tórrido
e húm ido calor que os palm ares em crescendo suavizavam em noites de
brisas suaves, António Escrivão não tinha espaço de convívio. Já Ignácio
frequentava, em bora em posição subalterna, os convívios crioulos, sem se
aventurar em atitudes públicas de libidinagem , por já se achar com pro­
metido. Em com um e a revelar vivências dos interiores recolhidos, tinham,
António e Ignácio, o desfrute do m ar desconhecido que se abria às almadias,
aos escaleres, juncos e outras em barcações de passageiros e pesca. M as
esse cenário com um não se fruia à beira de Quelimane, porque a vila cra
serpenteada pelo rio em lento movimento ao m ar que se avistava a um a boa
distância das casas que form avam o perím etro do burgo e suas cercanias.
Se distância ou desnaturalização, difícil é a aferição, mas a verdade
é que Ignácio e António, não haviam recebido, como é comum em muitas
pessoas, o sinal da morte ou da gravidade da doença do parente próxim o,
no caso o pai, expresso, às vezes, em acontecimentos, sonhos ou em gestos
dc um a fortuidade duvidosa. A António, nado e crescido sem a mão
paterna, percebia-se a exclusão do sinal, o aviso agoirento, mas a Ignácio,
que de tem pos cm tempos se recordava da aringa real, dos irmãos, do pai,
e da mãe, o aceno ou prenúncio aziago, não se fez chegar ao corpo e es­
pírito.
N o momento em que Adaliano mudava de roupa para se dirigir à casa
grande, sob a chuva que dim inuía de intensidade, Ignácio queim ava a
m anhã prcnunciadora de um calor incom um com croquis sem im portância

112
Ungulcmi Ba K a Khosa

nos serviços adm inistrativos ligados à topografia e cadastro. Situado na


parte baixa e próxim o ao cais, os serviços de topografia e cadastro ficavam
num edifício de um só piso, levantado cerca de um m etro do solo,
ladrilhado com placas dc tijolos, pintado a branco e coberto por telhas em
tom ocrc que harm onizava os edifícios públicos distribuídos ao longo da
margem do rio. Era uma construção consistente; depois de se transpor a
cerca que distava cinco m etros da casa, chegava-se a um alpendre
am ouriscado por uns sete degraus de m adeira resistente aos cupins. A
varanda era larga e com très portas de acesso aos com partim entos onde se
encontravam os serviços de topografia e cadastro, sectores da administração
civil e outros serviços de assistência. N o fundo do pátio interior, defronte
a acolhedoras sombras de m angueiras gigantes, erguia-se um casarão com
quatro cóm odos destinados aos hóspedes. Por não possuir casa própria,
Ignácio ocupava um dos cóm odos do casarão onde outro solteiro recém-
-chegado da m etrópole, de nom e A lbano, tam bém habitava. M uitos dos
m estiços de Quelimane olhavam Ignácio como um moço privilegiado por
habitar a zona reservada aos brancos, em se tratando de um não natural;
m as tal concessão devia-se, em m uito, à protecção do senhor Á lvaro
Brandão, inspector adm inistrativo, pessoa de idade e de grande influência
na vila, casado com um a patrícia respeitável e pai de um a prole de rapari­
gas casadoiras. Aos olhos do velho Álvaro, Ignácio, m oço inteligente e de
boas m aneiras, era um bom partido para a filha Inês, já inquieta no rubro
da adolescência. Era o convidado habitual à m esa fam iliar de Á lvaro
Brandão.
Com a bênção do pai e o calor da adolescência, Inês c Ignácio
tornaram -se íntimos. Protegido pelo velho e fazendo uso das suas capaci­
dades de sedução, Ignácio foi franqueando as portas da sociedade queli-
m anense. D iferente em tem peram ento, Inês era extrovertida e bastante
folgazã para os com edidos hábitos das fam ílias cristãs e conservadoras da
vila. Prim eira experiência sexual do jovem Ignácio, o casam ento não se fez
esperar. Em ano e meio, Quelimane assistiu às precipitadas bodas do jovem ,
m ais por a moça m ostrar sinais evidentes de gravidez que pelo desejo em
confinar as paixões à rotina do lar. Tinha, na altura, vinte e um anos. Mas
o seu fado não estava traçado a ser, como do desconhecido irmão António

113
CHO RIRO

Escrivão, um tradicional chefe de família. Em com plicado serviço de parto


morreu a Inês e a criança. Abalado e solitário, Ignácio manteve-sc viúvo ate
aos derradeiros dias da sua vida na A lfam a lisboeta. M as essa era outra
história, futura e im previsível nos m om entos subsequentes à morte do pai.
N a época, Ignácio estava de namoro nascente com a fogosa Inês. A paixão
era tão arrebatadora que a m oça, vezes sem conta, introm etia-se pelos
serviços do jovem , lançando, com gestos e sorrisos, convites como o que
fizera na manhã em que Ignácio se desinteressava com o tempo.
Longe do brilho do sol, do rio em m eneios de enfado cm direcção ao
mar, dos pretos carregando e descarregando m ercadorias no cais, das
m achilas cruzando-se em estradas dc terra batida, dos coqueiros em
expansão, do sorriso controlado de Ignácio ante o largo e hilariante brilho
de felicidade no rosto de Inês, jovem da cor do sândalo torrado e maciado
nos braços e coxas que se desnudavam no tum ulto inocente da brisa do rio
levantando a com prida e transparente saia da adolescência em brasa, o luto
pesava com as suas cores agoirentas nas terras do alto Zambeze.
Em rotina de luto, os passos, os gestos, as vozes e os cânticos, iam
ocupando as vésperas. M oralm ente refeito do cansaço da viagem, Adaliano
dava entrada na casa senhorial com a roupa salpicada pela chuva a en­
fraquecer na m anhã nebulosa. Sejunga e outros necum balum es e ca­
rregadores encurtavam distâncias, desbravando rotas novas no m ato ce­
rrado que dificultava o transporte das presas de elefante. Postada à janela
do quarto em luto, N fuca recordava os tem pos cm que orientava os
mubalas, médiuns invocadores da chuva e da prosperidade, como tempos
de outra frescura e não estes, modernos e conflituantes, que seduziram o seu
hom em a aventurar-se pelos caminhos da transm utação, correndo o risco de
transform ar-sc num negozi, espírito maléfico que não conseguia coabitar
em corpo hum ano porque expulso sem pre em actos exorcistas; era um
espírito sem tecto, angustiado, espalhando doenças e malquerenças em lares
inocentes. Receosa, N fuca im petrava aos ancestrais desconhecidos a não
deixarem Gregódio cair nas margens dos negozi. Que se transform e no tal
mpondoro e traga a paz que queremos, dizia para si, com os braços ancorados
nas bordas da janela do quarto.
Sajinda e Malidza, sentadas na sala dc M assita, quarta consorte do

114
Ungulani Ba K a Khosa

m onarca, trocavam olhares cúm plices no intervalo de diálogos sem


memória. Salinda, agitada como sempre, tentava serenar as imagens som ­
brias que lhe vinham à m ente sobre a transm utação dc N habezi num in­
visível e im perante fiscal de costum es, em conversas fiadas com as filhas
Lucrécia e Felism ina. Distante do luto e das agonias da mãe, Lucrécia pen­
sava no José de Araújo Lobo, o futuro M ataquenha das terras a norte do
Zum bo. Felism ina, a mais nova, m antinha no olhar a incredulidade da
infância face aos ruídos do luto. Confinada na terra do m arido, Albertina,
a mais velha das filhas de Salinda, tom ou conhecim ento da morte do pai
pela voz do m arido, rei e senhor de uma das tribos Bisa. A distância
dem oveu-a a deslocar-se à corte. Em prantos contidos, chorou pelo desa­
parecim ento do pai com quem pouco privou. M eio incom odada sentiu-se
Luíza na semana dc infortúnio; ligeiras dores apoquentaram-lhe o estômago
de que tratou de am aciar com chá de ervas apropriadas. Não ligou a qual­
quer infortúnio as dores que a afligiram. M ais tarde, ao saber por caçadores
que passaram pelas terras dos m akololos que G regódio havia m orrido,
r
mostrou-se surpreendida por a sua alma não sc ter inquietado. E sinal dc que
o pai a havia perdoado, contentou-se em assim pensar para o agrado da sua
alm a expatriada. O filho, D avid de nome, então com cinco anos, pouco
saberia do avô porque a m orte o levaria em plena juventude, num em bate
com as tropas com andadas por João de Azevedo Coutinho, português que
m uito se orgulharia, em idade dc reforma, de ter pacificado terras indíge­
nas ao domínio do império. De feições apretalhadas, D avid não resistiu ao
chumbo de Coutinho que jam ais saberia que matara, cm combate, o neto de
um conterrâneo que assumira a integração e m iscegenação cultural como o
seu modo de vida.
N os arredores de Q uelim ane, sob o sol cm crescendo num céu
límpido, os petizes de António brincavam entre o arrozal que florescia nas
várzeas ante o escrutinador olhar da m ãe, nada preocupada com a gordura
a acom odar-se no corpo avantajado. António, encafuado entre os papcis da
sua vida na alfândega das m ercadorias, pouco se preocupava com as gotas
de suor que iam salpicando as golas da camisa. A humidade grudava-se à
pele. Senhoras da sociedade passeavam pelas alam edas com sombrinhas
de cores, sem pre seguidas pelas m ucam as sorridentes. Os serviçais, de

115
CHO RIRO

tronco nu, carregavam e descarregavam sacos nas em barcações de trans­


bordo. Os machileiros cruzavam-se, entre assobios animadores das corridas
diárias com senhores armados de chicotes da obediência. A m anhã sorria.
O mundo girava. N a aringa c em redor das árvores, as pessoas continuavam
à espera, im aginando cenários diversos. Os próxim os a N habezi trocavam
im pressões sobre o m onarca no espaço contíguo ao que estava o finado a
ser vigiado pelo sabevira Leio Mpuka. As nuvens com eçavam a tom ar tons
claros. A chuva baixava de intensidade. Os bandázios circulavam pelo te­
rreiro, levando e trazendo recados, enquanto distribuíam carne e bebida aos
ilustres. Os m iúdos aventuravam -se a deixar as copas protectoras das
árvores. Os batuques reiniciavam os com passos de luto. Cantos de pranto
ecoavam dos alpendres. Tocadores de kalim ba, instrum ento m usical da
classe dos lamelofones, característico dos ansengas, faziam-se ouvir através
dos sons vibrando das lâminas dc m etal das kalimbas. A manhã ganhava
vida de luto. Visitas próximas e distantes iam chegando à aringa. Galinhas,
cabritos, gazelas, m ilho e m exoeira eram recebidos pelos bandázios. A
comida e bebida não podiam faltar nas cerimónias. Os achicunda preparavam
as armas para as salvas em honra do finado. Outros achicunda, atentos aos
bens da aringa, revezavam-se no guarnecim ento do bosque dos ferreiros.
N inguém poderia atravessar o bosque dos artefactos de guerra e paz. Pe­
quenas fogueiras tom avam form a sob a copa das árvores que já não
choravam, limitando-se a fungar em cada abanadela do vento. Os bandázios
distribuíam carne entre os vários aglomerados. As vozes ganhavam forma
nos círculos. As nuvens abriam pequenas rotas de luz. Sobre as paliçadas
da aringa real e ostentando o olhar vítreo e assustador dos saprófagos, os
abutres da m ontanha contem plavam as pessoas. De tempos em tempos, um
abutre grasnava c as pessoas, preocupadas consigo, pouco ligavam, en­
tretidos com as carnes e os ossos que chupavam. Foram-se, com o tempo,
anim ais e pessoas, habituando à espera. Dos necrófagos dizia-se
aguardarem os ossos de Nhabezi, propósito contestado pelo vulgo que afir­
m ava nunca um a pessoa em paz consigo e com os espíritos fica insepulta
quando a m orte o abraça; há casos de guerra e de tirania, m as não o de
N habezi que quis entregar o corpo à terra e o espírito ao vento, à chuva e a
tudo que de material e imaterial a terra e os céus comportam. Os abutres

116
Ungulani Ba K a Khosa

estão para outros desígnios que só o curandeiro Chatula poderá desenve-


ciihar, com entavam em surdina os que se afinavam por outras notas.

