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Crônica de nossa história

E nxergar o mundo por lentes


inesperadas, surpreendentes.
Usar o humor e a ironia para
repassar uma leitura da realidade
mesmo que pesada, ativando a
variados quanto a temas e estilos
sobre os tempos atuais, sobre
assuntos cotidianos, sobre os
desafios da existência humana, sobre
as relações que são estabelecidas e
imaginação e nos convidando a geram ações e reações que alteram o
refletir. Buscar na literatura uma fluxo da vida.
inspiração não só para a linguagem, Na lista dos cronistas incluídos no
mas para uma tradução menos óbvia, livro estão as autoras Maria José
mais interessante do que quer tratar. Silveira, Maria Lúcia Félix de Souza,
Dar-se a liberdade até de enveredar Cássia Fernandes, Adelice Silveira e
pela criação, elaborando metáforas e Lena Castello Branco; os escritores
paralelos com o tangível, numa André de Leones, Edival Lourenço,
associação de sentimentos pessoais Flávio Carneiro, Leon Rabelo, Lucão e
com episódios da sociedade. Escrever Gustavo Palmeira; e os os jornalistas
crônicas, enfim. Fabrício Cardoso, Silvana Bittencourt,
Gênero híbrido e clássico não só Karla Jaime, Fabrícia Hamu e Rogério
no jornalismo tradicional, a crônica Borges. São textos publicados nos
atravessou as diversas fases da últimos 10 anos no jornal e que, além
imprensa e se adaptou a todas as de comentarem os contextos mais
plataformas, fazendo-se presente nas atuais, também fazem registros
mais diversas concepções, relevantes do passado.
explorando sua liberdade normativa Dessa forma, O POPULAR ressalta
para ousar e fazer essa ponte entre o a importância da crônica no
comentário da realidade, o inusitado, jornalismo em geral e no jornal em
o trivial e uma reflexão mais profunda, particular, revelando o quanto esse
uma crítica criativa, um registro de gênero continua a mobilizar seus
uma história pessoal ou coletiva, de leitores, a acionar seus sentimentos e
um sentimento individual ou recordações, a envolvê-los em um
compartilhado numa sociedade em momento prazeroso de leitura. Nos
determinado tempo e espaço. seus 83 anos de circulação, o
Tudo isso poderá ser lido neste e- principal jornal de Goiás sempre abriu
book com o qual O POPULAR espaço nobre para as crônicas,
presenteia seus leitores para contando com times de primeira linha
comemorar seus 83 anos de para entregar textos diferenciados. O
existência, comemorados em 3 de e-book mostra isso e não poderia
abril. O livro traz 48 textos de 16 haver um presente melhor para
cronistas do jornal, em retratos celebrar seu aniversário.
Fascinação
"Fascina-me estar aqui, ver o planeta Terra, ser parte
de sua história, caminhar por seu solo, fecundá-lo e
criar raízes, respirar o ar todas as manhãs; é uma vida
privilegiada, aproveitemo-nos dela, que não estamos
aqui por acidente nem coincidência, temos um
propósito, nós fomos escolhidos."
Gostaria que estas fossem palavras minhas, mas elas
pertencem a Douglas Weelock, astronauta da Nasa.
Esse e outros dizeres acompanham um vídeo enviado
por ele, via Twitter, do interior da Estação Espacial
ADELICE Internacional. São fotos do planeta Terra. Todas de
DA SILVEIRA uma beleza comovente. Recebi-as pelas mãos de Lauro
BARROS Moreira. Obrigada, Lauro, pelo magnifico presente.
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Impossível não sermos tocados pelo esplendor daquela visão. Percebi que
assistir ao vídeo não bastava. A magnitude do espetáculo cobrava mais. Era
preciso estar lá: sentir, viver, emocionar-se, chorar. Aplaudir a grandiosidade do
nosso planeta.
Em consentida alienação, transmudei-me para o interior da aeronave. Era dia. A
sequência de imagens me deixou em êxtase. Sobrevoámos o Oceano Índico, e a
visão de uma ilha misteriosa, em forma de chapéu, solta entre o azul do céu e do
mar, era de uma leveza tamanha que criei asas e voei.
Sob o efeito da luz, a Terra é neve, é areia, é véu. É noiva de feições delicadas. É
suavidade, maciez, aconchego. O pôr do sol, uma verdadeira explosão de cores,
é de tirar o fôlego, mas nem por isso ofusca a beleza da noite. Noite é glamour, é
sedução, é mistério. Para a ocasião, a Terra, mulher vaidosa, prepara-se com
requintes de grande dama. Trajando longo vestido azul escuro, cravejado de
ouro e brilhante, faz-se enigmática e sedutora. Verdadeiro deslumbramento!
Emocionada eu pensava: Deus é perfeição. Nosso planeta é Deus. Agradeci a Ele
o privilégio de ser parte do rebanho que povoa Sua magnifica criação. Em
seguida, pedi perdão por minhas ranzinzices, pela insatisfação com a vida, pelo
descaso com um bem que recebi por doação. Lamentei cada dia, hora, minuto
ADELICE que tive a petulância de desperdiçar com futilidades. Pedi perdão também pelos
DA SILVEIRA danos que causei ao meio ambiente e ao meu irmão. O que me atenuou a culpa
foi a lembrança das inúmeras árvores que venho plantado ao longo da vida e de
BARROS alguns pequenos auxílios que presto a quem de mim necessita.
O vídeo chega ao fim. E a magia também.
Olho em volta. Desentendida, questiono: Este é o planeta que visto do alto me
levou ao estado de graça? Sentido na sola dos pés a crosta áspera da realidade,
vejo a Terra agredida e o homem assustado. Vejo rios poluídos, cidades
esmolambadas, escolas fechadas. Vejo corrupção, mentira e violência. O povo
antes amável, está agressivo, sem fé nem esperança no poder público do qual
depende. Como é possível um planeta perfeito gerar e abrigar seres tão
incoerentes, acéfalos, aleijados de mente e de espírito? A perfeição existe. Eu sou
testemunha. Mas contra a harmonia trabalha a aberração. E a aberração somos
nós, os humanos, seres dotados de pensamento, ditos superiores. Superiores!
Nossa atuação aponta para o individualismo, a mesquinhez, a soberba e a
ganância.
Não condeno todas as nações, assim como absolvo parte de meus compatriotas.
Buscando soluções, veio-me a ideia que, sobe a emoção, me pareceu brilhante:
colocar em naves espaciais aqueles que atentam contra o bom comportamento.
Tenho certeza de que voltarão reabilitados.
Se é verdade que fui escolhida, que há um propósito no meu existir, imploro a
quem de direito que me retire dos olhos a venda que me cega.

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Cronista em
início de carreira
Mandei um despropósito de crônicas para o Magazine. Na mesma velocidade
que foram, voltaram. Eram textos longos demais para o espaço reservado à
crônica. Em pânico, liguei para um colega da página (como vocês podem ver, eu
já tinha vestido a camisa).
Ursulino, como é que a gente faz para subornar a Rosângela, hein?
Não faz.
Não vem me dizer que ela é insubornável!
É.
Não, conta outra, esse tipo de gente não existe no Brasil, falei irônica.
Existe.
Resolvi dar corda ao homem, ler nas entrelinhas. E falar mal do governo, pode?
Depende.
ADELICE Esse depende é sim ou não?
Pode ser os dois.
DA SILVEIRA Percebi que daquela toca não saia coelho. Mais de 20 anos de profissão tinha
BARROS feito do cronista um munheca da palavra. Deu-me alguns conselhos que,
enrustida na minha teimosia, eu mal ouvi. Teria que me virar sozinha e pronto.
Mas cortar onde, se não tinha o que cortar? Eram assuntos fechados, costurados
no capricho com desfecho bem amarradinho e tudo. Eu estava literalmente
apaixonada pelas minhas crônicas. Só um milagre poderia resolver a pendenga.
Milagre. A palavra me fez atinar para a questão. E se fosse aquela minha
derradeira e única saída? Imediatamente, o grande mestre da magia, me saltou
aos olhos. Jesus Cristo, o Rei da abnegação, do despojamento e da síntese nunca
cometeu exageros verbais ou de qualquer outra natureza. Grande mestre, com
poucas palavras conseguia dizer tudo. Magnífica Sua resposta a um fariseu,
doutor da lei, em Mateus, O grande mandamento, v. 36 e seguintes. Mal
intencionado o fariseu perguntou:
"Mestre, qual é o maior mandamento da lei?"
Respondeu Jesus: "Amaras o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda tua
alma e de todo teu espírito. Este é o maior e o primeiro mandamento. E o
segundo, semelhante a este, é: "Amaras teu próximo como a ti mesmo!"
"Amaras teu próximo como a ti mesmo!" Nunca ouvi nada mais bonito. Sentada
na beira (ou borda?) da piscina, com os pés metidos na água, meditando as
palavras de Jesus, eu soube que, se concentrasse todas as energias na ação, se
quisesse mesmo, poderia atravessar caminhando aquelas águas. Mesmo porque
a piscina não é grande, no caso de fracasso, eu não corria risco de afogamento.
Viver segundo as palavras de Jesus é exercício que venho praticando a vida
toda, sem grande sucesso, talvez, mas nunca desisti. Nem pretendo. Quanto ao
espaço a mim reservado no jornal... consegui, minha gente! Obrigada, Mestre, do
fundo do coração, eu Ti agradeço.
Desejo a todos bons resultados nas tentativas. Quando a fé é verdadeira, tem o
poder de remover montanhas.

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Caminhando
por ruas medievais
Dividida em duas partes distintas – a Cidade Baixa e Toompea, a cidade alta –
Tallin, capital da Estônia, tem uma história extremamente interessante. Os
estonianos têm o maior orgulho da parte velha da cidade, onde a grade maioria
das casas guardam semelhanças entre si e onde cada construção tem a sua
própria história. Por seu aspecto de contos de fadas, caminhar pelos labirintos
de ruas estreitas e sinuosas da parte velha de Talin é transportar-nos a um
passado longínquo, sentindo na pele o lampejo de tochas e lanternas.
"Todos sabem os caminhos que levam a Roma, mas em Talin, todos os caminhos
levam à Praça da Câmara Municipal" (Raekoja Plants). Rodeada de edifícios
históricos, a Praça da Câmara causa admiração pela beleza arquitetônica e pela
ingenuidade da história do "Velho Toomas", catavento que orna a agulha da
Câmara Municipal. Por outro lado, não é nada agradável a presença de
ADELICE resquícios do pelourinho, onde ladrões e criminosos da época eram executados.
Hoje em dia, muitos festivais e feiras de artes acontecem na Praça da Câmara,
DA SILVEIRA onde fica também a farmácia mais antiga do mundo ainda em funcionamento.
BARROS Tallin foi ocupada, em diferentes épocas, por russos, suecos, polacos e
dinamarqueses, e cada um desses povos deixou sua marca na arquitetura da
cidade. Uma das coisas mais interessantes que já vi são as Pikk jalg (perna longa)
e Lühike (perna curta), que ligam a Cidade Baixa a Toompea. Impressionante
também é a Catedral de Alexander Nevsky, ou Catedral de três tronos e cinco
cúpulas. Construída na época da ocupação russa, a igreja tem capacidade para
1,5 mil pessoas. Não tenho certeza, mas acho que foi no Bairro Latino que
tivemos a grata surpresa de ouvir nosso hino nacional apresentado por músicos
locais. Éramos apenas quatro brasileiros. Como nunca, estufamos o peito e
soltamos a voz. Das lágrimas nem é preciso falar.
Eu ainda teria muito que contar sobre os encantos dessa bela cidade, mas vamos
para Riga, capital da Letônia e a mais populosa das capitais bálticas.
Saímos do conto de fadas para entrar na realidade de uma cidade histórica, mas
ao mesmo tempo grande centro financeiro. Como todas as cidades que passaram
por várias ocupações, arquitetonicamente falando, Riga possui áreas bem
distintas. Tanto é que ao adentrarmos a cidade de carro, ficamos mal
impressionados com a falta de criatividade dos prédios residenciais em tons de
cinza e visivelmente mal acabados construídos durante a ocupação da Rússia
comunista. Em algumas ruas do centro predomina a arquitetura Art Noveau.
Aliás, Riga possui o maior número de construção nesse estilo, somando um total
de 750 prédios espalhados pela região. O centro histórico da cidade foi
declarado Patrimônio da Humanidade pela Unesco. Já a parte nova de Riga,
com amplas avenidas, parques cobertos de árvores e prédios comerciais
avançadíssimos impressiona pela modernidade.
Assim que nos livramos das malas no hotel Radisson, que fica bem próximo à
Praça da Liberdade, caímos no mundo. A primeira visita foi à Catedral da
Natividade, onde fiz os indispensáveis três pedidos. Na manhã seguinte, turistas
disciplinados que somos, começamos logo cedo o tour pela cidade, passando
pela Catedral Doma, a maior dos países bálticos, pela Igreja de São Pedro, com
sua monumental torre de 123 metros de altura, a Casa da Irmandade dos
Cabeças Negras, passagem pelo dique do rio Daugava, visita ao Museu ao Ar
livre e muitos outros pontos turísticos. Como não poderia deixar de ser,
conhecemos também a Casa do Gato ouvindo a interessante historia que envolve
sua construção.
Infelizmente, apesar de meus esforços para resumir, Vilnius e Varsóvia, que
também fizeram parte de meu roteiro, ficaram de fora. Quem sabe ainda falo
sobre duas cidades, não sei.

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Diário Mínimo (3)
1. Um rapaz chamado Marcelo vem arrumar as
persianas. Ele abre a mochila e tira a furadeira e a
extensão e as coloca sobre o tapete. Corre os olhos
pela parede nua, desinteressado. Diz que o reboco
é muito ruim, fino demais, que a parede parece
oca, que as persianas nunca ficarão muito firmes,
é preciso tomar cuidado. Depois, sintoniza uma
rádio pelo celular, deixa o aparelho sobre a mesa
de centro e começa a trabalhar. Enquanto fura a
ANDRÉ DE parede, diz que o crack está apodrecendo a cidade
LEONES a partir do Centro. “De dentro pra fora”, explica.
“Daqui a pouco vão estar aqui na sua porta.”
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Encolho os ombros, dizendo: “Mal posso esperar”. Ele me encara com os
olhos arregalados, segurando a furadeira ainda ligada.
2. Estou parado diante de uma prateleira numa livraria. Não sei o que
procuro e sequer se procuro alguma coisa. Corro os olhos pelas lombadas,
desinteressado. Duas mulheres de meia-idade se aproximam de um
jovem vendedor e pedem orientação. Têm um sotaque carregado.
Querem livros de autores brasileiros contemporâneos. O vendedor indica
Jorge Amado. Elas dizem querer algo mais novo. O vendedor diz que
Jorge Amado é bem novo em comparação com outro grande escritor
brasileiro, Machado de Assis, “que era lá do século 17”. Elas agradecem e
se afastam.
3. Vou à banca comprar o jornal. Corro os olhos pelas capas das revistas,
desinteressado. Um bêbado se aproxima. Pergunta qual é a boa. Eu não
sei qual é a boa e digo isso a ele. Ele diz que também não sabe. Em
seguida, comenta que tem muita gente matando e morrendo por causa do
crack. Olho para ele. Não parece viciado. “Lá no Centro”, especifica.
“Muita gente.” Enquanto espero pelo troco, ele continua falando sobre
ANDRÉ DE gente matando e morrendo por causa do crack lá no Centro, depois
LEONES aponta para uma revista e diz: “Marilyn Monroe. Essa revista aí é boa. Já
leu? Seleções do Reader's Digest. Tem mulher (Marilyn Monroe!), tem
notícia, tem medicina, tem história, tem piada. 'Rir é o melhor remédio', já
viu essa? 'Rir é o melhor remédio'”. Quando me despeço, ele ainda está
rindo.
4. Estou sentado numa das últimas fileiras do Teatro do Sesi esperando
pelo início da apresentação de A Falecida. Corro os olhos pelas cabeças à
minha frente, desinteressado. Duas mulheres de meia-idade se
aproximam, trazendo consigo uma criança de 5 ou 6 anos. Sentam-se à
minha direita. A criança fala alto e se movimenta ininterruptamente.
Algumas cabeças se viram, mas ninguém parece se incomodar. A
campainha soa algumas vezes. A apresentação tem início. Sempre que a
plateia ou parte dela ri, a criança gargalha e em seguida olha para a mãe,
que pede: “Ri mais baixo”. A criança segue rindo alto até o final.

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Folhas Secas
Li Movimentos de Pensamento — Diários de 1930-32/1936-37 (tradução de
Edgar da Rocha Marques, ed. Martins Fontes), do filósofo austríaco naturalizado
britânico Ludwig Wittgenstein (1889-1951). Esses diários vieram a público há
pouco tempo e são uma ótima e divertida porta de entrada para as
idiossincrasias e reflexões do autor do Tractatus Logico-Philosophicus, dentre
outras obras capitais da história do pensamento ocidental.
A anotação datada de 6 de maio de 1931 diz o seguinte: “Em Brahms, as cores do
som da orquestra são cores das marcações do caminho”. Antes, Wittgenstein
discorre sobre como Brahms “compunha com a pena”, ao passo que Bruckner
(por exemplo) o fazia “com o ouvido interno & com uma ideia de orquestra
tocando”. O procedimento do filósofo é bastante claro: ele identifica as
particularidades de cada compositor, usando-as para antecipar seus efeitos
desde as próprias notações musicais. O método (ou modo) se refletiria na música
ou, para dizer com maior precisão, no casamento entre os temas propostos e os
sons que brotam daí.
ANDRÉ DE Claro que há casamentos felizes e infelizes, e, em se tratando de música,
LEONES contrario Tolstói para dizer que os infelizes são todos parecidos, ao passo que os
felizes o são cada qual à sua maneira. Há compositores traídos pelos próprios
temas, assim como há outros que são elevados por eles, como o Beethoven da
terceira sinfonia, a Eroica, que se inicia de forma um tanto quanto rotineira —
até onde podemos chamar Beethoven de “rotineiro”, é claro —, para depois se
transformar, mediante um longo e complicado movimento, em uma
monstruosidade maravilhosamente desconcertante, e no germe de suas benditas
malcriações futuras. Ouvindo a sinfonia, é fácil notar a passagem do classicismo
para o romantismo em seu próprio interior. Há uma efervescência criativa que
salta aos ouvidos, pouco confiável, imprevisível e genial desde o momento em
que se instala no longo e intrincado adagio.
Voltando aos diários de Wittgenstein, ele escreve em 24 de outubro de 1931 que
Brahms carece de “senso de cores”. No entanto, tem o cuidado de pontuar que
“a ausência de cor já está presente na temática”, e que a única fraqueza de sua
instrumentação residiria no fato de “que sob múltiplos pontos de vista ela não é
pronunciadamente em preto e branco”. Mas, claro, isso não significa que
estejamos diante de um casamento infeliz.
Dias atrás, enquanto ouvia o Deutsches Requiem, eu pensava nessas
considerações de Wittgenstein, sobretudo na sinestesia que elas ensejam de
maneira tão rica. Acho o réquiem de Brahms belíssimo justamente porque
condiz, dada a sua “ausência de cor”, com a opacidade da morte. É diferente do
famigerado réquiem de Mozart (em que pesem as polêmicas quanto à sua
incompletude, sobre quais partes Mozart de fato terminou e quais foram
finalizadas por seu amigo e discípulo Franz Xaver Süßmayr), cuja agressividade
é qualquer coisa, menos descolorida, e traduz a perturbação anímica de quem,
segundo se diz, julgava compor a própria missa fúnebre.
Brahms, que era luterano, ignorou a liturgia católica e seu latim, valendo-se da
língua alemã e de textos apócrifos. Em seu réquiem, fala da morte do ponto de
vista dos que foram (ou logo serão) enterrados vivos, por assim dizer. Ouvir sua
música é caminhar descalço por uma estrada outonal, forrada de folhas secas, e,
em suas anotações, Wittgenstein nos faz enxergar isso muito, muito bem.

