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Éric Laurent
O analista, primeiro presente como escuta, introduz pelo seu silêncio, uma
demanda de sua fala por parte do analisante. A resposta do analista vai jogar sobre esse
registro da demanda para responder ao lado da demanda a fim de poder fazer escutar no
que é dito o que está além da intenção daquele que sustenta seu dizer. O analista assume
a responsabilidade da escuta para fazer surgir a presença de um sentido diferente do
senso comum, de uma parte do discurso que sempre escapa. Acrescenta-se a isso a
crença do analisante de que o analista tem em seu poder o saber no lugar do objeto
demandado. Toda demanda implica a escuta, o silêncio da escuta como lugar reservado
àquilo que, no que se diz, ultrapassa a intenção. Essa escuta silenciosa vem marcar o
lugar do desejo que, no discurso, é ignorado.
O lugar do desejo assim isolado testemunha também a fixação de gozo que está
em jogo na queixa. A efração que constitui o gozo na homeostase do corpo é o
fundamento da repetição do Um: “Nos casos aos quais acessamos pela análise, seu
modo de entrada [do gozo] é sempre a efração. A efração, isto é, não a dedução, a
intenção ou a evolução, mas a ruptura, a disrupção em relação a uma ordem prévia, em
relação à rotina do discurso pelo qual as significações se mantêm, ou em relação à rotina
que imaginamos do corpo animal”[1].
A escuta, portanto, não se destina a ficar paralisada em seu silêncio. Ela deve
ajudar a manifestar a dimensão do desejo para além da intenção, e de uma pulsão
acéfala. É a função da interpretação. O desejo não é a interpretação metalinguajeira de
uma pulsão anterior confusa. O desejo é sua interpretação. As duas coisas estão no
mesmo nível. Uma outra proposição deve ser acrescentada: “os psicanalistas fazem
parte do conceito do inconsciente, posto que constituem seu destinatário” [2]. O
psicanalista só pode acertar na mosca se ele se mantiver à altura da interpretação que
opera o inconsciente, já estruturado como uma linguagem. É preciso ainda não reduzir
essa linguagem à concepção da lingüística, de um vínculo entre o significante e o
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significado. É preciso dar todo o lugar à barra que separa as duas dimensões e permite a
topologia da poética. A função poética revela que a linguagem não é significação, mas
ressonância, e destaca a matéria que, no som, ultrapassa o sentido.
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lugar da interpretação analítica, na medida em que ela interviria na contramão do
princípio do prazer. [...]A interpretação analítica introduz o impossível.”[7].
Pela introdução dessa modalidade que rompe com a associação livre da fala,
pelo estabelecimento de um certo „isso não quer dizer nada‟, a interpretação que passa
pela fala passa para o lado do escrito, o único capaz de dar conta do furo do sentido e do
impossível. “Isso implica que, como a formalização, a interpretação [...] está mais do
lado do escrito que do lado da fala. De qualquer forma, ela deve ser feita desafiando o
escrito, na medida em que a formalização supõe o escrito”[8].
No primeiro ensino de Lacan, a interpretação tinha por efeito dar acesso aos
capítulos apagados da minha história, ao que aí estava escrito. No segundo, Lacan se
livra dessa referência à história para manter apenas a referência ao “estava escrito”. O
efeito do suposto saber, sua generalização, deve ser mantido a partir da potência do
“estava escrito”. Surge uma nova concepção da interpretação: “a interpretação, cuja
essência é o jogo de palavras homofônico, é o reenvio da fala à escrita, quer dizer, o
reenvio de cada enunciado presente à sua inscrição”[10].
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diversos do equívoco, que amplia o campo das interpretações possíveis e o sentido de
nossa ação. O dizer do analista não é mais S2, produtor de cadeias associativas. O nó
borromeano faz obstáculo a isso, produzindo outros tipos de cadeias. “Isto que nós
colocamos junto a esse nó, já vai contra a imagem de concatenação. O discurso de que
se trata não forma cadeia [...]. Logo se coloca a questão de saber se o efeito de sentido
sobre o seu real se sustenta com o uso das palavras”[12]. O efeito de sentido real
dispensa o imaginário da significação. “O efeito de sentido a se exigir do discurso
analítico não é imaginário. Ele também não é simbólico. É preciso que seja real. É com
o que me ocupo esse ano, pensar qual pode ser o real de um efeito de sentido” [13]. Esse
real tem em conta o novo objetivo da amarração do nó em volta do acontecimento de
corpo e da inscrição que pode ser notada (a) em um uso renovado.
É isso que nos propõe Lacan no terceiro capítulo do Seminário “Mais, Ainda”.
Ele começa com uma série de paradoxos que, em uma provocação barroca, visa
desfazer a ligação que parece evidente da leitura com o escrito. “A letra, isso se lê. Isso
parece ser feito mesmo no prolongamento da palavra. Ela se lê e literalmente. Mas não é
justamente a mesma coisa ler uma letra ou ler. É bem evidente que, no discurso
analítico, só se trata disso, do que se lê, do que se lê para além do que vocês incitaram o
sujeito a dizer” [14].