M uito terá acontecido nas vésperas. Sabe-se que houve mais nasci­
mentos que mortes na semana dc luto. As crianças nadas cm tal período c
em respeito ao finado, foram sendo nom eadas Nhabezi ou Gregódio. Entre
os m ais de três m il achicunda que constituíam o exército de N habezi,
reportaram -se casos dc luta que culminaram com trinta óbitos em todo o
território; núm ero insignificante para causar choros colaterais, mas sufi­
ciente para recordar, em tempos vindouros, o choriro em memória de Nhabezi.
N a fronteira m ais a sul duas aldeias foram arrasadas por caçadores de
escravos. Foram saqueadas presas de elefante em trânsito. Homens c mulheres
tornaram -se prisioneiros. Trinta a quarenta cam poneses foram dizimados
pelo chum bo dos caçadores. D istantes e bastantes absorvidos com a
bebida c o luto, os achicundas responsáveis pela segurança não ripostaram.
A pessoa de M akula Ganunga, o muanamambo, fizeram chcgar, em hora de
balanço, a inform ação de que na euforia do álcool e do luto, duas aldeias
viram as casas comidas pelo fogo. O recenseamento populacional invocaria
o feitiço e doenças com o causadoras do fogo e das mortes. M as todos os
acontecim entos marginais à dor real ficaram ligados à m em ória dos acon­
tecimentos reais. No calendário local, o tem po passou a ser dividido entre
antes e depois da m orte de Nhabezi.
Dos acontecimentos das vésperas, o que em letra ficou foram os registos
de Chicuacha, o andarilho. Do m undo vivido, da m em ória popular,
sobraram ecos, pequenos cacos. No entender de Chicuacha, N habezi viveu
o seu tempo. Fortaleceu o presente com o passado patrilinear achicunda.

117
CHORIRO

...O que me impressionou, escreveu Chicuacha, nas semanas que


antecederam a morte de Gregódio, foram os abutres de pescoço peludo.
Raros e intrigantes, os animais chegaram do nada e poisaram , pa ra o
espanto dos populares, as enormes e assustadoras asas que cortam os céus
à procura de carne pútrida e indesejada, sobre as paliçadas. A espécie era
rara e jam ais vista em terras de savana. A acrescer a isso e aos olhos do
vulgo, tais aves, em proxim idade de aldeias e outras concentrações
humanas, eram sempre de mau agoiro. No seu porte imponente, com um
olhar profundo e agudo, a lembrar santuários pagãos, os abutres de ossos
acompanhavam, nas manhãs e tardes, a rotina da aringa no alto das paliçadas.
O vento e a chuva não os perturbavam do alto daquele olhar distante e im­
perturbável. Estavam acima dos cânticos, do ressoar dos batuques, das
vozes em desespero, dos sentimentos humanos. Manhã e tarde, eles man­
tinham-se, como figuras sagradas e profanas, em silêncio tétrico p o r sobre
a aringa. Ao cair do dia levantavam voo, grasnando e alçando, em batidas
vigorosas, as largas e imponentes asas. Era de arrepiar ver e ouvir os
abutres dos ossos gralhando e batendo as longas asas no céu a p erd er o
azul das tardes. O espectáculo despertava curiosidade e silêncio porque o
som assem elhava-se a gritos agudos vindos de profundas furnas. Inco­
modadas, as pessoas lim itavam -se a observar, em silêncio de luto, os
abutres desaparecendo na noite a entrar com os seus ruídos naturais.
Desaparecidos do horizonte humano, as pessoas readquiriam a coragem de
comentar sobre os estranhos bichos. Durante semanas, o ciclo repetiu-se.
Manhã cedo, antes de o sol se abrir no horizonte, com a cacimba dissi­
pando-se das folhas encharcadas e a humidade esvaindo-se do restolho, os
abutres voltavam a poisar sobre as paliçadas, observando ao porm enor o
retomar da vida no seu quotidiano.
Para assombro de iodos, os abutres-de-capuz, espécie de saprófagos
em sintonia com os espaços abertos da savana, desapareceram com a
chegada dos da montanha. Em épocas de seca era normal verem-se, pelas
redondezas das povoações, os abutres-de-capuz em poleirados nos ramos
altos das árvores e arburstos, espreitando presas em agonia ou debicando
carcaças de animais vencidos p ela seca. Nas proximidades do leito do rio
eles sobrevoavam, em bandos, o curso do rio, à caça de um hipopótamo

118
Ungulani B a K a Khosa

desidratado, um búfalo desfeito pelos leões ou impalas vencidas p ela seca.


Com a chegada dos abutres de ossos, a espécie nativa emigrou, sumiu.
Nenhuma explicação plausível foi avançada p a ra o desaparecimento dos
abutres de capuz. Para os indígenas e fazendo eco à voz dos niangas e à
experiência dos anciãos, os abutres de capuz, p o r cordialidade aos prim os
desconhecidos, cederam espaço aos visitantes. E provável que os gentios,
na falta de melhor definição para a ausência dos abutres de capuz, tenham,
eufemísticamente, querido empregar cordialidade ao medo feito ausência.
Em termos de porte físico os abutres de capuz são uma espécie pequena,
se com parada com os demais. Com uma cauda curta, umas asas grandes
e adequadas à planagem, o abutre de capuz apresenta uma plumagem do
corpo de cor castanha escura e homogénea. A cabeça é sempre cor de rosa
e sem penas, destacando-se, p a ra a sua designação, um capuz acinzentado.
Os da montanha, com uma plumagem mais vigorosa, apresentavam-se com
maior compleição física. Estou em crer que em p eleja aberta, os de capuz
levariam a m elhor p o r se encontrarem bem adaptados ao calor e à
maleabilidade da savana. Mas o secular domínio da aparência fe z com que
os abutres da savana se apartassem dos primos das montanhas...

O que Chicuacha não soube, ao tempo da chegada dos necrófagos, foi


o facto de os abutres de ossos, por se apresentarem em plum ados até ao
pescoço, terem sido assumidos com o animais da zona dos brancos por se
assem elharem , no resguardo da pele, às sotainas de Chicuacha nos tempos
em que ostentava, no corpo averm elhado, os símbolos da sua ligação es­
piritual ao Deus branco. Os abutres só podiam vir das terras dos brancos,
diziam os populares. Só lá é que o corpo é coberto do pescoço aos pés como
o Chicuacha de sorriso inquieto nos tempos de risadas descontroladas dos
hom ens de Nhabezi. Eles vêm à busca do homem deles, diziam. É sinal
que os deuses brancos não adm item que um filho seu assum a a voz negra
dos espíritos ancestrais na cura das maleitas terrenas e na protecção espiritual.
Eles vêm mostrar aos confessos apoiantes de Nhabezi que os brancos não
querem um Gregódio feito Nhabezi. Eles vêm à busca não só dos ossos,
mas do espírito que se quer m pondoro. Eles são a negação dos esforços de
Chatula e da bênção do Nyazim bire.

119
CHO RIRO

A esforçarem -se por reter o espírito de Nhabezi, ele transformar-se-


-á num negozi que arrasará todos os que partilharam do sangue do branco.
Tocará na geração presente e futura daqueles que com ele colaboraram. Os
santuários da invocação serão arrasados por raios insatisfeitos com a pre­
tensão branca dc se instalar no panteão dos espíritos africanos. Cuidem-sc,
hom ens da corte, diziam, à socapa, aos bandázios, para que estes, nas mar­
gens pouco salientes das conversas dos maiores do reino, fizessem chegar
o sentim ento popular. Os bichos fariam chegar pelas bordas os dizeres do
povo acrescentando, como é norm a em correios desta natureza, outras in­
formações como a da doença de ossos que apoquentava N habezi, dizendo
que tal m aleita era o aviso dos espíritos brancos para Nhabezi se preocu­
par somente com as leis da terra e não dos espíritos. Pesada e m edida a in­
formação correria pela corte.
Às consortes a informação seria mais alarmante pelo facto de elas,
caso não interditassem a transm utação espiritual de N habezi, virem a
sofrer, na carne, com o negozi branco. Partilhariam o leito da sexualidade
com o espírito feito símio, leão ou leopardo. Em caso de recusa teriam
hienas com os aromas da putrefacção nas alcovas angustiadas. Salinda não
suportava as imagens que lhes chegavam pela voz dos bandázios. Em de­
sespero de causa vertia lágrimas aos ombros de Nfuca.
- N ã o aguento, Nfuca.
- Tens que ter calma, Salinda.
- N ã o posso. O que dizem não pode ser real!.. Já viste o que é partilhar
o meu leito com uma hiena?!...
- São histórias, Salinda. Por que não me contam tais histórias?
- Es a mais velha.
- Não. Eles sabem que é mentira.
- Então o que fazem os abutres da m ontanha na aringa?
- O N yazim bire já explicou.
- A creditas nele?
- Por quem foram curadas as tuas filhas?
- Por ele.
- Deixaste de acreditar nas palavras dele?
- Os rem édios não têm nada a ver com os m agôa, Nfuca!

120
Ungulani Ba K g Khosa

- Q uem te avisou da grave doença do teu pai ?


- Foi o Nyazim bire.
- N ão foi ele que também te inform ou da m orte dele?
- Foi.
- N ão acreditaste?
-A cred itei.
- A gora não acreditas nos valores dos ossos da adivinhação e das
ervas dos nyangas?
- Os tem pos estão com plicados para mim, Nfuca. N ão sou como tu.
Eu não aguento com as vozes do povo. As minhas filhas devem pensar que
estou a ficar maluca.
- Todas esperam de ti o exemplo. E o exem plo, Salinda, deve ser o
teu silêncio, a serenidade no rosto e no corpo. D eixa de tremer. Gregódio
gostava de ti.
- Eu sei.
- Onde tu estiveres terás sem pre o abraço do teu homem.
- Um abraço que virá da pata de um an im a l... D ispenso esse abraço.
- A s pessoas falam por imagens.
- São tantas que passam a ser reais, Nfuca.
- No teu imaginário.
- Es uma m ulher difícil, Nfuca.
- Sou como tu.
- Se fosses, há m uito que a aringa teria estremecido.
- Deixa de imaginar.
- E o que não consigo deixar de fazer.
Q uando a população queria, por vias não adm inistrativas, fazer
chegar inform ações à corte, utilizava Salinda. Dela sabia-se que a infor­
mação chegaria a N fuca. E esta depuraria, com o ninguém , as águas in­
quinadas. Já doente e sentindo os ossos a quebrarem como ram os mortos,
G regódio não deixou de ouvir a sua prim eira mulher. Na penum bra do
quarto real e ao longo da m aresia sexual, o diálogo foi sempre presente.
Nfuca fazia uso da lassidão do seu homem para lhe fazer chegar as inquietações
populares, am iúde expurgadas do novelo burocrático. A transm utação foi
tem a recorrente. E a posição dele foi das coisas m ais lím pidas que N fuca

121
CHO RIRO

ouviu em vida do homem.