9
Covas estreitas
Um tio da minha esposa faleceu há alguns dias. Covid-19. Ficou quase vinte dias
hospitalizado, vários deles entubado. Não pôde se despedir da esposa, dos
filhos, de ninguém. Não houve velório. E não puderam enterrá-lo no jazigo da
família. A viúva, acompanhada por alguns parentes, poucos, foi ao cemitério. A
paisagem era de covas abertas, aquela infinidade de bocas escancaradas para o
nada, como se o próprio chão estivesse estupefato, aterrorizado.
Isso foi na segunda-feira da semana passada. Fazia sol em São Paulo. Um belo
dia de outono. E a tia observou uma quantidade enorme de enterros ocorrendo
às pressas, um atrás do outro, como se acompanhasse uma linha de montagem
da morte, ou uma linha de desmontagem, de descarte. Ela pôde observar isso
porque a cova destinada ao marido era estreita demais. Então, teve de esperar
que outra cova fosse designada ao corpo (creio que o alargamento da primeira
também foi cogitado).
Como se não bastasse, ela ainda assimilava o soco sofrido na véspera: por
engano, foi chamada ao hospital com a informação de que o marido se
ANDRÉ DE recuperara e estava na enfermaria; lá chegando, soube da verdade. Do alívio à
LEONES dor extrema. Do esboço de um sorriso ao soco no meio do peito. Cada morte
arrasta outras consigo, literais e não literais, porque eu não saberia dizer se essa
mulher continua viva depois de tudo isso. Não sei se eu continuaria.
E a cova estreita demais? Os coveiros, cavando sem parar há meses, cavando
cada vez mais, exaustos, braços e costas moídos, as juntas estalando, mãos
estouradas, as narinas entupidas com o cheiro da terra e da morte, ouvidos
zunindo com o choro e os berros, os olhos ardendo com o que veem, não
querendo saltar das órbitas, mas, sim, mergulhar no aconchego interior,
desaparecer crânio adentro — ora, é compreensível que os coveiros tenham
calculado mal, cavado às pressas, algo do tipo. Quantas covas cada um deles
cava por dia, todos os dias? Haverá espaço para todas elas? E se todas
precisarem ser alargadas? E se não tivermos espaço físico para todos os nossos
mortos?
Criança ainda, crescendo em uma cidadezinha no interior de Goiás, lembro de ir
a um enterro e olhar ao redor. Os limites do cemitério eram precisos. Contando
as pessoas presentes, tentei calcular se todas caberiam ali quando chegasse a
hora. Não me parecia possível. Seriam enterradas umas sobre as outras? Eu me
lembro da terra molhada, escorregadia, e do cheiro que emanava. Não era um
dia ensolarado. Havia chovido. Lembro da lama nos solados dos meus sapatos.
Lembro de não saber onde colocar as mãos. Lembro de olhar para os familiares
do morto e pensar que eles também não pareciam saber; seus movimentos eram
estranhos, antinaturais, convulsionados. A morte exige muito do corpo de quem
continua vivo, de quem encara a boca aberta no chão, de quem testemunha a
descida.
Talvez a cova estreita seja um apelo inconsciente dos coveiros. Eles não
aguentam mais. Talvez a estreiteza seja uma forma de dizer isso, de se recusar a
enterrar mais corpos. Chega. Mas a doença não trabalha assim. Os criminosos
que permitiram à doença escalar com tamanha ferocidade não trabalham assim.
Talvez sejam eles os alargadores de covas. Alargam e, covardes, desviam os
olhos. E aqui nos deixam, sozinhos com os nossos mortos, à beira da enorme
cova estreita que se tornou esse país.

10
Amor à voz
Minha amiga Mariana veio contar a novidade,
eufórica.
“Estou apaixonada e namorando!”
“Oh! Isso é extraordinário. Ainda se usa?”
“Claro, Eleanora. O amor ainda acontece o tempo
todo, nas mais diferentes formas.”
“E como ele é? Onde o conheceu?”
“Tem uma voz linda, é educado. Eu o conheci no
shopping.”
“Na praça de alimentação? Na escada rolante?
CÁSSIA Mas como, se você subia e ele descia!? Como se
FERNANDES encontraram? São demasiados os desencontros
dessa vida.”
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“Ele é de fato sensível às minhas necessidades de ir e vir, mas não foi na
escada. Foi na cancela eletrônica.”
“Na cancela?! Você entrava e ele saía?”
“Não. Ele estava lá, como se me esperasse a vida toda.”
“Ele é um funcionário do shopping? Segurança do estacionamento?
Ajuda na entrega ou recolhimento dos tickets? Distribui folhetos
promocionais?”
“Nada disso. Ele é a voz.”
“Como a voz?”
“Sim. Todas as vezes que eu ia até o shopping, ele me dizia gentilmente:
bem vinda, e subia, impávido, me permitindo chegar lá. E cada vez que
eu saía: obrigada por me escolher.”
“Você está me dizendo que namora aquela voz da cancela eletrônica?”
“Qual o problema? Ele me disse mais palavras gentis do que ouvi em
toda a minha vida dos nativos. Os homens locais só emitem grunhidos ou
emojis, padecem de afasia ou são lacônicos. Mal nos dizem boa noite.
Raramente, um bom dia. E raramente demonstram gratidão pelo que lhes
CÁSSIA damos.”
FERNANDES “Mas quando ele diz bem-vinda, na verdade, bem-vindo, ele dá as boas
vindas, digo, as boas idas ao shopping, não a ele. O mesmo quando fala
obrigado pela escolha. Refere-se ao shopping, não ao fato de você o ter
escolhido. E repete para todas e todos.”
“O que tem? Você já não conheceu homens com repertório limitadíssimo,
que só distribuem frases feitas para todas? Além do mais, exclusividade
no amor é uma bobagem do século 20, aliás, 19.”
“Mas ele é só uma gravação, uma voz e nem tem um corpo.”
“E quem hoje precisa de um corpo? Em qualquer sex shop há partes
deles, próteses.”
“Já vi casos de quem se apaixonou por um sistema operacional, como no
filme Her, mas pela voz da cancela?”
“Pois tenho uma porção de amigos que construíram uniões estáveis com
a gravação do cartão de crédito. Nem falo dos amores de verão com a voz
do aeroporto.”
“Mas não é um relacionamento baseado no interesse? Ele não te faz
cobranças diárias?”
“Que relacionamento não tem suas faturas? É bem verdade que venho
gastando muito em compras. Mas o amor sempre foi perdulário. De resto
é uma relação saudável. Mantemos nossa independência e privacidade.
Eu entro. Ele fica lá, no espaço dele. É como um desses casamentos
modernos, em casas separadas.”
“Não exatamente, pois você vive no shopping.”
“Quando me ausento, ele ainda diz volte sempre. Que homem você já
conheceu que já te disse isso?”
“Você está certa. Será que ele tem algum amigo, digo, uma voz grave e
viril para me apresentar? Quem sabe de um supermercado. Há um
excesso de vozes agudas e femininas. Dizem que existe uma voz
masculina do GPS. Você conhece?”

12
Caso de pano e de polícia
Todos os dias, no caminho para o trabalho, eu passava diante de certa lojinha de
tecidos, que me inspirava doces nostalgias. Em uma segunda-feira, decidi fotografá-la.
Divirto-me tirando fotos e escrevendo sobre o que me sussurram ou pretextam. Postei-
me do lado de fora, no passeio público. Eis, porém, que detrás do colorido dos crepes
que caiam do alto, como tendas árabes, dos rolos verticais feito fantasmas molengos de
musselina, saiu um dono enfurecido, para interromper o curso da poesia que livre
corria, quase a transformar-se em foto e palavra.
Tinha ele decerto, com a fúria dos cães, suas razões. Promoveu-me de curiosa espiã do
mundo a detetive. E de mero olhar eloquente a ouvido mudo e penico. Censurou-me
por eu me apropriar, com meus olhos, de seu domínio, sem ligar ao fato de que seus
tecidos entupiam a calçada, que pertence – será possível? – aos que calçam, vestem e
passam. E assim, iracundo, contou o que não lhe perguntaram. Que seu divórcio virara
caso de política. E eu com isso? Mostrei-lhe as fotos na máquina digital, sem rostos
humanos e sinais de identidade. Pedi-lhe até indevidas desculpas, as que ele deveria
dar à Secretaria de Fiscalização Urbana do Município.
Quem sabe se não pensou que eu fotografava os rolos de tecido para advogados, e
CÁSSIA terríveis cálculos de partilha e pensão alimentícia? E se tantos bolados e floridos não
FERNANDES eram senão a fachada de um marido que sobre a mulher fechava a cara de cambraia e
o punho de linho? Não, nada sei sobre isso, sobre ele e as custosas costuras da
intimidade. Enfiei meus olhos na capanga e fui embora, ter lembranças meigas da
infância em outra freguesia. Eu que queria apenas alinhavar a história de quando era
menina e com minha mãe ingressava no mundo fascinante dos panos, que desde Noel
Rosa viraram rimas de piano, e dos armarinhos-passarinhos, para inventar um vestido
de aniversário ou roupa de ver deus no domingo.
Agora rio, mas fiquei chocada. E tendo agido assim, com tamanha eloquência e ira, ele
acabou por tirar do sono “a louca da casa”, denominação que Santa Teresa dava à
imaginação, segundo a escritora espanhola Rosa Montero. E desse modo ativou a tecla
do “ e se....”, a poderosa tecla a partir da qual, também de acordo com a escritora,
todas as nossas fantasias e histórias se criam. E se ele é assim ou assado? E se faz isso
ou aquilo? Virou personagem.
E até que não estava de todo errado, afinal, qualquer escritor ou jornalista é meio
indiscreto e detetive da vida privada. E o que não é visto, é logo inventado. Mas esse
senhor proprietário é também bastante imaginativo e bem relacionado. Anotou-me a
placa do carro e, no dia seguinte, fui convidada a depor na polícia, que nada tem a
fazer decerto além de meter a colher em briga de marido e mulher, em rusgas de
vizinhos, e rugas e nervuras de tecidos.
A louca de sua imaginação de senhor dono, que deve andar envolta, não em andrajos,
mas em finos vestidos, viu-me invadir, com máquina engatilhada e caneta em riste, o
estabelecimento, como um exército de espiões e paparazzi, disposta a flagrar algo muito
grave entre os metros de rendas francesas, sedas puras e popelines. E eu, a mais
sensacional das repórteres sensacionalistas, faria de um corte de cetim enforcado por um
pedaço de fita a principal manchete dos jornais do dia seguinte.
E como riu o delegado quando lhe contei de minhas intenções de poesia. E com que
casos hilários de seu ofício não me presenteou o servidor da lei, entre eles o daquele
mesmo sujeito que lhe fez apreender uma cueca usada, roubada pela ex-mulher
iracunda. Ela pretendia empregá-la numa macumba com o objetivo de exportá-lo para a
terra dos pés juntos. A Justiça agiu a tempo e a cueca foi confiscada, livrando-se daquele
mórbido comércio com o além. O delegado, conciliador, também me aconselhou a
despublicar da internet foto e poema, para evitar que eu tivesse de explicá-los diante do
Juiz das Causas Importantes, Embora Bem Pequenas.
Até hoje, passados meses disso, me perscruto sobre o crime que cometi e de que fui
acusada. A má sorte hedionda e inafiançável de estar na hora imprópria no lugar
errado? Ou talvez o delito de enxergar a beleza nas coisas mais triviais e pretender
registrá-la, sem requerer o alvará dos donos de tudo. Atitude tão condenável que talvez
devesse a Justiça obrigar os fabricantes de máquinas fotográficas a instalarem um
dispositivo, que os impedisse de fotografar espaços abertos, ruas, praças, prédios,
paisagens, árvores, animais e pessoas, afinal, tudo nesse mundo tem seu dono sortudo
ou surtado. Melhor, aliás, se o instalassem diretamente nos olhos da gente, que assim
não veriam nem belezas nem dementes. Ah, e acrescentassem um outro dispositivo para
aprisionar as mãozorras e as bocarras, essas perigosas máquinas de produzir palavras.

13
Os lugares imprevistos
do amor
Mônica mora só. Como certas espécies de solteiros, detesta a hora terrível de ir a
supermercados fazer compras. Exibição constrangedora da própria solidão. Lá estão
famílias inteiras divertindo-se. Um casal sorridente, maravilhado com as ofertas nas
gôndolas, troca beijos apaixonados diante das mil caixas de sabão em pó. O
burburinho das crianças pedindo, gentilmente, mamãe, me compra um chocolate, um
brinquedo, uma bicicleta, isso, aquilo!
E ela, ali – os óvulos caindo um a um, todo mês, como mangas maduras passadas do
tempo de colher. Ela exagera, claro. Fantasia um pouco – convenhamos. Ir às
compras em família não é necessariamente o que se pode chamar de excitante. E
famílias já não são exatamente apaixonadas. Mas é que – ah, natureza humana! – o
frango a R$ 1 real do carrinho ao lado sempre nos parece mais barato do que o nosso.
Por falar em carrinho, é ali mesmo na entrada do supermercado que começa seu
CÁSSIA drama. Enquanto os outros, os felizes, os bem casados, os namorados, os escolhidos
pelo Amor, pela Sorte, pela Fortuna, vão longo conduzindo aqueles carrinhos
FERNANDES gigantes, ela carrega, envergonhada, uma mísera cestinha, afinal, para que comprar
tantos víveres se em seu pequeno apartamento só uma boca vive e tão sozinha? Se
tudo se perde, se tudo passa do ponto: a carne, a imensa melancia, ela mesma, cuja
data de fabricação já está meio apagada nos documentos de identificação. Ela, que já
foi lançamento, marca nova com campanha de divulgação, já está quase com a data
de felicidade vencida.
Nem as pequenas delícias da solteirice lhe servem de consolo. Poder levar todas as
bobagens e guloseimas que se quer e deseja, e comê-las inteiras, sem ter que repartir
com uma família de bocas famintas. Me dá só um pedacinho! Nada disso! Os
bombons divinos só para ela! O xampu perfumado que dura meses! E, claro, o café
solúvel que não dissolve nunca o seu desespero.
Mônica está cansada de ir às compras só e mais ainda de procurar o amor nas ruas.
Os homens interessantes não estão lá, nos bares, nas festas, nas boates, em lugar
algum. Só mesmo se o acaso lhe sorrir. À procura de um norte, ela leu uma vez e
uma revista feminina que o amor acontece até nos lugares mais imprevistos, nos
supermercados abertos 24 horas, por exemplo.
A revista ensinava a descobrir, não só os diamantes incrustados nos homens feios e
tímidos, mas a sua alma gêmea, mesmo entre murchos maracujás de gaveta. Eles é
que dão o melhor caldo – a reportagem dizia – e prodigalizava dicas também de
como paquerar entre as seções de produtos para higiene e de bebidas. Preste bastante
atenção naquele homem que faz compras em horas incomuns, tarde da noite, no
silêncio das madrugadas – afinal, solteiros complexados evitam frequentar
supermercados nos horários de pico, preferidos por donas de casa. Observe
atentamente o que ele coloca na cestinha, o que pode revelar seu estado civil,
preferências, manias, situação financeira, se tem ou não namorada. Se ali vai um bom
vinho, congelados, pequenas porções de salada já preparada.
Ela tentava se lembrar disso quando saía. Estar sempre arrumada, pronta, maquiada.
Quem sabe se ali mesmo na esquina... Naquela noite, porém, meia noite, para ser
precisa, teve uma vontade súbita de comer palmito. Foi descabelada mesmo, roupa
puída, matar seu desejo fantasiado de grávida. Enquanto distraidamente pegava o
primeiro vidro que via, o rapaz lhe perguntou como é que se fazia para escolher
palmito. Ele sempre errava. Mônica lhe ensinou, prestativa, e trocaram contatos. Ela
até se esqueceu de comer sua delícia.
No dia seguinte, no momento exato em que tentava abrir o vidro, o telefone tocou.
Era o cara! Ela descobrira o caminho da mina. Não só passou a frequentar
supermercados pelas madrugadas, repondo regularmente seus estoques de conservas
variadas, palmitos, aspargos e alcaparras, como, toda vez que queria que um dos
bonitões lhe ligasse, começava a esfregar lentamente a tampa dos vidros, como uma
lâmpada mágica.

14
Batalha
simbólica
No primeiro domingo de fevereiro de 2009, fui
com minha mulher à missa das oito, na Basílica
de Trindade. Como de costume, a igreja estava
abarrotada de fiéis e o celebrante vendia fé em
forma de entusiasmo.
Lá pelo meio da missa, um fato conseguiu diluir
minha atenção, fazendo-me esquecer
EDIVAL parcialmente da homilia. É que sem mais nem
LOURENÇO menos uma pomba, dessas ordinárias, adentrou a
nave por uma porta lateral, na ponta de um voo
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tumultuado e buliçoso, quase se chocando contra as pilastras. Sem perda
de tempo, procurou amoitar-se detrás de uma caixa de som. Pelo o que eu
via, estava ofegante e trêmula.
Logo me ocorreu que na Teologia Cristã, em que Deus é uno e trino, a
pomba representa o Espírito Santo. Então meu pensamento derivou. E se
aquele pássaro não fosse apenas um símbolo criado pela imaginação
humana, mas o próprio Espírito Santo na sua rotina de correria, tentando
equilibrar as contas para não deixar a humanidade sucumbir aos próprios
desatinos? Pelo estresse do pássaro a situação estava feia.
Antes que meu pensamento seguisse por caminhos ainda mais tortuosos,
é revelada a causa de tanto apavoramento. Um falcão-do-cerrado, ou
melhor, um gavião-quiri-quiri, que entrou de assalto pela mesma porta,
com uma determinação demoníaca de agarrar o seu alvo, como é próprio
das aves de rapina.
O tal gavião pousou estrategicamente na cabeça da grua, junto da câmara
que colhia as imagens da missa para a televisão. A grua fazia seus
movimentos de sobe e desce, seus semigiros de 180 graus e o gavião ali
EDIVAL em cima, se equilibrando firme, direcionando seu ávido olhar para todos
LOURENÇO os lados.
Em seguida, salta da grua e empreende um voo panorâmico, dentro da
nave, indo e vindo em revoo sobre os fiéis, não sem antes emitir um
grasnido ameaçador. Suponho que para levar a presa ao desespero e se
mexer.
Aí me distraio completamente da missa e minha imaginação galopa sem
freios. E se a pomba for de fato o Espírito Santo e este falcãozinho, o
Demônio, almejando um petisco dos filés divinos? Estaríamos assistindo
de camarote, ao vivo e a cores à luta entre o Bem e o Mal, entre o divino e
o profano.
Se o gavião agarra a pomba, a crise que se abateu sobre o mundo então se
aprofundará irremediavelmente. Pois o Espírito Santo seria o nexo, a
coesão, o equilíbrio de todas as coisas. Ele representa desde a gravitação
universal que mantém as esferas celestes rodando, equilibradas no
espaço, até os elétrons em suas elipses, ao redor do núcleo dos átomos.
Sem o Espírito Santo, o universo seria um monturo, uma bagaceira só.
Se a pomba consegue escapar, então ganharemos sobrevida, pelo menos
até a batalha seguinte, até a próxima crise.
Nisso, a celebração termina, o padre deseja que vamos em paz e que Deus
nos acompanhe. O gavião desiste da caça e num voo rasante vaza por um
dos umbrais da basílica. A pomba sai do esconderijo e se restabelece sobre
a caixa de som. Exultante, arrulha e abre as asas como a consagrar os fiéis.
Fiéis esses que, aliás, nem suspeitam que uma batalha sobrenatural
aconteceu bem ali, diante dos olhos de todos que têm olhos pra ver.

16
A última folia de reis
de Geraldo Lourenço
Meu pai era folião de reis. Começou adolescente, como palhaço. Passou por
todas as posições. Fazia todas as vozes, tocava todos os instrumentos. Tinha de
cor os ritos, os cantos e o momento exato de entoá-los. Dançava catira, tirava
terço e leiloava prendas, declamava poemas campeiros. Alguns da própria
autoria. Sabia afinar os instrumentos. E eventualmente até consertar os
defeituosos. Na verdade, alguns ele mesmo fazia, como o zabumba, o pandeiro,
o pífaro de taboca com embocadura de cera e o reco-reco de canoinha e mola de
arame. Mas reconhecido mesmo era como o embaixador de voz possante e
afinada.
Naquele ano tive a felicidade de acompanhar meu pai a folia inteira. Desde a
saída da casa do alferes Augusto Silvério e D. Maria, até a festa de entrega do
festeiro Odilon Pereira e D. Alvina, ambos locais na fazenda Macaco. O giro
EDIVAL cobriu uma área enorme: regiões da Pindaíba, Santo Antônio e Canoa, além da
fazenda Macaco, município de Iporá.
LOURENÇO Uma chuva fina, quase névoa, caía sem intervalos desde o início de dezembro.
As trilhas das fazendas eram pura lama escorregadia. Especialmente na região
do Macaco, de terra massapé. Nos sete dias de giro meu pai teve crises. Algumas
vezes lhe faltou fôlego e sua voz entrecortava. Corria em seu auxílio o sobrinho,
também folião talentoso, Zé Lourenço. Esta é uma lembrança viva em minha
memória, como se tudo tivesse acabado de acontecer. Mas lá se vão quase cinco
décadas. Era cinco de janeiro de 1965. Num esforço extraordinário, meu pai
superou as fragilidades da saúde, fez a entrega da folia, por glória e honra do
Menino Jesus e dos Santos Reis, os magos do Oriente: Belchior, Gaspar e
Baltazar. Depois do terço, ainda viriam o catira, o leilão das prendas, a
comilança e o arrasta-pé, até o amanhecer. Depois do amanhecer ele, como
embaixador, ainda puxaria o Cântico de Despedida. Que é sempre uma hora de
muita emoção.
Mas, no alvoroço, meu pai me passou a lanterna e disse: vai lá no piquete e pega
o Pedrês, e vamos embora. Não me sinto bem.
Joguei um baixeiro nas costas para amenizar a chuva, fui ao pastinho, enfiei o
buçal na cabeça do cavalo, que era bem manso, e vim puxando pelo cabresto.
Meu pai, um vulto triste à luz do lampião, já me esperava na casa dos arreios.
Arriamos o cavalo e partimos, por volta da meia noite. Meu pai me jogou na
garupa, montou no arreio e nos cobriu com a capa velha de feltro. Se não me
engano era da marca Ideal. Eu não vi mais nada, o burburinho da festa ficou
abafado e foi sumindo pouco a pouco, à medida que nos distanciávamos.
Agarrei-me à cintura de meu pai. Senti-me seguro e próximo a ele como nunca
me sentira antes. A escuridão sob a capa, o som abafado da chuva, o cansaço, o
sono, a andadura, o cheiro forte de suor do cavalo misturado ao odor de fumo
que exalava de meu pai me deram a sensação de que eu entrara num mundo
amoroso e mágico. Como se recolhido num útero. Talvez um útero mais tosco.
De pai é que era.
Havia momentos em que a cavalgadura escorregava das quatro. A destreza de
meu pai com a rédea soerguia o cavalo e o aprumava novamente, dando
sequência à viagem. Apesar dos escorregões e solavancos, chegamos ilesos, no
alvorecer. Minha mãe assustada viu que havia algo de errado. Meu pai falou da
fadiga, do fôlego curto. Soltei o cavalo enquanto minha mãe acendia o fogo de
lenha para fazer um chá. E meu pai mal supunha que na próxima folia já estaria
morto, devorado pelo mal de chagas, antes dos 40 anos. O sobrinho Zé Lourenço
herdou a folia.