A barra, ele nos diz, não deve ser entendida, mas explicada para questionar um
limite da lingüística. Esta não consegue levar em conta o efeito de sentido produzido
pela incidência do significante sobre o significado. É um tema já abordado de outra
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maneira por Lacan em “Lituraterra”. A dit-mension da letra segundo Lacan implica uma
certa instância, uma certa insistência, um certo forçamento [forçage] para se incluir na
trama das significações. A instância, destacada no texto “A instância da letra” [17],
designa, na letra “aquilo que, a ter que insistir, só existe nela de pleno direito quando,
por força da razão, isso se destaca”[18]. A referência à razão é, com certeza, uma
referência ao título do artigo de 1957: “A instância da letra no inconsciente ou a razão
desde Freud”.
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sentido, algo que evoca o gozo na língua comum. Há em primeiro lugar a poesia. “O
forçamento pelo qual um psicanalista pode fazer soar outra coisa além do sentido. O
sentido, é o que ressoa com ajuda do significante. Mas o que ressoa, não vai muito
longe, [...] com aquilo que chamamos de escritura poética vocês podem ter a dimensão
do que poderia ser a interpretação analítica” [21]
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O apólogo final retoma a exigência do início do capítulo: no discurso analítico,
situar a função do escrito, mas deslocando-lhe. No começo do capítulo, ele diz: “é bem
evidente que, no discurso analítico, só se trata disso, do que se lê, do que se lê para além
do que vocês incitaram o sujeito a dizer” [27]. E ao final do capítulo, no apólogo,
passamos do ler ao “se ler”. Lacan interroga não somente o inconsciente, mas o sujeito
do inconsciente, o laço que ele mantém com o Outro do discurso psicanalítico.
Esse apólogo se apresenta como uma leitura do “grande livro do mundo”. Lacan
vê nele o vôo de uma abelha e o vôo das andorinhas. A abelha vai de flor em flor, ela
coleta. Um saber produz uma leitura dessa ação. A abelha transporta o pólen na ponta
das patas de uma flor à outra. Ler o vôo das abelhas é saber que elas servem à
reprodução das plantas. Mas a abelha sabe disso? Da mesma forma, no vôo dos
pássaros, podemos ler que vai fazer uma tempestade. Lacan toma o exemplo do vôo das
andorinhas, animal pelo qual ele se interessa desde “Função e campo da fala e da
linguagem” [28]. Mas a questão nos é colocada: a andorinha lê a tempestade?
Lacan ainda não tem à sua disposição a categoria do falasser, mas ele desliza do
sujeito do inconsciente para um modo do vivente que, contrariamente à andorinha, é um
vivente suposto saber ler. “E não é outra coisa, essa história do inconsciente de vocês”
[29]. Lacan dá então uma definição muito bonita e simples do percurso de uma análise:
“vocês supõem que esse sujeito pode aprender a ler” [30]. Depois vem o paradoxo final.
“Só que, o que vocês o ensinam a ler, não tem, então, absolutamente, nada a ver, em
caso algum, com o que vocês possam escrever a respeito” [31]. O procedimento do
passe permite dar conta da maneira como um sujeito se lê em uma análise e como ele
aprendeu a ler. Por outro lado, o que podemos escrever sobre ele são letras que
reenviam às funções lógicas que a experiência da psicanálise revela. Os equívocos da
língua que fazem o inconsciente não têm nenhuma relação com essas letras. De maneira
radical, o sujeito do inconsciente é lógico e não psicológico. É uma lógica onde se
entrelaçam os jogos de escrita e de leitura como a poesia barroca se encantava com os
jogos da margem e da onda. O litoral da letra e do gozo nos encanta com jogos de
leitura e de escritura para chegarmos ao ponto onde não temos mais a necessidade da
ferramenta da fantasia para “se ler”.
Notas
[1] J.-A. Miler: « L‟Un est lettre », La Cause du désir, no 107, mars 2021, p. 35.
[2] Lacan, “Posição do inconsciente”, Escritos, Zahar p.848
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[3] J.-A. Miler: A interpretação pelo avesso. Opção lacaniana, nº15, 1996, p. 98-99.
Disponível em: http://lacanempdf.blogspot.com/2021/08/a-interpretacao-pelo-avesso-
jacques.html
[4] J.-A. Miler, O monólogo da aparola, Opção Lacaniana Online, nº 9, p.13. Disponível
em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_9/O_monologo_da_aparola.pdf
[7] Ibid. 23
[8] Ibid. 24
[9] Lacan, Seminário 22, lição 11 de fevereiro de 1975. p.28-29. Versão em português
disponível em: http://lacanempdf.blogspot.com/2017/03/o-seminario-22-rsi-jacques-
lacan.html
[11] Ibid
[13] Ibid.
[15] Ibid. p. 47
[16] Ibid. p. 48
[17] Lacan, A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud, Escritos, Zahar
[21] Ibid.
[22] Ibid.
[23] Ibid.
[24] Ibid.
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[25] Lacan, Seminário 21, Os não-tolos erram, p. 69. Disponível em:
http://lacanempdf.blogspot.com/2018/03/seminario-xxi-os-nao-tolos-erramos_28.html
[30] Ibid.
[31] Ibid.
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