- M etade da m inha vida adulta passei-a saboreando ideias que exclui
da minha mente. A outra, a mais feliz, é esta que se esvai. Mas quero mantê-la
para além do meu corpo. H á os que são lembrados pelos livros, outros pela
m em ória oral. Eu quero estar presente em todos os mom entos do m eu reino
e em todas as m em órias. M orrerei quando não m ais se souber que aqui
com eçou a terra de N habezi e aqui term inou o território a seu mando. Aí
será o fim da nossa história. Não mais teremos as nossas árvores, os nossos
animais, as nossas águas. Outros espíritos escreverão a sua história sobre
os escombros daquilo que um dia foi uma terra, um povo, uma história. Diz-
-me o Chatula que a noite da nossa decadência será rápida e avassaladora.
Não restará nada à superfície que fará lembrar que um dia os nossos homens
fabricaram armas e pólvora; a nossa memória será encaixotada em palavras
que não comportarão os anos da nossa glória. Os que mais mortes e guerras
provocarem serão os m ais lembrados. Fixa isso, Nfuca. O que Chicuacha
vai apontando não terá grande significado, porque é com um à alma humana
acordar, comer, dançar, dormir, viver e procriar. A diferença estará em um
branco ter bebido o sangue negro. O que quero, na verdade, Nfuca, é con­
tinuar a existir por estas terras por anos sem fim, como um a alm a protec­
tora.
Pela m anhã, os hom ens acordaram na com panhia dos abutres de
ossos. O bater de centenas de asas pôs em alvoroço a aringa. Todos ficaram
estupefactos com a presença de novos estranhos. A gora não eram homens
atravessando terras, mas anim ais de outras latitudes fazendo-se presente e
perscrutando m ovim entos humanos. N fuca recordaria sem pre esses m o­
mentos prim eiros quando Salinda entrava nas suas crises. D emovê-la das
im agens que abalavam a sua fértil e frágil mente era difícil, porque ela in­
corporava como ninguém os seus medos e alegrias. Ela era assim, diferente,
m uito diferente de N zinga, pouco sociável com outras consortes. Con­
tavam -se as vezes em que N zinga passara um a m anhã conversando com
outras mulheres de Nhabezi.
A relação de N zinga e N fuca tom ou-se fria e distante quando circu­
laram rum ores dizendo que Gregódio tinha Suna, escrava de Vena, como
um a das suas am ásias preferidas. Diziam que Nhabezi, quando liberto das

122
Ungulani B a K a Khosa

suas obrigações, partilhava, em orgia consentida, o mesm o leito com


N zinga e Suna. O suporte de tais rumores vinha do facto de N zinga pouco
se deslocar ao leito real. Em regra as consortes eram cham adas pelos
hom ens de Jili Ndoro, o responsável pelos bandázios, a deslocarem -se à
casa grande. Por essas noites N fuca saía da casa real. N o caso de Nzinga,
o que estranhava Nfuca, Gregódio deslocava-se, com m aior frequência, à
casa dela. Esses actos, como é óbvio, provocavam burburinhos na corte. E
N fuca não se sentia confortável com a presença silenciosa de N zinga e da
inseparável Suna. Achava que elas partilhavam um segredo que lhe fugia
das mãos. E isso irritava-a sobrem aneira. Se soubesse, pelo menos, pela
voz delas, que G regódio era dado a orgias, não se am uaria, pois o seu
hom em tinha a liberdade real de tudo fazer. Agora, ouvir por terceiros e de
gente da condição inferior na corte, era um ultraje à sua condição de
prim eira m ulher da realeza. O mais grave era o facto de Gregódio nunca
ter abordado tal matéria. Q ualquer tentativa em tocar tal assunto, Gregódio
csquivava-sc. Se verdade ou não, N fuca e outros da corte nunca puderam
provar que Suna fora, por anos, coadjuvante do leito nupcial de Nzinga. O
facilitador da união, o conhecido M ponda, jam ais desfez os nós da dúvida.
Chicuacha m antém -se fiel às práticas do confessionário: segredo. João
Alfai, o confidente de coisas banais, desposaria Suna, anos depois da morte
de Gregódio, sem nunca ter sabido da real verdade. O segredo manteve-se
inamovível.
Fora do tempo da doença e morte de Gregódio, os murmúrios da popu­
lação pouco chegavam à porta de Nzinga. Todos a respeitavam e temiam
por saberem orginária das terras soli, região afam ada pelos seus curandeiros
e feiticeiros. O trato com ela era com edido, discreto. Temiam que palavras
im próprias voltassem às suas bocas c invalidassem as línguas, tornando-os
m udos como m uitos dos que em terra Soli ousaram lançar im precações a
pessoas da classe régia. A fama soli acompanhou-a sempre. O seu ar recolhido
e o facto de sc ocupar pessoalm ente das m ezinhas para o filho, contribuiu
para a respeitabilidade entre amos e servos. A acrescer a isso, o amor diferen­
ciado dispensado a Adaliano por Gregódio era visto como mais um expediente
soli. Nyazimbire respeitava-a, e outros, querendo evitar conflitos, evitavam-na
o mais que podiam. N zinga não dava trocos. Alfa, homem que se dera ao

123
CHO RIRO

luxo de transpor a fronteira do medo e aproximar-se de Suna, tom ando-se


num amigo de coisas presentes e futuras, fora dos poucos a provocar gar­
galhadas na dupla.
N a verdade, as histórias em volta de N habezi não preocupavam
Nzinga. Ela sabia que o espírito dc N habezi não transtornaria a sua vida,
porque histórias de transm utação já ela as conhecia. O que a preocupava,
no meio da sucessão garantida, era o futuro do filho. Sabia que Lefasso,
no seu distanciam ento em relação ao poder e aos irmãos, não ia de amores
com Adaliano. A amizade entre Adaliano e Sejunga incomodava o herdeiro.
E isso vinha da infância nos nedarc, do aprendizado da adolescência em
gow eros e da sua assum ida inadaptabilidade à vida guerreira em que os
irm ãos bem se quadravam . O m undo de sonhos, da im aginação, estava
reservado aos velhos, aos sages da com unidade e não a um jo v em inadap-
tado, um indivíduo entregue ao fabrico de objectos de utilidade secundária.
Lefasso existia por ser filho m ais velho do rei. Em condições nor­
mais teria já sido entregue à prova de vida na caça grossa. Por isso, e com
a legitimidade de m ãe angustiada, a preocupação de N zinga em entender a
reacção de Lefasso quando entronizado era justa. Que atitudes tom aria o
novo rei para com os im iãos? A ceitá-los-ia com o conselheiros?... O
espírito de N habezi estaria à altura de travar a traiçoeira lança da inveja?...
O Lefassso das estrelas seria o mesm o quando o toucado do poder assen­
tasse na cabeça das decisões soberanas?... Interrogações suspensas...
Em tempos, Nhabezi confidenciara a M akula e N yazim bire que a ter
de escolher um sucessor, optaria por A daliano pela visão que este tinha
sobre a realidade das coisas circundantes. Achava Sejunga pessoa à altura
de o suceder, mas era muito ligado às tradições da terra. O olhar de Sejunga
não se abria ao horizonte de sangue que se aproximava. O reinado iria atravessar
outros tempos; novos exércitos de nativos m iscigenados se erguiam; a caça
aos escravos secundaria a procura do m arfim ; ingleses e portugueses
m ostravam m aior cobiça em relação à terra. Em tais condições só uma mão
hábil e diplomata poderia assegurar o reino. Sejunga é o presente. Adaliano
é o futuro. Lefasso é a tradição a ser cumprida, dizia Nhabezi.

124
Ungulani B a K a Khosa

.. .Das hipóteses colocadas sobre a proveniência dos abutres e a in­


tenção de acamparem, sem medo e vergonha - predicado com que a
natureza não os dotou —na aringa real, duas são as mais badaladas. Uns
dizem serem oriundos da terra dos brancos o que, a conhecerem
geografia, descartariam p o r se apresentar inimaginável em aves não quali­
ficadas a voos migratórios. Outros, poucos, mas mais comedidos no pen ­
samento, dizem provir das montanhas do norte, teiras que se levantam para
lá do ocaso. H ipótese mais provável.
Mas o mais intrigante é a posição de espera dos abutres, localmente
conhecidos p o r magôas. Não há ciência que explique tal ventura: abutres
de outros quadrantes em vigília a um corpo padecendo de uma doença
óssea. P or vezes e em não encontrando explicação plausível, senti-me in­
clinado a aceitar os argumentos de alguns curandeiros da corte. Diziam
que a obsessão de Lefasso em esculpir magôas fo i o acto prem onitório da
chegada dos abutres de ossos, sinal de que ele, Lefasso, era o herdeiro natu­
ral. Os que duvidavam da sua capacidade tinham agora os animais da sua
preferência, animais de latitudes longíquas a confirmá-lo.
Postergado p o r muitos, mãe inclusa, Lefasso leva uma vida de
reclusão com as suas esculturas em ferro e madeira. E um homem de corpo
magro, andar indeciso, olhar desmaiado, distante. Nas oficinas de Tyago
arruma-se sempre a um canto e põe-se a trabalhar em silêncio, distan-
ciando-se do som das bigornas, das marteladas no ferro em brasa, das ex­
plosões ocasionais da pólvora em experiência, das vozes dos messiris e
aprendizes e dos cantos dos pássaros sobre os ramos entrelaçados no
bosque da indústria militar e caseira. Não lhe conheci amigos e mulheres.
Agora que vai ser empossado terão que lhe arranjar esposas, porque rei
algum, p o r estas bandas, se acomete ao celibatarismo.
A dizer verdade, nunca fu i p elo diapasão dos demais: considerar
Lefasso uma palhota sem capim. Vejo-o, no mundo dos achicunda, como
uma peça que se quer modesta com os seus movimentos lentos e precisos,
e um olhar sobranceiro ao que em volta se passa. Acho-o uma torre no
tabuleiro do xadrez achicunda. P assos curtos, mas precisos. Tem
consciência do seu estatuto p rivileg ia d o , da sua nobre condição de
herdeiro. Em uma das várias conversas que tivemos ao longo dos tempos