17
Natal em família
Naquele janeiro desolado, deixou para trás a mulher e os três filhos na cabana
dos pais já velhos, na pobreza plena de trabalhadores sem trabalho, às margens
do ribeirão Bingueiro, e se mandou pra Mundocaia, em busca de melhores dias.
Mas Mundocaia foi decepção total. Carlindo Raleado não achou o jeito da
cidade. Ela parecia selada, por fora e por dentro, para gente sem beira nem
algibeira como ele. Tentou de tudo – servente, segurança, catador de papel,
amolador de facas, limpador de quintal, chapa de caminhão – mas de tudo que
tentou a cidade lhe foi hostil. Cedo ainda concluiu que a cidade não gostava
dele. Que aquilo era uma terra amaldiçoada, caprichosa, habitada por gente sem
piedade e sem coração.
Na primeira oportunidade enviou um bilhete à mulher por intermédio de um
motorista a da Viação Marrequinho. Estava deixando para sempre a cidade
maldita para se aventurar em Goiânia. Não sabia por que, mas acreditava que na
Capital ele se daria bem. Talvez porque teria ouvido no rádio que Goiânia estava
precisando de muitos trabalhadores para o desenvolvimento de websites e que
EDIVAL essa atividade estava dando um dinheiro lascado.
LOURENÇO Praticamente dois anos se passaram sem que a família tivesse notícias do
aventureiro e vice-versa. Já era tempo suficiente para Carlindo Raleado ir se
raleando na memória dos seus. A esposa ainda nova, em plena posse de suas
chamas uterinas, de vez em quando não hesitava em olhar para homens
ocasionais com olhos de arpão.
Mas agora em dezembro, nas reticências do dia com a noite, Carlindo apareceu
de chofre. O filho mais novo gritou: tá chegando um homem aí. O pai, já meio
caduco, proclamou: é o fantasma de meu filho!
Sem ao menos esperar a surpresa esvaecer, Carlindo foi avisando: só vim buscar
minha família. Tenho obrigações em Goiânia e com obrigações não se brinca. A
cada um deu um presentinho à-toa, que seus caraminguás permitiram. Na
madrugada juntou a mulher, as crianças e os trapinhos, jogou tudo na Viação
Marrequinho, rumo a Mundocaia. Lá embarcou num buzu para Goiânia, onde
chegou no fim do dia.
Com a família deslumbrada, que ninguém tinha visto cidade grande, Carlindo
saiu da rodoviária direto pra cooperativa de catadores. Vestiu os varais da
carroça que o esperava, orientou mulher e filhos a segurar nas laterais contra os
perigos da cidade e saiu todo lampeiro, exibindo sua habilidade por entre os
carros.
Quando chegou ao cruzamento da T-4 com a T-63, esmolou os passantes,
alegando o passadio fraco da família. Com o dinheiro amealhado, comprou uma
pizza grande, um refrigerante idem, e se encaminhou para o viaduto da 85,
recém-inaugurado. Alojou-se sob a rampa magnífica, no local onde vai ser um
espelho d'água. Ali, entre as estrelas, as taças, as luzes e o foguetório do Natal,
cearam aquele maná divino, que a família desconhecia.
O filho mais velho, orgulhoso do pai, disse: um dia quero ter um carro assim,
que nem o senhor. Ao que o pai respondeu comovido, num gesto largo,
mostrando a cidade e suas luzes: tudo isso filho, até onde a vista alcança, um dia
será seu!

18
Luzes que
não se apagam
Já era quase noite, quando saí do caixa eletrônico
na Praça Tamandaré. Ouvi alguém chamando
meu nome. Era Helena, uma professora
aposentada de 68 anos. Ela e minha mãe se
conheceram em 2018, em um supermercado
próximo dali.
À época, minha mãe acabara de iniciar a
FABRÍCIA quimioterapia para tratar um câncer. Um dia,
HAMU durante as compras, ela queixou-se dos efeitos
colaterais. Helena ouviu, comentou que também
19
passava pelo mesmo tratamento e as duas começaram a conversar.
Desde então, sempre que se encontravam, as idas ao supermercado se
transformavam em longos desabafos, marcados por risos e lágrimas –
aquela cumplicidade que somente quem vive o mesmo problema pode
oferecer.
“Soube que você perdeu sua mãe no começo do ano. Fiquei tão triste. Se
ela faz falta para mim, imagine para você”, lamentou Helena. “Ah, nem
me fale! Sinto uma saudade imensa”, confirmei.
Perguntei a ela como estava sua saúde. “O câncer voltou. Descobri que
estou com metástase nos ossos”, respondeu. Helena tivera um nódulo na
mama há três anos. Fizera o tratamento, mas a doença havia progredido.
Sem saber como reagir, eu disse a primeira coisa que me veio à mente:
“Sinto muito!”. Numa serenidade desconcertante, ela respondeu: “Não
sinta, minha querida. É a proximidade da morte que nos traz de volta à
vida”.
Helena explicou que, desde que recebera o diagnóstico de que seu câncer
não teria mais cura, apenas controle, mudara radicalmente a forma de
FABRÍCIA agir. “Hoje, creio que estou realmente presente na minha própria vida.
HAMU Não vivo mais no piloto automático. Faço apenas o que tem sentido para
mim”, sentenciou.
Como exemplo, ela citou as visitas da neta, de 6 anos. “Antes, eu sempre
pedia pizza, porque tinha preguiça de cozinhar para nós duas. Ligava a
televisão ou a deixava no tablet, para distraí-la. Agora, faço questão de
preparar nossa comida e de usar todo o tempo disponível para interagir
com ela”, disse.
“Minha neta adora cachorro-quente. Enquanto sinto o cheiro do alho
dourando no azeite, para preparar o molho, percebo o quanto é bom
provar do meu tempero. Eu a ensinei a cortar as salsichas. Criamos nosso
próprio ritual, onde, na cozinha, ela me conta suas histórias e eu me
renovo com sua alegria”, relatou.
Helena também decidira cultivar no apartamento as plantas que gosta,
mas com as quais achava bobagem desperdiçar energia e dinheiro. “Com
a consciência de ter os dias contados, percebi que realizar meus desejos
nunca é perda de tempo”, concluiu.
Distraídas com a conversa, nos demos conta de que anoitecera. “Vamos
ver as luzes de Natal de perto?”, me convidou ela. “Você acredita que
moro nessa região há quase 30 anos, e essa é a primeira vez que venho à
praça para apreciar a iluminação?”, me confidenciou, aos risos.
Aceitei o convite e fomos ver o túnel comprido formado pelo pisca-pisca
das lâmpadas. “Que lindo. Se eu não tivesse vindo, não teria encontrado
com você nem reparado nessa beleza”, refletiu Helena.
Sem podermos nos abraçar, nos despedimos de longe. Ela, feliz pelas
luzes de Natal, e eu, por sentir que algo se acendera dentro de mim. Era o
impulso de estar presente na vida; de guardar o brilho do pisca-pisca e
não permitir que minha luz se apague, enquanto eu estiver por aqui.

20
João e Maria
“Socorro! Socorro!”, pedia uma menininha de longos cabelos negros trançados,
enquanto estendia os braços para o pai. “Papai, me tira daqui, que a chuva vai
molhar minha roupa!”, explicava, aflita.
A “roupa” em questão era um saco plástico de lixo azul, amarrado ao pescoço.
Isso para nós, os adultos. Para a garotinha, era a capa da roupa da Frozen,
personagem de desenho animado. “Obrigada, você salvou a princesa Elsa!”,
agradeceu ela.
Na verdade, a princesa Elsa chamava-se Gabriela. Estava com o pai e a mãe, que
são catadores de lixo. Eles sobrevivem do material reciclável que recolhem pela
cidade e transportam no carrinho de ferro pesado, que empurram pelas ruas.
Conheci a família na lanchonete ao lado do laboratório onde fui fazer um exame.
Decidi parar para lanchar e, logo em seguida, começou a chover forte. Os três
estavam na rua e correram para debaixo da marquise.
Eu comia um bolo de chocolate, que imediatamente hipnotizou Gabriela.
Perguntei se ela queria um pedaço. “Não precisa não, moça. Criança quer tudo o
FABRÍCIA que vê pela frente”, desculpou-se o pai.
HAMU Apesar da reprimenda, a pequena continuava com os olhos vidrados no bolo.
Pedi à atendente que servisse um pedaço a ela, que comeu como se fosse o
próprio manjar dos deuses. “Obrigada, tia! Chocolate é tão bom!”, agradeceu
ela.
Como a chuva demorava a passar, começamos a conversar. O pai de Gabriela é
Samuel e a mãe é Kaliane, um jovem casal que saiu do Piauí para tentar a sorte
em Goiás. O plano era que ele trabalhasse com o pai, que era pedreiro.
No entanto, no ano passado, o pai de Samuel morreu de Covid-19. “Como não
temos estudo nem conseguimos creche para a Gabi, que tem 5 anos, o jeito foi
catar lixo na rua para ganhar a vida”, explicou ele.
“Sabia que eu também sou a Moana e a Ladybug?”, interrompeu a pequena. “É
verdade?”, eu quis saber, intrigada. Então ela correu no carrinho e buscou a
fantasia de Moana, feita com pano de chão, e a máscara da Ladybug, produzida
com papelão.
Impressionada com a criatividade, perguntei quem havia feito as peças. “Fui
eu!”, contou Kaliane. “Ela assistia aos desenhos na TV da vizinha e ficava louca
pelas fantasias. Fiz com os recicláveis, porque a gente precisa se virar com o que
tem, né?”, completou.
“Pai, faz a Frozen voar?”, pediu Gabriela. Samuel pegou-a nos braços e simulou
um voo rasante. “Tá vendo o castelo lá embaixo, filha?”, perguntava ele. “Tô!
Tem o castelo e a neve! Papai, tô coberta de gelo!”, contou ela, aos risos.
Lá fora o temporal alagava a cidade, havia uma pandemia, um carnaval adiado
e a dureza da vida. Já debaixo da marquise, no universo daqueles três, a fantasia
tornava o mundo mais doce e suportável, como na música “João e Maria”, de
Chico Buarque.
“Vamos patinar na neve, princesa?”, disse Samuel, convidando Gabi para
dançar no chão que ele cobrira com uma placa de isopor retirada do carrinho.
“Vamos!”, respondeu ela, exultante.
Pai e filha saíram dançando sobre o isopor, que se esfarelava nas poças d´água da
calçada. Uma princesa linda de se admirar. Um homem que era o rei, era o bedel
e era também juiz. E pela sua lei, a gente era obrigado a ser feliz.

21
Amor em quatro patas
Chego ao pet shop e, ao passar pelos diversos corredores repletos de produtos,
fico na dúvida sobre a melhor cama para cães levar. Observando minha
hesitação, uma cliente puxa conversa: “É para um filhote ou para um animal
adulto? Essa cor-de-rosa costuma ser muito boa.”
Grata pela gentileza, respondo que era para uma filhotinha, que eu acabara de
ganhar de presente de Natal. Era a deixa que Keila, uma comerciante de meia-
idade, precisava para compartilhar sua história: “Ah, você vai adorar! Desde que
adotei minha cadela, a vida mudou para melhor!”.
Pergunto como se deu adoção e Keila diz que foi em setembro do ano passado.
“Um dia, cheguei para abrir minha loja e uma vira-latas preta, de manchas
brancas, estava deitada na porta. Ela portava coleira, parecia bem cuidada, mas
tinha sede e fome”, conta.
A comerciante alimentou o animal, que permanecera na porta do comércio até o
final do expediente. “Foi então que percebi que ela estava com a pata
machucada. Creio que fora abandonada pelos antigos donos e, perdida, acabou
FABRÍCIA atropelada na rua”, lembra Keila.
HAMU Sensibilizada, ela resgatou a cadela e a levou até uma clínica veterinária. Fora
informada de que seria preciso operar o animal. Autorizou o procedimento e
saiu de lá em busca de uma entidade que ajudasse na adoção da cadela. “Nunca
imaginei ficar com ela, porque passava por uma fase bem difícil”, explica.
Em função de um divórcio recente e da partida do filho único, que decidira
tentar a vida nos Estados Unidos, Keila se viu sozinha e desenvolveu depressão.
“Não tinha vontade de sair de casa para nada, ia trabalhar obrigada”, fala. A
exceção ficara por conta da clínica, onde ela checava diariamente a evolução da
cadelinha.
Por ser mais velho e de médio porte, o animal não encontrou pessoas
interessadas em adotá-lo. No dia da alta, Keila criou coragem e anunciou à
veterinária: “Ela vai ficar comigo”. Mal sabia a comerciante que seria o início de
uma grande mudança em sua vida – e para melhor.
“Graças a ela, sou obrigada a sair pelo menos duas vezes ao dia, para levá-la
para passear. Acabei fazendo amizade com outros donos de animais e trocando
boas experiências de vida. Hoje, não sei mais o que é solidão. Ao chegar em casa,
sou coberta de lambidas e muito carinho”, relata a comerciante.
A cadelinha foi batizada de Kyra e, apesar da alegria que espalha por onde
passa, também foi alvo de censura. “Muita gente veio me dizer que eu estava
procurando sarna para me coçar, que se era para adotar, que fosse um filhote de
raça, um cachorro bonito”, se queixa Keila.
Peço para ver uma foto da cadelinha e, com o celular em punho, ela me mostra
várias. “É linda”, sentencio. E sugiro que, sempre que alguém criticar a
aparência de Kyra, ela se lembre do escritor Valter Hugo Mãe, no livro “O
paraíso são os outros”, onde ele diz que a falta de beleza não é um problema do
ser, mas de quem o observa.
“Adorei esse livro, vou anotar para comprar!”, responde Keila, animada. Antes
de se despedir, ela me incentiva: “Fique tranquila, você será muito feliz com sua
cachorrinha”. E arremata: “Dizem que eu salvei a Kyra, mas foi ela quem me
salvou”.

22
A torneira não
para de pingar
Nasci desprovido de habilidades consideradas
cromossômicas, embora a teoria da existência de
“coisas de homem” só sirva para enfraquecer a
masculinidade de caras como eu. Exemplo:
empunho chaves de fenda ou furadeiras com a
mesma destreza de um vegetariano operando um
FABRÍCIO moedor de carne. De posse de um martelo, coloco
CARDOSO falanges sob risco iminente de esfarelamento.
Apesar da extensa folha de serviços porcamente
23
prestados, que vai de parafusos acoplados em diagonal ao gotejamento
torturante de torneiras, condições especialíssimas e emergenciais insistem
em me levar a lojas de materiais de construção. Foi lá que vi algo bem
estranho, mas que pareceu perturbar só a mim.
Num desses corredores estreitos, sempre apinhados de pessoas lançando
olhares de dúvidas para as prateleiras, me esgueirei de uma mulher, na
casa dos 50 e poucos anos, tentando domar duas tábuas sobre um
carrinho de dimensões acanhadas. Metade delas se projetavam para fora
do gradio, razão pela qual defendo a exigência de habilitação e porte de
arma dos consumidores de loja de material de construção com astral de
supermercado. Bem, diante da dificuldade natural imposta pela
circunstância, a mulher avançava com certa dignidade.
Porém, na segunda vez que a madeira chocou-se contra a parte metálica,
provocando um ruído, um menino de não mais de 10 anos irrompeu no
corredor, aos gritos.
– Pô, Vó! Já te disse para não ficar mexendo pra lá e pra cá. Você é burra!
Cabisbaixa, a mulher entregou o controle do carrinho ao pequeno perito,
FABRÍCIO sem esboçar um muxoxo. Fiquei solitariamente boquiaberto, porque
CARDOSO todas as demais testemunhas seguiram lançando olhares de dúvidas para
as prateleiras, indiferentes.
Corta.
Estou estacionado numa esquina da T-10, sorvendo goles curtos de água
com gás enquanto aguardo meu caçula se despedir do amigo. Aos
poucos, me dou conta que a paternidade é também um exercício de
espera. Ali, naquele ócio forçado, vi algo bem normal, mas que pareceu
perturbar a todos.
Observei o desfile de pedestres virando o pescoço até o limite de um
torcicolo para depois, voltando a cabeça para a posição normal, formar
uma expressão facial de nojo. Então percebo, do outro lado da rua, dois
rapazes trocando carícias inocentes.
Um, de bermuda quadriculada, alisava a bochecha do outro, de chapéu
hipster, que retribuía escondendo os fios rebeldes atrás da orelha do
menino de bermuda quadriculada. Na falta de referência mais erudita,
diria que se olhavam como a noiva do Eri Johnson olha para o padre
Fábio de Melo. Eram carinhos plenos de candura, sem qualquer energia
sexual. Nem a mais obscena das mentes poderia interpretar aquilo como
preliminares ou expressões de desejo com força para agredir nosso
sacrossanto pudor. Em meio a uma multidão boquiaberta, fiquei
solitariamente em paz, indiferente.
Sinto-me um tanto deslocado num mundo que considera o amor mais
ofensivo do que a grosseria. Às vezes, dá uma vontade louca de consertar
tudo, mas, ainda que tivesse poder para tanto, como confessei acima, não
sou bom nisto. Resta-me engolir as incoerências, prostrado, porém com o
desassossego de quem vive ao lado de uma torneira que não para de
pingar.

24
Herdeiro de
imerecidas glórias
Ando ouvindo uma frase capaz de estufar peitos mais afoitos:
– Fabrício, você é o cara!

Se há algo que a vida me ensinou foi a não desperdiçar elogios. Gozo-os com a
volúpia de um vegano diante de jacas, mesmo quando imerecidos – o que, no
meu caso, desgraçadamente, são a maioria. Ouço palavras carinhosas num
volume incompatível com meu caráter. Sou cínico e emocionalmente assimétrico
para justificar tanta consideração. A prova disso é que desfruto dela sem
pudores de consciência.
De umas semanas para cá, porém, não tenho encontrado paz no cultivo dessa
imoralidade. Pela primeira vez em mais de quatro décadas, não por excesso de
exigência comigo mesmo, talvez por análise mais sincera do mérito, considero
FABRÍCIO meus feitos ordinários demais para merecer admiração. Há algo de sórdido no
respeito automático que a cultura dominante me confia, simplesmente por eu ter
CARDOSO nascido menino.
O leitor mais atento já deve ter notado pelas reiteradas lamúrias de saudade que,
por contingências temporárias, estou vivendo a 830 quilômetros da minha mina,
segundo informa a medição em linha reta do Waze. Nesse processo de
reorganização matrimonial, coube a mim ficar com nossos meninos. Trata-se de
um trabalho tão prazeroso quanto simples, dada a alma iluminada desses dois
sujeitos já à beira da vida adulta.
Aliás, minha maior chateação nesse período foi a percepção de como a carreira
atrapalha a paternidade, e não o contrário, como a turma é treinada a pensar. Ao
assumir integralmente o compromisso operacional da casa, coisa que há pouco
se dava em termos de coautoria, encontrei um tesão adormecido. Um feijão
chiando na panela de pressão tem em mim o mesmo efeito de um parágrafo bem
redigido. Sinto-me radiante com a missão que a circunstância me trouxe.
Mas o fato aleatório de ser um portador de pênis transforma minha rotina, leve e
linda, em gesto de heroísmo aos olhos de um mundo forjado no machismo.
Houve gente que, no afã de gentilezas, o que me comove, me classificou de
“pãe”. É uma corruptela para quem acumula os cargos de pai e mãe.
Ocorre que a distância não reduziu a maternidade da minha mulher, assim como
não fui menos pai nas incontáveis vezes em que me ausentei correndo atrás de
aspirações pessoais, nem todas com relevância para compensar o sacrifício.
Também não me consta que ela tenha sido chamada de “mai” nessas minhas
ausências. É na palavra, inclusive nos neologismos, que a lógica injusta se
reafirma.
Nesses dois meses, presumo com certa liberdade estatística, recebi mais elogios
do que minha mãe em 40 anos de exclusivo sacerdócio doméstico. Sou grato aos
que se ocupam de me encorajar. É fruto da bondade de amigos, da preocupação
genuína comigo, com meus filhos, com minha família. Mas me permito
estranhar o silêncio para mulheres metidas em responsabilidade iguais ou mais
complexas do que as que ora enfrento com data para terminar.
Um mesmo esforço passa de virtude a obrigação, tendo a genitália com régua.
Não consigo me sentir confortável numa sociedade assim.
Ou revemos as falsas glórias atribuídas aos homens, ou vou cobrar elogio por
fazer xixi em pé.

25
Nosso dia de
dinamarqueses
Discurso como um operário, volta e meia alguém mais exaltado me recomenda
uma migração para Cuba, mas a verdade absoluta é que sou um pequeno-
burguês clássico. A fantasia de que nada tenho a ver com os componentes da
filarmônica de panelas em sacada se desfaz, gradativamente.
O primeiro indício da minha farsa sobreveio quando levei meu filho, pela
primeira vez, ao Centro de São Paulo. Até o 6 anos, o menino fora criado num
lugar onde todo mundo vive com medo da violência, mas só morre quem, como
se diz em goianês, “mexe” com drogas. Atônito ao ver um homem dormindo no
chão, protegido de um vento encanado pelos prédios com trapos sumários,
perguntou:
– Pai, por que aquele rapaz está deitado ali?
A indagação revela que mantive meu filho alheio à pobreza num país cheio de
FABRÍCIO miseráveis. Não foi por um ou dois dias, mas a infância dele inteira. Há quem se
orgulhe disso, e respeito. Pais buscam sempre o melhor. Só creio que a bolha
CARDOSO artificial proporcionada à guisa de conforto explica parte dos discursos hoje
reinantes, carentes de empatia, inclusive de autoproclamados cristãos.
Semana passada, lá estava por São Paulo e novamente minha contradição
existencial se manifestou. Meu filho, não esse que mantive na bolha, o outro,
arqueava-se depois de dois passos. Obstruído, o aparelho respiratório roubava
toda a energia do corpo. Parecia-me um caso clássico de infecção, razão pela
qual decidi leva-lo ao médico.
Ocorre que meu plano de saúde goiano oferecia como referência um hospital
distante de onde estávamos. Decidi então arriscar, e esse é o verbo, numa
Unidade Básica de Saúde das redondezas. Diz-se UBS. Enquanto caminhávamos
até lá, me flagrei que, em 13 anos, meu pequeno jamais fora atendido pelo
Sistema Único de Saúde. Mas a estreia não foi ali, ainda.
Por ignorância do pai pequeno-burguês, carente da informação de que UBS só
trata com hora marcada, fomos gentilmente encaminhados a um pronto-socorro
infantil três quadras adiante. Mas antes tive a curiosidade de perguntar quanto
tempo levaríamos para ser atendido pelo pediatra, caso quisesse agendar a
consulta. Disseram 15 dias e senti certa inveja, visto que médicos, ao te
identificar como paciente de plano de saúde, sugerem datas de virar duas folhas
no calendário.
No hospital pediátrico, fui surpreendido por uma equipe de profissionais com
muita vontade de acertar. Do recebimento no balcão, passando pelo acolhimento
na enfermaria, avaliação inicial do pediatra, contorcionismo para o raio-X do
pulmão e volta ao médico para a receita de antibiótico, foram menos de 90
minutos. Meu filho sentiu-se um dinamarquês. Estranhei muito ao sair de lá sem
colocar a mão na carteira.
O que quero dizer com isso, além da insignificância das minhas incoerências
entre discurso e prática? Que há espaço para a prestação de serviço público de
qualidade e as pessoas são fundamentais nesse processo. Gastamos latim
falando em grana, em cortes, em suplementações, em planilhas, em mais
impostos. Tudo isso melhora a estrutura, que ainda é precária. Mas sem gente
respeitosa na linha de frente, para olhar com dignidade no olho de quem
precisa, a coisa não vai andar.
Estamos numa época de refletir sobre o futuro. O Brasil que eu quero é aquele
onde um pequeno-burguês não se sinta como se estivesse saindo do restaurante
sem pagar a conta quando recebe um serviço público de qualidade.
E pare de buscar referências nos Estados Unidos, onde um doente estrebucha até
a morte se não tiver plano de saúde.

26
O mais terrível
dos labirintos
A ideia de um caminho que leva a outro, e este ao
próximo, em bifurcações que beiram o infinito,
amedronta e atrai a humanidade desde que o
mundo é mundo.
Dos vários labirintos conhecidos, o mais famoso
talvez seja o de Creta, construído para criar a
FLÁVIO confusão de quem o desafiasse e no qual vivia à
CARNEIRO espreita, em algum canto sombrio, um monstro
com corpo de homem e cabeça de touro. Apenas o

27
jovem Teseu – guiado pelo amor – conseguiu escapar da morte, com a
espada e um longo fio que recebe de sua amada, Ariadne. Com a espada
mata o Minotauro, com o fio amarrado na entrada refaz o caminho de
volta.
Seria o labirinto de Creta, criado pelo rei Minos na Grécia antiga, o mais
temido de todos?
Não, nada disso.
O mais terrível, o mais tenebroso, o labirinto dos labirintos me foi
revelado pela minha filha Maria, quando tinha 5 anos.
Brincávamos no gramado de um campo de futebol, em Teresópolis. Eu
estava sentado no chão com minha outra filha no colo – Luísa, com 2
naquela época. Maria corria pela grama, fazendo voltas e voltas. A certa
altura gritou para mim: pai, estou fazendo um laberinto (assim mesmo:
laberinto).
Esperei calmamente que ela terminasse sua construção.
Ela então chegou perto de mim e perguntou: onde começa, pai? Apontei
para um ponto qualquer. Maria se sentou ao meu lado e ficou olhando
FLÁVIO para o nada, ou pelo menos para onde algum adulto cego (não dos olhos)
CARNEIRO só veria o nada.
Depois, meio cansada, a cabeça no meu ombro, disse:
“Muito difícil sair desse laberinto, papai.”
Ficamos os três ali. Luísa no colo, dormindo (sonhava com seus próprios
labirintos?), eu e Maria meditando sobre uma possível saída para um
labirinto do qual não se vê a entrada, nem as paredes, que não sabemos se
abriga no seu interior um Minotauro ou algo pior, que não nos oferece
opções, esquerda ou direita, porque não sabemos ao certo onde fica
esquerda e direita numa construção imaginária.
O labirinto que eu via não era o mesmo que minha filha estava vendo. O
meu mostrava pessoas, lugares, perigos que Maria nunca viu nem vai ver,
nem ela nem ninguém porque são apenas meus. O dela, por sua vez, era
feito dos seus próprios medos, pesadelos, perdas. No entanto estávamos
juntos e só poderíamos, obviamente, sair juntos daquela assombrosa
armadilha.
E com a facilidade com que minha pequena arquiteta dos ventos criou
seu labirinto, ela mesma achou a saída.
Apanhou na grama uma vareta e brandiu com ela os ares, em
movimentos de fada poderosa. Depois me disse, o olhar seguro de quem
sabia o que estava fazendo:
“Não precisa ter medo, papai, vamos sair agora desse laberinto. É só usar
a minha varinha de cordão!”
E assim fomos salvos do mais terrível de todos os labirintos, graças a uma
providencial varinha de cordão.

28
Não ganhei dinheiro, não
fiquei famoso, mas foi legal
Final dos anos 90, arredores de Lisboa. Estávamos num antigo castelo medieval,
transformado em restaurante. À mesa, José Saramago e a mulher, Pilar. E também
Nélida Piñon e Adriana Lisboa. O restaurante tinha sido reservado pelos
organizadores de um prêmio literário que a Adriana havia ganhado, a primeira
brasileira a receber aquele prêmio. Pilar contava piadas, engraçadíssimas. Saramago
dizia para a Adriana que ela era muito jovem para ter escrito algumas cenas de
Sinfonia em Branco. Eu estava de terno (putz). Não me lembro do cardápio. Me
lembro do rosto do Saramago. Parecia uma tartaruga, doce tartaruga.
Projeto Copa da Cultura, idealizado pelo Gilberto Gil, então ministro, para divulgar
a cultura brasileira no exterior aproveitando a vitrine da Copa do Mundo na
Alemanha, em 2006. Eu participava do projeto como curador na área de literatura.
Precisava montar a programação de um ano em Berlim, com escritores brasileiros.
FLÁVIO Queria chamar o Raduan Nassar, que já tinha parado de escrever, abandonando de
vez a vida literária. Era difícil chegar até ele. Consegui o contato do seu tradutor
CARNEIRO alemão, Berthold Zilly, que me prometeu repassar o convite. Uma, duas semanas
depois, nenhuma notícia. Esqueci o assunto. Até que certa manhã o telefone toca, eu
dormindo ainda, em Teresópolis.
Era o Raduan. Agradecia mas não poderia aceitar, estava um pouco fora dessa coisa
de literatura. Eu não estava sonhando, era verdade: o Raduan tinha ligado,
gentilíssimo, para dizer que não queria ir para a Alemanha, com tudo pago e
generoso cachê, porque estava um pouco fora dessa coisa de literatura. Grande
Raduan Nassar.
Banco de praça em São Francisco Xavier, na Serra da Mantiqueira. Manuel da Costa
Pinto faz uma entrevista comigo e com o Luis Fernando Verissimo para o programa
Leituras. Verissimo era, ainda é, meu ídolo. E estávamos ali, num banco de praça,
falando sobre futebol (ele tinha escrito a orelha do meu livro Passe de Letra: futebol
& literatura). De repente o mestre, sempre quieto, silencioso, interrompe o Manuel e
me pergunta que tipo de jogador eu era quando jogava de verdade, em Goiânia.
Assim, à queima-roupa. Deu um branco e só soube dizer: eu era veloz. Resposta tão
bobinha. Pergunta e resposta não foram ao ar. Ainda bem.
Viagem literária por cidades do interior de São Paulo. Durante uma semana, uma
dupla de escritores percorria cidades pouco contempladas com esse tipo de visita.
Na parte de trás do carro, eu e a Marcia Tiburi. Na frente, só o motorista. Era final
de tarde e o carro seguia solitário por uma estrada de pouco movimento. A noite
chegando aos poucos. E de repente, do nada, Marcia se vira para mim e diz:
“Eu vejo pessoas mortas.”
Levei alguns segundos para entender que não estava brincando. Um silêncio
sepulcral desceu sobre o carro. Até que o motorista, me olhando pelo retrovisor, a
voz ligeiramente soturna, diz, sério:
“Eu também.”
Novo e prolongado silêncio. Me senti estranho.
Início dos anos 90. Eu fazia parte da equipe do Proler, o Programa Nacional de
Incentivo à Leitura, criado e coordenado pela querida Eliana Yunes na Biblioteca
Nacional. Francisco Gregório e eu trabalhávamos num projeto: transformar um
vagão de trem numa biblioteca. A biblioteca-vagão seria acoplada a um trem de
carga. Viajaria pelo interior do país, emprestando livros e promovendo atividades
em torno da leitura.
O presidente da Rede Ferroviária Federal demonstrou interesse e quis nos conhecer.
Lá fomos nós, eu e o Gregório, para uma reunião na Central do Brasil, levando
farto material, inclusive o desenho do vagão, como seria por dentro, feito por um
arquiteto. O presidente se mostrou entusiasmado e prometeu conseguir a verba
para o projeto. Saímos de lá confiantes. Cheguei a dizer ao Gregório: agora vai. Não
foi. Nunca foi.

29
De saudade com você
Eu estava numa viagem de trabalho quando recebi pelo celular uma mensagem
de voz gravada pela minha filha Luísa, na época com 2 anos. Embora goste
muito de falar, desta vez Luísa foi bem econômica com as palavras. Disse
apenas:
“Papai, estou de saudade com você.”
Pronto, sem mais.
De início só achei engraçado. Ela costumava fazer essas trocas. Às vezes eram
apenas letras desencontradas. Noutras, uma palavra no lugar de outra dentro da
frase, como me pareceu ser o caso. Fui fazer o meu trabalho e só à noite, no
hotel, me dei conta da pérola que viajava escondida naquela brevíssima
mensagem.
Cecília Meireles escreveu que é também delas – as vagarosas saudades – que os
dias são feitos. Mário Quintana definia saudade como aquilo que faz as coisas
pararem no tempo. Chico Buarque cantou que a saudade dói como um barco
que aos poucos descreve um arco e evita atracar no cais.
FLÁVIO Músicos, poetas, cantores, filósofos, linguistas, intelectuais da mais alta estirpe,
CARNEIRO com pós-doutorado nas grandes universidades do mundo, várias cabeças
pensantes já se debruçaram sobre o sentimento a que chamamos de saudade.
Belas, profundas e tão diferentes entre si, as definições coincidem num ponto.
Trata-se de um sentimento de mão única. Saudade é o que você sente quando o
outro, tão querido, está ausente. É algo que parte sempre de você para o outro.
Se também o outro sente a sua falta, vai lhe dizer: estou com saudade de você. O
sentido se inverte, mas não deixa de ser unilateral.
A grande novidade nos altos estudos sobre o tema vinha da frase da Luísa. Ali, a
saudade é compartilhada. Não estou com saudade de você. Estou de saudade
com você.
Estar com saudade pode ser uma coisa boa. Quer dizer que você está vivo, que
sente algo profundo por alguém. Agora, estar de saudade vai além disso, está no
campo do divino, do maravilhoso. Significa que, em algum lugar, existe uma
pessoa que também pensa em você (justamente a pessoa que você gostaria que
estivesse ao seu lado).
Significa ainda que você tem consciência de que o sentimento é recíproco. No
exato momento em que você sente a falta do outro, sabe que o outro também
sente a sua. Por isso tome cuidado, é arriscado dizer que está de saudade com
alguém. É preciso ter bala na agulha para dizer uma coisa dessas. Vai que é só
você que sente e o outro não está nem aí.
Então, se você não tem certeza de que é correspondido, melhor ficar com a
forma tradicional mesmo. Manda ver um estou com saudade e tudo bem.
Se, no entanto, tiver certeza de que, do outro lado da linha, existe alguém que
sente sua falta com a mesma intensidade com que você sente a dele, fique à
vontade para usar a expressão criada pela Luísa (ela já me garantiu que não vai
exigir direitos autorais). Encha o seu coração e diga, com firmeza: estou de
saudade com você.

Estas e outras crônicas estão publicadas no livro de Flávio


Carneiro: Histórias ao redor (Vitória: Editora Cousa, 2020.)

30
Para Noias &
Para Grafos
O português às vezes pode ser uma língua muito
imprecisa. Um dia disseram no trabalho que eu
era como uma avalanche. E, apesar do tom
amigável que veio junto àquela comparação, não
tinha certeza se era um elogio. Muito menos se
era uma ofensa. Como as pessoas conseguem ser
GUSTAVO tão inexatas?
PALMEIRA Sentado no ônibus voltando para casa (no antigo
normal), olhava para a janela e refletia sobre tudo
31
o que uma avalanche poderia significar. “Uma avalanche nadamais é que
um monte de flocos de neve aglomerados”, pensava. Vale ressaltar que a
palavra “aglomerados” ainda não era tão pejorativa.
E um floco de neve é lindo de se ver. Tem um formato único e curioso. É
bom.
Mas a avalanche… Ela é destrutiva, é fria demais. Ninguém quer uma
avalanche por perto. Ela é como se fosse um rio congelado (ou seria mais
uma cachoeira?).
Nessas horas dá inveja da língua escocesa que possui 412 palavras para
neve, superando os esquimós que possuem “só” 50. Quem diria que
morar num país tropical teria desvantagens linguísticas. Não tem como
confiar num idioma que a frase “não tenha clemência” tem o significado
oposto de “não, tenha clemência”. É poder demais para uma mísera
vírgula.
Outra prova cabal dessas esquizofrenias sintáticas do português é a
expressão “empolgado”, que é um termo que pode ser usado tanto para o
bem, quanto para o mal. Se você falar em tom áspero que uma pessoa é
GUSTAVO “empolgada”, quer dizer que ela é sem noção, mas, com nuances de
PALMEIRA alegria, é um super elogio, a pessoa é alto astral.
A mesma palavra, duas verdades muito diferentes. Se bem que isso é até
natural né? Uma gota d'água tem esse mesmo esquema: um pouco pode
até ser agradável, mas, em grande quantidade, consegue te afogar. Talvez
a língua portuguesa só esteja se adaptando às irregularidades do mundo.
Mar calmo nunca fez bom alfabeto.
E o ditado afirma que água mole em pedra dura tanto bate até que fura.
Mas, no meu caso, foi neve fria em cabeça dura tanto bate até que pira. Os
dias que se decorreram foram de intensa análise.
Na terça-feira, falei demais na hora do cafezinho com os colegas. Pensei
que poderia estar “empurrando” uma massa de informação neles.
Avalanche. Na quinta, falei de menos. Talvez estivesse sendo gelado, sem
vida. Não que ficar quieto é necessariamente ruim, mas, quando se é uma
avalanche, você tem que ficar atento.
Fiquei sofrendo com o que aquilo queria dizer por mais uns 10 dias e
cheguei à seguinte lista: frio, insuportável, grandioso, raro, avassalador,
incontrolável, interessante, gelado, exótico e magnífico. Então, depois de
todos esses dias pensando, encarei o medo do pejorativo e decidi
perguntar à minha colega de trabalho o que ela queria dizer com aquela
maldita expressão.
- Nem lembro. Ela me respondeu.
Até hoje morro um pouco por dentro quando me lembro dessa história.

32
Batendo A Meta
Linguística
Todo trabalhador tem suas metas para bater. E, como nós brasileiros bem
sabemos, muitas vezes elas batem de volta. Na cara. Principalmente porque, no
geral, quem as define não é quem tem que alcançá-las. Por exemplo, no meu
caso, quando escrevo um texto aqui para o Jornal, eu tenho uma meta a bater:
são 2.700 caracteres por crônica.
Ou seja, a cada texto, tenho que expressar a minha ideia com, no mínimo, 2.700
toques no teclado. E o caminho para alcançar essa meta linguística às vezes fica
especialmente difícil para mim, que tanto gosto da compacidade da
comunicação dos nossos tempos (leia-se viciado em memes da Gretchen). E
muita gente achava que arte não dava trabalho né? Nem tudo é quadro abstrato,
meus amigos.
Mas aí, quando me falta a criatividade para encontrar os 1.800 caracteres
GUSTAVO faltantes, deixo o texto de molho por alguns dias e vou amadurecendo o assunto
na minha cabeça.
PALMEIRA Peço ajuda aos amigos, faço uns esboços, macumbas, despachos... Procuro
memes que se encaixam no tema (você quer referências, @?) E, quando vejo,
faltam só 1.626. “Só”.
Porém, aqui na casa dos 979 toques, eu devo fazer uma confissão: nem sempre
fui capaz de atingir a determinação numeral estabelecida pelos meus amados-
contratantes.
Juro que tento ser um funcionário exemplar e arrasar mais a cada texto, mas,
infelizmente, algumas vezes me faltaram as piadas para chegar nos benditos
2.700. Não é sempre que dá para falar do silicone da minha mãe.
Das 22 crônicas que já publiquei aqui, 2 ou 3 estavam abaixo do requerido. O
que não-é-péssimo-mas-também-não-é-bom, sabe? Então, quando chego nos
1.700 toques como agora e preciso de motivação nessa reta final da jornada
etimológica, paro e lembro da beleza em ter metas.
Pois, se metas eu tenho é porque alguém confia na minha capacidade de cumpri-
las. Logo, valorizar o combinado dos caracteres nada mais é que valorizar quem
me valoriza. É quase aristotélico! E, por isso, acabo fazendo de tudo para prover
os 565 toques que ainda faltam. Nem que às vezes eu tenha que encher linguiça
para isso.
Inclusive, você sabia que a origem da expressão encher linguiça vem do Brasil
Colonial? Ela só ganhou esse significado de “enrolação” muito depois. Antes, o
sentido dela era mais literal: as pessoas queriam servir linguiça na refeição, mas
só tinham tripas e carnes ruins, daí pegavam elas e enchiam a linguiça na
intenção de parecer que fosse um alimento mais “chique”.
E assim, com a ajuda da metalinguagem suína do parágrafo acima, vou
chegando aos tão sonhados 2.700 caracteres e, mais uma vez, com muito
orgulho, consigo bater a meta. Então, agora que nos aproximamos do fatídico e
inevitável fim, confiro que já estamos nos 2.836 toques. Quem diria que no final
das contas eu ainda iria além hein?