125
CHORIRO

ter-me-ia dito, j á adulto e conhecedor do ofício de artesão, que as cores


da vida podem parecer o que não são. Por essas e outras, fui-m e
consciencializando que Lefasso m ostraria outra imagem quando rei...
...O Chatula não vai com a minha cara. E p ro vá vel que sinta re­
pulsa em me ver branco de nenhum poder espiolhando mundos que não
me dizem respeito, ou receio p o r achar que ainda domino os segredos dos
deuses brancos. Nunca nos falam os. Em minha presença fin ge que eu não
existo. Aliás, ao longo da minha estada p o r várias regiões do vale do Zam­
beze, os gagaistas nunca foram com a minha imagem, sobretudo com a so­
taina da minha iniciação missionária, pensando eles que nós, missionários
da conquista, ocultávamos nos panos os segredos da evangelização. Intri­
gava-os o dom de nos dirigirmos a multidões em cantos e preces a defun­
tos desconhecidos, de nos deslocarmos com a nossa árvore sagrada, feita
cruz de tamanhos vários, p o r tudo o que canto, de erguermos santuários
imersos em luz difusa e asfixiante. Éramos, p a ra eles, curandeiros ambu­
lantes, feiran tes de palavras m isteriosas embrulhadas em discursos en­
fadonhos a convertidos assumidamente palhaços nas genuflexões sem
sentido nos obscuros santuários da nossa fé. Para eles o contacto com os
espíritos fazia-se em grupos menores, sem vozes e cânticos que espan­
tassem o aparecimento de vozes além-tumulares. A f é coabita com o silên­
cio e não com a algazaiTada de vozes e a violência dos discursos.
- P or vontade dele estarias morto, dizia João Alfai.
- Já estou habituado a esses olhares de repulsa. O Chatula não me
assusta.
- Tem cuidado com o que bebes e comes.
- Esses tempos j á não voltam.
Mais que o medo ao feitiço dos raios que apareciam em dias limpos
e solarentos em casas e troços insuspeitos, matando inocentes, em razão de
intrigas e malquerenças, o meu receio fo ra sempre o envenenamento. Não
que não me espantasse com a morte p o r raios, febres inusitadas, diarreias
mortíferas, crocodilos em carreiros de mamíferos, abortos imprevisíveis,
mortes em andamento ou abutres em grasnidos do inferno. Sabia distan­
ciar-me desse mundo, invocando, para a minha protecção, os deuses brancos;
os santos dos evangelhos que espontaneamente vinham à boca quando a

126
Ungulani Ba K a Khosa

realidade se tornava ficção. Mas o veneno, a peçonha m isturada na


com ida, continuava sendo a minha grande fobia.
Nos anos ambulatórios, João Alfai fo i a minha tábua de salvação ao
se tornar, voluntariamente, no provador de serviço. Dizia, p a ra alegria da
minha consciência, que o veneno detectava-se na mão e no olhar de quem
servia. Expediente que não me impediu, p o r entre reservas morais, de con­
sultar gagaistas fam osos a me precaver desse mal terreno, bem à mão de
qualquer indígena. Mas o medo não me largava. Perseguia-me, torturava-
-me, assediava-me. Acampanhou-me durante anos, serenando quando me
estabeleci, em definitivo, nas terras de Nhabezi e larguei as samarras do
apostolado cristão. Por me acharem como um dos seus, a paranóia fo i-se
dissipando.
N a verdade, nunca fu i alvo de envenenamento. O medo instalou-se
com o que que fui dado a assistir p elo s pequenos e grandes reinos na
p rática do ordálio. Era doloroso ver inocentes sucumbindo ao veneno que
os niangas preparavam pa ra as sentenças dos tribunais populares. Jmagi-
nava-me com essas doses de m alícia feita s veneno no meu prato. Não
suportaria as dores. Lembro-me de um jo vem caçador que, submetido ao
ordálio, passou quarenta e oito horas de agonia, vendo perfurações a
irromperem do estômago, expelindo, em silvos de víboras em agonia, líqui­
dos verdes e castanhos e negros. Dizia, p a ra o seu consolo, que era
inocente, mas que ninguém o tirava do tormento causado p e la suspeita de
um feitiço que paralisou os membros inferiores de um vizinho metidiço na
sua vida de caçador sem visibilidade social que a sorte que o acompanhava
nas armadilhas que fazia. Culpados e inocentes sucumbiam ao veneno
institucionalizado e caseiro - o mais torpe, p o r ser traiçoeiro, cobarde.
A vida estava sempre presa p o r um fio. Os curandeiros não tinham
mãos a medir. O facto de ser branco não me ilhava de todo do olhar
traiçoeiro e invejoso dos que me rodeavam, apesar da aceitação dos médiuns
locais. Na verdade, sentia-me mais à vontade nas terras de Gregódio que
em outro lugar do sertão zambeziano.
- É sempre bom que te habitues aos silêncios das árvores dos nossos
espíritos, dizia, com frequência, Nyazimbire.
- Tenho os meus santos em consciência, Nyazimbire.

127
C1I0R 1R 0

- Ainda bem. Porque aqui e com o Gregódio presente, não terás


espaço p a ra os teus santuários.
- Estou como cidadão e amigo.
- Terás a p a z dos espíritos.
- Assim espero, dizia, evitando conflitos e desembaraçando-me, a
meu modo, das pequenas invejas e intrigas de costume.
Com a chegada de Chatula os olhares de desconfiança, o desprezo
p ela minha presença foram -se tornando notórios. Chatula não abria a boca
em minha presença. D izia que os macomas não teriam efeito se a minha
presença fo sse constante, porque carregava os espíritos brancos há muito
expulsos do corpo de Gregódio. Eu não estava limpo. Para ele eu era um
lazarento. Tinha, p elo corpo, pústulas infecciosas. Nyazimbire tratava de
me reconfortar, dizendo que Chatula não eslava habituado a conviver, em
tecto da mesma cor, com brancos decifrando enigmas indígenas. Estou
acostumado, dizia para me tonificar do olhar de serpente venenosa que
Chatula injectava em minha presença. Nunca tivemos conversa, aliás,
Chatula não era pessoa de conversa. Acordava com a cacimba ainda a co­
brir a m adrugada em despedida, e saia da aringa. P assava horas na
floresta e depois dirigia-se à beira do rio onde usava colares de missangas,
cintos de peles e penachos de aves espetados nos cabelos gaforinas. Com
os p é s mergulhados no rio, balançava com a mão direita a cauda de
hipopótamo em direcção à foz, enquanto lançava pequenos p ó s à água,
murmurando coisas que ninguém entendia, porque pou cos se atreviam
acercar-se da zona em que Chatula se acom odava durante horas. Os mais
atrevidos diziam que Chatula devolvia ao rio os sinais da presença do es­
pírito branco em Gregódio. A tarde e à noite, em duas sessões semanais,
Chatula submetia Gregódio a actos exorcistas. Nyazimbire segredou-me
que Chatula em transe f alava numa língua estranha, que pronunciada a
palavra ocorreu-me, de imediato, o flamengo, língua distante e indecifrável
ao português comum. É provável que Gregódio tivesse ascendentes flamen­
gos, j á que em pátrias de navegadores os cruzamentos eram habituais. O que
me estranhava nessa misteriosa ascendência era o facto de Gregódio nunca
ter-se dado bem com o mar e os barcos. Aturava os rios p o r os achar mais
piedosos com os homens quando as canoas se abarloavam ; j á o mar,

128
Ungulani B a K a Khosa

quando acometido pelas suas fúrias, era implacável. O céu escurecia; as


águas, negras e revoltas, cobriam-se de espuma branca, nervosa. As naus,
em tossidelas de tuberculosos terminais, zuniam, com a fé ria do vento, nas
enxárcias e gáveas. O m ar invadia a ponte e escorria para as bandas a es­
tibordo ou bombordo, dependendo do vento, em elevado grau de inclinação
às águas revoltas, p a ra o desespero dos homens sem rumo na mente e no
corpo. Depois a nau equilibrava-se. Os tripulantes respiravam, aliviados.
Mas de repente e sem se fazer esperar, em ergia a barlavento uma vaga
altíssima, coroada de espuma branca, dando-se à nau em borbotões con­
tínuos; esta, estrondeando, desequilibrava-se toda. O mastro do traquete
com a sua verga desapareciam. A cevadeira e o castelo de proa desfaziam-
s e ; um relâmpago iluminava as trevas: com mãos no ar, de joelhos, deita­
dos, os tripulantes oravam a Deus, pedindo misericórdia, entre gritos e
choros e pouco tino. Os que não se seguravam às cordas, aos pedaços de
gurupés, aos escovéns ou a outros objectos e locais mais firmes ao vento e
às lâminas de água, desapareciam nas escuras águas, feriam -se, ou
estoiravam as cabeças contra as amuradas, ou ao cabrestante, borrando
momentaneamente de tinto as enxárcias, os cabos e as gáveas atassalhadas.
Quando o mar não se revoltava era a doença atacando pessoas. Em
mais de quatrocentos passageiros, trezentos caiam enfermos. Febres altas
punham em delírio os passageiros, levando alguns a quererem atirar-se às
águas. Centenas de sangrias eram levadas a cabo. Vozes de lástima faziam-se
ouvir por todos os cantos. Os que não suportavam a dor e a sede confessavam
os seus hórridos pecados em alta voz, levando os padres a silenciá-los com a
mão, dizendo-lhes que esperassem p o r um confessionário, porque Deus
não cuidava de confidências públicas. M orria um na proa, outro nos con­
véns, havendo p o r dia três a cinco óbitos. E o mar, calmo, sereno, a
obsem á-los a sucumbir às suas próprias doenças.
N ão p o d ia com o mar, o Gregódio. Achava-o traiçoeiro, perverso.
Preferia a terra com os seus sinais sempre à mão. O jo g o era outro.
- Se há algum lugar p a ra os demónios é no mar, dizia quando recor­
dava as aventuras marítimas, esquecendo-se que a floresta era tão malvada
e traiçoeira como o mar quando os pontos cardeais se desconexavam. Ao
recordá-lo dos embustes que asflorestas e savanas nos reservavam, ele retorquia

129
CHO RIRO

com o saber simples e inquestionável de pessoas comuns: - respiramos o mesmo


ar. A sobrevivência é maior à infinidade do mar.
Gostava, de facto, do ar das terras interiores. Gostava de nelas se
emboscar, afastando lianas e arbustos, torneando covis de cobras, obser­
vando a direcção de leões e elefantes e leopardos pelas pegadas frescas e
antigas, erguendo arm adilhas e desfrutando a beleza dos búfalos em
retumbantes trotes p ela savana aberta, afastando da terra tremente gazelas
e zebras em saltos e cavalgadas normais, longe dos gargalhos ame­
drontados das hienas trotando em direcção a bosques cerrados. A natureza
cantava e brilhava, levando os demónios a não se fazerem à superfície,
entregue aos harmónicos acordes de séculos.
Nos anos de maturidade régia, Gregódio gostava de subir as es­
cadas de paus e encostar-se aos troncos da paliçada, observando o so l a
cair na infinitude do verde a perder-se de vista e os pássaros, em árias de
despedida, submergindo p o r entre a densa folhagem. D e longe, ouviam-se
os batuques das suas aldeias, saudando a noite que entrava com o ruidoso
trissar de morcegos à busca de alimentos. Os hipópotamos saiam das águas
em direcção ao pasto, grunhindo como porcos pré-históricos; os leões des­
pertavam das prolongadas e preguiçosas sestas; os leopardos punham-se
de atalaia; as gazelas, de orelhas atentas, saltitavam em pequenos grupos.
A noite entrava com o brilho dos pirilam pos, o restolhar das folhas secas,
os rugidos de leões, e o espaçado e cavo miar dos leopardos. Ninguém me
tira deste mundo, dizia, com o espontâneo e profundo sorriso que salien­
tava as rugas no rosto machucado p ela idade ep elo s infortúnios da caça
aos elefantes. Não pedia muito à vida. Contentava-se com a estabilidade
do reino e a fidelidade dos homens que foram, com o tempo, ganhando
personalidade própria na língua e na invocação aos espíritos ancestrais
através dos seus swequiros, versão africana dos padres europeus.
Agora que a noite última do velório dava entrada, mais de mil achi-
cunda representando os cerca de quatro mil escravos guerreiros encon­
travam-se na corte, disciplinarmente distribuídos pelas áreas de jurisdição
sob o comando dos respectivos sachicundas, lugar-tenentes do muana-
mambo Makula Ganunga. Durante a manhã e tarde das vésperas, Makula
f o i recebendo os achicundas em encontros precedidos da cuquenga,

130
Ungulani B a K a Khosa

habitual saudação m ilitar achicunda sem elhante à continência dos


regimentos portugueses. Apresentavam-se diferentes ao tempo da minha
chegada. Muitos dos achicunda preteriram a habitual pele à volta da cin­
tura, preferindo calções de ganga, muito em voga nos canoeiros, classe
que fa zia chegar a moda ao interior profundo. D a imagem tipo do escravo
guerreiro ficaram as plumas no cabelo em desalinho, os colares com dentes
de leão e leopardo, as pulseiras de cobre e os macaju, escarificaçÕes no
rosto e no peito, como sinal identitário. As gogodas, armas de fabrico local,
eram de uso corrente nos achicundas, ficando as espingardas de pederneira
ao alcance dos sachicundas e poucos mais.
D eles retenho sempre o Sebastiane, jovem sachicunda que serviu de
guia nos meus prim eiros momentos em terras de Gregódio. Jovem
dinâmico, muito dado a curiosidades linguísticas, Sebastiane contava
agora com quarenta e dois anos de idade. Há mais de sete anos que con­
trola militarmente as zonas fronteiriças próxim as (em três dias de marcha)
ao entreposto de Zumbo.
Pressentindo ventos infaustos, Gregódio pediu-m e que passasse
algumas temporadas na região. Sabia que eu podia perscrutar com maior
agudeza o p a lp ita r da região muito aberta ao fluxo de comerciantes,
caçadores, vigaristas e outra fauna característica da vida mercantil. Outro
fa cto não revelado publicam ente era a desconfiança que Gregódio
sustentava pelo Sebastiane depois de ele se casar com uma m estiça de
origem incerta, p o r a mãe não p o d er reconhecer o p a i entre os vários
caçadores com que se amancebara. Esta humilde e desconhecida origem
da consorte de Sebastiane não demoveu da cabeça de Nhabezi o pressen­
timento de o seu sachicunda o p o d er trair com os brancos e canarins. Se
hoje se amanceba com uma patrícia, recusando mulheres cafres, é sinal de
que o espírito branco vai entrar com muita facilidade na cabeça do moço,
confidenciava-me.
- Temo que ele seja abocanhado pelos interesses egoístas dos caçadores
àprocura de terras. Só tu, Chicuacha, é que me podes dar um relatório detalhado
das actividades desse rapaz que sempre se revelou teu admirador. Vai, demora
o tempo que puderes, mas dá-me conta do que p o r lá se passa.
Assim se foi cimentando a minha amizade com Sebastiane, homem que

131
CHORJRO

viria a revelar-se de grande valor na conservação das fronteiras a sul do


reino. Terá sido ele, porventura, a persuadir os homens de avanço de José
Rosário de Andrade, indivíduo que viria a ser conhecido p o r Kanyemba, a
estabelecerem-se na margem sul do rio Zambeze, evitando, assim, conflitos
com o Gregódio. Convencera-os que a terra dos bcnva era mais generosa em
caça. Verdade ou não, Kanyemba instalou-se com os sem homens na margem
sul do Zambeze e a semanas e semanas de distância das tetras de Gregódio.
Dos relatórios que fiz chegar a Nhabezi, dava-lhe conta da determi­
nação de José Rosário em se tom ar num grande senhor de terras e homens.
D izia-lhe que o homem pouco respeitava as tradições locais, mercê do
grande contingente de achicunda que trouxera de Tete. Gregódio não o
p ô d e conhecer em pessoa. Já Mataquenha pudera p riva r com ele, meses
antes da sua morte. Revelara-se-lhe um homem astuto e perigoso naque­
las fa la s mansas, cheias de boas intenções p a ra com a filha. Queria
instalar-se na margem norte do Zambeze e em terras fronteiriças às suas.
Negociava com os reinos locais que se mostravam, p a ra época, segundo
Gregódio, bastante indulgentes com os comerciantes e caçadores dados
a patifarias.
D epois da audiência com Makula Ganunga, Sebastiane dirigiu-se à
minha casa. Eu estava com Fita, minha prim eira mulher e mãe dos meus
quatro rapazes. Com as outras, Sirana e Mulira, tive três raparigas. Fita
recebeu-o como um conhecido chegado à família. Porpuritanism o ou não,
eu não conseguia ver as minhas mulheres de seios desnudados. Persuadi-as,
sempre, a colocarem, em volta dos seios, panos que desciam ao umbigo
tatuado. Com o tempo a moda fo i pegando. Muitas das mulheres da corte
foram cobrindo os seios, mais p o r ostentação dos panos que p o r pudor.
- O sol não te saúda, Sebastiane, cumprimentei-o, abrindo os meus
braços ao encontro das suas costas.
- A s nuvens estão de luto, Chicuacha. Mas lá para as minhas terras o sol
brilhava à minha saída. E sinal de que o dia e a noite suceder-se-ão sempre.
- Tens razão, respondi, puxando-o pelo braço em direcção à cadeira
de m adeira encostada a uma das paredes onde emergia a cabeça de uma
impala embalsamada
- Senta-te, Sebastiane.

132
Ungulani B a K a Khosa

- Obrigado. Como vai, mama Fita?


- Bem. E os miúdos, lá?
- Estão crescendo com saúde.
- E bom, assentiu, afastando-se da sala. Desde que a conhecera, Fita
nunca tomava dianteira no diálogo. Agarrada de miúda aos serviços auxiliares
da mubala Sertina, sua irmã mais velha, Fita tomara-se, em consequência
dos silêncios prolongados nas preces à chuva, uma mulher calada, mas de
sorriso constante nos lábios carnudos. A pesar da idade, trinta anos, os
seios mantinham-se firm es na sedutora inclinação em arco a terminar em
duas protuberâncias fe ita s sementes. M ostrava-se jo vem no rosto com
dentes a desnudarem-se, branquinhos, p o r tudo e nada. N a verdade gosto
dela. Sempre gostei dela. Fora os assaltos nocturnos a que estivera sujeito
na aringa da D ona Josefina, a minha verdadeira iniciação sexual f o i com
ela. Com ela aprendi a navegar nas águas da sexualidade. A loucura e o
arrebatameno da minha iniciação com as mulheres do serralho da Josefina,
deram lugar à navegação tranquila pelos labirintos do prazer. As três, Fita,
Sirana e Mulira, form avam a minha trindade sexual.
- As coisas não andam bem, Chicuacha.
- Com a doença do Nhabezi o tempo parou p a ra nós.
~ As forças de Kanyemba j á se fazem sentir na rota de Zumbo a Tete.
- As ambições desse homem não param.
- Estamos a entrar numa nova era. Kanyemba não é brincadeira,
Chicuacha.
- A p a z está em perigo ?...
- Com o aumento da procura de escravos, a paz será uma ilusão,
Chicuacha. O Kanyemba está a armar-se até aos dentes. Com uma mão
acaricia os portugueses, com outra esbofetea-os. E os dois fingem enten­
derem-se. Todos querem controlar estas terras. O número de soldados p o r­
tugueses no Zumbo está a aumentar.
- Lefasso terá muito trabalho.
- Não sei se vai aguentar, Chicuacha. Ele terá estes novos reinos a
erguerem-se à sua volta e os portugueses a subirem, com mais tropas, p elo
Zambeze.
- Adeus à paz.

133
CHORTRO

- Seremos um sonho.
- O sonho do Nhabezi feito espírito.
- E de proteger ninguém. Iremos desaparecer, Chicuacha.
- Estás a ser pessimista.
- E a realidade.
- Em exagero, Sebastiane...
- E o que assisto... Já não existem pesso a s como o Nhabezi,
Chicuacha. O Lobo que p o r aqui anda é outra história: lá está em namoros
com uma das filhas de Kanyemba. Aqui é a filh a do Nhabezi...
- O que sugeriste ao Makula?
- Que nos uníssemos mais aos chefes ansengas, bisas, solis, e outros.
A fo rça que vem do mar vai arrasar connosco.
- S ó trazes mais nuvens negras. Fita!...
-E sto u ...
- Manda alguém buscar as coisas do Sebastiane. Ele ficará connosco.
- Está certo.
A noite havia entrado. Pela aringa os achicundas davam -se as
danças de costume: o malombo, o mafue e a goteca. Em grupos de dez a
quinze, e com um coro a afinar-se mais pelo timbre que pela letra em constante
improvisação, entregavam-se às danças guerreiras. Alinhados em Jilas de
três a cinco guerreiros, os achicunda ritmavam os passos ao som dos
chocalhos a agitarem -se nos tornozelos. Outros, sob o comando directo
dos sachicundas preparavam as gogodas p a ra as salvas em honra do
finado. E em outras fogueiras, contando e ouvindo histórias, o vulgo velava,
p ela última noite, o Nhabezi, o branco Gregódio, como os mais velhos
diziam...

A contrastar com a prática habitual, os magôas não se desgrudaram


das paliçadas da aringa na noite últim a do velório. Com olhos fixos em
nenhures os abutres velavam, a seu modo, Nhabezi. A noite haveria dc ser
lem brada por dezenas e dezenas de anos como a noite do grande adeus ao
N eguô, o grande pai, a entidade suprem a dos achicundas, o hom em que
traçou as fronteiras da identidade achicunda em terras ansengas.

134
Ungulani Ba K a Khosa

Em volta das dezenas de fogueiras, a incerteza do futuro pairava


como um enigma. Temiam pelos novos senhores que já se faziam ao sertão:
Receavam pelo que anotavam as dezenas de exploradores ingleses que sc
expunham ao gentio com cadernos e com passos e outros instrum entos
gcodcsicos. Dos do sul, dos que se expressavam em portuguesa língua,
sabiam -nos presentes na força das armas, na gula em abocanhar escravos,
nos casam entos mistos, no interminável rasto de mestiços a margearem o
Zam beze como bandeiras dos novos tem pos, nos dialectos a em ergirem
desordenadam ente em bolsas distintas da baixa e alta Zam bézia e na in­
dependência de m uitos à suscrania portuguesa. O álcool, a pólvora, o
sabão, os espelhos, os panos, as missangas eram m ercadorias a circularem
pelo Zam beze em pele branca, canarim, patrícia e preta. O sul era a pólvora
inalada há séculos, a m iscigenação feita de carências e o poder alcançado
no sexo, na bala e no respeito aos costumes. Assim se assum ia o Zam beze
da descoberta: colorido, conflituoso, alegre, triste. Já do norte, e seguindo
a rota de David Livingstone, vinham exploradores que pouco se preocu­
pavam com armas e exércitos. Distanciavam -se das mulheres, condenavam
o tráfico de escravos e procuravam uma amizade desinteressada no olhar in­
génuo dos reis indígenas. Que queriam com as tábuas e ferros e cilindros
que traziam às costas? N inguém sabia, m as interrogavam -se sobre a
constante presença de falantes dessa língua áspera, nasalada, e bem
diferente do português miscigenado nos diferentes dialectos que emergiam
nas aringas dos senhores. Estou inclinado a dar razão ao Sebastiane: as
mudanças virão quanto menos esperarmos. Não se sabe se com a mão dos
novos brancos vindos do norte, se dos j á conhecidos do sul. A ganharem
os portugueses a memória destes reinos, os feitos de Nhabezi, esfarelar-
-se-ão nos desígnios do império do Aquém e Além-mar. O Nhabezi não p a ­
ssará de um assassino, um trânsfuga, um traidor à coroa portuguesa. E eu
que teço estas linhas serei indigno à f é cristã p o r assum ir práticas
supersticiosas bastante perniciosas à educação cristã. Como apóstata
serei preso e desterrado para que não sirva de exemplo aos novos cristãos.
A cair nas mãos dos desconhecidos ingleses que se vêm pautando
p o r um distanciamento respeitoso aos usos e costumes indígenas, o nosso
destino será diferente, talvez. Frederick Selous, explorador inglês de larga