33
O português
tomou no cool
A ligação virou call, o encontro virou date, o do contra virou hipster e até a
comemoração, que virou uhuuul, nada mais é que um derivado do americano
wohooo. Você chega no bar querendo se divertir com seus amigos (todos
brasileiros) e a cartela que te oferecem é a de drinks, que, quando traduzida, é
no máximo “drinques”. Tadinha da birita, que ficou nos anos 80 e hoje só dá as
caras nas dublagens de filmes da Sessão da Tarde.
Sobrou até para o bafafá e para o babado, que, apesar de barraqueiros, foram
dizimados quando o Twitter lançou o termo “trending topic”. Pelo menos a
prima deles, a treta, segue firme fazendo a redenção de toda sua família
etimológica que capenga cada dia mais. Inclusive a palavra capenga já
capengou. Hoje o ideal acho que seria “retrô”. Ou retrô seria retrô demais para
ser a versão cool de capenga?
GUSTAVO A questão é que infelizmente cada vez mais as palavras que entram na moda são
em inglês. O que vira fashion é em inglês. E português acaba ficando old school.
PALMEIRA E esse viralatismo linguístico nem é da nossa geração. Nos tempos da minha vó
o chique era falar “chic”, em francês. A segunda língua dela foi o francês. Mas,
em algum momento da história, a chiqueza-francesa foi guilhotinada e a língua
se defasou. O “Restaurant”, como ela dizia, deu espaço ao Pit Dog.
E acho que boa parte disso vem da supremacia tecnológica do Tio Sam. Eles
inventam softwares e streamings, mandam para cá e nós não temos nem a
decência de traduzir para algo mais cotidiano. Quem não fala inglês, toma no
cool.
Você sabia que até o “oxe”, símbolo da cultura nordestina junto da Ivete e do
Lampião, é um derivado de “oxente”, que por sua vez vem de “oh shit”? Com as
guerras pela dominação de Pernambuco, soldados ingleses lutaram ao lado dos
soldados da região e, quando tinham problema, reclamavam “oh shit”, que logo
foi incorporado pelo povo e se fundiu à cultura local.
Assim como o forró, que veio da mesma época. A ideia era fazer música para
todos ali dançarem. Holandeses, ingleses, nordestinos. Música For All... Forr
all... forr óu... No fim virou forró - e de fato todos dançaram.
Mas pensando aqui, talvez a língua portuguesa mereça ser desvalorizada
mesmo. Ela é cheia de acentos estranhos (descanse em paz trema) e com nuances
que a gente nem sabe explicar. Por que “alguma coisa” significa “algo” e “coisa
alguma” significa “nada”? Por que “já” significa “agora mesmo” e “já já” quer
dizer “daqui a pouco”?
E nessa ladeira-abaixo-léxica, vamos criando moda dentro das próprias palavras
em inglês. Antes era top falar top. O que hoje em dia é considerado cafona. Mas
coitada da palavra cafona, que por si só já é cafona há muito tempo, enquanto
outras expressões americanizadas são eternamente vips, termo que veio do
inglês “very important palavras”.
Talvez devamos mudar Lampião para Big Lamp. Se não, conforme o tempo
avança, capaz que ainda é game over para o nosso amado-e-terrível cangaceiro.
E junto dele, bye bye para o que nos resta enquanto cultura. Make portuguese
great again, motherfuckers!

34
Ô, gente boa!
Na tarde de sol escaldante, ele andava pela rua de
pedrinhas que desafiam o equilíbrio. De bengala,
chapéu, camisa clara e passos lentos. Era visível o
inchaço em um dos pés, enfaixado, devido a
problema nas veias, ferida agravada por diabete.
Foi um encontro casual que rendeu prosa,
sentados à sombra, na mureta de uma varanda.
Após me apresentar, peço licença pra fazer
perguntas e ele concorda.
KARLA As perguntas eram minhas, mas vinha dele um
JAIME olhar manso, derramado, consequência talvez da
cachaça que tanto apreciava, mas ainda assim um
35
olhar inquiridor, como se atravessasse minhas intenções, medindo-as com
certo humor.
Uma sensibilidade mais apurada para captar as emoções alheias, pensei,
confirmando a capacidade humana de compensar um déficit com o
reforço de outras habilidades. No caso dele, o cognitivo e a fala limitados
e compensados por percepção aguçada e simpatia. Meio desconcertada,
insisto no propósito de ouvir dele um pouco de sua história.
Seu nome? Luiz José Rodrigues de Arruda, diz. (Confirmo no atestado de
óbito que era apenas Luiz Rodrigues. Sim, Luiz morreu no último
domingo, “descansou”, após meses doente na cama). José, suponho, em
referência ao pai, Laurindo José Rodrigues, o Loro, baiano de Correntina
que com a mulher Ramila da Conceição, também baiana, veio formar
família de sete filhos em Pirenópolis, onde teve mais uma filha com outra
mulher. Arruda!? Vá entender por quê…
Era na verdade o Luiz do Loro, figura típica de Pirenópolis, cujas ruas
percorria com tal constância que parecia compor com o casario e suas
gentes um cenário eterno. Ficará na saudade e nas lembranças de quem
KARLA com ele conviveu ou apenas observava sua figura de preto retinto e
JAIME esguio, cabelos brancos, gentil no trato, a cumprimentar: “Ô gente boa!”
Idade? “74, véi demais.” (Tinha 63 anos, faria 64 no dia 6 de novembro).
Costumo vê-lo sempre na Baixada da Égua, onde minha mãe mora, tento
conversar. “É, pra cá anda e ninguém amola. No Alto do Bonfim, o Dito
amola.”
Ainda trabalha? “Tô encostado, sofro acesso. Um salário só, não dá nem
pra luz, tá cara. Trabalhava na enxada, na roça lá na Capela. Sinto falta,
limpava terreiro, agora não aguento mais. O pé incha e dói.”
E a bengala? “Foi Doninho cavaleiro que me deu, levou lá em casa.”
(Doninho é apelido de Possidônio Guilherme Rebêlo, rei dos mouros nas
Cavalhadas na década de 1970, amigo de Luiz, de quem diz: “Ele soube
ser livre, limpo de sentimentos, desnudo de arrogância.”)
Onde mora? “Na Rua do Sapo, nasci foi lá. Durmo cedo.” (Atual Travessa
Pireneus, no centro da cidade).
Nunca casou? “Sozinho é mió. Mais folgado, mais certinho.” (Ri gostoso).
Gosta do quê? “De doce de leite. E do amigo Mauro de Pina, ele dá o
cobre.” (Luiz frequentava a casa de Maurão, na esquina da Rua Direita,
onde almoçava aos domingos e apreciava cerveja gelada).
E a cachaça? “Vou no buteco, pinga esquenta o frio. Pinga ozoutro me dá
dado. Comida é vendida.”
Pirenópolis? “Pirenópolis é bom demais, tem tiro de toco na Festa do
Divino.” (Era na Festa do Divino que Luiz do Loro brilhava. “Se você
notar com atenção, verá que é ele o responsável pelos fogos nas
procissões, novenas e reuniões na casa do Imperador. Ele também cuida
dos perigosos tiros de ronqueira, que exige atenção e perícia”, descreveu
em seu blog o escritor Adriano César Curado).
Como ficará a festa, como será Pirenópolis sem Luiz e suas habilidades
especiais? Nas suas andanças, acenava liberdade. No amor a sua terra e
afetos cultivados, ensinou o significado de dignidade.
Na tarde quente daquele dia, nos despedimos. Dei-lhe 10 reais, era o que
eu dispunha no momento, sorriu satisfeito e seguiu seu caminho.
Guardei minhas anotações, que pretendia apurar com calma antes de
traçar seu perfil, para só retomá-las ao saber de Luiz do Loro caminhante
em outras paragens, onde imagino a acolhida amistosa dos anjos quando
ele saudar alegre: “Ô, gente boa!”

36
Fora da caixinha
Enlouquecida de aperto e sufoco, pulou pra fora da caixinha e feito Alice
correndo atrás do coelho, partiu para o país das maravilhas.
Ali, montanhas onde a vista alcança, com formas variadas que são um convite a
imaginar. Esta parece um gigante deitado com a barriga enorme apontada para o
céu muito azul que ele contempla. Aquela, pequenina, insinua seio púbere
arrematado por delicado mamilo. Outra, tão poderosa que faz a criança ter
sonhos com grandeza de Everest, porque menino desconhece limites de bom
senso e razão, por isso sonha longe e alto, essa tem no topo um paredão de
pedra em cujos vãos brota vegetação que lembra cabelos muito crespos.
Carapinha.
Por todo lado, verdes. No mato que cresce abundante e reluz ao sol da manhã,
nas trepadeiras e árvores majestosas, de caules retorcidos de casca grossa,
acinzentados, ou de tronco amarelado, pé de baru, carregado de frutos que
exigem esforço para arrancar a castanha, bastante dura.
Entre verdes, outras cores vão pontuando aqui e ali flores, pássaros e insetos.
KARLA Convivem em harmonia ou duelam na batalha pela sobrevivência, em ataques e
JAIME malabarismos.
Quase esbarra nas asas enormes de fluorescência azul cobalto borboletando
displicentes.
Ararinhas maracanãs e periquitos escandalosos anunciam seus voos em duplas
e bandos, lá vêm o tucano de bico enorme alaranjado, o sabiá de belo canto, o
pássaro preto às dezenas em revoadas e pousos estratégicos para saudar o
amanhecer, o pica-pau de penacho vermelho e bico forte o bastante para fazer
jus ao nome, o gavião de olhar e garras afiados, os urubus, desprezados no seu
papel fundamental de limpar carniça do mundo e invejáveis quando planam nas
alturas além das nuvens.
As flores pelo caminho arrancam suspiros mesmo da mais flagelada criatura, se
lhe restar poesia de ver as que são como cachos de rendas brancas e rosadas, as
que se precipitam dos galhos em cones de pétalas roxas, as que enganam por
parecer uma só flor quando, vistas de perto, são casulos de minúsculas películas
brancas, agrupados, taturanas albinas e esvoaçantes. Há as humildes no capim
rasteiro, miúdas e incontáveis na sua complexidade de miniorquídeas que
atraem profusão de borboletas também minúsculas, faíscas brilhantes
salpicando de estrelas o chão.
Por todo caminho, margaridas do mato de amarelo intenso a contrastar com o
verde e o azul dominantes, tornam mais alegre o percurso.
Tem mais, muito mais, nas matas fechadas, campos abertos e aleias, palavra
bonita de literatura refinada sobre diferentes paragens em continentes distantes.
Mas aqui mesmo tem aleias, sim, e ao atravessar uma delas, a surpresa do vento
limpando das grimpas folhas secas que, ao despencar, tremulam incandescentes
pelo ar antes de encontrar seu destino final na estrada que recobrem de novos e
acobreados matizes.
Tem delírios de liberdade e sons. E espasmos de susto. Peçonhas rastejantes,
rosnados e dentes de bicho que avança do nada. O pavor que congela o
momento em absoluto presente, exatidão de verdade. Só o essencial. Respirar,
pulsar, existir.
Acorda, Alice, acorda!
Em vão insistem em impor realidade brutal, suja, fétida, torpe, perversa, cruel,
sem carinho nem afago nem encanto nem amor. Sabe, claro, de tantas e bem
montadas armadilhas que da caixinha e do caixão é impossível escapar para
sempre, mas teima em distrair o medo, agarrada à vida.

37
Bichos
O verde dos dias chuvosos inundava a manhã nublada e agradecida. Vegetação
vigorosa, resplandecente da harmonia dos ciclos. Ao menos era assim que
percebia o mundo enquanto absorvia oxigênio e boas vibrações. Então, a mesma
natureza, tão bela e generosa, mostrou suas garras.
Corriam leves e alegres, quando vislumbrou uma mancha verde no chão,
desviando-se dela e seguindo sem maior atenção. Mas uma amiga, com mais
cuidado, notou tratar-se de uma criatura que se arrastava em busca de proteção.
Teria caído do ninho, sofrido ataque, não se sabia. Já estava metros adiante
quando decidiu retornar para ver direito o bichinho. Comentou como seria se
aparecesse um cão ou um gato, pobre periquito, ao que alguém observou:
ameaça aqui é dos macacos...
A cena foi rápida e brutal. Antes que tomassem qualquer providência, o
periquito estropiado atravessou o vão das grades que separa a pista de corrida
do interior do parque, talvez fugindo apavorado daquelas que começavam a
cercá-lo, para encontrar o desfecho fatal. Do nada, surgiu um macaco faminto e
KARLA indiferente aos gritos e gestos para afugentá-lo.
JAIME Segundos intensos, dos quais, com assimilação profunda da ausência de
controle, da determinação do acaso sobre os destinos, do definitivo que se impõe
à revelia, ela tentou escapar, tapando os ouvidos e se afastando a passos
acelerados, ofegante, embora fosse impossível não imaginar o que se passava
bem perto dali. “É a seleção natural”, amenizou uma das amigas, revestindo de
naturalidade, que de fato guardam, dor e morte.
Teria a criatura mais frágil entendido, ainda que num relance, seu fim? Teria
arregalado os olhos, arrepiado penas, emitido som de agonia? Colocou-se aflita
no lugar de quem está prestes a ser devorado e lembrou que, também ela,
hipócrita, comia sangue de outros. Molho pardo.
Em dias de reunião da família, a avó saía ao terreiro com uma faca pequena mas
de lâmina muito afiada, em silêncio, para ritual necessário à fome iminente.
Capturava a galinha e esticava-lhe o pescoço para o golpe certeiro que renderia
o sangue, colhido em bacia também pequena, de alumínio, onde logo o
vermelho vivo escurecia enquanto o líquido ganhava consistência, tempero de
receita muito apreciada por todos. A menina não perdia detalhe, esgueirando-se
para não ser flagrada na desobediência. “Se ficar olhando com dó, o bicho não
morre.”
Ainda na infância, a execução dos porcos, companheiros de furdunço nos
quintais, de onde seguiam para o açougue e a mesa. Morte violenta e
escandalosa, aos berros ou o que fosse do mais estridente desespero, animais
depois queimados, escalpelados. A tudo as crianças assistiam, aula de conversão
do que pulsava vibrante em alimento, a fim de preservar a energia vital do mais
forte.
Morte e esquartejamento de gado para fartar gente. Carmo Bernardes, em
Jurubatuba, descreve a tristeza. “Gado berrando, e achei os berros muito
esquisitos. Aquilo tinha mais semelhança com gemido de dor, nem nunca que
parecia berro natural de gado. (...) Acima de tudo, porém, me chamou a atenção
foi a choradeira do gado em redor de uma árvore. Aí debaixo tinham matado a
vaca. (...) Esfregavam a venta no tronco da árvore, porque o tronco da árvore
estava melecado com o sangue que no as reses serem sangradas esborrifou, e
soltavam urros gorgolejados e daí desafinavam num ai ai-ai de perder o fôlego,
como se eles também estivessem sentenciados.”
Na manhã úmida inundada de verde, nunca mais nos ares o verde destroçado
do periquito.

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Le renard
Desculpem-me os leitores. O título em francês faz parte da
historinha que irão ler, como verão.
Meu pai, engenheiro civil, trabalhou durante alguns anos na
construção da Estrada de Ferro Central do Piauí, com sede em
Parnaíba, cidadezinha charmosa no delta do rio do mesmo nome.
Minha irmã mais moça e eu nascemos lá, numa casa de fachada
art déco, com três janelas de frente e uma varanda lateral
sombreada de madressilvas.
A economia do norte piauiense convergia para Parnaíba, pelo que
sempre havia hóspedes em casa, parentes de minha mãe que
vinham do interior a negócio ou a passeio. Era o caso dos primos
LENA Domingos (Dudu) e Josefa (Zefinha): ele, baixinho, careca e
CASTELLO introvertido, estudou farmácia no Recife, onde conheceu a futura
BRANCO esposa, mas optou por ser fazendeiro; ela, exuberante, vaidosa e

39
falante, acompanhou-o de bom grado na empreitada.
Foram morar na fazenda Santa Rita, antiga sesmaria cravada no médio vale do Rio Parnaíba.
Dinâmicos e trabalhadores construíram um patrimônio respeitável que administravam em
parceria: o marido cuidava das plantações, das benfeitorias e do gado vacum e cavalar; a esposa
respondia pela horta, o apiário e a criação de galinhas e carneiros, que eram vendidos às
embarcações que atracavam no porto do rio.
Os dois filhos do casal estudavam em colégios internos. Sozinhos e financeiramente abonados,
Dudu e Zefinha davam-se ao luxo de anualmente “voltar à civilização e viajar para o Sul”, como
diziam – ou seja, ir para o Rio de Janeiro, de onde seguiam para a badalada estância hidrotermal
de Poços de Caldas. Terminada a “estação”, retornavam à então capital federal; visitavam
familiares, iam ao cinema, ao Cassino da Urca, ao teatro de revista. E Zefinha saía às compras,
múltiplas compras de roupas, calçados, joias, perfumes, cosméticos, bibelôs, enfeites etc.
Voltando ao Piauí, hospedavam-se novamente conosco. Era uma festa: a tagarelice da Zefinha, as
novidades; mais que tudo, os presentes.
Em uma das vezes, chegaram do Rio de Janeiro às vésperas da estreia local do filme “E o vento
levou...” Acontecimento aguardado com ansiedade, a sociedade parnaibana estaria presente, os
cavalheiros de terno e gravata, como de praxe; as damas, de salto alto, vestidos e complementos
elegantes.
As visitas resolveram demorar-se mais um dia a fim de participarem do evento. Frustrada por
não poder assistir ao filme – proibido para crianças – fiquei bisbilhotando os preparativos dos
LENA adultos. Meu pai, na sala, lia jornal; a ele veio juntar-se o primo Dudu, enquanto as senhoras
CASTELLO davam os últimos retoques à toalete.
Lembro-me que minha mãe estava com um vestido azul, de saia plissada e aplique de renda na
BRANCO gola; achei-a elegantérrima. Por último, surgiu Zefinha com um pretinho decotado; sobre os
ombros, algo que não consegui identificar: parecia um gato peludo, cujas extremidades caiam-lhe
sobre o colo.
Ela deu uma voltinha e perguntou:
- Que tal meu vestido? É da Rua do Ouvidor. O preto é a cor da moda, o chique dos chiques!
Pegou uma das pontas do gato – que não era gato – enrolou-a no pescoço e desfilou diante de
nós:
- “Mon renard” custou uma fortuna; Duduzinho me deu de presente. Merece um beijinho, o
Duduzinho.
Dito e feito, beijou de leve a careca do marido, cuidando de não manchá-la de batom. Ele sorria
encabulado. Minha mãe estava se divertindo e provocou:
- É raposa mesmo?
Foi a deixa:
- Claro que é raposa, “ma chérie”! Francesa, legítima. Toda a gente está usando “renard” – ela
garantiu. Eu olhava fascinada para o bichinho macio enroscado no pescoço da Zefinha. Só depois
vim saber que era moda no inverno europeu: uma espécie de cachecol de pele, tendo nas
extremidades um focinho e um rabo de raposa.
Meu pai dobrou o jornal e seguiu rumo à sala contígua, seu escritório. Sério, chamou minha mãe.
Dentro de alguns minutos, ela saiu com a fisionomia meio tensa. Ao lado de Dudu, Zefinha
acariciava “le renard”. Com ar casual, minha mãe falou:
- Está tão quente! Esse calor do Piauí nem deixa as pessoas serem elegantes. – E, para a Zefinha:
Você deve estar sufocada, usando o seu “renard”.
- Não ligo para o calor – ela respondeu. Quando me virem no cinema, a inveja das outras
mulheres vai ser refresco!
Meu pai continuava trancado no escritório. Minha mãe bateu à porta, entrou, tornou a sair.
Visivelmente constrangida, dirigiu-se à prima:
- O cinema é velho, cheio de pulgas; e se as pulgas infestarem seu “renard”?
Caiu a ficha e Dudu pareceu entender. Chamou Zefinha à parte e falou em voz baixa por algum
tempo. Ela fazia que não com a cabeça, passava a mão no “renard”; até que, quase chorando,
entrou no quarto de hóspedes. Demorou um pouco; ao sair, trazia um pano colorido sobre o
vestido preto.
- Vocês têm razão – ela disse. Está muito quente. E sabe do que mais? Não vou usar meu
“renard” nessa terra de bugres. Vou de xale espanhol.
E saíram todos para o cinema.
No dia seguinte os primos viajaram. Ainda intrigada com o que vira, ouvi uma conversa que me
esclareceu o desfecho do episódio. Minha mãe se queixava ao meu pai que ele a fizera pressionar
a Zefinha para que se livrasse do “renard”; e que morrera de vergonha ao fazê-lo! Como ele risse
com gosto, a revoltada esposa quis saber:
- E se ela não tivesse trocado o “renard” pelo xale?
- Não haveria cinema – meu pai garantiu. Eu jamais sairia de casa com a Zefinha levando aquele
bicho no pescoço!

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As galinhas do marquês
Em 1º de agosto de 1775, o ministro Sebastião José de Melo, marquês de Pombal,
fazia saber à Junta de Administração da Real Fazenda da Capitania de Goiás que
médicos e cirurgiões de Lisboa tinham deliberado “a respeito da alimentação
que se deve ministrar aos enfermos”. Concluíram os sábios esculápios que o
“uso de galinhas” para esse fim constituía-se em “preocupação quimérica,
insubsistente e até contraditória”. Isso porque, sendo as galinhas alimentos
“tênues” (pouco nutritivos), os pacientes que as ingerissem não se fortaleceriam,
nem se curariam.
Por determinação de El Rei, é encaminhada uma cópia do novo Regulamento do
Real Hospital Militar de Vila Boa de Goiás. A despeito do nome pomposo, este
se resumia a modestas enfermarias instaladas no Quartel do Regimento de
Dragões desde meados do século 18. Primeira instituição do gênero na região,
dispunha de um cirurgião-mor das tropas, um dos poucos profissionais
habilitados da área da saúde na Capitania de Goiás, nos anos 1700.
Em seu primeiro item, determina o Regulamento “que inteiramente se devia
LENA abolir o uso ordinário das galinhas, que até agora se mandavam dar aos
CASTELLO enfermos”. E mais: “aos enfermos febricitantes, que pela agudeza e gravidade
BRANCO das suas moléstias” não puderem se alimentar normalmente, estarão os médicos
obrigados a receitar “caldos simples de vitela, e de farinha de aveia”. Àqueles
menos doentes e aos convalescentes será servida “vitela simples, cozida (...)
alguma porção de arroz, ou de cevada pilada, e grãos, e algumas ervas, como
aipo, e azedas ou outras desta natureza”. Aos pacientes em melhor estado, serão
prescritos “carneiro, ou vaca”, bem como “dietas de tapioca, e de ameixas”, além
de “ovos, arroz, cevada pilada e alface, ou chicória cozida”. Nos casos mais
graves, havendo enfermos a quem “por fastio apeteça algum frango”, este
poderia ser receitado.
É evidente a intenção de replicar na distante Vila Boa de Goiás a alimentação
corrente na metrópole, sendo patente a centralização da administração
pombalina, com o autoritário ministro de D. José I ocupando-se de minúcias tais
que adquirem a feição de receitas culinárias. Alguns ingredientes prescritos
seriam encontrados na Colônia; outros, não estariam acessíveis. A tapioca, de
origem indígena, talvez representasse concessão feita ao paladar dos colonos.
O documento acena com a intenção de alimentar corretamente os enfermos para
que recuperassem a saúde, segundo os ensinamentos dos doutos médicos
lisboetas. Entretanto, sendo dirigido à Junta de Administração da Real Fazenda -
responsável pelas finanças da Capitania – flui das entrelinhas a preocupação
com o custo da alimentação.
Galinhas eram caras, constituindo-se em requinte gastronômico em Goiás, onde
os gêneros alimentícios escasseavam. É o que se constata na carta dirigida às
autoridades, em 1735, por certo padre Manoel Caetano: no então arraial de
Santana, custava “uma galinha que ainda é franga, oito oitavas [de ouro], uma
franga que é mais pinta de franga, seis oitavas, e um ovo, finalmente, oitenta reis
de ouro”. O salário mensal do capitão dos dragões, recém chegados a Vila Boa,
era de aproximadamente 53 oitavas de ouro – suficiente para comprar 6 galinhas
e uma franga!
Registre-se que o costume de servir aos doentes pratos à base de galinha era tão
arraigado que, ao coibir essa prática, a ordem emanada do todo-poderoso
marquês de Pombal tornou-se letra morta. Passadas algumas décadas, nos
documentos contábeis do Hospital Militar, a despesa que mais onerava as verbas
destinadas à alimentação dos pacientes era a compra de galinhas e frangos. A
tradição persiste nos dias atuais, reforçada pela crença expressa no adágio
popular: “Cautela e caldo de galinha não fazem mal a ninguém”.

41
Mulheres
Com discursos e comemorações, celebrou-se o “Dia Internacional da Mulher” e
alguém me pergunta: “Por que não há também o Dia Internacional do Homem?”
Seria de fato necessário incluir-se no calendário um dia para que eles sejam
lembrados, retirados da subalternidade e da sujeição? Parece óbvio que não. Em
todas as culturas, a primazia, o poder e a força estiveram com os homens.
“Sombras tênues da História” (na expressão de Michelle Perrot) as mulheres,
quando não totalmente anônimas, são relacionadas a algum personagem
masculino: pai, marido, irmão ou amante.
Para entender a situação da mulher até o século 19, é interessante conhecer os
manuais que definiam regras e conselhos para o bom êxito dos casamentos.
Sugestivamente, denominavam-se: “Carta de guia de casados”, “O casamento
perfeito”, “Às senhoras casadas para viverem em paz e quietas com seus
maridos”, “Espelho de casados” etc. Divulgados quando a civilização ocidental
e cristã chegava ao Novo Mundo, esses textos permitem conhecer o perfil
desejado da mulher e o lugar que lhes era reservado na sociedade.
LENA Os atributos femininos mais valorizados eram a boa reputação e a honra. Para o
CASTELLO homem, esta era entendida como um valor moral que se associava à virtude.
BRANCO Para a mulher, “honra” vinculava-se à sexualidade e ao controle dos impulsos
do corpo: da solteira, exigia-se a castidade; da casada, a fidelidade ao marido.
“Às mais formosas”, recomendava-se que se mantivessem escondidas em casa,
cobrissem o rosto e o corpo, fizessem silenciar e reprimir os sentidos para
“prevenir os desejos e cercear o prazer”.
“No casamento – reza outro texto – o homem arrisca-se a perder a honra, a fama
e talvez a vida e a salvação”. Devem os esposos precaver-se para que, amando
sua esposa, não venham a perder por ela “a dignidade e a compostura”. A boa
esposa seria “uma coroa para seu esposo” - e “sua melhor fama é não ter fama”.
Na administração da casa – diz um dos manuais - “coisas miúdas” não devem
ocupar o pensamento masculino, sendo, porém, “muito convenientes à mulher”,
para quem “o melhor livro é a almofada e o bastidor”. No dia-a-dia, seria
preciso que “o marido tenha as vezes de sol em sua casa, a mulher as de lua.
Alumie [ela] com a luz que ele lhe der, e tenha sempre alguma claridade”.
Ao longo do tempo foram editadas leis que atribuíam ao marido a chefia
exclusiva da família, cabendo-lhe administrar, proteger e disciplinar a esposa,
filhos, empregados, agregados e escravos. As mulheres ficavam sob a tutela do
pai ou do esposo, que poderia conceder-lhes “poucos e pequenos prazeres e
atenções”.
Lembrar tais peculiaridades da condição feminina, que se prolongaram até
poucas gerações atrás, tem o mérito de levar-nos a refletir sobre o quanto
avançamos em liberdade e conquistas, resultantes de lutas, sacrifícios e muita
perseverança.
É de perguntar-se se no âmago das pessoas, sobretudo no universo masculino,
tais ideias e práticas terão sido efetivamente erradicadas. Na verdade, a
conquista da liberdade e do respeito social é tarefa individual de cada mulher, e
há uma linha imprecisa que nos separa da vulgaridade e do ridículo. Cabe a
cada uma de nós defini-la e mantê-la, sem ceder às pressões do marketing ou às
tentações da modernidade.

42
Amar um
Holograma
Você sabe o que é um holograma? São aquelas
projeções de imagem que parecem ter três
dimensões, dando a impressão de terem vida
própria, não estando restritas às duas dimensões
das imagens convencionais. Mesmo tendo sido
inventadas em meados do século passado, elas
LEON ainda têm um vago ar futurista.
RABELO Sendo mais um truque de ótica do que outras
coisas, pelo uso esperto da tecnologia do raio
43
laser, um holograma faz a imagem andar na realidade. Desde o Mito da
Caverna, do filósofo grego Platão, imagens são consideradas meros
'espelhos', projeções dos objetos reais; portanto pertencentes ao vago
mundo das ilusões e das coisas sem substância. Um holograma é um
pequeno salto para fora dessa normativa estrita, dando às imagens
pretensões de imanência.
Pois bem. Do Japão, veio há algumas semanas a curiosa notícia de que
um homem, no pleno gozo de suas faculdades mentais, não apenas se
apaixonou pela imagem holográfica – a de uma jovem moça, cantora e
dançarina, inteiramente fictícia – quanto não sossegou enquanto não se
cassasse com ela. Você leu corretamente. Um homem de carne e osso
casou-se com uma personagem fictícia, desenhada por raio laser.
Claro que a coisa tem suas sofisticações. A 'esposa virtual' aparece num
pequeno suporte, dançando e cantando para o feliz marido. Ela consegue
entabular conversas simples, pré-programadas, e se integra aos softwares
da casa. Ela o acorda de manhã, lhe dá as notícias do dia. Ao fim do dia,
quando ele retorna, ela acende as luzes do seu apartamento, agora talvez
LEON já não tão vazio.
RABELO A empresa criadora da personagem emitiu um 'certificado de casamento
trans-dimensional', pelo qual se oficializou a união. O certificado não tem
valor legal, evidentemente, apenas simbólico. O noivo comprou alianças,
realizou-se uma cerimônia de casamento, mas dizem que nenhum
parente apareceu. As pessoas ainda têm preconceitos, será que num
futuro próximo aceitarão casamentos entre seres humanos e robôs?
De qualquer maneira, o agora feliz casado está louvando sua sorte. Ele
diz não ter a menor pretensão de no futuro trocar sua esposa holográfica
por uma “mulher 3D”, como ele se refere às mulheres convencionais,
mesmo com toda a insistência de sua pobre mãe. “Uma mulher
holográfica não é infiel, não envelhece ou morre”, argumenta ele. Ele
narra ter sido rejeitado e humilhado por mulheres 'reais'. Agora, não há
mais a angústia e o medo de ter que enfrenta-las. Estranhos argumentos,
talvez, mas que não deixam de ter certa coerência.
E mais, o rapaz diz que há muitos outros como ele, cansados da vida e
apaixonados por seres ficcionais. Ele os conclama a assumirem sua
identidade. Eles “deveriam sair do armário e ir adiante com sua paixão”,
pois “qualquer forma de amor e felicidade deveria ser aceita”.
Antes que torçamos os nariz ou joguemos a primeira pedra, será que
somos tão diferentes assim? Será que nossos próprios amores são tão
mais concretos? Quem de nós já não teve alguma paixonite por aquela
estrela do cinema, por aquele galã da novela? Quem de nós já não
idealizou príncipes encantados ou mulheres perfeitas? Se conhecêssemos
as pessoas reais por detrás daquelas fantasias, em suas pequenas feiuras e
misérias cotidianas, talvez nem ficaríamos tão deslumbrados assim.
Talvez preferíssemos o personagem imaginário.

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A Sua Bolha
ou a Minha?
“Aquele foi o melhor dos tempos, aquele foi o pior dos tempos”. Esse é o famoso
início do romance Um Conto de Duas Cidades do escritor inglês Charles
Dickens (1812 – 1870). O tempo em questão foi o da Revolução Francesa, que
Dickens retrata ali com genial maestria, inserindo os personagens e tramas
dentro desse complexo e terrível período histórico.
A mesma frase, talvez, pode ser dita sobre o nosso conturbado tempo presente.
Afinal, parece que estamos no limiar de uma nova era, onde a tecnologia e os
avanços científicos possibilitam realizações com as quais nossos antepassados
sequer sonhariam. Ao mesmo tempo, parece que somos hoje reféns de erros e
desastres que nossos tataravós nem em seus piores pesadelos conceberiam.
Como assim, a terra se aquecendo? Como assim, os recursos naturais são finitos?
E entre as doenças infantis de nossa presente condição, uma das mais letais é a
LEON da polarização ideológica e a imersão das pessoas e grupos em 'bolhas de
pensamento e valores', das quais eles dificilmente se libertam.
RABELO Claro, todos temos nossas convicções, valores e vieses. É natural que assim seja,
elas são o resultado de nossa história pessoal. O problema é que as novas
tecnologias de comunicação facilitam como nunca a criação de grupos fechados
e cegamente autorreferentes. Isso faz com que os valores de cada um desses
grupos se tornem um universo absoluto para seus participantes. As pessoas
estão criando bolhas, dentro das quais elas vivem e veem o mundo e das quais
elas raramente conseguem sair.
Essa é a reedição de um antiquíssimo problema: o da identificação total do
indivíduo com os mandamentos de seu clã ou tribo, e a total negação, sem
reflexividade alguma, dos valores e direitos dos grupos vizinhos. Ou seja, nós
estamos certos porque nós somos nós. Eles estão errados pois eles são eles.
Assim se perde o legado de séculos de lenta construção reflexiva e autocrítica,
que todas as verdadeiras tradições intelectuais cultivaram, no sentido de
duvidarem e constantemente submeterem seus próprios pressupostos à luz
crítica, o que trazia moderação das suas posições.
Assim se perde também séculos e milênios de construção das verdadeiras
religiões, que enxergam no outro, no diferente, apenas uma outra manifestação
da humanidade, que antes de ser julgada e condenada, precisa se possível ser
compreendida, aceita e perdoada.
Todo esse legado humanístico se perde na pressa de se estabelecer
pertencimento e imersão total num grupo ou partido. Não é à toa que a origem
da palavra 'fascismo' vem do latim fascio, que quer dizer 'feixe', referindo-se ao
conjunto de hastes, que em separado são frágeis, mas que amarradas num único
em feixe se tornam inquebrantáveis. Ou seja, o indivíduo, as suas reflexões e
questionamentos, devem ser anuladas em função do poder maior autoritário.
Quando se abraça assim cegamente crenças ou sistema de valores que excluem o
contraditório, quando não há abertura para posições divergentes, ganha-se em
força bruta, talvez, mas é varrida do mapa qualquer possibilidade de cultivar
posturas mais moderadas e inteligentes.

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A Tal Felicidade
O poeta russo Vladimir Maiakovski (1803-1930) escreveu certa vez algo curioso:
“dizem que em algum lugar, parece que no Brasil, existe um homem feliz”.
Afirmação é estranha, ainda mais pelo fato do distinto poeta jamais ter posto os
pés por aqui.
A nós, os pobres mortais que aqui vivemos, a frase pode soar até bizarra, mas ela
exprime na verdade um pensamento bastante comum. A de que lá longe, lá no
outro lado do mundo, as coisas são diferentes e boas, enquanto em nossa
própria realidade tudo está errado e desconexo.
Eis como funciona o cérebro humano, se for deixado às suas próprias
inclinações: aquilo que a pessoa possui é sempre visto como insuficiente, aquilo
que ela não tem, é sempre melhor. É a proverbial grama do vizinho, eternamente
mais verde do outro lado da cerca. Então como capturar algo tão fugidio quanto
a felicidade? Nossa cultura contemporânea é obcecada por esse estado
imaginário, e somos condicionados a persegui-lo a qualquer custo.
Nossos antepassados se contentavam com bem menos. Já se davam por felizes
LEON se tivessem um lugar seguro onde pudessem dormir, naquela noite, e no dia
RABELO seguinte, algo para comer e beber. A humanidade caminhou bastante, hoje
queremos o último modelo da marca exclusiva; invejamos o que nosso vizinho
acabou de comprar, gostaríamos que a realidade fosse como nossas fantasias de
consumo. Não aceitamos nada menos que o prazer pleno, contínuo e
permanente.
Talvez o problema comece justamente por aí, o de tentar 'capturar' algo que não
se deixa prender, o de querer ter certeza de algo que por sua própria natureza é
incerto e fugidio.
Num debate recente entre o filósofo esloveno Slavoj Zizek e o psicólogo
canadense Jordan Peterson, que guardam divergências sobre muitas coisas,
umas de suas concordâncias foi sobre a natureza sutil da felicidade. Os dois
pensadores, seguindo a longa tradição de sabedoria sobre a condição humana,
exprimiram a mesma percepção de que a felicidade não é uma 'coisa'. Não é um
produto ou serviço que possa ser comprado, guardado, medido e retido. Quem
quiser 'capturá-la', portanto, irá se frustrar.
A felicidade é uma consequência, algo que vem junto a outros fatores e
circunstâncias. É por isso que o mais importante é saber exatamente quais
seriam esses condicionantes. Se acharmos que eles são o último produto da
moda, e o status e prazer que adquirimos ao comprar e exibi-lo, estamos
condenados à rápida decepção. Só para o sistema de mercado, explorador das
ilusões humanas, que o mecanismo é ótimo. Logo após a frustração presente,
lançam uma nova promessa de bem-aventurança artificial, na qual feito patinhos
crédulos iremos todos cair. Em vez de trocas de felicidade possível, há apenas a
velha troca de dinheiro e poder.
É por isso que outro pensador da condição humana atual, Johan Hari, em seu
livro “Conexões Perdidas”, afirma o que deveria ser óbvio: o ser humano é um
animal social. Sua felicidade só pode existir em seus laços de identidade. As
conexões de afeto é que constroem os sentidos de seu bem-estar. Portanto, há
que se perguntar qual é a qualidade dessas conexões. Elas contribuem para o
bem geral, das pessoas, da natureza e sociedade, ou são apenas exercidas em
nome do egoísmo e da ganância?

47
Viver não pode
ser só isso
Uma vez escrevi um poema que se chamava
“Viver não pode ser só isso”. Lembro-me de
quando o escrevi e o porquê. Eu estava viajando a
trabalho, e estava cansado. O cansaço,
obviamente, não era de viajar, mas de trabalhar
com as coisas que me tiram do que mais gosto e
LUCÃO não me canso de fazer, escrever. Aliás, que
saudade de viajar. Mas, voltando, estava
refletindo sobre a vida, que ela não podia ser só
46
isso, trabalhar sem descanso, gastar, comprar, consumir.
Estava em São Paulo e recordo que era manhã de domingo. Acordei cedo,
com preguiça, mas desejando dar uma volta, refrescar as ideias. Decidi
tomar um café em alguma cafeteria ali perto. Saí antes das oito do hotel e
comecei a caminhar pelas ruas da região. Elas estavam vazias. Adorei ver
aquilo em São Paulo, as ruas vazias. Uma raridade se comparada ao que é
aquela cidade. Comecei a observar o que acontecia ao redor: as pessoas
mais velhas caminhando devagar, os poucos carros nas vias, a arquitetura
das casas (fiquei imaginando os moradores ali dentro passando um café),
o conforto provocado no meu corpo pela temperatura mais baixa... Eu
estava em slow motion e em paz nesse passeio.
Foi nesse instante que me veio a frase “viver não pode ser só isso”. É
assim que muitos dos meus poemas acontecem, com uma frase, um
verso, que não necessariamente é o primeiro verso do poema, mas que
ilumina a criação. Fiquei com a frase na cabeça, pensando “Isso o quê?”.
A resposta foi surgindo nos versos seguintes do poema, que fala sobre as
coisas que nos tiram a vida, como o trabalho exagerado, o consumismo, a
LUCÃO superficialidade. Viver, naquele instante, era a contemplação da vida, das
coisas que me afetava, e não da vida que os outros me convenciam a ter.
Fui tecendo versos pensando em mim. Pensando, por exemplo, no café.
Beber um café devagar, saboreando o sabor e aproveitando o instante
com a xícara, sentindo as saudades que o gosto do pó provocava em mim.
Quando reflito sobre o que é viver, meu pensamento me leva distante, me
coloca na minha infância. Lembro-me de brincar com as coisas simples,
feitas manualmente, sem aparelhos tecnológicos. Já joguei futebol com
bola feita de meias velhas, que a gente ia enrolando uma na outra até
virar uma coisa redonda parecida com bola. Já andei de carrinho de
rolimã com madeira cortada por mim e meu avô, rodas engraxadas com
óleo de mecânica e com sistema de freio bolado por nós.
As pipas... lembro-me d'eu e meus irmãos aprendendo a fazer pipas:
cortar bambu, medir os pedaços, amarrar com barbante, escolher o papel
de seda, colar. Depois subir a pipa e gastar a tarde nos lotes vazios que
ainda existiam na época.
Lembro-me de tanta coisa quando recordo esse poema. Nesse momento,
confinado por conta da pandemia, é um poema que me dá saudade de
andar pelas ruas procurando vidas nas pequenas coisas. Também me faz
reforçar que viver não pode ser só isso, trabalhar, consumir e dormir.
Viver tem que ser mais do que isso.
Viver é acordar bem cedo num domingo vazio, fazer café no bule, soprar
as horas pra mais tarde... Manter a vida quente.

48
Felicidade não
é ter, é dester
Quando penso na felicidade que muitas pessoas de hoje acreditam, nessa
felicidade que fica no topo das coisas, que pra ser alcançada é preciso ser o mais
bonito, o mais rápido, o mais caro, o mais sarado... quando penso nessa
felicidade, que pra você conquistar é preciso subir e subir e subir, me lembro do
pé de morango baixinho que tinha na casa da vó.
Domingo era dia de vó. Era dia de almoço em família, de rever os tios, os
primos, de comer as comidas mais gostosas da semana, numa mesa de madeira
antiga, supitando de panelas e amor. Todo domingo a gente alternava e
almoçava em uma vó diferente. Um domingo era da vó Nininha, outro, da vó
Jovita, pra não causar ciumeira.
O pé de morango ficava na casa da Dona Jovita, minha avó paterna. E eu me
lembro em detalhes dessa casa, uma casinha das mais simples, num dos bairros
LUCÃO mais antigos da cidade, onde tudo era velho, até o povo. Uma casinha pequena
que, aos domingos, crescia para caber a família toda: os onze filhos e o dobro de
netos.
O portão era de grades de ferro vazado e enferrujado, que fazia barulho quando
a gente abria, como se avisasse a Dona Jovita que os netos haviam chegado. A
porta da frente ficava depois do portão e dava direto na sala. Era onde ficavam
os tios, assistindo televisão enquanto o almoço não ficava pronto. Não havia
jeito de atravessar a sala sem dar a “bênção” para todos.
Para chegar ao quintal demorava, tinha a cumprimentação toda da sala, depois,
na cozinha, tinha o cumprimento mais importante, a bênção da vó. Na verdade,
era só essa a bênção que abençoava, o resto era como se fosse um ensaio para a
benção oficial. Depois de todos abençoados, corríamos para o quintal atrás da
felicidade que estava plantada no chão.
Recordo-me de tudo que tinha no quintal: do cachorro enorme (quando a gente
é pequeno, o mundo é maior do que realmente é) amarrado numa árvore que
fazia uma sombra gostosa em todo o espaço. No fundo, num canto, tinha a
casinha do cachorro, uma grade que protegia as crianças das mordidas do
cachorro, no outro lado, uma hortinha que a vó cultivava os temperos e frutas
que usava na cozinha.
Enfim, a horta. Um cantinho bem cuidado, com cheiro de frutas frescas. Tinha
cheiro de amor. No meio da horta, numa fileira só deles, os pés de morangos,
que de tempos em tempos, se enchiam de frutas vermelhas e suculentas.
Eu me lembro que para ser feliz naquela época bastava a gente se aproximar
devagar dessa horta, abaixar um pouquinho, pegar um morango no pé e comer.
Um morango fresco, colhido na hora. Uma felicidade facinha de apanhar e
gostosa de experimentar.
Na casa da vó era assim que a gente degustava a felicidade, aos domingos,
depois das bênçãos, num quintal de sombra fresca, estendendo as mãos mais
para o chão do que para o topo da vida.