135
CHO RIRO

vista, disse-me, não com a alm a sofrida de um p a sto r de Deus como


Livingstone, mas com a veemência de um súbdito da coroa, nas ocasiões
de conversa que tivemos, que a escravatura alimentada pelos portugueses
era condenada pela coroa da sua rainha Vitória e que reinos que não pra-
-ticassem tais bárbaros costumes não sofreriam represálias das tropas da
coroa que j á se faziam presentes nas águas do Indico e em terras que não
só a Africa do Sul. A entenderem-se, dizia, e a respeitarem os princípios
anties cr avistas da coroa britânica, o reino de Gregódio manteria, sob a
bandeira britânica, as fronteiras ambicionadas pelos senhores de guerra
que vinham armando-se, como José Rosário de Andrade, o conhecido
Kanyemba que Frederick disse ter conhecido e achado um facínora. Que
Gregódio se mantenha distante desse ignominioso negócio, rematou.
Homem probo, brando no trato com os indígenas, mas diplom ata e come­
dido no trato directo com os escravocratas, Frederick estava acim a de
qualquer suspeita...
... Algo me diz que a morte de Gregódio será o enterro de um sonho
feito de interpenetrações de valores. As ilhas humanas que no meio do
sangue e do ódio fizeram prevalecer a harmonia aos desacatos, o amor ao
ódio, à disciplina à anarquia, serão ceifados com o advento de forças que
se querem à dimensão continental. O futuro não estará nos torrões que se
irmanam dos ancestrais costumes. O futuro estará nos fuzis dos europeus.
Gregódio sonhou com o marfim, viveu do marfim e morreu com o marfim.
Que Deus o salve!...Ou que os espíritos o recebam como um dos seus...
Com o andar dos anos as manadas de elefantes não se farão, às
centenas, aos vastos e verdes pastos e os espaços de caça ressentir-se-ão
da ausência desses imponentes e garbosos animais que Africa prenda aos
incrédulos e gulosos olhares dos europeus. O barrir das manadas não se
fará ouvir com o vigor de sécidos na Uberdade sitiada. Não haverá mais
caçadores de elefantes. Não se com prarão mais presas de elefantes. Os
carregadores passarão a oferecer os ociosos músculos às machilas em
crescendo nas vilas. Os achicunda, em ausência do oficio das suas vidas,
sofrerão a humilhação de deitar mãos à terra da lavoura. Os rituais à caça
de elefantes ficarão na lembrança dos nedare de ocasião. Os achicunda
serão uma miragem deles próprios. Os velhos, os tessanculos da tradição,

136
Ungulani Ba Ka Khosa

lembrarão, com vozes esganadas p e la emoção, os verdadeiros cantos em


louvor aos achicunda de outrora:
«Disparei contra o elefant&Ei-lo na margem do rio/Disparei contra
ele, aí vêm os abutres/Disparei contra o homem, ei-lo ali/Disparei contra
ele/Ei-lo na margem do ric/Destrocei o mundo/Aí vêm os abutres».
O reino de Gregódio deixará de ter contornos exactos nos mapas da
dominação efectiva. Os achicunda envergonhar-se-ão dos macajú da iden­
tificação. Os filhos afastar-se-ão das escarificações da adolescência. Os
messiri verão as oficinas destruídas e o mercado proibido. Será crime lem­
brar que os pretos fabricaram pólvora e armas em terras do interior pro­
fundo. Os espíritos, a existirem, definharão na memória de gerações que
desbravarão sem medo e a mando de outros reis, os bosques sagrados, à
procura de outras riquezas. Os mapas da memória perderão a cor e o vigor
de outrora. N a verdade, seremos o sonho de nós mesmos...

A ntes de o corpo descer à terra, num gesto frequente entre os achi­


cunda, M akula G anunga deu a palavra ao velho Kamwa, pessoa mais idosa
das terras de Gregódio. Fora dos prim eiros colonos, term o que ao tempo,
século dezanove e precedentes, designava o cam ponês livre a trabalhar em
terras aforadas, doadas ou conquistadas, a aceitar pagar o mussoco, renda
anual que os cam poneses pagavam cm trabalho ou géneros às entidades
das sua jurisdição, ante a generalizada dúvida dos camponeses não acultura-
dos ao modus vivendi dos achicunda em aceitar a m ão dom inadora do
branco que casara com N fuca e se estabelecera, em definitivo, em terras
doadas pelo rei, em consequência dos serviços prestados por ele e seus
homens armados.Tanto se me dá entregar a este ou aquele os alqueires a que
sou obrigado a fornecer das terras da m inha substistência, dizia aos que
queriam m igrar para outros espaços agrícolas por não quererem estar à
som bra do branco que se m ostrava generoso aos colonos.
- As árvores de longe parecem mato denso, m as se chegares perto, en­
contra-as dispersas, diziam os renitentes à mão am iga de Gregódio.
- Deixem que o vento sopre para verm os o cu da galinha, ripostava
Kamwa. E assim ficou e envelheceu cm terras de G regódio, assum indo,
com o tempo, o papel de conselheiro no restrito círculo dos homens mais

137
CHO RIRO

chegados a Gregódio. Viveneiou os bons e maus tempos de Nhabezi, aceitando-o


sem pre com o um dos seus, apesar de m uitos o acharem frágil no corpo pri­
vado da dura e protectora pele negra. M as Gregódio revelou-se hom em de
têmpera, ao resistir às frequentes enferm idades que grassavam no interior
das terras do alto Zambeze.
Por se apresentar, na altura, como a pessoa mais voluntariosa, Kamwa
foi assum indo posições de guia nas frequentes incursões de G regódio à
caça de elefantes. Sem ser necum balum e, K am w a foi-se inteirando e aju­
dando os homens a m ontarem arm adilhas, a assisti-los a desferir golpes
mortais nos tendões dos elefantes, a arremessarem lanças entre as espáduas
dos paquiderm es, a distraírem as m anadas com cães drogados com lupata
e a esquartejarem a carne segundo procedim entos que só os necum balum es
conheciam. Sem ser submetido aos macajús, ritual de identificação, Kamwa
foi aceite nos círculos dos nedare e goweros como um homem com histórias
para contar. Tom ou-se confidente de N fuca e das poucas pessoas a que
Gregódio prestara atenção, como rei, em assuntos domésticos.
N a manhã do enterro e para o espanto de todos, a aringa acordou sem
a presença dos abutres de ossos. O topo das paliçadas apresentara-se sem
a presença das aves que prestaram , durante semanas, vigília à doença de
Nhabezi e ao luto que se instalou. Sem alaridos de partida, as aves arribaram,
deixando os presentes intrigados. Preocupado com o discurso fúnebre,
Kamwa não se deu conta da partida das aves até ao m om ento em que um
neto o despertou das inquietações dos discursos em preparação. Os magôas
desapareceram , vovó.
- Onde canta a água do rio, o rio é profundo, disse, sem muito pensar.
E o dito circulou com a rapidez de um raio pela população em
preparação para o enterro, animando os cânticos de louvor a Nhabezi, pois
onde canta a água do rio, é sinal de alegria e fartura, porque o peixe abunda.
Em respeito à cerimónia, os achicunda envergaram peles em volta da
cintura, colocaram colares de missangas e de dentes de leão e leopardo à
volta do pescoço, dependuraram, como de costume, as cabaças da sede e
dos remédios à cinta, carregararam com pólvora as gogodas, e postaram-se
em sentido ao longo do corredor principal da aringa que desem bocava num
pequeno bosque de árvores e arbustos onde os swequiros prestavam culto

138
Ungulam B a K a Khosa

aos antepassados e realizavam cerim ónias alusivas à caça, à chuva, e à


fertilidade da terra. Ao lado, e não menos distante, estava outro bosque onde
os achicundas, em tempos prim eiros da fixação, prestavam cultos aos es­
píritos locais através dos mubalas. Com os seus próprios cultos, os achi­
cundas não deixaram de respeitar e reverenciar os cultos locais. Gregódio
haveria de ser enterrado entre as duas matas.
Por detrás das duas longas filas dos achicunda, a população esperava
pelo ferétro que sairia da casa grande em mãos fam iliares e dos maiores do
reino. Era visível nos presentes o espanto e o alívio pelo desaparecim ento
dos abutres. As pessoas apresentavam -se mais sorridentes e vivazes. O de­
saparecimento dos abutres acalentava-lhes esperanças. Chatula recebeu a notí­
cia com um alívio bem dissimulado na catadura de pedra que ostentava às
pessoas. Libertara-se do tem or de os ver a m anterem -se na aringa, sem
saber que artim anhas usaria do seu alforge de justificações. N yazim bire
sorriu de alegria, pois o discurso que fizera aquando da chegada dos
necrófagos coincidiria com o que faria, em dias subsequentes ao
enterro, dizendo que as aves aceitaram que o espírito de N habezi se
estabelecesse, por todo o sempre em terras suas. Lefasso sentiu um pequeno
aperto no coração por se achar órfão dos animais da sua estimação, pois
era pensamento seu que eles assistiriam à sua entronização como rei, e aba­
nariam as asas enquanto grasnavam de satisfação em vê-lo com o o ver­
dadeiro suserano das terras que Gregódio erguera. Chiponda, mussambadezi
de respeito, não se mostrou espantado com a saída dos abutres porque nunca
dera importância à existência dos mesmos, movido, talvez, pelas suas ausên­
cias na corte e distante dos falatórios da ociosidade. Preocupado com o ele­
vado número de facínoras que se faziam às estradas e aos rios, assaltando e
matando m ussam badezis incautos, Chiponda encarou sempre os abutres
como um pequeno mal entendido da natureza que o tempo se encarregaria de
recolocar nos carris. Visão que Adaliano adoptara, mas que a mãe teimava em
encarar como um prenúncio de má governação de Lefasso.
- N ã o te preocupes mãe. Esses abutres desaparecerão como vieram.
- Achas que é por acaso que o Lefasso anda a esculpir magôas?
- É para m atar a solidão, mãe.
- Temos que ter cuidado, filho.

139
CHORIRO

- Os espíritos soli c os da tua mãe, estarão ausentes?


- A p e l e deve estar sempre esticada, Adaliano.
- N ão vejo buracos nos meus sonhos.
- Podem estar cobertos de capim.
- O vento irá desnudá-los.
- Vai-te fiando.
A notícia alegrou sobrem aneira Adaliano. Estava ao lado da m ãe e a
com itiva calcorreava já a larga alam eda margeada de árvores de porte fron­
doso, quando se lhe dirigiu, dizendo, em tom jocoso, que os abutres foram-se
com os seus cheiros, ao que ela, nada tranquila, ripostou dizendo que o las­
tro da maldade se enraizara na terra com o estrume fedorento das fezes dos
abutres, Afasta esses pensamentos, mãe!, disse Adaliano, abanando a cabeça
em sinal exorcista. Chegado de fresco estava Sejunga, cam inhando do lado
esquerdo da mãe, que à direita tinha Lefasso, na dianteira da comitiva. Se­
junga havia entrado de m adrugada na aringa e encontrara todos de vigília
na casa grande de Nhabezi. N ão tivera oportunidade de confidenciar com
a mãe que m uito se esforçara em o ter ao lado, perguntando-lhe pela caça,
mais com o intuito de o observar e o sentir vivo, pois era crença que em
morte de reis ou outros ilustres dignatários, a m orte fazia-se presente junto
aos mais chegados sem outra explicação aceitável ao comum dos m ortais
que não a ira, a recusa do defunto em deixar o mundo dos vivos entregue
aos prazeres dos que lhe eram m ais queridos, prolongando, assim, de forma
aviltante, o luto entre os seus. N fuca sabia que tal não sucederia ao filho
Sejunga, por Gregódio não ter entranhado, em vida, a desm esurada avidez
pelo poder nas suas formas m ateriais, invejosas, mesquinhas. Os bens de
prestígio que tanta inveja e luta geravam nas cortes, Gregódio soube, com
m odéstia, apartar dos seus esse aviltante cancro. M as saber que o filho
gozava de saúde era fundamental, pois o destino trocava m uitas das vezes
a cor das folhas. Sejunga m ostrava-se tranquilo na m archa fúnebre, em
parte devido à partida dos abutres que lhe apoquentaram o espírito, por os
achar sempre de m au agoiro à futura governação de Lefasso. Tinha para si,
e recusava-se a partilhar esse sentim ento com outros p o r tem er o apodo
am bicioso, que os abutres, animais de estim a de Lefasso, vieram, com a
funesta encenação, avisar que a sucessão em respeito ao direito fundado

140
Ungulani B a K a Khosa

nos atávicos costum es não devia ser seguida por Lefasso não se apresentar
em perfeitas condições de sanidade mental ao m ais elevado cargo do reino,
pelo que Gregódio teria que ser sucedido por pessoa à altura aos tempos que
se avizinhavam . Na sua mente não via outro senão o com panheiro dos
nedare e goweros, o irmão Adaliano, filho de N zinga, terceira m ulher de
G regódio, hom em habilitado no trato com estrangeiros. Sabia, pela per­
sistência de N yazim bire no direito consuetudinário, que a sua aposta não
vingaria nos próxim os tempos. A acontecer qualquer levante, o espírito de
Nhabezi rcvoltar-se-ia contra os vivos, imprecando-os de males tão funestos
que só a terceira geração os poderia aquietar com actos exorcizantes de
curandeiros da velha estirpe e não com niangas de plantas sucedâneas aos
que os ancestrais utilizavam nas mezinhas da cura. Teria que encontrar outros
aliados à altura de convencer Nyazim bire da inadaptabilidade de Lefasso
aos assuntos de poder. Sabia que podia contar com M akula Ganunga, pois
era homem de campo, caçador experimentado, guerreiro de incontestáveis
pelejas, pessoa averssa às puerilidades de Lefassso. Podia contar com ele e
com os achicunda, e com os necum balum es, porque N kam bam ula estaria
sem pre ao seu lado, em solidariedade a um poder m ais forte. Chiponda,
homem de peso diplomático, não sc oporia, pois tratar-se-ia de colocar o seu
delfim Adaliano nos destinos do reino. O senão estava em N yazim bire e
na capacidade deste em negociar com o espírito de Nhabezi. A acontecer a
transm utação, o poder de N yazim bire sairia fortificado, porque não se
negociaria com um espírito simples e linhageiro, mas com um a divindade
cuja anuência era de elevada im portância à manutenção do reino. A mãe
estava ao seu lado, apesar do desejo em o ver com o toucado de rei; era de
fácil m anipulação, por lhe bastar a inform ação de que o poder estaria, pela
sombra, nas suas mãos.
À m edida que o ferétro ia passando, os achicundas punham -se em
sentido, saudando marcialmente o defunto com a habitual cuquenga, m arca
indefcctível da identidade m ilitar achicunda. O céu estava limpo e os cân­
ticos faziam-se ouvir, a um a só voz, pela aringa em luto carregado. Os cães,
em inusitada solenidade, continuavam silenciosos desde a hora em que
N habezi morrera. Quedos e com os rabos encolhidos, os cães observavam,
por entre as pernas dos populares, a passagem do corpo. O sabevira Leio

141
ClIO R IR O

M puka, pessoa responsável pelos actos fúnebres da casa real, não se


cansava de avançar e recuar ao longo do cortejo, precavendo-se de qualquer
anormalidade nos actos à sua responsabilidade. Tirando a morte em criança
dos filhos de Sajinda e Massita, consortes de Nhabezi, de alguns conselheiros
de G regódio e de parentes chegados a alguns dignatários, pouca era a
experiência do sabevira M puka em cerimónias fúnebres. N o cem itério real
as cam pas não chegavam à dezena. O reino era novo. A s pessoas sentiam-
-se ainda jovens e felizes. Os lugares de responsabilidade não haviam sido
invadidos pelo caruncho da inactividade. N a oficina tum ular de Leio os
instrum entos de preparo, as ervas e os pós c as m ezinhas m antinham -se
frescos c à espera dc corpos que tardavam a chegar em núm ero para o seu
traquejo. Daí os pequenos em baraços à m agnitude da cerim ónia à sua
responsabilidade. Dos reinos vizinhos vieram homens experim entados na
limpeza e banhos mortuários e nas cerimónias de corpo presente. N a mente
do sabevira, a responsabilidade pelas exéquias chegava ao fim com a
derradeira m archa em direcção ao túmulo.
N a noite anterior sentira-se em baraçado com o diálogo dc N fuca e
N yazim bire sobre o lençol que iria cobrir o corpo de N habezi no caixão.
Sabiam que o lençol devia ser o da primeira mulher. M as defiriam na quali­
dade e significado do pano, pois Nyazimbire era de opinião que o Nhabezi
devia ser coberto com um lençol recente e limpo, ao que N fuca retorquiu,
dizendo que o marido seria coberto por um dos primeiros lençóis que ainda
sobravam dos tempos iniciáticos da relação. Chatula não se meteu na con­
versa, deixando N yazim bire ordenar ao sabevira, depois do consenso com
Nfuca, que o corpo seria coberto pelo lençol dos tem pos, e recoberto com
um mais recente, por o antigo sc m ostrar esburacado e perm eável, na sua
argumentação, à entrada de maus sinais. N o que tocou ao manto que o iria
acom panhar todos foram unânim es em escolher o últim o com que o
defunto se cobriu em vida. Fora esses pequenos detalhes, tudo correu a con­
tento.
E agora que o cortejo se aproxim ava do local do enterro, o olhar de
M puka concentrava-se nos acenos dc agrado e desagrado dos maiores do
reino. A eles, cabia-lhe responder pelos im previstos. M as no íntim o do
sabevira corria a alegria de saber que poucos o criticariam, por não estarem

142
Ungulani Ha Ka Khosa

entrosados nos protocolos mortuários. O seu verdadeiro receio recaía no


olhar pétreo de Chatula. Era o único que conhecia as m ordom ias tum ula­
res, por em suas mãos terem passado quatro soberanos de reinos distintos
da margem sul do rio Zambeze. A ele cabia corrigir os detalhes em falta. E
quando o fazia prim ava pelos gestos que pela fala. E quando abria a boca
a frase era curta e enérgica. N inguém na corte, durante as semanas da ago­
nia do m am bo, vira os dentes de Chatula. N ão sorria. Pouco falava. No
cortejo ocupou solitariamente o lugar defronte ao caixão. Com um andar ca­
denciado, m arcava o passo do séquito. A os lados e a carregarem o
féretroestavam seis achicundas da guarda pessoal dc Gregódio. Atrás do
caixão seguiam as m ulheres e os filhos do defunto, os m aiores do reino, as
ilustres figuras dos reinos vizinhos c outras personalidades. Salinda seguia
atrás de Nfuca, ladeada pelas filhas. N ão conseguia erguer o rosto coberto
por um pano. Quando as carpideiras aum entavam de celeridade no choro,
ela soluçava dc cansaço real, por pouco ter dorm ido nos três dias de luto.
M ais atrás e em fila, vinham Sanjinda, M alidza e M assita. M antinham os
rostos serenos c altivos de dam as m ais jovens da corte. Sabiam que por
tradição não podiam desposar nenhum homem, mas a preocupação estava
em encontrar, entre as figuras de menor visibilidade no reino, os companheiros
da longa e extenuante jornada de luto. Sabiam que tinham que ser discre­
tas. Mas o que lhes vinha apoquentando era a inevitável conversa da
trasm utação dc Gregódio. N unca se viram em presença de tais práticas, por
em seus reinos, de configuração matrilinear, não se colocarem problem as
m aiores, cm term os cticos, ao sexo e à reprodução em período de viuvez.
Os interditos eram menores. A gora que se viam arredadas à condição de
viúvas em plena idade de fecundação, ficavam pasm adas com o que o fu­
turo lhes reservava. Sabiam que a descrição não bastava como valor a ter
cm conta. A transm utação de Gregódio é que lhes im portunava. Preocu­
pava-lhes o contínuo e obsessivo controle que os curandeiros da corte
teriam sobre elas. Malidza, na sua irreverência, fez alusão dc se tom arem ,
discretamente, nas amásias dos curandeiros. Não tinham campo de escolha.
Por isso, e em dúvida quanto ao futuro, cam inhavam com o sem blante
carregado e bastante desconfortadas com a condição de viúvas respeitáveis.
N ão lhes doía o luto, condoía-lhes o defeso sexual. Seguiam depois

143
C 1 I0 R IR 0

Nyazimbire, Makula Ganunga, Chiponda, Tyago Nkambamula, os conselheiros,


os convidados, as famílias dos ilustres c outras personalidades ligadas aos
vários ofícios em serventia no reino. Chicuacha estava ao lado de Alfai,
acom panhado dc três dos seus sete filhos, entre o grupo de conselheiros.
Fora o prim eiro dia de luto, Chicuacha não tivera m ais contacto com Alfai.
Sabia-o em ligações com Suna, m ulher que se revelava, a cada dia que
passava sua perdida paixão. R eccava que a sua fé cristã fosse abalada
quando um dia souber da verdadeira história de Suna. M as por ora o futuro
era um a incógnita para todos.
Quando as carpideiras, a uma dezena de m etros da cova, puseram -se
em convulsivos choros seguidos de silêncio, as m ulheres da com itiva
largaram prantos e soluços de despedida. O cortejo foi-se abrindo em cír­
culo em tom o da sepultura. A aringa ganhou solenidade jam ais vista. O be­
decendo a uma voz de com ando, os achicunda puseram -se cm sentido. O
som dos pés a baterem -se ressoou, seco e abrupto, pela aringa em silêncio
sepulcral. A natureza ganhou a arrepiante quietude tropical: o vento, brando.
As aves raras. As nuvens, escassas. As folhas, adormecidas. As sombras,
paradas. O sol, sorrindo. O rio, acenando. As águas, correndo. As margens,
bocejando. A s alm adias, em repouso. Os crocodilos, em sonolência. Os
hipopótam os, observando. Os leões, boquejando. Os m orcegos, dormindo.
Os leopardos, observando. As gazelas, inquietas. As girafas, fungando. E as
crianças, deslumbradas, retendo na retina da memória o silêncio de respeito,
de dignidade, de deferência para com o homem que avivaria as histórias
do futuro. A aringa despedia-se, em luto, de Nhabezi.
M akula G anunga destacou-se do círculo em volta da cova, e deu,
como acim a ficou grafado, a palavra ao velho Kamwa, pessoa mais idosa
nas terras de Gregódio. Com o sol transpondo a linha das árvores, K amwa
foi desfiando os feitos do grande Neguô, o pai do povo, o grande caçador
de elefantes. Recordou o nobre gesto de o grande caçador ter introduzido
o arroz na dieta dos povos, as bananas que faziam sorrir as crianças c o
lim ão que acordava a boca. R everenciou as m ulheres e os filhos, desta­
cando o mais velho Lefasso, hom em a quem cabia assum ir o toucado e o
capote do poder. Por último e em veneração definitiva, evocou os feitos
dos achicunda, recordando-os do papel que tiveram com o fmado na defesa da

144
Vngulani Ba Ka Khosa

região com os inventos nunca im aginados, feitos com mãos pretas: as


gogodelas e a pólvora. Que descanse em paz, grande Neguô!
O corpo dcsceu às profundezas da terra. Os achicunda dispararam as
espingardas em honra do grande Nhabezi. O silêncio deu lugar às vozes e
à dispersão. A aringa voltava à vida e à espera do sinal de Nhabezi, o grande
curandeiro branco.