49
Eu te bolo
Essa coisa de ficar distante de quem a gente gosta tem feito meu corpo trabalhar
um pouco mais. Mais especificamente, o meu cérebro e a minha memória. Tenho
lido bastante e escrito bem mais, para manter a mente centrada e não pirar.
Mas o que mais tenho usado mesmo é a memória, para escrever e sentir
saudade. Logo eu, que sempre vendi o discurso preguiçoso de que tenho uma
memória vaga, estou aqui a usá-la bastante para matar as saudades que ando
tendo. Dos meus irmãos e irmãs, meu já partido pai e minha mãe. Claro,
também da minha avozinha de quase noventa anos, das minhas tias, meus
amigos. É saudade de metro, como dizem por aqui.
Também tenho aproveitado as saudades para investigar um pouco mais minha
vida. E olha onde cheguei: no bolo. Bolo de farinha mesmo, de comer com garfo
e faca. Eu amo bolo. E não precisa me conhecer tanto pra saber desse meu amor.
Sou um amante explícito, declaro-me abertamente sempre que posso a ele, o
bolo. Eu como um pedaço sempre que posso. E quase sempre eu posso. É uma
das últimas extravagâncias que ainda tenho com comida. Não abro mão de jeito
LUCÃO maneira. Bolo de coco, de chocolate, de milho, bolo de bolo… E nem pense em
me aparecer com um bolo de cenoura com cobertura de chocolate, que isso já é
safadeza.
Pensando em bolo demais e querendo-o como água, comecei a lembrar minhas
histórias e a investigar a origem desse gosto tão doce. Lembrei do Vila Verde, o
bairro que morávamos quando eu era pequeno. Lembrei do apartamento miúdo
que vivíamos. Da cozinha menor ainda. E das tardes imensas de sábado que
minha mãe passava dentro dessa cozinha fazendo bolo.
Quisesse encontrar minha mãe em um sábado à tarde era ali, na cozinha, em
meio ao pó da farinha, ao barulho do liquidificador, às panelas que faziam
montes nesse ambiente. Ela adorava fazer bolo e pães e massas e doces. E a
gente, os filhos, adorava o cheiro que a casa ficava naquelas tardes. Lembro-me
de ficar nessa cozinha com a mãe, esperando ela fazer as coberturas pra poder
raspar as panelas de chocolate e comer o restinho do doce. Foram as tardes mais
açucaradas que uma criança poderia ter.
Depois a gente tinha comida pro lanche da semana inteira. Eram pães, biscoitos
e bolos. Tinha um biscoitinho que a gente gostava demais, bem simples e parecia
dois dedos entrelaçados, cobertos de açúcar. Quando a gente pedia pra mãe
fazer esse doce e ela não entendia qual era, a gente entrelaçava o indicador com
o dedo médio e ela ria. Fazia potes desses biscoitos, pra durar a semana toda,
mas quase nunca duravam.
Voltando ao bolo, a gente parecia uns cachorrinhos espiando o frango na
padaria, olhando o forno a cada minuto, esperando que a massa crescesse para a
mãe tirá-lo e cobri-lo de chocolate. A gente gostava de comer o bolo quentinho.
Viajo nessas lembranças, as mais cheirosas que tenho sobre a minha infância, e
compreendo meu amor por bolo. É saudade desse amor de mãe. Comer o bolo
hoje é saborear essa vidinha gostosa que tivemos lá atrás, naqueles sábados
confinados numa cozinha pequena e tão grande de amor.
Agora, se me dão licença, vou ali comer mais um pedaço de bolo pra engordar
essa saudade.

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Conversa muda
com minha avó
Para Mira e Loli
Eu sou aquela sua neta que, se ganhasse o
disputado privilégio de dormir em seu quarto,
esperava seu próximo ronco suavíssimo chegar -
temendo que se não viesse significasse sua morte.
E para quem o prêmio era enfrentar o sono para
ter mais uma vez a visão inesquecível: de
MARIA camisola, sentada na beirada da sua cama de
JOSÉ viúva, a senhora trançava os compridos cabelos
SILVEIRA brancos para arrumá-los em um coque de tal
51
forma que estivessem prontos e perfeitos quando acordasse no frio da
madrugadinha para ir à primeira missa da igreja a três quarteirões de
distância.
Sou eu – essa mesma neta sua – que, nessa noite chuvosa, subo a cortina
da minha janela nesta megalópole e, sem que nada me avisasse que
pensaria nisso, me lembro dessas noites em seu quarto.
Noites que já coloquei em algum dos meus livros, porque escrever é
também lembrar, vovó. Gosto ainda de chamá-la assim, mesmo hoje
sendo também avó de quatro adoráveis netos, e sabendo que a senhora
teve 50 que, com certeza, ainda a chamam assim. As relações
fundamentais – e seus denominativos – não mudam com a idade nem a
morte. E me admiro: como dar conta de tantos netos e saber de cada um
deles, dos maiores aos menores?
Sou aquela neta que achava a melhor coisa do mundo que então conhecia
passar temporadas em sua casa em Jaraguá. A casa de piso de tábuas
corridas que, no longo corredor à noite, ecoavam fantasmagóricas; em
cujos quartos, ao deitar, sondávamos as telhas e os barulhos do quarto ao
MARIA lado onde dormiam os meninos; em cuja sala de três janelas nos
JOSÉ dependurávamos para ver a cidade passar; em cuja despensa entrávamos
SILVEIRA furtivos só pela graça de entrar; e em cujo banheiro nos esperava – a nós,
primas – a banheira branca de pezinhos onde tomávamos banho juntas,
inventando bolhas de sabão e músicas que cantávamos como se
estivéssemos em um palco de espumas.
Eu sou aquela mesma neta que – com Diva, Delia, Luíza, Laura e Sandra
– subia nas mangueiras e jaqueiras do seu quintal frondoso, como se fosse
um lugar único e nosso, ainda mais especial quando os primos, lá de
baixo, tentavam ver nossas calcinhas. Da jaqueira passávamos para o
muro que dava para a Rua de Trás – rua das casas de má fama – que deve
ter outro nome mas até hoje chamo Rua de Trás. Verdade ou não, era
nisso que nosso imaginário de criança acreditava, mesmo sem saber de
fato o que essa “má fama” significava. Enquanto no muro da frente, o
caramanchão de flamboyant vermelho queria apenas festejar a rua.
Essa sua casa foi destruída, minha avó, como tanto se destrói neste país.
Hoje, dela só existe uma ou outra fotografia, e uma pirogravura que
Fernando - pintor jaraguense que namorou uma de suas netas – teve a
delicadeza de me dar. Por sorte. Pois é assim que guardo sua casa: nas
lembranças e, como Drummond, em um quadro na parede.

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Uma voz distante daqui
Não é toda noite, mas com frequência acordo na madrugada com uma voz no ar
que chega até meu quarto. Não é um canto com letras. É som. Nem alegre, nem
triste, nem ode, nem lamento: apenas som. Parece vir do fundo do lugar no
corpo humano onde nasce a música.
Não sei quanto tempo dura, porque volto a adormecer.
Não sei de quem é: minhas janelas têm cortinas pesadas e a sonolência da
madrugada me impede de ir até lá, abri-las e tentar ver no escuro da noite a
quem ela pertence.
Lá fora é uma praça, de fato um largo por onde passa um viaduto, uma grande
avenida, e árvores frondosas nas ruas contornando a pequena praça. Seria difícil
discernir onde está a pessoa dona dessa voz que intuo masculina.
Provavelmente é de um sem-teto, há muitos sem-teto dormindo por aqui.
O que sei com certeza é que é forte e livre essa voz, sem paredes que a impeça de
se espalhar pelo largo e chegar até mim, no alto de um 11º andar, em um quarto
com cortinas blackout.
MARIA Seja como for, seja de onde vem, é linda.
JOSÉ Penso que é mais um privilégio desse lugar onde moro. Poder ouvir na
SILVEIRA madrugada a música fluir como se de uma fonte misteriosa de beleza.
Penso em seu dono.
Com certeza um sem-teto, como disse antes. Terá sido cantor?
É provável.
Imagino a vida que teve, suas alegrias e infortúnios incorporando-se à sua
música e fazendo dela sua forma de se colocar no mundo, de saber quem é. O
dom que hoje ele preserva com mais garra e confiança. É preciso muita confiança
na própria capacidade de produzir beleza para soltar a voz como ele solta,
sabendo que seu auditório é composto por pessoas que dormem. Confiança para
saber que, se não forem completamente obtusas, reconhecerão não terem sido
acordadas em vão.
Nos momentos em que o escuto, sempre penso que no dia seguinte procurarei
debaixo do viaduto quem, dos que dormem ali, é ele, o dono da voz magnífica.
Direi o quanto, mesmo em minha sonolência, fico deslumbrada.
Agradecerei.
Quando o dia amanhece, no entanto, adio essa procura. Talvez querendo
preservar o mistério. Ou pensando que qualquer hora dessas ainda faço isso. Ou
não. Talvez o melhor seja realmente permanecer bem-aventuradamente
ignorante de quem produz esse som encantatório que voa na madrugada e
ajuda a criar a magia possível em uma cidade grande.

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E aquele rapaz tão bom
E aquele rapaz tão bom, como gostaria de levá-lo para um lugar onde o sol não
estivesse manco pois o faria abrir seus olhos para admirar seus cílios
formidáveis e suas faces onde a barba ainda cresceria um tanto como também
seus cabelos e unhas cresceriam, como gostaria de banhá-lo em uma bacia de
prata com sabonete de lavanda bem suave, seus cabelos eu os lavaria com
shampoo de nenê, seus braços aguerridos prontos para descobrir seu verdadeiro
amor e abraçá-lo, suas pernas musculosas há pouco formadas para caminhar
pelo mundo bom que poderia ter sido o dele, mas não foi.
E aquela jovem tão linda, como gostaria de levá-la para um futuro de luz, água
de nascente, esperança, onde a banharia em uma bacia de ouro, e a lavaria com o
mais rico sabonete de ervas com o qual também lavaria seus cabelos longos, sua
pele da uva macia, seus olhos profundos que viram tão pouco e sequer puderam
vislumbrar o imenso amor que estaria a sua espera, os filhos que teria, a vida
que amaria, a alegria que a acompanhou durante toda seus jovens anos, e agora
jaz morta a seus pés.
MARIA E aquela outra jovem tão dedicada que lutou tanto para chegar aonde chegou e
JOSÉ chegaria, eu a lavaria em uma bacia de pétalas silvestres de intenso perfume,
SILVEIRA passaria minhas mãos por seu rosto pálido, seus olhos fechados, suas mãos que
uma vez agarraram o mundo com força, suas pernas bem feitas, seus pés
pequenos, e a levaria para um lugar que a aconchegasse tão bem como o útero
de sua mãe.
E aquele adolescente tão esperto, como gostaria de levá-lo para um lugar onde
ele ainda pudesse crescer pelo menos um pouco mais, hormônios mudando seu
corpo e seu prazer de sorver a vida com furor, sua coragem de crer que o mundo
seria dele, por que não?, se ele possuía sua força, sua vontade, seu crescimento, e
eu o banharia em uma bacia de cristal lavrado pelo futuro que o esperava e que
agora, para todo o sempre, desapareceu.
E aquele homem tão seguro de si, confiante em seu papel no mundo, eu gostaria
de levá-lo para o lugar que antes era o dele, com sua mulher e seus filhos, e o
banharia em uma bacia bem areada, tirando seu suor de homem bem vivido até
pelo menos o meio do que era para ser, para que, então, ele pudesse erguer suas
lembranças, e as manter ali, bem firmes.
E aquela mulher tão enérgica em sua luta de vida inteira, preparando-se para
sair às ruas e gritar “Basta de genocídio”, eu a banharia em bacia de arco-íris por
ter dado seu amor e sua generosidade sem mesquinharia, sem hesitação, em sua
luta para que a humanidade resplandecesse das mil maneiras que poderia
resplandecer, eu a levaria para um campo formoso onde a paz profunda
reinaria, e a cobriria com mil flores para que sua memória jamais fosse
esquecida, junto com a memória dos mais de 300 mil brasileiros mortos até
agora pela pandemia.

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A vizinha
Todo mundo tinha ficado impressionado com a
nova vizinha. Ela era diferente mesmo: dirigia
muito depressa (até meu tio falou – “ela é afoita”),
usava só calça comprida, o cabelo bem longo,
nenhuma trança, a pele muito branca e um batom
vermelho que nunca saía da boca. Tinha um
monte de filhos pequenos, muito bonitinhos,
diferentes, loirinhos. O marido a gente não via
muito.
MARIA LÚCIA Tinha um amigo dela que ia à tarde visitar. Ela
FÉLIX falou um dia: “Esse é o meu dentista, Fulano de
BUFAIÇAL Tal.” Todo mundo que estava na porta ouviu. Não
55
que as pessoas estivessem na porta para observá-la, pessoas ficavam
mesmo na porta, de tarde, depois do banho; tinha menino que já saía pra
porta de pijama.
Assim mesmo, meio estranha, a mulher era simpática. Um dia convidou a
gente pra ir tomar banho de rio no sítio (falava sítio) que o marido dela
comprara, “a primeira propriedade nossa em Goiás”, ela disse. Tirou
muitas fotos nossas, das crianças pulando na água, comendo banana.
Minha mãe também estava alegre, nós nos divertimos. Chegando em
casa, minha mãe falou: “Acho que naquela máquina não tinha filme
nenhum, ela tava tapeando a gente.” Fiquei chocada. “Mãe, é só eu
arranjar uma amiga e a senhora implica com alguma coisa.” Isso porque
eu tinha brincado algumas vezes com a menina mais velha da vizinha,
boazinha demais. Minha mãe nem respondeu, estava rindo, contando o
passeio para sua amiga. Saí de perto.
Dias depois, a vizinha torna a chamar minha mãe, dessa veZ para um
“sarauzinho”, tocar e cantar uma coisinhas. Fui junto. Ela começou a
tocar e cantar, minha mãe tentou acompanhar mas desistiu, ficou só
MARIA LÚCIA entoando baixinho até para, só o dentista é que acompanhou mesmo,
FÉLIX canta alto também. O marido da vizinha estava lá, com uns filhos no colo.
BUFAIÇAL Mas aí eu dormi, com a cabeça encostada no ombro de minha mãe, que
falou: “Eu vou indo porque ela em aula amanhã cedo”, enquanto me
puxava da poltrona. Eu mal aguentei ficar em pé enquanto elas se
despediam, “boa-noite, muito obrigada”. E minha mãe sempre rindo com
sua amiga quando falava sobre a vizinha. Eu nem queria escutar.
Vimos quando a vizinha subiu numa goiabeira que tinha no jardim da
casa dela (acho que era a única planta que tinha lá) e, sem mais nem
menos, quando o carro do dentista estava parando, ela de um pulo
pendurada no galho que nem se fosse a Jane do Tarzan. Parecia uma
menina. E o dentista deu a impressão de ter ficado encantado. Mas minha
amizade com a filha dela teve de acabar, mesmo que ainda hoje eu possa
me lembrar de seu rosto nitidamente (tão legal, ela era). Eles se mudaram
na calada da noite. Nunca ficamos sabendo o ocorrido. A vizinha do outro
lado comentou: “Essas mulheres de fora...”

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Inaugural
Gostaria de estrear neste espaço, em que escrevem tantas pessoas talentosas,
com um texto que fosse um primor. Um texto – como direi? – redondo,
completo. Que tocasse o jornaleiro, primeiro a carregar o jornal pelas ruas,
tocasse a dona de casa, os jovens , os velhos, os pobres, os ricos (mas homens
sérios, distantes e duros, que só discutem dinheiro, eu não sei se ia conseguir
tocar). E que todos dissessem depois, aos quatro ventos: “Que texto bom!
Música para os meus ouvidos! Era isso mesmo o que eu queria dizer.”
Infelizmente, não chego a tanto. Estamos em maio, o verde começa a secar,
estridentes e violentos sãos os barulhos que vêm do mundo, vivemos dias
ensandecidos. Além disso, bem pouco sei. Não posso aquele cabedal de
conhecimentos que elevam o espírito e enchem de orgulho a nação. Tampouco
costumo escrever coisas edificantes, com lições de moral e instruções sobre o
correto proceder.
Tentarei, no entanto, dar o melhor “de si”, como diriam alguns. Labutarei em
cada linha, em cada palavra para ser digna dessa tarefa e à altura dos que a
MARIA LÚCIA dividem comigo. Não fugirei ao dever de comentar com certa amenidade os
FÉLIX acontecimentos cotidianos; não serie jamais tão pessimista que traga desconsolo
BUFAIÇAL aos leitores, nem tão jubilosa que pareça falsa. Meus escritos se pautarão pelo
bom senso, essa instância da sabedoria que o tempo nos traz. Direi muitas
coisas, algumas talvez certas e outras que não terão a menor importância. Não
me lamentarei, não correrão lágrimas pelo teclado do computador. E, mesmo
assim, pretendo ser verdadeira, sabendo que, se não o for, todos perceberão. “Sê
fiel a ti mesmo”, já dizia Polonius.
E, para aqueles que não me conhecem, devo acrescentar que tenho muitos anos
de vida, filhos, alguns livros, saudades fluidas e dolorosas, perdas e acréscimos.
E que sempre tentei bordar a vida com palavras. Enfim, estou viva, olhos as
coisas e elas muitas vezes me inspiram.
Ah, eu sou distraída. Já ia me esquecendo agora do mais importante: sou goiana,
goianíssima, do pequi e da guariroba, goiana de truz e cruz. E para o que der e vier.

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Missa de sétimo dia
Quando termino de me aprontar para a missa de 7° dia, lembro-me de outras
ocasiões da vida em que, ao acabar de me preparar para alguma festa, a
ansiedade – ou mesmo o hábito – me fazia perguntar para o meu pai, meio
brincando: “Tá bom, pai? Eu tô bonita?”, e ele, invariavelmente, respondia, me
olhando: “Pra pobre serve”. Era o nosso pequeno diálogo de mútuo
reconhecimento: de minha parte o querer saber sobre mim, sobre a roupa que
usava, sobre como eu me apresentaria; da parte dele, a chance de mostrar sua
satisfação por eu precisar de sua aprovação e também, ao mesmo tempo, de seu
orgulho, que não queria se mostrar e se escondia nesse “pra pobre serve”.
Sempre ríamos os dois, até mesmo no dia em que me aprontei para casar: “Tá
bom, pai?”, “Pra pobre server”.
Missa de 7° dia da morte do meu pai. Um ritual, como muitos na vida. De
dentro das engrenagens da dor com que me defronto todos os dias e que tenho
de calar para continuar respirando, agindo, sendo, me aprontando, comprando
pó de café, tirando xerox de um documento, sua partida sempre está indo e
MARIA LÚCIA vindo, indo e vindo, calada no peito, expressa em momentos, ouvida como se
FÉLIX pode um barulho de água constante, redemoinhando; porém ,não
BUFAIÇAL interrompendo aquilo que temos de cumprir. Estou aqui nesse mundo sem você,
pai. E os carros buzinam, e chove, e um homem corre para atravessar a rua, e o
dia acaba em perplexidade, palavras, vento. Estou aqui nesse mundo sozinha de
você. Podendo e não podendo gritar uma orfandade que, no entanto, é plena das
lembranças de seu imenso calor e de seu enorme significado em nossa vida.
Desde eu pequena. Desde quando você era um gigante bom que espantava o
medo. Desde quando só de você existir, a gente sabia pra onde ir. Desde quando
a casa era sua, nossa, e você é que dava o tom da poesia: “A aventura é que
governa a vida.”
Missa de 7° dia. Sabe por que, pai, ela existe? Porque as pessoas tinham de vir de
muito longe, muitas vezes em lombo de burro para se reunir e chorar seus
mortos. As distâncias eram tão grandes. A Bíblia manda apenas que rezemos
por nossos mortos, n 1°, 2°, no milésimo dia. Rezar por você, pai? Ou mostrar o
quanto sou feliz por você ter sido meu pai? Ou o quanto escuto sua voz,
baixinho, como um ria que passa quieto, rumorejando, e a gente sabe que ele
está dizendo: “Querida, amarga é uma voz quando ela é pobre de amor”. Ou
então: “A vida, a que não tens e tanto buscas, terás, se te entregares à poesia.”
Missa de 7° dia. “Estou bem, pai? (Dessa vez carrego você sem você para me
ensinar)”. A resposta viria como sempre veio, sem dramas, sem pieguice, sem
falsidade, com um brilho de riso e orgulho, espantando minha insegurança. “Pra
pobre serve”. Você diria isso, você, o mais rico de todos.