145
Posfácio
A pesar da História, ou melhor, da natureza do saber histórico, não
ser já questão pertinente no dom ínio da historiografia, até m esm o para
alguns historiadores, a verdade é que também não deixou de ser um assunto
interessante. A com prová-lo estão gerações e gerações de pensadores, his­
toriadores, estudiosos da história e não só, que lhe dedicaram, e continuam
a dedicar atenção, m esm o entre nós, M oçambicanos. O debate centra-se
entre aqueles que olham a H istória como «ciência», ou os que a preferem
como «saber» ou aqueles ainda que a consideram sobretudo uma «arte».
Esta questão não é, obviam ente, pacífica, o que pode ser ilustrado
pelo debate perm anente no campo da H istória c no confronto com disci­
plinas como a Literatura e a Linguística, mas situa-se m ais no domínio da
pura epistem ologia, que apenas interessa a um núm ero restrito de estu­
diosos, sobretudo os m ais académicos. Assim , fiquem os apenas com esta
evidência: se para uns a História é «um a ciência», já para outros ela é «uma
arte» e, para outros ainda, «um saber». De todo o modo, quer seja encarada
como «Ciência», quer se considere um «saber» ou uma «Arte», o que é im ­
portante é a m etodologia utilizada, pois é isso que influencia, m ais do que
tudo o resto, a história que se faz. Em todo o caso, na História tudo isto se
cruza porque, além das questões do m étodo c da interpretação das fontes,
estão também sempre presentes a estética, a narrativa e o estilo.
É esse tam bém o caso da Literatura. Creio, efectivam ente, que tanto
a Literatura, neste caso o romance ou a narrativa histórica, como a História,
são verdadeiras formas dc arte, diria de artesanato, colocando-se nas no­
ssas tradições da m esm a forma que a culinária, as danças ou as artes plás­
ticas. É, obviamente, necessário que se estabeleça um ponto de encontro
epistemológico entre Literatura e História, onde se confundem análises for­
mais e estruturais com outros elementos como “a com preensão do tempo,
da singularidade, do verosím il”, como diria Certeau. Ao longo dos tempos,
a literatura sempre fecundou a História, tal como esta fecundou aquela.
Assim, Literatura e H istória reclaboram -se na arte dc apresentar as

146
Ungulani Ba K a Khosa

coisas. Se por vezes se pode dizer que não definem propriam ente a inves­
tigação histórica, têm o mérito de lhe dar credibilidade, mais do que fun­
dam entá-la. Enquanto o rom ancista tem a arte de escrever a H istória,
humanizando-a, o historiador, à sem elhança do rom ancista, é tam bém um
artista que põe todo o seu saber naquilo que produz e pretende transmitir,
tornando a H istória em verdadeira representação literária e, ao m esm o
tempo, tam bém em arte da encenação.
A narrativa histórica está, quanto a mim, profundamente marcada por
dois aspectos, porventura form as de «estilo», fundam entais e que agem
conjugadamcnte. O prim eiro tem a ver com a preocupação do autor cm pôr
prazer nas coisas que escreve, ou seja construindo um texto histórico em
que se enredam num a relação estreita a construção de um a tram a e o prazer
com que o faz. É o que se pode cham ar a arte da encenação sedutora: o
prazer de reatar relações com o passado, com preendendo-o com o se es­
tivesse lendo coisas de um outro mundo. E este simulacro que faz aum en­
tar, no autor, o prazer de escutar esse outro mundo, dc outra época (como
afinal o fazem todos os historiadores), fazendo vir à superfície tudo aquilo
que se calou e que o escritor, tal como o faria o historiador, substitui pelas
suas ficções.
O segundo aspecto diz respeito à preocupação do escritor com a
realidade da sociedade que procura descrever. Aqui entramos no universo
daquilo que já aqui foi mencionado: a história-ficção. Através das fontes,
o autor foi fabricando planos do passado, como que pretendendo desafiar
e pôr à prova (atitude essencial!) a credulidade do público para quem es­
creve. E o que me apraz dizer acerca do trabalho que tenho a honra de «pos-
faciar». A firm o sem receio de espécie algum a estarm os num a daquelas
situações tão cara a Certeau, de reencontro com o real através da ficção.
Efectivam ente, acho que o êxito deste livro poderá vir a estar relacionado
com o facto de o autor se ter reencontrado com um a sociedade pouco
conhecida ou, pelo m enos, não perfeitam ente clara em todos os seus con­
tornos sociais e culturais.
É isso também a História; para ser mais preciso, ela é ficção ou uma

147
CHO RIRO

série de ficções. Sei, até por experiência própria, que a História carece de
algo que não foi ou não é perm itido afirm ar-se a partir de um ccrto número
de hipóteses e dados; aí entra então a construção da narrativa, isto é, a tra-
r
jectória possível nesse espaço ainda não ocupado. E o que faz o autor de
«Choriro»: por meio dc ficções, ele faz acreditar, residindo aqui a razão de
se poder falar da História ficção. O texto literário «fictício» tem tanto de
«verdade» como a produção especializada.
«Choriro» não é um livro de História; é sim uma narrativa histórica
em que factos e personagens verdadeiras se entrem eiam com factos e
personagens im aginados pelo autor, ele próprio um estudioso de História.
N ela sc misturam narrativas-m em órias de gente c terras conhecidas, narra­
tivas quais crónicas de acontecimentos passados num a época histórica bem
determ inada e onde não faltam tam bém os factos im aginários tão colados
às tradições dos povos onde as tram as históricas se desenrolam. A qui se
representam, como num espaço cénico, o estilo e os fantasmas do actor/narrador,
a arte de fazer que o seu discurso se tom e credível, a habilidade com que
deixa o leitor ler nos subentendidos, fazendo-o esquecer das coisas de que
não fala.
Através de todas as m anhas, e artimanhas, da narrativa, tom ando a
parte pelo todo, o autor apresenta um argumento sólido em que aparenta
contar tudo o que na realidade se passou. A ilusão narrativa consiste, como
num passe de mágica, em transformar dados c elementos docum entais num
discurso sobre o real. Em «Choriro» não faltam ingredientes como a aven­
tura, a lealdade, a traição, a crueldade e outros. Os locais, as personagens
e a m aior parte dos episódios são fictícios, em bora aqui e ali perpassem
figuras da vida real da época, como são os casos de Livingstone, o célebre
explorador inglês, Kaniem ba ou M atakenha, nom es de guerra de dois dos
mais destacados senhores de prazos à época. Uma ou outra das personagens
aparecc, porventura, deliberada ou inadvertidam ente travestido. Reais ou
im aginários, tudo o que a respeito delas é dito relaciona-sc com a História.
Neste m odesto contributo dc reconhecim ento do trabalho, nas ver­
tentes teórica e m etodológica, resta-m e dizer que U ngulani dá à estampa o
seu segundo rom ance histórico (o prim eiro, «U alalapi», é de 1987),

148
Ungulani Ba K a Khosa

levando-nos a acreditar, com redobrada satisfação, que a ficção narrativa


m oçam bicana está viva e bem viva. E im portante sublinhar que a acção
decorre na Zam bézia, num tem po m arcado por profundas m udanças que
alterarão, sem apelo nem agravo, as marcas culturais e civilizacionais da so­
ciedade zam beziana do século XIX. Aqui encontramos a boa literatura que
nos em ociona, que nos faz reflectir e nos reconforta com novos conheci­
mentos sobre essa Zambézia, então tão falada como pouco conhecida, onde
se foi forjando “um a civilização peculiar”, como lhe cham ou Capela.
O trabalho de Ungulani faz dele um dos mais interventores e com ­
prom etidos dos escritores moçambicanos. Os seus livros, os seus pronun­
ciamentos quer em palestras quer em entrevistas e escritos nos jornais, a sua
preocupação com o debate sobre a essência e a justeza de uma literatura
m oçam bicana escrita em português, fizeram e fazem dele um m estre na
arte do rom ance e da narrativa histórica ficcionada.
Aqui chegados, salientaria um a ou outra nuance, porventura di­
vergência, pequenos detalhes que não deslustram o excelente trabalho que
o autor produziu. A escrita utilizada pelo autor é acessível, em linguagem
escorreita, em bora alguns trechos do livro nos (a)pareçam repetitivos. O
trabalho im plicou certamente um levantam ento razoável de fontes, ainda
que, no que respeita a fontes secundárias sobressaia a obra de ísaacman, que
é apenas um dos autores que trabalhou a Zam bézia da época aqui referen­
ciada. O recurso mais alargado a historiadores como José Capela, segura­
m ente o mais conhecedor da história c do «ethos zam beziano», teria sido
certamente de grande ajuda. Com o tom agradavelmente descritivo que usa,
U ngulani vai tentando hum anizar um a sociedade e um a época, podendo
daí depreender-se um a qualquer dose dc indulgência da parte do autor. Em
algumas passagens, a grandeza que, por vezes, parece conferir aos actores
em presença, só no im aginário se pode aceitar. Outro reparo que se pode
fazer, e que porventura determ inaria m aior hum anização desta(s)
história(s), é a quase ausência da presença da m ulher, tão profusam ente
m encionadas por outros autores, com realce para Capela, San Bruno e
M aria Sorensen.

149
Porém , nem estes com entários, presum íveis lacunas ou lapsos que
porventura existam , nem mesm o divergências que certam ente suscitará,
fazem dim inuir a importância deste notável livro de Ungulani. Por tudo o
que escrevi, e muito haveria ainda a escrever, considero-m e honrado por ter
sido convidado para escrever este posfácio, o que, digo-o com a m aior
satisfação, fiz com enorm e prazer, respeito por um dos m ais representa­
tivos e brilhantes escritores moçam bicanos da geração pós-indepcndência.

Por tudo isso, ya ku khensa mungano Ba K a Khosa!

Aurélio Rocha
Maputo, 5 de Agosto de 2009

150
U N G U L A N Í BA K A K H O S A
U m dos mais representativos e brilhantes
escritores m oçambicanos da geração pós-independência.

Você também pode gostar