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Nala, a
negacionista
Tenho uma cachorra imensa, cor de caramelo,
uma mistura de fila brasileiro com rottweiller,
uma monstra, enfim. Mas ela sempre foi muito
mansa, amistosa, “gente boa”. Desde que
começou a quarentena, porém, ela tem mudado
de comportamento, andado injuriada com o
menor número de visitas, com o álcool em gel,
ROGÉRIO com os maiores cuidados com higiene. Indignada
BORGES com os conselhos da ciência, Nala virou
negacionista.
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Ela avisou, em altos e bons latidos, que não vai respeitar distanciamento
social coisa nenhuma. “Isso é bobagem, não é necessário”, defendeu.
“Vamos nos abraçar! Vem cá, deixa eu te lamber!” E lá vem ela, com seu
corpo enorme, se jogando em cima da gente. Tentamos conscientizá-la.
“Nala, se você me lambe e lambe outra pessoa, talvez você transmita o
vírus entre um e outro. Precisa ficar mais calma!” Que nada. “Isso é só
uma gripezinha. Tenho histórico de atleta”, uivava, de volta.
Ela também se recusa a usar máscara. A última que lhe foi dada, ela
comeu. “Não uso coisa nenhuma.” Insistimos: “Nala, cadê sua
cidadania?”. Ao que ela respondeu: “Cidadã não, cachorra fofa! Melhor
do que você!”. E ainda me chamou de analfabeto e me aplicou uma
carteirada. Agora, deu para pedir ração no sabor cloroquina. “Meu
presidente disse para tomar, eu vou tomar! Ele não ficou bom? Então!”.
Tento argumentar mais uma vez. “Nala, isso não tem comprovação
científica. Você vai acreditar mais em estudos feitos no mundo inteiro, nas
principais universidades e hospitais do planeta, ou em alguém que nem
médico ou veterinário é?”. Ela me respondeu fazendo arminha com a
ROGÉRIO pata e arreganhando os dentes.
BORGES Não é fácil lidar com uma cachorra negacionista. Todo dia pergunta
quando vou ministrar a ivermectina dela. “Vocês, jornalistas, são todos
iguais. Só querem disseminar o pânico. Globo Lixo! Folha Lixo! Essa
pandemia é uma mentira, uma conspiração globalista financiada pelo
George Soros, em associação com os comunistas da China, que querem
dominar o mundo e tomar a Amazônia, usando como garotos-
propaganda aquela militante da Greta e o Felipe Neto!”. Acho que vou ter
que tirar o WhatsApp da Nala. Ela acredita em qualquer coisa que recebe
no grupo do canil dela!
Aliás, eu acho que essas companhias têm feito muito mal a ela, que antes
era uma cadela pacífica, que dialogava com as pessoas, que ouvia as
opiniões divergentes sem rosnar. Depois passou a conviver com uma
poodle dondoca metida a besta, com um doberman com ideias fascistas,
com um pastor alemão fanático religioso, pronto, virou o cão, no sentido
demoníaco da palavra. Nala agora quer fechar o STF, fica pedindo
intervenção militar, quer fazer aula de tiro. Dia desses, veio com um papo
pra cima de mim de que ouviu de um pinscher histérico que o nazismo é
de esquerda e me repassou uma mensagem de um buldogue babando
contra a Lei Rouanet.
Não sei mais o que faço. A gente cria, educa o cachorro para ele virar uma
coisa dessas. Que desgosto, meu Deus! Ela diz que eu tenho que respeitar
suas opiniões, mesmo que elas sejam fake news. Estou perdendo a
paciência. Na nossa última discussão, eu avisei que se ela continuar desse
jeito, vou importar uma ema do Palácio do Alvorada e colocar no quintal
para ela lhe ensinar a virar gente, digo, cachorra, nem que seja na base da
bicada. Ao ouvir isso, ela colocou o rabinho entre as pernas e foi assistir,
em volume baixo, mais um vídeo de um guru-astrólogo que mora nos
Estados Unidos e que nega a pandemia.
Êh, Nala! Onde foi que eu errei?

60
Chico em discussão
Ela: Com açúcar, com afeto, fiz seu doce predileto, pra você parar em casa...
Ele: Hoje sonhei contigo e caí da cama.
Ela: Já lhe dei meu corpo, minha alegria...
Ele: Amor, tu fedia, infestava o ar!
Ela: Deixe em paz meu coração, que ele é um pote até aqui de mágoa!
Ele: O que será que me dá, que me bole por dentro?
Ela: E qualquer desatenção, faça não! Pode ser a gota d'água!
Ele: Que todos os meus nervos estão a rogar...
Ela: Não, não fuja não! Finja que agora eu era o seu brinquedo!
Ele: Agora era fatal que o faz-de-conta terminasse assim...
Ela: Desfruta do meu corpo como se meu corpo fosse sua casa!
Ele: Não se afobe não, que nada é pra já...
Ela: Quem te viu, quem te vê...
Ele: Foi tudo ilusão passageira, que a brisa primeira levou.
Ela: O que é que a vida vai fazer de mim?
ROGÉRIO Ele: Aquela esperança de tudo se ajeitar, pode esquecer...
BORGES Ela: Tinha cá pra mim que agora sim eu vivia enfim o grande amor... Mentira!
Ele: O que será que será, que dá dentro da gente e não devia?
Ela: Eu levava fé no grande amor... Mentira!
Ele: Que todos os meus nervos estão a rogar...
Ela: Na fotografia estamos felizes...
Ele: Prefiro, então, partir a tempo de a gente se desvencilhar da gente...
Ela: Vai ser engraçado se tens um novo amor...
Ele: E uma aflição medonha me faz implorar...
Ela: O que não tem vergonha, nem nunca terá!
Ele: O que não tem conserto, nem nunca terá!
Ela: O que será que será que vive nas ideias desses amantes?
Ele: Que está na fantasia dos infelizes.
Ela: No nosso retrato pareço tão linda...
Ele: Procurando bem, todo mundo tem pereba, marca de bexiga e vacina.
Ela: Claro que ninguém se toca com minha aflição...
Ele: A metade de seu olhar tá chamando pra luta aflita!
Ela: Não vou lhe dar o enorme prazer de me ver chorar!
Ele: Pode guardar as sobras de tudo que chamam de lar, a sombra de tudo que
fomos nós.
Ela: Quando você me quiser rever, já vai me encontrar refeita, pode crer!
Ele: Essa moça tá diferente!
Ela: Leva o que há de ti, que a saudade dói latejada...
Ele: Ela só me guarda despeito...
Ela: Eis, o malandro na praça outra vez! Caminhando na ponta dos pés como
quem pisa nos corações!
Ele: Eu não quero levar comigo a mortalha do amor. Adeus!
Ela: Na boca do povo, você vai saber de mim!
Ele: Maldita Geni!!!!!!

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Aldir, fui um traidor
Aldir Blanc sempre me deu um sentimento de traição. Eu explico. Considero
Chico Buarque o maior compositor popular de nossa música, maior até que Tom
Jobim (ok, podem me xingar por isso), maior até que Dorival Caymmi (sei que
Carmen Miranda revirou no túmulo agora). Mas não tem jeito, fecho com Chico
e não abro! Quer dizer, quase não abro... A exceção sempre foi Aldir Blanc.
Muitas vezes, ao ouvir as canções que ele compôs com parceiros como João
Bosco e Moacyr Luz, eu balançava: “Ih, esta é melhor que as do Chico”.
E muitas vezes eram mesmo, confesso minha infidelidade. Porque nem Chico,
nem ninguém, transformaram uma audiência de divórcio em um clássico. Chico
até chegou perto, quando narra, em Trocando em Miúdos, a dolorosa partilha
dos bens de um casal que se desfez, mas nada se compara a Incompatibilidade
de Gênios, aquele samba marcado, de poucas notas e cheio de monossílabos,
que gravou na minha memória a voz rascante de Clementina de Jesus. Cada
cena descrita daquela canção é uma breve obra-prima.
“Dotô, jogava o Flamengo e queria escutar.
ROGÉRIO Chegou, mudou de estação, começou a cantar.”
BORGES Mas que inferno deve ser uma pessoa que lhe impede de ouvir no rádio o seu
jogo preferido, que salga o feijão de propósito, que enfia a sogra na sua casa para
lhe suprimir a paz, que faz greve de sexo por pirraça, que manda o cobrador
entrar e sentar! Ah, Aldir, que pérola maravilhosa!
Esse sentido cronístico de Aldir Blanc está na cena de violência de De Frente Pro
Crime, em que um assassinato serve para “fazer discurso pra vereador”, pra
ambulante vender “anel, cordão, perfume barato”, pra baiana vir “fazer pastel e
um bom churrasco de gato”. É a cena da morte e da sobrevivência lado a lado,
no mesmo espaço, na mesma indiferença, na mesma miséria de todo dia.
Até mesmo ao tema do encontro amoroso – cantado e decantado em todos os
ritmos e gêneros, em todos os idiomas e dialetos –, Aldir conseguiu dar outro
verniz. Na dança titubeante de Dois Pra Lá, Dois Pra Cá, ouvimos a taquicardia
de um “coração que batia mais que o bongô”, sentimos a dor causada pela
“ponta de um torturante band-aid no calcanhar”. Que olhar para os detalhes,
que senso de observação absolutos.
Era do trivial, do cotidiano, das alegrias e dos traumas do dia a dia que Aldir
Blanc fazia música. E traduzia o Brasil com realismo, mas ainda algum alento.
Isso está na esperança equilibrista que representou o retorno dos anistiados, do
irmão do Henfil, sob o choro de Clarice, a viúva do jornalista Vladimir Herzog,
assassinado nos porões do arbítrio. Tudo em uma única canção que trazia uma
introdução circense – “na corda bamba de sombrinha” – para ir ganhando
fôlego, força, vísceras.
Aldir morreu em um país triste. Morreu em um país que volta a flertar com o
que ele sempre combateu. Morreu vítima de uma epidemia que se agrava graças
à ignorância e à incompetência de negacionistas autoritários e truculentos.
Morreu depois de perambular por hospitais, custando a encontrar um
atendimento decente. O destino, talvez, tenha decidido que o Brasil não merecia
mais Aldir Blanc. O Brasil está feio, hipócrita e tosco demais para tanto
refinamento e inteligência.
Vai Aldir, e não conta pro Chico que, muitas e muitas vezes, eu o traí com você.

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Andar com fé
A janela ganhou novo significado. A vida passa
por ela muito mais que antes.
Era uma sexta-feira, véspera do fim de semana.
Dia em que, antigamente, lá em um passado que
parece remoto, uma agitação indisfarçável
deixava as ruas nervosas, ansiosas com a
proximidade do descanso e do encontro.
Mas naquela sexta-feira a emoção estava longe
das ruas. Via-se pouco movimento através da
SILVANA janela. A emoção transbordava das redes sociais,
BITTENCOURT onde se despejava esperança depois de um vídeo
que circulou na internet. Era um vídeo simples,
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que despertava estranhas sensações, uma catarse em ondas, um expurgo
de dores e medo. Nele, Gilberto Gil e artistas amigos cantavam a fé e
pareciam abrir as portas de um outro país, um lugar do passado, onde
pulsava a memória de alegria, talento e esperança. A paz invadiu o
coração e desfez momentaneamente a atmosfera densa de fim de mundo.
O clima de êxtase durou até que, pela janela, entraram sons que se
misturavam ao ritmo do andar com fé de Gil, aquela que não costuma
falhar. Pessoas pediam socorro, uma criança chorava estendida no chão,
os vizinhos se acercavam com os celulares em punho. Um motociclista,
entregador de aplicativo, foi um dos primeiros a parar. Estava com a caixa
de entrega, grande e desconfortável, presa às costas; e assim ficou durante
todo o tempo.
Desceu da moto, fez rápidas perguntas, ligou para a ambulância e
permaneceu ali até a saída do resgate, que levou o menino para o hospital
- o atropelador escapara na escuridão. A noite avançava sem clemência,
no seu ritmo de fim de mundo. Era tarde. O homem com a caixa grande
presa às costas certamente estava cansado, certamente havia trabalhado o
SILVANA dia todo, em condições miseráveis e em troca de pouco de dinheiro. Mas
BITTENCOURT ele não arredava o pé. Os vizinhos começaram a voltar para casa e o
homem da entrega continuava solidário, presente. Talvez tivesse um filho
da mesma idade, talvez tivesse um coração enorme, talvez transbordasse
empatia e a cama que o aguardava para o descanso não fizesse mais
sentido diante da dor alheia.
Pela janela era possível acompanhar tudo. O susto, o socorro, a
solidariedade, as histórias de vida imaginadas em meio ao silêncio
imposto pela quarentena.
Os acordes de Gil ainda soavam em meio à rua quase deserta. “A fé tá na
manhã, a fé tá no anoitecer”. A multidão se desfazia, os vizinhos se
acalmavam, a noite seguia seu rumo de escuridão, o homem da caixa
enfim partia para repousar, depois de sobreviver a mais um dia de
estresse e ameaças no trânsito. Ele conhecia muito bem a violência das
ruas, mas era difícil se resignar diante de uma criança ferida, estendida
sobre o chão.
O menino recebia socorro. O jovem de peito nu, que tirou a camisa para
acomodá-la sob a cabeça do garoto, fazia mais uma ligação. A mulher de
vestido voltava para casa. O velho com a máscara no queixo fechava o
portão da garagem. A polícia fazia suas últimas perguntas antes de
prosseguir na noite do fim do mundo.
Na internet, uma mensagem chamava a atenção. Uma moça desconhecida
contava que sua mãe idosa, isolada há mais de três meses, tirava fotos
diariamente do amanhecer pela janela de seu apartamento. E a moça
publicou as imagens de diferentes auroras coloridas - alaranjadas,
azuladas, avermelhadas - e pediu aleatoriamente que as pessoas
mandassem um bom dia para senhora reclusa.
A rede social de dona Ana se encheu de “bons dias”, o homem da caixa
de entrega relaxou os ossos cansados sobre o colchão, o menino fez
curativos e Gil andou com fé. Porque a fé não costuma falhar.

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Como conseguiram
errar tanto?
Um fêmur cicatrizado foi o primeiro vestígio de civilização humana, segundo a
antropóloga americana Margaret Mead. Artigos relatam que há muitos anos um
aluno fez a pergunta a ela, indagando quais teriam sido os primeiros sinais do
surgimento de um povo civilizado, os indícios de que os humanos ganhavam
capacidades que os diferenciavam dos grupos mais primitivos. Seriam talvez os
escritos, a arte, a pintura, invenções o esporte?
Mead apresentou então a resposta surpreendente: as pistas de que o homem
alcançava os degraus da civilização estavam naquele fêmur, encontrado há 15
mil anos em uma escavação arqueológica. E explicou os motivos: o osso tirado
do fundo da terra, um dos maiores do corpo humano, tinha evidências claras de
fratura e posterior cicatrização, um processo difícil, que pode durar seis semanas
ou mais quando não se utiliza recursos da medicina.
SILVANA Obviamente, durante todo esse tempo a vítima do acidente estava viva, o que
permitiu que o fêmur fosse colado. Portanto, a conclusão é de que alguém
BITTENCOURT cuidou, alimentou e protegeu aquela pessoa, enquanto ela aguardava imóvel a
lenta recuperação. Se fosse um animal, a vítima da fratura estaria condenada à
morte, porque não conseguiria se deslocar para comer ou beber água e
possivelmente seria devorada por predadores. Trocando em miúdos, a
interessante teoria da antropóloga aponta que cuidar do outro tira o homem da
condição primitiva, bárbara.
Desce o pano. Quinze mil anos depois da descoberta de um fêmur curado – o
possível vestígio do alvorecer de uma era civilizada - o mundo se depara com a
mais contagiosa e letal pandemia do século, uma praga misteriosa que empurra
o fantasma da morte a bater em portas indistintas, a qualquer dia da hora e da
noite, sempre de surpresa.
Se fosse um animal, o homem talvez agisse instintivamente em busca da
sobrevivência. Talvez escalasse uma árvore, mergulhasse nas profundezas de
uma caverna escura ou buscasse uma montanha isolada ao observar os
cadáveres espalhados na floresta. Os animais possivelmente fugiriam da ameaça
invisível, movidos pela pulsão de vida. E assim talvez ajudassem a preservar a
vida dos demais, evitando que a praga se propagasse ainda mais. Mesmo
involuntariamente, estariam cuidando do outro e se aproximando do estágio
civilizatório, conforme a teoria antropológica.
Mas eis que a humanidade retrocede a seus ancestrais bárbaros. Volta-se para
seu próprio umbigo, como se pudesse sobreviver sozinho; duvida da morte,
mesmo quando tropeça em corpos e fica impregnada de seu cheiro; espalha a
peste sem respeito ao outro; propaga mentiras e cria um mundo de fantasias
absurdas. Levanta armas e declara a guerra em um momento em que a união de
esforços poderia garantir a cura. Desperdiça a energia que poderia garantir a
própria vida. Escorrega muitos degraus na escada da civilização.
Dentro de 15 mil anos, os arqueólogos e antropólogos certamente terão uma
tarefa desafiadora. Diante de tantos esqueletos fossilizados, enterrados à mesma
época, concluirão que uma praga devastadora dizimou em torno de 2 milhões
de pessoas no período de um ano do longínquo século 21. Foi um extermínio em
massa que coincidiu com a época de ouro da tecnologia e da medicina, quando o
conhecimento permitia que a população vivesse mais, com mais qualidade e
cura, protegida por vacinas e pela ciência.
Em meio às escavações, enquanto separam os ossos do passado, os antropólogos
talvez se perguntem: Como eles conseguiram errar tanto?

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Eu passarinho!
Nunca soube assoviar. Fracassei fragorosamente em todas as tentativas. Com as
mãos queimadas de álcool e o rosto marcado por máscaras, partimos para
alguns dias em um sítio, onde os passarinhos acordavam os humanos com uma
orquestra de múltiplos tons, de ritmos frenéticos e afinados. Foram dias de
realidade paralela, longe de máscaras e perto de assovios enigmáticos, sons
espetaculares emitidos por gargantas tão frágeis. Que mistérios guardam
aqueles pescocinhos finos por onde ecoam notas complexas e arranjos
sofisticados?
Era o auge da pandemia, o mais tenebroso dos pesadelos. As notícias insistiam
em chegar carregando o peso da dor de famílias exterminadas, um silêncio
incômodo de perguntas nunca respondidas. A orquestra de passarinhos seguia
com suas notas musicais, indiferente a tudo, exibindo-se em completa balbúrdia
e fazendo sentir minúsculo quem não sabia assoviar. Como é possível caber em
um mesmo planeta, simultaneamente, tamanhas dor e beleza?
O mundo estava em luto e os passarinhos não escondiam sua superioridade
SILVANA diante da fragilidade humana. Os papéis estavam evidentemente invertidos e as
BITTENCOURT débeis criaturas de asas, leves como penas, adquiriam autoridade de gigantes.
Sobrevoavam um planeta em choque, confuso com o trauma da perda,
sobressaltado pelo medo e pelo estresse. E assoviavam melodias intrincadas, em
uma algazarra escandalosa o suficiente para não deixar dúvidas de sua potência.
Com a estridência de seu canto, alertavam para a vida, como que para espantar
as sombras assíduas da morte.
As redes sociais se enchiam de notícias fúnebres que substituíam as cenas de
glamour e ostentação de outrora. A felicidade parecia indecorosa em meio ao
luto coletivo. Menos para os passarinhos. A eles não havia sido tirado o direito
de assoviar e voar, de viajar de um continente a outro, enquanto os homens se
trancavam entre paredes. A gaiola agora guardava o engaiolador, um jogo de
espelhos, como os que fazem os pássaros se esborracharem nas fachadas de
vidro dos prédios. Um dia da caça, outro do caçador.
Eles cantavam e migravam, voando sem pausa por milhares de quilômetros,
orientados por uma bússola misteriosa de constelações, mares e montanhas,
alimentados por um combustível mágico, de autonomia quase infinita. Faziam
revoadas sobre os enormes edifícios, sobre cemitérios e parques, desafiavam as
alturas e a platitude confusa de epidemias e incertezas. A tragédia da
humanidade não cabe em seu diminuto cérebro.
As aves, os lobos, os tamanduás, as baleias e girafas estão no mundo para
surpreender, inquietar, maravilhar. Como traduzir beleza tão intensa, formas
exóticas, cores surpreendentes, capacidades inusitadas, adaptações e anatomias
que parecem desenhos de uma imaginária terra da fantasia?
Seus traços impossíveis ficam mais visíveis sob a penumbra da morte. Sua
presença revolve as profundezas do tempo e ecoa vida em tempos de incerteza.
Seus enigmas despertam sensações ancestrais e revivem a esperança. É difícil
explicar, mas é fácil sentir: o mundo ganha outras cores sob o som de uma
orquestra de assovios.
Mário Quintana também trouxe esperança, como uma Arca de Noé em tempos
de dilúvio:
Eles passarão.../ Eu passarinho!

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Organização:
Rodrigo Alves,
Fabrício Cardoso e
Silvana Bittencourt

Cronistas:
Adelice Silveira Barros
André de Leones
Cássia Fernandes
Edival Lourenço
Fabrícia Hamu
Fabrício Cardoso
Flávio Carneiro
Gustavo Palmeira
Karla Jaime
Lena Castello Branco
Leon Rabelo
Lucão
Maria Lúcia Félix Bufaiçal
Maria José Silveira
Rogério Borges
Silvana Bittencourt

Edição de arte, capa e ilustrações:


André Rodrigues

Arte:
Lúcio Rodrigues da Silveira

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